As Feridas do Haiti

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Repórteres do Diário viajam ao Haiti a convite do Ministério da Defesa e trazem a história deum país assolado pela miséria, desemprego e corrupção. Em 2004,em razão de conflitos e extrema violência, houve intervenção da ONUcom tropas armadas para garantir a segurançado povo. Caderno mostra que 10% da população está contaminada com o vírus da Aids e que 300 mil crianças são escravas domésticas ou sexuais

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Cobertura jornalistica sobre o Haiti realizada pela dupla Raul Marques (texto) e Rubens Cardia (fotos) sobre o cotidiano dos haitianos e o trabalho da tropa brasileira no contingente de força de paz da ONU.

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Repórteres do Diário viajam ao Haiti a convite do Ministério da Defesa e trazem a

história de um país assolado pela miséria, desemprego e corrupção. Em 2004, em razão de

conflitos e extrema violência, houve intervenção da ONU com tropas armadas para

garantir a segurança do povo. Caderno mostra que 10% da população está contaminada

com o vírus da Aids e que 300 mil crianças são escravas domésticas ou sexuais

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PAÍS EM TRANSE

Assolado pela miséria e corrupção, país conta com o Brasil para achar o caminho da redenção

Amiséria no Haiti

não é exceção, mas

regra. Encontra-se

disseminada por

toda a parte e não

poupa a maioria da população:

80% dos haitianos vivem

abaixo da linha da pobreza, ou

seja, com menos de 2 dólares

por dia.

O Haiti está localizado no

mar do Caribe e se orgulha de

ser a primeira nação

governada por negros no

planeta. A sua história de país

livre, no entanto, é marcada

por disputas internas, golpes

de Estado, tragédias naturais,

violência e guerra civil.

Essa mistura explosiva

resultou no atual quadro de

pobreza extrema,

desorganização e abandono. A

situação do Haiti só é

comparada à do Timor-Leste e

do Afeganistão.

No total, 80% da

população, formada por 8,5

milhões de pessoas, vive sem

água encanada, energia

elétrica e banheiro em casa.

A falta de infraestrutura

básica e ações efetivas do

governo haitiano nos campos

da saúde, educação e trabalho

têm exterminado

prematuramente a população e

criado uma geração de jovens

sem futuro, sem perspectivas

de melhora e com sonhos

diminutos de ter uma

existência plena.

No abismo de pobreza que

o Haiti caiu, 23% das crianças

sofrem de desnutrição e 10%

dos moradores estão

infectados pelo vírus da Aids.

Ainda no âmbito da saúde,

há problemas causados pela

falta de saneamento básico e a

contaminação de fontes

naturais.

O resultado não poderia

ser outro: a população não tem

água potável para beber.

As pessoas compram, o que

não é muito comum, ou

coletam água em canais de

esgoto para cozinhar, beber e

tomar banho. Pelas ruas da

capital, Porto Príncipe,

sobram pedidos desesperados

para matar a sede.

A coleta de lixo é

insuficiente para atender a

demanda. O resultado? Pilhas

de lixo orgânico espalhadas

pela cidade, juntamente com

esgoto e fezes. O cheiro da

mistura é forte e chega a

causar náuseas.

Para o haitiano, cuja noção

de higiene pessoal é restrita,

esse cenário é parte natural da

paisagem.

A expectativa de vida no

Haiti é de 53 anos – quase

duas décadas a menos que a do

brasileiro. O índice de

analfabetismo chega a 47% e o

desemprego atinge 70% dos

moradores. Por isso, recorre-se

ao escambo para sobreviver.

Na frente dos casebres,

troca-se de tudo.

Além de falta de

infraestrutura e dos sucessivos

saques ao erário, a política

sempre foi efervescente e

resolvida, não raro, na base da

violência, truculência e da

comunicação repleta de

ruídos. A história é a maior

prova.

Em 2004, conflitos

armados se espalharam por

todo o país. A Polícia

Nacional do Haiti (PNH)

contava apenas com 1,4 mil

homens e não conseguiu evitar

a violência nas ruas e a ação de

gangues armadas.

A situação ficou

insustentável e ocorreu a

queda do então presidente

Jean-Bretrand Aristide.

O presidente da Suprema

Corte, Bonifácio Alexandre,

assumiu o poder e requisitou a

assistência da Organização das

Nações Unidas (ONU).

As tropas ingressaram no

país com objetivo de

restabelecer a segurança. Entre

2004 e 2007, ocorreram vários

combates entre as gangues e os

militares.

O Haiti é o quarto país

mais corrupto do mundo no

ranking elaborado pela

Transparência Internacional.

Na frente apenas de Myanmar,

Somália e Iraque. O relatório

avaliou 180 países.

Missão

No dia 1º de junho, foi

iniciada a missão das Nações

Unidas para a Estabilização no

Haiti (Minustah).

A missão é composta por

7.112 militares de 17 países e

1.858 policiais. O Brasil tem o

maior efetivo com 1.298

militares e é o líder natural da

ação.

Os cinco anos de

intervenção no país já custaram

R$ 700 milhões aos cofres

brasileiros. O mandato é

renovado a cada 12 meses.

O embaixador brasileiro no

Haiti, Igor Kipman, afirma

que a comunidade

internacional trabalha com

objetivo de reduzir de forma

gradual a presença militar em

2011, quando será realizada a

eleição presidencial.

“É a comprovação de que o

país está democraticamente

equilibrado e as instituições

estáveis. A meta, em 2011, é

que a PNH esteja preparada e

equipada para assumir a

segurança do país. A partir

daí, será possível reduzir a

presença militar, não só do

Brasil.”

‘O biscoito de barro choca’

O repórter Raul Marques relatasua experiência de cinco dias noHaiti: choque ao ver parcela dapopulação disputar com porcosalimentos num lixão; malária edesnutrição são as principaiscausas de morte no país

Aprimeira vez que

eu ouvi falar de

tropas da ONU foi

quando criança: um

amigo ganhou um

punhado de soldadinhos de

plástico azul. Brincávamos de

guerra e ele sempre falava que

aquela tropa não guerreava, mas

evitava a guerra. A partir de então

passei a buscar informações e a

admirar cada vez mais os soldados

de capacete azul que davam suas

vidas para preservar a paz.

Quando soube que o Brasil

iria coordenar os trabalhos de

paz no Haiti fiquei bastante

curioso em conhecer o

trabalho. Em 2005, cheguei a

fazer a solicitação de permissão

de trabalho junto à tropa, mas,

na época, foi negada. Mas

quando recebi a notícia de que

teria a oportunidade de viajar

pelo Diário para cobrir matéria

no Haiti fiquei eufórico;

poderia enfim conhecer de

perto o trabalho de nossos

soldados da paz.

Foi muito gratificante ver a

receptividade da população à

tropa brasileira, um

reconhecimento àqueles que se

sacrificam a ficar seis meses longe

da família, com poucos

momentos de lazer e muito

trabalho árduo, a patrulhar por

horas, com mais de vinte quilos

de equipamento por vielas

estreitas sob o escaldante sol

caribenho. Nesta viagem, o que

mais me impressionou foi uma

garotinha de pouco mais de um

ano. Ela atravessou a rua e

segurou firmemente os dedos de

um fuzileiro naval. Abaixei-me

para fotografá-los, e a menina se

assustou e chorou

desesperadamente... agarrou a

perna do militar sabendo que ali

ela estava plenamente segura,

mesmo a poucos metros de sua

família. Para mim, esta foi a mais

sincera demonstração do

reconhecimento e confiança

demonstrada aos nossos

capacetes-azuis.

Rubens CardiaRaul Marques

Os capacetes-azuisbrasileiros emexcursão pelas ruasde Porto Príncipe

Garota segurabebê em PortoPríncipe, capitaldo Haiti: 80% dapopulaçãosobrevive commenos de US$ 2por dia

Desde a infância, o fotógrafoRubens Cardia sonhava um diaacompanhar os capacetes-azuisem missão de paz: certeza dobom trabalho do Brasil veio aover criança, assustada, seagarrar à perna de soldado

Eu imaginava que

conhecia o real

significado do termo

miséria. Nos

primeiros minutos

em solo haitiano, no entanto,

descobri que estava

profundamente enganado.

É certo que ainda faltam

muitas coisas para termos um

Brasil digno, seguro, sem

desemprego, com oportunidades

a todos e serviços de excelência

nos campos da educação, saúde,

trânsito e cultura.

Mas estamos séculos à frente

do Haiti. Nem precisa ser

especialista para chegar a essa

conclusão. No país colado ao mar

do Caribe é possível presenciar

situações absurdas,

constrangedoras e degradantes

com facilidade.

Durante os cincos dias em

que permaneci no país, vi pessoas

lavando o corpo em águas fétidas,

ingerindo água proveniente do

esgoto e comendo lixo ou então

alimentos imundos.

Foi chocante presenciar um

menino, de 10 anos, engolindo a

iguaria que representa a pobreza

no país: o biscoito de barro. Ele

nem fez careta ou protestou.

A maioria das casas não conta

com energia elétrica, água

encanada ou banheiro. As

pessoas fazem as suas

necessidades fisiológicas em

qualquer lugar.

O conceito de privacidade

não chegou ao Haiti ainda.

Tudo isso não passou imune

por mim. Choque é um termo

que pode mensurar, mas não

definir o meu estado de espírito

em alguns momentos. Mas

confesso que fiquei emocionado

ao presenciar uma ação

humanitária.

Além de uma cesta básica

com mantimentos de primeira

necessidade, os Fuzileiros Navais

do Brasil distribuíram a cada

pessoa um copo descartável cheio

de água e duas pedras de gelo.

Era recebido como troféu.

‘Foi muito gratificante’

Page 4: As Feridas do Haiti

Odesemprego é um problema crônico e

afeta diretamente a espinha dorsal do

país. Sem trabalho, as pessoas não

conseguem ganhar dinheiro nem

mesmo para adquirir o básico:

comida e água. Cerca de 70% da população ativa -

aproximadamente 3,6 milhões de pessoas - não

tem o que fazer profissionalmente. Elas vivem de

bicos, muitas vezes em troca de comida, esmola,

ajuda humanitária da ONU ou escambo, uma

verdadeira febre.

A agricultura consiste basicamente na

subsistência. Há também produtores, com certa

estrutura, que fazem as vezes de empregadores. A

produção agrícola comercial é composta por café,

cana-de-açúcar e arroz.

A indústria é acanhada e não tem estatura

para absorver a mão-de-obra disponível. As

poucas empresas que funcionam de forma regular

atuam nos setores de refino de açúcar, moinhos

de farinha, fabricação de rum, têxtil, cimento e

turismo.

Até por motivo de segurança, é raro ver o

gourde (moeda haitiana) em circulação nas ruas

de Porto Príncipe. O dólar é aceito em qualquer

lugar, sem questionamentos ou cerimônia, e soa

como música nos ouvidos da criançada.

O salário-mínimo haitiano está avaliado em

R$ 250 por mês.

A guerra civil e a consequente presença de

tropas de vários países não são de todo ruim para

uma parcela de haitianos e, de uma forma ou de

outra, movimenta a frágil economia.

Somente a Organização das Nações Unidas

(ONU) emprega mil intérpretes, com salário de

marajá para os padrões haitianos: R$ 1,8 mil por

mês.

