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O PríncipeViraAsno

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O Príncipe Vira Asno

Existiu em outros tempos uma Rainha de muito bomcoração, soberana de um grande estado.Tinha um filho, o Príncipe Ademar: um rapazrobusto, discreto e inteligente, que sua mãe, numexcesso de amor maternal, achava o melhor e omais distinto dos homens.A Rainha era tão nobre e tão bondosa, que seussúditos viam nela uma solícita e carinhosa mãe, ecomo tal a consideravam.Na verdade, ela se comportava como se realmenteo fosse: consolava os tristes, os aflitos, protegia eajudava os infelizes e perdoava os que erravam. Porisso reinavam no país a paz e a alegria. Corria tudoàs mil maravilhas. E como além disto a Rainha eramuito humana e acolhedora, deixavaentrar no palácio grande número de súditos, aosquais dava presentes, secando muitas lágrimas.Uma coisa, sem dúvida, a magoava, e de vez emquando anuviava o céu de sua bela alma: ela haviaobservado que as pessoas não amavam a verdade,e que geralmente abriam suas bocas para mentir,com a mesma freqüência com que as abriam paracomer, ou seja, que alguns diziam tanta mentiraquanto os bocados que comiam. A maior parte ofazia sem má intenção, e ao soltar uma mentiraachava que não havia nela nada de ruim nempecaminoso: mentiam ao próximo só por educação.Assim, a cada instante, a Rainha ouvia, por

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exemplo, uma de suas damas dizer a outra, ao sedespedir: �Até breve!�, e a soberana sabia muitobem que a vontade da primeira seria não tornar aver em sua vida a segunda, nem mesmo em retrato.Outras vezes ouvia o mordomo desejar boa viagemao escudeiro, e a Rainha sabia que, no íntimo, eledesejava justamente o contrário.Em certa ocasião ela viu o sobrinho de um ministro,com cara alegre, desejar a este que serestabelecesse logo de uma enfermidade que oatacava, enquanto dizia consigo mesmo: �. . . masse teimares em viajar para a eternidade, melhorpara mim; o dinheiro que tens me virá a calhar!�Deste modo, via a Rainha que era costume seencobrir o ódio e se disfarçar a raiva por trás dedoces sorrisos e suaves e lisonjeiras frases, e tudoisso, naturalmente, magoava sua alma, que eraingênua e sincera. Ficava ainda mais aflita quandoobservava que seu filho, o Príncipe Akemar (que elaconsiderava o mais distinto de todos!) adquiriaaqueles maus hábitos e ia ficando parecido com osoutros.Certa manhã, depois da refeição matinal, a nobredama havia consolado e favorecido amplamenteuma pobre mãe que tinha perdido o filho; ouvia nopátio o Príncipe Akemar dar as boas-vindas, comgrande entusiasmo, ao camareiro-mor, recém-chegado ao palácio, e que o Príncipe - a Rainha bemo sabia - odiava.Pensativa e mal-humorada, ela se retirou para oseu tranqüilo quarto, para ali refletir e chorar pelamaldade do filho, do qual ela se orgulhava tanto,apesar disto.

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Deitou-se no macio sofá, fixou os olhos no teto epensou . . . pensou...Lá fora, do outro lado da janela, a primaveracomeçava a fazer brilhar seus encantos: osdourados raios do sol pareciam brincar de escondercom os passarinhos folgazões, que trinavam decontentamento quando conseguiam prender algunsdos raios. A macieira do pomar inclinavadiscretamente seus ramos e sugeria a antigacanção, repetindo seu estribilho:�Muito bela é a virtude, mais bela ainda ajuventude; mas a beleza ideal é um coração jovial.�A Rainha, porém, não entendia nada disto: pensavae cismava. De repente começou a soprar uma suavebrisa, e atirou pela janela, no aposento real, umaviçosa flor de maçã, que foi parar no sofá onde aRainha se achava mergulhada em seuspensamentos.Ela não teria notado - tão absorta estava se a florde repente não abrisse o seu cálice, dele saindouma diminuta menina, branca como a neve, e queexalava tão agradável perfume, que todo ocompartimento foi inundado por um aroma queparecia de fruta acabada de colher.Na mão levava a menina uma pequena maçã, e elafalou à Rainha com voz delicada e de timbre suave,dizendo:- Meu nome é �Senhorita Flor da Maçã�. Todos osanos ofereço aos homens mil ricas maçãs, de facescoloridas; porém a que completa mil é uma frutaordinária e vulgar como as outras, mas contém umdesejo, e eu a dou à criatura bondosa que, duranteo ano, tiver feito mil obras benéficas.

