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“FAGUEIRA ESPERANÇA DE MELHORES DIAS”: O CENTRO SOCIAL MORRINHENSE E A INVENÇÃO DA CIDADE EMANCIPADA (1952-1959) CID MORAIS SILVEIRA

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“FAGUEIRA ESPERANÇA DE MELHORES DIAS”: O CENTRO SOCIAL MORRINHENSE E A INVENÇÃO DA CIDADE

EMANCIPADA (1952-1959)

CID MORAIS SILVEIRA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS

“FAGUEIRA ESPERANÇA DE MELHORES DIAS”: O CENTRO SOCIAL MORRINHENSE E A INVENÇÃO DA CIDADE

EMANCIPADA (1952-1959)

CID MORAIS SILVEIRA

NATAL/RN

2018

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CID MORAIS SILVEIRA

“FAGUEIRA ESPERANÇA DE MELHORES DIAS”: O CENTRO SOCIAL MORRINHENSE E A INVENÇÃO DA CIDADE

EMANCIPADA (1952-1959)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção

do título de Mestre em História pelo Programa de Pós-

Graduação em História da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte; Área de Concentração em História e

Espaços; Linha de Pesquisa: Cultura, Poder e Representações

Espaciais, sob a orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de

Albuquerque Júnior.

NATAL/RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silveira, Cid Morais.

Fagueira esperança de melhores dias": o Centro Social

Morrinhense e a invenção da cidade emancipada (1952-1959) / Cid Morais Silveira. - 2018.

199f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. Programa de

Pós-Graduação em História. Natal, RN, 2018.

Orientador: Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.

1. Cidades. 2. Intelectuais. 3. Morrinhos. 4. Emancipação. 5.

Discurso. I. Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(81):911.375.3

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-CRB-15/748

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A Durval Muniz de Albuquerque Júnior,

que me ensinou a ser um historiador da terceira margem do rio.

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AGRADECIMENTOS

Devo confessar que esta pesquisa, assim como o romance “Tocaia Grande” do escritor

baiano Jorge Amado, também nasceu de “déu em déu”. Foi escrita no caminho, em muitos

lugares e com a ajuda de muitas pessoas. Nestes pouco mais de dois anos de mestrado, confesso

que acumulei dividas que se tornaram históricas, mas tentarei retribuir o gesto de afeto citando

o nome daqueles que me estenderam a mão e me lançaram um sorriso ou dois. Tentarei construir

uma lista, incompleta é verdade, assim como nós mesmos, dos amigos e amigas que ganhei de

presente tentando ser historiador longe de casa.

Inicio agradecendo todo o apoio e amparo que meus pais me ofereceram, pois sei que

abdicaram de muitas coisas enquanto eu tentava abraçar o mundo. Minha mãe sempre foi uma

mulher de muita força, no silêncio e na palavra. Viveu dias de intensa preocupação, toda vez

que eu abria o portão de casa e seguia viagem para Natal. Ao telefone, mostrava uma aflição

constante em cada palavra, preocupada com meu conforto, minha segurança e minha

alimentação. Já meu pai depositava uma esperança tão grande em mim que nem eu mesmo

acreditava, e fazia questão de deixar isso claro quando conversávamos na calçada do bar do

Antônio Célio. Ele, diabético, quase sempre devorava um sorvete de maracujá comigo. A vocês,

todo o meu amor e minha gratidão.

Ao meu avô, Geraldo Silveira (in memorian), agradeço por ter feito nascer em mim,

mesmo sem saber, o prazer de ser historiador. À minha avó, Claucídia Silveira, agradeço as

conversas maravilhosas na beira da calçada. Sua lucidez, sua experiência e história de vida, e a

forma como lembra e narra acontecimentos distantes, quase perdidos, sempre me fascina.

Muito obrigado a Leonardo Silveira, por me receber tão bem em sua casa,

compartilhando comigo o sentimento de profunda devoção e amor à cidade de Morrinhos.

Agradeço muito por me ceder os poucos documentos preservados do Centro Social

Morrinhense, que foram imprescindíveis para a realização deste trabalho. Sem eles, as páginas

desta pesquisa ainda estariam em branco. Agradeço também a sua esposa, Luzia Rocha, com

quem dividi histórias e algumas uvas. Meu muito obrigado aos dois!

Deixo aqui minha gratidão ao amigo Zé Maria Filho, ex-vereador santanense, que me

ajudou a localizar documentos importantes para esta pesquisa no Arquivo da Câmara Municipal

de Santana do Acaraú.

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Agradeço a todos os funcionários que cuidam do Arquivo da Assembleia Legislativa do

Estado do Ceará, por toda a generosidade com que me receberam e a disposição que tiveram

para me ajudar a encontrar registros importantes para este trabalho.

Agradeço a Mundico Rocha, por ter aceitado me receber na casa de seu filho, Paulo

Rocha, compartilhando comigo muitas histórias suas, do Centro Social Morrinhense e de

Morrinhos, quando ainda era uma vila com sonhos de ser cidade.

Aos docentes do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú, que foram

meus professores na graduação e se tornaram amigos, e com quem pude dividir, de uma forma

direta ou indireta, fragmentos desta pesquisa quando eles ainda sonhavam em ser dissertação.

