Arquitetura - Lucio Costa
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SUMRIO
APRESENTAO CONCEITUAO TRADIO OCIDENTAL TRADIO LOCAL A N O T A E S A O C O R R E R D A LEMBRANA INTERMEZZO Catas Altas do Mato Dentro INTERMEZZO Rott am Inn
7 17 25 33 41 75 85 87 103 109 115
A N T N I O F R A N C I S C O LISBOA, O A L E I J A D I N H O RUPTURA E REFORMULAO E D I F C I O G U S T A V O CAPANEMA ADDENDUM URBANSTICO
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ARQUITETURA
BRASLIA, CIDADE INVENTADA (Memria Descritiva) APNDICE ORIENTAO PARA O PROFESSOR GLOSSRIO
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APRESENTAO
Na sucesso dos s i n t o m a s que prenunciavam o f i m do regime de exceo, o r e s t a b e l e c i m e n t o da abertura e da o r d e m democrtica, j u s t o assinalar o l a n a m e n t o da B i b l i o t e c a E d u c a o C u l t u r a . A iniciativa resultou de uma parceria do M E C - F e n a m e e da B l o c h E d i t o r e s S.A., em 1 9 8 0 . A publicao desses o p s c u l o s , cada um de per st quase um vadt-mcum, era dirigida aos professores da rede de e n s i n o mdio, c o m o ferramenta de i n f o r m a o a f i m de despertar o interesse dos alunos para uma m e l h o r c o m preenso de suas vocaes. F o r a m escolhidas figuras representativas para a elaborao das monografias. E r a m dez ttulos: I. Realidade brasileira/Gilberto Freyre; 2. Literatura/
J o s u M o n t e l l o ; 3. M s i c a / F r a n c i s c o M i g n o n e ; 4* Folclore/ M a r i a de L o u r d e s Borges R i b e i r o ; 5. Cinema/Wilson C u nha; 6. Teatro I /Raymundo Magalhes J n i o r ; 7. Teatro II/7
ARQUITETURA
M a r i a Clara M a c h a d o ; 8. Artes plsticas I /Flvio D ' A q u i n o ; 9. Artes plsticas II /Wladimir Alves de S o u z a e, finalmente, 1 0 . Arquitetura/Lucio Costa.
O aparecimento do volume IO Arquitetura interrompia o hiato provocado p o r razovel silncio. P o r esse t e m p o , s t n h a m o s acesso palavra de L c i o C o s t a atravs de garimpagem em alguns p o u c o s livros, entrevistas e e s c r i t o s esparsos, sendo a principal f o n t e os i m p o r t a n t e s e s t u d o s publicados nos primeiros n m e r o s da Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional ( S P H A N ) , iniciada em 1 9 3 7 C o m m e n o s de sessenta pginas em sua edio o r i ginal, este pequeno grande livro uma declarao de amor, um o b j e t o de conquista e um m a n i f e s t o . E perpassado p o r uma simplicidade calma e clara. E, sem t e r essa inteno, naturalmente a u t o b i o g r f i c o . O ndice espicaa nossa curiosidade. Na " C o n c e i t u a o " , o livro n o s m o s tra q u e a arquitetura parte fundamental da criao a r tstica c o m o manifestao normal de vida, c o n s t i t u i n d o uma espcie de "lbum de famlia" da humanidade. E x 8
APRESENTAO
plcita o desafio do artista, do t c n i c o e do h o m e m na adequao do meio f s i c o e social. C o n d u z - n o s a p e r c e ber a arquitetura c o m o bem durvel, c o n c e b i d o de m a neira estrutural e orgnica, na medida do corpo do homem, sentido em t e r m o s de espao e volume, enfim, c o m o algo para ser vivido. Em " T r a d i o o c i d e n t a l " , o a u t o r apresenta dois e i xos de influncia cultural: o n r d i c o - o r i e n t a l e o m e s o p o t m i c o - m e d i t e r r n e o , do qual descende o n o s s o g e s t o do saber fazer. Em " T r a d i o l o c a l " , deparamos c o m a m e m r i a saudosa e sofrida dos primeiros c o l o n o s transmigrando para a nova terra, onde t u d o era adverso c l i m a , n d i o e b i c h o . As diversas t c n i c a s h e r d a d a s das diferentes regies de Portugal, t o d a s e n c o n t r a n d o sua expresso prpria, adaptam-se aos p o u c o s , ao sabor do t e m p o , aprendendo c o m o ndio, a luz e a paisagem: os f o r t e s , os o r a t r i o s e as igrejas, a casa-cofre dos bandeirantes c o m sua planta o r t o g o n a l e assentada no c h o . A casa-grande d o s engenhos de acar; a casa-gaiola das c i dades do o u r o , de estrutura de madeira, adaptando-se ao
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ARQUITETURA
relevo caprichoso das serras mineiras e que, p o r falta de e s p a o , ombreavam-se em trama de densa organizao urbana. E m e s m o mais tarde, nas casas das fazendas de M i n a s , S o Paulo ou R i o de Janeiro, e n c o n t r a m o s as caractersticas de nossa arquitetura, sempre a revelar fora, coerncia, r o b u s t e z e sade plstica. N a s "Anotaes ao correr da lembrana", b e m c o m o n o s "Intermegos", a memria construda c o m o exerccio da contemplao, lucidez e aguda sensibilidade esto s e m pre presentes, ao lado de humanidade e compaixo. H ainda o luminoso e comovente ensaio sobre A n t n i o Franc i s c o Lisboa, o n o s s o Aleijadinho, a r q u i t e t o e escultor, o m a i o r artista brasileiro do t e m p o da colnia. Falando da contribuio do escravo, seja ele ndio ou negro, L c i o C o s t a n o s lembra que a qualidade artstica de seu trabalho no se origina apenas da f e do o f c i o t r a n s m i t i d o s pelo mestre portugus, mas sim da parcela de liberdade que colocavam no que faziam, e isso ningum lhes poderia tirar. " R u p t u r a e r e f o r m u l a o " m o s t r a um processo e v o 10
APRESENTAO
lutivo que se rompeu n o s dois l t i m o s sculos, c o m
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progresso c i e n t f i c o e industrial i n t r o d u z i n d o novos m o d o s de fabricar, c o n s t r u i r e viver. O artesanato perde sua fora telrica e o antigo escravo, que fazia papel de mquina, ingressa de f o r m a tmida em uma nova o r d e m s o cial, habituada s tradicionais injustias e despreparada para isso. " E d i f c i o G u s t a v o C a p a n e m a " o relato da c o r a j o sa aventura de um g r u p o de j o v e n s a r q u i t e t o s , s o b a l i derana do autor, a explicitarem sua f n o s p o s t u l a d o s contemporneos, e a solicitarem e obterem o conselho e a conivncia de Le C o r b u s i e r no r i s c o q u e originaria o p r o j e t o do a n t i g o M i n i s t r i o da E d u c a o e S a d e , h o j e Palcio G u s t a v o Capanema, m a r c o n a a r q u i t e t u r a b r a sileira. S e g u n d o L c i o C o s t a , a a r q u i t e t u r a j a m a i s p a s sou, em espao de t e m p o semelhante, por tamanha transformao. "Addendum u r b a n s t i c o " apresenta a cidade c o m o expresso palpvel da necessidade humana de c o n t a t o e c o municao. A inter-relao cidade/campo e campo/cidade,11
ARQUITETURA
o equilbrio entre quantidade e qualidade da vida individual, atendendo sempre o valor do h o m e m c o m o pessoa,
"Braslia, cidade inventada" ( M e m r i a D e s c r i t i v a )
P o r ocasio do C o n c u r s o Internacional para o P l a n o P i l o t o de Braslia, Lcio C o s t a envia, no dia marcado para o seu encerramento, os d o c u m e n t o s grficos acompanhad o s da M e m r i a Descritiva e uma carta dirigida c o m panhia urbanizadora da nova capital e comisso julgadora do concurso. Desculpa-se pela apresentao sumria do partido sugerido e justifica-se. D i z que no pretende concorrer, mas apenas "desvencilhar-se de uma soluo possvel, que no foi procurada mas surgida, p o r assim dizer, pronta". C o m parece c o m o simples maquisar do urbanismo e a idia, apesar de e s p o n t n e a , f o i d e p o i s i n t e n s a m e n t e pensada e desenvolvida, c o n t i n u a ele. A cidade fora concebida no apenas c o m o urbs, preenc h e n d o as c o n d i e s satisfatrias a um simples o r g a n i s 12
APRESENTAO
mo capaz de atender as diversas f u n e s vitais, mas c o m o civitas, possuidora dos a t r i b u t o s inerentes a uma capital. Para isso, necessrio que o urbanista se ache imbudo de certa dignidade e nobreza de inteno, p o r q u a n t o dessa atitude decorre a ordenao e o senso de convenincia e medida capazes de c o n f e r i r ao c o n j u n t o p r o j e t a d o o desejvel carter m o n u m e n t a l . D i t o isso, L c i o C o s t a m o s t r a c o m o nasceu a s o l u o : do g e s t o p r i m r i o do e n c o n t r o de dois e i x o s , a assinalar a p o s s e de um lugar, ou seja, o p r p r i o sinalda-cruz. Segue-se a seqncia numerada de t o d o o plano p i l o t o . L est ele de corpo inteiro, desde a adequao situao topogrfica, aos princpios da tcnica rodoviria c o m suas implicaes modernas. Os c e n t r o s cvicos e administrativos. O eixo m o n u m e n t a l , a plataforma dos M i nistrios, a Praa dos Trs Poderes, a Catedral, a localizao d o s palcios e p o r fim das unidades de vizinhana as superquadras. T u d o descrito de maneira absolutamente fluida e segura. Lcio C o s t a prope a numerao referida
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ARQUITETURA
ao eixo m o n u m e n t a l , distribuindo a cidade nas vertentes N o r t e e S u l . As quadras seriam assinaladas p o r n m e r o s , os b l o c o s residenciais p o r letras e, p o r l t i m o , o n m e r o do apartamento, da f o r m a usual. H ainda detalhes c o m o o caminho facilitado das instalaes, nas faixas verdes, ao l o n g o das pistas de rolam e n t o . E n f i m , a descrio de uma cidade pronta. Braslia, capital area e rodoviria; cidade-parque. S o n h o arquissecular do patriarca Jos B o n i f c i o , que j p r o punha a transferncia da capital para G o i s nos idos de 1823. No " A p n d i c e " , o m e s t r e n o s adverte q u e o d e s e n v o l v i m e n t o c i e n t f i c o no o p o s t o n a t u r e z a . T r a n s m i t e sua t o t a l c o n f i a n a no i n t e l e c t o e na c o n s c i n c i a do h o m e m , c a p a z e s de e n c o n t r a r a c o m p a t i b i l i d a d e
desse p r e t e n s o a b i s m o . M e s m o n o caos aparente e m que cada g e r a o p o d e mergulhar, p o r e f e i t o d o q u e talvez s e p o s s a c h a m a r " l e i das r e s u l t a n t e s c o n v e r g e n t e s " , novas p e r s p e c t i v a s se a b r e m e t u d o parece de n o v o f cil e c l a r o .14
APRESENTAO
Na " O r i e n t a o para o p r o f e s s o r " , o a u t o r desenvolve, c o m zelo, o que lhe parece fundamental para o m e l h o r desempenho de um magistrio vivo. S o prticas que vo desde a identificao da arquitetura, interao h o m e m / m e i o ambiente e equilbrio e c o l g i c o . P r o p e o estudo comparativo dos diversos t i p o s de comunidade. A c o n s e lha a p r o m o o de debates, anlise de plantas, trabalhos grficos e maquetes, facilitando a percepo das variaes de forma, dimenso e espao. Convida ao c o n h e c i m e n t o das cidades histricas brasileiras atravs de publicaes ou excurses organizadas. P o r fim, L c i o C o s t a encerra o livro c o m um s a b o roso glossrio, em que traduz as palavras estrangeiras e explica as de uso limitado, p o r m to naturais ao seu pensamento que, se substitudas, este perderia sua fora. L c i o C o s t a , a r q u i t e t o , urbanista, humanista, p r o fessor, escritor e poeta. De onde lhe vem tanta fora para expressar a essncia da realidade brasileira? Talvez de sua condio de peregrino, primeiro na infncia e juventude passadas na Europa. Ainda peregrino no e n c o n t r o c o m sua15
ARQUITETURA
ptria, onde, de surpresa em surpresa, lembra-se de c o i sas esquecidas, de coisas jamais sabidas, mas q u e estavam l, em seu corao.