Cada tropa tem autonomia para contratar

Cristóvão Colombo descobriu ilha

Instabilidade política é lugar

Professor trabalha com militares

Cristóvão Colombo

descobriu a Ilha

Espanhola (que

mais tarde seria

dividida e

rebatizada como Haiti e

República Dominicana) em

1492. A chegada dos

exploradores dizimou a

população nativa, escravizada

ou morta, até o final do

século 16.

O domínio espanhol

durou até 1697, quando a

influência francesa se fez

presente. A Ilha Espanhola

foi a mais próspera colônia da

França na América no século

18, com grande exportação de

açúcar, cacau e café.

Em 1794, no entanto, os

escravos se rebelaram e a

servidão terminou abolida. O

ex-escravo Toussaint

Louverture tornou-se

governador-geral em 1801.

Dois anos depois foi deposto

e morto pelos franceses.

O líder Jacques Dessalines

organizou o exército e

derrotou a França em 1803.

No ano seguinte, foi

declarada a independência e

Dessalines se proclamou

imperador.

Após período de

instabilidade, a ilha foi

dividida em duas partes. A

região oriental virou a atual

República Dominicana.

Dessalines e Louverture são

heróis nacionais do Haiti.

O parlamentarismo é o sistema de

governo que vigora no Haiti, com

presidente eleito democraticamente e

primeiro-ministro. A Câmara de

Deputados tem 99 integrantes e o

Senado, 30. O modelo é similar ao

adotado na França. A constituição foi

introduzida em 1987.

O presidente René Preval foi

escolhido em eleições diretas realizadas

em 2006 e assumiu o comando em 7 de

fevereiro. No ano que vem, estão

agendadas eleições presidenciais.

Jean Max Belleriveellerive, que era

ministro de Planejamento e

Cooperação Externa, assumiu

recentemente o posto de

primeiro-ministro. Substituiu Michele

Pierre-Louis. Ela ficou no cargo um

ano e foi afastada pelo Senado.

Os parlamentares criticavam o

desempenho de Pierre-Louis na

retomada econômica. A troca

repentina de primeiro-ministro e até

mesmo presidente não é novidade. O

Haiti tem histórico de ser uma nação

conturbada no campo da política.

No período entre a metade do

século 19 e o começo do 20 nada menos

que 20 governantes se revezaram no

poder. Dezesseis deles foram depostos

ou assassinados.

Distúrbios

Os distúrbios atuais ocorreram

depois de ditaduras, governos

despóticos e conspirações a partir da

década de 60 até meados dos anos 80.

Em 1991, o padre esquerdista e

presidente Jean-Bertrand Aristide foi

deposto em um golpe de Estado.

Exilou-se nos Estados Unidos e

retornou em 1993, com a economia

destroçada. Nesse mesmo ano, grupos

paramilitares impediram o

desembarque de soldados

nortes-americanos em missão de paz da

Organização das Nações Unidas

(ONU).

Entre 1994 e 2000, o Haiti registrou

avanços com duas eleições

democráticas, mas p

mergulhado em cris

Aristide foi eleito pr

novamente em eleiç

suspeita de fraude.

O diálogo do gov

oposição ficou preju

conflitos armados ec

Salário-mínimo é equivalente a R$ 250, moeda norte-americana é bem aceita e escambo é prátic

Belony Azor é exemplo de

haitiano que lucra com a

intervenção da ONU. É

coordenador dos

funcionários haitianos na

General Bacellar. Antes da crise em

que o país mergulhou, estudava direito

e ganhava a vida como professor de

inglês, espanhol e filosofia. Por razões

financeiras, abandonou o curso e

procurou emprego com os militares.

Como é articulado, inteligente e

aprendeu a língua portuguesa com

facilidade, foi alçado a supervisor em

15 dias. Na esteira da promoção

relâmpago veio um reajuste nos

vencimentos. Azor ganha R$ 500 de

salário e mostra que faz parte de um

grupo seleto. Na entrevista, usava tênis

Adidas, óculos de sol e relógio bacana.

“Eu me sinto mais brasileiro que

haitiano. O Brasil é um país de que

nós gostamos muito.” Ele fala

arrastado, mas não erra as palavras,

não esconde que é fã do nosso futebol

e sonha morar em solo tupiniquim.

Vista de feira de alimentos em Porto Príncipe, capital do Haiti: em vez de dinheiro, negócios são feitos com base na troca de mercadorias Mulher vende quadros em rua de Porto Príncipe, capital do Haiti: falta de

O coordenador Belony Azor fala português e sonha morar no Brasil

Vista do mar doCaribe a partirde PortoPríncipe: ilhapassou dodomínioespanhol para ocontrole dosfranceses; em1794, revoltacolocou fim àescravidão

Desemprego paralis

Page 5: As Feridas do Haiti

haitianos para os mais variados serviços nas

dependências militares. A maior base brasileira, a

General Bacellar, emprega 82 nativos do Haiti.

Eles fazem serviços gerais e limpeza de

banheiros, salas e alojamentos - 67 deles são

assalariados e recebem entre R$ 170 e R$ 300 por

mês. Quinze trabalham em troca de cestas

básicas.

EscamboO escambo ainda é hoje a maneira mais

comum de negociação no Haiti. Troca-se tudo o

que se possa imaginar. É chegar, conversar e

levar. Um ditado local diz que nada tem valor

definido, tudo é negociável.

A frente da casa é transformada em ponto

comercial. O haitiano, aliás, tem o costume de

fazer as suas atividades particulares na própria

rua. Praticamente não existe calçada disponível

para o pedestre.

É possível trocar roupas, frutas, legumes,

grãos, artesanato, sapatos, quadros, remédios e

móveis. Sem contar os alimentos, os objetos

vendidos são usados e lembram mais

quinquilharias.

Há barracas exclusivas para a venda de

comida, sobretudo linguiça e salsicha grelhada.

Com um pouco de paciência, é possível encontrar

arroz e feijão, doces, raspadinhas e carne assada.

Não há qualquer cuidado no manuseio dos

alimentos. Há barracas montadas ao lado de

esgoto e lixo orgânico. Poucos comerciantes se

preocupam em proteger os produtos dos

mosquitos.

Com a economia baseada em moedas, o

escambo é pouco utilizado em outros países e

sobrevive ainda apenas em regiões pouco

desenvolvidas, como é o caso do Haiti.

r-comum na história do país

Religião é a católica, masvodu tem simpatia popular

permaneceu

ses. Em 2000,

residente

ção manchada com

verno com a

udicado e, em 2003,

clodiram na cidade

de Gonaives e se espalharam pelo país.

Aristide deixou o Haiti em fevereiro de

2004 e se exilou na África do Sul.

O presidente da Suprema Corte,

Bonifácio Alexandre, ascendeu ao

poder e requisitou a assistência da

Organização das Nações Unidas

(ONU). A missão das Nações Unidas

para a Estabilização no Haiti

(Minustah) foi iniciada em 1º de junho

e perdura até hoje.

Para o Conselho de Segurança da

Organização das Nações Unidas

(ONU), a desordem no país caribenho

ameaçava a paz internacional e a

segurança na região.

a rotineira; missão de paz brasileira emprega haitianos e paga alguns trabalhos com cesta básica

Ohaitiano, antes de tudo, é um

povo religioso. Nesse quesito, o

Haiti é parecido com o Brasil. Os

católicos apostólicos romanos

representam 64% da população.

O Estado não é laico. O catolicismo é a

religião oficial.

O protestantismo também fincou raízes

sólidas na cultura local. É seguido por 23,6%

dos moradores. Em um passado recente, as

primeiras igrejas evangélicas começaram a

aparecer nas mais remotas regiões do país.

Há ainda a presença de espíritas.

Quase toda a população, no entanto,

pratica o vodu, uma crença que combina

elementos do catolicismo e religiões tribais

da África. Sem visualizar qualquer conflito

ou choque com a fé cristã.

O vodu, inclusive, é associado em todo o

mundo ao Haiti. Isso porque o ditador

Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, se

notabilizou ao usar os rituais da crença para

amedrontar os detratores, inimigos e

vítimas.

O cinema de terror não perdeu a chance

de mostrar a religião como uma evocação a

demônios em ritos cujo feiticeiro crava

agulhas em um boneco para que, assim, a

vítima sofra dores terríveis, doenças

incuráveis ou ataques cardíacos.

No vodu, um deus principal, o Bon

Dieux, é venerado com os antepassados.

Na religião católica, a padroeira do Haiti

é Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A

santa é protetora dos aflitos.

A produção agrícola no Haiti se baseia nas culturas de cana-de-açúcar, café e arroz: alimentos são comercializados nas ruas de Porto Príncipe

Vista do Palácio Oficialdo governo do Haiti:golpes e assassinatosde presidentes sãolugar-comum nahistória do país, quetem forma de governoque misturapresidencialismo eparlamentarismo;presidente do SupremaCorte, BonifácioAlexandre, assumiu em2004 lugar deJean-Bertrand Aristide,e pediu a intervençãoda ONU para pacificara nação, à beira de umaguerra civil

Igreja ao fundo da Praça Saint Pierre, no bairro Petion Valle, em Porto Príncipe: maioria do povo é católica

emprego empurra população para o mercado informal

Religião inclui catolicismo, protestantismo e vodu

sa 70% da população

Page 6: As Feridas do Haiti

Como ninguém é multado,

as maiores atrocidades automobilísticas são cometidas no dia a dia.

Ultrapassagem pela direita é a coisa mais usual. Quem reclama da

manobra ou tranca a passagem é xingado com rapidez

O haitiano decora o ‘tap tap’ com todas as cores possíveis.

E até pinta na lataria a imagem de jogadores brasileiros,

como Ronaldo e Kaká, e

do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama

Omotorista do

veículo que tem a

buzina mais

potente tem a

preferência no

caótico trânsito do Haiti.

Praticamente não existe

sinalização, e os semáforos estão

restritos a menos de dez nas

avenidas principais da capital,

Porto Príncipe. Para complicar

ainda mais, as ruas são

esburacadas, e o pedestre

caminha por qualquer lugar. As

calçadas são insuficientes ou

usadas por comerciantes.

O tráfego não tem

organização e, até por esse

motivo, é lento a maior parte do

tempo em Porto Príncipe. As

mortes causadas pelo trânsito

na capital, portanto, são raras.

Já nas estradas os acidentes

fatais são comuns. O haitiano

tem fama de exagerar na

velocidade.

Como ninguém é multado,

as maiores atrocidades

automobilísticas são cometidas

no dia a dia. Ultrapassagem

pela direita é a coisa mais usual.

Quem reclama da manobra ou

tranca a passagem é xingado

com rapidez. Para-se em

qualquer lugar para embarque e

desembarque.

O capitão de fragata da

Marinha, Ítalo Rocha, não se

acostumou com a frota do

Haiti. “Tem carro caindo aos

pedaços, sem condição

nenhuma de rodar.” O

motorista de veículo oficial da

missão tem que redobrar a

atenção para não se envolver em

acidente. “Independentemente

da gravidade, eles querem

cobrar 20 mil dólares de

prejuízo.”

O haitiano tem o costume

de abandonar o veículo onde ele

apresentar defeito, mesmo que

se encontre em cruzamento,

avenida movimentada ou ponto

que coloque em risco o outro

motorista.

