holanda 2006 arquitetura sociologica - FREDERICO DE HOLANDA · Lucio Costa, “O que a arquitetura...

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ARQUITETURA SOCIOLÓGICA Frederico de Holanda Introdução A origem do texto remonta a discussões ocorridas no Encontro Nacional da ANPUR em Salvador, maio de 2005. Por ocasião da Sessão Coordenada “Territorialidades e espaços urbanos e regio- nais: ‘novas’ abordagens teóricas” ressurgiu o tema arquitetura como disciplina. 1 O debate prolon- gou-se apaixonada e gostosamente em cafés da manhã e nos corredores do congresso. Na es- sência estavam as questões: a arquitetura tem o direito de reivindicar um lugar no panteão das disciplinas científicas? Como caracterizar as relações com (ou a inserção entre) as ciências hu- manas, as ciências da natureza, as técnicas, as artes? A obviamente necessária interdisciplinari- dade no trato do espaço urbano dispensa o desenvolvimento de um campo de reflexão específico – o da arquitetura da cidade – com teorias, métodos e técnicas que lhe são próprios? Esse campo não será bastante amplo, a refletir as múltiplas dimensões da realidade arquitetônica? É possível enxergar na literatura publicada no Brasil e alhures indícios de que a construção de uma nova ciência encontra-se em marcha? Ninguém na Sessão defendeu o status de ciência para a arquitetura. Monte-Mór prefere investir na construção de um “campo multi-inter-trans-disciplinar” 2 para conhecer “a cidade” onde importa pouco a especificidade de quaisquer enfoques. Villaça nega o status de ciência à arquitetura, que caberia à Geografia no trato do espaço urbano. Contradigo ambas as posições ao nelas identificar visões epistemológicas que implicam bloqueio do avanço do conhecimento sobre importantes as- pectos da realidade. Conhecer melhor os lugares de nossa vida cotidiana envolve o desenvolvi- mento de teorias, métodos e técnicas que não estão contemplados pela Geografia, por quaisquer outras ciências humanas ou da natureza, menos ainda pela “interdisciplinaridade”. Abordo os temas: delimitação do conteúdo do texto; problemas de realidade e representação em arquitetura; aspectos que caracterizam o olhar arquitetônico sobre os lugares; constituição de uma disciplina da arquitetura e as subdivisões; arquitetura como ciência humana e arquitetura socioló- gica; exemplos de análises empíricas que ilustram o argumento. Duas bifurcações, duas escolhas Na teorização da arquitetura, identifico duas bifurcações iniciais, sobre as quais faço duas esco- lhas para delimitar o ensaio. 1 A Sessão foi coordenada por Geraldo Magela e participaram Brasilmar Ferreira Nunes, Flávio Vilaça, Roberto Luis de Melo Monte- Mór e Bertha K. Becker. O autor participou da platéia. 2 A expressão é minha, não de Monte-Mór, mas parece-me refletir o cerne de sua argumentação. Desculpo-me por quaisquer equívo- cos de interpretação ante as posições dos colegas, por quem nutro respeito e afeto.

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ARQUITETURA SOCIOLÓGICA

Frederico de Holanda

Introdução

A origem do texto remonta a discussões ocorridas no Encontro Nacional da ANPUR em Salvador,

maio de 2005. Por ocasião da Sessão Coordenada “Territorialidades e espaços urbanos e regio-

nais: ‘novas’ abordagens teóricas” ressurgiu o tema arquitetura como disciplina.1 O debate prolon-

gou-se apaixonada e gostosamente em cafés da manhã e nos corredores do congresso. Na es-

sência estavam as questões: a arquitetura tem o direito de reivindicar um lugar no panteão das

disciplinas científicas? Como caracterizar as relações com (ou a inserção entre) as ciências hu-

manas, as ciências da natureza, as técnicas, as artes? A obviamente necessária interdisciplinari-

dade no trato do espaço urbano dispensa o desenvolvimento de um campo de reflexão específico

– o da arquitetura da cidade – com teorias, métodos e técnicas que lhe são próprios? Esse campo

não será bastante amplo, a refletir as múltiplas dimensões da realidade arquitetônica? É possível

enxergar na literatura publicada no Brasil e alhures indícios de que a construção de uma nova

ciência encontra-se em marcha?

Ninguém na Sessão defendeu o status de ciência para a arquitetura. Monte-Mór prefere investir

na construção de um “campo multi-inter-trans-disciplinar”2 para conhecer “a cidade” onde importa

pouco a especificidade de quaisquer enfoques. Villaça nega o status de ciência à arquitetura, que

caberia à Geografia no trato do espaço urbano. Contradigo ambas as posições ao nelas identificar

visões epistemológicas que implicam bloqueio do avanço do conhecimento sobre importantes as-

pectos da realidade. Conhecer melhor os lugares de nossa vida cotidiana envolve o desenvolvi-

mento de teorias, métodos e técnicas que não estão contemplados pela Geografia, por quaisquer

outras ciências humanas ou da natureza, menos ainda pela “interdisciplinaridade”.

Abordo os temas: delimitação do conteúdo do texto; problemas de realidade e representação em

arquitetura; aspectos que caracterizam o olhar arquitetônico sobre os lugares; constituição de uma

disciplina da arquitetura e as subdivisões; arquitetura como ciência humana e arquitetura socioló-

gica; exemplos de análises empíricas que ilustram o argumento.

Duas bifurcações, duas escolhas

Na teorização da arquitetura, identifico duas bifurcações iniciais, sobre as quais faço duas esco-

lhas para delimitar o ensaio.

1 A Sessão foi coordenada por Geraldo Magela e participaram Brasilmar Ferreira Nunes, Flávio Vilaça, Roberto Luis de Melo Monte-Mór e Bertha K. Becker. O autor participou da platéia. 2 A expressão é minha, não de Monte-Mór, mas parece-me refletir o cerne de sua argumentação. Desculpo-me por quaisquer equívo-cos de interpretação ante as posições dos colegas, por quem nutro respeito e afeto.

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A arquitetura é variável dependente e variável independente, concomitantemente. Como variável

dependente, a arquitetura é determinada pelo ambiente socionatural em que se realiza, por exem-

plo: clima, relevo, geologia, hidrografia, disponibilidade de materiais (ambiente natural); conheci-

mento científico-tecnológico, interesses econômico-político-ideológicos (ambiente social). Ela re-

sulta disto3. Por outro lado, como variável independente, a arquitetura tem efeitos. Enquanto arte-

fato4, ela impacta nossas vidas e o meio ambiente natural: ela determina se 1) atividades têm su-

porte adequado para seu funcionamento, 2) condições higro-térmicas são confortáveis, 3) custos

energéticos para manutenção são elevados, 4) há sensação de beleza etc. Ela resulta nisto5.

A primeira bifurcação é entre 1) arquitetura como variável dependente e 2) arquitetura como variá-

vel independente. A escolha: examinarei a arquitetura como variável independente. E a segunda

bifurcação: como variável independente, a arquitetura pode impactar 1) o meio ambiente natural e

2) as pessoas. A escolha: examinarei o impacto sobre as pessoas 6.

Arquitetura: realidade e conceito

Como em quaisquer âmbitos da realidade, empiricamente “arquitetura” não é um “dado”, não exis-

te em si, independentemente de nossas representações. Não se trata do subjetivismo obscurantis-

ta pós-moderno: não nego a realidade em si mas aceito que qualquer análise de tão ampla gene-

ralidade – a “realidade” – pressupõe conceitos, reflexões, representações. Assim, não há um “fato”

arquitetura: ela consiste naquilo que é circunscrito por uma definição, por um ponto de vista que

seleciona, inclui, exclui, qualifica; ela é “teoria-dependente”.

Adotamos7 um conceito de arquitetura que evita reduções encontradas na literatura8. Por exem-

plo, as formulações de Lucio Costa9, Bill Hillier10 ou Evaldo Coutinho11 implicam inclusão de certas