Jorge de Souza H u e Arquiteto e socilogo, amigo e colaborador do mestre Lcio Costa.
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CONCEITUAO
A histria da arte mostra que a arquitetura sempre foi parte integrante fundamental no processo da criao artstica c o m o manifestao normal de vida. Ela engloba, portanto, a prpria histria da arquitetura, constituindo-se, ento, por assim dizer, no "lbum de famlia" da humanidade. atravs dela, atravs das coisas belas que nos ficaram do passado, que podemos refazer, de testemunho em testemunho, os itinerrios percorridos nessa apaxonante caminhada, no na busca do tempo perdido, mas ao encontro do tempo que ficou vivo para sempre porque entranhao na arte. O que caracteriza a obra de arte , precisamente, esta eterna presena na coisa daquela carga de amoree saber que, um dia, a c o n f i g u r o u . I m p o r t a , pois, antes de mais nada, a distino entre essncia e origem, porque nesta diferencia o preliminar reside a chave do e n t e n d i m e n t o do que seja verdadeiramente arte.17
ARQUITETURA
Se indubitvel que a origem da arte interessada, p o i s a sua ocorrncia depende sempre de fatores q u e lhe so alheios o m e i o f s i c o e e c o n m i c o - s o c i a l , a poca, a tcnica utilizada, os recursos disponveis e o programa e s c o l h i d o o u i m p o s t o , no m e n o s verdadeiro que n a sua essncia, naquilo p o r que se distingue de t o d a s as d e mais atividades humanas, manifestao isenta, p o r q u a n to n o s sucessivos processos de escolha a que afinal se reduz a elaborao da obra, escolha indefinidamente renovada e n t r e duas c o r e s , duas t o n a l i d a d e s , duas f o r m a s , d o i s p a r t i d o s igualmente apropriados ao f i m p r o p o s t o , nessa e s c o l h a ltima, ela t o - s arte pela arte intervm e opta. C o n q u a n t o manifestao natural de vida e, c o m o tal, parte integrante e significativa da obra c o n j u n t a elaborada pelo c o r p o social a que pertence, esse carter suigeneris da criao artstica dificulta a sua abordagem pelas s i s t e m a t i z a e s fUocientficas, e a torna, p o r ve2es, refratria aos e n q u a d r a m e n t o s filopartidrios. que, e n q u a n t o a criao cientfica parcela revelada de uma totalidade s e m 1B
CONCE1TUAO
pre maior que se furta s balizas da delimitao i n t e l i g vel, no passando p o r t a n t o o c i e n t i s t a de uma espcie de intermedirio credenciado do h o m e m c o m os demais f e n m e n o s naturais donde o f u n d o de humildade, afetada ou verdadeira, peculiar sua atitude a criao a r t s t i ca, ou melhor, o c o n j u n t o da obra criada p o r um d e t e r m i nado artista, se c o n s t i t u i n u m todo a u t o - s u f i c i e n t e , e ele o p r p r i o artista l e g t i m o criador desse m u n d o parte epessoal, pois no existia antes, e idntico no se refar j a m a i s . D a a vaidade inata, aparente ou velada, inerente personalidade de t o d o artista a u t e n t i c a m e n t e criador. N o cabe indagar, c o m i n t e n e s discriminatrias, "para q u e m o artista trabalha", p o r q u e , a servio de u m a causa ou de algum, p o r ideal ou p o r interesse, ele trabalha sempre apenas, no f u n d o quando verdadeiramente artista p a r a si mesmo, p o i s se alimenta da prpria criat
o, m u i t o embora anseie pelo e s t m u l o da repercusso e do aplauso c o m o pelo ar que respira. A mais tolhida das artes, a arquitetura , antes de mais nada, construo; mas c o n s t r u o concebida c o m o p r o p 19
ARQUITETURA
s i t o primordial de organizar e ordenar o espao para d e terminada finalidade e visando a determinada inteno. E nesse p r o c e s s o f u n d a m e n t a l de organizar, o r d e n a r e expressar-se ela se revela igualmente arte plstica, p o r q u a n t o n o s inumerveis problemas c o m q u e se d e f r o n t a o arquit e t o desde a germinao do p r o j e t o at a concluso e f e t i va da obra, h sempre, para cada caso e s p e c f i c o , certa margem final de o p o entre os limites m x i m o e m n i m o determinados pelo clculo, p r e c o n i z a d o s pela tcnica, condicionados pelo m e i o , reclamados pela f u n o ou i m p o s t o s pelo programa, cabendo e n t o ao sentimento individual do a r q u i t e t o c o m o artista, p o r t a n t o escolher, na escala dos valores c o n t i d o s entre tais l i m i t e s extremos, a forma plstica apropriada a cada p o r m e n o r em funo da unidade ltima da obra idealizada. A inteno plstica que semelhante escolha subentende precisamente o que distingue a arquitetura da simples construo. P o r o u t r o lado a a r q u i t e t u r a depende ainda, n e c e s sariamente, da poca da sua o c o r r n c i a , do meio f s i c o e20
CONCEITUAO
social a q u e p e r t e n c e , da tcnica d e c o r r e n t e d o s materiais empregados e, f i n a l m e n t e , d o s o b j e t i v o s visados e d o s recursos financeiros disponveis para a realizao da obra, ou seja, do programa p r o p o s t o . P o d e - s e e n t o d e f i n i r a a r q u i t e t u r a c o m o construo concebida com o propsito de organizar e ordenarplasticamente o espao e os volumes decorrentes, em funo de uma determinada poca, de um determinado meio, de uma determinada tcnica, de um determinado programa t de uma determinada inteno. Assim, p o r t a n t o , se, p o r um lado, arquitetura no coisa suplementar usada para enriquecer mais ou m e n o s o e d i f c i o , no t a m p o u c o a simples satisfao de i m p o s i e s de o r d e m t c n i c a e f u n c i o n a l . F r u t o de i n t u i o instantnea ou de procura paciente, para q u e seja verdadeiramente arquitetura preciso que, alm de satisfazer rigorosamente e s assim a tais imperativos, uma inteno de outra o r d e m e mais alta acompanhe paripassu o trabalho de criao em t o d a s as suas fases. N o se trata de sobrepor preciso de uma obra tecnicamente p e r f e i ta a dose julgada conveniente dc gosto artstico. Aquela in-
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ARQUITETURA
t e n o deve estar sempre presente desde o i n c i o , selec i o n a n d o , n o s m e n o r e s detalhes, entre duas e t r s s o l u e s possveis e t e c n i c a m e n t e c o r r e t a s , aquela q u e no desafine antes, p e l o c o n t r r i o , m e l h o r c o n t r i b u a , c o m a sua parcela m n i m a , para a intensidade expressiva da obra total. E n q u a n t o s a t i s f a z apenas s exigncias t c n i c a s e funcionais, no ainda arquitetura; quando se perde em i n t e n e s meramente decorativas, t u d o no passa de c e nografia; mas quando popular ou erudita aquele q u e a ideou pra e hesita ante a simples escolha de um espaamento de pilares ou da relao entre a altura e a largura de um vo, e se d e t m na obstinada procura de uma j u s t a medida entre cheios e vazios, na Fixao d o s v o l u m e s e subordinao deles a uma lei, e se d e m o r a a t e n t o ao j o g o dos materiais e a seu valor expressivo, quando t u d o i s t o se vai p o u c o a p o u c o somando em obedincia aos mais severos p r e c e i t o s t c n i c o s e f u n c i o n a i s , mas, t a m b m , quela inteno superior que escolhe, coordena e orienta no s e n t i d o da idia inicial t o d a essa massa c o n f u s a e
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CONCEITUAO
contraditria de pormenores, t r a n s m i t i n d o assim ao c o n j u n t o , r i t m o , expresso, unidade e clareza o q u e c o n fere o b r a o seu carter de p e r m a n n c i a i s t o sim, arquitetura. O u , e m o u t r o s t e r m o s , c o m o lembrete:
arquitetura coisa para ser exposta intemprie; arquitetuta coisa para ser concebida c o m o um t o d o orgnico e funcional; arquitetura coisa para ser pensada, desde o incio, estruturalmente; arquitetura coisa para ser encarada na medida das idias e do corpo do homem; arquitetura coisa para ser sentida em t e r m o s de espao e volume; arquitetura coisa para ser vivida.