Outro problema grave é a

qualidade da frota. Não há

meio-termo: os carros são zero

quilômetro ou extremamente

velhos. Se falta dinheiro para

comprar comida e água,

imaginem-se as condições em

que o possante é mantido. Há

verdadeiras carroças de lata em

funcionamento.

Mecânicos

Os militares brincam que o

Haiti tem os melhores

mecânicos do mundo.

A caminhonetes dominam o

trânsito, sobretudo de marcas

asiáticas como Toyota, Honda,

Suzuki e Kia. A escolha não é

feita apenas pela falta de

qualidade das ruas. Os veículos

são transformados em meios de

transporte. Colocam-se

cobertura e banco de madeira

na carroceria e pronto: já pode

levar passageiros.

As primeiras linhas

regulares de ônibus estão sendo

implantadas. O transporte

coletivo se completa com

mototaxistas, que não ligam de

levar passageiros sem capacete.

Os “tap taps”, como são

chamados os veículos de

transporte, lembram os

paus-de-arara que rodam no

nordeste do Brasil. O tap tap

não tem itinerário certo. Nem

horário para sair ou chegar. Não

existe garantia de segurança. O

cobrador posiciona mais de 20

pessoas em um único carro.

O haitiano decora o tap tap

com todas as cores possíveis. E

até pinta na lataria a imagem de

jogadores brasileiros, como

Ronaldo e Kaká, e do

presidente dos Estados Unidos,

Barack Obama. Há concursos

para escolher os carros mais

bonitos. Os que têm som mais

potente ganham a preferência

dos passageiros.

Transporte coletivo é feito pelos ‘tap taps’, veículos coloridos e com buzina de alta potência sonora

As habitaçõestípicas damaioria dosmoradores doHaiti sãoconstruídascom placas dezinco: o calorobriga asfamílias adormir do ladode fora doscasebres, namais completaescuridão

Trânsito é lento e caótico

Ricos habitam os morros

‘Tap taps’ coloridos sãoos meios de transporte

coletivo no Haiti:passageiros se

acomodam comopodem e preferem osque possuem música

mais alta

Para evitar acobrança de

imposto,moradores

preferem nãopintar

suas casas:roupas são

postas parasecar em

varaisinstalados nas

ruas dosbairros

Maioria das casas não tem energia elétrica e moradores dormem na rua As habitações de classe média ficam nas partes altas de Porto Príncipe

A divisão social no Haiti é

diferente da brasileira. No país

caribenho, quem mora no alto

do morro tem dinheiro, status

e anda em carros importados e

de última geração. O pobre

reside na parte baixa da

cidade, em casas simples de

tijolo e barracos de madeira ou

de telhas de zinco.

Poucas casas recebem

pintura no Haiti. Para quem

está de passagem, não há outra

impressão que não seja a falta

de zelo. Mas se trata, na

verdade, do jeitinho haitiano

de enrolar o fisco.

O governo considera a

construção concluída quando

a tinta é passada nas paredes.

Quando isso ocorre, o dono do

imóvel começa a pagar

imposto – similar ao nosso

Imposto Predial e Territorial

Urbano (IPTU).

Devido ao calor, as pessoas

que residem nas moradias

mais simples optam por

dormir na rua, apesar do breu.

Não existe iluminação pública.

A classe média dispõe de

geradores. A maioria dos

casebres, porém, não tem piso

no chão, móveis e banheiro.

Às vezes, são cobertos com

plástico.

O Diário teve acesso a um

barraco de zinco com dois

cômodos. Menos de 30 metros

quadrados. O quarto para a

família de sete pessoas tinha

apenas três pequenas camas.

Todo o resto é feito no outro

espaço. Nenhum móvel.

Apenas um fogão de lenha e

sujeira acumulada.

Conforto

No bairro Pattion Ville, a

realidade é bem diferente. A

elite mora em casas

confortáveis, com energia

elétrica à disposição e toda a

estrutura necessária para viver

bem. Pattion Ville lembra até

um bairro de classe média alta

de Rio Preto.

As ruas são mais limpas, há

praças em ordem e prédios em

perfeitas condições. As

crianças até parecem mais

felizes. A localidade abriga a

Embaixada do Brasil e tem

comércio forte e variado, com

direito a restaurantes de

cozinha contemporânea e lojas

de grife.

Page 7: As Feridas do Haiti

Aids atinge 10% do povo

Afalta de saneamento

básico e o acúmulo

de lixo também

influenciam na

saúde do haitiano.

O esgoto corre livremente em

pequenas canaletas sem

proteção e principalmente no

meio das ruas. O cheiro é

forte, mas parece não

incomodar nem mesmo as

pessoas que compram e

comem comida na rua.

Em razão da necessidade, a

população menos favorecida

usa a água suja e contaminada

para tomar banho, cozinhar e

até mesmo beber. É comum

ver haitiano se lavando com

canequinha no meio da rua.

Não costumam, no entanto,

permanecer muito tempo sem

camisa. Dizem que só escravo

fica pelado, e eles não estão

mais nessa situação.

O esgoto geralmente se

mistura ao lixo e à fezes. A

maioria dos casebres não conta

com banheiro privado. As

pessoas fazem as suas

necessidades fisiológicas em

baldes e jogam os dejetos em

qualquer lugar, até mesmo em

frente de casa, no quintal e

terrenos baldios. Não há noção

mínima de higiene pessoal.

Existem banheiros

públicos em determinados

pontos da cidade. Contam

apenas com privada. Não há

chuveiro, torneira ou qualquer

artigo de “luxo”. Mas eles

praticamente não são usados

pela população. É necessário

pagar uma quantia, ainda que

simbólica, para entrar e usar.

A coleta de lixo começou a

ser feita recentemente e ainda

não é suficiente para atender

toda a demanda. Por isso, há

montes de sujeira acumulados

por praticamente toda a

capital. No começo da missão

de paz, a companhia de

engenharia tinha de usar o

trator com a finalidade de

deixar a passagem livre para as

viaturas.

Falta de assistência médica atinge 80% dos haitianos, e expectativa de vida da população é de 53 anos

Asaúde precária é um

dos elos da corrente

de miséria em que

está preso o Haiti. A

maioria da

população, 80%, não tem acesso

a atendimento médico de

qualidade, informação sobre

prevenção de doenças, acesso a

saneamento básico e noções

mínimas de higiene. A

influência desses fatores resulta

na expectativa de vida do

haitiano. Na média, 53 anos.

A Aids tem presença

marcante no país. O exército

brasileiro estima que 10% da

população - ou seja, 850 mil

pessoas- seja soropositiva. Não é

só o HIV, porém, que preocupa

as autoridades internacionais.

O haitiano morre em razão

de malária e diarréia e sofre, de

forma ocasional, de febre, dor

de cabeça e problemas na pele.

Enquanto Rio Preto tem um

médico para cada 200 pessoas,

no Haiti a média é de um para

cada dez mil.

Parte dos profissionais de

saúde deixou o país durante os

distúrbios e foi trabalhar em

países vizinhos, Estados

Unidos, França e Canadá. Por

outro lado, curandeiros e

parteiras são requisitados.

A população não tem acesso

a remédios. As poucas farmácias

que funcionam em Porto

Príncipe servem geralmente à

elite. Pequenos ambulantes

comercializam comprimidos e

outros tipos de medicamento de

forma improvisada.

Eliane Luísa, 44 anos, é mãe

de 11 filhos e viúva. O marido

morreu em uma enchente. Ela é

vítima do falho sistema de saúde

haitiano.

Luísa contou que quebrou

um dos braços e não recebeu

atendimento qualificado. Por

isso, o braço ficou frouxo e ela

não consegue trabalhar em

nenhuma função que exija força

e agilidade.

Portanto, não tem como

ganhar dinheiro para sustentar a

família. “Hoje, não tenho nada

para comer. De vez em quando,

consigo água limpa para beber.”

Ela enfrentou o forte calor

de uma manhã para buscar a

doação de alimentos em ação

desenvolvida pelos Fuzileiros

Navais do Brasil, em Porto

Príncipe. Como não recebeu

senha no dia anterior, estava na

fila na esperança de ser chamada

de última hora.

Não foi chamada e não

escondeu a decepção de voltar

para casa sem nada para

alimentar a família. Os olhas

não pararam de mirar o chão.

Felicidade?

Questionada se é feliz apesar

de todas as dificuldades,

respondeu sem rodeios: “Não

sou de jeito nenhum. Estou

doente, sem imaginar uma

solução, e espero ajuda dos

outros para sobreviver.” Após

perder o alimento, saiu

perambulando pelas estreitas

ruas da capital.

As bases brasileiras contam

com pequenos centros médicos

para atendimento exclusivo das

demandas diárias da tropa.

Eventualmente, no entanto, as

portas são abertas para os

haitianos.

Isso ocorre em situações

emergenciais, com pessoas

feridas em brigas, discussões e

desentendimentos, mulheres em

trabalho de parto e ataques

cardíacos ou de qualquer

natureza.

Alexandre Santa Rosa é

comandante da base Forte

Nacional, instalada no bairro

Bel Air - um dos mais violentos

e problemáticos do país. Não é

raro, afirma, receber pedidos de

socorro, a qualquer hora do dia,

de pessoas feridas por faca ou

pedra.

O médico brasileiro

encarregado de atender os

haitianos foi apelidado

carinhosamente pelos colegas de

“costurador de cabeças”, a parte

do corpo mais afetada em

confrontos cotidianos.

Os militares oferecem o

primeiro atendimento médico e,

se for o caso, encaminham a

vítima para a unidade médica

mais próxima. Mas nem sempre,

como salienta Rosa, há vagas

disponíveis.

Cuba tem um acordo de

cooperação com o Haiti e auxilia

na formação de novos

profissionais. Além de hospitais

públicos, o Haiti conta com

apoio da organização Médicos

Sem Fronteiras.

Aliteratura médica

define que a

desnutrição pode

ser causada por

falta ou excesso de

alimentação. Nem é preciso

recorrer à ciência para

descobrir que a primeira

opção é a principal causadora

do problema no Haiti.

A desnutrição atinge 23%

das crianças no país. Nos dois

casos, não existe equilíbrio

entre o que é ingerido e o que

o corpo necessita.

Porto Príncipe é repleta de

crianças. Elas estão por toda a

parte em busca de comida,

água ou dinheiro. Pedem

ajuda a todo instante.

Quase 100% das crianças

são raquíticas. Durante os

cinco dias no país, a

reportagem não conheceu

nenhum jovem obeso.

Nutrição

Na favela Cidade do Sol, a

maior do país, religiosas

brasileiras desenvolvem

trabalho no Centro de

Nutrição e Saúde irmã Rosalie

Rendu. O espaço é mantido

pela congregação católica

Filhas da Caridade de São

Vicente de Paulo.

As mães haitianas recebem

atendimento médico e são

orientadas sobre nutrição e

cuidados básicos de higiene.

Juventude sofrede desnutrição

Moradores de Porto Príncipe vasculham lixão, emmeio a porcos, à procura de comida: malária ediarréia são principais causas de morte no Haiti

Garoto improvisa brinquedo: desnutrição é alta entre os mais jovens

A falta desaneamentobásico éresponsável pordoenças que sedisseminam entrea população: oesgoto édescartadodiretamente emcursos d’água ouatirado nas ruascom a maiornaturalidade

População usa água suja para beber

Page 8: As Feridas do Haiti

Crianças haitianas comem

um biscoito feito com

barro, água e manteiga. A

iguaria, batizada como

“Té”, é o símbolo máximo

da miséria no Haiti e não alimenta,

serve apenas para enganar a fome.