Meus agradecimentos a Guilardo Maia, Carlos Augusto Santos, Chrislene Cavalcante, Viviane

Prado, Italo Bezerra, Paulo Henrique Martins, Maria Antônia, Igor Moreira, Agenor Soares e

Edvanir Silveira. Um agradecimento especial a Telma Bessa, por ter me concedido a primeira

bolsa de pesquisa da minha vida acadêmica, e a Denis Melo, que aceitou me orientar no trabalho

de conclusão de curso. Aproveito também para citar os amigos que conheci durante a graduação

na UVA: obrigado Jardson Rodrigues, Daniel Victor, Bruno Muniz, Cosma Araújo, Wdynesya

Sá, Edlane Frota, Cristiele Marques, José Aírton, Eliane Souza, Victor Rodrigues, Maruza

Monteiro, Thainá Silva, Thiago Rocha, Edilberto Florêncio, Rodrigo Ferreira, Davi Borges,

Tatiana Passos e tantos outros com quem pude celebrar a vida e falar de história. Esta

dissertação começou quando eu ainda caminhava, um pouco acima do peso e de boina, pelos

corredores do CCH.

A querida amiga Francilane Rocha, agradeço pelo auxílio durante a pesquisa na cidade

de Marco e pela ajuda na digitalização de parte do Livro de Tombo da Paróquia de São Manuel.

Minha gratidão também se estende ao Monsenhor Rômulo, por autorizar a pesquisa nos

arquivos da paróquia.

Ao meu querido primo Landson Morais, por gentilmente me hospedar em sua casa

durante as tantas vezes que precisei visitar Natal às pressas. Obrigado pelos passeios em Ponta

Negra, pelos almoços em restaurantes chineses e pelos cortes de cabelo, que não foram poucos.

Obrigado pela companhia e pelo carinho durante estes mais de dois anos.

Ao amigo Rogelio Santos, com quem pude dividir os bons momentos e as angústias da

vida acadêmica. Obrigado, companheiro, por me ouvir falar tanto do Centro Social Morrinhense

e de suas relações com a nossa cidade durante as madrugadas, juntamente com o Alberto,

quando misturávamos a experiência universitária com as discussões acaloradas sobre futebol.

O esporte bretão nos alienou desde cedo.

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Agradeço ao André Alves, grande amigo de infância e meu leitor desde a graduação.

Um baita engenheiro civil que gosta de história e patrimônio material, e meu parceiro de War,

PES, Brasfoot, New Star Soccer e muitos outros jogos. Além dos jogos de tabuleiro e dos

bonecos de Dragon Ball. Obrigado, amigo!

Ao camarada Neto Almeida, pessoa incrível que a pesquisa em história urbana me levou

a conhecer, obrigado pelas prosas sempre cheias de aprendizado e afeto. Sua amizade é muito

importante para mim. Que possamos continuar nos encontrando nos corredores das

universidades e nas cadeiras do Castelão.

A querida amiga Sheila Ramos, eu agradeço imensamente o carinho e o empenho em

me ajudar durante os primeiros momentos da seleção do mestrado, especialmente me enviando

a bibliografia indicada pelos Correios. Sem você, muito provavelmente, eu nem estaria

escrevendo essas linhas. Obrigado!

A Caroline Lobato eu agradeço o incentivo constante para que eu rabiscasse um ponto

final neste trabalho. Obrigado pela amizade sincera, pelo conforto emocional que só uma

psicóloga, apesar de não ser a minha, pode oferecer. Obrigado por sua presença, apesar de todos

os equívocos geográficos e existenciais.

Ao amigo Felipe Cavalcanti, o maior especialista em Manuel Bandeira que eu conheço,

agradeço por toda ajuda que você gentilmente me ofertou durante o mestrado. Muito carinho,

admiração e respeito por você. Historiador competente, querido amigo e um grande jogador de

Overwatch.

A matéria prima do historiador é o tempo, o tempo presente, como assim escreveu

Drummond. E eu agradeço a Andréa Neves, sobretudo, por sua presença, no meu tempo

presente, na minha vida. Por me acompanhar, sempre, “de déu em déu”, do campo à cidade,

do quarto à rua. Sua existência é um acontecimento em minha vida. Você é a responsável por

tudo que há de bonito neste trabalho. Amo-te.

Aos meus colegas de turma do mestrado, eu agradeço a oportunidade que tive de

compartilhar com vocês os momentos em sala de aula, os desafios da pesquisa e as boas risadas

pelos corredores do Setor II e do CCHLA. Obrigado Elenize Trindade, Leonardo Paiva, Marcos

Arthur Fonseca, Ítala Mayara Castro, José Rodrigues e Flamariom Mata. Tenho muito respeito,

admiração e carinho por todos vocês.

A Marina Dantas, minha querida amiga de sorriso fácil, agradeço pelo carinho, pelos

abraços e pelas caronas no Pikachu até o aeroporto. Levarei sua amizade sempre comigo.

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A Giovanni Bentes e Leandro Pinheiro, eu agradeço as risadas, o apoio e a amizade

sincera que construímos ao longo destes dois anos e meio de parceria no mestrado. Levarei

vocês sempre comigo. Eu não poderia citar vocês dois separadamente, afinal, estão sempre

juntos, como Holmes e Watson, tentando acabar com a pós-modernidade.

Ao amigo Gustavo Couto, eu agradeço pelos vídeos sobre cortes de carnes,

especialmente picanhas, e por acompanhar minhas piadas sem graça, não demonstrando

interesse algum em todas elas.

Ao Gabriel Pochapski, amigo para todas as horas, eu agradeço por tudo. Levarei nossa

amizade, um dos maiores presentes que o mestrado me deu, sempre comigo. Sentirei saudade,

quando o tempo e o espaço se tornarem abissais, de todas as nossas conversas, do riso fácil e

escapulido, e dessa sua cara de “me poupe” que me acompanhou em muitos lugares na cidade

do Natal, principalmente pelos caminhos da UFRN à Potilândia. Obrigado Gabriel, pela

oportunidade de ser seu amigo e poder dividir com você todas as dores e as delícias de ser um

mestrando em História.