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TRADIO
OCIDENTAL
O m i t o e o p o d e r sempre estiveram na o r i g e m das grandes realizaes de sentido arquitetnico. E l e s se c o n substanciam numa ta-fora da qual resulta a inteno que orienta e determina a expresso arquitetnica. A realizao arquitetnica assim a expresso palpvel desse c o n t e do ideolgico no seu mais amplo sentido. C o n s t a t a - s e , p o r m , nesta c o m o que materializao da idia, a p r e s e n a de um c o m p o n e n t e t e l r i c o q u e c o n d i c i o n a e propicia, do p o n t o de vista da c o n c e p o f o r m a l , uma preferncia " i n s t i n t i v a " p o r d e t e r m i n a d o s t i p o s de configurao. Assim, na bacia do M e d i t e r r n e o , t a n t o no sul da Europa q u a n t o no norte da frica, bem c o m o nas reas do O r i e n t e p r x i m o e da M e s o p o t m i a , prevalece, na arquitetura erudita c o m o na popular, o sent i d o da c o e s o plstica, da f o r m a g e o m t r i c a pura, da c o n t e n o ; ao passo que no norte da Europa e n o s pases25
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eslavos e orientais observa-se, pelo c o n t r r i o , c e r t a predisposio plstica de sentido dinmico, ao perfil m s t i c o , elaborado ou c o n v u l s o , disperso, p o d e n d o - s e , p o r t a n t o , considerar dois eixos culturais latentes q u a n t o c o n c e p o p l s t i c a da f o r m a : o e i x o m e s o p o t m i o mediterrneo, prprio da c o n c e p o esttica, e o eixo n r d i c o - o r i e n t a l , que abrange as diferentes modalidades da concepo dinmica. Esse condicionamento inicial, juntamente c o m os d e mais fatores de natureza cultural, racial e histrica envolvidos, faz c o m que a arte de cada civilizao se c o n s t i t u a num t o d o ntegro e a u t n o m o que impede a sua avaliao p o r padres o u t r o s que no os p r p r i o s , no c o m p o r t a n d o , p o r t a n t o , aferio ou j u z o de valor na base de cnones de outra cultura, c o m o , p o r exemplo, os o r i u n d o s da arte greco-latina, dita "clssica", em relao arte das civilizaes orientais ou das culturas africanas. difcil compreender c o m o a civilizao-matriz da nossa cultura ocidental, a civilizao grega, pde m a n t e r apesar da trama p o r vezes perversa, f e r o z e torpe da26
TRADIO
OCIDENTAL
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ARQUITETURA
sua histria c d o s seus m i t o s tamanha integridade e serena constncia na evoluo da sua arte, repetindo d u rante mais de q u a t r o c e n t o s anos os m e s m o s temas, apenas cada vez c o m maior apuro. Assim, q u a n d o passou a c o n s t r u i r os seus t e m p l o s , de preferncia de mrmore, se ateve ao esquema das suas primitivas estruturas de m a deira, ou seja, ao mais singelo dos partidos a r q u i t e t n i c o s possveis: planta retangular, telhado de duas guas c o m f r o n t e s n o s t o p o s , colunas e arquitrave, ou viga-mestra. T u d o sempre na base da c o n t e n o e da verga reta. P o r dispor do m e l h o r calcrio para peas de p o r t e , o grego ignorou acintosamente o arco e esta c o n s t a t a o fundamental. O helenismo rompeu essa c o n t e n o secular e preparou t e r r e n o para o p r e d o m n i o do poder, que passou a " u s a r " o m i t o , quando a n t e r i o r m e n t e o p o d e r derivava do m i t o , cabendo e n t o , e m t e r m o s c o n s t r u t i v o s , s e s t r u turas concebidas na base de arcos e abbadas, traduzir a obsesso romana pelos grandes espaos e pelo m o n u m e n tal. C o m o , p o r m , a inspirao cultural o m o d e l o 28
TRADIO OCIDENTAL
ainda provinha da G r c i a , passaram os a r q u i t e t o s locais, c o m o Vitrvio, a usar os e l e m e n t o s c o n s t r u t i v o s gregos, ou sejam, as suas ordens arquitetnicas drica, jnica, c o r n t a que eram a expresso viva de intenes bem definidas, tais c o m o as de fora, de graa, de riqueza, s quais os prprios romanos acrescentaram as ordens " t o s c a n a " , de sentido utilitrio, e " c o m p s i t a " , para satisfazer o seu g o s t o pela opulncia j no apenas c o m a sua funo estrutural especfica de suporte, mas c o m o e l e m e n t o s complementares de c o m p o s i o arquitetnica entrosados n u m sistema c o n s t r u t i v o de outra natureza. Revestiram assim a nudez sadia d o s seus m o n u m e n t o s c o m uma c r o s t a erudita de colunas e platibandas de mrmore e travertino vestgios de um processo de edificar o p o s t o . E f o r a m precisamente os gregos em B i z n c i o S a n t a S o f i a que aproveitaram, t i r a n d o - l h e t o d o o part i d o da extraordinria beleza a nova tcnica. O d e s m a n t e l o do I m p r i o levou os s a c r o s s a n t o s dogmas acadmicos de roldo e foram ento surgindo, aos p o u c o s , as estruturas de grossas paredes c o m c o n t r a f o r 29
ARQUITETURA
tes para resistir ao e m p u x o dos arcos e abbadas, numa arquitetura severa e c o n t r i t a , c o m denso c o n t e d o espiritual, chamada " r o m n i c a " , que se f o i definindo e apurando n o s g r a n d e s r e d u t o s m o n s t i c o s o n d e o f i o da meada cultural greco-latina se preservou. E isto, at que novas e sbias experincias construtivas conduziram a um arcabouo estrutural externo, independente das paredes de sustentao, e capaz de absorver os e s f o r o s laterais resultantes do alteamento das naves, estilo d i t o ogival ou " g t i c o " , o que t o r n o u possvel a impressionante seqncia das catedrais. C o m a expedio t u r s t i c o - m i l i t a r de C a r l o s V I I I Itlia, seguida pelas de Lus X I I e F r a n c i s c o I, a E u r o p a j ento saturada d o s malabarismos g t i c o s d e s cobriu a clareza racional, as graas do esprito novo e o h u m a n i s m o erudito da Renascena, o c o r r e n d o assim um renovado entusiasmo que, c o m a expansibilidade de um gs e o patrocnio pedante dos cortesos, penetrou t o d o s os r e c a n t o s do m u n d o ocidental, inebriando as c o r t e s e a sociedade culta.30
TRADIO
OCIDENTAL
C o n q u a n t o o R e n a s c i m e n t o tenha adquirido p e c u liaridades diferenciadas n o s vrios pases europeus, o e m prego c o n t i n u a d o do receiturio acadmico f o i , c o m o correr do t e m p o , cansando e provocando c o n t e s t a e s , pois, c o m e f e i t o , desde que os vrios e l e m e n t o s de que se c o m p e cada u m a das o r d e n s gregas as c o l u n a s , o e n t a b l a m e n t o , os f r o n t e s perderam as suas caractersticas funcionais primitivas, i s t o , deixaram de c o n s t i tuir a prpria estrutura do e d i f c i o , nenhuma razo mais justificava o apego intransigente s f r m u l a s c o n v e n c i o nais e vazias de sentido ento em vigor. Se o f r o n t o no era mais t o - s o m e n t e uma empena, a coluna um apoio, a arquitrave uma viga, mas simples f o r m a s plsticas de que os a r q u i t e t o s se serviam para dar expresso e carter s c o n s t r u e s p o r que no encarar de frente a q u e s t o e tratar cada um desses e l e m e n t o s c o m o f o r m a s plsticas a u t n o m a s , criando-se c o m elas relaes espaciais d i f e rentes e garantindo-se assim novo alento de vida ao velho f o r m u l r i o g r e c o - r o m a n o " bout de forces"? E a ento poca da C o n t r a - R e f o r m a e de muita31
ARQUITETURA
c o n s t r u o que surge o chamado " b a r r o c o " , que no f o i uma arte bastarda, c o m o se pretendeu, mas uma nova c o n c e p o espacial e plstica, liberta dos p r e c o n c e i t o s anteriores e que, apesar de aparente irracionalidade, baseouse numa formulao perfeitamente racional. neste ciclo que a nossa arte c o l o n i a l se insere.
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TRADIO
LOCAL
"Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa, a gente como que se encontra, fica contente, feli^ e se lembra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam l dentro de ns."
092-9)A arquitetura regional autntica t e m as suas razes na terra; p r o d u t o espontneo das necessidades e convenincias da e c o n o m i a e do m e i o fsico e social e se desenvolve, c o m tecnologia a um t e m p o incipiente e apurada, feio da ndole e do engenho de cada povo; ao passo que aqui a arquitetura veio j p r o n t a e, e m b o r a beneficiada pela experincia anterior africana e oriental do c o l o n i z a dor, teve de ser adaptada c o m o roupa feita, ou de m e i a c o n f e c o , ao c o r p o da nova terra. vista desta constatao fundamental, i m p o r t a p o i s conhecer, antes de mais nada, a arquitetura regional p o r 33
ARQUITETURA
tuguesa no p r p r i o b e r o , porque na c o n s t r u o p o p u lar de aspecto viril e m e i o rude, mas acolhedor, das suas aldeias que as qualidades da raa se m o s t r a m melhor, perc e b e n d o - s e , desde l o g o , no a c e r t o das p r o p o r e s e na ausncia de a r t i f c i o s , uma sade plstica perfeita, se q u e se pode dizer assim. Constata-se, de sada, nessa volta s origens, acentuada diferena entre a arquitetura do norte e a do sul. Da Beira Baixa, ou cintura do pas, para cima prevalece o contraste da pedra c o m a caiao, c o m o no Entre D o u r o e M i n h o , seno mesmo o emprego exclusivo do granito em grandes blocos toscos ou aparelhados c o m o ocorre na Beira Alta e em Trso s - M o n t e s ; o ponto, ou seja, a inclinao dos telhados de tacania quatro guas , geralmente amortecido graas ao recurso do chamado "contrafeito", que pequeno caibro complementar destinado precisamente a adoar o p o n t o e a dar maior graa ao telhado na aproximao dos beirais. Na Estremadura, Lisboa e Ericeira, por exemplo, essa graciosa concavidade das coberturas, tipicamente portuguesa possivelmente por simbiose oriental, pois no existe em nenhum outro pas mediterrneo , se acentua, j ento34
TRADIO
LOCAL
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ARQUITETURA
associada ao predomnio da caiao; mas no Alentejo, onde as construes so de taipa ou tijolo e domina inconteste uma impecvel brancura, os telhados so de uma s gua, desempenados e retos, e avultam as grandes chamins retangulares, com arranque oblquo na prumada das fachadas s o bre a rua por onde se acede intimidade dos pequenos ptios murados; finalmente no Algarve extremo sul surgem os terraos ou soteias, e as chamins circulares c o m os seus caprichosos coroamentos amouriscados. Era de onde eles vinham, para a grande aventura inc o n s c i e n t e de c o m e a r a fazer um novo pas. Cada mestre, oficial ou a p r e n d i z p e d r e i r o , taipeiro, carpinteiro, alvanu trazia c o n s i g o a lembrana da sua provncia e a experincia do seu o f c i o , da a simultnea adoo, l o g o de incio, das diferenciadas feies a r q u i t e t n i c a s prprias de cada m o d o de c o n s t r u i r : a taipa de pilo, a taipa de sebe, ou de m o pau-a-pique , o adobe, a alvenaria de t i j o l o , a pedra e cal. S e m embargo dessa variada aplicao de p r o c e s s o s c o n s t r u t i v o s n o s dois primeiros sculos, c o m o t e m p o e as circunstncias locais a preferncia p o r uma determina36
TRADIO
LOCAI
da tcnica se f o i definindo; a taipa de pilo, e n c o n t r a n d o terreno propcio, fixou-se principalmente em S o Paulo; a alvenaria de t i j o l o floresceu mais em Pernambuco e na Bahia; nas terras acidentadas de M i n a s , o n d e os c a m i n h o s acompanhavam as cumeadas, c o m as casas despencando pelas e n c o s t a s , o pau-a-pique sobre baldrames de pedra f o i a soluo natural; j no R i o de Janeiro, a fartura de g r a n i t o m a r c o u a perspectiva urbana c o m a seqncia r i t m a d a das o m b r e i r a s e vergas de pedra s u p o r t e e arquitrave , p r i n c p i o c o n s t r u t i v o d a G r c i a antiga, Se o negro, mais dcil e servil na sua condio de escravo, pde colaborar c o m o colono, inclusive no aprendizado dos ofcios, j o ndio, habituado a um estilo de vida diferente, que lhe permitia vagares na confeco limpa e cuidada de armas, utenslios e enfeites, estranhou, c o m certeza, a grosseira maneira de fazer dos brancos apressados e impacientes, A identificao c o m o indgena restringiu-se ao " p r o grama" dos abrigos iniciais guisa de casas grandes e s paos cobertos nas feteorias ou ranchos, c o m o nos " m o n t e s " do Alentejo onde acolher as levas de c o l o n o s trazidos pelas frotas. Por seu tamanho, esses telhades pouco afasta37
ARQUITETURA
dos do cho, c o m o nos prprios engenhos, rompiam c o m a tradio metropolitana que consistia em d e c o m p o r a cobertura das edificaes de maior porte em telhados m e nores , aproximando assim tais estruturas, p o r sua p u reza f o r m a l e p r o p o r e s , das o c a s m o n u m e n t a i s d o s nativos, tanto mais que eram implantadas em clareiras, c o m o o terreiro das malocas, uma vez que o inimigo bicho ou ndio vinha da mata. que houve uma curiosa c o i n c i dncia gerada pela presena do f o c o de calor, o f o g o o foyer. O transmontano e o indgena procediam de m o d o semelhante para manter a casa toda aquecida c o m o aproveit a m e n t o do prprio f o g o da cozinha e da defumadura, deixando simplesmente a fumaa escapar pela telha-v ou p o r e n g e n h o s o dispositivo na cumeeira das ocas. D a a paradoxal contradio observada em Portugal da ausncia de chamins nas reas frias do norte e a presena ostensiva delas no sul, onde o calor concentra-se apenas na lareira para que no se espraie pelo resto da casa. De f a t o , ao entrar no pas certa vez p o r Bragana d i visei do a l t o da serra ao crepsculo, no f u n d o do vale, os telhados do casario a fumegar, associando e n t o a tal c o s 38
TRADIO LOCAL
tu me a ausncia de puxados ou cozinhas n o s exemplares mais puros das casas s e i s c e n t i s t a s preservadas em S o Paulo, cuja planta retangular e simtrica dispe de um salo central de cho de terra batida e telha-v e de duas varandas e m b u t i d a s no c o r p o da casa c o m o as loggias paladianas; a dos fundos, caseira e de servio, a da f r e n t e , social e de receber, tendo n u m extremo a capela e no o u t r o uma camarinha, sem acesso ao c o r p o da casa, para p o u s o eventual de viajantes. No a l t o salo ficava a c o m prida mesa de pranches c o m seus bancos; a, nesse gran-
RANCHO OE FEITOR IA
MONTfc ALeNTEJAftO39
ARQUITETURA
de bali medieval, c o m f o g o sempre aceso no inverno, que armavam as t r e m p e s e assavam a rs ou a caa do dia. interessante assinalar que esse esquema f o i o e m brio da casa rural brasileira. E no s a rural c o m o t a m b m a de arrabalde, at fins do s c u l o X I X apenas acrescida do puxado de servio; sala de j a n t a r aos f u n d o s dando para a varanda domstica e o quintal, e sala da frente c o m varanda ou terrao de receber; as duas articuladas p o r e x t e n s o corredor, c o m q u a r t o s de u m a banda e de outra, o que garantia, no vero, boa tiragem. Assim, pois, de c e r t o m o d o , t u d o se e n t r o s a a oca indgena, a casa t r a n s m o n t a n a , a casa chamada do bandeirante, a casa de f a z e n da, a casa de arrabalde, a casa urbana de bairro. H certa tendncia a considerar " i m i t a e s " de obras reinis as obras e peas realizadas na colnia. Na verdade, porm, so obras to legtimas quanto as de l, p o r q u a n t o 0 colono, par roit de eonqute, estava em casa, e o que fazia de1
semelhante ou j diferenciado era o que lhe apetecia fazer assim c o m o ao falar portugus no estava a imitar ningum, seno a falar, c o m sotaque ou no, a prpria lngua.1
Por direito de conquista.
