Arquitetura - Lucio Costa
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arquitetura


arquitetura


S U M Á R I O
APRESENTAÇÃO 7
CONCEITUAÇÃO 1 7
TRADIÇÃO OCIDENTAL 2 5
TRADIÇÃO LOCAL 3 3
ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA 41
INTERMEZZO — Catas Altas do Mato Dentro 75
INTERMEZZO — Rott am Inn 85
A N T Ô N I O FRANCISCO LISBOA, O ALEIJADINHO 87
R U P T U R A E REFORMULAÇÃO 1 0 3
EDIF ÍCIO GUSTAVO CAPANEMA 1 0 9
ADDENDUM URBANÍST ICO 115
5

A R Q U I T E T U R A
BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA (Memória Descritiva) 1 I 7
APÊNDICE 143
ORIENTAÇÃO PARA O PROFESSOR 147
GLOSSÁRIO 149
6

A P R E S E N T A Ç Ã O
Na sucessão dos s intomas que prenunciavam o f im
do regime de exceção, o restabelecimento da abertura e
da ordem democrática, é j u s t o assinalar o lançamento da
Bibl ioteca Educação É Cultura. A iniciativa resultou de
uma parceria do M E C - F e n a m e e da Bloch Edi tores S.A.,
em 1 9 8 0 . A publicação desses opúsculos, cada um de per
st quase um vadt-mécum, era dirigida aos professores da rede
de ensino médio, c o m o ferramenta de informação a f im
de despertar o interesse dos alunos para uma melhor c o m
preensão de suas vocações. Foram escolhidas figuras re
presentativas para a elaboração das monografias. Eram dez
t í tulos : I . Realidade brasileira/Gilberto Freyre; 2. Literatura/
Josué M o n t e l l o ; 3. Música/Francisco Mignone ; 4* Folclore/
Maria de Lourdes Borges Ribeiro ; 5. Cinema/Wilson C u
nha; 6. Teatro I/Raymundo Magalhães Júnior ; 7. Teatro II/
7

A R Q U I T E T U R A
8
Maria Clara Machado; 8. Artes plásticas I/Flávio D 'Aquino ;
9. Artes plásticas II/Wladimir Alves de Souza e, f inalmente,
1 0 . Arquitetura/Lucio Costa .
O aparecimento do volume IO — Arquitetura — inter
rompia o hiato provocado por razoável silêncio. Por esse
tempo, só t ínhamos acesso à palavra de Lúcio Costa atra
vés de garimpagem em alguns poucos livros, entrevistas e
escri tos esparsos, sendo a principal fonte os importantes
estudos publicados nos primeiros números da Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ( S P H A N ) , iniciada
em 1 9 3 7 -
C o m menos de sessenta páginas em sua edição or i
ginal, este pequeno grande livro é uma declaração de amor,
um ob je to de conquista e um manifesto. E perpassado
por uma simplicidade calma e clara. E, sem ter essa in
tenção, naturalmente autobiográfico. O índice espicaça
nossa curiosidade. Na "Concei tuação" , o livro nos m o s
tra que a arquitetura é parte fundamental da criação ar
t íst ica c o m o manifestação normal de vida, const i tuindo
uma espécie de "álbum de famíl ia" da humanidade. E x -

A P R E S E N T A Ç Ã O
plícita o desafio do artista, do técnico e do h o m e m na
adequação do meio f ís ico e social. Conduz-nos a perce
ber a arquitetura c o m o bem durável, concebido de ma
neira estrutural e orgânica, na medida do corpo do homem,
sentido em termos de espaço e volume, enfim, c o m o algo
para ser vivido.
Em "Tradição ocidental" , o autor apresenta dois e i
xos de influência cultural: o nórdico-oriental e o m e s o -
potâmico-mediterrâneo, do qual descende o nosso gesto
do saber fazer. Em "Tradição local" , deparamos c o m a
memória saudosa e sofrida dos primeiros co lonos trans-
migrando para a nova terra, onde tudo era adverso — c l i
ma, índio e b i c h o . As diversas t écn icas herdadas das
diferentes regiões de Portugal , todas encontrando sua
expressão própria, adaptam-se aos poucos, ao sabor do
tempo, aprendendo c o m o índio, a luz e a paisagem: os
fortes , os oratórios e as igrejas, a casa-cofre dos bandei
rantes com sua planta ortogonal e assentada no chão. A
casa-grande dos engenhos de açúcar; a casa-gaiola das c i
dades do ouro, de estrutura de madeira, adaptando-se ao
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A R Q U I T E T U R A
relevo caprichoso das serras mineiras e que, por falta de
espaço, ombreavam-se em trama de densa organização
urbana. E mesmo mais tarde, nas casas das fazendas de
Minas , São Paulo ou R i o de Janeiro, encontramos as ca
racterísticas de nossa arquitetura, sempre a revelar força,
coerência, robustez e saúde plástica.
N a s "Anotações ao correr da lembrança", bem c o m o
nos "Intermeçgos", a memória construída com o exercício
da contemplação, lucidez e aguda sensibilidade estão sem
pre presentes, ao lado de humanidade e compaixão. Há
ainda o luminoso e comovente ensaio sobre Antônio Fran
cisco Lisboa, o nosso Alei jadinho, arquiteto e escultor, o
maior artista brasileiro do tempo da colônia.
Falando da contribuição do escravo, seja ele índio ou
negro, Lúcio C o s t a nos lembra que a qualidade artística
de seu trabalho não se origina apenas da fé e do o f í c io
transmitidos pelo mestre português, mas sim da parcela
de liberdade que colocavam no que faziam, e isso ninguém
lhes poderia tirar.
"Ruptura e reformulação" mostra um processo evo-
10

A P R E S E N T A Ç Ã O
lutivo que se rompeu nos dois á l t imos séculos, c o m o
progresso c ient í f ico e industrial introduzindo novos m o
dos de fabricar, construir e viver. O artesanato perde sua
força telúrica e o antigo escravo, que fazia papel de má
quina, ingressa de forma tímida em uma nova ordem s o
cial, habituada às tradicionais injustiças e despreparada
para isso.
" E d i f í c i o Gustavo Capanema" é o relato da c o r a j o
sa aventura de um grupo de jovens arqui te tos , sob a l i
derança do autor, a explicitarem sua fé nos postulados
contemporâneos , e a sol ic i tarem e obterem o conse lho e
a conivência de Le Corbus ier no r isco que originaria o
pro je to do ant igo M i n i s t é r i o da Educação e Saúde, h o j e
Palácio Gustavo Capanema, marco na arquitetura bra
sileira. S e g u n d o Lúc io Costa , a arquitetura jamais pas
sou, e m e s p a ç o d e t e m p o s e m e l h a n t e , p o r t a m a n h a
t ransformação .
"Addendum urbanís t ico" apresenta a cidade c o m o ex
pressão palpável da necessidade humana de c o n t a t o e c o
municação. A inter-relação cidade/campo e campo/cidade,
11

A R Q U I T E T U R A
o equilíbrio entre quantidade e qualidade da vida indivi
dual, atendendo sempre o valor do homem c o m o pessoa,
"Brasília, cidade inventada" ( M e m ó r i a Descri t iva)
Por ocasião do Concurso Internacional para o Plano
P i l o t o de Brasília, Lúcio Costa envia, no dia marcado para
o seu encerramento, os documentos gráficos acompanha
dos da Memór ia Descrit iva e uma carta dirigida à c o m
panhia urbanizadora da nova capital e à comissão julgadora
do concurso.
Desculpa-se pela apresentação sumária do partido su
gerido e justif ica-se. D i z que não pretende concorrer, mas
apenas "desvencilhar-se de uma solução possível, que não
foi procurada mas surgida, por assim dizer, pronta". C o m
parece como simples maquisarã do urbanismo e a idéia, ape
sar de espontânea, fo i depois intensamente pensada e
desenvolvida, continua ele.
A cidade fora concebida não apenas como urbs, preen
chendo as condições satisfatórias a um simples organis-
12

A P R E S E N T A Ç Ã O
mo capaz de atender as diversas funções vitais, mas c o m o
civitas, possuidora dos atr ibutos inerentes a uma capital.
Para isso, é necessário que o urbanista se ache imbuído
de certa dignidade e nobreza de intenção, porquanto des
sa atitude decorre a ordenação e o senso de conveniência
e medida capazes de confer i r ao con junto projetado o
desejável caráter monumental .
D i t o isso, Lúc io C o s t a mostra c o m o nasceu a s o
lução: do gesto primário do encontro de dois eixos, a
assinalar a posse de um lugar, ou seja, o próprio sinal-
da-cruz .
Segue-se a seqüência numerada de todo o plano pi
lo to . Lá está ele de corpo inteiro, desde a adequação à si
tuação topográfica, aos princípios da técnica rodoviária
com suas implicações modernas. Os centros cívicos e ad
ministrativos. O eixo monumental , a plataforma dos M i
nistérios, a Praça dos Três Poderes, a Catedral, a localização
dos palácios e por fim das unidades de vizinhança — as
superquadras. Tudo descrito de maneira absolutamente
fluida e segura. Lúcio Costa propõe a numeração referida
13

A R Q U I T E T U R A
ao eixo monumental , distribuindo a cidade nas vertentes
N o r t e e Sul . As quadras seriam assinaladas por números,
os blocos residenciais por letras e, por últ imo, o número
do apartamento, da forma usual.
Há ainda detalhes como o caminho facilitado das ins
talações, nas faixas verdes, ao longo das pistas de rola
mento . Enf im, a descrição de uma cidade pronta.
Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade-parque. S o
nho arquissecular do patriarca José Bonifácio, que já p r o
punha a transferência da capital para Goiás nos idos de
1823 .
No "Apêndice" , o mestre nos adverte que o desen
volv imento c i e n t í f i c o não é o p o s t o à natureza. T r a n s
mi te sua t o t a l conf iança no i n t e l e c t o e na c o n s c i ê n c i a
do h o m e m , capazes de e n c o n t r a r a compat ib i l idade
desse pretenso abismo. M e s m o no caos aparente em que
cada geração pode mergulhar, por e f e i t o do que talvez
se p o s s a c h a m a r " l e i das r e s u l t a n t e s c o n v e r g e n t e s " ,
novas perspect ivas se abrem e t u d o parece de novo fá
cil e c laro.
14

A P R E S E N T A Ç Ã O
Na "Orientação para o professor" , o autor desenvol
ve, com zelo, o que lhe parece fundamental para o melhor
desempenho de um magistério vivo. S ã o práticas que vão
desde a identificação da arquitetura, à interação homem/
meio ambiente e equilíbrio ecológico. Propõe o estudo
comparativo dos diversos t ipos de comunidade. Aconse
lha a promoção de debates, análise de plantas, trabalhos
gráficos e maquetes, facilitando a percepção das variações
de forma, dimensão e espaço. Convida ao conhec imento
das cidades históricas brasileiras através de publicações
ou excursões organizadas.
Por fim, Lúcio Costa encerra o livro c o m um sabo
roso glossário, em que traduz as palavras estrangeiras e
explica as de uso l imitado, porém tão naturais ao seu pen
samento que, se substituídas, este perderia sua força.
Lúcio Costa , arquiteto, urbanista, humanista, p r o
fessor, escritor e poeta. De onde lhe vem tanta força para
expressar a essência da realidade brasileira? Talvez de sua
condição de peregrino, primeiro na infância e juventude
passadas na Europa. Ainda peregrino no encontro com sua
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A R Q U I T E T U R A
pátria, onde, de surpresa em surpresa, lembra-se de co i
sas esquecidas, de coisas jamais sabidas, mas que estavam
lá, em seu coração.
Jorge de Souza H u e
Arquiteto e sociólogo, amigo e colaborador do mestre Lúcio Costa.
16

C O N C E I T U A Ç Ã O
A história da arte mostra que a arquitetura sempre foi
parte integrante fundamental no processo da criação artísti
ca como manifestação normal de vida. Ela engloba, portan
to, a própria história da arquitetura, constituindo-se, então,
por assim dizer, no "álbum de família" da humanidade. É
através dela, através das coisas belas que nos ficaram do pas
sado, que podemos refazer, de testemunho em testemunho,
os itinerários percorridos nessa apaíxonante caminhada, não
na busca do tempo perdido, mas ao encontro do tempo que
ficou vivo para sempre porque entranhaâo na arte.
O que caracteriza a obra de arte é, precisamente, esta
eterna presença na coisa daquela carga de amoreâe saber que,
um dia, a configurou. Importa, pois , antes de mais nada,
a dist inção entre essência e origem, porque nesta diferencia
ção preliminar reside a chave do entendimento do que seja
verdadeiramente arte.
17

A R Q U I T E T U R A
Se é indubitável que a origem da arte ê interessada, pois
a sua ocorrência depende sempre de fatores que lhe são
alheios — o meio f ís ico e econômico-soc ia l , a época, a
técnica utilizada, os recursos disponíveis e o programa
escolhido ou imposto —, não é menos verdadeiro que na
sua essência, naquilo por que se distingue de todas as de
mais atividades humanas, é manifestação isenta, porquan
to nos sucessivos processos de escolha a que afinal se reduz
a elaboração da obra, escolha indefinidamente renovada
entre duas cores , duas tonal idades, duas f o r m a s , do is
part idos igualmente apropriados ao f im proposto , nessa
escolha última, ela t ã o - s ó — arte pela arte — intervém e
opta.
C o n q u a n t o manifestação natural de vida e, c o m o tal,
parte integrante e significativa da obra conjunta elabora
da pelo corpo social a que pertence, esse caráter suigeneris
da criação artística dificulta a sua abordagem pelas s is te-
matizações fUocientíficas, e a torna, por ve2es, refratária
aos enquadramentos fi lopartidários. É que, enquanto a
criação científ ica é parcela revelada de uma totalidade sem-
1B

C O N C E 1 T U A Ç Ã O
pre maior que se furta às balizas da delimitação intel igí
vel, não passando portanto o cientista de uma espécie de
intermediário credenciado do h o m e m com os demais f e n ô
menos naturais — donde o fundo de humildade, afetada
ou verdadeira, peculiar à sua atitude — a criação art ís t i
ca, ou melhor, o con junto da obra criada por um determi
nado artista, se const i tu i num todo auto-suf ic iente , e ele
— o próprio artista — é legí t imo criador desse mundo à
parte epessoal, pois não existia antes, e idêntico não se refará
jamais. D a í a vaidade inata, aparente ou velada, inerente à
personalidade de t o d o artista autenticamente criador.
N ã o cabe indagar, c o m intenções discriminatórias,
"para quem o artista trabalha", porque, a serviço de uma
causa ou de alguém, por ideal ou por interesse, ele traba
lha sempre apenas, no fundo — quando verdadeiramente
artista — t p a r a si mesmo, pois se alimenta da própria cria
ção, m u i t o embora anseie pelo est ímulo da repercussão e
do aplauso c o m o pelo ar que respira.
A mais tolhida das artes, a arquitetura é, antes de mais
nada, construção; mas construção concebida c o m o propó-
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A R Q U I T E T U R A
20
sito primordial de organizar e ordenar o espaço para de
terminada finalidade e visando a determinada intenção.
E nesse processo fundamental de organizar, ordenar e
expressar-se ela se revela igualmente arte plástica, porquanto
nos inumeráveis problemas com que se defronta o arqui
te to desde a germinação do projeto até a conclusão e fe t i
va da obra, há sempre, para cada caso específ ico, certa
margem final de opção entre os l imites — máximo e m í
nimo — determinados pelo cálculo, preconizados pela
técnica, condicionados pelo meio, reclamados pela fun
ção ou impostos pelo programa, cabendo então ao senti
mento individual do arquiteto — c o m o artista, por tanto
— escolher, na escala dos valores cont idos entre tais l i
mites extremos, a forma plástica apropriada a cada por-
menor em função da unidade última da obra idealizada.
A intenção plástica que semelhante escolha subentende
é precisamente o que distingue a arquitetura da simples
construção.
Por o u t r o lado a arquitetura depende ainda, neces
sariamente, da época da sua ocorrência , do meio f í s ico e

C O N C E I T U A Ç À O
social a que pertence, da técnica decorrente dos materiais
empregados e, f inalmente , dos ob je t ivos visados e dos
recursos financeiros disponíveis para a realização da obra,
ou seja, do programa p ropos to . Pode-se então def inir a
arquitetura c o m o construção concebida com o propósito de or
ganizar e ordenarplasticamente o espaço e os volumes decorrentes,
em função de uma determinada época, de um determinado meio, de
uma determinada técnica, de um determinado programa t de uma
determinada intenção.
Assim, portanto , se, por um lado, arquitetura não é
coisa suplementar usada para enriquecer mais ou menos o
edif íc io , não é tampouco a simples satisfação de imposi
ç õ e s de ordem técnica e funcional . F r u t o de intuição
instantânea ou de procura paciente, para que seja ver
dadeiramente arquitetura é preciso que, além de satisfazer
rigorosamente — e só assim — a tais imperativos, uma
intenção de outra ordem e mais alta acompanhe paripassu
o trabalho de criação em todas as suas fases. N ã o se trata
de sobrepor à precisão de uma obra tecnicamente perfei
ta a dose julgada conveniente dc gosto artístico. Aquela in-
21

A R Q U I T E T U R A
tenção deve estar sempre presente desde o iníc io , sele
c ionando, nos menores detalhes, entre duas e três so lu
ções possíveis e tecnicamente corretas , aquela que não
desafine — antes, pelo contrário, melhor contribua, c o m
a sua parcela mínima, para a intensidade expressiva da
obra to ta l .
E n q u a n t o satisfaz apenas às exigências técnicas e
funcionais, não é ainda arquitetura; quando se perde em
intenções meramente decorativas, tudo não passa de ce
nografia; mas quando — popular ou erudita — aquele
que a ideou pára e hesita ante a simples escolha de um
espaçamento de pilares ou da relação entre a altura e a
largura de um vão, e se detém na obstinada procura de
uma justa medida entre cheios e vazios, na Fixação dos volu
mes e subordinação deles a uma lei, e se demora atento
ao j o g o dos materiais e a seu valor expressivo, quando tudo
isto se vai pouco a pouco somando em obediência aos mais
severos prece i tos t é c n i c o s e funcionais , mas, também,
àquela intenção superior que escolhe, coordena e orienta
no sent ido da idéia inicial toda essa massa confusa e
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C O N C E I T U A Ç À O
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contraditória de pormenores, t ransmit indo assim ao c o n
j u n t o , r i tmo, expressão, unidade e clareza — o que c o n
fere à obra o seu caráter de permanência — i s to sim, é
arquitetura.
O u , em outros termos, c o m o lembrete:
arquitetura é coisa para ser exposta à intempérie;
arquitetuta é coisa para ser concebida c o m o um todo
orgânico e funcional;
arquitetura é coisa para ser pensada, desde o início,
estruturalmente;
arquitetura é coisa para ser encarada na medida das
idéias e do corpo do homem;
arquitetura é coisa para ser sentida em termos de es
paço e volume;
arquitetura é coisa para ser vivida.