Agradeço imensamente a todos os professores que fazem parte do Programa de Pós-

Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Muito obrigado a

Helder Viana pelas contribuições durante a banca de qualificação, e a Renato Amado e

Margarida Dias, com quem tive o prazer de cursar disciplinas no mestrado. Minha gratidão se

estende a Carmen Alveal e Magno Santos, professores com quem tive a oportunidade de

trabalhar durante o período em que fiz parte do Conselho Editorial da Revista Espacialidades

(PPGH-UFRN), e ao Luann, competente secretário do PPGH, que gentilmente me auxiliou com

a burocracia acadêmica.

Ao professor Raimundo Arrais, eu agradeço a generosidade, o carinho, a atenção e por

sempre acreditar em mim, me fazendo crescer como historiador e como pessoa. Agradeço pelas

belas discussões em sala de aula e pelo respeito e amizade que foram construídos fora dela.

Agradeço pelas leituras de cada garrancho que escrevi, por cada rabisco que você destacou nas

imaturas páginas escritas por este aprendiz de historiador, durante esse tempo em que tive o

privilégio de ser seu aluno. Ainda precisamos sair para observar as abelhas, ter mais “conversas

de botequim” e fazer a viagem acompanhando o curso do vento Aracati. Muito obrigado por

tudo!

Ao professor Laurent Vidal, da Université de La Rochelle, eu agradeço por ter nos

presenteado com uma obra inspiradora. Por mostrar que as cidades se deslocam, que as cidades

são frutos de ideias, projetos e sonhos sempre novos. Obrigado por amar o Brasil e pela

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mensagem de carinho e confiança que nos passou quando esteve em Natal, durante o nosso

almoço à sombra de um olho de pavão no Setor I da UFRN.

Ao professor Fábio Leonardo Brito, da Universidade Federal do Piauí, que leu pedaços

dessa dissertação antes da qualificação e se tornou, mesmo na distância, um grande amigo com

que pude compartilhar escritos e afetos.

Ao professor Antonio Paulo Rezende, da Universidade Federal de Pernambuco,

obrigado pelos conselhos, pelas indicações de leitura, pelos belos textos e pelas astúcias. Você

é uma grande inspiração para mim.

Ao professor Francisco Denis Melo, da Universidade Estadual Vale do Acaraú, que tive

o privilégio de tê-lo como orientador no final da graduação, eu agradeço pela orientação, pelos

muitos conselhos, pela palavra amiga e pela poesia, dentro e fora do Beco. Você foi

importantíssimo durante minha formação, quando eu ainda parecia uma versão malfeita de

Rolando Lero nas aulas de História Medieval. Obrigado por aceitar o convite para participar da

minha banca de defesa.

A Durval Muniz de Albuquerque Júnior, meu orientador, eu nem sei por onde começar

a agradecer. Mas eu gostaria de iniciar pelos abraços, especialmente, o primeiro deles que

recebi, logo que cheguei a UFRN, em uma úmida sexta-feira na cidade do Natal. Conversamos

sobre as “Passagens” de Walter Benjamin, e terminamos lembrando da “Beatriz”, de Chico

Buarque. Obrigado Durval, por não representar apenas uma passagem, mas sim a permanência,

a presença. O que você foi capaz de me ensinar durante estes dois anos e meio, eu jamais

conseguirei retribuir à altura, muito menos aquele cuscuz com macaxeira e queijo coalho logo

na primeira orientação. Jamais esquecerei as manhãs de sexta-feira quando, junto com Gabriel

na sala 807 do CCHLA, você nos ensinava a escrever. Muito menos as travessias da Mão

Inglesa até o seu apartamento azul, e os cafés nos fins de tarde na São Braz. Obrigado pela

liberdade que você me concedeu para produzir minha dissertação, me alertando para superar as

dicotomias e as categorias antitéticas que rondam a história. Obrigado por me mostrar a terceira

margem do rio, o terceiro termo, o terceiro olhar, o lugar do entre. E que é possível ser feliz ali,

no meio, onde tudo é mestiço, onde tudo é misturado. Obrigado pela cobrança quase lúdica e

os puxões de orelha, acreditando que eu poderia sempre mais, mesmo quando o fôlego

começava a faltar e a escrita pedia socorro. Tenho um orgulho enorme de ser seu orientando e

amigo, e espero que possamos continuar historiando e, sobretudo, sorrindo juntos, na terceira

margem do rio. Dedico a você este trabalho.

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Aos queridos amigos do grupo de pesquisa Cartografias Contemporâneas, agradeço as

tardes cheias de saber e sabor, de filosofia e história, de café e açúcar. Vocês foram como uma

segunda família para mim em Natal. Essa dissertação tem um pouco de cada um de vocês.

Obrigado Paulo Hígor, Jussier Dantas, Clara Minervino, Matheus Ramos, Ivan de Melo, João

Victor Marinho, Leo Ventura, Leo Cruz, Henrique Masera, Henrique Lucena, Pedro Almeida,

Wellington Machado e Guerhansberger Tayllow. Minha gratidão também se estende a André

Martinello, pessoa que muito admiro e que tive a felicidade de conhecer já quase na hora de seu

retorno para Santa Catarina.

Por fim, agradeço a CAPES pela concessão da bolsa de mestrado, que possibilitou em

grande medida a existência desta pesquisa.

Aos que mencionei aqui, e também àqueles que acabei esquecendo, vítimas da traição

de minha memória, ofereço minha eterna gratidão.

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“A história é essa busca incessante dos homens, talvez mágica, talvez

absurda, de um sentido para a vida. (...) A história é essa construção

de utopias”.