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ANOTAES
AO
CORRER
DA
LEMBRANA
I Tanto a taipa de p i l o b a r r o socado entre taipais de madeira quanto a de sebe, ou pau-a-pique trama de madeira barreada a m o e x i g e m proteo contra a cortina de gua despejada dos telhados, da a necessidade dos grandes beirais que no visavam primordialmente defender do sol, mas da chuva, tanto assim que nos pases onde o sol tambm muito mas a chuva escassa, eles, quando existem, se reduzem muitas vezes ao simples saque da telha. E c o m o a parede espessa de barro requer duplojrecfca/ barrote que recebe o madeiramento do telhado um em cada face, resultou no somente que os caibros apoiados neles para suporte do beirai, chamados "cachorros", ficaram de nvel, c o m o tambm que o maior comprimento do " c o n t r a f e i t o " transferiu a quebra do telhado, e seu conseqente galbo, mais para cima, de m o d o que, mesmo a distncia, pode-se identificar a estrutura da casa c o m o de taipa de pilo.41
ARQUITETURA
J no pau-a-pique o cachorro t e m ligeira inclinao porque apenas travado, internamente, p o r um pau rolio i n t e r p o s t o entre ele e o caibro, aos quais vem se a j u s tar a cornija sanqueada que delimita o e n c o n t r o do f o r r o do c m o d o c o m a parede. O arcabouo t o d o de madeira e independe dessas paredes que so m e r o e n c h i m e n t o c o m o ocorre hoje c o m o concreto armado, e a casa se apoia n o s p r p r i o s esteios, o u p i l o t i s . E s t e processo construtivo foi intensivamente empregado em grande parte do estado do R i o e em Minas, t a n t o c o m esmerado apuro em casas de fazenda e urbanas Diamantina, p o r exemplo, toda de pau-a-pique , c o m o na sua forma mais rudimentar, na casa do pobre. Ainda agora s andar pelo interior que elas logo surgem ao l o n g o das estradas. Feitas c o m pau do m a t o p r x i m o e da terra do cho, mal barreadas, c o m o casas de bicho, do abrigo a toda a famlia crianas de colo, garotos, meninas, os velhos,42
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tudo de mistura e c o m aquele ar doente e parado, esperando... E ningum liga de to habituado que est, pois aquilo faz parte da terra c o m o formigueiro, fgueira-brava e p de m i l h o o cho que continua.
2 As construes integralmente de alvenaria de t i .jolo, ensejando arcos, c o m o a casa-grande de Megajipe, em Pernambuco criminosamente destruda , e abbadas, c o m o na parte quinhentista da chamada Casa da Torre de Garcia d'vila, em Tatuap, na Bahia, seriam, ao que parece, menos freqentes. O mais c o m u m era fazer-se apenas a fachada de alvenaria macia; no corpo da casa a carga concentrava-se em robustos pilares, c o m as paredes montadas sobre o prprio barroteamento. As telhas do beirai assentavam sobre cornijas "ameaadas" c o m t i j o l o e revestidas c o m perftlatura de massa corrida, ou sobre fiadas da mesma telha altemadamente acavaladas m o u r s c a b e i r a , sobeira e bica. Q u a n t o ao adobe, ou tijolo cozido ao sol, c o n q u a n t o mais usado em M a t o G r o s s o e Gois, t a m b m foi c o m u m em outras reas c o m o o comprova o grande sobrado dos Ta na jura, na Bahia, c o m capela interna, janelas rasgadas, ou43
ARQUITETURA
seja, c o m g u a r d a - c o r p o de madeira entalado no vo, e pranches, ou padieiras, guisa de verga chanfrada para cima e que se diz "capialada", c o m o na taipa de pilo. A parte monumental, seiscentista, das runas da referida Casa da Torre, prxima da praia, pouco acima de Salvador, mostra c o m clareza a tcnica construtiva da alvenaria de pedra e cal e cantaria. Alm da seqncia de arcos no rs-docho e dos enquadramentos dos vos c o m os respectivos assentos laterais, ou conversadeiras, l esto, nos dois andares do corpo central destelhado, os renques de consolos ou ces de p e d r a e n g a s t a d o s nas paredes ao nvel de cada piso, p r o n t o s para receber as madres que sustentavam os barrotes onde se apoiaria o tabuado do pavimento. Tudo preparado para os pedreiros e canteiros cederem a vez aos mestres-carp inteiros e seus oficiais, cada qual cuidando exemplar e limpamente, no devido tempo, da sua tarefa.
3 E expressivo o contraste, que ainda perdura, assinalado nas preciosas pranchas da Viagem Filosfica de Alexandre Rodrigues Ferreira, entre o leve casario de duas guas c o m empenas vazadas e vedao arejada de folhas tranadas44
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de palmeira vedao que respira , sobre palafitas margem dos rios, e o pesado casario de cunhais em bossagem, cornijas, faixas, cordes de estuque e elegantes sacadas de ferro com desenhos francesa, da escola acadmica de Landi, o bolonhs. Portadas e caladas de pedra de lioz, trazidas como lastro, so comuns em todo o litoral, mas no tanto quanto em Belm do Par por estar mais ao alcance da metrpole. A identificao desse belo calcrio marmreo c o m o pedra de lioz_ resultou da expresso "pierre de liais" usada pelos escultores franceses que, c o m o Chanterenne, tanto f i z e r a m pelo apuro da arte quinhentista portuguesa, para designar o calcrio duro e compacto, porm macio ao corte a que estavam afeitos no seu pas, e c o m o na poca o fonema " a i s " ainda se escrevia "oys", a leitura das especificaes pelos portugueses consagrou a pedra c o m o lioz.
4 C o n q u a n t o o casario de S o Lus seja mais c o nhecido pela azulejaria otocentista que lhe reveste as fachadas, o fundo menosprezado das casas, revelado ao antigo SPHAN2
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pela documentao fotogrfica trazida por um
S P H A N Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional hoje. I P H A N .
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ARQUITETURA
estudante francs das Beaux Arts, chamado Kiss, que foi at l de caminho pedindo carona embora j em grande parte desmantelado , tem para o arquiteto de hoje grande valor, uma lio. Contrastando c o m o denso paramento das fachadas sobre a rua, regularmente cortadas pela seqncia de vos, e rematadas por elegantes beirais, elas se abrem, rasgadas de fora a fora, apoiadas em pilares no quintal, ou em balano, formando um avarandado trama contnua de venezianas, trelias ou caixilharia protegido por enormes
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C O R R E R DA LEMBRANA
beirais e sobreposto estrutura macia da casa. E para a que convergem, na forma usual, a sala de jantar, o servio e a parte comunitria mais ntima da vida caseira.
O u t r a particularidade exclusiva do M a r a n h o a superposio da concavidade de duas telhas a fim de aum e n t a r o balano da chamada bica do beirai, e n g e n h o s o artifcio que em Portugal t a m b m s ocorre numa regio a de S e t b a l .
5 F o i o engenheiro francs Vauthier, desencavado p o r G i l b e r t o Freyre que, descrevendo os estreitos e altos
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ARQUITETURA
sobrados do R e c i f e de ngremes telhados retos, c u j o e n c a i b r a m e n t o era simplesmente apoiado em possantes teras entaladas entre o s o i t e s , revelou o c u r i o s o c o s t u m e de localizar a sala de jantar no l t i m o p i s o da casa, j u n t a m e n t e c o m o servio que t a m b m ocupava o s t o , onde moravam as mucamas, ficando os escravos e casais n o s baixos da edificao ou na senzala, n o s f u n d o s do quintal, j u n t a m e n t e c o m a cocheira. Havia passagem de servio acessvel pela entrada, c o n q u a n t o fosse vedado c o m porta vazada o acesso aos andares pela escada d i s posta c o m o devido recuo e atravessada em relao ao l o t e para dar lugar loja e s salas de cima, de f r e n t e para a rua. N o havendo c o m r c i o , formava-se o saguo c o m patamar de convite para o lano de altos degraus resguardad o s p o r trelia ou r e c o r t e s de madeira, seno de t o d o escondidos; nesse saguo ficava eventualmente a cadeirinha, t u d o na f o r m a usual, c o m o em M i n a s , no R i o e alhur e s . A s s i m , o e s c r i t r i o , as salas de r e c e b e r e o u t r o s a p o s e n t o s ocupavam o primeiro andar, e os demais quart o s e alcovas o piso intermedirio. C o n s t r u e s geralmente
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feitas c o m alvenaria de tijolo. O maior apego p o r esse m a terial fabricado em vrios tamanhos e sempre da melhor qualidade, embora o seu emprego fosse c o m u m em P o r t u gal, m o r m e n t e no sul, deveu-se, sem dvida, ao prolongado convvio c o m o "flamengo", c o m o ento se dizia. O u t r a caracterstica desses sobrados de Recife e Olinda so os robustos consolos de pedra para apoio do piso de tbuas das sacadas c o m painis de almofadas e trelia onde assentavam as caixas dos muxarabies, ou muxarabis, e, vez p o r outra, os pontaletes de sustentao de uma coberta alpendrada, havendo ento encaixes, rente parede e tambm de pedra, d i s p o s t o s lateralmente na altura das vergas, para receber o devido frechal. Ao contrrio do que ocorre em Pernambuco, na Paraba o piso da sacada sempre de pedra c o m perfllatura n o s bordos, o que confere ao c o n j u n t o aparncia diferente, mais pesada. Essas caixas sacadas ou rasas, i s t o , s i m p l e s m e n t e s o b r e p o s t a s a o e n q u a d r a m e n t o d o s vos, d e t r a d i o m u u l m a n a , que p e r m i t e m resguardo sem p r e j u z o da ventilao, foram usadas em toda a colnia, sobretudo nas49
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ruelas estreitas o n d e os c m o d o s se devassavam. F o t o grafias d e 1 8 6 0 m o s t r a m que eram c o m u n s e m S o P a u l o , j u n t a m e n t e c o m os grandes beirais de nvel e forrados. C o m a vinda da c o r t e , esse c o s t u m e que c o n f e r i a cidade c e r t o ar oriental c h o c o u os fidalgos e elas f o r a m o b r i g a t o r i a m e n t e arrancadas e substitudas p o r venezianas e vidraas de guilhotina ou de abrir " francesa", surg i n d o ento, no R i o , principalmente, as graciosas sacadas de ferro dispondo nos cantos de barras verticais espiraladast para pendurar luminrias. Assim, essas reixas de madeira f o r a m s u m i n d o , e dos s i m p t i c o s muxarabis avulsos de encaixar nas sacadas sobrou apenas um, em t o d o o pas o de D i a m a n t i n a .