T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L
O m i t o e o poder sempre estiveram na origem das
grandes realizações de sentido arquitetônico. Eles se con
substanciam numa útôa-força da qual resulta a intenção que
orienta e determina a expressão arquitetônica. A realização
arquitetônica é assim a expressão palpável desse conteú
do ideológico no seu mais amplo sentido.
Constata-se , porém, nesta c o m o que materialização
da idéia, a presença de um c o m p o n e n t e te lúr i co que
condiciona e propicia, do p o n t o de vista da concepção
formal, uma preferência " inst int iva" por determinados
t ipos de configuração. Assim, na bacia do Mediterrâneo,
tanto no sul da Europa quanto no norte da África, bem
c o m o nas áreas do Oriente próximo e da Mesopotâmia ,
prevalece, na arquitetura erudita c o m o na popular, o sen
t i d o da coesão plástica, da forma geométr ica pura, da
contenção; ao passo que no norte da Europa e nos países
25

A R Q U I T E T U R A
26
eslavos e orientais observa-se, pelo contrário, certa pre
disposição à plástica de sentido dinâmico, ao perfil m í s
t i co , elaborado ou convulso, à dispersão, podendo-se ,
portanto , considerar dois eixos culturais latentes quanto
à c o n c e p ç ã o plást ica da f o r m a : o e ixo m e s o p o t â m i o -
mediterrâneo, próprio da concepção estática, e o eixo nór-
dico-oriental , que abrange as diferentes modalidades da
concepção dinâmica.
Esse condicionamento inicial, juntamente com os de
mais fatores de natureza cultural, racial e histórica envol
vidos, faz com que a arte de cada civilização se const i tua
num todo íntegro e autônomo que impede a sua avalia
ção por padrões outros que não os próprios, não c o m
portando, portanto, aferição ou ju ízo de valor na base de
cânones de outra cultura, como, por exemplo, os oriun
dos da arte greco-latina, dita "clássica", em relação à arte
das civilizações orientais ou das culturas africanas.
É difícil compreender c o m o a civil ização-matriz da
nossa cultura ocidental , a civilização grega, pôde manter
— apesar da trama por vezes perversa, feroz e torpe da

T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L
27

A R Q U I T E T U R A
sua história c dos seus m i t o s — tamanha integridade e
serena constância na evolução da sua arte, repetindo du
rante mais de quatrocentos anos os mesmos temas, ape
nas cada vez c o m maior apuro. Assim, quando passou a
construir os seus templos, de preferência de mármore, se
ateve ao esquema das suas primitivas estruturas de ma
deira, ou seja, ao mais singelo dos partidos arquitetônicos
possíveis: planta retangular, telhado de duas águas c o m
frontões nos topos , colunas e arquitrave, ou viga-mestra.
T u d o sempre na base da contenção e da verga reta.
Por dispor do melhor calcário para peças de porte , o
grego ignorou acintosamente o arco — e esta constatação
é fundamental.
O helenismo rompeu essa contenção secular e pre
parou terreno para o predomínio do poder, que passou a
" u s a r " o mi to , quando anteriormente o poder derivava do
m i t o , cabendo então, em termos construtivos, às es t ru
turas concebidas na base de arcos e abóbadas, traduzir a
obsessão romana pelos grandes espaços e pelo monumen
tal . C o m o , porém, a inspiração cultural — o modelo —
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T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L
ainda provinha da Grécia, passaram os arquitetos locais,
c o m o Vitrúvio, a usar os e lementos construtivos gregos,
ou sejam, as suas ordens arquitetônicas — dórica, jônica,
coríntía — que eram a expressão viva de intenções bem
definidas, tais c o m o as de força, de graça, de riqueza, às
qua is os p r ó p r i o s r o m a n o s acrescentaram as o r d e n s
" toscana" , de sentido util i tário, e " compós i ta" , para sa
tisfazer o seu gos to pela opulência — já não apenas c o m
a sua função estrutural específica de suporte, mas c o m o
elementos complementares de composição arquitetônica
entrosados num sistema construtivo de outra natureza.
Revestiram assim a nudez sadia dos seus m o n u m e n t o s
c o m uma crosta erudita de colunas e platibandas de már
more e travertino — vestígios de um processo de edificar
o p o s t o . E foram precisamente os gregos em Bizâncio —
Santa S o f i a — que aproveitaram, t irando-lhe todo o par
t ido da extraordinária beleza — a nova técnica.
O desmante lo do Impér io levou os sacrossantos
dogmas acadêmicos de roldão e foram então surgindo, aos
poucos , as estruturas de grossas paredes com contrafor-
29

A R Q U I T E T U R A
tes para resistir ao empuxo dos arcos e abóbadas, numa
arquitetura severa e contri ta , c o m denso conteúdo espi
ritual, chamada "românica" , que se foi definindo e apu
rando nos grandes redutos m o n á s t i c o s onde o f io da
meada cultural greco-latina se preservou. E isto, até que
novas e sábias experiências construtivas conduziram a um
arcabouço estrutural externo, independente das paredes
de sustentação, e capaz de absorver os esforços laterais
resultantes do alteamento das naves, est i lo dito ogival ou
"gót i co" , o que tornou possível a impressionante seqüên
cia das catedrais.
C o m a expedição turíst ico-mil i tar de Carlos V I I I à
Itália, seguida pelas de Luís X I I e Francisco I, a Europa
— já então saturada dos malabarismos gót icos — des
cobriu a clareza racional, as graças do espírito novo e o
humanismo erudito da Renascença, ocorrendo assim um
renovado entusiasmo que, com a expansibilidade de um gás
e o patrocínio pedante dos cortesãos, penetrou todos os
recantos do mundo ocidental , inebriando as cor tes e a
sociedade culta.
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T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L
Conquanto o Renasc imento tenha adquirido pecu
liaridades diferenciadas nos vários países europeus, o em
prego cont inuado do receituário acadêmico foi , com o
correr do tempo, cansando e provocando contestações ,
pois, com efei to , desde que os vários e lementos de que se
c o m p õ e cada uma das ordens gregas — as colunas, o
entablamento, os f rontões — perderam as suas caracte
rísticas funcionais primitivas, isto é, deixaram de const i
tuir a própria estrutura do edif íc io, nenhuma razão mais
justificava o apego intransigente às fórmulas convencio
nais e vazias de sentido então em vigor. Se o frontão não
era mais tão-somente uma empena, a coluna um apoio, a
arquitrave uma viga, mas simples formas plásticas de que
os arquitetos se serviam para dar expressão e caráter às
construções — por que não encarar de frente a questão e
tratar cada um desses e lementos c o m o formas plásticas
autônomas, criando-se com elas relações espaciais d i fe
rentes e garantindo-se assim novo alento de vida ao velho
formulário greco-romano "à bout de forces"?
E aí então — época da C o n t r a - R e forma e de muita
31

A R Q U I T E T U R A
construção — que surge o chamado "barroco" , que não
foi uma arte bastarda, c o m o se pretendeu, mas uma nova
concepção espacial e plástica, liberta dos preconceitos an
teriores e que, apesar de aparente irracionalidade, baseou-
se numa formulação perfeitamente racional.
É neste ciclo que a nossa arte colonial se insere.
32

T R A D I Ç Ã O L O C A L
"Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpre
sa, a gente como que se encontra, fica contente, feli^ e se lem
bra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube,
mas que estavam lá dentro de nós."
092-9)
A arquitetura regional autêntica t e m as suas raízes
na terra; é produto espontâneo das necessidades e conve
niências da economia e do meio físico e social e se desen
volve, c o m tecnologia a um tempo incipiente e apurada, à
feição da índole e do engenho de cada povo; ao passo que
aqui a arquitetura veio já pronta e, embora beneficiada
pela experiência anterior africana e oriental do coloniza
dor, teve de ser adaptada c o m o roupa feita, ou de meia-
confecção, ao corpo da nova terra.
À vista desta constatação fundamental, importa pois
conhecer, antes de mais nada, a arquitetura regional por-
33

A R Q U I T E T U R A
tuguesa no próprio berço, porque é na construção popu
lar de aspecto viril e meio rude, mas acolhedor, das suas
aldeias que as qualidades da raça se mostram melhor, per-
cebendo-se , desde logo , no acerto das proporções e na
ausência de art i f íc ios, uma saúde plástica perfeita, se é
que se pode dizer assim.
Constata-se, de saída, nessa volta às origens, acentuada
diferença entre a arquitetura do norte e a do sul. Da Beira
Baixa, ou cintura do país, para cima prevalece o contraste da
pedra com a caiação, como no Entre Douro e Minho, senão
mesmo o emprego exclusivo do granito em grandes blocos
toscos ou aparelhados como ocorre na Beira Alta e em Trás-
os-Montes ; o ponto, ou seja, a inclinação dos telhados de
tacaniça — quatro águas —, é geralmente amortecido graças
ao recurso do chamado "contrafeito", que é pequeno caibro
complementar destinado precisamente a adoçar o ponto e a
dar maior graça ao telhado na aproximação dos beirais.
Na Estremadura, Lisboa e Ericeira, por exemplo, essa
graciosa concavidade das coberturas, tipicamente portugue
sa — possivelmente por simbiose oriental, pois não existe
em nenhum outro país mediterrâneo —, se acentua, já então
34

T R A D I Ç Ã O L O C A L
35

A R Q U I T E T U R A
associada ao predomínio da caiação; mas no Alentejo, onde
as construções são de taipa ou tijolo e domina inconteste
uma impecável brancura, os telhados são de uma só água,
desempenados e retos, e avultam as grandes chaminés retan
gulares, com arranque oblíquo na prumada das fachadas s o
bre a rua por onde se acede à intimidade dos pequenos pátios
murados; finalmente no Algarve — extremo sul — surgem
os terraços ou soteias, e as chaminés circulares com os seus
caprichosos coroamentos amouriscados.
Era de onde eles vinham, para a grande aventura in
consciente de começar a fazer um novo país.
Cada mestre, oficial ou aprendiz—pedreiro , taipeiro,
carpinteiro, alvanéu — trazia consigo a lembrança da sua
província e a experiência do seu of íc io , daí a simultânea
adoção, logo de início, das diferenciadas feições arqui
tetônicas próprias de cada modo de construir : a taipa de
pilão, a taipa de sebe, ou de mão — pau-a-pique —, o
adobe, a alvenaria de t i jo lo , a pedra e cal.
S e m embargo dessa variada aplicação de processos
construtivos nos dois primeiros séculos, c o m o tempo e
as circunstâncias locais a preferência por uma determina-
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T R A D I Ç Ã O L O C A I
da técnica se fo i definindo; a taipa de pilão, encontrando
terreno propício, f ixou-se principalmente em São Paulo;
a alvenaria de t i jo lo floresceu mais em Pernambuco e na
Bahia; nas terras acidentadas de Minas , onde os caminhos
acompanhavam as cumeadas, c o m as casas despencando
pelas encostas, o pau-a-pique sobre baldrames de pedra
foi a solução natural; já no R i o de Janeiro, a fartura de
grani to marcou a perspectiva urbana c o m a seqüência
r i tmada das ombreiras e vergas de pedra — suporte e
arquitrave —, princípio construtivo da Grécia antiga,
Se o negro, mais dócil e servil na sua condição de escra
vo, pôde colaborar com o colono, inclusive no aprendizado
dos ofícios, já o índio, habituado a um estilo de vida diferen
te, que lhe permitia vagares na confecção limpa e cuidada de
armas, utensílios e enfeites, estranhou, com certeza, a gros
seira maneira de fazer dos brancos apressados e impacientes,
A identificação com o indígena restringiu-se ao " p r o
grama" dos abrigos iniciais à guisa de casas — grandes es
paços cobertos nas feteorias ou ranchos, como nos "montes "
do Alentejo — onde acolher as levas de colonos trazidos
pelas frotas. Por seu tamanho, esses telhadões pouco afasta-
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A R Q U I T E T U R A
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dos do chão, como nos próprios engenhos, rompiam com
a tradição metropolitana — que consistia em decompor a
cobertura das edificações de maior porte em telhados me
nores —, aproximando assim tais estruturas, por sua pu
reza formal e proporções , das ocas m o n u m e n t a i s dos
nativos, tanto mais que eram implantadas em clareiras, como
o terreiro das malocas, uma vez que o inimigo — bicho ou
índio — vinha da mata. É que houve uma curiosa coinci
dência gerada pela presença do foco de calor, o fogo — o
foyer. O transmontano e o indígena procediam de modo se
melhante para manter a casa toda aquecida com o aprovei
tamento do próprio fogo da cozinha e da defumadura,
deixando simplesmente a fumaça escapar pela telha-vã ou
por engenhoso dispositivo na cumeeira das ocas. D a í a
paradoxal contradição observada em Portugal da ausência
de chaminés nas áreas frias do norte e a presença ostensiva
delas no sul, onde o calor concentra-se apenas na lareira
para que não se espraie pelo resto da casa.
De fato , ao entrar no país certa vez por Bragança di
visei do alto da serra ao crepúsculo, no fundo do vale, os
telhados do casario a fumegar, associando então a tal c o s -

T R A D I Ç Ã O L O C A L
tu me a ausência de puxados ou cozinhas nos exemplares
mais puros das casas seiscentistas preservadas em S ã o
Paulo, cuja planta retangular e simétrica dispõe de um
salão central de chão de terra batida e telha-vã e de duas
varandas embut idas no c o r p o da casa c o m o as loggias
paladianas; a dos fundos, caseira e de serviço, a da frente,
social e de receber, tendo num extremo a capela e no o u
t ro uma camarinha, sem acesso ao corpo da casa, para
pouso eventual de viajantes. No alto salão ficava a c o m
prida mesa de pranchões com seus bancos; é aí, nesse gran-
RANCHO OE FEITOR IA
MONTfc ALeNTEJAftO
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A R Q U I T E T U R A
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de bali medieval, c o m fogo sempre aceso no inverno, que
armavam as trempes e assavam a rês ou a caça do dia.
É interessante assinalar que esse esquema fo i o em
brião da casa rural brasileira. E não só a rural c o m o tam
bém a de arrabalde, até f ins do século X I X — apenas
acrescida do puxado de serviço; sala de jantar aos fundos
dando para a varanda doméstica e o quintal, e sala da frente
c o m varanda ou terraço de receber; as duas articuladas por
extenso corredor, c o m quartos de uma banda e de outra,
o que garantia, no verão, boa tiragem. Assim, pois, de certo
modo, tudo se entrosa — a oca indígena, a casa trans-
montana, a casa chamada do bandeirante, a casa de fazen
da, a casa de arrabalde, a casa urbana de bairro.
Há certa tendência a considerar " imitações" de obras
reinóis as obras e peças realizadas na colônia. Na verdade,
porém, são obras tão legítimas quanto as de lá, porquanto
0 colono, par âroit de eonquête,1 estava em casa, e o que fazia de
semelhante ou já diferenciado era o que lhe apetecia fazer
— assim c o m o ao falar português não estava a imitar nin
guém, senão a falar, c o m sotaque ou não, a própria língua.
1 Por direito de conquista.

A N O T A Ç Õ E S A O C O R R E R D A L E M B R A N Ç A
I — Tanto a taipa de p i l ã o — b a r r o socado entre taipais
de madeira — quanto a de sebe, ou pau-a-pique — trama
de madeira barreada a m ã o — e x i g e m proteção contra a cor
tina de água despejada dos telhados, daí a necessidade dos
grandes beirais que não visavam primordialmente defender
do sol, mas da chuva, tanto assim que nos países onde o sol
também é muito mas a chuva escassa, eles, quando existem,
se reduzem muitas vezes ao simples saque da telha. E como
a parede espessa de barro requer duplojrecfca/ — barrote que
recebe o madeiramento do telhado — um em cada face, re
sultou não somente que os caibros apoiados neles para su
porte do beirai, chamados "cachorros", ficaram de nível, como
também que o maior comprimento do "contrafeito" trans
feriu a quebra do telhado, e seu conseqüente galbo, mais para
cima, de modo que, mesmo a distância, pode-se identificar a
estrutura da casa como de taipa de pilão.
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A R Q U I T E T U R A
Já no pau-a-pique o cachorro tem ligeira inclinação
porque é apenas travado, internamente, por um pau roli-
ço interposto entre ele e o caibro, aos quais vem se a jus
tar a corni ja sanqueada que delimita o encontro do forro
do c ô m o d o com a parede. O arcabouço é todo de madeira
e independe dessas paredes que são mero ench imento
como ocorre hoje com o concreto armado, e a casa se apoia
nos próprios esteios, ou pilot is .
Este processo construtivo foi intensivamente empre
gado em grande parte do estado do R i o e em Minas, tanto
com esmerado apuro em casas de fazenda e urbanas —
Diamantina, por exemplo, é toda de pau-a-pique —, c o m o
na sua forma mais rudimentar, na casa do pobre. Ainda agora
é só andar pelo interior que elas logo surgem ao longo das
estradas. Feitas com pau do mato próximo e da terra do
chão, mal barreadas, como casas de bicho, dão abrigo a toda
a família — crianças de colo, garotos, meninas, os velhos,
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A N O T A Ç Õ E S A O C O R R E R D A L E M B R A N Ç A
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tudo de mistura e com aquele ar doente e parado, esperan
do... E ninguém liga de tão habituado que está, pois aquilo
faz parte da terra como formigueiro, fígueira-brava e pé de
milho — é o chão que continua.
2 — As construções integralmente de alvenaria de t i -
.jolo, ensejando arcos, como a casa-grande de Megajipe, em
Pernambuco — criminosamente destruída —, e abóbadas,
como na parte quinhentista da chamada Casa da Torre de
Garcia d'Ávila, em Tatuapé, na Bahia, seriam, ao que parece,
menos freqüentes. O mais comum era fazer-se apenas a fa
chada de alvenaria maciça; no corpo da casa a carga concen
trava-se em robustos pilares, com as paredes montadas sobre
o próprio barroteamento. As telhas do beirai assentavam
sobre cornijas "ameaçadas" c o m t i jo lo e revestidas c o m
perftlatura de massa corrida, ou sobre fiadas da mesma telha
altemadamente acavaladas à mourísca—beira , sobeira e bica.
Quanto ao adobe, ou ti jolo cozido ao sol, conquanto
mais usado em M a t o Grosso e Goiás, também foi comum
em outras áreas como o comprova o grande sobrado dos
Ta na jura, na Bahia, com capela interna, janelas rasgadas, ou

A R Q U I T E T U R A
seja, c o m guarda-corpo de madeira entalado no vão, e
pranchões, ou padieiras, à guisa de verga chanfrada para cima
e que se diz "capialçada", como na taipa de pilão.
A parte monumental, seiscentista, das ruínas da referi
da Casa da Torre, próxima da praia, pouco acima de Salva
dor, mostra com clareza a técnica construtiva da alvenaria de
pedra e cal e cantaria. Além da seqüência de arcos no rés-do-
chão e dos enquadramentos dos vãos com os respectivos
assentos laterais, ou conversadeiras, lá estão, nos dois anda
res do corpo central destelhado, os renques de consolos —
ou cães de pedra—engastados nas paredes ao nível de cada
piso, prontos para receber as madres que sustentavam os
barrotes onde se apoiaria o tabuado do pavimento. Tudo
preparado para os pedreiros e canteiros cederem a vez aos
mestres-carp inteiros e seus oficiais, cada qual cuidando exem
plar e limpamente, no devido tempo, da sua tarefa.
3 — E expressivo o contraste, que ainda perdura, assi
nalado nas preciosas pranchas da Viagem Filosófica de Alexan
dre Rodrigues Ferreira, entre o leve casario de duas águas
com empenas vazadas e vedação arejada de folhas trançadas
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de palmeira — vedação que respira —, sobre palafitas à
margem dos rios, e o pesado casario de cunhais em bossagem,
cornijas, faixas, cordões de estuque e elegantes sacadas de
ferro com desenhos à francesa, da escola acadêmica de Landi,
o bolonhês. Portadas e calçadas de pedra de lioz, trazidas como
lastro, são comuns em todo o litoral, mas não tanto quanto
em Belém do Pará por estar mais ao alcance da metrópole. A
identificação desse belo calcário marmóreo como pedra de lioz_
resultou da expressão "pierre de liais" usada pelos escultores
franceses que, como Chanterenne, tanto f i zeram pelo apuro
da arte quinhentista portuguesa, para designar o calcário duro
e compacto, porém macio ao corte a que estavam afeitos no
seu país, e como na época o fonema "a is " ainda se escrevia
"oys", a leitura das especificações pelos portugueses consa
grou a pedra como lioz.
4 — Conquanto o casario de São Luís seja mais c o
nhecido pela azulejaria oítocentista que lhe reveste as facha
das, o fundo menosprezado das casas, revelado ao antigo
S P H A N 2 pela documentação fotográfica trazida por um
2 S P H A N — Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — hoje. IPHAN.