Nos lugares mais carentes, o

biscoito é produzido sem manteiga.

Raramente leva sal, artigo de luxo

para os padrões locais.

Desesperadas pela falta de

alimento para as famílias, as mulheres

coletam uma espécie de argila em

canteiros de obras ou terrenos baldios

e produzem os biscoitos sem qualquer

preocupação com higiene. Não só para

consumo da prole, mas para ganhar

uns trocados.

Os ingredientes são manuseados

em latas velhas, enferrujadas e sujas

no próprio chão. Pequenos pedaços de

Té são separados e colocados para

secar no sol, em cima de sacos

plásticos ou madeira. São encontrados

em toda a capital.

Nádia Guerrier, 35 anos, fabrica os

biscoitos de barro em frente de casa,

em Cidade do Sol.

A favela é a mais temida da cidade

e abriga 350 mil moradores. A maioria

não tem trabalho, energia elétrica,

água encanada e banheiro privado.

O Diário chegou no momento em

que Nádia se encontrava concentrada

na produção do ‘alimento’. Os baldes

estavam lotados, até vazando.

Ela trabalhava em frente de casa,

sem usar luvas ou qualquer proteção.

No mesmo local, havia esgoto e

acúmulo de lixo orgânico.

No começo, ela ficou desconfiada e

não quis papo. Mas, com calma,

começou a relatar que faz a iguaria

com finalidade

comercial.

Ela é mãe de

seis filhos, todos

pequenos. O

marido está

doente e os

biscoitos,

segundo ela,

são a única

fonte de

renda da família. Cada um é vendido a

R$ 0,05.

Nádia afirma que não dá o biscoito

para as suas crianças, mas conta que

elas aproveitam quando estão

sozinhas e desrespeitam a ordem

materna. Nem todo dia há comida à

disposição. “Não tenho o que fazer e

não posso brigar com eles. Afinal,

comem isso porque estão com muita

fome.”

Ela mora em um casebre de zinco

com dois cômodos, coberto com

plástico. O chão é de terra e não

existem móveis. Há apenas três

colchões para toda a família. O bem

mais valioso: três fotos amareladas

da família.

“A miséria me obriga a morar

aqui. Não consigo terminar a

construção da minha casa.”

Enquanto Nádia narrava o seu

drama, um menino da vizinhança

chegou, pegou um biscoito de barro e,

sem pestanejar, mastigou tudo com a

maior tranquilidade.

Classe média

Ele não fez careta nem apresentou

indícios de que iria passar mal. O

biscoito era engolido como se fosse

chocolate.

A classe média haitiana tem

condição de comprar comida

regularmente e ignora os biscoitos de

barro.

Não faltam na mesa banana, arroz,

feijão, legumes e verduras. Eles

gostam também de comer linguiça e

salsicha grelhada. A carne e o

embutido são comercializados em

barracas de toda Porto Príncipe.

Barro engana a fomeBiscoito de argila misturada com água e manteiga serve para encher a barriga vazia das crianças

ACozinha do Inferno está instalada

no Haiti. Não, leitor, não se trata

de trocadilho infame.

No bairro La Salines, existe

um complexo de galpões onde

centenas de pessoas comercializam frutas,

verduras, carnes, animais vivos e até comida

pronta para ser consumida. O seu nome?

Cozinha do Inferno.

Sobra improviso no Mercadão local,

assim como em todo o Haiti.

Não há cuidados mínimos com a higiene

pessoal, muito menos com as mercadorias.

Para quem é de fora, é um exercício

complexo distinguir a comida do lixo.

O cheiro é forte, fétido e causa náuseas

na cozinha, cuja origem do nome é um

mistério.

São vários galpões instalados lado a lado,

com telhado de zinco. O clima é abafado e

sufocante. A comitiva que visitou o local não

aguentou e foi embora em menos de dez

minutos.

Há verdadeiras pilhas de lixo nas

calçadas e no meio da passagem. São

devidamente “supervisionadas” por porcos

avantajados e sedentos, além de cabras.

Tudo acompanhado de esgoto, moscas e

insetos.

Os comerciantes mais estruturados

dispõem de pequenas bancadas para

posicionar os produtos e, assim, chamar a

atenção da clientela. São exceção.

A massa de vendedores, no entanto,

deixa as mercadorias sobre plásticos ou sem

proteção. As comidas são encontradas

primeiro pelos pés. Depois, pelas mãos.

Há mais comerciantes do que espaço, e a

passagem fica restrita. Dezenas de pessoas

andam de um lado para outro em busca das

coisas que desejam e pechincham bastante.

Cachorro

A barganha faz parte do dia a dia

haitiano.

Ninguém diz de forma aberta, mas na

Cozinha do Inferno há comerciantes que

vendem ilegalmente carne de cachorro.

A tática para enrolar o cliente é misturar

as partes caninas às de outros animais. Para

não levantar suspeitas, as cabeças dos cães

são retiradas e escondidas.

Apesar da insistência, nenhum

comerciante fala no assunto.

Crianças dividem comida: fome é regra, e falta de higiene também Haitiana prepara biscoito de barro e água para vender a R$ 0,05

Mulheres fabricam linguiça em local sem as mínimas condições de higieneMulheres durante compras na Cozinha do Inferno: alimentos ficam no chão

Cozinha do Inferno

Page 9: As Feridas do Haiti

A solidão dos ‘restaveks’Faltam lazer, esporteecomida às crianças

Unicef estima que existam no Haiti 300 mil crianças em escravidão doméstica e sexual

As crianças haitianas que

não são forçadas ao

trabalho doméstico não

encontram muitas

oportunidades de lazer,

educação e cultura no dia a dia.

Elas nem sabem brincar direito,

mas reconhecem a patente de um

militar com rapidez e precisão.

O pequeno Autiene Louise, 12

anos, não tem o que fazer a maior

parte do tempo. Ele fica vagando

por Porto Príncipe sem roteiro

definido. Quando encontrou a

reportagem, pediu um gole de

água. Disse que estava com mais

sede que fome. Vestia um short e

um terninho que ganhou de um

desconhecido.

Sempre que seus olhos

alcançam um militar, sobretudo

brasileiro, se aproxima na

esperança de ganhar água ou

comida.

Mora com o pai e a mãe e até

arrisca palavras em português. A

primeira frase que empurra da

boca não condiz com a sua idade.

“Eu não sei até quando vou

viver.” E completa. “Mas quero

ser jogador de futebol.”

Topou ser fotografado, sorriu e

fez até pose. Na hora de ir embora,

arriscou um “obrigado” em

português.

Os amigos Júnior, 15 anos, e

Philip e Dário, ambos de 16 anos,

não forneceram os sobrenomes e

falaram de forma unânime que

não se cansam de procurar carros

para lavar. “É a nossa diversão”,

diz Philip, por meio do intérprete.

Futebol

O trio estava parado em uma

praça movimentada de Porto

Príncipe à espera de possíveis

clientes. O movimento no dia

estava fraco e não tinham apurado

nem um gourde. Ganham R$ 1,50

por serviço.

Júnior, o caçula da turma, não

havia comido nada até por volta

das 15h e não escondia a vontade

de mastigar alguma coisa. Ele

pediu dinheiro para comprar

comida, mas logo desistiu ao saber

que se tratava de repórteres.

“Jornalista nunca tem dinheiro.”

A conversa só muda de figura

quando o assunto é futebol.

“Gosto do Kaká e do Ronaldinho

Gaúcho,” cita Júnior. A criancice

volta com rapidez e eles chutam as

garrafas que encontram pela

frente. E somem na multidão.

OHaiti se orgulha de ostentar o título de

primeira nação governada por negros no

mundo, mas não se envergonha de

manter até hoje crianças em estado de

escravidão. Os restaveks são crianças

forçadas ao trabalho doméstico e à exploração

sexual. O relatório Infância em Perigo: Haiti,

divulgado pelo Unicef em 2006, estima que 300 mil

crianças sejam exploradas dessa forma no Haiti.

O termo restavek é originário do francês e quer

dizer “ficar com”. Na prática, essas crianças são

doadas pelos pais a famílias que residem na área

urbana. São aceitas com a promessa de acesso à

educação, estrutura doméstica e infância normal.

Isso, no entanto, não acontece.

Terminam transformadas em serviçais e não

recebem roupas, conhecimento e carinho. Comem o

que sobra. Na cultura local, existe uma ordem

social clara: primeiro o homem se alimenta,

seguido da mulher, geralmente responsável por

colocar comida em casa, e dos filhos legítimos.

O restavek é proveniente de família pobre,

numerosa e da zona rural. É levado para os

centros urbanos porque os familiares acreditam

que, em lugar dotado de maior estrutura e

possibilidades, poderá estudar, se desenvolver e

aprender um ofício.

A saga como restavek começa com menos de dez

anos. No seio da nova família, não recebe amor nem

afeto. Muitos não ganham sequer roupas. Andam

pelados. A rotina de trabalho é pesada e inclui

cozinhar, arrumar a casa e limpar, além das outras

tarefas domésticas rotineiras.

“Nem as esperanças das crianças nem as dos

pais são efetivadas. A realidade é que elas tornam-se

escravas das famílias anfitriãs. São sobrecarregadas

de obrigações domésticas e expostas a condições

psicológicas degradantes, como, por exemplo, no

caso das meninas, a exploração sexual.”

A informação é da estudante de direito Raísa

Maria Londero. Ela participou de uma pesquisa

chamada Brasil-Haiti: Um novo olhar sobre um

novo Haiti, pela faculdade Fadisma, do Rio Grande

do Sul. Durante 14 dias ela percorreu as cidades de

Porto Príncipe, Leon e Jeremie, todas no país

caribenho, para estudar os restaveks.

Raísa afirma que as meninas são preferidas pelas

famílias não só para o trabalho, mas em razão da

exploração sexual. “Elas se prestam ao serviço de

iniciação sexual dos filhos legítimos de seus donos.

Quanto mais nova, melhor, devido ao risco

pequeno de Aids.”

As meninas são chamadas de “la pou as”, que

significa “lá para aquilo”.

Raísa constatou que as crianças são

estigmatizadas pela sociedade. “Os rótulos que

recebem são registros do forte preconceito que

ainda impera entre os próprios haitianos.”

Os restaveks são dispensados quando não dão

conta do serviço doméstico ou não são mais

objetos sexuais. Como não ascenderam

socialmente, não são aceitos pelas famílias de

origem e vão morar na rua.

Na opinião da pesquisadora, é necessário que o

governo haitiano encontre formas de acabar com

esse sistema que esconde a exploração infantil com

o argumento de ser uma prática tradicional e

costumeira oriunda dos povos africanos.