3 Assim o faz a maior parte da literatura, explicar a arquitetura por suas “determinações”. Freqüentemente explica-se erradamente a arquitetura por suas determinações econômicas, particularmente na tradição soit disant marxista (para contestação de interpretações sobre Brasília, por exemplo, ver HOLANDA, Frederico de. O espaço de exceção. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002). Outra versão busca entender o projeto por suas “intenções” reveladas ou ocultas, palavrinha onipresente no discurso arquitetônico. Quando as intenções são explicitadas pelo arquiteto, não esqueçamos de que se trata apenas de um discurso que pode refletir a reali-dade, mas pode encobrir, no mínimo por desconhecimento, no máximo por má fé, as verdadeiras implicações da arquitetura proposta. Pode ser simples “ideologia”, no mau sentido – aparência a encobrir a essência das coisas. Os erros não invalidam a vertente. 4 Pelo conceito adotado, veremos que a arquitetura não é apenas artefatual. 5 Aqui se encaixa tendência de tradição mais recente, a “avaliação pós-ocupação”, e.g., ORNSTEIN, Sheila. Avaliação Pós-Ocupação do Ambiente Construído. São Paulo: Studio Nobel, 1997. Entender a arquitetura como variável independente é central na “teoria da sintaxe espacial”, proposta inicialmente por Bill Hillier e colegas na Universidade de Londres e desenvolvida subsequentemente por pesquisadores no mundo inteiro, Brasil inclusive (obra seminal é HILLIER, Bill, HANSON, Julienne. The Social Logic of Space. Cam-bridge: Cambridge University Press, 1984; no Brasil, ver HOLANDA, 2002, op. cit. e HOLANDA, Frederico (org.). Arquitetura & Urbani-dade. São Paulo: ProEditores Associados Ltda, 2003). 6 Gratidão a Sandra Soares de Mello por argutas considerações sobre versão preliminar das idéias. 7 Não se trata do “nós majestático”. Refiro-me a idéias concebidas coletivamente no âmbito do grupo de pesquisa que coordeno, Di-mensões morfológicas do processo de urbanização, registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil, CNPq. 8 As idéias foram publicadas por primeira vez em HOLANDA, Frederico, KOHLSDORF, Gunter. “Sobre o Conceito de Arquitetura”. Anais do Seminário Nacional - O Estudo da História na Formação do Arquiteto, FAUSP/FAPESP, 1995, pp. 196-203. Posteriormente venho “calibrando” o conceito. A versão aqui apresentada é inédita e de minha individual responsabilidade. 9 “A mais tolhida das artes, a arquitetura é, antes de mais nada, construção, mas construção concebida com o propósito de organizar e ordenar plasticamente o espaço e os volumes decorrentes, em função de uma determinada época, de um determinado meio, de uma determinada técnica, de um determinado programa e de uma determinada intenção“ (COSTA, L. “Arquitetura”, Biblioteca de Educação e Cultura, MEC/Fename, Bloch, n. 4, Rio de Janeiro, p. 7, 1980; Apud GOROVITZ, M. Brasília, uma questão de escala. São Paulo: Projeto, 1985, p. 60). É evidente que Lucio Costa refere-se a intenções estéticas, implicando “boa qualidade estética”. Abraçamos contudo a idéia de que todos edifícios têm um desempenho estético – se bom ou mau são outros quinhentos; o mau desempenho não deve eliminar o edifício da “família”. Com isso as razões do mau desempenho ficam de fora da reflexão disciplinar necessária. Carece entender porque há épocas em que alguns edifícios são feios e outros belos, e há outras em que a feiura é característica fundamental da época – parece que estamos numa destas...). 10 “A arquitetura começa quando os aspectos configuracionais da forma e do espaço, pelos quais os edifícios se transformam em obje-tos culturais e sociais, são tratados não como regras inconscientes a serem seguidas, mas são elevados ao nível do pensamento

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manifestações na “família arquitetônica” e exclusão de outras. Nossa definição alarga o âmbito em

quatro direções: 1) todos os edifícios são arquitetura, não apenas os que revelam uma certa “in-

tenção” (contradizendo Lucio Costa); 2) o espaço produzido por meio de um saber implícito, in-

consciente, popular, é tão legitimamente arquitetura quanto o produzido pelo saber explícito e re-

flexivo (contradizendo Bill Hillier); 3) o espaço externo de ruas e praças é arquitetura, não apenas

o espaço interno das edificações (contradizendo Evaldo Coutinho); 4) finalmente, a paisagem vir-

gem, natural, intocada pelo homem, tem uma configuração formal-espacial (adiante conceituada)

passível de análise e avaliação enquanto arquitetura, tanto quanto o espaço artefatual de edifícios

e cidades (contradizendo a vasta literatura onde “arquitetura” é considerada apenas como lugar

construído pelo homem).

O conceito “configuração formal-espacial” inspira-se em Evaldo Coutinho: a arquitetura tem “com-

ponentes-meio” (os elementos “escultóricos”, os “cheios”, os “sólidos” a “forma”) e “componentes-

fim” (os “vãos”, os “vazios”, os “ocos”, os “espaços”)12. Curiosamente, a teoria e a história da ar-

quitetura têm se detido mais nos “componentes-meio”: a volumetria, a composição das fachadas,

texturas, cores, materiais etc. Todavia, estes pertencem especificamente à linguagem da escultu-

ra. Os elementos por excelência da linguagem arquitetônica são os “componentes-fim”, os espa-

ços – cômodos no edifício; ruas, avenidas, praças, parques, na cidade; lugares abertos na paisa-

gem natural13. Afinal, é neles que estamos imersos! Caracterizam-se por localização relativa ante

outros espaços a implicar certas topologias, permeabilidade ou fechamento, transparência ou o-

pacidade, valores de luz e sombra, ruídos, temperatura, movimentos do ar, aromas. “Meios” ou

“fins”, não podemos ignorar que somos afetados por uns e outros ao nos apropriarmos dos luga-

res. Há que teorizar portanto sobre “configuração formal-espacial” – ordenação conjunta dos dois

tipos de componentes, todavia separáveis analiticamente.

Por nosso conceito, paisagem natural ou qualquer espaço construído são “arquitetura”. Mas am-

bos são apenas isto? Não. Uma montanha ou um edifício são fatos. Mas para além desta consta-

tação banal, podem “ser” muitas coisas, a depender de como lançamos sobre eles nosso olhar

reflexivo: por exemplo, para economistas, o edifício é “capital fixo”; para geólogos, a montanha é

uma cristalização de movimentos da crosta terrestre; enquanto tais, edifício e montanha, como

aqui caracterizados por economistas ou geólogos, não são arquitetura. Cabe à teoria mostrar o

como eles serão compreendidos enquanto arquitetura.

consciente, comparativo, tornando-se desta maneira objeto de atenção criativa” (HILLIER, Bill. Space is the machine. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 45-6. A citação é tomada do Capítulo 1 do livro, o qual tem por título, precisamente na linha de Lucio Costa, “O que a arquitetura acrescenta à construção”. Hillier desloca o foco da realidade empírica da arquitetura para o seu processo de feitura. Sua redução convence ainda menos porque a ênfase não é estética, mas sociológica, foco dominante da teoria da sintaxe espacial. As pesquisas têm demonstrado que, em “aspectos sociológicos” fundamentais (ver abaixo), pouco difere a arquitetura anônima da “erudita”. 11 Evaldo Coutinho está preocupado com a arquitetura enquanto veiculadora de uma visão de mundo. Para ele apenas o espaço inter-no constitui a arquitetura porque aqui todos os atributos espaciais são controlados para comunicar uma filosofia – o que ocorre bem menos no espaço aberto que, por tal, não tem controlados, da mesma maneira, luz, som, temperatura, aromas. (COUTINHO, Evaldo. O espaço da arquitetura. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1970.) 12 COUTINHO, op. cit. 13 Vale registrar a obra pioneira de ZEVI, Bruno. Saber ver la arquitectura – ensayo sobre la interpretación espacial de la arquitectura. Buenos Aires: Editorial Poseidon, 1951. Mais recentemente o espaço é o foco central de teoria da “sintaxe espacial”: HILLIER, Bill, HANSON, Julienne, 1984, op. cit.

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O desafio é identificar os aspectos que caracterizam a arquitetura. É isso que faz nossa proposi-

ção. Os “aspectos” são o artifício teórico para fundamentar a definição de arquitetura, resumem as

implicações dos lugares enquanto arquitetura, o como ela nos afeta de várias maneiras, o seu

desempenho multifacetado. Os lugares têm outras implicações para as pessoas (como nos exem-

plos do “edifício” e da “montanha”). Mas as da taxonomia proposta são aquelas cuja investigação

alimenta um corpo de conhecimento específico – o da disciplina arquitetura. A taxonomia a seguir

explica-se sob forma de perguntas relativas a cada aspecto.

Aspectos funcionais. O lugar satisfaz as exigências práticas da vida cotidiana em termos de tipo e

quantidade de espaços para as atividades, e seu inter-relacionamento?

Aspectos bio-climáticos. O lugar implica condições adequadas de iluminação, acústica, temperatu-

ra, umidade, velocidade do vento e qualidade do ar?

Aspectos econômicos. Os custos de implementação, manutenção e uso dos lugares são compatí-

veis com o poder aquisitivo das pessoas implicadas?

Aspectos sociológicos. A configuração da forma-espaço (vazios, cheios e suas relações) implica

maneiras desejáveis de indivíduos e grupos (classes sociais, gênero, gerações etc.) localizar-se

nos lugares e de se mover por eles, e conseqüentemente condições desejadas para encontros e

esquivanças interpessoais, e para visibilidade do outro? O tipo, quantidade e localização relativa

das atividades implicam desejáveis padrões de utilização dos lugares, no espaço e no tempo?

Aspectos topoceptivos14. O lugar é legível visualmente, i. é, ele tem uma identidade? O lugar ofe-

rece boas condições para a orientabilidade?

Aspectos afetivos. O lugar tem uma personalidade afetiva? Como ele afeta o estado emocional

das pessoas – e.g. relacionado a solenidade, grandeza, frieza, formalidade, intimidade, informali-

dade, simplicidade etc.?

Aspectos simbólicos. O lugar é rico em elementos arquitetônicos que remetam a outros elemen-

tos, maiores que o lugar, ou a elementos de natureza diversa – valores, idéias, história?

Aspectos estéticos. O lugar é belo, i. é, há características de um todo estruturado e qualidades de

simplicidade/complexidade, igualdade/dominância, similaridade/diferença, que remetem a quali-

dades de clareza e originalidade, e por sua vez a pregnância, implicando uma estimulação autô-

noma dos sentidos para além de questões práticas? O lugar é uma obra de arte, por veicular uma

visão de mundo? Sua forma-espaço implica uma filosofia?

Cada aspecto implica uma estrutura de relações – um código15 – entre dois tipos de elementos: 1)

atributos da forma-espaço; 2) expectativas humanas. Códigos bio-climáticos relacionam tamanho,

forma e disposição de aberturas para o vento (um lado) e sensações térmicas (outro lado); códi-

gos topoceptivos relacionam forma e disposição de marcos visuais na cidade (um lado) e condi- 14 Neologismo criado por KOHLSDORF, Maria E. A Apreensão da Forma da Cidade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. 15 Conceito proposto em HILLIER, Bill, LEAMAN, Adrian. “How is design possible?”. JAR 3/1, Jan. 1974, pp. 4-11.