A R Q U I T E T U R A
estudante francês das Beaux Arts, chamado Kiss, que foi até
lá de caminhão pedindo carona — embora já em grande par
te desmantelado —, tem para o arquiteto de hoje grande valor,
é uma lição. Contrastando com o denso paramento das fa
chadas sobre a rua, regularmente cortadas pela seqüência de
vãos, e rematadas por elegantes beirais, elas se abrem, rasga
das de fora a fora, apoiadas em pilares no quintal, ou em
balanço, formando um avarandado — trama contínua de
venezianas, treliças ou caixilharia — protegido por enormes
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A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A
O u t r a particularidade exclusiva do Maranhão é a
superposição da concavidade de duas telhas a fim de au
mentar o balanço da chamada bica do beirai, engenhoso
artif ício que em Portugal também só ocorre numa região
— a de Setúbal .
5 — Foi o engenheiro francês Vauthier, desencavado
por Gi lber to Freyre que, descrevendo os estreitos e altos
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beirais e sobreposto à estrutura maciça da casa. E para aí que
convergem, na forma usual, a sala de jantar, o serviço e a par
te comunitária mais íntima da vida caseira.

A R Q U I T E T U R A
sobrados do Rec i fe — de íngremes telhados retos, cujo
encaibramento era simplesmente apoiado em possantes
terças entaladas entre os o i tões —, revelou o curioso c o s
tume de localizar a sala de jantar no úl t imo piso da casa,
juntamente c o m o serviço que também ocupava o sótão,
onde moravam as mucamas, f icando os escravos e casais
nos baixos da edificação ou na senzala, nos fundos do
quintal, juntamente c o m a cocheira. Havia passagem de
serviço acessível pela entrada, c o n q u a n t o fosse vedado
c o m porta vazada o acesso aos andares pela escada dis
posta c o m o devido recuo e atravessada em relação ao lote
para dar lugar à lo ja e às salas de cima, de frente para a
rua. N ã o havendo comércio , formava-se o saguão c o m pa
tamar de convite para o lanço de altos degraus resguarda
dos por treliça ou recortes de madeira, senão de t o d o
escondidos; nesse saguão ficava eventualmente a cadeiri-
nha, tudo na forma usual, c o m o em Minas, no R i o e alhu
res. Ass im, o e s c r i t ó r i o , as salas de receber e o u t r o s
aposentos ocupavam o primeiro andar, e os demais quar
tos e alcovas o piso intermediário. Construções geralmente
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A N O T A Ç Õ E S A O C O R R E R D A L E M B R A N Ç A
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feitas com alvenaria de t i jolo. O maior apego por esse ma
terial fabricado em vários tamanhos e sempre da melhor
qualidade, embora o seu emprego fosse comum em Portu
gal, mormente no sul, deveu-se, sem dúvida, ao prolonga
do convívio com o "flamengo", c o m o então se dizia.
Outra característica desses sobrados de Recife e Olinda
são os robustos consolos de pedra para apoio do piso de
tábuas das sacadas com painéis de almofadas e treliça onde
assentavam as caixas dos muxarabies, ou muxarabis, e, vez por
outra, os pontaletes de sustentação de uma coberta alpen-
drada, havendo então encaixes, rente à parede e também de
pedra, dispostos lateralmente na altura das vergas, para
receber o devido frechal. Ao contrário do que ocorre em
Pernambuco, na Paraíba o piso da sacada é sempre de pe
dra com perfllatura nos bordos, o que confere ao conjunto
aparência diferente, mais pesada.
Essas caixas sacadas ou rasas, isto é, s implesmente
s o b r e p o s t a s ao enquadramento dos vãos, de t radição
muçulmana, que permitem resguardo sem pre juízo da
ventilação, foram usadas em toda a colônia, sobretudo nas

A R Q U I T E T U R A
ruelas estreitas onde os c ô m o d o s se devassavam. F o t o
grafias de 1 8 6 0 mostram que eram comuns em S ã o Pau
lo , juntamente c o m os grandes beirais de nível e forrados.
C o m a vinda da corte , esse costume que conferia à
cidade cer to ar oriental chocou os fidalgos e elas foram
obrigatoriamente arrancadas e substituídas por venezia
nas e vidraças de guilhotina ou de abrir "à francesa", sur
gindo então, no R i o , principalmente, as graciosas sacadas
de ferro dispondo nos cantos de barras verticais espiraladast
para pendurar luminárias. Assim, essas reixas de madeira
foram sumindo, e dos s impáticos muxarabis avulsos de
encaixar nas sacadas sobrou apenas um, em todo o país
— o de Diamantina.
6 — A cidade de Salvador do século X V I I e primei
ra metade de setecentos, quando ainda sede do Governo
Geral, era uma cidade marcadamente aristocrática, de uma
aristocracia a um t e m p o rural e urbana, de senhores e
escravos; e a arquitetura de suas grandes casas, de porte
severo e nobre, onde avultam belas portadas e lenços de
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A N O T A Ç Õ E S A O C O R R E R D A L E M B R A N Ç A
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pedra, quer dizer, peitoris inteir iços de cantaria, não teve
paralelo no país, salvo a imponente casa chamada "dos
C o n t o s " , em O u r o Preto , c o m o seu senhorial saguão t i
picamente português.
E s t e caráter próprio e inconfundível, embora ainda
acentuadamente lus i tano, fo i aos p o u c o s se di luindo,
minado por uma crescente burguesia menos comprome
tida c o m os antigos dogmas e valores, e pela miscigena
ção. Assim, passo a passo, aquela solidez, aquela carrure
foi se perdendo e a graça e o dengue crioulo se foram in
sinuando na feição arquitetônica das casas, não somente
em Salvador, c o m o em Cachoeira, principalmente: os vãos
se alteiam e os seus enquadramentos enfeitados são de-
cepados no encontro das tábuas extravasadas dos p e i t o
ris, com simples palmetas de remate, característica esta
exclusivamente baiana que plasticamente os enfraquece;
os cordões das caixilharias se entrecruzam em capricho
sos e alegres arranjos e a cor intervém.
Tudo is to contr ibui para dar à cidade a sua graça, e
conquanto a presença sóbria e aristocrática da casa, de

A R Q U I T E T U R A
começo de setecentos, que sobreviveu c o m as suas saca
das de ferro batido, sua rica portada e seteiras, possa pa
recer, à primeira vista, meio contrafeita, é precisamente
esse variado e consent ido convívio — esta simultaneida-
de — que atrai e seduz e faz da Bahia o que ela é.
7 — Na região do R i o de Janeiro floresceu — o ter
mo é bem este — uma arquitetura rural alpendrada c o m
colunas toscanas à moda do M i n h o , mas tudo caiado de
branco à maneira da Estremadura, de que a casa de fazen
da do Colubandê com a sua importante capela anexa, cuja
imagem de Sant 'Anna consta do Santuário Mariano, é,
sem favor, o mais gracioso e puro exemplar. Debre t dedi
ca a prancha 42 do seu precioso documentário a esse es
tilo de casa t ípico da região, confrontando a sua planta
com o esquema da casa romana — operistilo, o impluviutn. o
tricltntOy ou sala de jantar, aos fundos, c o m o f icou na n o s
sa tradição. Existe algo semelhante em outras áreas do
país, mas não c o m o mesmo apuro e constância, e geral
mente são casas com o avarandado todo à volta, c o m o no
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Ceará, por exemplo, e de construção mais simples: fustes
ci l índricos praticamente sem base nem capitei, e encai-
bramento apertado, de pau rolíço, j u s t o o necessário para
receber de cada vez uma fiada apenas de telha-vã.
No c a m i n h o da serra, as ant igas e belas fazendas
da Samambaia , do Padre Corre ia e de S a n t o A n t ô n i o
já t ê m os s u p o r t e s das varandas de madeira, de seção
quadrada, c o m o bisel nas arestas l i m i t a d o à parte c o r
respondente ao fus te , ainda c o n f o r m e a velha t radição
medieval ; e em M i n a s , então , prevalece def ini t iva , t a n
to nas pequenas c o m o nas grandes fazendas , uma a p u
rada t é c n i c a de pau-a -p ique , c o m a part icular idade de ,
mantidas as tacaniças nos t o p o s do te lhado, descer c o m
as águas m a i o r e s a fim de c o b r i r o lanço das varandas
à f rente e aos f u n d o s , onde es tão as escadas de acesso .
M e s m o perto de Brasília ainda existe a robusta c o n s
trução da casa c o m engenho que foi de Joaquim Alves de
Oliveira — hoje conhecida c o m o Babilônia —, louvada
p o r Saint-Hila ire pela sua exemplar organização, e, até
mesmo para os lados da Chapada dos Guimarães, em M a t o

A R Q U I T E T U R A
Grosso , a rústica fazenda do Abri longo também c o m en
genho incorporado à casa.
Cur ioso é que embora a importante fazenda de Pau-
d'Alho, no vale do Paraíba, ainda ostente a sua varanda
recuperada por Luiz Saia, em toda a área paul is to- f lumi
nense no chamado cic lo do café, os ca saro es rurais passa
ram a ignorar a t radição das varandas, pre fer indo os
renques cont ínuos de janelas, apenas interrompidos pelo
pequeno terraço central de acesso e pela escada de pedra,
c o m guarda-corpo de ferro se abrindo em leque.
Conquanto nas grandes fazendas a implantação das casas
com os seus engenhos, terreiros, oficinas e senzalas variasse
m u i t o — e sobraram exemplares de alto significado arquite
tônico como, além da referida Pau-d'Alho e da opulenta fa
zenda do Resgate, a do R i o de São João, a do Manso e a de
Boa Esperança, em Minas, a do Poço Comprido, em Per
nambuco, os dois chamados sítios de Santo Antônio e do
Padre Inácio em São Paulo, e tantas m a i s — , o seu arcabouço
estrutural, mormente nos casos de construções de pau-a-
pique ou de pilares autônomos de alvenaria, obedecia ao es-
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quema de crescimento retangular em torno de um niicleo
central, servindo os esteios intermediários de apoio ao am
plo telhado, independentemente do emprego da clássica te
soura então ainda desconhecida dos colonos, uma vez que o
seu uso processou-se lentamente depois de estreada na igre
ja jesuíta de São Roque, em Lisboa.
O u t r a característica marcante da arquitetura rural é
a constante presença da capela, seja incorporada à casa,
c o m vão de treliça para peça contígua, a f im de a família
poder assistir à missa na intimidade, enquanto os " o u
t ros" , inclusive os escravos, dispunham da varanda, c o m o
nave, ou então desgarrada, algumas de grande porte , o u
tras c o m riquíssima talha, c o m o a do Engenho B o n i t o ,
em Pernambuco, a casa se foi , a capela f icou.
8 — O revestimento de azulejos nas fachadas das casas,
característica do século X I X , ocorreu em toda a faixa l i to
rânea — em Minas não há exemplo — de Belém e de São
Luís, onde foi mais freqüente, a Porto Alegre, onde foi mais
elaborado, com azulejos especiais para pilastras e capiteis.

A R Q U I T E T U R A
No R i o de Janeiro foram comuníssimos juntamente com
vasos e estatuetas no coroamento das platibandas e telhões
esmaltados, de fundo azul ou branco, nos beirais. Conquan
to procedentes na sua maioria da fábrica de Santo A n t ô
nio, no Porto, lá são raríssimos, isto porque a cidade já estava
pronta — vinha tudo para cá.
É, aliás, interessante assinalar o importante papel dessa
cerâmica no processo de assimilação do neoclássico no país.
Imposto pela missão francesa, embora prenunciado por ar
quitetos reinóis — um deles, consultado à vista do risco da
"obra já feita até a empena", sobre o modo como rematá-la
— risco bisonho mas gracioso da igreja do Carmo de São
João dei Rei, conservado no Museu de Ouro Preto —, foi
taxativo: só demolindo tudo para refazer de acordo com as
regras. E que o despojamento e a contida sobriedade do novo
estilo haviam violentado, de certo modo, os laivos remanes
centes do gosto rococó do período anterior. Assim, o brilho
e a cor do revestimento azulejado dos panos nus de parede,
das platibandas e frontões das eruditas e severas fachadas
neoclássicas contribuíram para amenizar-lhes o impacto do
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confronto com os telhões de louça dos beirais renascidos e
para integrá-los tanto na paisagem urbana quanto na dos
arrabaldes, onde passaram a conviver muito bem com as man
gueiras, a jaqueira e o pé de fruta-pão.
9 — Sacadas sobre bacias de pedra nas construções
de alvenaria, ou sobre barrotes em balanço nas de pau-a-
pique, bem c o m o balcões corridos, foram comuns, pr i
meiramente protegidos por forte guarda-corpo de ferro
for jado, com a característica portuguesa de dispor uma
barra horizontal a um terço da altura da sacada, levando-
se apenas as peças verticais extremas e uma ou duas in
termediárias até a barra de peito. Essa disposição peculiar
se repete nas sacadas com balaústres de madeira torneada,
solução corrente em O u r o Preto , por exemplo. Sacadas,
c o m o a de Sabará, c o m elegantes balaústres de perfil s i
métr ico de gos to ainda renascentista, de uso tão genera
l izado no n o r t e de Portugal , são raras aqui . Em S ã o
Cristóvão, antiga capital de Sergipe, rica em obras de arte,
há dois exemplos valiosos, um de sacadas isoladas c o m

A R Q U I T E T U R A
robusta e bem desenhada perfilatura, out ro c o m balcão
corrido, de madeira entalhada e risco apuradíssimo. As
reixas graúdas de madeira e os caprichosos recortes, en
talados nos vãos, são também comuns . Durante o I m p é
rio multiplicaram-se as sacadas de barras finas de ferro
de elaborado e repetido desenho, até que as grades de
ferro fundido, iniciadas pelos ar t í f i ces da M i s s ã o L e -
breton, c o m moldes clássicos, passaram a prevalecer mas
já então c o m densos modelos de esti lo indefinido.
10 — Nas casas mais antigas, presumivelmente nas
dos fins do século X V I e durante todo o século seguinte,
predominavam os cheios na relação dos vãos com as pare
des; à medida, porém, que a vida se tornava mais fácil e
policiada, o número de janelas ia aumentando; já no século
X V I I I , cheios e vazios se equilibram, e no começo do sécu
lo X I X , predominam francamente os vãos; de 1 8 5 0 em
diante as ombreiras quase se tocam, até que a fachada, no
final do século, se apresenta praticamente toda aberta, ten
do os vãos mui tas vezes ombre ira c o m u m . C o n t u d o ,
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caixilharia inteira, de fora a fora e de alto a baixo, como
ocorre na bela frontaria tão atual da Misericórdia de Parati,
é coisa rara. Cronologicamente, a proporção dos vãos ten
de a se altear, as vergas mantêm-se retas até meados de se-
tecentos, quando passam a ser arqueadas e acrescidas de
cornija. No começo do século X I X , já por influência do
neoclassicismo, voltam a ser retas com enquadramento l i
geiramente mais leve, e surgem os vãos de volta redonda,
ou seja, de meio círculo. É então que as bandeiras ou a parte
superior dos caixilhos passam a se enfeitar com elegantes e
caprichosos desenhos, o que confere à arquitetura do S e
gundo Reinado um encanto muito especial.
No Mapa Arquitetural do Rio de Janeiro dessa época, ela
borado por João da Rocha Fragoso, o centro da cidade de
repente ressurge, figurado de corpo inteiro c o m as suas
fachadas perfiladas ombro a ombro, casa por casa, rua p o r
rua, a nos revelar a unidade arquitetônica e urbanística que
para sempre se perdeu. Datado de 1&74, sete anos antes
do seu autor perder a razão — em 1 8 8 l fo i " julgado s o
frer de alienação mental incurável" —, esse precioso docu-

A R Q U I T E T U R A
mentário iconográfico mostra com imorredoura precisão
c o m o era então a cidade, dando assim sobrevivência e uma
razão maior, imprevista, à sua própria vida.
II — O aqueduto dos arcos dominava a paisagem
urbana, levando lentamente no seu dorso as águas do rio
Carioca até alcançar o gracioso chafariz barroco f ielmen
te "retratado" , p o r T h o m a s Ender, esse admirável e bene
m é r i t o documentador do R i o de Janeiro e das demais
regiões por onde andou.
Foi muito desigual o tratamento dado aos chafarizes,
ou bicas, nas cidades coloniais. Se em São Luís, no M a
ranhão, o seu adro rebaixado serve agora para demonstra
ções de Bumba-meu-Boi , e em Goiás Velho o imponente
chafariz da praça triangular em aclive ainda funciona; se no
R i o eles foram vários, alguns arquitetonicamente valiosos,
como o do antigo Largo do Paço, onde à moda portuguesa
o granito se associou ao calcário de lioz, tal c o m o também
ocorreu no portão do Passeio Público e na igreja da Santa
Cruz dos Militares, obras onde mestre Vilentim deixou a
60

A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A
61
sua marca, em cidades importantes como Salvador, Recife,
Olinda etc. foram de certo modo menosprezados, ao con
trário do que sucedeu em Minas Gerais, onde avultam,
principalmente na antiga Vila Rica, e por sua variedade e
beleza contribuem, juntamente com as pontes, para tornar
a cidade mais humana e acolhedora. Desde o da Casa dos
Contos , que impressiona por sua desenvoltura plástica e
robustez, ao pitoresco chafariz do Largo de Marília que,
num pseudo-restauro simplista, chegou a sofrer a sumária
amputação do seu delicado coroamento, apenas porque era
de massa e não de pedra. Mutilação depois competente-
mente "reimplantada" pelo antigo Sphan, na base de docu
mentação fotográfica, graças a outro austríaco de nascença,
como Ender, o escultor Max Grossman, homem discreto,
calado e bom: proibido pelo médico de nadar por ter sofri
do enfarte, salvou uma moça que, sozinha, se afogava na
praia de Copacabana e, em seguida, morreu.
12 — A i n d a que os grandes senhores de engenho dis-
pusessem, desde o primeiro século, de ricas alfaias vindas