Rejeitado pelos pais, menino nuRejeitado pelos pais, menino nudorme em rua de Porto Príncipe;dorme em rua de Porto Príncipe;ficar pelado é comum entre osficar pelado é comum entre osrestaveks, que não ganhamrestaveks, que não ganhamsequer roupas das famílias quesequer roupas das famílias queos adotam; maioria vira escravaos adotam; maioria vira escravadoméstica ou sexualdoméstica ou sexual

Crianças da Favela Cidade do Sol posam para fotografia: local quase não oferece atividades de lazer, esporte e cultura

Apesar da pouca idade e do sorriso no rosto, Autiene Louise, 12 anos, diz que não sabe por quanto tempo vai viver

Page 10: As Feridas do Haiti

Mulheragora

recebeatenção

Patrulha noturna é tensa e exige cuidado da tropa

Vítimas de agressões e estupro recorrem à delegacia inaugurada há 2 meses, em prédio feito pela ONU

Os direitos da

mulher começam a

ser reconhecidos

no Haiti. A

primeira delegacia

feminina do país foi

inaugurada há dois meses na

capital, Porto Príncipe. O

departamento funciona dentro

de um forte que serve como

base brasileira, no bairro Bel

Air. A informação sobre o

novo serviço se espalha com

rapidez entre a população, e os

atendimentos chegam a 20 por

dia.

Antes da construção da

delegacia feminina, as

mulheres eram atendidas em

departamentos policiais

comuns e não recebiam a

devida atenção para as suas

demandas, necessidades e

problemas.

Muitos casos de agressão

nem chegavam a ser

investigados e terminavam

esquecidos no meio da

papelada. Agora, a promessa é

que será diferente. Toda

denúncia que chega ao

conhecimento da polícia é

devidamente registrada e

investigada.

A delegacia é coordenada

por Myriam Natacha Joseph,

36 anos. Ela afirma que os

casos policiais mais comuns

envolvendo a mulher no Haiti

são estupro e agressão física.

As mulheres não sabem

direito como funciona o novo

órgão e chegam a procurar o

departamento sangrando, com

feridas expostas. Antes de

qualquer coisa, são

encaminhadas para

atendimento médico no

hospital.

“Estamos começando a

mudar a nossa realidade. A

mulher agora tem um lugar

adequado para se queixar

quando for vítima de

violência. Ninguém tem o

direito de bater em uma

pessoa, muito menos em uma

mulher,” declara a

coordenadora.

Myriam diz que, até pela

cultura, as vítimas têm medo

de denunciar os parceiros e

ficam sofrendo em casa todo

tipo de humilhação.

O trabalho da delegacia

feminina do Haiti não é muito

diferente do que é feito no

Brasil.

Em caso de agressão, a

queixa é registrada

oficialmente, e um policial é

encaminhado até a casa da

vítima para ouvir a outra

parte. O objetivo é reunir

informações completas sobre o

que aconteceu.

Dependendo da gravidade

do caso, o agressor pode ser

preso imediatamente. Se ele se

esconder, fugir ou não atender

o policial, o Tribunal de

Justiça é comunicado e um

mandado de prisão, expedido.

Além de casos de violência,

as haitianas procuram a

delegacia para reclamar de

homens que se recusam a

ajudar na criação dos filhos,

ou seja, não oferecem dinheiro

para custear a alimentação.

Outra reclamação comum é o

não pagamento de salário.

“Ter essa delegacia é um

fato positivo. Espero que

melhore a qualidade de vida

da mulher do nosso país. Esse

é o objetivo,” diz a

coordenadora.

O prédio da delegacia foi

construído pela Organização

das Nações Unidas (ONU) e

está em fase de estruturação.

O departamento conta com

duas coordenadoras (que

fazem as vezes de delegadas),

12 policiais e quatro

investigadores. Mas ainda não

tem um número de telefone

para receber as denúncias.

Os cinco anos da

missão de paz no

Haiti deixaram um

saldo de 43

militares mortos

em confrontos armados,

acidentes de trânsito e aéreos e

operações. A maior baixa

ocorreu na primeira semana

de outubro de 2009. Um avião

de vigilância caiu em uma área

montanhosa e matou seis

uruguaios e cinco jordanianos.

A Organização das Nações

Unidas (ONU) não divulgou o

número de vítimas civis.

Na lista de militares que

morreram no Haiti, há três

brasileiros. Em fevereiro deste

ano, um acidente de trânsito

matou o sargento Idevani da

Silva, 41 anos. O soldado

Rodrigo da Rocha morreu

eletrocutado em agosto de

2007. Ele pisou em um fio de

alta tensão. A outra vítima é o

general Urano Teixeira da

Matta Bacellar, 59 anos, que

teria se suicidado em 2006.

O componente militar da

missão de paz da ONU é

comandado pelo general

brasileiro Floriano Peixoto

Vieira Neto. O oficial ocupa o

cargo desde abril de 2009 e é

responsável por coordenar o

trabalho desenvolvido por 7

mil homens.

Estabilidade

Na sede da ONU em Porto

Príncipe, Vieira Neto avaliou

que o país vive atualmente

clima de estabilidade em

termos de segurança. Entre

2004 e 2007, no entanto,

ocorreram confrontos entre

militares e gangues com

ideologia política e de

marginais. Os grupos

promoveram desordem,

violência e sitiaram pontos

como a favela Cité Soleil

(Cidade do Sol).

“Tenho convicção absoluta

de que o trabalho dos

contigentes resultou em

situação de segurança. É um

trabalho excepcional de efeitos

facilmente identificáveis, ao

ponto que você vê pessoas na

rua, instituições funcionando,

comércio, governo

democraticamente instalado e

poderes constituídos.”

O general afirma que,

mesmo com o clima mais

tranquilo, a natureza da

missão permanece igual.

“Somos uma força de

estabilização. O que mudou

não foi a força, foi o país.”

Segundo o general, a tropa

hoje tem maior capacidade de

enfrentamento.

O general afirma que o

Haiti não está preparado para

caminhar sem a presença da

ONU. “Uma saída em

momento prematuro não

resultaria naquilo que se

visualizou no início.”

ODiárioacompanhou uma

patrulha noturna

do Exército pelas

ruas escuras e

sem iluminação de Porto

Príncipe. Antes de sair da

base, os civis da comitiva

foram orientados sobre o que

iria acontecer, qual era o

plano de ação e como

deveriam se comportar em

caso de tiroteio, confusão ou

ocorrência.

O tenente Bernardo

Guerra Rolla comandou a

patrulha e relatou que, por

medida de segurança, os

jornalistas ficariam dentro de

um círculo formado por

militares.

“Respeitem as ordens do

sargento. Ele vai fazer o que

for necessário para

protegê-los, até mesmo puxar

pelo pescoço e arrastar vocês

para dentro da viatura.”

Depois da palestra, os

civis foram posicionados

em quatro Urutus, carro de

guerra blindado,com uma

metralhadora no centro e

que serve para transportar

a tropa.

O veículo trafega a menos

de 50 km/h, faz um barulho

tremendo e exala forte cheiro

de combustível. Além do

motorista e do responsável

pela metralhadora, carrega

seis passageiros.

O motorista tem que

tomar cuidado redobrado

para não atropelar os

haitianos. Não existe

iluminação pública nem na

maioria das casas.

Em razão do calor, as

pessoas se deitam na rua e

dormem em frente dos

casebres feitos com telhas de

zinco, madeira ou bloco.

Devido à imponência, o

Urutu não passa

despercebido.

Durante as duas horas de

patrulhamento, os militares

não depararam com nenhum

ato hostil nem suspeitaram

de atividade ilícita. Parte do

trabalho foi feito a pé pelas

ruas da favela Cité Soleil.

Mulher prepara mistura de arroz com feijão para vender

Myriam Natacha Joseph, coordenadora da Delegacia da Mulher: ‘Ninguém tem o direito de bater em uma pessoa, muito menos em uma mulher’

Fifi, com a filha, aguarda em fila por doação de água

O general Floriano Peixoto Vieira Neto: Haiti ainda não tem condições de ficar sem a presença da ONU

Mulhereres ecriançasobservamação desoldados empatrulhanoturna:atividaderequercuidado

Missão mata 43militares, 3 do BR

Soldado brasileiro da missão depaz faz patrulha noturna nacapital, Porto Príncipe: tropatoma cuidado para não atropelarhaitianos que dormem na ruas

Page 11: As Feridas do Haiti

Estudoainda ésonhono país

Ohaitiano respira

futebol o tempo

tempo. Torce com

paixão pela seleção

brasileira e não

perde oportunidade de praticar

o esporte. A falta de bola ou de

áreas adequadas não é suficiente

para desanimar a criançada.

Não é raro ver meia dúzia de

meninos chutando uma garrafa

pet na rua e tentando fazer gol

em traves feitas com pedra. O

basquete também é querido por

influência dos

norte-americanos.

Até hoje os haitianos

lembram com carinho o jogo da

paz realizado em Porto Príncipe

em 2004 entre o Brasil e o Haiti.

Na ocasião, os craques

Ronaldo, Roberto Carlos e

Ronaldinho Gaúcho desfilaram

pelas ruas em carros blindados

do Exército e foram

acompanhados no trajeto por

milhares de pessoas. Houve

verdadeira comoção. O

presidente Lula esteve presente

no estádio.

Caratê

O país conta com uma liga

que organiza um campeonato

profissional. No momento,

não há nenhum brasileiro

atuando nas equipes locais. A

Embaixada do Brasil afirma

que sempre é consultada por

atletas do Brasil interessados

em se transferir para o Haiti.

São desaconselhados a ir.

A seleção haitiana já está

sendo preparada com o

objetivo de obter a

classificação para a Copa do

Mundo, que será disputada no

Brasil em 2014.

O próprio Exército do

Brasil apoia ações esportivas e

abre as portas das bases para a

criançada praticar esporte,

como o caratê.

Analfabetismo atinge 47% do Haiti, que tem falta de professores qualificados e de material escolar

Menino com quimono: Exército ensina o caratê

Futebol é a paixão dos haitianos

Oanalfabetismo

atinge mais de 4,5

milhões de pessoas

no Haiti. Significa

que 47% da

população não sabe ler nem

escrever. O falho sistema

público educacional haitiano

cria um abismo entre as

pessoas. A maioria das escolas,

que no Brasil equivalem aos

níveis fundamental e médio,

cobra uma taxa anual do aluno.

É ensino público com espírito

de instituição privada.

Além de abandonar os

pobres, há falta de professores

qualificados e de material

escolar. As comunidades que

moram em áreas rurais têm

pouco ou nenhum acesso ao

sistema de ensino. A maioria

das escolas do Haiti é

administrada por igrejas e

Organizações

Não-Governamentais (ONGs).

Além do déficit de conteúdo, o

aluno convive com a falta de

infraestrutura. Em novembro

de 2008, o prédio de três

andares que abrigava uma

escola desabou e matou 75

alunos e deixou cerca de 150

feridos. A capital, Porto

Príncipe, é sede de pelo menos

cinco universidades, que

formam principalmente

médicos, advogados e

administradores de empresa.

“Infelizmente, falta

educação para o nosso povo. E

emprego também. Sempre

estamos atrás dos nossos

direitos, mas esquecemos dos

nossos deveres.” A opinião é do

intérprete Andregene Pierre,

53 anos. Desde 1994 ele é

funcionário das Nações Unidas

e afirma que o país chegou a

um nível intelectual tão baixo

devido aos sucessivos golpes de

Estado que aconteceram ao

longo das últimas décadas.