6 A cidade de Salvador do sculo X V I I e p r i m e i ra metade de s e t e c e n t o s , quando ainda sede do G o v e r n o Geral, era uma cidade marcadamente aristocrtica, de uma aristocracia a um t e m p o rural e urbana, de s e n h o r e s e escravos; e a arquitetura de suas grandes casas, de p o r t e severo e nobre, onde avultam belas portadas e l e n o s de50
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pedra, quer dizer, peitoris inteirios de cantaria, no teve paralelo no pas, salvo a i m p o n e n t e casa chamada " d o s C o n t o s " , em O u r o P r e t o , c o m o seu senhorial saguo t i picamente portugus. E s t e carter p r p r i o e inconfundvel, e m b o r a ainda acentuadamente lusitano, foi aos poucos se diluindo, minado p o r uma crescente burguesia m e n o s c o m p r o m e tida c o m os antigos dogmas e valores, e pela miscigenao. Assim, passo a passo, aquela solidez, aquela carrure foi se perdendo e a graa e o dengue c r i o u l o se f o r a m insinuando na feio arquitetnica das casas, no s o m e n t e em Salvador, c o m o em Cachoeira, principalmente: os vos se alteiam e os seus enquadramentos enfeitados so d e cepados no e n c o n t r o das tbuas extravasadas d o s p e i t o ris, c o m simples palmetas de remate, caracterstica esta exclusivamente baiana que plasticamente os enfraquece; os c o r d e s das caixilharias se entrecruzam em c a p r i c h o sos e alegres arranjos e a c o r intervm. T u d o i s t o c o n t r i b u i para dar cidade a sua graa, e c o n q u a n t o a presena sbria e aristocrtica da casa, de51
ARQUITETURA
c o m e o de setecentos, que sobreviveu c o m as suas sacadas de ferro batido, sua rica portada e seteiras, possa parecer, primeira vista, m e i o contrafeita, precisamente esse variado e c o n s e n t i d o convvio esta simultaneidade que atrai e seduz e faz da Bahia o que ela .
7 Na regio do R i o de Janeiro floresceu o termo bem este uma arquitetura rural alpendrada c o m colunas toscanas moda do M i n h o , mas t u d o caiado de branco maneira da Estremadura, de que a casa de fazenda do Coluband c o m a sua importante capela anexa, cuja imagem de Sant'Anna consta do Santurio Mariano, , sem favor, o mais gracioso e puro exemplar. D e b r e t dedica a prancha 42 do seu precioso d o c u m e n t r i o a esse e s tilo de casa tpico da regio, c o n f r o n t a n d o a sua planta c o m o esquema da casa romana operistilo, o impluviutn. otricltntOy
ou sala de jantar, aos fundos, c o m o f i c o u na n o s -
sa tradio. E x i s t e algo semelhante em outras reas do pas, mas no c o m o m e s m o apuro e constncia, e geralm e n t e so casas c o m o avarandado t o d o volta, c o m o no
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ANOTAES AO C O R R E R DA LEMBRANA
Cear, p o r exemplo, e de c o n s t r u o mais simples: f u s t e s cilndricos praticamente sem base n e m capitei, e encaib r a m e n t o apertado, de pau rolo, j u s t o o necessrio para receber de cada vez uma fiada apenas de telha-v. No c a m i n h o da serra, as a n t i g a s e b e l a s f a z e n d a s da S a m a m b a i a , do Padre C o r r e i a e de S a n t o A n t n i o j t m o s s u p o r t e s das varandas d e m a d e i r a , d e s e o quadrada, c o m o b i s e l nas arestas l i m i t a d o p a r t e c o r r e s p o n d e n t e ao f u s t e , ainda c o n f o r m e a velha t r a d i o medieval; e em M i n a s , e n t o , prevalece d e f i n i t i v a , t a n t o nas p e q u e n a s c o m o nas g r a n d e s f a z e n d a s , u m a a p u rada t c n i c a de p a u - a - p i q u e , c o m a p a r t i c u l a r i d a d e d e , m a n t i d a s a s tacanias n o s t o p o s d o t e l h a d o , d e s c e r c o m as guas m a i o r e s a fim de c o b r i r o l a n o das varandas f r e n t e e a o s f u n d o s , o n d e e s t o as escadas de a c e s s o . M e s m o p e r t o de Braslia ainda existe a robusta c o n s t r u o da casa c o m e n g e n h o q u e f o i de J o a q u i m Alves de Oliveira h o j e conhecida c o m o Babilnia , louvada p o r S a i n t - H i l a i r e pela sua exemplar organizao, e, at m e s m o para os lados da Chapada dos Guimares, em M a t o53
ARQUITETURA
G r o s s o , a rstica fazenda do A b r i l o n g o t a m b m c o m e n g e n h o i n c o r p o r a d o casa. C u r i o s o que e m b o r a a i m p o r t a n t e fazenda de Paud'Alho, no vale do Paraba, ainda o s t e n t e a sua varanda recuperada p o r L u i z Saia, em toda a rea p a u l i s t o - f l u m i nense no chamado c i c l o do caf, os ca saro es rurais passar a m a i g n o r a r a t r a d i o das varandas, p r e f e r i n d o os renques c o n t n u o s de janelas, apenas i n t e r r o m p i d o s pelo pequeno terrao central de acesso e pela escada de pedra, c o m guarda-corpo de ferro se abrindo em leque. Conquanto nas grandes fazendas a implantao das casas c o m os seus engenhos, terreiros, oficinas e senzalas variasse m u i t o e sobraram exemplares de alto significado arquitet n i c o c o m o , alm da referida Pau-d'Alho e da opulenta fazenda do Resgate, a do R i o de S o Joo, a do Manso e a de Boa Esperana, em Minas, a do P o o Comprido, em Pernambuco, os dois chamados stios de S a n t o Antnio e do Padre Incio em So Paulo, e tantas m a i s , o seu arcabouo estrutural, mormente n o s casos de construes de pau-apique ou de pilares autnomos de alvenaria, obedecia ao es54
ANOTAES AO CORRER DA LEMBRANA
quema de crescimento retangular em t o r n o de um niicleo central, servindo os esteios intermedirios de apoio ao a m plo telhado, independentemente do emprego da clssica t e soura ento ainda desconhecida dos colonos, uma vez que o seu uso processou-se lentamente depois de estreada na igreja jesuta de S o R o q u e , em Lisboa. O u t r a caracterstica marcante da arquitetura rural a c o n s t a n t e presena da capela, seja incorporada casa, c o m vo de trelia para pea contgua, a f i m de a famlia p o d e r assistir missa na intimidade, e n q u a n t o os " o u t r o s " , inclusive os escravos, dispunham da varanda, c o m o nave, ou e n t o desgarrada, algumas de grande p o r t e , o u tras c o m r i q u s s i m a talha, c o m o a d o E n g e n h o B o n i t o , em P e r n a m b u c o , a casa se f o i , a capela f i c o u .
8 O revestimento d e azulejos nas fachadas das casas, caracterstica do sculo X I X , ocorreu em toda a faixa l i t o rnea em M i n a s no h exemplo de Belm e de S o Lus, onde foi mais freqente, a Porto Alegre, onde foi mais elaborado, c o m azulejos especiais para pilastras e capiteis.55
ARQUITETURA
N o R i o d e Janeiro foram c o m u n s s i m o s j u n t a m e n t e c o m vasos e estatuetas no c o r o a m e n t o das platibandas e telhes esmaltados, de fundo azul ou branco, nos beirais. C o n q u a n to procedentes na sua maioria da fbrica de S a n t o A n t nio, no Porto, l so rarssimos, isto porque a cidade j estava pronta vinha tudo para c. , alis, interessante assinalar o importante papel dessa cermica no processo de assimilao do neoclssico no pas. Imposto pela misso francesa, embora prenunciado p o r arquitetos reinis um deles, consultado vista do risco da "obra j feita at a empena", sobre o m o d o c o m o remat-la risco bisonho mas gracioso da igreja do Carmo de S o Joo dei Rei, conservado n o Museu d e O u r o Preto , foi taxativo: s demolindo tudo para refazer de acordo c o m as regras. E que o despojamento e a contida sobriedade do novo estilo haviam violentado, de certo modo, os laivos remanescentes do gosto rococ do perodo anterior. Assim, o brilho e a c o r do revestimento azulejado dos panos nus de parede, das platibandas e frontes das eruditas e severas fachadas neoclssicas contriburam para amenizar-lhes o impacto do
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confronto c o m os telhes de loua dos beirais renascidos e para integr-los tanto na paisagem urbana quanto na dos arrabaldes, onde passaram a conviver muito bem c o m as mangueiras, a jaqueira e o p de fruta-po.
9 Sacadas sobre bacias de pedra nas c o n s t r u e s de alvenaria, ou sobre barrotes em balano nas de pau-apique, b e m c o m o balces corridos, f o r a m c o m u n s , p r i meiramente protegidos p o r f o r t e guarda-corpo de ferro f o r j a d o , c o m a caracterstica portuguesa de dispor uma barra h o r i z o n t a l a um t e r o da altura da sacada, levandose apenas as peas verticais extremas e uma ou duas intermedirias at a barra de p e i t o . Essa disposio peculiar se repete nas sacadas c o m balastres de madeira torneada, soluo corrente e m O u r o P r e t o , p o r exemplo. Sacadas, c o m o a de Sabar, c o m elegantes balastres de perfil sim t r i c o de g o s t o ainda renascentista, de uso to general i z a d o n o n o r t e d e P o r t u g a l , so raras a q u i . E m S o Cristvo, antiga capital de Sergipe, rica em obras de arte, h dois exemplos valiosos, um de sacadas isoladas c o m
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ARQUITETURA
robusta e b e m desenhada perfilatura, o u t r o c o m balco c o r r i d o , de madeira entalhada e risco apuradssimo. As reixas gradas de madeira e os c a p r i c h o s o s recortes, e n talados n o s vos, so t a m b m c o m u n s . D u r a n t e o I m p rio multiplicaram-se as sacadas de barras finas de f e r r o de elaborado e repetido d e s e n h o , at que as grades de f e r r o f u n d i d o , iniciadas p e l o s a r t f i c e s d a M i s s o L e b r e t o n , c o m moldes clssicos, passaram a prevalecer mas j ento c o m densos m o d e l o s de estilo indefinido.