(Antonio Paulo Rezende, A cultura e a construção dos espelhos)

“Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo da

estrada. Gosto do desvio e do desver. (...) A expressão reta não sonha”.

(Manoel de Barros, Carta a José Castello; As lições de R.Q.)

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RESUMO

Esta pesquisa se dedica à compreensão da emergência de uma espacialidade, a cidade de

Morrinhos emancipada, por meio da atuação dos intelectuais do Centro Social Morrinhense.

Importa-nos analisar as relações historicamente construídas entre essa instituição e a então vila

de Morrinhos, que começava a ter sonhos de ser cidade no início dos anos cinquenta.

Entendendo a realidade e as construções espaciais como fabricações humanas, almejamos

pensar como essa instituição criou uma forma singular de ver e dizer a cidade, através de

práticas intelectuais, políticas e identitárias, permeadas pelo desejo e o sonho da cidade

moderna, progressista e civilizada. Formas de ver e dizer a cidade que foram posteriormente

utilizadas para legitimar e acelerar seu processo de emancipação político-religiosa. Sendo

assim, esta pesquisa faz parte do campo da chamada história intelectual, notadamente aquela

de “sabor francês”, atentando para as questões das sociabilidades dos membros do CSM, para

a análise de seus discursos, de seus itinerários pessoais e intelectuais, bem como a abordagem

da organização, modos de filiação e do funcionamento dessa instituição. Esta pesquisa também

pode ser inscrita no interior da chamada história urbana, notadamente uma história cultural do

urbano, das práticas urbanas, problematizando as aproximações e tensões entre os projetos da

cidade ideal, da cidade desejada, urdidos pelo CSM; e suas relações com a cidade real, a cidade

vivida. As fontes mobilizadas na pesquisa são jornais, discursos e pronunciamentos

parlamentares, atas de reuniões, documentos legislativos, estatutos, registros paroquiais,

imagens, etc. O recorte temporal foi escolhido para uma melhor explicação dos objetivos do

trabalho: 1952, ano em que o Centro Social Morrinhense é fundado em Fortaleza, até 1959, ano

de consolidação do processo de emancipação política de Morrinhos com a chegada de seus

novos governantes. Verificamos também, durante esse período, uma intensa mobilização de

atividades do CSM. Por fim, esta pesquisa torna-se importante não apenas para uma melhor

compreensão do processo de emancipação de Morrinhos, sob o olhar do CSM, tornando-a uma

cidade institucional, mas também entender como o Centro Social Morrinhense, um lugar hoje

do ausente, da ruína, fracassou na preservação de sua memória, sofrendo posteriormente uma

invisibilização dentro da história do município.

Palavras-chave: cidade; discurso; práticas; espaço; intelectuais; invenção; emancipação.

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ABSTRACT

This research is dedicated to the understanding of the emergence of a spatiality, the municipality

of Morrinhos emancipated, through the performance of the intellectuals from Centro Social

Morrinhense. It is important to analyze the historically constructed relations between this

institution and the then village of Morrinhos, which began to have dreams of being a city in the

early fifties. Understanding reality and spatial constructions as human fabrications, we aim to

think how this institution created a singular way of seeing and describing the city, through

intellectual, political and identity practices, permeated by desire and dream about a modern,

progressive and civilized city. Ways of seeing and describing the city that were later used to

legitimize and accelerate its process of political-religious emancipation. Thus, this research is

part of the area of the named intellectual history, especially that with “French flavor”, focusing

on the sociability issues of the CSM members, for the analysis of their discourses, their personal

and intellectual itineraries, as well as the organization, methods of membership and the

operation of that institution. This research can also be inscribed within the so-called urban

history, notably a cultural history of the urban, of urban practices, problematizing the

approximations and tensions between the projects of the ideal city, the desired city, created by

the CSM, and its relations with the real city, the city experienced. The sources mobilized in the

research are newspapers, discourses and parliamentary pronouncements, minutes of meeting,

legislative documents, statutes, parish records, images, etc. The time cut was chosen for a better

explanation of the objectives of the work: 1952, the year in which the CSM was founded in

Fortaleza, until 1959, the year of consolidation of the process of political emancipation of

Morrinhos with the arrival of its new rulers. Finally, this research becomes important not only

for a better understanding of the process of emancipation of Morrinhos under the eyes of the

CSM, but also to understand how this institution, a place today of the absentee, ruined, failed

in the preservation of his memory, subsequently suffering an invisibility within the history of

the municipality.

Keywords: city; discourse; practices; space; intellectuals; invention; emancipation.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Mapa de Morrinhos, enfatizando seus limites municipais, sua composição

territorial e sua localização no estado do Ceará. Fonte: Perfil Básico Municipal de Morrinhos.

IPECE. Disponível em http://www.ipece.ce.gov.br/perfil_basico_municipal/2016/Morrinhos

.................................................................................................................................................. 42 Imagem 2: Foto de posse da primeira Diretoria do Centro Social Morrinhense. Em destaque,

ao centro da imagem, e da esquerda para a direita, José Ataíde Alves de Vasconcelos,

Raimundo Nonato Araújo da Rocha e José Adrião Sousa, os três que idealizaram a criação da

instituição. Fonte: Arquivo pessoal de João Leonardo Silveira ............................................... 59 Imagem 3: Seminário Maior, no antigo bairro da Prainha, em Fortaleza. Local onde as

primeiras ideias relativas à criação do Centro Social Morrinhense aconteceram. Fonte:

Arquivo Nirez. .......................................................................................................................... 62 Imagem 4: Diploma que era entregue aos sócios beneméritos do Centro Social Morrinhense.