Pierre afirma que, a partir

da década de 90, os melhores

profissionais fugiram para

outros países. Ou seja, o Haiti

perdeu pessoas qualificadas em

várias áreas do saber.

“Estamos vivendo como

cachorro. Sonho em ver o Haiti

em um rumo normal de

crescimento.” O intérprete teve

uma filha assassinada em 2006.

Ela estava grávida e foi atingida

por uma bala perdida.

Antes da crise em que o país

mergulhou, Robenson

Desrusseaux, 24 anos, era

estudante universitário de

informática. Ele não concluiu o

curso e trabalha como faxineiro

em uma base brasileira desde

2004. “É complicado falar no

futuro, mas pretendo voltar a

estudar um dia. Aqui nunca vai

melhorar. Se a ONU for

embora, a violência volta.”

Apesar de trabalhar em uma

função em que não sonhou,

Desrusseaux não reclama e diz

que está em melhor situação

financeira que muitos

conterrâneos. Ele fala

fluentemente o crioulo (língua

nativa), francês, inglês e

português.

Miami

Com organização e a correta

administração do seu dinheiro,

não falta nada em casa. O

salário mensal é de R$ 400. Ele

é casado, mas mora sozinho.

Há três anos, a mulher

trabalha em Miami, Estados

Unidos, como garçonete. Ela

está com os dois filhos do casal.

O salário mensal de R$ 2,1 mil

motivou a mudança. “Tenho

muita saudade da minha

família. Nos vemos duas vezes

por ano.”

Os pais que conseguem

colocar o filho na escola fazem

questão de que ele vá

decentemente vestido e limpo.

As meninas usam saias e

enfeites no cabelo. Já os

meninos estão sempre com

calça social, sapato e camisa

engomada.

Meninacom laços

de fita:faltam vagasnas escolas,professores

qualificadose material

escolar

Garota usaenfeite nacabeça,hábitocomum entreas meninas:educaçãoainda é sonho

O intérprete Andregene Pierre culpa golpes de EstadoOs haitianos são torcedores apaixonados da seleção brasileira

Garoto da Cidadedo Sol (à direita)

faz aula de caratêcom soldados do

ExércitoBrasileiro;

menino (à esq.)faz acrobacia em

praça de PortoPríncipe

Page 12: As Feridas do Haiti

Rio-pretense aguarda cervN

ão é patrulhar

favelas perigosas,

trabalhar dias

seguidos embaixo

de sol escaldante

ou enfrentar as dificuldades

estruturais de um país em

guerra civil, mas a saudade da

família e a distância de casa

que afetam o emocional do

soldado brasileiro. Os

militares recorrem ao

telefone e à internet para

vencer os quase 10 mil

quilômetros de distância e

participar, ainda que de

longe, da vida de quem ficou.

Dentro das bases

brasileiras, há telefones

coletivos à disposição e acesso

livre à rede mundial de

computadores. É possível

acessar a internet em cada

contêiner que serve como

alojamento. Durante todo o

dia, tarde e noite, há militares

ligando. Na frente de todo

mundo, discutem-se questões

de foro íntimo e compram-se

e vendem-se carros e casas.

Mesmo em outro país, a

figura paterna não se esquiva

de suas obrigações.

O soldado rio-pretense

Heitor Liebana Verjas, 20

anos, está no Haiti desde

junho de 2009. Ele sente

saudade de casa, de Rio Preto,

dos pais e dos quatro irmãos.

A família mora no Jardim

Aclimação. Antes de

embarcar para a missão,

conheceu uma garota e quase

começou um namoro. Mas

teve que adiar os planos.

“Quando voltar, pretendo

procurá-la.”

Verjas faz parte do

Exército há dois anos. Serve

em Lins, a 130 quilômetros

de Rio Preto. A oportunidade

de representar o Brasil na

missão surgiu após muito

empenho e dedicação. Apesar

de pensar com frequência na

vida que tinha, se diz

contente. “Quis vir por três

motivos: servir o País, ajudar

as pessoas e ter uma grande

experiência de vida.”

A rotina é puxada e inclui

patrulhamento pelas ruas de

Porto Príncipe. “Fiquei

chocado quando vi gente

pegando água no esgoto para

cozinhar e beber.” O sonho de

Verjas é voltar e ser aprovado

no concurso do Corpo de

Bombeiros. Também não

esconde que está louco para

tomar uma cerveja gelada na

avenida Bady Bassitt.

Verjas não é o único

representante da região no

Haiti. Ele tem a companhia

do cabo Everton Luís

Barbosa, 23 anos, do bairro

Santa Cláudia, em Mirassol.

Está com saudade da cidade

em que mora e das coisas que

fazia. “Ainda bem que existe a

internet. Do contrário, não

sei como seria.” Todo dia

conversa com os parentes.

Barbosa entrou no

Exército há cinco anos por

influência de amigos.

Solteiro, afirma que a família

reagiu com um misto de

surpresa e apreensão quando

foi comunicada da missão,

devido aos claros riscos de

segurança. Ele faz de tudo na

base, inclusive as fotos

oficiais.

O cabo aproveitou o

período de dez dias de

descanso para viajar para a

República Dominicana e se

hospedar em um resort.

“Também queremos conhecer

outros países. Lógico, estou

aqui para ajudar. Se precisar,

vou combater. O mais legal

disso tudo é saber que a

minha família me admira.”

Todos os dias o sargento

Cícero Edberto da Silva, 47

anos, conversa com a

família pela internet,

independentemente de estar

atarefado ou escalado para

missão especial. Mora em

Brasília, é casado e tem

duas filhas.

Para suportar a distância

de casa, Edberto recorre à

religião. “Sou católico e rezo

sempre.” Na base general

Bacellar, participa de terço

toda segunda e sexta e missa

na quarta e domingo.

O sargento tem 28 anos de

Exército e revela que não é

fácil ficar longe das pessoas

de que gosta. De vez em

quando, a tristeza bate forte.

Apesar disso, nunca pensou

em desistir.

“No Haiti, tudo é

superação. Não existe dia

simples. O jeito é ocupar a

cabeça com muitas

atividades.” Ele diz que não

saberia o que fazer se não

existissem os meios de

comunicação.

Os oficiais torcem para

não chover. Nos dias sem sol,

a internet fica lenta e os

telefones chegam a falhar.

Soldados e oficiais brasileiros matam a saudade com telefonemas, troca de e-mails com familiar

Osargento

Jefferson Luís da

Silva Pereira, 41

anos, iria

participar da

missão de paz no Haiti em

2008, mas foi obrigado a

adiar a viagem para um ano

depois. Ele descobriu que era

portador de um câncer, entre

o coração, pulmões e esôfago,

nos exames preventivos

realizados pelo Exército

antes do embarque.

Pereira fez quimioterapia

e radioterapia, se recuperou

totalmente e está no país

caribenho desde junho de

2009. “Se não fosse o Haiti,

eu não teria descoberto a

doença.”

Participar da missão de

paz é, nas palavras do

próprio sargento, o

fechamento de um ciclo na

sua vida pessoal.

O oficial recorreu à força

de vontade para enfrentar o

tratamento, com o objetivo

de retornar para a família,

evitar a aposentadoria

prematura e representar o

Brasil na missão.

A mãe de Pereira teve um

câncer no mesmo lugar que o

filho e não se recuperou.

“Estou feliz. Tenho a certeza

de que me curei e posso

ajudar um povo sofrido.”

É gaúcho de Santiago e

morava em Brasília até o

início da missão. Como a

filha foi aprovada no

vestibular de veterinária em

Santa Maria, vai retornar

para o Rio Grande do Sul. A

família já providenciou a

mudança. O sargento nem

conhece o novo lar, mas

decorou o endereço.

“Estou mais forte

espiritualmente. Aprendi a

dar valor a outras coisas na

vida e ter mais paciência,

persistência e perseverança.

Me considero um

iluminado.”

O sargento CiceroEdberto da Silvafala com parenteao telefone: para

suportar adistância da

família, ele, que éde Brasília,

recorre à religião

Arotina de trabalho do

militar no Haiti é

pesada, intensa e chega

a consumir um mês

inteiro sem parar.

Participar da missão é uma escolha

voluntária. O processo se resume a

se inscrever e passar em exames

médicos, físicos e psicológicos. A

permanência no Haiti é de seis

meses. O Brasil está no 11º

contingente. A troca de posto da

turma atual está prevista para

ocorrer no final de janeiro de 2010.

Nenhum militar em serviço

deixa a base sem estar trajado com

o “tudão”, ou seja, capacete, colete

à prova de balas, cotoveleira,

joelheira, luva, uniforme, fuzil e 60

projéteis. O equipamento básico de

alguns é incrementado com

granadas e armas não letais, como

spray de pimenta e balas de

borracha. Todo o equipamento

pesa 20 quilos.

O efetivo brasileiro chega a

fazer 250 patrulhas em um único

dia. O trabalho é realizado em

blindados, caminhonetes ou a pé.

Como o ritmo é forte, o coronel

Exame detecta câncer

Soldados brasileiros durante exercícios

O soldado HeitorLiebana Verjas (àesq.), de Rio Preto,e o cabo EvertonLuis Barbosa, deMirassol: o 1ºsonha com cervejagelada na avenidaBady Bassitt

Soldados gan

Page 13: As Feridas do Haiti

[FRAGEGRAF]

[FRAGEGRAF]

Vir para cáfoi uma

decisão difícil.Cheguei a me

considerar a piormãe do mundo.

Mas acreditoque, no futuro,

meu filhoterá orgulhode mim

No Haiti,tudo é

superação.Não existe dia

simples. O jeito éocupar a cabeça

com muitasatividades

Cícero Edbertoda Silva

veja gelada na Bady Bassitt

Além de patrulha e

ações

humanitárias, o

exército brasileiro

mantém no Haiti

desde 2005 um efetivo

exclusivo para desenvolver

ações de engenharia nas

cidades e nas próprias bases

das tropas. Os 250 homens

da companhia são

responsáveis pela construção

de ruas, terraplanagem,

operação tapa-buraco,

montagem de pontes e

abertura de poços artesianos.

No dia 31 de outubro de

2009, o Exército

desenvolveu atividade no

orfanato Blessing Hands

Foundation, em Kenscoff.

Os militares construíram no

local banheiro, cobertura e

escada e instalaram a parte

elétrica. As salas de aula,

cozinha e banheiro

receberam pintura. E

doaram medicamentos e 200

quilos de alimentos.

O tenente Eduardo

Augusto de Oliveira afirma

que 33 poços já foram

abertos, e duas pontes de

ferro instaladas. “Como as

ruas são muito ruins,

fazemos tapa-buraco com

frequência.” Para realizar a

recuperação de vias, uma

usina de asfalto foi instalada

em Porto Príncipe.

No começo da missão, a

companhia de engenharia

tinha outra obrigação:

desobstruir as ruas

interditadas pelas gangues

ou repletas de lixo para que

as patrulhas pudessem

passar. Chile e Equador

também desenvolvem

atividades no campo da

engenharia. O setor é

subordinado diretamente à

Organização das Nações

Unidas (ONU).

es e torcem sempre para não chover porque o mau tempo prejudica a comunicação com o Brasil

Elas são minoria, mas

estão presentes e têm

atuação destacada no

contingente

brasileiro que está no

Haiti. Sete brasileiras deixaram

a casa, marido, filhos e vida

social para trás com o objetivo

de representar o País na missão

de paz. No time feminino, há

três médicas, uma dentista,

duas auxiliares de enfermagem

e uma intérprete de inglês.