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- Tu, soberana senhora, acabas de fazer, há umminuto, tua milésima boa ação deste ano,consolando e auxiliando aquela pobre velha. A tipertence, portanto, a maçã do desejo, e aqui estáela. Coma-a, e será atendido qualquer desejo quetenhas, imediatamente depois que o manifestares.Tornou a soprar a brisa suave de pouco antes, e aflor de maçã, de onde havia surgido a diminutagarota, se fechou de novo e voou, fugindo pelajanela. O doce perfume que continuou no quarto e amaçã deixada pela menina no tapete convenceram aRainha de que aquilo tinha sido alguma coisa maisdo que um sonho.Pegou em suas mãos reais a maçã, examinou-adetidamente e disse com voz clara:- O meu desejo é que toda palavra que sair doslábios de meu filho, o Príncipe Akemar, seja pura edeixe transparecer a verdade.Dizendo estas palavras, comeu a fruta sem deixardela nenhum resto. Com o coração cheio de alegria,foi para a mesa, onde o príncipe a aguardava, jáimpaciente. Ele estava naquele dia de mau humor, ea mãe o encontrou passeando para cima e parabaixo, na sala de refeições.- Atrasei-me um pouco - disse ela sorrindo -; meperdoe, meu filho.- Está bem, querida mãe; mas é que estou commuita pressa, porque, assim que acabar de comer,preciso sair de casa. Os cavalos já estão selados.E voltando-se para os criados, ordenou:- Eh, tratem de apressar-se também.Rapidamente se puseram todos a trabalhar, compratos e bandejas, e com a pressa uma destas caiu

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ao chão e se fez em mil pedacinhos.- Eh, você aí, cabeça de carneiro - disse contrariadoo Príncipe ao pajem que havia quebrado a bandeja,e no mesmo instante a cara do pajem setransformou em focinho de carneiro.A coisa foi tão cômica, que o Príncipe Akemarrompeu numa ruidosa gargalhada, mas a Rainhasentiu-se presa de horror e espanto. Perguntouentão o Príncipe:- Qual foi hoje o pior prato? Porque todos forambastante ruins. Chamem depressa o cozinheiro.Este apareceu, tremendo de medo.- A sopa estava queimada - lhe disse o Príncipe, emtom de repreensão - e até o sal puseste comavareza no assado.- Perdão, senhor - replicou pacificamente ocozinheiro -; pus a mesma quantidade de sal dosoutros dias.- Vou mandar pendurá-lo em teu nariz, tratante ementiroso! - gritou com raiva o Príncipe.De fato, naquele mesmo instante apareceu oassado pendurado no nariz do cozinheiro, sem queeste pudesse desprendê-lo, por mais esforços quefizesse. Aturdido, o criado se afastou dali, enquantoo Príncipe o seguia com estrondosa risada; mas aRainha estava cada vez mais horrorizada com o queacontecia. Levantou então as mãos para o filho,dizendo:- Meu filho, peço que não tornes a desejar nada demau para ninguém, pois estás vendo que se cumpreao pé da letra cada desejo que pronuncias.- É realmente maravilhoso - respondeu o Príncipe,sem deixar de rir -; mas tranqüiliza-te, mãe, que da