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ções para a orientabilidade (outro lado); etc. A tarefa da teoria é estabelecer as categorias analíti-

cas relativas às duas famílias de elementos. Mais: a cada aspecto corresponderá um certo núme-

ro de categorias analíticas, no âmbito da arquitetura e no âmbito das expectativas sociais. Por

exemplo, descrever bio-climaticamente a arquitetura não é descrevê-la esteticamente. A taxono-

mia apresentada acima encontra-se continuamente em teste nos nossos trabalhos de pesquisa. O

desafio é aperfeiçoar as categorias analíticas: minimizar redundâncias entre as que pertencem a

aspectos diferentes (se elas são as mesmas, não se justifica a autonomia taxonômica dos aspec-

tos), descobrir novas categorias, descartar as que se mostram pouco explicativas.

Códigos arquitetônicos são de amplitude diversa, a depender do aspecto: 1) há os universais –

e.g. exigências quanto às características visuais dos lugares, de modo que os gravemos facilmen-

te em nossa mente, são idênticas para todos os seres humanos dado nosso aparelho perceptivo

comum; 2) há os grupais – e.g. a configuração dos lugares impacta expectativas sociológicas que

são historicamente determinadas, no tempo e no espaço; cada classe social têm seu código; 3) há

os individuais: lugares impactam esteticamente a gente em função de valores que podem ser pes-

soais e intransferíveis – a empatia que sinto por um exemplo arquitetônico é função da similitude

entre minha visão de mundo e a subjacente ao lugar, contida na configuração formal-espacial.

Dado o exposto, segue-se uma definição de arquitetura enquanto realidade captada por um certo

olhar:

arquitetura é lugar usufruído como meio de satisfação de expectativas funcionais, bio-climáticas,

econômicas, sociológicas, topoceptivas, afetivas, simbólicas e estéticas, em função de valores

que podem ser universais, grupais ou individuais.

A disciplina da arquitetura, as subdisciplinas, a interdisciplinaridade

O Conselheiro Acácio16 poderia ter dito: “tudo é complexo”. E acrescentado: “a arquitetura não

escapa”. Com os aspectos, tentamos ultrapassar a obviedade e revelar o oculto: discriminar, se-

parar, classificar, analisar, fazer jus à natureza multifacetada da arquitetura, explicitada na de-

composição apresentada. Decorre que são muitos os “saberes” relacionados à prática e à teoria

arquitetônicas. Eles variam quanto às maneiras de sua produção e aplicação (modos de pensar e

agir) e quanto aos tipos de agentes envolvidos: alguns saberes são de domínio específico dos

arquitetos, outros pressupõem interfaces com outros profissionais ou pesquisadores. Na evolução

recente do pensar e fazer arquitetura, e nas relações com outras áreas, podemos identificar qua-

tro “modos”, que se desenvolvem de maneira aproximadamente cronológica. O Quadro 1 será

utilizado como guia da discussão.

Modo 1: savoir faire arquitetônico: prático e implícito. A cada aspecto da arquitetura corres-

ponde um campo de saber que se encontra: 1) em parte implícito, inconsciente, utilizado intuitiva-

mente, prático porque colado à experiência; 2) em parte explícito, sistemático, reflexivo, teórico

16 Personagem de Eça de Queirós em O primo Basílio, apegado a frases feitas, ao discurso do óbvio.

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porque abstrai da experiência características estruturais, generalizáveis e aplicáveis a outras situ-

ações. No primeiro caso (Quadro 1, campo “1”), estamos no âmbito do savoir faire do “mestre de

ofícios”, que absorve na prática os saberes arquitetônicos, por imitação dos mestres ou por obser-

vação empírica do mundo, e os utiliza nos projetos. Honrosas exceções à parte, o campo “1” re-

presenta a pouca importância tradicionalmente dada aos aspectos teórico-analíticos na formação

dos arquitetos: a arquitetura é mais entendida como “arte” ou “técnica” onde se aplicam conheci-

mentos produzidos alhures, não como, ela mesma, campo de produção de conhecimento. Contu-

do, seria errado “demonizar” a formação “irreflexiva” dos mestres de ofício intuitivos, os “arquitetos

de prancheta”, como pejorativa e injustamente às vezes são referidos na academia. Não são ne-

cessariamente maus arquitetos. Se assim o fosse, a arquitetura não teria avançado antes do ad-

vento histórico do modo científico de pensar. Arquitetos intuitivos podem ser providos de podero-

sas “antenas” que os facultam apreender (mesmo inconscientemente) a realidade, identificar pro-

blemas e propor inventivas soluções. Entretanto, outros modos de pensar e agir sobre os lugares

abrem outras possibilidades.

Quadro 1. Modos de fazer e pensar a arquitetura – décadas recentes.

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savoir faire pensamento ciências

arquitetônico: > > > > > > > morfológico: < < < < < < < sociais e natu-rais:

prático e reflexivo e conhecimento

implícito analítico a-espacial

Modo 2: refúgio no mundo a-espacial. A identificação dos problemas do urbanismo moderno a

partir dos anos 1950 levou a uma mudança comportamental dos arquitetos ante o conhecimento:

a “febre inter-disciplinar” dos anos 1960-70. Identificamos que havia algo de insatisfatório com o

saber arquitetônico da época, mas em vez de aprofundarmos reflexivamente o conhecimento da

configuração dos lugares, investindo no campo “2”, pulamos direto para o campo “3”, buscando,

particularmente nas ciências sociais, a luz que revelaria nossas limitações. Elas não puderam aju-

dar, não por culpa sua, mas por erro nosso. Levou tempo para descobrirmos (alguns pesquisado-

res infelizmente ainda não o fizeram) que as disciplinas consolidadas (campo “3”) têm métodos

próprios, categorias analíticas específicas, um vasto corpus de conhecimento que não domina-

mos, e que, principalmente, partem de descrições sistemáticas e rigorosas de outras realidades,

circunscritas pelos respectivos campos conceituais – não da realidade dos lugares olhados como

arquitetura. Lançam outros olhares sobre o mundo, mesmo quando o fazem sobre os mesmos

objetos empíricos (novamente servem os exemplos do “edifício” e da “montanha”). Não têm um

olhar morfológico: não dissecam a forma-espaço dos lugares para compreender seu impacto em

nossas vidas. Por isso, o pulo do campo “1” para o “3” não teve impacto em projeto: continuamos

a cometer os mesmos erros. Pior: o comportamento implicou o abandono do campo arquitetônico,

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fazendo com que trabalhos de “projeto” dentro das escolas de arquitetura se resumissem a docu-

mentos “sociológicos” ou “econômicos” – que não eram uma coisa nem outra – ou outros produtos

de variada natureza17. A relação com as disciplinas do campo “3” é fundamental para o avanço do

conhecimento em arquitetura, mas de outros modos.

Modo 3: arquitetos intuitivos... e reflexivo-analíticos. Não se tratava portanto de abandonar a

arquitetura, passando do campo “1” para o “3”, mas de aprofundar o conhecimento morfológico:

adicionar à intuição, ao saber prático e implícito, um outro, construído a partir da observação sis-

temática da realidade, à qual aplica-se uma reflexão teórica que extrai dos lugares atributos estru-

turais; somar ao campo “1” os conteúdos do campo “2”, o campo do saber objetivo (Popper18) –

reflexivo, verificável, refutável, contínua e racionalmente enriquecido. Não é uma novidade, mas a

retomada de uma rica tradição – que o diga a antologia de Kruft19. Seria incorreto e arrogante di-

zer que estaríamos assim inventando o saber objetivo em arquitetura20.

A retomada do conhecimento reflexivo em arquitetura tem contribuído para a consolidação de

subdisciplinas, ou disciplinas “regionais”, relacionadas aos aspectos comentados, à vez. É carac-

terística do conhecimento científico decompor para aprofundar o saber. Ele o tem feito, também

quanto à arquitetura. Em alguns aspectos, o conhecimento tem maior tradição: vejam, por exem-

plo, a quantidade de títulos sobre os aspectos simbólicos ou estéticos nas bibliotecas de arquitetu-

ra, e os manuais que tratam de aspectos funcionais. Noutros aspectos, a tradição é menor, ainda

que significativa, como nos topoceptivos, a constituírem linha de pesquisa aberta por Lynch21 mas

com origem detectável, pelo menos, em Sitte22 (embora este seja mais comumente classificado

como esteta). Noutros ainda, a tradição é quase nula, como nos aspectos afetivos23, que merecem

status independente mas são freqüentemente confundidos com outros, e.g. os simbólicos.

O paradigma epistemológico ainda hegemônico, ilustrado na discussão referida no início do texto,

vem sendo superado (embora devagar). Nele, a arquitetura é estranha ao panteão das disciplinas

científicas. Decorre que ela ressente-se de um complexo de inferioridade que a faz aceitar o sta-

tus de adjetivo adicionado ao substantivo das disciplinas de maior tradição de pesquisa. Por isso

nos incorporamos, alegres, a campos como “psicologia ambiental” ou “economia urbana” ou “esté-

tica arquitetônica”, achando que assim subimos de patamar. Não. Esse foi o grande equívoco da

“febre interdisciplinar” que atrasou perversamente o conhecimento da arquitetura.