Fonte: Arquivo pessoal de João Leonardo Silveira .................................................................. 65 Imagem 5: Garota tocando sanfona, instrumento musical muito apreciado pelos centristas,

durante a ordem cultural de uma das sessões ordinárias. Em destaque, acima, as bandeiras do

Brasil e do Centro Social Morrinhense. Data não localizada. Fonte: Arquivo pessoal de João

Leonardo Silveira ..................................................................................................................... 69 Imagem 6: Raimundo Nonato Araújo da Rocha, o Mundico. Fonte: Jornal Voz de Morrinhos,

1958. ......................................................................................................................................... 89

Imagem 7: José Ataíde Alves de Vasconcelos. Fonte: Jornal Voz de Morrinhos, 1956. ........ 91 Imagem 8: José Adrião Sousa. Fonte: Jornal Voz de Morrinhos, 1956. ................................. 93

Imagem 9: Primeiro número do jornal Voz de Morrinhos. Em destaque, ao lado esquerdo, a

carta de apresentação do jornal. Ao lado direito, o texto de José Ataíde Alves de Vasconcelos.

.................................................................................................................................................. 99 Imagem 10: Convite produzido pelo Centro Social Morrinhense e distribuído na vila de

Morrinhos em 20 de dezembro de 1952. Fonte: Arquivo do autor. ....................................... 109

Imagem 11: Raimundo Nonato Araújo da Rocha e João Leonardo Silveira supervisionando o

motor de luz, juntamente com Vicente de Paulo Ursulino. Fonte: Silveira, 2009. ................ 113 Imagem 12: Primeiro prédio escolar de Morrinhos e primeira turma de formandos. Fonte:

Silveira, 2009. ......................................................................................................................... 115 Imagem 13: Região da Praça do Cruzeiro nos anos 1950. Fonte: arquivo do autor.............. 123 Imagem 14: Capela e Alto das Flores nos anos 1950. Fonte: arquivo do autor. ................... 126

Imagem 15: Mercado Público de Morrinhos durante a década de 1950. Fonte: arquivo do

autor. ....................................................................................................................................... 127

Imagem 16: O Quadro da Rua no final da década de 1950. Fonte: arquivo de Paulo Rogério

da Rocha. ................................................................................................................................ 128 Imagem 17: Rua Joaquim Coriolano Rocha durante os anos 1950. Fonte: arquivo de João

Leonardo Silveira. .................................................................................................................. 129 Imagem 18: Manchete de notícia do jornal Gazeta de Notícias. 03 de março de 1953. Fonte:

arquivo de João Leonardo Silveira ......................................................................................... 133 Figura 19: Notícia sobre o desaparecimento do padre Apoliano. Jornal O Povo, 20 de agosto

de 1954. Fonte: Arquivo pessoal de Leonardo Silveira.......................................................... 144 Imagem 20: Imagem de Dom José estampada no número 04 do Jornal Voz de Morrinhos.

Fonte: Arquivo de João Leonardo Silveira ............................................................................. 150 Imagem 21: Anúncio da campanha política de Francisco Arruda no Jornal Voz de Morrinhos

de agosto de 1954. Fonte: Arquivo de João Leonardo Silveira .............................................. 167

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Imagem 22: Foto da assinatura da lei que criou o município de Morrinhos. Fonte: Silveira,

2009. ....................................................................................................................................... 168 Imagem 23: Croqui feito logo após a emancipação municipal. Autor desconhecido. Fonte:

arquivo de João Leonardo Silveira ......................................................................................... 170 Imagem 24: Festa da emancipação política. Arquivo de João Leonardo Silveira ................. 175 Imagem 25: Primeiro edifício da Prefeitura e Câmara Municipal de Morrinhos. Fonte:

Arquivo de João Leonardo Silveira ........................................................................................ 178 Imagem 26: Fotografia de posse do primeiro prefeito, vice-prefeito e dos vereadores de

Morrinhos. Fonte: Silveira, 2009. ........................................................................................... 179 Imagem 27: Imagem de uma das últimas reuniões do Centro Social Morrinhense no início da

década de 1960. Fonte: Arquivo de João Leonardo Silveira .................................................. 181

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Lista da quantidade de reuniões do Centro Social Morrinhense e seus respectivos

presidentes entre 1952 e 1963. Elaboração do autor ................................................................ 70

Tabela 2: Lista de doação de livros. Elaboração do autor. .................................................... 118 Tabela 3: Lista de rodovias e as verbas destinadas para a obra. Elaboração do autor ........... 134 Tabela 4: Municípios criados no Ceará durante a década de 1950. Elaboração do autor ..... 173 Tabela 5: Resultado das primeiras eleições municipais de Morrinhos, em 1958. Fonte: TRE-

CE ........................................................................................................................................... 184

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LISTA DE SIGLAS

ACI Associação Cearense de Imprensa

ACL Academia Cearense de Letras

ACEJI Associação Cearense dos Jornalistas do Interior

ASEL Academia Sobralense de Estudos e Letras

BEC Banco do Estado do Ceará

CEC Centro Estudantal Cearense

CSM Centro Social Morrinhense

EM Elite Morrinhense

IAPC Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comeciários

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICC Instituto Cultural do Cariri

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 22

CAPÍTULO 1 ................................................................................................................ 41

A cidade de Morrinhos e a fundação do Centro Social Morrinhense ..................... 41

1.1 Entre o rio e os morros, Morrinhos: espaço, tempo e afeto. ................................. 41

1.1.1 Perfil urbano .................................................................................................. 41