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próxima vez saberei dominar-me.Depois disto, continuaram a comer sem dizer umapalavra. A Rainha sentia a tristeza invadir seucoração. Reprovava a si mesma, intimamente, porter querido fazer seu filho diferente dos outroshomens. Naquele momento desejaria poder voltaratrás no seu desejo; mas já não era mais possível.O Príncipe acabou de comer, levantou-se e chegou àjanela para dar ao escudeiro-mor a ordem parapreparar imediatamente os cavalos.- Perdão, senhor - respondeu este -; os animais seinquietaram e foi preciso desarreá-los.Vermelho de cólera, o Príncipe exclamou:- Malditos animais que não prestam! Que o diabo osleve!Repentinamente se apagou o sol e caíram sobretoda a região as trevas, de modo que não seenxergava nada. Na parte mais funda da estrebariase ouviram uns relinchos, que se aproximavam cadavez mais. De repente desceu também uma mão defogo, mão em garra, que agarrou os cavalos atremer e os carregou pelo ar, desaparecendo.Clareou novamente o dia, o sol iluminou ossemblantes desconcertados da Rainha, do Príncipe edos criados. Estavam todos mudos de espanto.O primeiro a voltar a si foi o Príncipe, que soltouprofundo suspiro; mas, ao perceber que haviaperdido seus amados cavalos, começou a derramarlágrimas de arrependimento pela sua falta de juízo.- Por que eu não soube dominar-me, asno que sou?Mal pronunciou estas palavras, sentiu em si comoque uma transformação: suas pernas se afinaram, ecresceram mais duas (tão finas como as outras) no

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ventre; suas costas se alargaram, curvaram-se paraa frente, e as orelhas encompridaramdesmedidamente. Depois caíram rapidamente asroupas que vestia, e seu corpo se cobriu todo de umpêlo comprido e acinzentado. Estava convertidonum verdadeiro asno!Oh, quantas lágrimas derramaria a pobre mãe! ecomo isto partiria o coração dos súditos, tãodedicados a ela! Porém não havia mais remédio: erairreparável.Imediatamente a Rainha encomendou um estábulode mármore, com manjedoura de ouro, ondepudesse instalar-se o filho comodamente; porque,embora ele agora fosse um burrico, nem por isso oestimava menos do que antes!O Príncipe, por sua vez, sentia-se profundamentetriste, e o estábulo de mármore não podia fazê-lofeliz; melhor seria uma cabana de palha, contantoque ele pudesse tornar a ser homem...Quantas vezes pensaria que, ali onde antes haviamandado como Príncipe, agora o desprezavam, edele se compadeciam!Como estes pensamentos lhe oprimiamhorrivelmente a alma, resolveu afastar-se daquelelugar, nem que tivesse de se alimentar de míseroscardos, e de executar duras tarefas. Qualquer coisaseria melhor para ele do que estar em sua casa como focinho metido na manjedoura, e do quepresenciar o pranto de sua mãe e as inúteis ecuriosas complacências de seus criados.Assim, numa noite bem escura abandonoufurtivamente o palácio e partiu sem destino. Aoamanhecer, à estrebaria achava-se vazia, e a

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amorosa mãe ficou para morrer. Porém, como amavamuito o seu povo, procurou consolo e o encontrouem obras de caridade, e dali por diante se dedicou,ainda com maior afinco, a auxiliar e proteger osinfelizes, a enxugar lágrimas e a socorrer todos osnecessitados.O Príncipe asno caminhou dez horas seguidas, atéestar seguro de que ninguém o conheceria, nem olevaria de novo para o palácio.Depois de estar a uma grande distancia, seencontrou com um homem que arrastava umacarroça carregada de grandes vasilhas. Mas ohomem viu o animal, parou, e, imaginando que elenão teria dono, dele se apoderou e o atrelou nacarroça. Estava com sorte; já não teria mais quearrastar a sua carroça; iria comodamente ao lado doburrico, e de quando em quando ainda poderia subirpara o veículo.Esfregou as mãos de satisfação, e continuou seucaminho em agradável companhia. Pouco antes deentrar na cidade, chegaram a uma fonte e o homemgritou:- Eh, burrico! - E pegando cada uma das vasilhas,que estavam meio vazias, encheu-as com água docano, esfregou novamente as mãos, decontentamento, e disse: - Vamos, burrico! - atéchegarem à cidade.Ali foi parando em frente das casas, ondecozinheiros e empregadinhas acudiam com seusjarros para pegar o leite que o homem da carrocinhaia entregando.Diante de uma pobre choupana estava uma mulher,de rosto maltratado, pelo qual corriam copiosas