10 N a s casas mais antigas, presumivelmente nas dos fins do sculo X V I e durante t o d o o sculo seguinte, predominavam os cheios na relao dos vos c o m as paredes; medida, porm, que a vida se tornava mais fcil e policiada, o nmero de janelas ia aumentando; j no sculo X V I I I , cheios e vazios se equilibram, e no c o m e o do scul o X I X , predominam francamente o s vos; d e 1 8 5 0 e m diante as ombreiras quase se tocam, at que a fachada, no final do sculo, se apresenta praticamente toda aberta, tend o o s vos m u i t a s vezes o m b r e i r a c o m u m . C o n t u d o ,
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caixilharia inteira, de fora a fora e de a l t o a baixo, c o m o ocorre na bela frontaria to atual da Misericrdia de Parati, coisa rara. Cronologicamente, a proporo d o s vos t e n de a se altear, as vergas mantm-se retas at meados de set e c e n t o s , quando passam a ser arqueadas e acrescidas de cornija. N o c o m e o d o sculo X I X , j p o r influncia d o neoclassicismo, voltam a ser retas c o m enquadramento l i geiramente mais leve, e surgem os vos de volta redonda, ou seja, de meio crculo. ento que as bandeiras ou a parte superior dos caixilhos passam a se enfeitar c o m elegantes e caprichosos desenhos, o que confere arquitetura do S e gundo Reinado um encanto m u i t o especial. No Mapa Arquitetural do Rio de Janeiro dessa poca, elaborado p o r J o o da R o c h a Fragoso, o c e n t r o da cidade de repente ressurge, figurado de corpo inteiro c o m as suas fachadas perfiladas o m b r o a o m b r o , casa p o r casa, rua p o r rua, a n o s revelar a unidade arquitetnica e urbanstica que para sempre se perdeu. D a t a d o de 1&74, sete anos antes do seu autor perder a razo em 1 8 8 l f o i "julgado s o frer de alienao mental incurvel" , esse precioso d o c u 59
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mentrio iconogrfico mostra c o m imorredoura preciso c o m o era ento a cidade, dando assim sobrevivncia e uma razo maior, imprevista, sua prpria vida.
II O aqueduto d o s arcos dominava a paisagem urbana, levando l e n t a m e n t e no seu d o r s o as guas do rio C a r i o c a at alcanar o gracioso chafariz barroco fielmente " r e t r a t a d o " , p o r T h o m a s Ender, esse admirvel e b e n e m r i t o d o c u m e n t a d o r do R i o de J a n e i r o e das demais regies p o r onde andou. F o i m u i t o desigual o tratamento dado aos chafarizes, ou bicas, nas cidades coloniais. Se em S o Lus, no M a ranho, o seu adro rebaixado serve agora para demonstra e s de B u m b a - m e u - B o i , e em G o i s Velho o imponente chafariz da praa triangular em aclive ainda funciona; se no R i o eles foram vrios, alguns arquitetonicamente valiosos, c o m o o do antigo Largo do Pao, onde moda portuguesa o granito se associou ao calcrio de lioz, tal c o m o t a m b m ocorreu no porto do Passeio Pblico e na igreja da Santa C r u z dos Militares, obras onde mestre V i l e n t i m deixou a60
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sua marca, em cidades importantes c o m o Salvador, Recife, Olinda etc. foram de certo m o d o menosprezados, ao c o n trrio do que sucedeu em Minas Gerais, onde avultam, principalmente na antiga Vila R i c a , e por sua variedade e beleza contribuem, juntamente c o m as pontes, para tornar a cidade mais humana e acolhedora. Desde o da Casa dos C o n t o s , que impressiona por sua desenvoltura plstica e robustez, ao pitoresco chafariz do Largo de Marlia que, num pseudo-restauro simplista, chegou a sofrer a sumria amputao do seu delicado coroamento, apenas porque era de massa e no de pedra. Mutilao depois c o m p e t e n t e mente "reimplantada" pelo antigo Sphan, na base de d o c u mentao fotogrfica, graas a outro austraco de nascena, c o m o Ender, o escultor Max Grossman, h o m e m discreto, calado e b o m : proibido pelo mdico de nadar por ter sofrido enfarte, salvou uma moa que, sozinha, se afogava na praia de Copacabana e, em seguida, morreu.
12 A i n d a que os grandes senhores de engenho dispusessem, desde o primeiro sculo, de ricas alfaias vindas61
ARQUITETURA
da metrpole e do O r i e n t e , c o n f o r m e constatou Cardim, na maioria das casas o mobilirio era de incio sbrio: alm de pequeno oratrio c o m o santo de confiana, camas, cadeiras, bancos, mesas e arcas; arcas e bas ou caixes, c o m o ento se dizia, para ter onde meter a tralha toda, E isto no s porque as modas da corte chegavam aqui c o m m u i t o atraso e se infiltravam pela vastido do territrio da c o l nia ainda com maior lentido, mas tambm porque no havia nenhum interesse particular que estimulasse e justificasse a adoo apressada de formas novas em substituio de o u tras j consagradas, quando a maneira de viver e t o d o o quadro social continuavam no somente inalterados, mas sem perspectivas prximas de alterao. E tanto mais que o clima, geralmente quente, o uso das redes e o costume nativo e oriental de sentar sobre esteira ou tapete no cho no estimulavam o aconchego dos interiores, nem os arranjos suprfluos ou de aparato. Contudo, as peas em si eram trabalhadas com gosto e o devido apuro, no s porque a tradio do ofcio era fazlas assim, c o m o porque os oficiais e seus ajudantes eram,62
anotaes
ao
correr
da
lembrana
muitas vezes, gente da casa, escravos, cujos dotes naturais, em boa hora revelados, a convenincia do senhor havia sabido aproveitar. Trabalhando sem pressa nem possibilidade de lucro, o prazer defazer bem-feito era tudo que importava: isto ao menos era deles o dono no podia tirar. C o m o correr do t e m p o os m o d i s m o s importados, correspondentes s mudanas de g o s t o e de estilo peculiares a cada reinado D. Pedro II, D. J o o V D. J o s , D o n a Maria , foram adquirindo feio prpria local, diferenciada, o que permite aos entendidos identific-las c o m o procedentes de G o i s , de Minas, da Bahia, do N o r t e ou do Sul. A esse p r o p s i t o preciso acabar c o m o t o l o c o s tume de chamar de "holandesas" mesas tipicamente l u s o mineiras, devidas ao afluxo de sangue novo da m e t r p o l e de Guimares e de outros t e r m o s atrado pela grande procura de carpinteiros e marceneiros nas terras de M i n a s , n o chamado C i c l o d o O u r o .
13 As casas de cmara e cadeia, da mnima de Pilar de G o i s , mais opulenta da antiga Vila R i c a e mais63
arquitetura
bela e genuinamente portuguesa, de Mariana, obedeciam ao o d i o s o c o s t u m e lusitano de assentar sem rodeios o p o d e r sobre a cadeia embaixo, no trreo, c o m vos f o r t e m e n t e gradeados e paredes, pisos e f o r r o s reforados, os presos; em cima, no andar, os senhores c o n s e l h e i ros. M a s c o m o toda medalha t e m seu reverso, o sistema o f e r e c i a c e r t a s vantagens c o m o a c o n t n u a cincia das autoridades pelo que ocorresse, e a acessibilidade aos p r e sos, atravs das grades, da famlia ou de quem passasse: um bilhete, um d o c e , um olhar uma flor.
14 Foram numerosas as fortificaes ao longo do litoral, mas nenhuma do porte espetacular de Macap, na f o z do Amazonas, ou impressionante c o m o , no interior, o F o r t e Prncipe da Beira, na Rondnia, margem do G u a por, ou, ainda, da pureza formal do S o M a r c e l o , na baa de T o d o s os S a n t o s . Slidas e bem projetadas estruturas, baseadas em especificaes minuciosas e, no caso do belo F o r t e dos R e i s M a g o s , manuscritas e m u i t o b e m redigidas pelo erudito arquiteto Frias de M e s q u i t a , o m e s m o que
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projetou o M o s t e i r o de S o B e n t o , no R i o , nunca serviram para nada, tal qual os dispendiosos armamentos de hoje, destinados a sucata. A sua finalidade foi meramente simblica, c o m o selos da presena real de sua majestade.
15 T a n t o na construo das f o r t i f i c a e s e d o s edifcios pblicos, c o m o , principalmente, na das igrejas de irmandades, os projetos, ou riscos c o m o ento se dizia, eram sempre acompanhados de minuciosas e precisas especificaes. Essa expresso risco no deve ser interpretada c o m o simples " d e s e n h o " , mas c o m o desenho visando ao f e i t i o ou elaborao de alguma coisa, correspondendo assim expresso inglesa design. Aprovado o p r o j e t o , era feita c o n c o r r n c i a para e s colha do mestre do o f c i o em causa pedreiro, carpint e i r o , e n t a l h a d o r p o r e m p r e i t a d a ou a j o r n a l e os trabalhos eram conduzidos c o m exemplar cuidado e a c o m panhados de c o n s t a n t e s louvaes para dirimir dvidas e conferir medies, sendo os louvados profissionais j c o n sagrados, inclusive " p r o f e s s o r e s " , c o m o c o n s t a em alguns
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d o c u m e n t o s . T u d o levado m u i t o a srio e at m e s m o c o m exagerado rigor, a p o n t o de segundo c e r t o s t e s t a m e n t o s m u i t o mestre, depois de uma vida p e n o s a de c o n s t a n t e t r a b a l h o , m o r r e r na misria e endividado.
16 D e p o i s das improvisadas capelas "de p o u c a dura", f o r a m construdas, ainda n o s anos de q u i n h e n t o s e seiscentos, numerosas capelas alpendradas, c o m o era c o m u m e m Portugal. Frei Palcios f o i sepultado n o "alpendre da capela", no c o n v e n t o que se iniciava no a l t o da Penha, no E s p r i t o S a n t o . C o m p u n h a m - s e de adro, alpendre c o m p o r t a e duas pequenas janelas gradeadas, de p e i torl baixo para que os fiis, m e s m o de fora, pudessem divisar o altar separado da nave p o r um arco e, m u i t a s vezes, c o r o a d o p o r pequena cpula definidora do espao sagrado, c u j o extradorso era c o b e r t o de telhas, e, f i n a l mente, da sacristia num c o r p o lateral mais baixo c o m gua prpria, sendo o acesso sineira e ao c o r o p o r escada e x terna, eventualmente c o b e r t a . A prpria Penha do R i o c o m e o u c o m uma capela desse t i p o .66
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A S de O l i n d a , c o m o a do Castelo, ainda f o i c o n s truda c o m arcos sobre colunas de ordem toscana f o r m a n do naves, n o s m o l d e s usuais da m e t r p o l e , antes que os jesutas inovassem a nave nica c o m viso d e s o b s t r u d a para o pregador e para o altar, inovao desde l o g o trazida pelo irmo a r q u i t e t o Francisco D i a s quando, e m 1 5 8 0 , p r o j e t o u e c o n s t r u i u a nossa primeira igreja c o m pedigree, a da G r a a , em O l i n d a , martirizada pelo holands. Assim, as nossas igrejas, no c o m e o , f o r a m simples e claras, c o m o culo inicial do frontispcio da Graa transferido para a empena de f r o n t o reto, duas janelas no c o r o e u m a porta s. C o m o c o r r e r d o t e m p o esse e s q u e m a singelo f o sendo alterado: surgiram o s corredores laterais c o m t r i bunas no andar e a nave escureceu; a talha alastrou; m u l tiplicaram-se as portas e janelas na fachada e a primitiva unidade se perdeu. S dois sculos depois, em M i n a s , ele f o i retomado, no princpio de s e t e c e n t o s , at desabrochar claro e m i s t i c a m e n t e alegre de novo na o b r a - p r i m a que a igreja de S o F r a n c i s c o de Assis, em O u r o P r e t o .67
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ISSO
S.JCVH
1766
17 No Nordeste, c o m o constatou Ayrton Carvalho, as igrejas de pedra e cal, tanto antes c o m o depois da ocupao, tiveram seu espao interno compartimentado numa trama arquitetnica de cantaria pilastras, arcos, cornijas, enquadramento de vos que contrastava c o m o branco das paredes caiadas e delimitava as reentrncias de maior ou menor profundidade destinadas a receber os altares laterais e seus retbulos, os primeiros ainda de pedra, c o m o era c o mum na fase renascentista ou, melhor, " m a n e i r i s t a " em seguida os de madeira dourada. C o m o tempo, essa talha extravasou dos limites que lhe eram impostos e passou a recobrir os prprios elementos arquitetnicos moldurados que a enclausuravam, constituindo-se assim, essa forrao de alto a baixo, num monumental cofre de madeira esculpi-
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da, encaixado no corpo original de alvenaria de pedra, ficando desse m o d o encobertos os pormenores j prontos e acabados da comodulao de cantaria. O forro era c o m o que a tampa desse c o f r e revestido de ouro, inicialmente formando painis enquadrados para receber pintura, depois c o m tabuado liso contnuo para permitir a livre expanso dos arabescos florais, e, finalmente, a perspectiva arquitetnica, c o m o se o t e t o t o d o se abrisse numa exploso de balaustradas, colunas e arcos entremeados de guirlandas floridas, de anjos, de nuvens para a g l o rifcao dos santos e de N o s s a Senhora em pleno cu. Assim, a a m b i e n t a r o m s t i c a e s t r u t u r a l m e n t e o b tida nas catedrais g t i c a s c o m o s a l t o s feixes d e pilares q u e se abriam em ogivas nas abbadas, e c o m o rendil h a d o das rosceas e d o s t n u e s mainis o n d e resplendiam os vitrais, passara c o m a o r d e m nova d o s j e s u t a s , d e p o i s da C o n t r a - R e f o r m a , e graas ao a r t i f c i o s o e n g e n h o de artistas c o m o o padre P o z z o e T i e p o l o , a ser alcanada atravs do c o n t a t o d i r e t o c o m a visualizao idealizada da prpria a t m o s f e r a c e l e s t e .69
ARQUITETURA
MliTltlinO
GTICO
MISTICUMO
tlAMMX.