1.1.2 Entre a carne e a pedra, o corpo da cidade: um aprendiz de historiador

experimentando as madeleines de Proust ............................................................... 44

1.2 O Centro Social Morrinhense: “tudo pelo progresso de Morrinhos” ................... 59

1.2.1 A sedução da “loira desposada do sol” .......................................................... 71

1.2.1 A Elite Morrinhense: “a mais fina flor do lugar” .......................................... 77

1.2.2 Jornal Voz de Morrinhos: “aparece nos grandes momentos”........................ 80

1.2.3 Os fundadores: (prosopo)grafando sujeitos ................................................... 85

CAPÍTULO 2 ................................................................................................................ 96

Entre o papel e a pedra, a terra e os sonhos, a cidade do desejo: o Centro Social

Morrinhense, a construção de seu discurso e suas práticas de espaço .................... 96

2.1 “Morrinhos terra de progresso”: a emergência de uma construção discursiva ..... 96

2.2 “Morrinhos, a vila privilegiada”: a invenção de uma identidade espacial ......... 105

2.2.1 “A alegria mais intensa das noites”: A luz elétrica chega à vila ................. 108

2.2.2 “O amanhã dos municípios”: o Centro Social Morrinhense e seu projeto

educacional ........................................................................................................... 114

2.2.3 Ordenando o “desordenado”: o Centro Social Morrinhense e suas práticas de

espaço ................................................................................................................... 120

2.3 “Morrinhos pede socorro”: da vila privilegiada à vila aterrorizada ................... 131

CAPÍTULO 3 .............................................................................................................. 139

Surge et ambula – “Ergue-te e anda”: O Centro Social Morrinhense e a emergência da

cidade emancipada ..................................................................................................... 139

3.1 “Um lugar para rezar mais perto de Deus”: Morrinhos, entre uma capela e uma matriz

.................................................................................................................................. 139

3.1.1 “A morte como farsa”: a tensão entre Morrinhos e Marco e os dois Franciscos, o

padre e o político .................................................................................................. 143

3.1.2 Em busca do bispo: as comitivas do Centro Social Morrinhense rumo a “Princesa

do Norte” e a criação da Paróquia do Sagrado Coração de Maria. ...................... 147

3.2 – “O que fizeram os pais da Pátria?”: a emancipação política de Morrinhos .... 152

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3.2.1 “À base de pão e laranja”: o Centro Social Morrinhense e o movimento

municipalista ......................................................................................................... 153

3.2.2 O nascimento do município e a morte da “vila privilegiada” ...................... 158

3.3 O Centro Social Morrinhense: um espaço em ruínas ......................................... 178

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 186

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 192

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INTRODUÇÃO

Em setembro de 1957, o jornalista Manuel Aguiar de Arruda escrevia uma longa

reportagem, sem descansar a ponta de seus dedos que violentavam depressa as teclas de uma

velha Remington, sobre a trajetória do Centro Social Morrinhense e de seus membros,

intelectuais que resolveram “descer até a rua”1. Ela seria posteriormente publicada no jornal

Voz de Morrinhos, em homenagem ao mais novo município criado no estado do Ceará:

Morrinhos está em festas. Seus filhos festejam com justificada alegria a elevação de

nossa terra a Município. Nesta oportunidade, resolvemos entrevistar alguns dos mais

ardorosos e incansáveis batalhadores do Centro Social Morrinhense, sociedade que

lutou fortemente pela causa em foco, a respeito da fundação, vida e luta do CSM.2

Neste trabalho, procuramos tratar justamente sobre essa “fundação, vida e luta do

CSM”, e suas relações, notadamente intelectuais, políticas e identitárias, com a cidade de

Morrinhos, localizada no interior cearense, às margens do Rio Acaraú, distante duzentos e dez

quilômetros da capital do estado, Fortaleza. A pesquisa será dedicada à compreensão da

emergência de Morrinhos enquanto cidade emancipada político-administrativamente e como

espaço religioso, por meio da atuação dos intelectuais do Centro Social Morrinhense. Importa-

nos analisar as relações que foram historicamente construídas entre essa instituição e a então

vila de Morrinhos, que começava a vislumbrar as possibilidades de ser cidade, de se configurar

como território emancipado, no início da década de 1950.

Torna-se interessante começarmos essa introdução discutindo o título escolhido para o

trabalho: “Fagueira esperança de melhores dias: o Centro Social Morrinhense e a invenção da

cidade emancipada (1952-1959)”. Ele diz respeito a uma metáfora utilizada pelo seminarista e

centrista José Ataíde Alves em um de seus textos, para explicar o que seria o Centro Social

Morrinhense. Para ele, a instituição, como uma mulher “fagueira”, aquela que cuida e afaga,

deveria ser a responsável por trazer benesses à vila de Morrinhos, entendida por ele, em um

primeiro momento, como abandonada e desamparada. O Centro Social Morrinhense seria o

responsável direto pela “esperança de melhores dias”, pela invenção de uma cidade melhor,

1 Expressão que utilizo para referenciar a ideia de intelectual engajado, cunhada pelo filósofo engagé Jean Paul

Sartre, onde defende que seria lícito aos intelectuais se posicionarem politicamente sobre os problemas de seu

tempo. Para mais informações, ver SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994. 2 Jornal Voz de Morrinhos, ano VI, número I. 9 de fevereiro de 1958.

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uma cidade da esperança, do porvir, do futuro; uma cidade emancipada, moderna, progressista

e civilizada. A referência ao conceito de invenção no título do trabalho não é uma construção

puramente retórica, mas ela se refere a um “momento de emergência, fabricação ou instituição

de algo que surge como novo. O termo invenção, portanto, também remete a uma dada ruptura,

a uma dada cesura ou a um momento inaugural de alguma prática, de algum costume, de alguma

concepção, de algum evento humano”3.