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lágrimas. Adiantou-se até o carroceiro e lhe disse,suplicante:- Eh, bom homem! Dê-me depressa um quarto deleite, que minha filha está doente e o espera comimpaciência; mas que seja puro, não aguado;ontem a minha pobre Áurea piorou depois quebebeu o leite que o senhor trouxe.- Como? - disse o leiteiro. - Que atrevimento éeste?. . . Então eu sirvo leite aguado? Eh, sai docaminho, que tu não és digna dele!- Pelo amor de Deus, não faça isto! Dê-me o leitecomo estiver! - implorou a mulher. - Minha filha estácom sede! Não falarei uma palavra mais do leite.- Não e não, porque és insolente e atrevida! - Econsigo mesmo ele disse: �Para essa gentinha dá-se lavagem, em vez de leite. . .�Mas a mulher insistia, e, como não conseguia o quequeria, começou a rogar pragas:- Tomara que o senhor seja condenado a ter deengolir de uma vez todo o leite aguado que traz aí!O burrico, que, sendo um burro, tinha ficado caladoe paciente, relinchou confirmando a praga damulher, e o homem da carroça foi engolindo umavasilha atrás da outra, e no meio de queixas elamentos, encheu-se até quase estourar, a ponto deterem de levá-lo para o hospital.O Príncipe asno, que não podia dizer senão a, puraverdade (naquela ocasião, com seu relincho ele aproferiu), ficou tranqüilo e paciente ali parado,presa á sua carroça, diante do casebre da pobremulher. Esta o pegou pelo cabresto e com grandecarinho lhe disse:- Vem comigo, bom animalzinho: vem para a minha

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casa, que serás muito bem recebido, embora tenhasde contentar-te com o que houver. Onde comemdois, um terceiro não morre de fome.Entrou o asno na mísera choupana, onde jazia,numa pobre cama, uma menina lindíssima, maspálida que nem morta.A menina sorriu, afetuosa, ao ver o inesperadohóspede, e, sacudindo seus cachos de umavermelhado, disse com voz apagada:- Oh, que amor de burrico! Quero ele para mim,mãezinha! Vamos brincar, os dois!A mãe olhou para a filha, enternecida, e lhe disse:- Está bem, minha filho, ficarás com o burrico;precisas é ficar boazinha e poder pular comodantes. Queira Deus que assim seja!Estas últimos palavras foram seguidas de umrelincho do asno, que abaixou pacatamente asorelhas. Assim ele expressava o seu assentimento.De repente, a menina saltou da cama, suas facesrecobraram a sua cor viçosa e rosada, ela deusatisfeita uma volta em torno da mesa, e,lançando-se ao pescoço do burrico, o beijou e lhefez mil carícias. Era tudo contentamento, dahumilde casa. Mas não ia durar muito tempo.Apareceu de repente um antipático visitante: umsujeito magro, com as roupas sobrando no corpo;uma cabeça com uns fiapos de cabelo, e um narizpontudo surgindo de um rosto enrugado. Era oproprietário da casa.Com seus olhos minúsculos e maldosos, eleobservou aquele terceto, e disse em tom meio decensura, meio de zombaria:- Ah, então as coisas vão bem, não é? Ganharam na

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loteria ou gastaram o dinheiro que me devem deseis meses atrás, do aluguel? Não vou esperarmais!- Só uns dias mais, pelo amor de Deus! - suplicou amulher. - Agora que a menina está boa, podereitrabalhar de novo, arrumando e lavando. Pagareiaté o último níquel!- Tudo mentira - replicou ele -; quem sustenta umburrico por puro passatempo, não é assim tãopobre, que não tenha com que pagar a casa.Portanto, ou pagam agora mesmo, ou vão para arua! É a minha última palavra!- Espere um pouquinho mais! - suplicou a mulher.- Nado disto. Hoje mesmo vão abandonar estacasa; a menina pode ir para a minha residência epagar a dívida trabalhando; e o burrico, fico comele, de presente.A mulher saltou ao ouvir estas palavras e gritou,decidida:- O asno vai comigo: ele me pertence.Apesar disto, o homem segurou o asno pelocabresto, e o puxava, quando a mulher, num acessode cólera, exclamou:- Usurário de marca maior ! Quero ver-te com opescoço e as pernas em pedaços, antes que levesdaqui o nosso bom camarada! - O burrico assentiucom um zurro que soou como um amém no final deuma reza. E como tinha de ser verdade tudo o queele dizia, aconteceu que o homem tropeçou naescada, soltou um forte gemido e ficou estendidono chão. Quando foram levantá-lo, viram que eracadáver: o pescoço e ambas as pernas se haviampartido pela metade.