A tropa brasileira tem 1.291

homens. Até por esse motivo, as

militares se transformaram em

amigas de infância e

aproveitam os períodos livres

para se encontrar, conversar e

discutir os dilemas femininos.

Há um apoio mútuo quando

chega com força a saudade de

casa, dos entes queridos e da

vida no Brasil.

A capitão Daniela

Alcântara, 34 anos, é do Rio de

Janeiro e faz parte dos quadros

da Marinha há sete anos. É

cirurgiã-geral e proctologista.

Primeiro se formou e depois

ingressou nas Forças Armadas.

A influência foi grande dentro

de casa. O marido e o pai são da

Marinha. Não encontra

dificuldades para desempenhar

o seu trabalho.

Daniela já se acostumou a

conviver no ambiente militar e

adota como política ser gentil,

atenciosa, comunicativa e

amiga de todo mundo. “Eles

me respeitam e sabem o meu

limite. Se quero ficar sozinha,

vou para o meu contêiner.

Sinto falta apenas da minha

família. Isso me deixa chateada

às vezes.” É mãe de um menino

de 3 anos.

O trabalho no Haiti vai

durar até o final de janeiro. A

internet ajuda a diminuir a

distância. Quase todos os dias

ela vê a criança por meio de

uma câmera. “Vir para cá foi

uma decisão difícil. Cheguei a

me considerar a pior mãe do

mundo. Mas acredito que, no

futuro, meu filho terá orgulho

de mim.”

A sargento Lucimar da

Silva Neves, 29 anos, de

Campinas, é do Exército desde

2001 e atua como técnica em

enfermagem. Pela missão,

trancou o curso de enfermagem

e vai retomá-lo quando voltar

ao Brasil. “A mulher ingressou

no Exército em 1992. Devagar,

estamos quebrando barreiras e

ganhando o nosso espaço, com

respeito, flexibilidade e

jeitinho.”

Lucimar destaca que os

homens são respeitosos tanto

no campo pessoal quanto

profissional e que, nas Forças

Armadas, não existe tratamento

diferenciado para a mulher. “Se

precisar, estamos prontas para

pegar os fuzis e combater.

Claro: não deixamos a parte

feminina de lado, mas é

necessário ter certa

rusticidade.”

Para aguentar a rotina

puxada, a técnica em

enfermagem afirma que é

preciso estar com o corpo em

ordem. Todo dia tem de fazer

atividade física. Mas não

reclama. “Tudo isso vale pela

experiência pessoal e

profissional. E é muito bom

representar o País.”

Alan Sampaio Santos afirma que o

militar perde até cinco quilos de

água em uma única saída, que

chega a durar quatro horas.

A dieta diária do militar é rica

em calorias: 4,5 mil – o dobro do

recomendado a um homem

comum. A cada três semanas, o

Brasil manda um avião carregado

com suprimentos, munição,

materiais de escritório e o que for

necessário para a manutenção do

trabalho.

A base general Bacellar é a

maior do Brasil no Haiti e oferece

conforto aos militares nos seus 100

mil metros quadrados. Além de

alojamento, tem campo de futebol,

academia, oratório, lavanderia e

barbearia. O auditório é

transformado em cinema toda

sexta-feira, com direito a pipoca, e

no sábado tem jantar especial, com

pizza, feijoada e churrasco.

Dorme-se em contêiner dotado

de camas, frigobar, internet,

ar-condicionado e armários. O

número de pessoas por contêiner

varia de acordo com a patente. Até

12 soldados dividem 60 metros

quadrados. No caso de tenente,

quatro dormem em 40 metros

quadrados. Capitão e coronel são

colocados em duplas. Comandante

e o subcomandante têm espaços

únicos.

Cada mês trabalhado dá direito

a quatro dias de arejamento, termo

usado pelos militares para designar

o período de recuperação. Os mais

graduados optam por acumular até

três semanas de descanso e visitam

a família no Brasil ou conhecem

países vizinhos ao Haiti, como

República Dominicana (uma hora

de avião ou sete horas de carro) ou

Miami (duas horas de avião).

Além de representar o Brasil,

participar de um momento

importante da história e ter um

diferencial na carreira, fazer parte

da missão também é lucrativo. A

ONU paga um salário adicional a

cada participante da ação.

Um soldado que recebe R$

600 de salário no Brasil ganha

mais R$ 1,6 mil da ONU. Ou

seja, durante toda a missão

recebe R$ 9,6 mil. O salário pago

pelo governo brasileiro é

entregue normalmente para a

família.

A médica Daniela Alcantara, que deixou filho de 3 anos no Brasil para servir no Haiti: tradição familiar

A sargento Lucimar daSilva Neves, de

Campinas, trancou ocurso de enfermagem:‘não deixamos a parte

feminina de lado, mas énecessário ter certa

rusticidade’

s: rotina em outro país não é problema, a não ser a saudade dos familiares

Soldados brasileiros trabalham em pavimentação de rua em Porto Príncipe: tapa-buraco é rotina

Os capacetes-azuisbrasileiros a serviço daONU no Haiti durantecerimônia de formatura:missão brasileira noexterior dura seis mesese a atual etapa estáprevista para acabar emjaneiro de 2010

Força brasileiraleva 7 mulheres

Exército torna ruas transitáveis

nham R$ 9,6 mil da ONU

Page 14: As Feridas do Haiti

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Os caras(militares)

são genteboa demais. Só

alegria. Um diaainda vou

conhecero Brasil

Júlio NicolasJean Batist,13 anos

[FRAGEGRAF]

Existe umcarinho muito

grande. A gentedá atenção, além de

garantir a segurança.Isso é importante para

nós. Estamos aquipara ajudar

Alex Dantas doEspírito Santo,capitão da Marinha

Bandeira doBrasil ajudana proteção

Obrasileiro brinca

que não é o capacete

ou o colete que

garante a

integridade física no

Haiti, mas sim a bandeira do

Brasil colada no braço. A

relação que existe com os

haitianos não é só militar, de

segurança. Chega, em muitos

casos, à amizade sincera. Há um

respeito mútuo. Tanto que o

brasileiro é chamado de “bon

bagay”, ou seja, sangue bom.

O Brasil é um País querido

no Haiti. A admiração não

ocorre só pela maneira como o

soldado trata a população, mas

por outro motivo: o futebol.

Pelas ruas de Porto Príncipe,

não é difícil encontrar haitianos

usando camisas do Ronaldo,

Robinho e Kaká. Os veículos até

são decorados com as fotos dos

craques brasileiros.

O haitiano acompanha a

seleção brasileira desde a Copa

do Mundo de 1970, quando o

Brasil foi campeão com atuações

de gala de Pelé. Dia de jogo da

seleção é feriado nacional no

Haiti.

A casa que tem televisão é

invadida por centenas de

pessoas. Dinheiro, carro e até a

mulher são apostados. A

Argentina é odiada no esporte.

O militar brasileiro é

recebido de forma respeitosa na

maior parte de Porto Príncipe.

A criançada faz algazarra e

questão de estender a mão. Até

os mais pequenos, que nem

sabem falar direito, querem

saudá-los. Só sossegam quando

são correspondidos.

O Diário acompanhou

patrulhas pelas ruas da capital e

constatou que o soldado não

deixa de lado as suas obrigações,

mas encontra tempo para dar

atenção, conversar e até fazer

carinho nas crianças.

Quando esteve no Haiti, o

soldado norte-americano não

teve a mesma recepção que o

brasileiro. As outras tropas que

estão no país atualmente são

respeitadas, mas não existe

relação de amizade.

Um haitiano explicou que as

outras tropas chegam, fazem a

patrulha e vão embora. Às vezes,

sem nada dizer.

O capitão Alex Dantas do

Espírito Santo, da Marinha,

afirma que é surpreendente o

respeito com que é tratado no

dia a dia. A amizade, diz, só

colabora para o sucesso da

missão.

“Existe um carinho muito

grande. A gente dá atenção,

além de garantir a segurança.

Isso é importante para nós.

Estamos aqui para ajudar”,

afirma o capitão.

As crianças que moram ao

redor das bases brasileiras ficam

o dia inteiro na porta dos

prédios oficiais.

A proximidade gera um

fenômeno na cultura local: estão

aprendendo a falar a língua

portuguesa, com direito até a

gírias. “Mano, me dá uma

água”, grita um adolescente. A

tropa brasileira está no Haiti há

cinco anos.

O menino Júlio Nicolas Jean

Batist, 13 anos, é o símbolo da

amizade entre brasileiros e

haitianos.

Ele fala bem o português e

foi apelidado de Morcego. “Os

caras (militares) são gente boa

demais. Só alegria. Um dia

ainda vou conhecer o Brasil.”

Ele é goleiro e fã de

Ronaldinho Gaúcho e Luís

Fabiano.

Morcego

O sorriso fácil de

adolescente desaparece apenas

na hora de falar da

sobrevivência. Tem 11 irmãos,

não estuda e quase sempre não

dispõe do que comer. “Queria

ajudar as pessoas.”

Morcego diz que não

consegue fazer nada para ganhar

dinheiro. Ele perambula pelas

feiras em busca de comida.

“Não tenho nada para fazer.”

O general brasileiro

Floriano Peixoto Vieira Neto

faz questão de dizer que a tropa

do Brasil é respeitada devido ao

comprometimento, dedicação e

respeito aos costumes, leis locais

e normas da ONU.

Haitianos são apaixonados pelos craques da seleção brasileira e dia de jogo vira feriado nacional

OExército e a

Marinha do Brasil

promovem quase

todas as semanas a

distribuição de

alimentos e água em Porto

Príncipe e outras cidades do

Haiti. Cada evento requer forte

esquema de segurança para

evitar confusões, vítimas e

fraudes.

As senhas são entregues um

dia antes da distribuição para

as mulheres ou meninas. Os

homens são excluídos porque

os militares descobriram que

eles vendem as senhas e não

levam o alimento para casa.

É escolhido um lugar

seguro e só entram as pessoas

que vão receber a doação.

Em pontos mais perigosos,

um militar escolta a mulher até

a casa. Em uma Ação

Cívico-Social (Aciso), os

fuzileiros navais distribuíram,

além de uma cesta básica, um

copo de água, com duas pedras

de gelo, para cada pessoa.

Não havia comida

suficiente para atender a todas

as mulheres que estavam na

fila. Houve descontentamento.

Fifi Melhom, 18 anos, não

conseguiu esconder a decepção.

Apesar da pouca idade, é viúva

e tem dois filhos pequenos. O

marido morreu de malária.

“Não tenho nada para as

crianças. Acabei de nascer e me

sinto cansada.” Como não

conseguiu nada, disse que iria

mendigar pelas ruas da capital.

Há distribuição regular de

água, leite em pó, arroz e

farinha de milho.

Em uma ocasião, não havia

comida, e os militares

distribuíram baldes. Ninguém

reclamou. As vasilhas seriam

úteis para transportar água

para casa.