17 Professores ou alunos de arquitetura nos anos 1970 sabemos dos danos que isto causou à formação. Valia de tudo nos trabalhos de conclusão de curso, até despachos de macumba, como pude testemunhar (nada contra os despachos, mas estavam fora de contexto). Ver também comentários em ZEIN, Ruth Verde. O lugar da crítica – ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Faculdades Inte-gradas do Instituto Ritter dos Reis, 2001. 18 Popper, K. Conjectures and refutations - the growth of scientific knowledge. London: Routledge and Kegan Paul, 1963. 19 KRUFT, Hanno-Walter. A history of architectural theory from Vitruvius to the present. New York: Princeton Architectural Press, 1994. 20 Mais adequado seria dizer que a ruptura dos anos 1960-70 marca o começo do fim de um “paradigma” e o início de outro. O pro-gresso do conhecimento se dá de maneira descontínua – são as “revoluções paradigmáticas” de Kuhn. As últimas décadas testemu-nham uma destas revoluções. (KUHN, Thomas S. Estrutura das revoluções cientificas. São Paulo: Perspectiva, 2003.) 21 LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 22 SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. Organização e apresentação de Carlos Roberto Mon-teiro de Andrade. Tradução de Ricardo Ferreira Henrique. São Paulo: Editora Ática S. A., 1992. 23 Há estudo sobre os aspectos realizado com estudantes de arquitetura, na FAU-UnB: HOLANDA, Frederico de. Afetos da arquitetura. (mimeo)

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À mudança de postura metodológica devem corresponder mudanças taxonômicas. Quando o “es-

paço vem para a boca de cena”, na bela expressão de Carlos Nelson Ferreira dos Santos24, anti-

gos rótulos não fazem justiça à nova realidade. “Substantivar” as subdisciplinas da arquitetura

significa propugnar por disciplinas cuja denominação, por exemplo, poderia ser a do Quadro 2.

Quadro 2: aspectos e disciplinas “regionais” da arquitetura

ASPECTO DISCIPLINA

aspectos funcionais arquitetura funcional

aspectos bio-climáticos arquitetura bio-climática

aspectos econômicos arquitetura econômica

aspectos sociológicos arquitetura sociológica

aspectos topoceptivos, afetivos, simbólicos, estéti-cos

arquitetura expressiva (para o conjunto, ou então, especificamente, arquitetura topoceptiva, arquitetura afetiva, arquitetura simbólica, arquitetura estética)

Algumas expressões na coluna da direita do Quadro 2 são de uso mais corrente, outras menos.

Mesmo quando corrente, o uso não diz respeito a uma disciplina regional, como propugnado aqui,

mas a um tipo de manifestação empírica, a revelar a hegemonia do velho paradigma. Questione-

mos: por que a primeira idéia que nos vem à cabeça quando falamos em “sociologia urbana” é a

de um corpo de conhecimento consolidado (uma disciplina, portanto), e não a idéia de manifesta-

ções empíricas de costumes urbanos? Por que, ao contrário, se encontramos a expressão “arqui-

tetura bio-climática”, a primeira idéia não é a de um corpo disciplinar, mas a de uma arquitetura,

digamos, “ecologicamente correta”? Por que a expressão “arquitetura funcional” nos remete a ma-

nifestações da arquitetura moderna, embora injusta ou mesmo equivocadamente?25 Trata-se do

entendimento que o paradigma hegemônico impõe e que urge superar.

No novo marco teórico, a questão da interdisciplinaridade se coloca de maneira diversa. Não se

trata de um obscurantismo corporativo que menospreze o conhecimento de determinados campos

disciplinares (e.g. sociologia urbana) em benefício de outros (e.g. arquitetura sociológica). Não há

objeto empírico cuja compreensão prescinda do concurso de vários olhares. As relações das pes-

soas com o espaço urbano não são objeto privativo da arquitetura sociológica nem da sociologia

urbana – são um campo comum a ambas. Contudo, os olhares de uma e outra disciplina diferem

no ponto de partida, nos métodos, na ênfase e no rigor que conferem à descrição da realidade

que estão a abordar. “Arquitetos sociológicos” têm por dever de ofício oferecer quadro preciso,

exaustivo, profundo, do espaço produzido ou apropriado pelas pessoas; buscarão na sociologia

24 In TURKIENICZ, B & MALTA, M (org). Desenho urbano - Anais do II SEDUR, CNPq/FINEP/PINI, 1986 25 Como bem apontou Anderson, ao comentar que “função” é uma ficção em duplo sentido: uma mentira, pois a arquitetura funcional é uma impossibilidade, e uma narrativa, pois a “função” em arquitetura é sempre historicamente articulada a valores, idéias, costumes (ANDERSON, Stanford. A ficção da função. ANAIS DO 4.SEDUR - Seminário sobre desenho urbano no Brasil. Brasília: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Governo do Distrito Federal, 1995).

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urbana o aporte necessário à completude do quadro analítico, quanto aos atributos das pessoas

envolvidas. Mas as categorias “importadas” não são quaisquer categorias, nem todas ajudam a

entender melhor a arquitetura; não saber discriminá-las foi outro erro do “modo 2”. Elas devem

estar relacionadas às expectativas sociais em relação à forma-espaço dos lugares, têm de ajudar-

nos a entender a satisfação (ou não) das pessoas quanto ao desempenho arquitetônico26. A so-

ciologia urbana, por sua vez, não precisa, nem deve, abordar com rigor a configuração da cidade,

mas dirigir a ênfase às relações entre as pessoas no âmbito urbano (classes sociais, gênero, ge-

rações, etnias etc.). É para isto que ela está melhor preparada. Mutatis mutandis, buscarão na

arquitetura sociológica o aporte necessário à completude do seu trabalho, segundo a mesma idéi-

a: um aporte complementar, subsidiário27.

Modo 4: a “sedução” de cientistas a-espaciais para o campo morfológico. As observações

anteriores referem-se ao necessário diálogo entre arquitetos e outras formações, mantidas as res-

pectivas identidades. Mas o desenvolvimento da arquitetura como disciplina tem ganho muito

também mediante mudanças nas tradicionais identidades acadêmico-profissionais. Vimos acima

os ganhos decorrentes quando os arquitetos migram do campo “1” para o “2” (Quadro 1). Agora,

levo a condenação do obscurantismo corporativista mais longe. Se a interação entre arquitetos

(agora no campo “2”) e cientistas sociais (no campo “3”) já é profícua (comentada no modo anteri-

or), mais ainda o será se houver uma migração inversa, agora dos cientistas do campo “3” para o

campo “2”. Isso também pressupõe mudança de identidade. Ao migrarem para o centro do dia-

grama, cientistas sociais transmutam-se em “morfólogos” – passam utilizar sua “caixa de ferra-

mentas” teórico-metodológica para iluminar a configuração dos lugares, enriquecendo sobrema-

neira o conhecimento da realidade.

Portanto, sejam bem-vindos cientistas sociais ou da natureza ou das exatas, de todas as categori-

as, para o campo disciplinar da arquitetura, sem que tenham de obter o respectivo diploma! Mas

isso implica que se debrucem sobre os códigos arquitetônicos, passem a pensar morfologicamen-

te, não a-espacialmente, como é mais de sua tradição28. A dupla “migração”, dos campos extre-

mos para o campo central do Quadro 1, dá excelentes frutos29. Faz de todos “pensadores reflexi-

26 A natureza multifacetada de nossas expectativas exige a importação de categorias de muitas disciplinas, a depender dos aspectos. Por exemplo, no âmbito dos aspectos sociológicos, importei de Giddens o conceito de classes sociais nas sociedades avançadas, para analisar o variado comportamento delas em relação ao espaço de Brasília (HOLANDA, 2002, op. cit.; GIDDENS, A. The class structure of the advanced societies. London: Hutchinson of London, 1973); para os aspectos funcionais, há que importar categorias da ergono-mia; para os bio-climáticos, da biologia, da climatologia e da física; para os topoceptivos, da psicologia; etc. 27 Hillier e Leaman abordaram o tema em artigos pioneiros nos anos 1970: HILLIER, Bill, LEAMAN, Adrian. "A new approach to archi-tectural research". RIBAJ, Dec. 1972, pp. 517-521; HILLIER, Bill, LEAMAN, Adrian, 1974, op. cit., HILLIER, Bill, LEAMAN, Adrian. “Architecture as a discipline”. JAR 5/1, March 1976, pp. 28-32. 28 Contudo, há muitos cientistas sociais que são “espaçólogos”. É o caso de Durkheim e seus conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, claramente espaciais, fundamentais para entendermos modos de vida não-urbanos e urbanos (DURKHEIM, E. The Division of Labour in Society. New York: The Free Press, 1964). É o caso de Lévi-Strauss, em sua clássica análise da aldeia Bororo (LÉVI-STRAUSS, Claude. Structural anthropology. Penguin Books, 1977). É o caso de Michel Foucault, Erving Goffman, Pierre Bourdieu, Marc Augé, Michel de Certeau etc. Sua contribuição à arquitetura é inestimável. 29 Vejo com otimismo os excelentes trabalhos de Iniciação Científica produzidos por estudantes de graduação em arquitetura, a revelar grandes pesquisadores em potencial (migração do campo “1” para o “2”). Na pós-graduação em arquitetura a participação de estudan-tes oriundos de áreas aparentemente distantes (migração do campo “3” para o “2”) vem iluminar fundamentais questões morfológicas. Por familiaridade, cito duas teses de doutorado em preparação: Franciney Carreiro de França (As características socio-morfológicas no Distrito Federal: morar em apartamentos) e Rômulo José da Costa Ribeiro (Análise da Configuração Urbana, por Meio de Índices de Qualidade de Vida e Qualidade Ambiental, em Apoio à Gestão de Cidades), são oriundos respectivamente da matemática e da geolo-gia, e trazem para o campo da arquitetura avançados procedimentos quantitativos e de geo-processamento.

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vos morfológicos”, dá enorme impulso ao aprofundamento do campo disciplinar da arquitetura. Ao

contrário, a negação do aprofundamento disciplinar e a defesa de “um novo tipo de generalista

urbano”, um “novo tipo de Homem Renascentista moderno”30, requenta posições falidas de quase

40 anos atrás.