A R Q U I T E T U R A
da metrópole e do Oriente, conforme constatou Cardim,
na maioria das casas o mobiliário era de início sóbrio: além
de pequeno oratório com o santo de confiança, camas, ca
deiras, bancos, mesas e arcas; arcas e baús ou caixões, como
então se dizia, para ter onde meter a tralha toda, E isto não
só porque as modas da corte chegavam aqui com muito
atraso e se infiltravam pela vastidão do território da co lô
nia ainda com maior lentidão, mas também porque não havia
nenhum interesse particular que estimulasse e justificasse
a adoção apressada de formas novas em substituição de ou
tras já consagradas, quando a maneira de viver e todo o
quadro social continuavam não somente inalterados, mas
sem perspectivas próximas de alteração. E tanto mais que
o clima, geralmente quente, o uso das redes e o costume
nativo e oriental de sentar sobre esteira — ou tapete — no
chão não estimulavam o aconchego dos interiores, nem os
arranjos supérfluos ou de aparato.
Contudo, as peças em si eram trabalhadas com gosto e
o devido apuro, não só porque a tradição do ofício era fazê-
las assim, como porque os oficiais e seus ajudantes eram,
62

a n o t a ç õ e s a o c o r r e r d a l e m b r a n ç a
6 3
muitas vezes, gente da casa, escravos, cujos dotes naturais,
em boa hora revelados, a conveniência do senhor havia sabi
do aproveitar. Trabalhando sem pressa nem possibilidade de
lucro, o prazer defazer bem-feito era tudo que importava: isto ao
menos era deles — o dono não podia tirar.
C o m o correr do tempo os modismos importados,
correspondentes às mudanças de gosto e de estilo peculia
res a cada reinado — D. Pedro II, D. João V D. José , D o n a
Maria —, foram adquirindo feição própria local, diferen
ciada, o que permite aos entendidos identificá-las c o m o
procedentes de Goiás , de Minas, da Bahia, do N o r t e ou
do Sul. A esse propósito é preciso acabar c o m o to lo cos
tume de chamar de "holandesas" mesas t ipicamente luso-
mineiras, devidas ao afluxo de sangue novo da metrópole
— de Guimarães e de outros termos — atraído pela gran
de procura de carpinteiros e marceneiros nas terras de
Minas, no chamado Cic lo do O u r o .
13 — As casas de câmara e cadeia, da mínima de Pilar
de Goiás , à mais opulenta da antiga Vila R i c a e à mais

a r q u i t e t u r a
64
bela e genuinamente portuguesa, de Mariana, obedeciam
ao odioso cos tume lusitano de assentar sem rodeios o
poder sobre a cadeia — embaixo, no térreo, c o m vãos
for temente gradeados e paredes, pisos e forros reforça
dos, os presos; em cima, no andar, os senhores conselhei
ros. M a s c o m o toda medalha tem seu reverso, o sistema
oferecia certas vantagens c o m o a cont ínua ciência das
autoridades pelo que ocorresse, e a acessibilidade aos pre
sos, através das grades, da família ou de quem passasse:
um bilhete, um doce, um olhar — uma flor.
14 — Foram numerosas as fortif icações ao longo do
litoral, mas nenhuma do porte espetacular de Macapá, na
f o z do Amazonas, ou impressionante como, no interior, o
Forte Príncipe da Beira, na Rondônia, à margem do Gua-
poré, ou, ainda, da pureza formal do São Marcelo, na baía
de Todos os Santos. Sólidas e bem projetadas estruturas,
baseadas em especificações minuciosas e, no caso do belo
Forte dos Reis Magos, manuscritas e muito bem redigidas
pelo erudito arquiteto Frias de Mesquita , o mesmo que

A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA LEMBRANÇA
6 5
projetou o Moste i ro de São Bento, no R i o , nunca serviram
para nada, tal qual os dispendiosos armamentos de hoje,
destinados a sucata. A sua finalidade foi meramente sim
bólica, como selos da presença real de sua majestade.
15 — Tanto na construção das fort i f icações e dos
edifícios públicos, como, principalmente, na das igrejas de
irmandades, os projetos, ou riscos como então se dizia, eram
sempre acompanhados de minuciosas e precisas especi
ficações. Essa expressão risco não deve ser interpretada como
simples "desenho", mas como desenho visando ao feit io
ou à elaboração de alguma coisa, correspondendo assim à
expressão inglesa design.
Aprovado o pro je to , era feita concorrência para es
colha do mestre do of í c io em causa — pedreiro, carpin
te i ro , enta lhador — p o r emprei tada ou a j o r n a l e os
trabalhos eram conduzidos com exemplar cuidado e acom
panhados de constantes louvações para dirimir dúvidas e
conferir medições, sendo os louvados profissionais já con
sagrados, inclusive "professores" , c o m o consta em alguns

A R Q U I T E T U R A
documentos . Tudo levado muito a sério e até mesmo c o m
exagerado rigor, a p o n t o de — segundo cer tos tes tamen
t o s — m u i t o mestre, depois de uma vida penosa de c o n s
tante trabalho, morrer na miséria e endividado.
16 — D e p o i s das improvisadas capelas "de pouca
dura", foram construídas, ainda nos anos de quinhentos
e seiscentos, numerosas capelas alpendradas, c o m o era c o
m u m em Portugal. Frei Palácios foi sepultado no "alpen
dre da capela", no convento que se iniciava no a l to da
Penha, no Espír i to Santo . Compunham-se de adro, alpen
dre c o m porta e duas pequenas janelas gradeadas, de pei-
torí l baixo para que os fiéis, mesmo de fora, pudessem
divisar o altar separado da nave por um arco e, muitas
vezes, coroado por pequena cúpula definidora do espaço
sagrado, c u j o extradorso era cober to de telhas, e, f inal
mente, da sacristia num corpo lateral mais baixo c o m água
própria, sendo o acesso à sineira e ao coro por escada ex
terna, eventualmente coberta . A própria Penha do R i o
começou c o m uma capela desse t ipo.
6 6

A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA LEMBRANÇA
6 7
A Sé de Ol inda, c o m o a do Castelo, ainda foi c o n s
truída c o m arcos sobre colunas de ordem toscana forman
do naves, nos moldes usuais da metrópole , antes que os
jesuítas inovassem a nave única c o m visão desobstruída
para o pregador e para o altar, inovação desde logo trazida
pelo irmão arquiteto Francisco Dias quando, em 1 5 8 0 ,
projetou e construiu a nossa primeira igreja com pedigree,
a da Graça, em Olinda, martirizada pelo holandês.
Assim, as nossas igrejas, no começo , foram simples
e claras, com o óculo inicial do frontispício da Graça trans
ferido para a empena de frontão reto, duas janelas no coro
e uma porta só.
C o m o correr do tempo esse esquema singelo fo í
sendo alterado: surgiram os corredores laterais c o m tr i
bunas no andar e a nave escureceu; a talha alastrou; m u l
tiplicaram-se as portas e janelas na fachada e a primitiva
unidade se perdeu. Só dois séculos depois, em Minas , ele
fo i retomado, no princípio de setecentos, até desabrochar
— claro e mist icamente alegre de novo — na obra-prima
que é a igreja de S ã o Francisco de Assis, em O u r o Pre to .

ARQUITETURA
I S S O S.JCVH 1 7 6 6
17 — No Nordeste, como constatou Ayrton Carva
lho, as igrejas de pedra e cal, tanto antes como depois da
ocupação, tiveram seu espaço interno compartimentado numa
trama arquitetônica de cantaria — pilastras, arcos, cornijas,
enquadramento de vãos — que contrastava com o branco
das paredes caiadas e delimitava as reentrâncias de maior ou
menor profundidade destinadas a receber os altares laterais
e seus retábulos, os primeiros ainda de pedra, como era c o
mum na fase renascentista — ou, melhor, "mane i r i s ta "—
em seguida os de madeira dourada. C o m o tempo, essa talha
extravasou dos limites que lhe eram impostos e passou a
recobrir os próprios elementos arquitetônicos moldurados
que a enclausuravam, constituindo-se assim, essa forração
de alto a baixo, num monumental cofre de madeira esculpi-
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A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA LEMBRANÇA
6 9
da, encaixado no corpo original de alvenaria de pedra, fican
do desse modo encobertos os pormenores já prontos e aca
bados da comodulação de cantaria.
O forro era como que a tampa desse cofre revestido
de ouro, inicialmente formando painéis enquadrados para
receber pintura, depois com tabuado liso contínuo para per
mitir a livre expansão dos arabescos florais, e, finalmente,
a perspectiva arquitetônica, como se o teto todo se abrisse
numa explosão de balaustradas, colunas e arcos entremea
dos de guirlandas floridas, de anjos, de nuvens para a g l o -
rifícação dos santos e de Nossa Senhora em pleno céu.
Assim, a ambientarão míst ica es truturalmente o b
tida nas catedrais gót icas c o m os a l tos feixes de pilares
que se abriam em ogivas nas abóbadas, e c o m o rendi-
lhado das rosáceas e dos tênues mainéis onde resplen-
diam os vitrais, passara c o m a ordem nova dos jesuí tas ,
depois da C o n t r a - R e f o r m a , e graças ao ar t i f í c ioso en
genho de art istas c o m o o padre P o z z o e T i e p o l o , a ser
alcançada através do c o n t a t o direto c o m a visualização
idealizada da própria a tmosfera ce leste .

A R Q U I T E T U R A
M l i T l t l i n O GÓTICO MISTICUMO t l A M M X à .
Tal como na Idade Média, quando os escultores trata
vam com igual apuro tanto as ilhargas e os tímpanos das
monumentais portadas, como as figuras perdidas nos mais
altos pináculos, ao alcance visual apenas dos anjos, também
no interior das igrejas barrocas, lado a lado com o despo-
jamento pessoal dos religiosos, prevalecia o propósito de que
rer sempre aplicar o que fosse melhor, mais rico, mais belo,
sem poupar esforços e sacrifícios, num esbanjamento ma-
7 0

A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA LEMBRANÇA
terial, paradoxalmente legítimo, porque em honra e louvação
de uma simples idéia, de uma profunda convicção do espírito.
18 — Enquanto na colônia anglo-saxã do norte , o
puritanismo associado ao pragmatismo e à industriosa
busca da felicidade terrena conduziram à prosperidade
coletiva e à riqueza pessoal, nas colônias latinas, afora a
obsedante busca do ouro, da prata e das pedras preciosas,
toda a atividade dos vários of íc ios e energia criativa foi
principalmente concentrada no fabrico de igrejas e con
ventos — igrejas matrizes, igrejas de irmandades e de ir
mãos terceiros, mormente em Minas onde o acesso direto
das ordens religiosas ao ouro fora vedado pelo rei.
Avultam, de fato, nas cidades coloniais, o perfil das igre
jas e a massa edificada dos mosteiros e conventos. Assim,
por exemplo, em Salvador, o colégio e a solene igreja dos j e
suítas, com a sua imponente sacristia que, como a da rica e
bela igreja do Carmo de Cachoeira, não tem nada que se lhes
compare; a opulenta igreja do monumental convento fran-
ciscano, com o seu belíssimo claustro azulejado, o que tam
bém caracteriza, embora em menores proporções, mas com a
7 1

A R Q U I T E T U R A
mesma graça, os numerosos conventos da ordem no N o r
deste, cujas igrejas apresentam em comum a particularidade
de ter as fachadas escalonadas, com o coro montado sobre a
parte central de um pórtico de cinco arcos, e uma só torre,
recuada, bem como a de dispor de adro e cruzeiro, além das
preciosas capelas anexas; os mosteiros beneditinos, o do R io ,
valioso relicário de arte sacra, o de Ol inda, c o m a sua
apuradíssima talha portuguesa; as matrizes mineiras, pobres
por fora, ricas por dentro, como as do Pilar em Ouro Preto,
a da Conceição de Sabará — com a jóia de Nossa Senhora
do Ó, mais além —, a de Tiradentes dispondo de órgão e de
fabuloso retábulo devido a mestre Sampayo; ou mesmo em
lugares perdidos c o m o Brumai, um esplêndido exemplar
intacto da primeira metade de setecentos, ou, em Santa Ri ta
Durão, a linda igreja de Nossa Senhora do Rosário.
A talha dos retábulos evolui, passando do maneirismo
ainda renascentista da primeira fase, e do protobarroco
de colunas torsas e arquivoltas concêntricas, à explosão
do barroco propriamente di to , até alcançar a graça final
do chamado " r o c o c ó " que antecede a volta à linha reta e à
concisão do neoclassicismo.
7 2

7 3

A R Q U I T E T U R A
7 4
São tantas, porém, as preciosidades arquitetônicas es
palhadas pelo país que é impossível enumerá-las nestas sim
ples anotações, e se desse aparente desperdício resultou —
de par com o acervo monumental — a pobreza, há contudo
algo de positivo a ressaltar, do ponto de vista comunitário e
social, em tão chocante constatação. E que, durante a C o l ô
nia e o I m p é r i o — c o m o ainda a g o r a — t o d a essa opulência,
toda essa riqueza física e espiritual contida nas igrejas anti
gas, esteve sempre — e ainda está — à disposição de qual
quer um, ao alcance do povo. Seja qual for o seu estado de
espírito, qualquer que seja a sua condição, você pode usu
fruí-la, ela é sua — é só entrar e ficar lá.

INTERMEZZO
C a t a s A l t a s d o M a t o D e n t r o
Em 1 9 2 7 passei cerca de um mês no Caraça.
No ú l t imo dia do ano, c o m o j u m e n t o resvalando
nas pedras soltas da serra, desci até Catas Altas do M a t o
D e n t r o , para visitar a rica matr iz .
Estava deserta. Apenas uma velhinha sentada num dos
bancos.
Em meio ao esplendor da talha, dos dourados, das
imagens, das pinturas, ela se sentia visivelmente em casa.
Estava ali à vontade, como se tudo aquilo tivesse sido con
cebido para o seu uso e gozo exclusivo, c o m o se tudo lhe
pertencesse.
Morava num casebre, mas dispunha da imensa nave
e dos gigantescos retábulos para sua conversa diária —
em clima de graça, louvor e glória — com Nossa Senhora
e o Senhor.
7 5

A R Q U I T E T U R A

INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
7 7
19 — Cabe, finalmente, uma referência especial à gran
de obra realizada pelos padres nos chamados Sete Povos
das Missões, obra que, pertencendo embora à Província
Jesuítica do Paraguai, f icou definitivamente encravada no
país, constituindo assim um setor autônomo no conjunto
dos monumentos coloniais brasileiros.
Cada povo — isto é, cada burgo — era const i tu ído
pela igreja que compunha com a residência dos padres, o
asilo, a enfermaria, as aulas, as oficinas, as cocheiras e t c ,
e também com o cemitério, um grande con junto arquite
tônico , servido por vários pátios, tudo murado, muro que
se continuava para os fundos das construções abarcando
a enorme área ocupada pelo pomar e pela horta, ou seja, a
quinta dos padres.
Em frente à igreja, havia um grande terreiro ou pra
ça, em volta do qual eram dispostos numerosos blocos
de habitação coletiva, c o m p o s t o s de muitas células de
c inco metros por sete, aproximadamente , verdadeiros
apartamentos com porta e janela e construídos c o m pare
des de pedra ou de barro, morando em cada um deles uma

ARQUITETURA
família de índios. Um passeio alpendrado circundava es
ses blocos de habitação que correspondiam a verdadeiras
quadras. Os primeiros blocos construídos eram os que
formavam a praça; depois, à medida que o povo crescia,
novos blocos eram edificados paralelamente aos primei
ros, surgindo dessa forma, entre eles, numerosas ruas,
todas em esquadro, à moda espanhola.
Estes povos, com as respectivas estâncias para criação
de gado, ficavam a uma distância razoável uns dos outros,
formando a seqüência deles um todo orgânico e perfeita
mente articulado. Os jesuítas revelaram-se, nestas Missões,
urbanistas notáveis, e a obra deles, tanto pelo espírito de
organização como pela força e pelo fôlego, faz lembrar a
dos romanos nos confins do Império. Apesar do atual des
mantelo, ainda se adivinha nos menores fragmentos uma
seiva, um vigor, um "impulso", digamos assim, que os tor
na — estejam onde estiverem — inconfundíveis. A nossa
interferência no caso foi apenas demolidora: conseguimos
desmontar, peça por peça, a obra singular criada pelo gênio
colonizador e sob a tutela dos padres.
7 8

INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
Só mesmo quando se percorreu, um a um, esses p o
vos, repetindo a peregrinação feita em fins do século pas
sado por Hemetér io Veloso, cujo depoimento é, hoje, dos
mais valiosos, pois que ainda havia ali, então, muita coisa
para ver; quando se estuda a história dramática da instala
ção das primeiras "reduções" e das lutas que antecederam
ao definitivo abandono e, ainda, documentação antiga re
ferente à arquitetura missioneira, é que se pode ajuizar e
reconstituir mentalmente o que foram esses povos na é p o
ca do seu florescimento, quando, na bruma da manhã, cada
dia, todos aqueles índios saíam das casas, atravessando o
terreiro em direção da igreja: S a n t o Ângelo, S ã o Luiz
Gonzaga, São Borja — cidades que, não fossem a praça e
uns poucos vestígios isolados, já teriam esquecido c o m
pletamente o aspecto primitivo; São João Baptista, São
Miguel Arcanjo, São Lourenço e São Nicolau — ruínas
perdidas naquele ermo da campanha rio-grandense, com
uma ou outra casa próxima, construída com material anti
go, ou certo número delas formando novo povoado.
C o m exceção das ruínas monumentais de São Miguel,
7 9

A R Q U I T E T U R A
8 0
recuperadas pelo antigo S P H A N , pouca coisa f i c o u ; pe
ças que, sobrevivendo à catástrofe, por assim dizer, " d e
ram à praia": capiteis, cartelas partidas vermelho-ferrugem,
ainda c o m o I H S , os três cravos e a cruz, imagens mut i
ladas e já sem cor — peças cuja vista nos deixa uma im
pressão penosa e c e r t o mal-estar , c o m o se realmente
estivéssemos diante dos destroços de algum naufrágio.
C o m o remate destas anotações avulsas referentes à
nossa tradição, cujo objetivo foi apenas facilitar o enten
dimento e despertar a curiosidade, cabem algumas consta
tações de alcance mais abrangente:
I — É, na verdade, impressionante que um programa
tão simples como o da igreja — nave, altar e sacristia —
tenha comportado, através dos tempos, tamanha variedade
de soluções — desde as primeiras, ainda inspiradas nas an
tigas basílicas, seguidas das inovadoras cúpulas bizantinas,
das severas naves românicas, dos luminosos transeptos góti
cos, da volta à clareza geométrica renascentista e do desaba
fo barroco —, até chegar à comovente capela de Ronchamp,
na França, e à bela estrutura da catedral de Brasília.

INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
8 1
2 — S ã o Pedro de R o m a é um exemplo de c o m o a
arquitetura pode ajustar-se tão integralmente à idéia que
lhe cabe expressar, que , já agora, se t o r n a impossível
dissociar o c o n c e i t o de papado, c o m o principal veículo
e s ímbolo universal da fé cristã, da imagem arquitetônica
que sucessivos art istas lhe confer i ram: a dbside e a cúpu
la de Migue l Ângelo , a nave acrescida por Maderna, o
adro e a praça f ronte ira del imitada pela m o n u m e n t a l
colunata de Bernini , que ainda contr ibuiu c o m o resplen-
dor do retábulo e o imenso e fabuloso baliaquino de bron
ze, na justa medida e no lugar cer to . Cabendo igualmente
constatar a incrível coragem e visão desses homens —
papas e art istas — capazes de enfrentar c o m paixão ta
manho empreendimento . Basta considerar o caso da fa
mosa cúpula que, c o m o sua antecessora, a obra-pr ima
do Brunel lesco , em Florença , é imensa t a n t o vista de
longe c o m o de per to , t o d o s se perguntando c o m o foi
possível fazer tudo aquilo naquela altura c o m os meios
restr i tos da época; c o m o também o caso dessa bel íssima
praça nascida do ges to inspirado de um simples r isco

A R Q U I T E T U R A
— assim c o m o procede o nosso Oscar* —, sem c o n s i
derar secjuer a perspectiva do l o u c o e l e n t o trabalho de
anos e anos a f i o : trazer os matacões da pedreira para o
canteiro da obra ; lavrar, suspender e a justar c o m preci
são cada tambor, ou seja, cada b loco do fuste , à fe ição
d o g a l b o das 3 2 8 e n o r m e s c o l u n a s , rematadas p e l o
entablamento — arquitrave, f r i so , corni ja — c o m a sua
alta balaustrada, marcando-se , ainda, o p r u m o de cada
uma das co lunas voltadas para a praça, c o m o ges to e l o
qüente de uma gigantesca estátua.
E tudo isto por determinação do detentor da heran
ça de Pedro, e com tanto maior propriedade porquanto ,
na sua ovalada configuração, c o m o que simboliza a p r ó
pria rede lançada para arrebanhar os fiéis, tal c o m o ainda
agora, quase quatro séculos depois, tranqüilamente em
casa, t emos assist ido nas cerimônias divulgadas para o
mundo todo graças ao milagre — este sim — da ciência
e da tecnologia.
'O autor se refere ao arquiteto Oscar Niemeyer.
8 2

INTERMBZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
3 — A obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleija-
dinho, foi , no parecer de Germain Bazin, antigo conser-
vador-chefe do Museu do L o u v r e — p a r e c e r que subscrevo
integralmente —, a última manifestação válida de arqui
tetura e escultura cristãs, no âmbito mundial da história
da arte, antes do longo h ia to que precedeu à legít ima
reformulação arquitetônica contemporânea.
8 3


INTERMEZZO
Rot t -am- lnn
Pouco depois do f im da guerra, em 1 9 4 8 , fui ao sul
da Alemanha para conhecer as igrejas barrocas da região
contida entre o Danúbio e os Alpes, tais c o m o o imenso
e belíssimo interior de Ot tobeuren e a insuperável graça
rococó de Wies , sozinha no descampado.
M a s o que principalmente me interessava era ver o
retábulo de R o t t - a m - l n n , porque pelo exame fotográf ico
era o único que, de fato , apresentava alguma afinidade
quanto ao partido geral, inclusive a figuração no fecho da
composição, c o m os retábulos mineiros.
Depois de muito rodar fui bruscamente impedido de
prosseguir — a "autobahn atingida pelos bombardeios,
terminava bruscamente a pique. Foi necessário retroceder
a fim de pegar um atalho, estrada vicinal que não acabava
8 5

A R Q U I T E T U R A
6 6
mais, até que, já escurecendo, avistei ao longe o perfil bar
roco da igreja também solta na paisagem como Wies .
Ao me aproximar, pressenti o malogro: estava fecha
da. Apesar da frustração, caminhei em direção à porta e,
para meu espanto, ela se abriu. Percebi então ao fundo,
na penumbra, o retábulo. Contendo a emoção entrei na
nave vazia. De repente as luzes se acendem, e quando, com
o pensamento no Aleijadinho, encaro de perto o retábulo,
o u ç o os primeiros acordes de um cantochão.
Era sábado e o organista ensaiava para a missa da
manhã.

A N T Ô N I O F R A N C I S C O L I S B O A ,
O A L E I J A D I N H O
A n t ô n i o Francisco Lisboa nasceu em O u r o Preto ,
antiga Vila Rica , a 29 de agosto de 17 3 8, f i lho de Manoel
Franc isco Lisboa, carpinte i ro-arqui te to , emprei te iro e
mestre das obras reais, e de Isabel, sua escrava. 4 Segundo
descrição de Joana, nora do artista, registrada por seu
biógrafo, Rodrigo José Ferreira Bretas, "Antônio Francis
co era pardo-escuro, t inha voz forte , a fala arrebatada e o
gênio agastado; a estatura era baixa, o corpo cheio e mal
configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumo
sa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto , a
testa larga, o nariz regular e algum tanto pontiagudo, os
beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto . Até
cerca dos 40 anos teve boa saúde, tanto que cuidava sem
pre em ter mesa farta e era visto muitas vezes tomando
*Afirmaç,3o nâo confirmada.
8 7

ARQUITETURA
parte nas danças vulgares". Vila R ica a esse tempo ainda
não apresentava o perfil que conhecemos e tanto lhe deve.
A Casa da Câmara, atual Museu da Inconfidência, as igre
jas de N o s s a Senhora do Carmo, de São Francisco de
Assis, de Nossa Senhora do Rosár io e de São Francisco
de Paula ainda não existiam; mas a casa dos Governado
res, com seus baluartes e rampa de acesso c o m o se vê na
fiel reconst i tuição de Wasth Rodrigues , projetada por
Alpoim e construída precisamente pelo pai de Antônio
Francisco, já comandava a perspectiva urbana. Nascida da
busca do ouro e vencido o período inicial da implanta
ção, estava então na sua fase de prosperidade e consolida
ção, afluindo diretamente da metrópole mestres dos vários
o f í c ios para atender à intensa procura de mão-de-obra
qualificada. As matrizes de Nossa Senhora do Pilar e dc
Nossa Senhora da Conceição, de Antônio Dias, bem c o m o
a importante Capela de Nossa Senhora do Rosár io dos
Pretos , no Alto da Cruz , estavam sendo concluídas, e a
riquíssima talha dourada dos interiores contrastava de-
liberadamente com a taipa caiada e o pau-a-pique das fa-
8 8

A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
chadas de frontão reto e torres sineiras ainda cobertas de
telha. Contudo, nesse meado de século, estava-se às vés
peras de novo surto art íst ico, verdadeiro renascimento,
decorrente ainda do impulso e c o n ô m i c o anterior, mas
motivado, desta vez, pela emulação entre as irmandades
empenhadas na construção das respectivas capelas, já de
pedra e cal e mais claras, elegantes e "modernas" c o m o se
dizia também então, movimento iniciado em 1 7 5 2 em
Mariana com a nova capela do Rosário, cuja talha seria
executada em 1 7 7 0 por Francisco Vieira Servas, contem
porâneo de Antônio Francisco Lisboa. É que, enquanto
na primeira metade do século ainda prevalecia a velha e
boa tradição medieval dos arquitetos se formarem atra
vés dos of íc ios da construção, vai finalmente ocorrer em
Vila Rica , nesta segunda fase, o que sucedera na Renas
cença, ou seja, a interferência est imulante de arquitetos
oriundos do meio dos artistas plásticos. Sur to propiciado
ainda pela sedimentação da cultura e conseqüente tendên
cia à especulação intelectual e, finalmente, pelo despertar
da consciência cívica; pois apesar da clausura imposta à
8 9

A R Q U I T E T U R A
colônia, as idéias nascidas do enciclopedismo, do enligbten~
mtnt e o eco das revoluções libertárias vararam o espaço
através dos mares e montes e vales e, encontrando condi
ções adequadas, aninharam-se ali. Poetas e eruditos, prela
dos e bacharéis, músicos, arquitetos, pintores, escultores,
professores de artes mecânicas e mestres de of íc ios — t o
dos conviviam, e esse desenvolvimento intensivo, no deli
mitado espaço urbano, levou naturalmente àquele anseio
de independência que o Tiradentes, afinal, catalisou.
Foi nesse ambiente saturado de vitalidade que A n t ô
nio Francisco se formou. E não lhe faltaram mestres qua
lificados. O risco arquitetônico e as técnicas da carpintaria
e da marcenaria aprendeu desde cedo com o próprio pai e o
t io, Antônio Francisco Pombal. C o m o mestres de escultu
ra e talha, além de ter visto, ainda menino, Francisco Xavier
de Bri to trabalhar no Pilar e no Alto da Cruz, teria feito o
aprendizado tanto com Jerônimo Félix ou Felipe Vieira,
como, principalmente, c o m José C o e l h o de Noronha, a
quem assistiria em M o r r o Grande e Caeté; finalmente, nos
segredos do desenho "irregular, do melhor gosto francês",
9 0

A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
9 1
quer dizer, no estilo Luís X V — c o n f o r m e refere em 1 7 9 0
o vereador de Mariana, Joaquim José da Silva, no precioso
documento transcrito por Bretas —, com o artista grava
dor, exilado da metrópole, João Gomes Baptista.
Assim aparelhado para o exercício da sua vocação,
pode-se identificar a marca inicial da sua presença no r is
co de chafariz fe i to quando tinha apenas 13 anos para o
pátio da casa do governador, e onde já estão definidos dois
traços característ icos do seu esti lo pessoal: a graça ( n o
p e r f i l ) , e a veemência (na carranca) ; e no daquele out ro
construído ao pé da escadaria de Santa Efigênia, no Alto
da Cruz. E que o risco desse chafariz apresentado em 1 7 5 7
por seu pai é, tudo indica, de autoria, tal c o m o o anterior,

A R Q U I T E T U R A
do próprio Antônio Francisco, já então c o m 19 anos. I s to
porque na sua composição ocorre também um pormenor
revelador da intenção plástica que lhe vai marcar a obra
futura, e que é o modo peculiar c o m o os coruchéus foram
implantados: em vez de assentarem diretamente sobre as
pi lastras, na forma usual, foram criados lateralmente, num
plano recuado, dois consolos para recebê-los, ficando eles,
por tanto , fora da prumada das pilastras. Resul ta desse
art i f íc io um duplo movimento — a composição se abre
para os lados e projeta-se à frente ao mesmo tempo, ad
quirindo assim sentido dinâmico, apesar da sua estrutu
ração estática fundamental. Outra circunstância corrobora
a autoria do risco desse chafariz. E que não obstante a
sua execução, por oficiais canteiros, ser um tanto gros
seira, acha-se coroado por um imprevisto busto de m u
lher em pedra-sabão datado de I 7 6 I . O inusitado da
figuração, o galbo do plinto e o talhe dos algarismos são
outros tantos indícios veementes de afirmação precoce da
personalidade singular de Antônio Francisco Lisboa. E
sabendo-se que seu pai, M a n o e l Francisco , vivia então
9 2

A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
assoberbado de compromissos , nada mais natural senão
confiar ao fi lho, que se estava iniciando na profissão, a
desincumbência da pequena tarefa.
Trabalho talvez atribuível a esse primeiro período é o
oratório de jacarandá, na sacristia do Pilar, cujo fundo é
tratado em caneluras, solução só encontrada, depois, no la-
vatório de São Francisco de Assis, em O u r o Preto. Época
em que atuou na igreja que prometia, mas arquitetonica
mente enjeítada de M o r r o Grande, onde possivelmente
interferiu no partido de implantação das torres, e elaborou
o risco do arco da capela ainda com pés-direitos e t ímpa-
nos à moda antiga, como os fazia seu pai, mas com umas
tantas inovações, além de esculpit os anjos da tarja e a ima
gem do frontispício; e, ainda, em Caeté, onde deu o risco
para os dois ú l t imos retábulos da empreitada geral de
Coe lho de Noronha, executando o do lado da epístola, in
clusive as imagens. São numerosas as imagens avulsas cuja
autoria se lhe pode atestar, sendo das mais belas uma pe
quena Sant'Ana, onde com refinado apuro plástico se con
trapõem a serena desprevenção e a tensão premonitória.
9 3

ARQUITETURA
9 4
Em 1 7 6 6 a sua reputação já se Firmara, tanto as
sim que, havendo a Irmandade Carmel i ta encomendado
ao velho e consagrado M a n o e l Franc isco Lisboa o r isco
para a sua igreja, os irmãos terceiros de São Franc isco ,
esclarecida irmandade que congregava a maioria dos in
telectuais , não hesitaram em conf iar ao f i lho a respon
sabi l idade de p r o j e t a r capela capaz de c o n f r o n t á - l a .
R e s u l t o u dessa prova de conf iança a sua o b r a - p r i m a
arqui tetônica , na qual executou pessoalmente, além do
f ront i sp íc io c o m a portada e do lavatório da sacristia, o
retábulo da capela-mor, o barrete e os púlpi tos de pedra
inseridos de forma inusitada nas aduelas do arco-real. V ê -
se, pelo cor te preservado de uma cópia contemporânea
do r isco original, que, inicialmente, apenas a taça des
ses púlpi tos fora, na forma do c o s t u m e , prevista de p e
dra; a deliberação de fazê- los integralmente de esteati ta ,
c o m o o própr io arco, teria ocorr ido durante a c o n s t r u
ção. A integração do expressionismo dramático das fi
gurações b íb l icas no e laborado requinte ornamenta l ,
próprio do est i lo da época, é uma característ ica c o n s -

A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
tante da obra de Antônio Francisco Lisboa e o que lhe
confere a típica veemência. Lamentavelmente, apesar da
esplêndida complementação arquitetônica da pintura de
Manoel da Costa Athayde, a igreja ficou inconclusa, fal
tando-lhe o coro, as grades e os próprios altares cola
terais, que só foram executados mal e tardiamente,
embora segundo risco original. Também externamente,
as varandas laterais previstas com balaustrada e pirâmi
des de pedra-sabão, tal como consta nas minuciosas
especificações preservadas, não se fizeram, e foram in
devidamente cobertas, já em l 8 0 I , com telhado sobre
arcadas a pretexto de infiltração.
Data da mesma época dos púlpitos ( 1 7 7 1 - 7 2 ) , além
do risco para o retábulo da capela de São José, a portada
carmelita de Sabará, seguida da portada, também dos ir
mãos terceiros do Carmo, de Ouro Preto, onde, após a
morte de seu pai, elaborou, por insistência dos irmãos, novo
risco para o corpo da igreja e respectivo frontispício, em
que alteia e altera fundamentalmente o anterior, adaptan
do assim a composição arquitetônica ao seu estilo pessoal.
9 5

A R Q U I T E T U R A
9 6
Voltando a Sabará executa, sempre para o Carmo, pos
sante e magistral empena de serpentina c o r de bronze,
ainda vazada, apesar da rocalba, no arrogante espírito do
esti lo D. J o ã o V, ou Luís X I Y enquanto no risco apre
sentado após a conclusão dessa obra, em 1 7 7 4 * para a
igreja franciscana de São J o ã o dei Rey — e que não che
gou a ser realizado tal c o m o fora concebido —, a empe
na, de partido semelhante, já revela a intenção de graça
peculiar a o estilo Luís X Y o u D . José .
A portada figurada nesse risco, apesar do seu inexce-
dível apuro, c o m o desenho e composição, parece ainda
incompleta, pois ainda não havia então ocorr ido a A n t ô
nio Francisco a solução que afinal adotou na sua volta a
O u r o Preto , quatro meses depois, quando convenceu os
irmãos da necessidade de desfazer as ombreiras e a verga
da porta e de afastar as janelas do coro, já feitas, a f im de
poder realizar o novo risco de portada que trouxera. Q u e
teria sucedido de tão decisivo em tão curto espaço de tem
po, a p o n t o de just i f icar tamanho empenho e decisão?
Presume-se que de São João haja prosseguido viagem até

A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
9 7
o R i o , a fim de conhecer a famosa portada de pedra de
l ioz trazida de Lisboa em 1 7 6 1 e que, por seu porte e
beleza, avultava na frontaria inacabada da igreja carmelita
carioca. Esse impacto sugeriu-lhe então sobrepor, naque
le seu risco, às armas da ordem franciscana, o medalhão
de N o s s a Senhora encimado pela coroa real, completan
do a composição triangular com dois anjos pousados s o
bre as cornijas das pilastras laterais. Es te r isco inicial para
S ã o João dei Rey é, pois, uma realização a meio caminho,
o estágio intermediário de uma obra ainda em processo
de elaboração; o artista é, por assim dizer, surpreendido
em flagrante ao cometer o " d e l i t o " da criação, que resul
t o u na obra-prima realizada em O u r o Preto. E, assim, esta
capela franciscana adquiriu a sua feição definitiva, obra
sem paralelo, em que a energia, a força, a elegância e a
finura se irmanam, conferindo à criação arquitetônica pal-
pitação de coisa viva.
Ainda em Vila. R ica executou, depois, o belo lavató-
r io para a sacristía da Igreja do Carmo; em seguida, tam
bém em pedra-sabão, outro , para a de S ã o Francisco, ao

A R Q U I T E T U R A
9 8
que parece doado pelos sacristãos, pois não consta nos
l ivros qualquer referência a pagamento. O b r a - p r i m a e
comovente porque foi no transcurso da sua demorada
execução ( 1 7 7 7 - 7 8 - 7 9 ) que a doença o acometeu e de
formou. Perdeu o "uso dos dedos, tanto dos pés c o m o
das mãos, c o m exceção dos polegares e índices", e teve o
rosto desfigurado, o que lhe conferiu, no dizer da nora,
"expressão asquerosa e sinistra que chegava a assustar a
q u e m q u e r que o encarasse i n o p i n a d a m e n t e " , daí "a
acrimônia do seu humor, por vezes colér ico" . Já em 1 7 7 7 -
78 há registro do que se despendeu c o m dois pretos para
carregá-lo numa inspeção de serviço, e o documento o f i
cial de 1 7 9 0 , já referido, constata: "Tanta preciosidade
se acha depositada em corpo enfermo que precisa ser con
duzido a qualquer parte e atarem-se-lhe os ferros para
poder trabalhar." Passou então a ser conhecido pela alcu
nha de Aleijadinho.
Parece que a moléstia ainda o apegou mais ao traba
lho, pois a sua obra se avoluma e avulta. Conc lu indo o
f ront i sp íc io de S ã o M i g u e l e Almas, em O u r o P r e t o ,

A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
retorna a Sabará, onde faz o elegante coro, a grade, os
púlpitos e duas imagens; fornece o risco — que não teria
sido obedecido — para o altar-mor de S ã o Francisco em
S ã o J o ã o dei Rey, atendendo assim à solicitação dos ir
mãos empenhados na procura do arquiteto "em Vila Rica,
ou em qualquer parte onde se achasse". E depois de o u
tros trabalhos, na encantadora igreja do Rosário, em Santa
R i t a Durão, e na importante capela da fazenda da Jaguara,
concentra-se f inalmente de novo na sua obra-mestra, S ã o
Francisco de O u r o Preto, a fim de executar o monumen
tal retábulo da capela-mor, obra plástica de inexcedível
apuro e vigor, sonora e vibrante c o m o um canto pungen
te de glória; obra que durou de 1 7 9 0 a 9 4 . Vinte anos
depois da sua primeira visita, quando ainda são, volta a
S ã o João, onde os seus projetos foram indevidamente al
terados por Francisco de Lima Cerqueira, o respeitado
mestre-canteiro responsável pelas obras, e trabalha a j o r
nal, c o m o de costume, de 94 a 9 5 . nas portadas do C a r m o
e de S ã o Francisco.
A contradição fundamental entre o estilo da época —
9 9

ARQUITETURA
elegante e maneirado — e o ímpeto poderoso do seu tem
peramento apaixonado e tantas vezes místico, contradição
magistralmente superada, mas latente e que, por isto, de
quando em quando extravasava, é a marca indelével da sua
obra, o que lhe dá o tom singular e faz deste brasileiro das
Minas Gerais a mais alta expressão individualizada da arte
portuguesa do seu tempo. Deve-se aliás assinalar que essa
modalidade mineira da arte colonial portuguesa no Brasil
apresenta, por vezes, maior afinidade com o barroco-rococó
de entre o Danúbio e os Alpes do que com a arte metropo
litana que a gerou.
A religiosidade do Aleijadinho cresceu na medida do
seu ínt imo convívio com a hagiografia e com a Bíblia; e
do isolamento a que se impôs em conseqüência da m o
léstia resultou uma profunda comunhão da sua arte c o m
a fé. As inúmeras sentenças e os versículos que partici
pam da composição dos púlpitos e retábulos de sua au
toria se devem indubitavelmente à sua própria iniciativa
e escolha, porquanto não ocorrem na obra de nenhum
outro entalhador.
100