Crianças haitianas fazem questão de cumprimentar os soldados brasileiros: futebol garante popularidade Militar brasileiro cura ferida de haitiana: brasileiros são respeitados

Liane Louise aguarda alimento e água doados por fuzileiros navais

Mulher recebe alimentos de fuzileiros navais: homens são excluídos da distribuição porque vendem senhas

Distribuição de comida exclui os homens

Page 15: As Feridas do Haiti

Oembaixador

brasileiro no Haiti,

Igor Kipman,

afirma que o Brasil

investiu R$ 700

milhões na missão de paz no

país em cinco anos e lidera a

missão composta por 7 mil

homens de várias

nacionalidades. O Brasil

desenvolve, além de

patrulhamento, cooperação

técnica, sobretudo no campo

da agricultura, ações de

engenharia, como a construção

de ruas, abertura de poços

artesianos, construção de

pontes e doação de comida.

“Na cooperação, buscamos

ensinar a pescar e não dar o

peixe. É necessário ter

equilíbrio. Se você for na

Cidade do Sol, haverá gente

morrendo de fome,

subnutrida. Estamos ensinado

a pescar. É uma coisa que não

acontece do dia para a noite. É

um processo. Não se pode

abandonar quem está

morrendo de fome”, diz

Kipman.

Ele é embaixador no país

há um ano e quatro meses,

mas participou de forma ativa

da missão brasileira, desde o

início em 2004. No seu

gabinete, discorreu durante

uma hora sobre as questões

fundamentais do Haiti nos

quesitos segurança, política,

emprego, miséria e

desenvolvimento.

Ele falou também que

outro tentáculo fundamental

da missão é a Organização das

Nações Unidas (ONU)

preparar a Polícia Nacional do

Haiti (PNH). A meta, em

2011, é que a PNH tenha

capacidade, técnica e

equipamentos para assumir a

segurança do País. A partir

daí, segundo o embaixador,

será possível reduzir a

presença militar, não só do

Brasil.

Kipman recebeu o Diárioem um luxuoso e seguro

prédio que abriga a embaixada

e, portanto, as principais

decisões brasileiras, em

Pattion Ville. O bairro fica na

zona sul do Haiti e endereço

da pequena, mas poderosa

elite local.

Diário da Região – Qualavaliação o senhor faz dopapel desempenhado peloBrasil no Haiti nos últimoscinco anos?

Igor Kipman – É um

trabalho solidário, cuja parte

mais visível é a militar. Por

quê? Os militares andam

uniformizados, com a

bandeira do Brasil no braço.

Nós temos, a par disso, uma

presença tão importante

quanto a militar, que são

técnicos da Embrapa, Emater,

Ministério do

Desenvolvimento Agrário,

Codevasp e Ministério da

Saúde. Eles estão espalhados

por todo o país e ajudam em

projetos agrícolas. Hoje, o

Haiti talvez seja o país com

maior cooperação técnica

brasileira. Isso tem sido um

apoio extraordinário ao

governo e ao povo haitiano.

Diário – Como é feita adoação de alimentos?

Kipman – Outro braço da

missão é a ajuda humanitária.

No ano passado, ocorreram

quatro furacões em três

semanas. Cerca de 10% da

população do país ficou

desabrigada, ou seja, 800 mil

pessoas. Não houve número

importante de mortes, mas

elas aconteceram. Em 2008, o

Brasil enviou ao Haiti 15 mil

toneladas de arroz e 500

toneladas de leite em pó. E

disponibilizou recursos de R$

500 mil para aquisição local de

mantimentos.

Diário - O povo haitianonão se acomoda e esperaapenas a doação de comidapara sobreviver?

Kipman - Muita gente

pergunta isso. Na cooperação,

a gente busca ensinar a pescar

e não dar o peixe. É necessário

ter equilíbrio. Se você for na

Cidade do Sol, haverá gente

morrendo de fome,

subnutrida. Estamos ensinado

a pescar. É uma coisa que não

acontece do dia para a noite. É

um processo. Não se pode

abandonar quem está

morrendo de fome. Precisa-se

de um pouco de bom senso

para dosar a ajuda

humanitária e a cooperação

técnica.

Diário – O que melhorouno país no período deintervenção da Organizaçãodas Nações Unidas (ONU)?

Kipman – A diferença é

enorme em comparação com

2004 (data em que começou a

missão). Hoje, você vê limpeza

pública, infraestrutura,

estradas recuperadas. E existe

dinâmica econômica. O

comércio está melhor. Ainda

falta muito, é verdade. Existe

melhoria significativa no

fornecimento de energia

elétrica. Até fevereiro de 2008,

eu tinha 90 minutos de

energia em casa por dia.

Agora, tenho entre 6 e 8 horas.

Venezuelanos e cubanos

doaram e montaram três

usinas termoelétricas. O Brasil

elabora um projeto para fazer

uma represa com geração de

energia elétrica e irrigação.

Diário – Por que apresença militar por tantotempo?

Kipman - Nunca se

discutiu prazo para realizar a

missão. O Congresso brasileiro

autorizou a ida das tropas a

critério do Conselho de

Segurança da ONU. A prática

é renovar o mandato a cada 12

meses. A primeira missão foi

aprovada em 2004 e a última

renovada em outubro de 2009.

O compromisso do presidente

Lula é de que

permaneceremos enquanto o

governo haitiano quiser. Não

existe força de ocupação.

Estamos convidados pelo

governo.

Diário – Não existe prazopara retirar as tropas?

Kipman - A comunidade

internacional está trabalhando

com horizonte de começar

uma redução gradual da

presença militar em 2011,

quando será realizada eleição

presidencial. O novo

presidente assumirá em 7 de

fevereiro. É a comprovação de

que o país está

democraticamente equilibrado

e as instituições, estáveis.

Diário – Se existeestabilização, por que apresença da ONU énecessária?

Kipman - Além da

segurança, uma das funções da

ONU é selecionar, recrutar,

preparar e treinar a Polícia

Nacional do Haiti (PNH), que

foi praticamente desmantelada

em 2004. Na ocasião, a polícia

tinha 1,4 mil homens sem

equipamento e uniformes. Em

cinco anos, aumentou para 10

mil policiais. Os entendidos

julgam que 14 mil é um

número suficiente, não ideal.

Há três semanas, a Polícia

Federal fez treinamento com

eles e vai oferecer quatro

cursos no ano que vem. A

meta, em 2011, é que a PNH

esteja preparada e equipada

para assumir a segurança do

país. A partir daí, será possível

reduzir a presença militar, não

só do Brasil.

Diário - Em termospolíticos, qual é importância

da missão para o Brasil?Kipman –Tem

importância em vários

campos. Internacionalmente, é

de projeção do Brasil no

exterior. O reconhecimento

dos parceiros internacionais é

extraordinário. Está gastando

um monte de dinheiro? Está.

Mas existe retorno intangível.

É o crescimento das tropas.

Não é só do ponto de vista

profissional. Já passaram mais

de 12 mil militares brasileiros

no Haiti. Há ganho pessoal,

crescimento social, cultural e

abertura de horizontes. Os

militares voltam reconciliados

com o Brasil.

Diário – Quanto foiinvestido pelo Brasil?

Kipman - Tem se falado

em torno de R$ 700 milhões

no período de cinco anos.

Diário – A ONU devolveparte do dinheiro gasto peloBrasil no Haiti?

Kipman - Hoje, a

Organização das Nações

Unidas restitui em torno de

60% do que é gasto (a cada R$

1 milhão, voltam R$ 600 mil).

Há países que participam da

missão de paz rigorosamente

pelo reembolso. A decisão

corretíssima do governo

brasileiro é manter a tropa em

nível que é exemplo para todo

mundo. A base é de Primeiro

Mundo. No primeiro

contingente, o general dormiu

no chão. A estrutura melhorou

com o tempo. Tudo isso foi

crescimento, aprendizado.

Diário – Quais osprincipais problemas hoje doHaiti?

Kipman - O que precisa

ser resolvido é a falta de

emprego. Todo o resto virá

como consequência disso.

Mais de 70% da população está

desempregada. Claro, tem o

comércio informal. A

comunidade internacional está

se esforçando e buscando

investimento externo para o

país. Há problema de

infraestrutura, energia

elétrica, saneamento, saúde e

educação.

Diário – Por qual motivoo governo haitiano nãoinveste em infraestruturapara melhorar a vida dapopulação?

Kipman - O governo não

tem recurso para fazer tudo o

que tem de ser feito. A

comunidade internacional

ajuda. A Espanha, por

exemplo, paga o salário dos

professores. A polícia nacional

ameaçou entrar em greve por

falta de pagamento de salários.

O orçamento do governo é

menor que as remessas de

dinheiro de haitianos que

estão nos Estados Unidos,

Canadá e França. O comércio

é informal e não recolhe

impostos.

Diário – Como o país estáorganizado?

Kipman - É um modelo

similar ao francês, com

presidente e

primeiro-ministro. Tem a

Câmara de Deputados, com 99

integrantes, e o Senado, com

30 vagas – 29 estão ocupadas.

Os poderes funcionam bem.

Diário – E o Judiciário?Kipman – É uma área em

que a ONU tem mandato para

atuar e apoiar o governo. É um

setor que está bastante

debilitado. Você tem o sistema

e juízes muito velhos, até sem

condições físicas de

desempenhar a função.

Medidas estão sendo tomadas.

Foi revitalizada a escola de

magistratura. Mas não se

forma um juiz em um mês.

Diário – Existemunidades prisionaissuficientes?

Kipman - Um problema

gravíssimo é a superpopulação

carcerária. Aqui, existe meio

metro quadrado para cada

preso. Está muito abaixo das

normas internacionais, que

recomendam o mínimo de 2,5

metros quadrados. Existe

ainda o problema da detenção

prolongada. A pessoa fica

presa esperando o julgamento,

que pode demorar quatro,

cinco anos. Em março será

inaugurado um novo presídio,

construído com recursos

canadenses.

Diário – Qual é a situaçãohoje do Haiti?

Kipman – É um país em

revitalização. Você tem

estrutura e só precisa dar nova

vida a elas. O Estado está

presente. Precisa ter mais

gente treinada e preparada.

Faltam quadros. Existe evasão

muito grande de cérebros. O

profissional liberal vai embora

para a França e Canadá. É

necessário desenvolver um

programa para reter

profissionais capacitados aqui.

Na cooperação,a gente busca

ensinar a pescare não dar o peixe.

É necessário terequilíbrio. Se você

for na Cidadedo Sol,haverá gentemorrendo

de fome

Um problemagravíssimo é

a superpopulaçãocarcerária. Aqui,

existe meio metroquadrado para cada

preso. As normasinternacionaisrecomendam2,5 metros

quadrados

Brasil jáinvestiuR$ 700

milhõesno Haiti

Igor Kipman, embaixador do Brasil, afirma que ONU restitui 60% dos gastos do País com a missão

Page 16: As Feridas do Haiti

RETRATOSDO HAITI

O Haiti é um país de extremos. No mesmo cenário, é possível

conquistar um sorriso, ouvir gracejo sobre o futebol brasileiro,

testemunhar a relação de amizade entre militares e haitianos, mas a

imagem mais marcante e inesquecível é ver a fome ea sede estampadas

no rosto do povo. Dói ver humanos disputando alimentos com porcos

nos lixões, algumas crianças comendo barro para preencher o vazio do

estômago, outras nuas, em lágrimas, abandonadas pelas ruas