Não importa o diploma do pesquisador ou a agremiação a que formalmente pertence, mas seu

olhar sobre os lugares. A “senha” para entrar no campo “2” não é o rótulo contido no diploma, mas

“morfologia”. Dos três professores mais importantes na minha formação – Delfim Fernandes Amo-

rim, Evaldo Coutinho e Bill Hillier – apenas o primeiro é arquiteto. Amorim (1917-1972), português

naturalizado brasileiro, teve forte influência na formação dos arquitetos da Faculdade de Arquitetu-

ra da Universidade Federal de Pernambuco ao longo de quase duas décadas e foi um dos princi-

pais mentores e partícipes da Escola do Recife31. O pernambucano Evaldo Coutinho (n. 1911) é

exemplo emblemático: advogado por diploma, filósofo e arquiteto-esteta por opção, é autor do

clássico O espaço da arquitetura32, obra essencial no campo da filosofia da arte aplicada à arqui-

tetura (ou no campo da arquitetura estética, nos nossos termos). O inglês Bill Hillier (n. 1937), ba-

charel em literatura, é fundador da Teoria da Sintaxe Espacial, influente linha de investigação que

se difundiu por inúmeros países, inclusive Brasil33.

As “disciplinas regionais” (ou subdisciplinas) da arquitetura vêm, sim, consolidando-se avant la

lettre. Breves exemplos o ilustram: 1) manuais de variados tipos (Neufert34, Prinz35 etc.) dizem

respeito aos aspectos funcionais; 2) Romero36 investiga aspectos bio-climáticos ao examinar rela-

ções forma urbana x conforto ambiental; 3) Mascaró37 pesquisa aspectos econômicos ao estudar

relações configuração de cidades e edifícios x seus custos de produção e manutenção; 4) traba-

lhos de Stanford Anderson (EEUU)38, Bill Mitchell (EEUU)39, Castex et al. (França)40, Carlos Nel-

son Ferreira dos Santos (Brasil)41, Bill Hillier (Inglaterra)42, e a maioria da pesquisa em “sintaxe

30 Como proposto por Robert Weaver (1968), apud ELLIN, Nan. Postmodern urbanism. New York: Princeton Architectural Press, 1999, p. 65. A idéia chegou a desembocar na criação de cursos interdisciplinares de graduação para formar os “generalistas”. Isso é comple-tamente diferente das experiências bem-sucedidas de trabalho em equipes interdisciplinares, como as realizadas pela SUDENE dos “tempos heróicos” (início dos anos 1960), ou da formação em nível de pós-graduação como instrumento para aperfeiçoar formas de diálogo inter-áreas no trato de problemas concretos, como nos CEMUAMs – Cursos de metodologia do urbanismo e administração municipal, realizados pelo IBAM – Instituto Brasileiro de Administração Municipal (o autor teve o privilégio de fazer o curso na edição 1971-72, sob a direção de Adina Mera e Marcos Mayerhofer). 31 “Pela qualidade e relativa homogeneidade da produção arquitetônica do período, muitos estudiosos sugerem a existência de uma escola de arquitetura – a Escola do Recife.” (AMORIM, Luiz. “Arquitetura”. In André Rosemberg (org.). Pernambuco 5 Décadas de Arte. Recife: Quadro Publicidade e Design Ltda., 2003.) 32 COUTINHO, op. cit. 33 Bill Hillier escreveu com Julienne Hanson o livro que reuniu inicialmente os principais aspectos da teoria: HILLIER & HANSON, op. cit. Publicou depois HILLIER, op. cit. Simpósios internacionais bienais desde 1997 têm reunido pesquisadores de inúmeros países que utilizam a teoria. No Brasil, os pesquisadores concentram-se nas universidades: UFRN, UFPE, UnB, UFSC e URGS. Testemunhei o surgimento da teoria por ocasião da minha pós-graduação em Londres, nos anos 1970. Ela foi empregada na minha dissertação de mestrado e na minha tese de doutorado (esta publicada em HOLANDA, 2002, op. cit.), ambas realizadas sob a supervisão de Bill Hillier. 34 NEUFERT, Ernst, NEUFERT, Peter. Arte de projetar em arquitetura. Barcelona: Gustavo Gili, 2004. 35 PRINZ, Dieter. Urbanismo – vol. 1 e 2. (título do original em alemão: Stadtbau – vol. 1 e 2) 36 ROMERO, M. A. B. Princípios bio-climáticos para o desenho urbano. São Paulo: Projeto Editores, 1988. 37 MASCARÓ, J. L. O Custo das Decisões Arquitetônicas. São Paulo: Nobel, 1985. 38 ANDERSON, S (ed). On Streets. Cambridge: MIT Press, 1978. 39 MITCHELL, William J. E-topia. Cambridge: The MIT Press, 2000. 40 CASTEX, J et al. Formes urbaines: de l'ilôt à la barre. Paris: Dunod, 1977 41 E.g. SANTOS, Carlos N. F. dos & VOGEL, Arno. Quando a rua vira casa - a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro. São Paulo: Projeto Editores, 1985.

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espacial”, estão no âmbito dos aspectos sociológicos, cada autor a enfocar, à sua maneira, rela-

ções modos de vida x configuração urbana; 5) retomando e desenvolvendo a tradição de Kevin

Lynch, Kohlsdorf 43 estuda os aspectos topoceptivos, ao relacionar configuração urbana x forma-

ção de imagens mentais; 6) a dimensão simbólica do lugar é tema de Elvan Silva44, no Brasil, e

dos fenomenólogos em geral, como Norberg-Schulz45 e Scully46; 7) embora a literatura raramente

separe os aspectos afetivos dos simbólicos, os primeiros também são o foco de fenomenólogos,

como Seamon47; 8) nos aspectos estéticos sobressai, no Brasil, o trabalho de Gorovitz48. Nada

disto “combinei com os adversários”, na espirituosa frase do Garrincha: o enquadramento dos

autores na taxonomia é de minha responsabilidade, um exemplo de como o estado da arte pode

ser caracterizado. Muitos possivelmente contestariam os respectivos rótulos e os conceitos pro-

postos.

Os trabalhos são sintoma eloqüente de que a pesquisa sobre os aspectos da arquitetura é neces-

sária e está sendo feita. Entretanto, a vertente “aspectual”, em “profundidade”, co-existe com ou-

tra, mais comum, em “extensão”, igualmente legítima. Nesta, a pesquisa e a crítica preferem con-

siderar a arquitetura globalmente, não em enfoques particulares. Preferem identificar como a con-

fluência de vários aspectos proporciona identidade a um panorama da arquitetura delimitado no

tempo ou no espaço. É a abordagem típica das disciplinas de história nas faculdades de arquitetu-

ra, e.g. “arquitetura barroca” (delimitação no tempo) ou “arquitetura brasileira” (delimitação no es-

paço). Na tradição, os aspectos comparecem (como não fazê-lo?!), contudo de maneira global;

quanto mais abrangente a abordagem, melhor49. O problema existe quando se vende uma parte

pelo todo, quando uma opção por determinado aspecto é feita na análise, mas não explicitada –

por exemplo, pelos aspectos estéticos, como é predominante na historiografia em arquitetura. É

como se uma dimensão fosse a única a interessar, ou pelo menos a mais importante, em quais-

quer casos. Não é assim. O desempenho da arquitetura pode ser contraditório entre aspectos –

bom em uns, ruim em outros – e ela torna-se referência histórica quando suas qualidades fazem

por merecê-lo, malgrado seus defeitos. Brasília, uma das mais importantes realizações arquitetô-

nicas50 de todos os tempos, já entrou para a história. Embora não se explicite assim, ela é legiti-

mamente considerada Patrimônio Cultural da Humanidade pelos aspectos, e.g., bio-climáticos,

42 HILLIER & HANSON, 1984, op. cit., HILLIER, 1996, op. cit. 43 KOHLSDORF, op. cit. 44 SILVA, Elvan. Arquitetura e Semiologia. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1985. 45 NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius Loci - Paesaggio, Ambiente, Architettura. Electa Editrice, Milano, 1979. 46 SCULLY, Vincent. Pueblo / Mountain, Village, Dance. The University of Chicago Press, Chicago and London, 1989. 47 SEAMON, David. “Phenomenology, place, environment, and architecture: a review of the literature”. Environmental & Architec-tural Phenomenology Newsletter, 2000 (http://www.arch.ksu.edu/seamon/articles/2000_phenomenology_review.htm, acesso 03.04.2006). 48 GOROVITZ, Matheus. Brasília, uma questão de escala. São Paulo: Projeto, 1985; GOROVITZ, Matheus. Os riscos do projeto - con-tribuição à análise do juízo estético na arquitetura. São Paulo/Brasília: Edunb/Studio Nobel, 1993. 49 No Brasil, exemplo paradigmático da tradição é o trabalho pioneiro de Nestor Goulart Reis Filho. Quando pesquisar arquitetura era “coisa de intelectuais diletantes” e até motivo de escárnio nas faculdades de arquitetura, Reis Filho publicou o seminal Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana no Brasil (1500-1720). São Paulo: Livraria Pioneira Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1968. Desde então tem contribuído ininterruptamente para a compreensão da arquitetura brasileira. Escreveu ou organizou 18 livros (http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/index.jsp, acesso em 03/04/2006). Há antecedentes quanto a reflexão sobre arquitetura no Brasil. Vale citar, pelo menos, os escritos de Lucio Costa a partir dos anos 1930 (COSTA, Lúcio. Lúcio Costa: registro de uma vivência. Empresa das Artes, São Paulo, 1995). 50 Lembro que uso “arquitetura” lato sensu, a englobar todas as escalas: edilícia, urbanística, paisagística.