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A alegria e o riso reinaram de novo na casinha.Durante dois anos viveram muito bem a mulher, amenina e o burrico; mas, passado este tempo,terminou a paz e a harmonia.Um homem baixinho, de má aparência, apareciaquase todas as tardes para visitar os três: tinhauma boca muito larga, o nariz em ponta de garfo euma grande corcova; mas usava uma roupa muitoenfeitada, e muitos anéis de ouro nos dedos dasmãos, que eram grosseiras e peludas.Quando ele entrava, a menina perdia a jovialidadee em seus olhos se notava que havia chorado. Amãe ficava observando, e se contrariava por mostrarsua filha tanta antipatia pelo homem, que podia serum bom marido para ela, resolvendo a situação dafamília, já que aquele sujeito tinha fama de rico.Esta contrariedade da mãe se acentuou, passando aser irritação contra a menina, e com isto acabaramtendo algumas discussões. O burrico nãocompreendia aquela grande mudança de situação.Um dia filha e mãe tiveram uma séria desavença. Oburrico estava no curral, e ouviu a demoradagritaria, interrompida apenas pelos soluçosbaixinhos de Áurea. Aproximou-se da porta e pôdeouvir as últimos palavras da mãe, que dizia:- Garanto, filha desobediente e ruim que, se nãoatenderes aos meus desejos, vai durar pouco anossa companhia!A porta se abriu e a menina saiu por ela, chorando;lançou-se ao pescoço do burrico e lhe disse, entrelágrimas e suspiros:- Vou deixar-te, meu bom burrico. Minha mãe fezquestão de casar-me com aquele homem

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repugnante, que vem aqui todas as tardes, sóporque ele é rico; mas eu não o quero. Morreria detanto sofrer!O asno lançou a Áurea um olhar de compaixão eabaixou as orelhas.Ela sorriu de novo e lhe disse:- Tu me compreendes, não é, meu amigo? Mas,claro que não te entristeces, porque não tens decasar com ele! Ah, se fosses um homem, como mecompreenderias!O burrico fez com a cabeça um movimento queparecia de aflição, e a linda jovem continuou:- É que não podes imaginar o quanto me repugnaaquele homem e como o detesto. Por nada nomundo eu queria ser mulher dele. Com muito maiorprazer, muito mesmo, casaria contigo, mesmosendo um asno, como és!E, num momento de infantil vaidade, ela bateupalmas e exclamou:- Seria bonito, não é? Eu ficaria livre dessecorcunda... Ei, querido burrico, não queres ser meumarido? Hem?. . .O burrico relinchou e deu um alegre salto. Jáestavam casados, e o animal saltava e dançavacomo um louco, dando voltas pelo curral, encantadopor ter uma esposa tão linda.Esta, em troca, olhava receosa para todos os lados,e seu coração deu um salto até o pescoço, quandoela voltou para casa e participou à sua mãe que játinha marido e portanto não podia mais pensar emoutro, nem era preciso.- Quem é ele?. . . - perguntou a mãe, surpresa.- É o nosso burrico...