Utilizar o conceito de invenção é sobretudo entender que os espaços são fabricações

humanas, são construções políticas, estratégicas, imagéticas e discursivas. Os espaços são

imaginados, tanto quanto material e empiricamente demarcados. Os espaços são poéticos, tanto

quanto racionais4. Entender a cidade sob esse prisma, significa pensá-la para além de suas

dimensões materiais, e compreendê-la muito além de suas ruas, casas, prédios, praças, etc. É

tomá-la como espaço de registro e realização de uma escrita, de sonhos, de desejos. Todo espaço

humano é povoado de sensibilidades e sociabilidades, possuidor de seu próprio regime de

historicidade, onde se articulam passado, presente e futuro5. É tomar a cidade como uma

espacialidade construída a partir de discursos, limitados historicamente, que possibilitam a

criação de textos e imagens a seu respeito, tanto quanto de ruas, prédios e logradouros. A cidade

é uma invenção humana, é produto de suas artes6.

Todavia, é importante perceber que a própria categoria “cidade”, sozinha, não quer dizer

muita coisa. É um conceito genérico, uma imagem ausente de particularidade, embora

recorrente, que usamos apenas para nos referenciar a um espaço que consideramos urbano, em

oposição ao que entendemos por rural, ou campo. É preciso buscar, então, as singularidades

dos espaços urbanos, os eventos e os processos que o particularizam, que tornam uma cidade

diferente das outras. Navegar por esse caminho parece ser muito mais coerente do que

permanecermos encalhados na pergunta já clássica: o que é a cidade?

Desta forma, estamos aqui interessados justamente nesses processos que possibilitaram

a invenção de uma delas, a cidade de Morrinhos, através da atuação de uma instituição, o Centro

Social Morrinhense. Isso nos leva, portanto, numa outra direção e a formular outras perguntas,

3 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru-SP, 2007. p. 16-17. 4 Sobre a poética do espaço, ver BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes,

1993. 5 Sobre o conceito de regime de historicidade, ver HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e

experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 6 Sobre essa questão, ver ARGAN, Giulio Carlo. A história da arte como história da cidade. 5ª edição. São

Paulo: Martins Fontes, 2005.

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como: quem produz a cidade? Quem produz memórias sobre ela? Quem produz discursos e

pronunciamentos sobre ela? Quem produz silêncios sobre ela?

O recorte temporal escolhido, os anos entre 1952 e 1959, corresponde ao espaço de

tempo onde se intensificaram as relações entre o Centro Social Morrinhense e a vila de

Morrinhos. 1952 estabelece a fundação do Centro Social Morrinhense, idealizado e criado em

Fortaleza por três sujeitos (um seminarista, um auxiliar de farmácia e um estudante ginasial)

que haviam deixado Morrinhos no final da década de 1940, para viverem na capital, na cidade

grande. O ano de 1959 representa o final do nosso recorte temporal, pois é o ano em que se dá

a conclusão do processo emancipatório de Morrinhos, com sua elevação à condição de

município e a posse de seus primeiros governantes. Representa, também, o período em que o

Centro Social Morrinhense perde representatividade e entra em decadência.

No entanto, reservamo-nos o direito de, em algum momento específico da narrativa,

transpor esses marcos temporais, por entendermos que os processos históricos são dinâmicos,

móveis, fluidos, e não estáticos, imóveis. Essas transposições temporais, seja para antes de 1952

ou para depois de 1957, são importantes para a melhor compreensão do objeto da pesquisa.

Mas, depois de tudo o que foi dito, é preciso admitir que essa pesquisa nem sempre foi

assim.

*

Quando eu ainda era muito jovem e tolo, e morava em Sobral, resolvi escrever sobre um

período muito particular da história de uma pequena cidade encravada no interior do Ceará,

entre o sertão e o litoral. Era também minha cidade, Morrinhos, onde eu havia morado e

crescido. Era final da minha graduação em História na Universidade Estadual Vale do Acaraú

- UVA, e eu apresentei um projeto de trabalho de conclusão de curso sobre as implicações da

modernidade no espaço da cidade, durante a década de 1950, em Morrinhos. Tornou-se um

texto imaturo e hoje datado, mas que na época foi publicado7.

Naquele trabalho eu buscava compreender um discurso que admitia, com certa

regularidade, que Morrinhos estava progredindo, se modernizando, tornando-se uma cidade

progressista e civilizada. Não estava tão preocupado com as condições históricas de

7 Para mais informações, ver SILVEIRA, Cid Morais; MELO, Francisco Denis. Entre ideias e ideais: Morrinhos

nas tramas da modernidade (1952-1964). Revista Historiar, vol. 7. 2015. p. 142-160.

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possibilidade da emergência desse discurso. Minha intenção era perceber como os novos

equipamentos urbanos inscritos na cidade modificaram a forma como as pessoas interpretaram

esse novo espaço. Ou seja, eu acreditei completamente na efetividade do discurso e em sua

materialidade no espaço urbano. Eu acreditei no mito da cidade moderna, da Morrinhos

moderna. Não desconfiei dele. Admito hoje os limites do que fiz nesse trabalho.

Quando estava terminando de elaborar o projeto para tentar a seleção de mestrado, ainda

pesquisando o mesmo tema, descobri no arquivo particular do memorialista João Leonardo

Silveira, durante uma boa tarde de café e prosa, dois grossos volumes de livros, com capas

negras, parcialmente comidas por traças, ambos enrolados em uma espécie de papel adesivo.