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topoceptivos, simbólicos e estéticos, apesar dos problemas sociológicos, funcionais e econômicos

que tem (ver abaixo), alguns com origem no projeto, outros no desenvolvimento posterior da cida-

de51. É no mínimo curioso como a crítica preconceituosa ou desinformada ou superficial de gente

como Holston52, Rykwert53, Frampton, Tafuri, Zevi54, passa ao largo de tais contradições e, princi-

palmente, falha em reconhecer a importância histórica da cidade.

Arquitetura como ciência humana

Ciências humanas são ciências sobre práticas humanas. Como sintética e elegantemente formu-

lou Nunes55, a filosofia estuda relações entre seres humanos e idéias; a economia, relações entre

seres humanos e coisas; a sociologia, relações dos seres humanos entre si. Parafraseando Nu-

nes, sugiro: a criação ou usufruto de lugares são práticas humanas e a disciplina da arquitetura

como ciência humana estuda relações entre os lugares e as pessoas, do ponto de vista dos as-

pectos funcionais, bio-climáticos, econômicos, sociológicos, topoceptivos, afetivos, simbólicos e

estéticos. As pessoas fazem-se humanas pelos modos de produção de bens materiais, pela lín-

gua que falam, pelos sistemas simbólicos que inventam, pelas maneiras de criar ou usufruir luga-

res. Mas o conjunto dessas “maneiras” é um campo ainda vasto. Prática humana é perceber estí-

mulos visuais de uma seqüência de ruas e praças e daí formar uma imagem mental estruturada

(aspectos topoceptivos); é emocionar-se diante da leveza da arquitetura de Oscar Niemeyer (as-

pectos afetivos); é fazer a imagem do Cristo Redentor no Corcovado, Rio de Janeiro, representar

a cidade inteira (aspectos simbólicos); etc. O conhecimento em todos esses campos é passível de

se desenvolver no modo científico, e o tem feito, como o exemplifiquei; todos são “humanidades”.

Entre elas tratarei de apenas uma: a arquitetura sociológica.

A cada aspecto corresponde um campo de saber, uma subdisciplina da arquitetura. A cada sub-

disciplina correspondem categorias analíticas próprias, que conceituam a arquitetura e as expec-

tativas sociais relativas aos aspectos. Vejam como a arquitetura sociológica considera 1) a reali-

dade empírica lugar e 2) a realidade empírica expectativas sociais.

Para a disciplina arquitetura sociológica, a realidade empírica lugar é um sistema de barreiras e

permeabilidades ao movimento, de transparências e opacidades à visão, de cheios e vazios, im-

pregnados de práticas sociais. Cada lugar enquanto arquitetura implica uma peculiar organização

dos elementos componentes: 1) superfícies, volumes, vãos, na escala dos edifícios; 2) edifícios,

ruas, praças, áreas verdes, na escala dos assentamentos humanos de qualquer tipo – aldeias,

vilas, cidades, metrópoles; 3) montanhas, vales, enseadas, praias, na paisagem natural. Lugares

são ordenados em sistemas de contigüidades, continuidades, proximidades, separações, hierar-

51 HOLANDA, Frederico de. “Uma ponte para a urbanidade”. In HOLANDA, 2003, op. cit., pp. 40-59. 52 HOLSTON, James. A cidade modernista - Uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Uma crítica a Holston está em HOLANDA, 2002, op. cit. 53 RYKWERT, Joseph. The seduction of place – The city in the twenty-first century. London: Weidenfeld & Nicolson, 2000. Uma crítica a Rykwert está em KOHLSDORF, Maria Elaine, KOHLSDORF, Gunter, HOLANDA, Frederico de. Brasília: Permanências e Metamorfo-ses, 2003 (mimeo). 54 Uma crítica a esses três últimos autores está em ZEIN, op. cit. 55 Brasilmar Nunes, comunicação verbal na Sessão Coordenada antes referida.

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quias, circunscrições. Dito mui sinteticamente, sistemas formal-espaciais variam, na história, no

uso que fazem de barreiras/permeabilidades ou opacidades/transparências, em combinações di-

versas. Interessam para a disciplina as relações entre tais sistemas e expectativas sociais especí-

ficas, como seguem.

Para a disciplina arquitetura sociológica, a realidade empírica expectativas sociais diz respeito a

um sistema de encontros e esquivanças, de concentração e dispersão de pessoas. Cada sistema

social implica uma peculiar maneira de organizar grupos de pessoas no espaço e no tempo, ma-

neira que estabelece quem está próximo ou distante de quem, fazendo o quê, onde e quando.

Sociedades variam, na história, em combinações diversas: as muito densas, que comprimem no

espaço e no tempo toda classe de gente e práticas sociais diversas (todos estão próximos prati-

camente o tempo todo); as muito rarefeitas, que localizam diferentes tipos de pessoas e suas prá-

ticas em lugares especializados por categoria, lugares separados por grandes distâncias ou fortes

barreiras físicas, pessoas cuja interação através do espaço é descontínua no tempo; combinações

das duas coisas – e.g. concentrar separadamente – como é típico das sociedades contemporâ-

neas com seus enclaves fortificados, campi universitários, centros cívico-administrativos, shopping

centers, edge cities 56.

Vasta evidência empírica aponta para uma congruência histórica entre configurações formal-

espaciais e sistemas sociais: as sociedades não são infinitamente maleáveis como para caber em

qualquer camisa de força construída em pedra e cal e não se pode realizar impunemente qualquer

absurdo arquitetônico. Todavia, muitas teorizações em arquitetura estão longe de reconhecer a

evidência. A dificuldade explica-se pelos equívocos cometidos pela ideologia do Movimento Mo-

derno, que pretendia fazer brotar do lápis uma nova sociedade57. Amadurecidos pelo fracasso das

idéias, hoje o tema se nos coloca de maneira diferente: arquitetura e gente são coisas relaciona-

das mas distintas. Falar em congruência não é falar em determinação bi-unívoca entre arquitetura

e comportamento, mas é reconhecer que a arquitetura cria, sim, um campo de possibilidades e de

restrições, possibilidades que podem (ou não) ser exploradas, restrições que podem (ou não) ser

superadas. Possibilidades: espaços públicos historicamente surgidos para estar cheios de gente

em forte interação cotidiana, podem encontrar-se hoje desertos porque mudou o modo de vida

das pessoas, embora habitem os antigos lugares (onde estão as cadeiras nas calçadas dos bair-

ros tradicionais das cidades brasileiras?). Restrições: no caso-limite da prisão, detentos podem

cavar túneis e fugir. Os fatos não negam as possibilidades e restrições intrínsecas às configura-

ções arquitetônicas, mas revelam que as relações de determinação entre arquitetura e comporta-

mento são mais sutis do que um dia imaginamos. Nem ela determina nosso comportamento como

se fôssemos desprovidos de vontade, iniciativa e capacidade de superar limites, nem ela é neutra,

como foi a “solução” adotada por muitos teóricos. Tafuri e Rossi, por exemplo, passaram a ver a

56 Estudos de caso em HOLANDA, 2002, op. cit. ilustram alguns tipos de sociedades. 57 Para uma retomada da clássica discussão sobre “determinismo arquitetônico” ver HOLANDA, Frederico de. “A determinação negati-va do Movimento Moderno”. In HOLANDA, 2003, op. cit., pp. 18-39.

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arquitetura como vazia de conteúdo, sobre a qual podemos colar os rótulos que quisermos: “a

arquitetura por si própria não pode ser democrática ou fascista; somente as pessoas podem fazê-

la uma coisa ou outra”58. Foram secundados por Léon Krier: “não existe arquitetura autoritária nem

democrática. Existem somente meios autoritários e democráticos de produzir e usar a arquitetura.

(...) A arquitetura não é política, apenas pode ser usada politicamente”59. Isso não agride apenas o

bom senso, agride vasta evidência empírica. Sobre o tema determinismo arquitetônico, Tafuri,

Rossi, Krier, jogaram fora a água suja do banho junto com o bebê. Compreender as relações entre

arquitetura e sociedade num novo patamar de qualidade é o desafio da arquitetura sociológica.

Arquitetura sociológica – exemplos

A arquitetura sociológica – esse peculiar olhar sobre a forma-espaço da arquitetura – tem motiva-

do pesquisas e embasado projetos de urbanismo na FAU-UnB60. Os exemplos cobrem diversas

escalas: 1) pesquisa sobre transformações do espaço doméstico ante o modo de vida contempo-

râneo, a implicar “casas dentro de casas”, uma hiper-valorização da privacidade individual na cria-

ção de pequenos mundos semi-autônomos nos quartos das residências61; 2) projeto de revitaliza-

ção da Av. W-3, em que foram consideradas as mudanças morfológicas e de estilo de vida da

metrópole brasiliense que provocaram a decadência da avenida, um dia o centro vital da cidade62;

3) estudos sobre a forma-espaço do Distrito Federal, a revelar os custos sociais da “excentricida-

de” da Capital: 70% dos empregos estão onde moram menos de 10% da população, numa área

de relativa segregação física ante a metrópole como um todo (o Plano Piloto)63; 4) projeto de uma

nova superquadra, realizado a partir da análise crítica da experiência pregressa64; 5) projetos de

expansão urbana realizados pelos estudantes de graduação, para ocupar áreas centrais da me-

trópole até hoje vazias; 6) pesquisa sobre as relações poder aquisitivo dos habitantes x configura-

ção formal-espacial dos lugares onde moram. A seguir, e tanto quanto o espaço o permite, expo-

nho pormenores de alguns exemplos.