Tal c o m o na Idade Mdia, quando os escultores tratavam c o m igual apuro tanto as ilhargas e os tmpanos das monumentais portadas, c o m o as figuras perdidas nos mais altos pinculos, ao alcance visual apenas dos anjos, tambm no interior das igrejas barrocas, lado a lado c o m o despojamento pessoal dos religiosos, prevalecia o propsito de querer sempre aplicar o que fosse melhor, mais rico, mais belo, sem poupar esforos e sacrifcios, num esbanjamento ma70
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terial, paradoxalmente legtimo, porque em honra e louvao de uma simples idia, de uma profunda convico do esprito.
18 E n q u a n t o na colnia anglo-sax do n o r t e , o p u r i t a n i s m o associado ao p r a g m a t i s m o e industriosa busca da felicidade terrena c o n d u z i r a m prosperidade coletiva e riqueza pessoal, nas c o l n i a s latinas, afora a obsedante busca do ouro, da prata e das pedras preciosas, toda a atividade d o s vrios o f c i o s e energia criativa f o i principalmente concentrada no fabrico de igrejas e c o n ventos igrejas matrizes, igrejas de irmandades e de irmos terceiros, m o r m e n t e em M i n a s onde o acesso direto das ordens religiosas ao o u r o fora vedado pelo rei. Avultam, de fato, nas cidades coloniais, o perfil das igrejas e a massa edificada dos mosteiros e conventos. Assim, por exemplo, em Salvador, o colgio e a solene igreja dos j e sutas, c o m a sua imponente sacristia que, c o m o a da rica e bela igreja do Carmo de Cachoeira, no tem nada que se lhes compare; a opulenta igreja do monumental convento franciscano, c o m o seu belssimo claustro azulejado, o que tambm caracteriza, embora em menores propores, mas c o m a71
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mesma graa, os numerosos conventos da ordem no N o r deste, cujas igrejas apresentam em c o m u m a particularidade de ter as fachadas escalonadas, c o m o coro montado sobre a parte central de um prtico de cinco arcos, e uma s torre, recuada, bem c o m o a de dispor de adro e cruzeiro, alm das preciosas capelas anexas; os mosteiros beneditinos, o do R i o , valioso relicrio de arte sacra, o de O l i n d a , c o m a sua apuradssima talha portuguesa; as matrizes mineiras, pobres p o r fora, ricas por dentro, c o m o as do Pilar em O u r o Preto, a da Conceio de Sabar c o m a jia de N o s s a Senhora do , mais alm , a de Tiradentes dispondo de rgo e de fabuloso retbulo devido a mestre Sampayo; ou mesmo em lugares perdidos c o m o Brumai, um esplndido exemplar intacto da primeira metade de setecentos, ou, em Santa R i t a Duro, a linda igreja de Nossa Senhora do Rosrio. A talha dos retbulos evolui, passando do maneirismo ainda renascentista da primeira fase, e do p r o t o b a r r o c o de colunas t o r s a s e arquivoltas concntricas, exploso do barroco propriamente d i t o , at alcanar a graa final do c h a m a d o " r o c o c " que antecede a volta linha reta e c o n c i s o d o neoclassicismo.72
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S o tantas, porm, as preciosidades arquitetnicas espalhadas pelo pas que impossvel enumer-las nestas simples anotaes, e se desse aparente desperdcio resultou de par c o m o acervo monumental a pobreza, h contudo algo de positivo a ressaltar, do p o n t o de vista comunitrio e social, em to chocante constatao. E que, durante a C o l nia e o I m p r i o c o m o ainda a g o r a t o d a essa opulncia, toda essa riqueza fsica e espiritual contida nas igrejas antigas, esteve sempre e ainda est disposio de qualquer um, ao alcance do povo. Seja qual for o seu estado de esprito, qualquer que seja a sua condio, voc pode usufru-la, ela sua s entrar e ficar l.
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INTERMEZZOC a t a s Altas do M a t o Dentro
E m 1 9 2 7 passei cerca d e u m ms n o Caraa. N o l t i m o dia d o a n o , c o m o j u m e n t o resvalando nas pedras soltas da serra, desci at C a t a s A l t a s do M a t o D e n t r o , para visitar a rica m a t r i z . Estava deserta. Apenas uma velhinha sentada num dos bancos. Em m e i o ao esplendor da talha, dos dourados, das imagens, das pinturas, ela se sentia visivelmente em casa. Estava ali vontade, c o m o se t u d o aquilo tivesse sido c o n cebido para o seu uso e g o z o exclusivo, c o m o se t u d o lhe pertencesse. Morava n u m casebre, mas dispunha da imensa nave e d o s gigantescos retbulos para sua conversa diria em clima de graa, louvor e glria c o m N o s s a S e n h o r a e o Senhor.75
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19 Cabe, finalmente, uma referncia especial grande obra realizada pelos padres nos chamados Sete Povos das M i s s e s , obra que, pertencendo embora Provncia Jesutica do Paraguai, f i c o u definitivamente encravada no pas, constituindo assim um setor a u t n o m o no c o n j u n t o dos m o n u m e n t o s coloniais brasileiros. Cada povo i s t o , cada burgo era c o n s t i t u d o pela igreja que compunha c o m a residncia dos padres, o asilo, a enfermaria, as aulas, as oficinas, as cocheiras e t c , e t a m b m c o m o c e m i t r i o , um grande c o n j u n t o a r q u i t e t n i c o , servido p o r vrios ptios, tudo murado, m u r o que se continuava para os f u n d o s das c o n s t r u e s abarcando a e n o r m e rea ocupada pelo p o m a r e pela horta, ou seja, a q u i n t a d o s padres. Em frente igreja, havia um grande terreiro ou praa, em volta do qual eram d i s p o s t o s n u m e r o s o s b l o c o s de habitao coletiva, c o m p o s t o s de m u i t a s clulas de c i n c o m e t r o s p o r sete, a p r o x i m a d a m e n t e , verdadeiros apartamentos c o m porta e janela e c o n s t r u d o s c o m paredes de pedra ou de barro, morando em cada um deles uma
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famlia de ndios. Um passeio alpendrado circundava esses blocos de habitao que correspondiam a verdadeiras quadras. Os primeiros blocos construdos eram os que formavam a praa; depois, medida que o povo crescia, novos blocos eram edificados paralelamente aos primeiros, surgindo dessa forma, entre eles, numerosas ruas, todas em esquadro, moda espanhola. Estes povos, com as respectivas estncias para criao de gado,ficavam
a uma distncia razovel uns dos outros,
formando a seqncia deles um todo orgnico e perfeitamente articulado. Os jesutas revelaram-se, nestas Misses, urbanistas notveis, e a obra deles, tanto pelo esprito de organizao como pela fora e pelo flego, faz lembrar a dos romanos nos confins do Imprio. Apesar do atual desmantelo, ainda se adivinha nos menores fragmentos uma seiva, um vigor, um "impulso", digamos assim, que os torna estejam onde estiverem inconfundveis. A nossa interferncia no caso foi apenas demolidora: conseguimos desmontar, pea por pea, a obra singular criada pelo gnio colonizador e sob a tutela dos padres.78
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S mesmo quando se percorreu, um a um, esses p o vos, repetindo a peregrinao feita em fins do sculo passado por H e m e t r i o Veloso, cujo depoimento , hoje, dos mais valiosos, pois que ainda havia ali, ento, muita coisa para ver; quando se estuda a histria dramtica da instalao das primeiras "redues" e das lutas que antecederam ao definitivo abandono e, ainda, documentao antiga referente arquitetura missioneira, que se pode ajuizar e reconstituir mentalmente o que foram esses povos na p o ca do seu florescimento, quando, na bruma da manh, cada dia, t o d o s aqueles ndios saam das casas, atravessando o terreiro em direo da igreja: S a n t o n g e l o , S o L u i z Gonzaga, So Borja cidades que, no fossem a praa e uns poucos vestgios isolados, j teriam esquecido c o m pletamente o aspecto primitivo; S o J o o Baptista, S o Miguel Arcanjo, S o Loureno e S o N i c o l a u runas perdidas naquele e r m o da campanha rio-grandense, c o m uma ou outra casa prxima, construda c o m material antigo, ou certo nmero delas formando novo povoado. C o m exceo das runas monumentais de S o Miguel,79
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recuperadas pelo antigo S P H A N , pouca coisa f i c o u ; p e as que, sobrevivendo catstrofe, p o r assim dizer, " d e ram praia": capiteis, cartelas partidas vermelho-ferrugem, ainda c o m o I H S , os trs cravos e a cruz, imagens m u t i ladas e j sem c o r peas cuja vista n o s deixa uma i m p r e s s o p e n o s a e c e r t o m a l - e s t a r , c o m o se r e a l m e n t e estivssemos diante dos d e s t r o o s de algum naufrgio. C o m o remate destas anotaes avulsas referentes nossa tradio, c u j o objetivo f o i apenas facilitar o e n t e n d i m e n t o e despertar a curiosidade, cabem algumas c o n s t a taes de alcance mais abrangente: I , na verdade, impressionante que um programa to simples c o m o o da igreja nave, altar e sacristia tenha comportado, atravs dos tempos, tamanha variedade de solues desde as primeiras, ainda inspiradas nas antigas baslicas, seguidas das inovadoras cpulas bizantinas, das severas naves romnicas, dos luminosos transeptos gticos, da volta clareza geomtrica renascentista e do desabafo barroco , at chegar comovente capela de Ronchamp, na Frana, e bela estrutura da catedral de Braslia.