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- Valha-me Deus! - exclamou a mãe, fora de si. - Oasno é teu marido? Oh, pobre de mim, a maisdesventurada das mães, que tem um asno comogenro! - E, voltando-se para a filha, lhe ordenouque abandonasse imediatamente aquela casa, como seu companheiro burrico, e que os dois nãocruzassem mais o umbral daquela porta.Áurea tomou então pelo braço o seu estranhomarido, e saíram ambos da casa materna. A jovemchorava por dentro, dizendo consigo mesma:- Ah, se fosses um homem, como eu te quereria!Andando pelo mundo, eles chegaram a um frondosobosque, onde havia um temível gigante, que vivianuma caverna e cujo manjar preferido eram criançaspequenas, cuja carne ele cozinhava e temperavacom mostarda.Quando chegaram à caverna, viram logo que estavahabitada, e, como sentiam fome, começaram agritar e a se lamentar. Naquele instante apareceu ogigante, e quando os viu se pôs a rir com tamanhobarulho, que suas gargalhadas ressoaram por todoo bosque.- Estão chegando bem a tempo - ele rugiu -; háduas semanas que não como carne tenra de serhumano: tu és uma menina crescida, mas,temperada com mostarda, ficarás gostosa comouma garotinha de dois anos!Enquanto falava, agarrou a horrorizada Áurea earrastou-a para dentro do seu covil. O Príncipe asnoa seguiu, a tremer.Dentro da caverna havia uma tigela de porcelana,do tamanho de um sino de igreja, com uma colherque parecia uma pá de pedreiro.

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O gigante estalou a língua e olhou para o fundo datigela.- Ah, - exclamou - minha vasilha de mostarda estávazia! Ei, asno! vem cá, e vê se serves para algumacoisa. Vai depressa buscar mostarda fresca e voltalogo. Preciso dela para que a carne da pequenafique bem temperada. - Dizendo isto, - deu ao asnoo dinheiro necessário e prendeu a tigela ao lombodele.O burrico saiu correndo, e dali a pouco viu umgrande monte de areia amarela, no limite dobosque, e em seu cérebro de burrico surgiu umafeliz idéia: correu à cidade, comprou pimentodaquela mais picante e sal do mais concentrado quepôde encontrar; além disto, ainda uma porção devinagre, também do mais azedo que encontrou.Voltou muito contente para o lugar da areia, colocouuma quantidade regular dela na tigela, depoisacrescentou o sal, a pimenta e o vinagre, agitandobem tudo, com uma vara de lúpulo.Imediatamente voltou para a caverna do gigante,que o aguardava com impaciência. Entregou-lhe amistura, aparentando uma grande inocência. Ogigante destampou a tigela e ficou encantado comaquela massa amarelo-dourado que estava na suafrente.- Que asno formidável tu és! - disse, satisfeito, eacariciou-lhe o dorso com sua mão grosseira. -Deste conta maravilhosamente do meu encargo.Bem mereces um par de ossinhos do guisado! Masantes vou provar a mostarda, para ver se o saborcorresponde à boa aparência que tem!Meteu a colher na tigela e aproximou dos lábios

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uma colherada da mistura.- Irra! - exclamou contrariado. - O que metrouxeste, estúpido asno? Irra! Isso consome agente, isso queima! Acudam! Acudam! Estousufocando!O asno se empinou nas patas traseiras, e,enfretando o gigante, soltou um forte relincho, queera uma confirmação para as últimas palavras dogigante.Este, com efeito, caiu ao chão, já morto. Sua carase tingiu toda de azul.- Meu esposo adorado, - disse então Áurea,trasbordante de júbilo - tu me salvaste! Ainda metremem as pernas, quando penso que ia serdevorada por esse monstro. Obrigada, meu querido;nunca esquecerei isto!Ouvindo o burrico tão doces palavras, e sua mulherchamá-lo de esposo, e querido, pensou de novo emsua miserável condição, e seu espírito se perturboupor uma profunda tristeza.- Não te aflijas - disse-lhe Áurea com cordial afeto -; pensa que és meu único esposo, meu maridinho.Ah, se fosses um homem, mesmo detestável eestúpido, como eu te quereria!Ao pronunciar a última palavra, olhou-o fixamenteno focinho e disse:- Escuta, meu esposo asno; se tens tão grandeforça que podes castigar com a enfermidade e amorte os homens maus, não poderias fazer algumacoisa por ti mesmo? Não poderias, quem sabe,despojar-te da tua forma de asno?O asno voltou-se para ela, olhou-a fixamente comseus grandes olhos e ela leu neles uma súplica tão