Brasília “excêntrica”65

No trabalho, utilizamos variáveis relacionadas a: 1) acessibilidade interpartes da cidade; 2) locali-

zação de empregos; 3) localização de moradias. A ordenação formal-espacial da cidade foi capta-

da por meio da técnica de axialidade, da teoria da sintaxe espacial66: as vias para veículos motori-

zados são reduzidas a eixos, compondo um “mapa axial” (Fig. 1, esquerda); o mapa é processado

por software que revela a acessibilidade relativa interpartes da cidade e indica as mais acessíveis

58 Apud ELLIN, op. cit., p. 26. 59 Idem, p. 31. 60 Seria incorreto dizer que só ocorre aqui. Cito os exemplos pela familiaridade. 61 FRANÇA, Franciney Carreiro de. Meu quarto, meu mundo: configuração espacial e modo de vida em casas de Brasília. Dissertação de Mestrado, Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, UnB, 2001. (mimeo) 62 GARCIA, Cláudia da Conceição, SILVA, Eliel Américo Santana da, HOLANDA, Frederico de, TENÓRIO, Gabriela de Souza, BATIS-TA, Geraldo Sá Nogueira. “Passado, Presente e Futuro de Uma Avenida Moderna: W-3, Brasília”. ” In HOLANDA, 2003, op. cit., pp. 60-99 63 HOLANDA, Frederico de. “Uma ponte para a urbanidade”, op. cit. 64 HOLANDA, Frederico de, BARCELLOS, Vicente. “Permanência e Inovação: SQN-109, Brasília”. In HOLANDA, 2003, op. cit., pp. 114-133. 65 Exposto de maneira mais extensa em HOLANDA, Frederico de. “Uma ponte para a urbanidade”, op. cit. 66 HILLIER & HANSON, op. cit. No Brasil há muitos pesquisadores utilizando a metodologia. Do autor, ver HOLANDA, 2002, op. cit.

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e as mais segregadas ante a metrópole como um todo, respectivamente as linhas mais “quentes”

– tendentes ao vermelho – e as mais “frias” – tendentes ao azul. Além da saída gráfica há a saída

numérica do processamento. Com isso pode-se verificar as correlações entre acessibilidade, loca-

lização de empregos e localização de moradias (as informações permitem utilizar dados agrega-

dos apenas por Região Administrativa, Fig. 1, direita). A análise permite concluir, com rigor ausen-

te em pesquisas anteriores, que: 1) o centro morfológico de Brasília, constituído pelas partes mais

acessíveis, está fora do Plano Piloto, a oeste, entre o Plano e a Cidade Satélite do Guará, como

revela o mapa axial processado (Fig. 1, esquerda); 2) há enorme concentração de empregos no

Plano Piloto para um número relativamente pequeno de moradores (barras vermelha e azul, res-

pectivamente, na coluna correspondente à Região Administrativa de Brasília, Fig. 1, direita); 3)

paradoxalmente, a área fisicamente mais central da cidade (Região Administrativa do Guará, se-

gunda coluna na Fig. 1, direita) é pobre em empregos e habitantes; 4) a Região Administrativa

mais populosa é a Ceilândia (Fig. 1, direita, quarta coluna) e vejam como ela é pobre em empre-

gos e fisicamente segregada. A perversidade social da situação é evidente. Acresce que Brasília é

a segunda cidade mais dispersa do mundo, segundo estudo comparativo entre cidades de todos

os continentes67. As grandes distâncias métricas interpartes, provocadas pelos enormes vazios

entre as áreas urbanas da cidade, somam-se às baixas correlações entre emprego, habitações e

acessibilidade. Elevados custos socioeconômicos são impostos à população, particularmente a de

mais baixa renda e menor mobilidade física, obrigada a utilizar um transporte público caro e de

baixa qualidade. O estudo exemplifica ainda o uso de técnicas sofisticadas de caracterização ar-

quitetônica da cidade, indisponíveis no âmbito de outras disciplinas, aliado ao uso de dados de-

mográficos e socioeconômicos68.

Poder aquisitivo e configuração formal-espacial edilícia-urbana69

Reza o discurso tradicional sobre Brasília que o projeto da cidade não é responsável pela segre-

gação socioespacial, que segregação a temos em qualquer cidade brasileira ou mundial, o que

varia é o grau, que perversa mesmo é a sociedade brasileira etc. Será mesmo? Estudo em anda-

mento mostra que as afirmações precisam ser relativizadas. A variedade limitada de tipos edilícios

no Plano Piloto (pelo projeto inicial apenas edifícios de seis pavimentos sobre pilotis nas super-

quadras e “casas individuais” próximas à orla lacustre) resultou no surgimento precoce das cida-

des satélites, implicando a localização dos contingentes populacionais de baixo poder aquisitivo

longe da principal concentração de empregos e serviços da Capital70. Sem guarida no Plano, os

tipos “inadequados” implantaram-se a quilômetros de distância, inaugurando a peculiar segrega-

67 BERTAUD, Alain, MALPEZZI, Stephen. The spatial distribution of population in 35 world cities: the role of markets, planning, and topography. Working draft, February 17, 1999. Pelo estudo, a mais dispersa é Bombaim e a mais compacta é Shangai. 68 A história da metrópole brasiliense é uma história de oportunidades perdidas. Exemplo recente é a criação da “cidade digital”, vizinha ao Plano Piloto, 40.000 empregos diretos, sem acesso ao metrô. Os empregos poderiam ter ido para áreas junto às cidades satélites, onde espaço não falta, com acesso direto ao transporte sobre trilhos. Reafirma-se contudo a trajetória perversa de 45 anos de história. 69 Resultados preliminares de estudo em andamento, não publicado. 70 Lucio Costa percebeu, em parte, o problema, ao discordar da uniformidade dos apartamentos construídos nas superquadras. Toda-via, maior variedade apenas quanto a apartamentos não implicaria a diversidade edilícia necessária, como veremos depois. (Análise mais extensa em HOLANDA, Frederico de. Brasília - a trajetória perversa: de como danificar qualidades e amplificar problemas. 2005 (mimeo)).

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ção socioespacial da Capital: ela foi comandada por políticas públicas como resposta a princípios

ideológicos, não como resposta a forças de mercado, regra nas demais cidades brasileiras. Toda-

via, há permanência de faixas de renda baixa no coração da metrópole. A tese é: a arquitetura dos

lugares está relacionada à permanência, mais de quarenta anos após a inauguração da cidade.

Houve processo de elitização e valorização das áreas centrais, mas ele não conseguiu superar as

limitações impostas à valorização pela configuração formal-espacial de algumas zonas, não pala-

tável às classes médias e altas. Os exemplos mais interessantes são os da Vila Planalto e de al-

guns blocos peculiares das quadras “400”.

A Vila Planalto tem origem num antigo acampamento de obras próximo à Praça dos Três Poderes

(cerca de 1500 m). Abrigava de operários a dirigentes de empresas construtoras, em edifícios e

quarteirões variados. Resulta que sobreviveram grandes e pequenos lotes, generosas ruas e be-

quinhos quase intransitáveis por veículos motorizados. Os poderes aquisitivos que encontramos

na Vila correspondem a esta realidade. A Fig. 2 mostra uma das ruazinhas estreitas e o perfil so-

cioeconômico da Vila (Censo de 2000): 35% são famílias pobres. O perfil é quase exatamente o

mesmo do DF como um todo: em poder aquisitivo, a Vila é um microcosmo da metrópole (Fig. 3).

Comparem isto com o perfil socioeconômico de uma superquadra típica do Plano Piloto de Brasí-

lia – blocos de 6 pavimentos, sobre pilotis, com elevadores, garagem subterrânea, cobertura para

festas etc.: o gráfico se inverte (Fig. 3).

As superquadras da fileira das “400” não estavam no projeto original e implicaram o acesso ao

Plano Piloto de famílias de menor renda. Isso ocorre particularmente nos peculiares edifícios “JK”:

não têm pilotis, os apartamentos são muito pequenos, não há garagens subterrâneas, os espaços

públicos em volta são menos generosos (Fig. 4). Não predominam os ricos, como na 103 Sul

(quase 60%), e a incidência de classe média-superior e, principalmente, média-média, cresce

substancialmente.

Os resultados mostram a correspondência entre padrões arquitetônicos e classes sociais. A situa-

ção atual da Vila Planalto e das “400” revela que a organização espacial da Capital poderia, sim,

ser mais justa, se ela contemplasse edifícios e espaços públicos cuja variedade respondesse me-

lhor ao perfil socioeconômico da população. Diferentes classes sociais podem estar espacialmen-

te próximas, como desejava Lucio Costa, mas isso depende de forte variedade nos tipos edilícios,

variedade que o projeto não contemplou. O desejo por um espaço mais democrático ficou no dis-

curso, não se traduziu em proposta arquitetônica que o viabilizasse. A segregação socioespacial

em Brasília também é fruto do projeto.

Há certamente habitações e espaços públicos precários na Vila Planalto. Mas uma política pública

que implique qualquer “melhoria” dos padrões formal-espaciais da Vila ou das “400” deve ser en-

carada com reserva: tenderá a implicar elitização do lugar, como estamos cansados de ver em

experiências de “renovação urbana” no Brasil e alhures. Uma coisa é a melhoria pontual das edifi-

cações na medida de uma eventual ascensão social dos moradores – não seria legítimo impedi-lo.