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2 S o Pedro de R o m a um e x e m p l o de c o m o a arquitetura pode ajustar-se to integralmente idia q u e lhe cabe expressar, q u e , j agora, se t o r n a i m p o s s v e l d i s s o c i a r o c o n c e i t o de papado, c o m o principal veculo e s m b o l o universal da f crist, da imagem a r q u i t e t n i c a que sucessivos artistas lhe c o n f e r i r a m : a dbside e a c p u la de M i g u e l n g e l o , a nave acrescida p o r M a d e r n a , o a d r o e a praa f r o n t e i r a d e l i m i t a d a pela m o n u m e n t a l colunata de Bernini, que ainda c o n t r i b u i u c o m o resplend o r do retbulo e o imenso e fabuloso baliaquino de b r o n ze, na j u s t a medida e no lugar c e r t o . C a b e n d o igualmente c o n s t a t a r a incrvel c o r a g e m e viso desses h o m e n s papas e artistas capazes de e n f r e n t a r c o m paixo t a m a n h o e m p r e e n d i m e n t o . Basta c o n s i d e r a r o caso da fam o s a cpula q u e , c o m o sua a n t e c e s s o r a , a o b r a - p r i m a do B r u n e l l e s c o , em F l o r e n a , i m e n s a t a n t o vista de longe c o m o d e p e r t o , t o d o s s e p e r g u n t a n d o c o m o f o i possvel fazer t u d o aquilo naquela altura c o m o s m e i o s r e s t r i t o s da poca; c o m o t a m b m o caso dessa b e l s s i m a praa nascida do g e s t o inspirado de um s i m p l e s r i s c o
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assim c o m o p r o c e d e o n o s s o O s c a r * , s e m c o n s i derar secjuer a perspectiva do l o u c o e l e n t o t r a b a l h o de a n o s e a n o s a f i o : t r a z e r os m a t a c e s da pedreira para o c a n t e i r o da o b r a ; lavrar, suspender e ajustar c o m p r e c i so cada t a m b o r , ou seja, cada b l o c o do f u s t e , f e i o do galbo das 3 2 8 enormes colunas, rematadas pelo e n t a b l a m e n t o arquitrave, f r i s o , c o r n i j a c o m a sua alta balaustrada, m a r c a n d o - s e , ainda, o p r u m o de cada u m a das c o l u n a s voltadas para a praa, c o m o g e s t o e l o q e n t e de u m a gigantesca e s t t u a . E t u d o i s t o p o r determinao do d e t e n t o r da herana de Pedro, e c o m t a n t o maior propriedade p o r q u a n t o , na sua ovalada configurao, c o m o q u e simboliza a p r pria rede lanada para arrebanhar os fiis, tal c o m o ainda agora, quase q u a t r o sculos depois, tranqilamente em casa, t e m o s assistido nas c e r i m n i a s divulgadas para o m u n d o t o d o graas ao milagre este sim da cincia e da tecnologia.
'O autor se refere ao arquiteto Oscar Niemeyer.
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3 A obra de A n t n i o Francisco Lisboa, o Aleijadinho, foi, no parecer de G e r m a i n Bazin, antigo conservador-chefe do Museu do L o u v r e p a r e c e r que subscrevo integralmente , a ltima manifestao vlida de arquitetura e escultura crists, no m b i t o mundial da histria da arte, a n t e s do l o n g o h i a t o q u e precedeu l e g t i m a reformulao arquitetnica contempornea.
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P o u c o depois do fim da guerra, em 1 9 4 8 , fui ao sul da Alemanha para c o n h e c e r as igrejas barrocas da regio c o n t i d a entre o D a n b i o e os Alpes, tais c o m o o i m e n s o e belssimo interior de O t t o b e u r e n e a insupervel graa r o c o c de W i e s , sozinha no descampado. M a s o q u e principalmente me interessava era ver o retbulo de R o t t - a m - l n n , porque pelo exame f o t o g r f i c o era o n i c o que, de f a t o , apresentava alguma afinidade q u a n t o ao partido geral, inclusive a figurao no f e c h o da c o m p o s i o , c o m o s retbulos mineiros. D e p o i s de m u i t o rodar fui bruscamente impedido de prosseguir a "autobahn atingida pelos bombardeios,
terminava bruscamente a pique. Foi necessrio retroceder a fim de pegar um atalho, estrada vicinal que no acabava
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mais, at que, j escurecendo, avistei ao longe o perfil barr o c o da igreja t a m b m solta na paisagem c o m o W i e s . Ao me aproximar, pressenti o malogro: estava fechada. Apesar da frustrao, caminhei em direo porta e, para meu e s p a n t o , ela se abriu. Percebi ento ao fundo, na penumbra, o retbulo. C o n t e n d o a e m o o entrei na nave vazia. De repente as luzes se acendem, e quando, c o m o p e n s a m e n t o no Aleijadinho, encaro de p e r t o o retbulo, o u o o s primeiros acordes d e u m c a n t o c h o . E r a sbado e o organista ensaiava para a missa da manh.
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ANTNIO O
FRANCISCO ALEIJADINHO
LISBOA,
A n t n i o F r a n c i s c o L i s b o a nasceu e m O u r o P r e t o , antiga Vila R i c a , a 29 de a g o s t o de 17 3 8, f i l h o de M a n o e l Francisco Lisboa, carpinteiro-arquiteto, empreiteiro e mestre das obras reais, e de Isabel, sua escrava. S e g u n d o4
descrio de Joana, nora do artista, registrada p o r seu b i g r a f o , R o d r i g o J o s Ferreira Bretas, "Antnio F r a n c i s co era p a r d o - e s c u r o , tinha voz f o r t e , a fala arrebatada e o gnio agastado; a estatura era baixa, o c o r p o c h e i o e mal configurado, o r o s t o e a cabea redondos, e esta v o l u m o sa, o cabelo p r e t o e anelado, o da barba cerrado e b a s t o , a testa larga, o nariz regular e algum t a n t o p o n t i a g u d o , os beios grossos, as orelhas grandes e o p e s c o o c u r t o . At cerca dos 40 anos teve boa sade, t a n t o que cuidava s e m pre em ter mesa farta e era visto m u i t a s vezes t o m a n d o
*Afirma,3o no confirmada.
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parte nas danas vulgares". Vila R i c a a esse t e m p o ainda no apresentava o perfil que c o n h e c e m o s e t a n t o lhe deve. A Casa da Cmara, atual M u s e u da Inconfidncia, as igrejas de N o s s a S e n h o r a do C a r m o , de S o F r a n c i s c o de Assis, de N o s s a S e n h o r a do R o s r i o e de S o Francisco de Paula ainda no existiam; mas a casa dos G o v e r n a d o res, c o m seus baluartes e rampa de acesso c o m o se v na fiel r e c o n s t i t u i o de W a s t h R o d r i g u e s , projetada p o r A l p o i m e construda precisamente pelo pai de A n t n i o Francisco, j comandava a perspectiva urbana. Nascida da busca do o u r o e vencido o perodo inicial da implantao, estava ento na sua fase de prosperidade e consolidao, afluindo diretamente da metrpole mestres dos vrios o f c i o s para atender intensa procura de m o - d e - o b r a qualificada. As matrizes de N o s s a S e n h o r a do Pilar e dc N o s s a Senhora da Conceio, de A n t n i o Dias, bem c o m o a i m p o r t a n t e Capela de N o s s a S e n h o r a do R o s r i o d o s P r e t o s , no A l t o da C r u z , estavam sendo concludas, e a riqussima talha dourada d o s interiores contrastava d e liberadamente c o m a taipa caiada e o pau-a-pique das fa-
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chadas de f r o n t o r e t o e torres sineiras ainda cobertas de telha. C o n t u d o , nesse meado de sculo, estava-se s vsperas de novo s u r t o a r t s t i c o , verdadeiro renascimento, d e c o r r e n t e ainda d o i m p u l s o e c o n m i c o anterior, m a s motivado, desta vez, pela emulao entre as irmandades empenhadas na c o n s t r u o das respectivas capelas, j de pedra e cal e mais claras, elegantes e " m o d e r n a s " c o m o se dizia t a m b m ento, m o v i m e n t o iniciado e m 1 7 5 2 e m Mariana c o m a nova capela do R o s r i o , cuja talha seria executada e m 1 7 7 0 p o r F r a n c i s c o Vieira Servas, c o n t e m porneo de A n t n i o F r a n c i s c o L i s b o a . que, e n q u a n t o na primeira metade do sculo ainda prevalecia a velha e b o a tradio medieval dos arquitetos se f o r m a r e m atravs dos o f c i o s da c o n s t r u o , vai finalmente ocorrer em Vila R i c a , nesta segunda fase, o q u e sucedera na R e n a s cena, ou seja, a interferncia e s t i m u l a n t e de a r q u i t e t o s oriundos do meio dos artistas plsticos. S u r t o propiciado ainda pela sedimentao da cultura e conseqente tendncia especulao intelectual e, finalmente, pelo despertar da conscincia cvica; pois apesar da clausura imposta
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colnia, as idias nascidas do enciclopedismo, do enligbten~ mtnt e o eco das revolues libertrias vararam o espao atravs dos mares e m o n t e s e vales e, encontrando c o n d i es adequadas, aninharam-se ali. Poetas e eruditos, prelados e bacharis, msicos, arquitetos, pintores, escultores, professores de artes mecnicas e mestres de o f c i o s t o dos conviviam, e esse desenvolvimento intensivo, no delimitado espao urbano, levou naturalmente quele anseio de independncia que o Tiradentes, afinal, catalisou. F o i nesse ambiente saturado de vitalidade que A n t nio Francisco se formou. E no lhe faltaram mestres qualificados. O risco arquitetnico e as tcnicas da carpintaria e da marcenaria aprendeu desde cedo c o m o prprio pai e o tio, A n t n i o Francisco Pombal. C o m o mestres de escultura e talha, alm de ter visto, ainda menino, Francisco Xavier de B r i t o trabalhar no Pilar e no A l t o da Cruz, teria feito o aprendizado t a n t o c o m J e r n i m o Flix ou Felipe Vieira, c o m o , principalmente, c o m J o s C o e l h o de N o r o n h a , a q u e m assistiria em M o r r o Grande e Caet; finalmente, n o s segredos do desenho "irregular, do melhor g o s t o francs",
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quer dizer, n o estilo Lus X V c o n f o r m e refere e m 1 7 9 0 o vereador de Mariana, J o a q u i m J o s da Silva, no precioso d o c u m e n t o transcrito p o r Bretas , c o m o artista gravador, exilado da metrpole, J o o G o m e s Baptista. Assim aparelhado para o exerccio da sua vocao, p o d e - s e identificar a marca inicial da sua presena no r i s co de chafariz f e i t o quando tinha apenas 13 anos para o ptio da casa do governador, e onde j esto definidos dois traos caractersticos do seu estilo pessoal: a graa ( n o p e r f i l ) , e a veemncia (na c a r r a n c a ) ; e no daquele o u t r o c o n s t r u d o ao p da escadaria de S a n t a Efignia, no A l t o da Cruz. E que o risco desse chafariz apresentado em 1 7 5 7 p o r seu pai , t u d o indica, de autoria, tal c o m o o anterior,
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d o prprio A n t n i o F r a n c i s c o , j e n t o c o m 1 9 anos. I s t o porque na sua c o m p o s i o ocorre t a m b m um p o r m e n o r revelador da inteno plstica que lhe vai marcar a obra futura, e que o m o d o peculiar c o m o os coruchus f o r a m implantados: em vez de assentarem diretamente sobre as pi lastras, na forma usual, f o r a m criados lateralmente, num plano recuado, dois c o n s o l o s para receb-los, ficando eles, p o r t a n t o , f o r a da prumada das pilastras. R e s u l t a desse artifcio um duplo m o v i m e n t o a c o m p o s i o se abre para os lados e projeta-se frente ao m e s m o t e m p o , a d quirindo assim sentido d i n m i c o , apesar da sua e s t r u t u rao esttica fundamental. O u t r a circunstncia corrobora a autoria do risco desse chafariz. E que no o b s t a n t e a sua execuo, p o r oficiais canteiros, ser um t a n t o g r o s seira, acha-se c o r o a d o p o r um imprevisto b u s t o de m u l h e r em p e d r a - s a b o d a t a d o de I 7 6 I . O i n u s i t a d o da figurao, o galbo do plinto e o talhe dos algarismos so o u t r o s t a n t o s indcios veementes de afirmao precoce da personalidade singular de A n t n i o F r a n c i s c o L i s b o a . E s a b e n d o - s e que seu pai, M a n o e l F r a n c i s c o , vivia e n t o
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assoberbado de c o m p r o m i s s o s , nada mais natural seno confiar ao filho, que se estava iniciando na profisso, a desincumbncia da pequena tarefa. Trabalho talvez atribuvel a esse primeiro perodo o oratrio de jacarand, na sacristia do Pilar, cujo