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comovedora, tão íntima, que seu coração se partiude pena e ela disse:- Tens um grande desgosto, meu marido; possosaber como ajudar-te?O burrico lançou-lhe um olhar ainda mais íntimo,mais profundo.- Parece que minhas palavras te entristeceramainda mais. Devo continuar a falar?O asno fez um forte movimento com a cabeça.- Devo desejar alguma coisa para ti?Saíram dos olhos do asno, como se fossemespremidas, duas lágrimas.- O que é isto? Choras? - exclamou maravilhadaÁurea, e acrescentou: - Se podes chorar como umhomem, também podes transformar-te em homem,não é verdade?Um zurro foi a resposta afirmativa. E não podiadeixar de dizer a verdade.Imediatamente se desprendeu dele o courocinzento, peludo, que o envolvia; ele se ergueu eendireitou as costas, suas orelhas murcharam e amoça, assombrada, viu diante de si, como porencanto, o jovem e robusto Príncipe. Ele a tomoucarinhosamente nos braços e lhe sussurrou aoouvido:- Vem comigo para minha casa, para o meu palácio,minha esposa, minha adorada, pois desde já ésuma Princesa. Tu me redimiste. Meu eterno amor ea gratidão de minha mãe serão tua recompensa.A amorosa Rainha se achava no seu solitárioaposento, estendida no seu macio sofá e entregueàs suas cismas. Seu pensamento não podia afastar-se do filho, o asno cujo paradeiro ela ignorava.

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Pouco antes havia perdoado da pena capital elibertado um inimigo preso, mas a pobre mãe nemtinha ânimo paro se alegrar com a sua boa ação. Apreocupação com Akemar mantinha seu coração emconstante mágoa.Porém voltou a primavera: os passarinhosrecomeçavam seus brinquedos com os raios do sol,e a flor de macieira murmurou de novo seu antigo,seu eterno canto.Como em outros tempos, invadiu o aposento realum perfume embriagador; a flor de maçã apareceudiante da Rainha e lhe falou com aquela sua vozdelicada e de belo timbre:- Novamente completaste mil obras benéficas, ósoberana, e novamente venho oferecer-te a maçãdo desejo.Brilharam os olhos da Rainha, ao ouvir frases tãolisonjeiras, e ela quis expressar seu único, seuansioso desejo, aquele no qual pensava durante odia e com o qual sonhava durante a noite; mas aflor de maçã a interrompeu, sorridente:- Guardai o desejo que vos vem aos lábios; vossofilho está redimido. Está lá embaixo, na porta,esperando que o recebais.A Rainha se pôs de pé como impelida por umamola, para ir lançar seus braços maternais nopescoço do filho. Mas a flor de maçã lhe impediu apassagem e admoestou-a:Não me faleis. . ,no desejo, soberana senhora.A Rainha sorriu, e derramou lágrimas de felicidade eemoção a um só tempo.- Sim, - replicou - ó doce, ó amarga, ó aromática

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flor de maçã! Tenho um desejo, um desejo da alma.E que meu filho Akemar não seja, daqui por diante,uma exceção entre os outros homens. Quero queele seja igual aos outros, tanto nas virtudes comonos vícios. Sua boca não será sempre sincera everdadeira, embora o seja seu coração. Desejo,pois, que meu filho seja sincero em seu coração,em sua alma, mas livre da obrigação de falarsempre a verdade. Porque o contrário foi suaperdição.- Que isto vos seja concedido, soberana senhora -murmurou a flor de maçã, que, fazendo umareverência, desapareceu.Então a Rainha, com o rosto corado e os braçosabertos, desceu para o pátio. Ali estava o PríncipeAkemar, tão vigoroso como em outros tempos, edando a mão a uma linda jovem, de cabelos crespose avermelhados e olhos muito brilhantes.- Ajoelha-te, adorada esposa! - disse o Príncipe. -Olha que se aproxima a mais bondosa e maisafetuosa das mulheres que existem no mundo,minha mãe, e amorosa Rainha.Esta mandou que a linda jovem se levantasse e abeijou em ambas as faces. Depois disse:- Vivei alegres e felizes, meus filhos. Muito jápadecestes; agora é tempo de regozijar-vos.Assim, pois, vos desejo felicidade e beleza emabundância.

FIM