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Outra coisa é a instauração de uma política urbanística que permitisse remembramento de lotes,

modificação de gabaritos, construção de garagens subterrâneas, alargamento de vias, aumento

dos espaços públicos etc. As medidas provavelmente implicariam forte valorização e levariam os

pobres a abandonar o filet mignon da Vila Planalto e “readequar-se” a lugares “condizentes” com o

seu poder aquisitivo, a dezenas de quilômetros do Plano. Por detrás da “melhoria” hipotética (de-

vemos torcer para que não se realize) estaria implícito um discurso: edifícios e espaços públicos

precários são admissíveis, contanto que não os vejamos por perto... Habitat precário é função da

pobreza. Enquanto uma existir, existirá o outro. A tarefa de uma política urbanística ética é utilizar

os meios para permitir, pelo menos, que as famílias pobres, enquanto existirem neste país (desa-

parecerão em breve?...), possam localizar-se de maneira menos segregada na cidade – propug-

nar que cada bairro, cada Região Administrativa, seja um microcosmo de toda a sociedade. Não é

uma utopia deslumbrada. Acontece aqui e agora, na Vila Planalto, para quem tiver olhos e dispo-

sição de ver71.

Projetos de estudantes

Em semestres recentes orientei projetos de urbanismo de estudantes de graduação 1) para o Se-

tor Noroeste, imensa área desocupada (cerca de 6km2) vizinha à Asa Norte do Plano Piloto e 2)

para o Setor de Autarquias Norte, até hoje um grande vazio no centro da Capital (cerca de 1000 m

da Plataforma Rodoviária).

Para o Setor Noroeste existe um projeto em tramitação72 (Fig. 5), que repete, com variações, a

configuração formal-espacial das superquadras do Plano Piloto: edifícios residenciais com 6 pavi-

mentos, pilotis, garagem etc. O projeto dos estudantes (Fig. 6) resultou de questionamentos 1)

ante a estrutura de localização de empregos e habitações no DF (comentada acima) e 2) ante os

tipos edilícios residenciais e de espaços públicos, levando-se em conta os resultados da pesquisa

relatada acima.

Um projeto para um bairro não resolve mas pode amenizar uma situação de desequilíbrio na ma-

cro-escala urbana. Re-equilibrar Brasília significa, entre outras coisas, localizar mais empregos

nas cidades satélites e aumentar o número de moradores nas áreas do Plano Piloto ou próximas.

Para o que interessa aqui, vejamos como contrastam o projeto em vias de execução e o projeto

dos alunos: 1) projeto em trâmite: abriga 60.000 habitantes, deixa grande parte da área por ocu-

par, reproduz o tipo formal-espacial da superquadra, inclui um “eixo de atividades compartilhadas

com moradores de outros bairros”; 2) projeto dos estudantes: abriga 120.000 habitantes (resulta

uma densidade bruta de cerca de 200 hab./Ha), ocupa a totalidade da área, propõe grande varie-

71 O bom “desempenho sociológico” da Vila não implica boa qualidade em outros aspectos, não tratados aqui, e.g. topoceptivos, simbó-licos, estéticos: não há uma estrutura formal-espacial clara, o lugar é uma “colcha de retalhos”, falta o necessário jogo entre simplicida-de/complexidade, igualdade/dominância, similaridade/diferença. Mais um exemplo a ilustrar desempenho contraditório entre aspectos. Todavia, eles são teoricamente inconciliáveis? Vasta evidência histórica mostra que não, mas isto é outro assunto. 72 Autoria do arquiteto Paulo Zimbres. Na discussão que se segue não estão em questão os méritos do arquiteto, por quem nutro gran-de respeito e admiração, mas as implicações do seu projeto, do ponto de vista do marco teórico aqui adotado. Como sói acontecer, o projeto resulta não só da capacidade do autor mas de posições político-ideológicas de instâncias decisórias do Governo do Distrito Federal que fortemente influenciaram o partido.

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dade de tamanhos de lotes, tipos edilícios e espaços públicos que respondem a poderes aquisiti-

vos igualmente variados, não inclui espaços para empregos, a não ser os diretamente relaciona-

dos às funções residenciais – comércio local, escolas, espaços de lazer etc. O projeto em trâmite

implicará moradores com poder aquisitivo muito mais uniforme e elevado (a exemplo do já exis-

tente Bairro Sudoeste, com características semelhantes) enquanto o projeto dos estudantes impli-

caria um espaço com muito mais variedade social. A se realizar como previsto, o projeto em trâmi-

te repetirá, no Noroeste, a história de segregação que testemunhamos há mais de 40 anos em

Brasília.

O Setor de Autarquias Norte é uma área de cerca de 22 Ha, vazia até hoje, no coração do Plano

Piloto. Os alunos partiram da análise dos problemas do simétrico Setor de Autarquias Sul, ocupa-

do, que podem ser resumidos assim (apenas no que interessa ao argumento): monofuncionalida-

de, que resulta em desertificação à noite e nos fins de semana; configuração modernista típica,

com edifícios isolados sem definir lugares públicos com clareza, muitos espaços residuais; des-

consideração para com o pedestre, com caminhos maldefinidos e grande número de barreiras

para o caminhar; proliferação de espaços “cegos” ou “mortos”, definidos apenas por empenas

fechadas dos edifícios; carros estacionados na superfície, a ocupar a maior parte dos espaços

abertos disponíveis; “autarquia” também física – não há ordenação espacial clara que implique um

mínimo de integração com o entorno.

Os projetos realizados pelas várias equipes de estudantes (dou somente um exemplo na Fig. 7)

têm muitos pontos em comum, embora difiram bastante nos partidos. Todos evitam os problemas

relatados: o novo setor é polifuncional, incluindo habitação e atividades de educação e cultura que

prolongam a vida nos espaços públicos noite adentro e nos fins de semana; os edifícios são “mei-

os” para a definição de um claro sistema de espaços abertos, e não blocos soltos na paisagem

entre espaços residuais; a circulação nos espaços de superfície é quase totalmente dedicada ao

pedestre, os carros circulam e estacionam em sub-solos; a ordenação espacial considera o entor-

no, principalmente os fluxos de pedestres que vêm da Estação Rodoviária. Os atributos fariam do

setor um lugar muito mais rico e estimulante para a circulação, permanência e encontros das pes-

soas no espaço público, coisa praticamente inexistente hoje no seu irmão sulino.

Conclusão

O texto apela ao conhecimento disciplinado, pois dissecar a realidade em suas múltiplas dimen-

sões faculta ir mais longe no domínio e no aperfeiçoamento de nossas práticas.

O texto é otimista: identifica as frentes em que o conhecimento científico em arquitetura está sen-

do produzido. Todavia, como acontece nas demais ciências humanas (dizem que nas exatas tam-

bém...), paradigmas conflitantes vão co-existir enquanto vivermos em sociedades com interesses

contraditórios: elas produzem idéias à sua imagem e semelhança. Por um lado, Hillier, Mitchel,

Anderson, lançam novas luzes sobre velhos temas; por outro, produzem-se “manifestos” com

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cheiro de mofo: a Carta do Novo Urbanismo 73, a Nova Carta de Atenas 74, o livro A Vision of Brita-

in 75, de Sua Alteza Real o Príncipe de Gales, Príncipe Charles. O último embasou o projeto retrô

e a construção de Poundbury, a “nova” cidade “medieval” inglesa, em que participaram entusiasti-

camente Léon Krier e Andrés Duany76.

O apelo ao fortalecimento disciplinar o é também por uma abordagem interdisciplinar dos proble-

mas, mas cujos participantes detenham posições sólidas para o confronto de idéias e o enfrenta-

mento de questões práticas. Não sugiro que nos fechemos em copas na disciplina da arquitetura.

Pelo contrário, o texto é uma provocação, particularmente aos cientistas sociais: pensemos juntos

as relações arquitetura x sociedade, cada qual com o seu olhar. E, eventualmente, transformemo-

nos, todos, em “morfólogos”. Questionemos as respectivas categorias analíticas. O aprofunda-

mento disciplinar implica a construção de “pontes” entre a disciplina da arquitetura e as ciências

exatas, da natureza ou humanas; a arquitetura sociológica é um exemplo. As pontes permitem o

diálogo e levam o conhecimento a novos patamares de qualidade. Condição necessária mas não

suficiente, para melhorar a realidade – ah se conhecer resolvesse tudo!...

73 Charter of the New Urbanism. http://www.cnu.org/cnu_reports/Charter.pdf, acessado em 14.03.2006. 74 CONSELHO EUROPEU DE URBANISTAS. A Nova Carta de Atenas 2003. http://www.dgotdu.pt/atenas.html, acesso em 11/05/2004. 75 THE PRINCE OF WALES PRINCE CHARLES. A vision of Britain. London: Doubleday, 1989. 76 Ver excelente crítica em WILLIAMS, Richard. The anxious city – English urbanism in the late twentieth century. London & New York: Routledge, 2004.

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Fig. 1. Mapa de axial do Distrito Federal (esquerda) e gráfico indicando acessibilidade (“integração”), em-pregos e habitantes, por Região Administrativa (direita)

Fig. 2. Ruazinha da Vila Planalto (esquerda) e perfil socioeconômico das famílias.

Fig. 3. Perfil socioeconômico para o DF inteiro (esquerda) e o de uma superquadra típica do Plano Piloto (direita). Notem com o gráfico se inverte.

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Fig. 4. Os blocos “JK” das quadras “400” Sul (esquerda). Perfil socioeconômico das famílias (direita).

Fig. 5. Projeto em trâmite para o Setor Noroeste. A faixa vermelha horizontal (esquerda) será destinada a um “eixo de atividades compartilhadas com moradores de outros bairros”. A perspectiva (direita) ilustra uma

superquadra.

Fig. 6. Projeto dos alunos para o Setor Noroeste, mostrando os diversos tipos edilícios e de espaços públi-cos.

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Fig. 7. Setor de Autarquias Sul (existente, acima) e Setor de Autarquias Norte, proposto por estudantes (abaixo)