A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
Dedica-se, por f im, ao santuário de N o s s o Senhor
do B o m Jesus de Matos inhos , em Congonhas , para em
preender, sexagenário, a enorme tarefa de encenar, em t a
m a n h o natural , os Passos da Paixão, f iguração onde
avultam, entre a comparsaria, as imagens em corpo intei
ro do S enhor e seus discípulos, con juntos que só foram
definitivamente montados quando se concluíram as ca
pelas, depois da sua morte .
E c o m o se não bastasse c o m o remate de uma vida
inteira dedicada à arte, ainda compõe arquitetonicamen
te o adro do santuário e, no ermo da colina, enfrenta n o
vamente os toscos blocos azulados de pedra tenra de onde
extrai, sem lhes roubar a íntegra consistência, com a a ju
da dos seus oficiais — um deles, Mauríc io , morre nesse
empenho, as figuras bíblicas, gravando-lhes no gesto, nas
cartelas e na face as sentenças profét icas — Jeremias ,
Ezequiel , Habacuc , N a h u m , Joe l , Oseas , Baruc, Jonas ,
Daniel , Amos, Abdias, Isaías.
De volta a O u r o Preto dá o risco para os dois ú l t i
m o s altares colaterais do C a r m o e neles trabalha c o m
101

A R Q U I T E T U R A
Jus t ino , com quem se desentende por questões de paga
mento . Data igualmente desse período final o pro je to da
nova frontaria para a Matr iz de Tiradentes , e a consulta
dos carmelitas de Sabará, quando então propôs (sem êxi
t o ) o al teamento da capela-mor para que nela coubesse o
retábulo que concebera.
Depois , c o m o corpo chagado, amargurado e só, j a
zeu por quase dois anos num estrado de tábuas sobre dois
cepos em pequena ale ova onde conservava, no dizer de
Joana Francisca, sua nora, a imagem do Se n h or a quem
apostrofava, na sua lenta agonia, pedindo que "sobre ele
pusesse os seus divinos pés" .
1 0 2

R U P T U R A E R E F O R M U L A Ç Ã O
C o m o advento da Revolução Industrial , o processo
evolutivo se rompeu, já agora proporcionando a formula
ção de novas proposições de fundo científ ico e tecnológico
ainda mais revolucionárias, cujas implicações de ordem
ética e f i losófica afetam e condicionam o grande drama
humano, econômico e social em que o mundo se debate
— esse imenso puzgle que se veio armando pacientemen
te , peça por peça, durante todo o século passado e neste
final de século se cont inua a armar c o m m u i t o m e n o s
paciência, não nos permitindo as peças que ainda faltam
a segurança de a f i r m a r se é mesmo de um anjo sem asas
que se trata, c o m o querem uns, ou, c o m o asseveram o u
tros — igualmente compenetrados —, de um demônio
imberbe.
Poderá parecer fora de propós i to , t ra tando-se aqui
103

ARQUITETURA
de um tema restrito, alusão a ocorrência tão distante no
tempo, mas é que, apesar da sua remota origem, ela se faz
cada vez mais presente e está na fardos grandes e peque
nos problemas atuais, não apenas os que afetam o nosso
egoísmo, porventura legítimo, e nos afligem cada dia a cons
ciência e o coração, mas também aqueles de cuja solução
depende a própria feição material da cidade futura.
N u m a perspectiva mais ampla, esse desajuste p r o
fundo provocado pela industrialização agravou-se devido
ao fato do espírito agnóstico se haver antecipado ao espí
rito religioso na inteligência do seu verdadeiro sentido e
alcance.
C o m efei to , quando a produção era obra manual de
artesanato — ou seja, necessariamente limitada — só uns
poucos privilegiados podiam usufruí-la, cabendo assim
ao padre, já que não havia outro remédio, aconselhar re
signação. C o m as novas técnicas revolucionárias de p r o
dução, esse esquema imemorial se inverteu e, c o m poucos,
se produz em massa aquilo de que todos têm precisão.
Por tanto , a reivindicação do que lhe é devido, da parte de
104

RUPTURA E R E F O R M U L A Ç Ã O
quem trabalha, passou a ser legítima, tornando-se já en
tão imoral — e c ínico — aquele apelo à resignação. D a í
a coincidência de propósi tos que se observa, na atual fase
do processo de reformulação econômico-socia l , entre o
crente e o que descrê. Cont inuarão j u n t o s até que, c o m
o bem alcançado, um já se dê por satisfeito e o outro pros
siga, porque o seu verdadeiro objet ivo está além.
A distinção entre transformações estilísticas de cará
ter evolutivo, embora por vezes radicais, processadas de um
período a outro na arte do mesmo ciclo econômico-social
— e, portanto, de superfície — e transformações c o m o
esta, de feição nitidamente revolucionária, porquanto decor
rente de mudança fundamental na técnica da produção, ou
seja, nos modos de fabricar, de construir, de viver, é indis
pensável para a compreensão da verdadeira natureza e m o
tivo das substanciais modificações por que vem passando
a arquitetura e, de um modo geral, a arte contemporânea,
pois, no primeiro caso, o próprio gosto, já cansado de re
petir soluções consagradas, toma a iniciativa cguia a inten
ção formal no sentido da renovação do estilo, ao passo que,
1 0 5

ARQUITETURA
106
no segundo, é a nova técnica e a economia decorrente dela
que impõem a alteração e lhe determinam o r u m o — o gosto
acompanha. N u m , simples mudança de cenário; no outro,
estréia de peça nova em temporada que se inicia.
Assim, a técnica tradicional do artesanato, c o m os
seus processos de fazer manuais, e, portanto , impregna
dos de contr ibuição pessoal, pois não prescindiam no por-
menor, da iniciativa, do engenho e da invenção do próprio
obreiro, estabelecendo-se deste modo um vínculo de par
ticipação efetiva entre o artista maior, autor da c o n c e p
ção mestra da peça ou da obra e o con junto dos artistas
especializados que a executavam — os artesãos —, foi
bruscamente substituída pela técnica da produção indus
trializada, onde o processo inventivo se restringe àqueles
poucos que concebem e elaboram o modelo original, não
passando a legião dos que o produzem de autômatos , em
perene j e j u m de participação artística, alheios c o m o são à
iniciativa criadora.
Estabeleceu-se, portanto , o divórcio entre o artista e
o povo: enquanto o povo artesão era parte consciente na ela-

RUPTURA E R E F O R M U L A Ç Ã O
107
boração e evolução do estilo da época, o povo proletário per
deu conta to com a arte.
Assim, pois , também aqui, a força viva avassaladora
da idade industrial, nos seus primórdios, é que determi
nava o curso novo a seguir, tornando obsoleta a experiên
cia tradicional acumulada nas lentas e penosas etapas da
C o l ô n i a e do Império, a p o n t o de lhe apagar até mesmo a
lembrança.
Tanto mais que, com a abolição da escravatura, a "má
quina brasileira de morar" , a casa antiga, fo i aos poucos
deixando de funcionar, tornando-se m e s m o inabitável
devido ao desconforto . É que ela dependia essencialmen
te da presença dessa mistura de coisa, de bicho e de gen
te , que era o escravo: havia negro para tudo — desde os
negrinhos sempre à mão para recados, até negra velha, babá.
O negro era esgoto, era água corrente no quarto, quente
e fria, era interruptor de luz e botão de campainha; o negro
tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador a u t o
mát ico e abanava que nem ventilador. Era ele que fazia a
casa funcionar.

A R Q U I T E T U R A
108
M e s m o durante a primeira fase republicana, os víncu
los de dependência e os hábitos cômodos da vida patriarcal
de tão vil fundamento perduraram, e o custo baixo da m ã o -
de-obra domést ica ainda permit iu à burguesia manter,
mesmo sem escravos oficiais, o trem fácil de vida do per ío
do imperial, mas depois — c o m o tempo — tudo mudou.

E D I F Í C I O G U S T A V O C A P A N E M A
O edifício construído por Gustavo Capanema para
sede do antigo Ministério da Educação e Saúde surgiu como
que de repente e a sua serena beleza surpreendeu quando,
terminada a guerra, o mundo tomou conhecimento da sua
insólita presença. Marco definitivo da nova arquitetura
109

ARQUITETURA
brasileira, revelou-se igualmente, apenas construído, padrão
internacional da reformulação arquitetônica, e demonstrou
que o engenho nativo já está apto a apreender a experiência
estrangeira, não mais somente como eterno cauâatdrio ideo
lógico, mas antecipando-se na própria realização.
Baseado no risco original de Le Corbusier para outro
terreno, motivado pela consulta prévia a pedido dos respon
sáveis pela obra, tanto o projeto definitivo quanto a cons
trução do edif íc io, desde o primeiro esboço até a sua
conclusão, foram levados a cabo sem a mínima assistência
do mestre, como espontânea contribuição nossa para a pú
blica consagração dos princípios por que sempre se bateu.
C o n s t r u í d o na mesma época, com os mesmos ma
teriais e para o mesmo f i m ut i l i tário, avultou, no en
tanto , o edif íc io do M i n i s t é r i o em meio à então espessa
vulgaridade das edificações circunvizinhas, como algo que
ali pousasse serenamente, apenas para o eventual enlevo do
transeunte despreocupado e, vez por outra, surpreso à vis
ta de tão sublimada manifestação de pureza formal e d o
mínio da razão sobre a inércia da matéria.
1 1 0

E D I F Í C I O GUSTAVO CAPANEMA
É belo, pois. E não apenas belo, mas s imbólico, por
quanto a sua construção — levada avante enquanto o
mundo em guerra empenhava-se em destruição — só foi
possível na medida em que desrespeitou tanto a legisla
ção municipal vigente, quanto a ética profissional e até
mesmo as regras mais comezinhas do saber viver e da
normal conduta interesseira.
A lei exigia o limite de sete pavimentos alinhados em
quadra com área interna — os pisos concentraram-se em al
tura no centro de terreno devolvido ajardinado para gozo
dos contribuintes; a ética profissional mandava que a obra
fosse atribuída a um dos premiados no concurso havido,
ainda que fossem sacrificados os melhores princípios da
arte de construir — os prêmios foram efetivamente pa
gos, mas venceu a arquitetura; feita pessoalmente a e n c o
menda, o egoísmo determinava l imitação da partilha —
o número de associados se ampliou; aprovado o primeiro
projeto , mandava o comodismo e a eficiência fosse a obra
atacada sem tardança — reclamaram os próprios autores
a sua revisão e, em conseqüência, foi necessário recome-
111

A R Q U I T E T U R A
çar da estaca zero; prevenia a experiência eme não se devia
conf iar a arquitetos novos, sem t irocínio, a responsabili
dade de tamanha empresa — a obra resultou sólida e de
esmerada execução; alertava o inst into pol í t ico de a u t o -
preservação e a prática da vida, no sentido da transigên
cia ante a crit ica dos grandes, a insinuação malévola dos
medíocres e o divertido sarcasmo dos demais — tanto a
autoridade quanto os profissionais mantiveram-se intran
sigentes em favor da realização da obra tal c o m o fora or i -
ginariamente concebida; f inalmente, insinuava a vaidade,
amparada na verdade dos fatos, discrição quanto à part i
cipação pessoal de Le Corbusier — ela não foi apenas
destacada, mas acrescida, em atenção ao vulto de sua obra
criadora e doutrinária, e a inscrição comemorativa deixa
intencionalmente presumir a participação do mestre no
r i sco original do ed i f í c io c o n s t r u í d o , quando se refere
a risco diferente, destinado a outro local, mas que serviu
efetivamente de guia ao pro jeto definitivo.
O episódio vale c o m o advertência, pois parece insi
nuar que, quando o estado normal é a doença organizada,
1 1 2

E D I F Í C I O GUSTAVO CAPANEMA
c o erro, lei — o afastamento da norma se impõe e a i le
galidade, apenas, é fecunda.
Entretanto, o êxito integral do empreendimento só foi
assegurado devido à circunstância de estar incluída entre
os seus legítimos autores a personalidade que se revelaria a
seguir decisiva na formulação objetiva, pelo exemplo e al
cance da própria obra, do rumo novo a ser trilhado pela
arquitetura brasileira contemporânea. Pois se o sentido geral
dos acontecimentos é, de fato, determinado por fatores de
ordem vária, cuja atuação convergente assume, num dado
momento , aspecto de inelutabilidade, ocorre ponderar que,
na falta eventual da personalidade capaz de captar as pos
sibilidades latentes, a oportunidade pode perder-se e o rumo
da ação irremediavelmente alterar-se, devido ao fracasso no
momento decisivo da primeira prova.
A personalidade de Oscar Niemeyer Soares, arquiteto
de formação e mentalidade genuinamente cariocas — con
quanto, j á agora, internacionalmente consagrado —, sou
be estar presente na ocasião o p o r t u n a e desempenhar
integralmente o papel que as circunstâncias propícias lhe
1 1 3

A R Q U I T E T U R A
reservaram e que avultou, a seguir, com as obras da distan
te Pampulha e do Pavilhão do Brasil na Feira Internacional,
de 1 9 3 9 . na longínqua Nova York.
E , no entanto, apenas 26 anos antes, havia sido inau
gurado o edif ício da E N B A (Escola Nacional de Belas-
A r t e s ) , atual museu, padrão acadêmico impecável.
A arquitetura jamais passou, noutro igual espaço de
tempo, por tamanha transformação.
1 1 4

ADDENDUM U R B A N Í S T I C O
1 — Cidade é a expressão palpável da humana ne
cessidade de conta to , comunicação, organização e troca,
numa determinada circunstância f ís ico-social e num c o n
texto his tór ico .
2 — Urbanizar consiste em levar um pouco da c i
dade para o campo, e trazer um pouco do campo para
dentro da cidade.
3 — N a s tarefas do engenheiro, o h o m e m é prin
cipalmente considerado c o m o ser coletivo, c o m o " n ú m e
r o " , prevalecendo o critério de quantidade; ao passo que nas
tarefas do arquiteto o h o m e m é encarado, antes de mais
nada, c o m o ser individual, c o m o "pessoa" , predominando
então o critério de qualidade.
Por out ro lado, os interesses do h o m e m c o m o indi-
1 1 5

ARQUITETURA
víduo nem sempre coincidem com os interesses desse mes
mo homem c o m o ser coletivo; cabe então ao urbanista
procurar resolver, na medida do possível, esta contradi
ção fundamental.
1 1 6

B R A S Í L I A , C I D A D E I N V E N T A D A
(Memór ia Descr i t iva)
Desejo, inicialmente, desculpar-me perante a direção da
Companhia Urbanizado ra e a Comissão Julgadora do C o n
curso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido
para a nova Capital, e também justificar-me,
N ã o pretendia compet ir e, na verdade, não concorro
— apenas me desvencilho de uma solução possível, que
não fo i procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta.
Compareço, não c o m o técnico devidamente aparelha
do , pois nem sequer disponho de escri tório, mas c o m o
simples maquisard do urbanismo, que não pretende pros
seguir no desenvolvimento da idéia apresentada senão,
eventualmente, na qualidade de mero consultor. E se p r o
cedo assim candidamente é porque me amparo num racio
cínio igualmente s implório: se a sugestão é válida, estes
1 1 7

ARQUITETURA
dados, c o n q u a n t o sumários na sua aparência, já serão
suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade
original, ela foi , depois, intensamente pensada e resolvi
da; se não o é, a exclusão se fará mais faci lmente, e não
terei perdido o meu tempo nem tomado o tempo de nin
guém.
A l iberação do acesso ao concurso reduziu de c e r t o
m o d o a consul ta àqui lo que de fa to importa , ou seja, à
concepção urbanística da cidade propriamente dita, por
que esta não será, no caso, uma decorrência do planeja
m e n t o regional, mas a causa dele: a sua fundação é que
dará ense jo ao u l ter ior desenvolvimento planejado da
região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um
gesto de sent ido ainda desbravador, nos moldes da tra
dição colonial . E o que se indaga é c o m o no entender de
cada concorrente uma tal cidade deve ser concebida.
Ela deve ser concebida não c o m o simples organismo
capaz de preencher sat isfatoriamente e sem es forço as
funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer,
não apenas c o m o Urb$f mas c o m o Chitas, possuidora dos
118

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
atr ibutos inerentes a uma capital. E, para tanto , a condi
ção primeira é achar-se o urbanista imbuído de certa dig
nidade e nobreza de intenção, p o r q u a n t o dessa a t i tude
fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveni
ência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado
o desejável caráter monumental . Monumenta l não no sen
t ido de ostentação, mas no sentido de expressão palpável,
por assim dizer, consciente , daquilo que vale e significa.
Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas
ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao deva
neio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, c o m
o tempo, além de centro do governo e administração, num
f o c o de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país.
D i t o isto, vejamos c o m o nasceu, se definiu e resol
veu a presente solução.
1 — N a s c e u do gesto primário de quem assinala um
lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ân
gulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.
2 — Procurou-se depois a adaptação à topograf ia
local, ao escoamento natural das águas, à melhor or ienta-
119

A R Q U I T E T U R A
ção, arqueando-se um dos eixos a f i m de contê - lo no t r i
ângulo eqüilátero que define a área urbanizada.
3 — E houve o propósito de aplicar os princípios
francos da técnica rodoviár ia—inclusive a eliminação dos
c r u z a m e n t o s — à técnica ubanística, conferindo-se ao eixo
arqueado correspondente às vias naturais de acesso a fun
ção circulatória t ronco, c o m pistas centrais de velocidade
e pistas laterais para o t ráfego local, e dispondo-se ao
longo desse eixo o grosso dos setores residenciais.
4 — C o m o decorrência dessa concentração resi
dencial, os centros cívico e administrativo, o setor cu l tu
ral, o c e n t r o de diversões e c e n t r o esport ivo , o s e t o r
administrativo municipal, os quartéis, as zonas dest ina
das à armazenagem, ao abastecimento e às pequenas in
dústrias locais, e por f im, a estação ferroviária, foram-se
naturalmente ordenando e dispondo ao longo do e ixo
transversal que passou assim a ser o eixo monumental do
sistema. Lateralmente à interseção dos dois eixos, mas
participando funcionalmente e em termos de compos i
ção urbaníst ica do eixo monumenta l , local izaram-se o
1 2 0

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
121
setor bancário e comercial , o setor dos escri tórios de em
presas e profissões liberais, e ainda os amplos setores de
varejo comercial .
5 — O cruzamento desse eixo monumental , de cota
inferior, c o m o eixo rodoviário-residencial impôs a cria
ção de uma grande plataforma liberta do tráfego que não
se destine ao estacionamento ali, remanso onde se con
centrou logicamente o centro de diversões da cidade, c o m
os cinemas, os teatros, os restaurantes etc .
6 — O tráfego destinado aos demais setores pros
segue, ordenado em mão única, na área térrea infer ior
coberta pela plataforma e entalada nos dois topos mas
aberta nas faces maiores, área utilizada em grande parte
para o estacionamento de veículos e onde se localizou a
estação rodoviária interurbana, acessível aos passageiros
pelo nível superior da plataforma. Apenas as pistas de
velocidade mergulham, já então subterrâneas, na parte
central desse piso inferior que se espraia em declive até
se nivelar com a esplanada do setor dos ministérios .
7 — Desse modo e com a introdução de três trevos

ARQUITETURA
complcmentares em cada ramo do eixo rodoviário e o u
tras tantas passagens de nível inferior, o tráfego de a u t o
móveis e ônibus se processa tanto na parte central quanto
nos setores residenciais sem qualquer cruzamento, Para o trá
fego de caminhões estabeleceu-se um sistema secundário
a u t ô n o m o com cruzamentos sinalizados mas sem cruza
mento ou interferência alguma c o m o sistema anterior,
salvo acima do setor esportivo, e que acede aos edif íc ios
do setor comercial ao nível do subsolo, contornando o
centro cívico em cota inferior, com galerias de acesso pre
vistas no terrapleno.
8 — Fixada assim a rede geral do tráfego de a u t o
móvel, estabeleceram-se, tanto nos setores centrais c o m o
nos residenciais, tramas autônomas para o trânsi to local
dos pedestres a f im de garantir-lhes o uso livre do chão,
sem contudo levar tal separação a extremos s istemáticos
e antinaturais, pois não se deve esquecer que o a u t o m ó
vel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do
homem, domest icou-se , já faz, por assim dizer, parte da
família. Ele só se desumaníza, readquirindo vis-à-vis do
122

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
1 2 3
pedestre feição ameaçadora e hosti l , quando incorporado
à massa anônima do tráfego. Há então que separá-los, mas
sem perder de vista que em determinadas condições e para
comodidade recíproca a coexistência se impõe.
9 — Veja-se agora c o m o nesse arcabouço de circula
ção ordenada se integram e articulam os vários setores.
Destacam-se no conjunto os edifícios destinados aos
poderes fundamentais que, sendo em número de três e
autônomos , encontraram no triângulo eqüilátero, vincu
lado à arquitetura da mais remota antigüidade, a forma
elementar apropriada para contê- los . Cr iou-se então um
terrapleno triangular, com arrimo de pedra à vista, sobre-
levado na campina circunvizinha a que se tem acesso pela
própria rampa de auto-estrada que conduz à residência e
ao aeroporto. Em cada ângulo dessa praça — Praça dos
Três Poderes, poderia chamar-se — localizou-se uma das
casas, f icando as do governo e do Supremo Tribunal na
base e a do Congresso no vértice, com frente igualmente
para uma ampla esplanada disposta num segundo terra
pleno, de forma retangular e nível mais alto, de acordo

ARQUITETURA
com a topografia local, igualmente arrimado de pedras em
t o d o o seu perímetro. A aplicação, em termos atuais, des
sa técnica oriental milenar dos terraplenos garante a coe
são do con junto e lhe confere uma ênfase monumental
imprevista. Ao longo dessa esplanada — o Mall , dos ingle
ses —, extenso gramado destinado a pedestres, a paradas e
a desfiles, foram dispostos os ministérios e autarquias.
124

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
Os das Relações Exteriores e Just iça ocupando os cantos
infer iores , c o n t í g u o s ao edi f íc io do Congresso e c o m
enquadramento condigno, os ministérios militares cons
t i tuindo uma praça autônoma, e os demais ordenados em
seqüência — todos c o m área privativa de estacionamen
to —, sendo o úl t imo o da Educação, a f im de ficar vizi
nho do setor cultural, tratado à maneira de parque para
melhor ambientação dos museus, da biblioteca, do planetá
rio, das academias, dos institutos e t c , setor este também
cont íguo à ampla área destinada à Cidade Universitária
c o m o respectivo Hospita l de Clínicas, e onde também se
prevê a instalação do Conservatór io . A Catedral f i cou
igualmente localizada nessa esplanada, mas numa praça
autônoma disposta lateralmente, não só por questão de
protoco lo , uma vez que a Igreja é separada do Estado,
c o m o por uma questão de escala, tendo-se em vista valo
rizar o monumento , e ainda, principalmente, por outra
razão de ordem arquitetônica: a perspectiva de con junto
da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da
plataforma onde os dois eixos urbaníst icos se cruzam.
125

ARQUITETURA
10 — Nesca plataforma onde, como se viu anterior
mente, o tráfego é apenas local, situou-se então o centro
de diversões da cidade (mistura em termos adequados de
Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). A face
da plataforma debruçada sobre o setor cultural e a es
planada dos ministérios não foram edificadas, com exce
ção de uma eventual casa de chá e da Ópera, cujo acesso
tanto se faz pelo próprio setor de diversões como pelo
setor cultural contíguo, em plano inferior. Na face fron
teira foram concentrados os cinemas e teatros, cujo ga
barito se fez baixo e uniforme, constituindo assim o
conjunto deles um corpo arquitetônico contínuo, com
galeria, amplas calçadas, terraços e cafés, servindo as res
pectivas fachadas em toda a altura de campo livre para a
instalação de painéis luminosos de reclame. As várias ca
sas de espetáculo estarão ligadas entre si por travessas no
gênero tradicional da rua do Ouvidor, das vielas venezia
nas ou de galerias cobertas (arcadas) e articuladas a pe
quenos pátios com bares e cafés, e loggias na parte dos
fundos com vista para o parque, tudo no propósito de
12Ó

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
propiciar ambiente adequado ao convívio e à expansão. O
pavimento térreo do setor central desse con junto de tea
tros e cinemas manteve-se vazado em toda a sua exten
são, salvo os núcleos de acesso aos pavimentos superiores,
a fim de garantir continuidade à perspectiva, e os andares
se previram envidraçados nas duas faces para que os res
taurantes, clubes, casas de chá etc . tenham vista, de um
lado para a esplanada inferior, e de outro para o aclive do
parque no prolongamento do eixo monumental e onde
ficaram localizados os hotéis comerciais e de tur ismo e,
mais acima, para a torre monumental das estações radio-
emissoras e de televisão, tratada c o m o elemento plástico
integrado na composição geral. Na parte central da pla
taforma, porém disposto lateralmente, acha-se o saguão
da estação rodoviária c o m bilheteria, bares, restaurantes
e t c , construção baixa, ligada por escadas rolantes ao bali
inferior de embarque separado por envidraçamento do cais
propriamente di to . O sistema de mão única obriga os
ônibus na saída a uma volta, num ou noutro sentido, fora
da área coberta pela plataforma, o que permite ao viajan-
127

ARQUITETURA
te uma última vista do eixo monumental da cidade antes
de entrar no eixo rodoviário-residencial — despedida psi
cologicamente desejável. Previram-se igualmente nesta ex
tensa plataforma destinada principalmente, tal como no
piso térreo, ao estacionamento de automóveis duas am
plas praças privativas dos pedestres, uma fronteira ao tea
tro da Ópera e outra, simetricamente disposta, em frente
a um pavilhão de pouca altura, debruçado sobre os jar
dins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa
de chá. Nestas praças, o piso das pistas de rolamento,
sempre de sentido único, foi ligeiramente sobrelevado em
larga extensão, para o livre cruzamento dos pedestres num
e noutro sentido, o que permitirá acesso franco e direto
tanto aos setores do varejo comercial quanto ao setor dos
bancos e escri tórios.
11 — Lateralmente a esse setor central de diversões,
e articulados a ele, encontram-se dois grandes núcleos
destinados exclusivamente ao comércio — lojas e magazi
nes, e dois setores dist intos, o bancário-comercial , e o dos
escritórios para profissões liberais, representações e em-
128

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
129
presas, onde foram localizados, respectivamente, o Banco
do Brasil e a sede dos Correios e Telégrafos. Es tes nú
cleos e setores são acessíveis aos automóveis diretamente
das respectivas pistas, e aos pedestres por calçadas sem
cruzamento, e dispõem de autoportos para estacionamen
to em dois níveis, e de acesso de serviço pelo subsolo, cor
respondente ao piso inferior da plataforma central. No
setor dos bancos, tal c o m o no dos escritórios, previram-
se três blocos altos e quatro de menor altura, ligados entre
si por extensa ala térrea c o m sobreloja, de modo a permi
t i r interçomunicação coberta e amplo espaço para insta
lação de agências bancárias, agências de empresas, cafés,
restaurantes etc. Em cada núcleo comercial, propõe-se uma
seqüência ordenada de blocos baixos e alongados e um
maior, de igual altura dos anteriores, todos interligados
por um amplo corpo térreo com lojas, sobrelojas e galeri
as. D o i s braços elevados da pista de contorno permitem,
aqui, acesso franco c o m pedestres.
12 — O setor esportivo, c o m extensíssíma área des
tinada exclusivamente ao estacionamento de automóveis,

ARQUITETURA
130
instalou-se entre a praça da municipalidade e a torre ra-
d i o e m i s s o r a , que se prevê de p lanta tr iangular , c o m
embasamento monumental de concreto aparente até o piso
dos estúdios e mais instalações, e superestrutura metál i
ca c o m mirante localizado a meia altura. De um lado o
estádio e mais dependências, tendo aos fundos o Jardim
Botânico ; do outro o hipódromo c o m as respectivas t r i
bunas e vila hípica e, cont íguo, o Jardim Z o o l ó g i c o , cons
t i tuindo estas duas imensas áreas verdes, s imetricamente
dispostas em relação ao eixo monumental , c o m o que os
pulmões da nova cidade.
13 — N a praça municipal, instalaram-se a Prefei tu
ra, a Polícia Central , o C o r p o de Bombeiros e a Assistên
cia Públ i ca . A peni tenc iár ia e o h o s p í c i o , c o n q u a n t o
afastados do centro urbanizado, fazem igualmente parte
deste setor.
14 — Acima do setor municipal foram dispostas as
garagens da viação urbana, em seguida, de uma banda e
de outra, os quartéis, numa larga faixa transversal ao se
t o r destinado ao armazenamento e à instalação das p e -

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
131
quenas indústrias de interesse local, com setor residencial
autônomo, zona esta rematada pela estação ferroviária e
articulada igualmente a um dos ramos da rodovia dest i
nada aos caminhões.
15 — Percorrido assim de ponta a ponta esse eixo dito
monumental , vê-se que a fluência e unidade do traçado,
desde a praça do Governo até a praça Municipal, não exclui
a variedade, e cada setor, por assim dizer, vale por si só como
organismo plasticamente a u t ô n o m o na composição do
conjunto. Essa autonomia cria espaços adequados à escala
do homem e permite o diálogo monumental localizado, sem
prejuízo do desempenho arquitetônico de cada setor na har
moniosa integração urbanística do todo.
16 — Quanto ao problema residencial, ocorreu a s o
lução de se criar uma seqüência contínua de grandes qua
dras dispostas, em ordem dupla ou singela, de ambos os
lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cin
ta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo
em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gra
mado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos

A R Q U I T E T U R A
e folhagens, a f i m de resguardar melhor, qualquer que seja
a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto
sempre num segundo plano ê como que amortecido na
paisagem. Disposição que apresenta a dupla vantagem de
garantir a ordenação urbanística mesmo quando varia a
densidade, categoria, padrão ou qualidade arquitetônica dos
edifícios, e de oferecer aos moradores extensas faixas som-
132

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
133
breadas para passeio e lazer, independentemente das áreas
livres previstas no interior das próprias quadras.
D e n t r o dessas "superquadras" os b locos residenciais
podem dispor-se de maneira mais variada, obedecendo, p o
rém, a dois princípios gerais: gabarito máximo uniforme,
talvez seis pavimentos e pilotis , e separação do tráfego
de veículos do trânsito de pedestres, mormente o acesso
à escola primária e às comodidades existentes no interior
de cada quadra.
Ao fundo das quadras estende-se a via de serviço para
o tráfego de caminhões, destinando-se ao longo dela a frente
oposta às quadras à instalação de garagens, oficinas, de
pósi tos de comérc io em grosso e t c , e reservando-se uma
faixa de terreno, equivalente a uma terceira ordem de qua
dras, para floricultura, horta e pomar. Entaladas entre essa
via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalaram-se
então largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por
uma, ora por outra, e onde se localizaram a igreja, as esco
las secundárias, o cinema e o varejo do bairro, disposto con
forme a sua classe ou natureza.

A R Q U I T E T U R A
134
O mercadinho, os açougues, as vendas, quitandas, ca
sas de ferragens e t c , na primeira metade da faixa corres
pondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabeleireiros,
modistas, confeitarias e t c , na primeira seção da faixa de
acesso privativa dos automóveis e ônibus, onde se encon
tram igualmente os postos de serviço para venda de gaso
lina. As lojas dispõem-se em renque c o m vitrinas e passeio
coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enqua
dramento dos quarteirões e privativas dos pedestres, e o
estacionamento na face oposta, contíguo às vias de acesso
motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte
a outra, f icando assim as lo jas geminadas duas a duas,
embora o seu conjunto constitua um corpo só.
Na conf luência das quatro quadras local izou-se a
igreja do bairro, e aos fundos dela as escolas secundárias,
ao passo que, na parte da faixa de serviço fronteira à r o
dovia, se previu o cinema, a f im de torná- lo acessível a
quem proceda de outros bairros, f icando a extensa área
livre intermediária destinada ao clube da juventude, c o m
campo de jogos e recreio.

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
135
17 —A gradação social poderá ser dosada facilmente,
atr ibuindo-se maior valor a determinadas quadras c o m o ,
por exemplo, às quadras singelas contíguas ao setor das
embaixadas, setor que se estende de ambos os lados do
eixo principal paralelamente ao eixo rodoviário, c o m ala
meda de acesso autônomo e via de serviço para o tráfego
de caminhões c o m u m às quadras residenciais. Essa ala
meda, por assim dizer, privativa do bairro das embaixa
das e legações, se prevê edificada apenas num dos lados,
deixando-se o o u t r o c o m a vista desimpedida sobre a
paisagem, excetuando-se o hotel principal localizado nesse
setor e próximo do centro da cidade. No outro lado do
eixo rodoviário-residencial, as quadras contíguas à r o d o
via serão naturalmente mais valorizadas que as quadras
internas, o que permitirá as gradações próprias do regi
me vigente; contudo, o agrupamento delas, de quatro em
quatro, propicia num certo grau a coexistência social, evi
tando-se assim uma indevida e indesejável estratif ícação.
E, seja c o m o for, as diferenças de padrão de uma quadra
a outra serão neutralizadas pelo próprio agenciamento

A R Q U I T E T U R A
136
urbanístico proposto , e não serão de natureza a afetar o
confor to social a eme todos têm direito. Elas decorrerão
apenas de uma maior ou menor densidade, do maior ou
menor espaço atribuído a cada indivíduo e a cada família,
da escolha dos materiais e do grau e requinte do acaba
mento . N e s t e sentido deve-se impedir a enquistação de
favelas tanto na periferia urbana quanto na rural. Cabe à
companhia urbanizadora prover, dentro do esquema p r o
posto , acomodações decentes e econômicas para a tota l i
dade da população.
18 — Previram-se igualmente setores ilhados, cer
cados de arvoredo e de campo, destinados a loteamento
para casas individuais, sugerindo-se uma disposição den
tada em cremalheira, para que as casas construídas nos
lotes de topo se destaquem na paisagem, afastadas umas
das outras, disposição que ainda permite acesso a u t ô n o
mo de serviço para todos os lotes. E admitiu-se igual
mente a construção eventual de casas avulsas isoladas de
alto padrão arquitetônico — o que não implica tamanho
— estabelecendo-se porém c o m o regra, nestes casos, o

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
afastamento mínimo de um qui lômetro de casa a casa, o
que acentuará o caráter excepcional de tais concessões.
19 — Os cemitérios localizados nos extremos do eixo
rodoviário-residencial evitam aos cortejos a travessia do centro
urbano. Terão chão de grama e serão convenientemente
arborizados, com sepulturas rasas e lápides singelas, à ma
neira inglesa, tudo desprovido de qualquer ostentação.
20 — Evitou-se a localização dos bairros residenciais
na orla da lagoa, a f im de preservá-la intata, tratada c o m
bosques e campos de feição naturalista e rústica para os
passeios e amenidades bucólicas de toda a população ur
bana. Apenas os c lubes esport ivos , os restaurantes, os
lugares de recreio, os balneários e núcleos de pesca pode
rão chegar à beira d*água. O clube de golfe s i tuou-se na
extremidade leste, cont íguo à residência e ao hotel , am
bos em construção, e o Iate Club na enseada vizinha, en
tremeados por denso bosque que se estende até a margem
da represa, bordejada nesse trecho pela alameda de c o n
torno que intermitentemente se desprende da sua orla para
embrenhar-se pelo campo que se pretende eventualmente
137

A R Q U I T E T U R A
138
f lor ido e manchado de arvoredo. Essa estrada se articula
ao eixo rodoviário e também à pista autônoma de acesso
direto do aeroporto ao centro cívico, por onde entrarão
na cidade os v is i tantes i lustres , p o d e n d o a respect iva
saída processar-se, c o m vantagem, pelo próprio eixo r o
doviário-residencial. Propõe-se, ainda, a localização do ae
r o p o r t o definit ivo na área interna da represa, a fim de
evitar-lhe a travessia ou o contorno .
21 — Q u a n t o à numeração urbana, a referência deve
ser o eixo monumental , distr ibuindo-se a cidade em m e
tades Norte e Sul: as quadras seriam assinaladas por nú
meros, os b locos residenciais por letras, e finalmente o
número do apartamento na forma usual, assim, por exem
plo, N - Q 3 - L ap. 2 0 1 . A designação dos blocos em rela
ção à entrada da quadra deve seguir da esquerda para a
direita, de acordo c o m a norma.
22 — Resta o problema de c o m o dispor do terreno e
torná- lo acessível ao capital particular. E n t e n d o que as
quadras não devem ser loteadas, sugerindo, em vez da ven
da de lotes, a venda de quotas de terreno, cujo valor depende-

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
rá* do setor em causa e do gabarito, a f im de não entravar o
planejamento atual e possíveis remodelações futuras no
delineamento interno das quadras. Entendo também que
esse planejamento deveria de preferência anteceder a venda
das quotas, mas nada impede que compradores de um nú
mero substancial de quotas submetam à aprovação da c o m
panhia projeto próprio de urbanização de uma determinada
quadra, e que, além de facilitar aos incorporadores a aqui
sição de quotas, a própria companhia funcione, em grande
parte, c o m o incorporadora. E entendo igualmente que o
preço das quotas, oscilável conforme a procura, deveria
incluir uma parcela com taxa fixa, destinada a cobrir as des
pesas do projeto, no intuito de facilitar tanto o convite a
determinados arquitetos como a abertura de concursos para
urbanização e edi f icação das quadras que não f o s s e m
projetadas pela divisão de arquitetura da própria compa
nhia. E sugiro ainda que a aprovação dos projetos se p r o
cesse em duas etapas — anteprojeto e projeto definitivo,
no intuito de permitir seleção prévia e melhor controle da
qualidade das construções.
139

A R Q U I T E T U R A
Da mesma forma quanto ao setor do varejo comercial
e aos setores bancários e dos escritórios das empresas e
profissões liberais, que deveriam ser projetados previamente
de modo a se poderem fracionar em subsetores e unidades
autônomas, sem prejuízo da integridade arquitetônica, e
assim se submeterem parceladamente à venda no mercado
imobiliário, podendo a construção propriamente dita, ou
parte dela, correr por conta dos interessados ou da compa
nhia, ou ainda, conjuntamente.
23 — Resumindo, a solução apresentada é de fácil
apreensão, pois se caracteriza pela simplicidade e clareza
do risco original, o que não exclui, conforme se viu, a va
riedade no tratamento das partes, cada qual concebida se
gundo a natureza peculiar da respectiva função, resultando
daí a harmonia de exigência de aparência contraditória. É
assim que, sendo monumental, é também cômoda, eficien
te , acolhedora e íntima. E ao mesmo tempo derramada e
concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional O tráfego de
automóveis se processa sem cruzamentos, e se restitui o
chão, na justa medida, ao pedestre. E por ter o arcabouço
1 4 0

BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA
tão claramente definido, é de fácil execução: dois eixos, dois
terraplenos, uma plataforma, duas pistas largas num senti
do, uma rodovia no outro, rodovia que poderá ser construída
por partes — primeiro as faixas centrais com um trevo de
cada lado, depois as pistas laterais, que avançariam com o
desenvolvimento normal da cidade. As instalações teriam
sempre campo livre nas faixas verdes contíguas às pistas de
rolamento. As quadras seriam apenas niveladas e paísagis-
t icamente definidas, com as respectivas cintas plantadas
de grama e desde logo arborizadas, mas sem ci lçamento de
qualquer espécie, nem meios-fios. De uma parte, técnica
rodoviária; de outra, técnica paisagística de parques e jar
dins.
Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade-parque.
S o n h o arquissecular do patriarca.
José Bonifácio, em i ÔZJ, propõe a transferência da capital para
Coiás e sugere o nome de BRASÍLIA.
141


A P Ê N D I C E
O desenvolvimento científico e tecnológico não éo oposto da na
tureza, mas a própria natureza que, através do seu estado lúcido, que
somos nós, revela o lado oculto, virtual.
O desenvolvimento c ient í f ico e tecnológico não se
contrapõe à natureza, de que é, na verdade, a face oculta
— c o m todas as suas potencialidades virtuais — revela-
143

A R Q U I T E T U R A
144
da através do intelecto do homem, vale dizer, através da
própria natureza no seu estado de lucidezj de consciência. O
homem é, então, o elo racional entre dois abismos, o micro
e o macrocosmos, ambos fenômenos naturais, cu jos p r o
dutos "elaborados" são a contrapartida do fenômeno na
tural "palpável".
Assim temos, de um lado, a natureza ao alcance dos sen
tidos, ao alcance da mão; e, de outro , a natureza ao alcance do
intelecto e da tecnologia. O intelecto e a consciência do h o
mem são a quinta-essência da natureza tomada como um todo.
Razão por que tudo se liga e entrosa — imanentemente
ou transcendentalmente — e o desenvolvimento c ient í
f ico e tecnológico, quando livre de seguir sua própria ten
dência em busca de uma conclusão normal, não pode ser
" c o n t r a " o homem, uma vez que ele é a peça-chave desse
processo, no qual o drama da vida se insere. Naturalmen
te intervenções constantes, devidas a toda espécie de in
t e r e s s e s — e c o n ô m i c o s , comerciais, polít icos, ideológicos
—, atuam no sentido de afastar o desenvolvimento c ien
t í f ico e tecnológico do seu curso natural. M a s não se pode

A P Ê N D I C E
manter, indefinidamente, tais desvios: o homem é trazi
do de volta, c o m o que atraído por uma "imponderável"
força de gravidade que o faz perder, então, gradualmente,
aqueles impulsos centrífugos, e aceitar, c o m o por consenso,
a resultante de uma imposição c ient í f ico- tecnológica in
trínseca.
Se , confundido pelas múltiplas contradições decor
rentes desses desvios da normalidade racional, científ ica
e tecnológica, o h o m e m tenta deter-se a meio caminho, o
resultado é o caos. Es te é, precisamente, o estado em que
os negócios do mundo — e o próprio mundo — hoje se
encontram.
N ã o se deve, contudo, desesperar. É justamente quan
do a perplexidade atinge seu clímax que, por e fe i to do
que talvez se pudesse chamar "lei das resultantes conver
gentes" , novas perspectivas se abrem de repente em meio
à configuração intricada e ilógica dos acontecimentos , e
tudo parece, de novo, fácil e claro. O desenvolvimento
c ient í f i co e tecnológico e a ecologia, inte l igentemente
confrontados, são sempre compatíveis.
145


O R I E N T A Ç Ã O PARA O P R O F E S S O R
1 — O B J E T I V O S G E R A I S :
— Identif icar a Arquitetura c o m o arte, valorizan-
do-a enquanto representativa da nossa cultura.
— Compreender a importância da Arquitetura den
tro do contexto histórico e social.
— Valorizar o trabalho arquitetônico, identif ican
d o - o c o m ideais, valores e necessidades sociais.
2 — O B J E T I V O S E S P E C Í F I C O S :
— Identif icar as principais características de est i
los arquitetônicos e sua época.
— Compreender a interação homem/meio ambien
te e o reflexo no equilíbrio ecológico.
— Identif icar t ipos de habitação, localização, ma
teriais de construção, levando em consideração as neces
sidades de abrigo e proteção.
— C o n h e c e r as características de sua comunidade,
147

ARQUITETURA
estabelecendo comparações c o m as de outras comunida
des e em especial c o m as de Brasília.
3 — S U G E S T Ã O DE AT IVIDADES:
— Promover debates sobre temas apresentados pelo
autor, em especial, nos textos:
• C o n c e i t u a ç ã o • Tradição local • R u p t u r a e
Reformulação • Apêndice
— Observar variações de forma, dimensão e relação
de espaço.
— Representar espaços, através de maquetes, dese
nhos, croquis, gráficos, tabelas e linhas de espaço.
— Promover entrevistas, excursões, pesquisas, aná
lise de plantas, organização de murais e exposições visando
à compreensão dos processos relativos à "criação", em ter
mos de arquitetura.
— Reunir informações sobre a vida e a obra do Alei-
jadinho, Oscar Niemeyer e outros .
— Comparar a vida da comunidade com outros t i
pos de vida, atuais ou não.
— Procurar conhecer, através de publicações, as cida
des históricas brasileiras, o Rio antigo e o Rio moderno, Brasília.
148

G L O S S Á R I O
À bout de forces: exaurido, sem forças.
Ábiside, abiside: extremidade, em semicírculo, de uma basílica
romana, e, por analogia, do coro em igrejas não brasileiras.
Aduelas: pedra em forma de cunha secionada que se em
prega na construção de arcos e abóbadas de cantaria. Fa
ces laterais de um vão.
Baldaquino: baldaquim. Espécie de palio ou dossel. O b r a
de arquitetura ou de marcenaria que serve de coroa a um
trono, a um altar.
Carrure: largura dos ombros. Figurado: vigor, nitidez, fran
queza.
Cornija: modulação que assenta sobre o friso de uma obra.
Molduras sobrepostas, que formam saliências na parte su
perior da parede, porta etc .
149

ARQUITETURA
150
Coruchéu: remate piramidal do cunhai de edifício.
Empena: porção triangular acima do forro formada pelas
duas águas do telhado.
Enlightenment: I luminismo. C o n j u n t o de opiniões preco
nizadas no século X V I I I , visando " i luminar " e liberar as
pessoas do preconceito e da superstição.
Frechal: viga que arremata o topo das paredes e que serve
de apoio aos caibros e vigas do telhado.
Foyer: lareira. Lar, família. Sala de espera, saguão (de um
t e a t r o ) . Foco . Sede.
Impluvium: no átrio das casas romanas espaço aberto às
águas pluviais, que caíam numa abertura central e retan
gular chamada complúvio.
Mainel : face interna do pé-díreito de um arco. Pilarete
que decompõe um vão em seções menores.
Muxarabi ou muxarabiê: balcão mour isco , protegido em
toda a altura da janela por treliça de madeira, através do

G L O S S Á R I O
qual se pode ver sem ser visto . ( O s muxarabiês, t raz i
dos pelos portugueses para o Brasil, ainda ho je p o d e m
ser vistos em residências baianas e mineiras do t e m p o
colonial . )
Pedigree: genealogia de um animal de raça. Por analogia, pu
reza de esti lo.
Perísti lo: galeria de colunas isoladas, à frente de um edi
f íc io . C o n j u n t o de colunas da fachada de um edif ício.
P l in to : peça quadrangular que serve de base a uma coluna
ou a um pedestal.
Puzzle: adivinhação, enigma, enredo, quebra-cabeça, em
baraço, perplexidade.
Reixas: trama de ripas cruzadas.
Retábulo: decoração de madeira, de pedra ou de pintura
que reveste a parede por detrás do altar.
Rocalha: do francês rocaille, roc, rocha. Formas decorativas
interpretadas dos contornos de pedras, conchas e tc .
151

A R Q U I T E T U R A
Tacaniça: lanço de telhado menor em telhado de quatro
águas.
Transepto: galeria transversal de uma igreja, que separa a
capela-mor da nave e forma os braços da cruz.
Tridinium: sala de refeições dos antigos romanos, na qual
havia três leitos inclinados, dispostos em volta de uma
mesa.
152

LUCIO COSTA (1901-1998)
O percurso
(resumo organizado por Maria Elisa Costa com supervisão de Lúcio Costa)
Anos 10
Nascido em Toulon, França, em 27 de fevereiro de 1 9 0 2 , filho do engenheiro naval Joaquim Ribeiro da Costa, natural de Salvador, Bahia, e de Alina Ferreira da Costa, natural de Manaus, Amazonas.
Com poucos meses de idade vem para o Rio de Janeiro com os pais, retornando à Europa aos 8 anos, onde permanece de 1910 a 1916 e cursa a escola básica (Newcastle-on-Tyne na Inglaterra e Montreux na Suíça) ,
Volta ao Brasil definitivamente aos 15 anos quando é matriculado pelo pai — que "estranhamente queria ter um filho artista" — na Escola Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro, em 1917.
Anos lo
Ainda estudante, trabalha nas firmas Rabecchi e Escriptorio Technico Heitor de Mello.
1924 - Forma-se arquiteto.
192.1 — Antes de concluir o curso, tem seu primeiro escritório com Fernando Valentim. "Era a época do chamado ecletismo arquitetônico, os estilos 'históricos' eram aplicados sansfaçon de acordo com a natureza do programa em causa", e também do movimento "neocolonial", patrocinado por José Marianno Filho, visão acadêmica e equivocada da arquitetura colonial brasileira.
1911/11 — Primeiro projeto construído: Casa Rodolfo Chambelland,
Rio de Janeiro. Colaboração Evaristo de Sá.
1924 — Primeiro contato direto com a arquitetura autêntica do período
colonial em viagem de estudos à Diamantina. Revelação.

"Li chegando» caí em cheio no passado, no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que era novo em folha para mim,"
(926/27 — Viagem de um ano à Europa, a passeio, sem cogitar os movimentos intelectuais de vanguarda que já ocorriam, inclusive na arquitetura.
1926729 — Não se sente satisfeito com a arquitetura que faz — dissociada da verdade construtiva, ou seja, o contrário daquilo que viu e constatou em Diamantina. Nessa época, por acaso, em revista não especializada, vê foto da "casa modernista" de Gregori Warchavchilc, então exposta em São Paulo. E a primeira revelação da potencialidade de uma arquitetura coerente com as novas tecnologias construtivas.
Anos j o
í 9 j o — Ano da ruptura em termos profissionais, nitidamente representada pelos dois projetos para uma mesma casa no Rio de Janeiro—casa E. G. Fontes—, sendo um a "última manifestação de sentido eclético acadêmico", e o outro a "primeira proposição de sentido contemporâneo".
/ 9j o - Projeto de casa de campo para Fábio Carneiro de Mendonça.
' 93°— O governo Vargas decide renovar o ensino das artes no país, cabendo a Lúcio, então com apenas 28 anos, a responsabilidade de reformular o ensino das Belas-Artes, dirigindo a escola onde se formara seis anos antes. Esta experiência dura menos de dois anos, interrompida por questões polí-tico-administrativas, o que leva os alunos a um ano de greve.
193 1 — Ainda diretor da Escola de Belas-Artes faz o Salão de 19 3 1 , no Rio de Janeiro, primeiro Salão oficial de Belas-Artes, onde expõem os artistas plásticos de vanguarda, como Portínari, Guignard, Tarsila do Amaral, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Bruno Giorgi, entre outros.
193 '/j z ~ Escritório com Gregori Warchavchilc, no Rio: casa Schwartz, cujo terraço-jardim é o primeiro projeto do paisagista Roberto Burle Marx; apartamentos proletários na Gamboa; casa Cesárío Coelho Duarte (projetos: Lúcio Costa; construção: Warchavchik & Lúcio Costa).
1932/36 — Escritório com Carlos Leão. Período de trabalho escasso: a clientela quer casas de "estilo" que já não consegue fazer. Projeta então

uma série de casas "teóricas" para lotes urbanos de tamanho padrão — "Casas sem dono". Por outro lado, exatamente esta disponibilidade de tempo permite o estudo a fundo da obra dos precursores—Gropius, Mies van der Rohe e, sobretudo, a de Le Corbusier, com a qual se engaja de forma apaixonada. Concomitantemente, amadurece a tomada de consciência política e social.
1934—Professor, pela única vez, na Universidade do Distrito Federal, curso consolidado no ensaio Radies da nova arquitetura.
1934 — Projeto de vila operária em Monlevade. Minas Gerais, recusado.
í 936—Data fundamental para a moderna arquitetura brasileira. O ministro Gustavo Capanema convida Lúcio Costa para projetar o edifício-sede do recém-criado Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. Lúcio constitui uma equipe (Carlos Leão, Afonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer) e é aprovado o primeiro projeto. No entanto, como se trata da primeira oportunidade internacional de se construir um edifício deste porte de acordo com os princípios da nova doutrina de Le Corbusier, Lúcio insiste junto ao governo e consegue a vinda do mestre ao Rio, por quatro semanas, para que avaliasse o projeto feito.
Le Corbusier propõe outro terreno, mais perto do mar, para o qual faz belo risco que balizará o projeto definitivo no terreno inicial - único viável — feito pelos arquitetos brasileiros desde a estaca zero e construído durante a I Guerra Mundial. Le Corbusier só conheceu o projeto depois de pronto quando veio ao Brasil, em 1963, para projetar a Embaixada da França em Brasília. A vinda de Le Corbusier em 193 6 teve ainda influência determinante na eclosão do gênio até então "incubado" de Oscar Niemeyer.
(937 — Início da colaboração no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN - criado no mesmo ano. O primeiro trabalho para o SPHAN, contemporâneo ao projeto do Ministério da Educação, foi nas Missões Jesuítas, no sul do país, e dele resultou o projeto de um pequeno museu, inovador no conceito e na forma. Esta colaboração com Rodrigo M. F. de Andrade perdurou ao longo de 35 anos, até 1972, quando se aposenta.
(937—Primoroso projeto para a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro (onde hoje fica o Jardim Zoológico), sumariamente recusado pelos

preconceicuosos responsáveis. (Prenuncio da Esplanada dos Ministérios de Brasília.)
í gj 8 — Pavilhão do Brasil para a New York World's Fair de 19 3 9. que propicia o lançamento internacional de Oscar Niemeyer, convidado a participar do projeto.
1936/39 —Entre os trabalhos para o SPHAN, os ensaios Documentação necessária e Notas sobre o mobiliário luso-brasileiro, além da definição de critérios para o tombamento e proteção de bens de excepcional valor.
Anos 40
Vários projetos de arquitetura que caracterizam e confirmam a integração das duas raízes fundamentais — a tradição autêntica e a renovação arquitetônica:
• Conjunto de edifícios residenciais no Parque Guinle, Rio de Janeiro (seis andares sobre pílotís abertos, fachada do poente protegida por "claustra" em toda a extensão). Este conjunto de edifícios, no meio de um parque, está na origem da concepção das superquadras de Brasília.
* Park Hotel, Friburgo, estado do Río, pequena pousada com estrutura de madeira e alvenaria de pedra, belo espaço interno e inclusive os móveis projetados por Lúcio.
* Residências Hungria Machado, no Rio, e Saavedra, em Corrêas, estado do Rio.
Textos:
• Ensaio A arquitetura dos jesuítas no Brasil, para o SPHAN.
• Ensaio Considerações sobre arte contemporânea, só publicado em 1952 nos Cadernos de Cultura do Ministério da Educação.
Intervenção urbana:
* Proposta de remanejamento do tráfego no Centro do Rio de Janeiro, que resolveu, sem nenhuma obra e durante longo tempo, o problema dos engarrafamentos constantes.

Anos jo
Arquitetura:
• Anteprojeto da Casa do Brasil na Cite Universitaire. Paris, proposta que serviu de base ao projeto desenvolvido e executado por Le Corbusier.
• Sede social do Jockey Club Brasileiro, Rio de Janeiro - edifício com garagem em todos os andares na parte central (700 vagas).
• Sede do Banco Aliança (hoje Itaú), Rio de Janeiro, Centro.
• Risco original para o altar do Congresso Eucarístico de 1955, desenvolvido por Alcides da Rocha Miranda.
Textos:
• Depoimento sobre arquitetura no Rio de Janeiro na primeira metade do século — "Muita construção, alguma arquitetura e um milagre" - para o jornal Correio da Manhã.
• Ensaio Arquitetura de Antônio Francisco Lisboa, oAltijadinbo, para o SPHAN.
• Ensaio O arquiteto e a sociedade contemporânea, por solicitação da Unesco.
19J7 — Vence o concurso para o Plano-Piloto de Brasília, nova capital do país, que viria a ser inaugurada três anos depois, em 1960.
Atuação internacional:
. Membro do "Grupo dos Cinco", que orientou o projeto da nova sede da Unesco em Paris, junto com Gropius, Le Corbusier, Rogers e Mar-kelius.
Anos 6o
1957/ 66 — Supervisão direta do desenvolvimento do Plano-Piloto de Brasília, coordenado pelo engenheiro Augusto Guimarães Filho, indicado por Lúcio Costa para assumir a tarefa.
1960 — Doutor Honoris Causa pela Universidade de Harvard.

tgôi — Tese O MOVO humanismo cientifico c tecnológico — Teoria das resultantes convergentes, por solicitação do M.I.T. (Massachussets Institute of Technology).
' 963 — Apartamento de cobertura para a filha Maria Elisa, Rio de Janeiro.
(964— Pavilhão do Brasil na XIII Trienal de Milão, cujo tema era o lazer.
1965 - Projeto das rampas de acesso ao Outeiro da Glória e restauro da igreja. Rio de Janeiro, para o S P H A N .
1967 — Ensaio Proposte per Firenze, Itália.
/96a — Roteiro e texto para curta-metragem sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, realizado por Joaquim Pedro de Andrade.
1969- Plano-Piloto para a baixada de Jacarepaguá (Barra), Rio de Janeiro.
Anos 70
• Legião de Honra do governo francês, no grau de Commandeur. • Proposta para um Museu de Ciência e Tecnologia no Rio de Janeiro.
• Proposições relativas à expansão urbana de Salvador, Bahia -notadamente a concepção de "quadras populares" com trama viária losangular para resolver o problema dos Alagados.
• Monumento a Estácio de Sá no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro.
• Projeto da Fonte da Torre de TV e das Praças de Pedestres da Rodoviária, Brasília.
• Casa Thiago de Mello, Barreirinha, Amazonas.
• Proposta urbana para a nova capital da Nigéria, com Lotti e Nervi.
• Proposta para novo Pólo Urbano em São Luís, Maranhão.
• Atuação no Conselho Superior de Planejamento Urbano — C S P U —no R i o de Janeiro, em que. entre outras coisas, impediu a construção de edifícios altos na área em frente ao terminal Menezes Cortes, no Centro, para assegurar a vista livre para o Convento de Santo Antônio.

Anos 8o
• Proposições para o agenciamento da Comiche, de Casablanca, a convite do rei do Marrocos Hussein II.
• Casa para a filha Helena, Rio de Janeiro.
• Casa Edgard Duvivíer, Rio de Janeiro.
• Brasília revisitada, conjunto de recomendações relativas à preservação, complementação, adensamento e expansão urbana de Brasília, apresentadas ao governador José Aparecido de Oliveira em 1986.
• Supervisão do desenvolvimento do projeto das quadras propostas para os Alagados de Salvador em Brasília — as "Quadras Econômicas" , no Guará, projeto desenvolvido pelo arquiteto Fernando Andrade,
Anos go
• Agenciamento interno do Espaço Lucío Costa proposto por Oscar Niemeyer na Praça dos Três Poderes, Brasília. Projeto desenvolvido pelo arquiteto Fernando Andrade.
• Concepção editorial e gráfica, textos, ilustrações, roteiro e diagramação de seu único livro: Lúcio Costa—Registro de uma vivência (I * edição 1994.2 a
edição 1997, Empresa das Artes). Projeto gráfico desenvolvido por Maria Elisa Costa.

Este livro foi impresso nas oficinas da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S . A .
Rua Argentina, 171 - Rio de Janeiro, RJ para a
EDITORA JOSÉ OLYMPIO L T D A . emjulhode2006
74° aniversário desta Casa de livros, fundada em 29.11.1931