Quando lancei um olhar para a primeira página, estava escrito: “Servirá o presente livro, que

contém 100 (cem) folhas rubricadas pelo presidente do Centro Social Morrinhense, para nele

serem lavradas as atas das sessões realizadas nesta sociedade”8.

Essa descoberta se constituiu em uma grande virada, expressão aqui tomada de

empréstimo e utilizada na mesma linha de pensamento de Stephen Greenblatt9, e quase motivou

um porre de um aprendiz de historiador no bar do Antônio Célio, ao lado da sinuca onde o João

Tadeu jogava e cantava uma música da Jovem Guarda. Ouvia falar do Centro Social

Morrinhense, inclusive trabalhei com ele na graduação, mas era uma voz que ainda vinha de

muito longe, quase inaudível. Pouco se sabia sobre essa instituição que, em um livro sobre a

história da cidade de 482 páginas, aparecia em apenas oito delas.

A descoberta de uma vasta documentação (livro de atas e os estatutos) sobre o Centro

Social Morrinhense, ainda que rara e proporcionalmente escassa se comparada a outras

pesquisas, possibilitou uma restruturação e um novo direcionamento à problemática central da

dissertação, que ainda estava verticalizada no discurso da modernidade e seus impactos no

espaço urbano de Morrinhos e na vida de seus habitantes. Nas orientações, nos debates e nos

seminários, dentro do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte – PPGH/UFRN, decidimos que o foco do trabalho deveria ser direcionado

para a análise da atuação do Centro Social Morrinhense e para sua participação no processo de

8 Livro de Atas do Centro Social Morrinhense. 1953-1957. Livro 01, fl. 02. Arquivo de João Leonardo Silveira. 9 O crítico literário Stephen Greenblatt usa a expressão “a virada” para exemplificar a descoberta dos escritos do

filósofo Tito Lucrécio por Poggio Bracciolini, um caçador de manuscritos e livros antigos, no século XV. Para

Greenblatt, a descoberta feita por Poggio foi um acontecimento emblemático e responsável por uma nova

concepção do que viria a ser o mundo moderno. Ver GREENBLATT, Stephen. A virada: o nascimento do mundo

moderno. Tradução: Caetano W. Galindo. São Paulo. Companhia das Letras, 2002.

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mudança de estatuto jurídico e político-administrativo do espaço nomeado de Morrinhos: de

distrito a município; de capela a matriz.

Esse novo olhar, a partir da descoberta de novas fontes, fez emergir novos

questionamentos sobre o objeto que nos propomos a investigar: que instituição era essa? O que

pretendia? Quem foram seus membros? Como se deu sua atuação no processo de emancipação

político-religiosa de Morrinhos? Todas essas perguntas serão devidamente respondidas durante

os três capítulos desta dissertação. Mas antes, precisamos fazer algumas considerações

importantes.

Se dissemos anteriormente que as relações historicamente construídas, notadamente

político-intelectuais, entre o Centro Social Morrinhense e a então vila de Morrinhos, se

constituem como importantíssimas para pensar a problemática dessa dissertação, estamos

alertando para a necessidade de se tomar o espaço como um conceito histórico e em constante

dinamismo. Vivo e vivido, protagonista e vilão da trama histórica. Portanto, o espaço não é

apenas um mero palco onde a vida humana ocorre e se esgota.

O espaço não pode ser mobilizado como uma categoria morta, imóvel, naturalizada,

evidente. Especificamente em nosso caso, Durval Muniz de Albuquerque Júnior já nos alertou,

em suas obras, como as produções discursivas são práticas fundamentais quando grupos de

intelectuais e/ou políticos desejam inventar10 ou fabricar11 determinadas categorias espaciais ou

conceituais. Dentro dessa perspectiva, tomaremos o espaço “como imaginados, como esforços

das relações humanas, como produtos da linguagem, como produtos da razão”12, atentando para

suas dimensões materiais e simbólicas.

Desta forma, entendendo a realidade e as construções espaciais como fabricações

humanas, é necessário pensar como essa instituição criou uma forma singular de ver e dizer a

cidade, produzindo um regime de dizibilidade e visibilidade para esse espaço13, através de

práticas discursivas, não-discursivas e de práticas de espaço, permeadas pelo desejo e o sonho

da cidade moderna, progressista e civilizada. Formas de ver e dizer a cidade, limitadas

historicamente é verdade, mas que foram posteriormente utilizadas para legitimar e acelerar seu

processo de emancipação político-religiosa, sob a atuação do Centro Social Morrinhense.

10 Ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo:

Cortez Editora, 2011. 11 Ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura

popular (nordeste 1920-1950). São Paulo. Intermeios, 2013. 12 PEIXOTO, Renato Amado. Cartografias imaginárias: estudos sobre a construção da história do espaço

nacional brasileiro e a relação História e Espaços. Natal: EDUFRN, 2011, p. 10. 13 Sobre os regimes de dizibilidade e visibilidade, ver DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013.

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Pensar na atuação do Centro Social Morrinhense e de como ela produziu uma forma de

ver e dizer a cidade, implica mobilizar em nossa análise os discursos e as formações discursivas,

que os possibilitaram existir e circular. Esta pesquisa dialoga com o conceito de “formação

discursiva” elaborado pelo filósofo Michel Foucault, que a define como sendo um conjunto de

regras e práticas históricas, portando limitadas pelo tempo e pelo espaço, que permitem e

legitimam, assim como limitam e impedem que dadas formas de discurso sejam possíveis em

dado tempo e espaço. A formação discursiva se constitui nas condições de exercício da função

enunciativa e das estratégias discursivas14.

Chamaremos aqui a formação discursiva que iremos estudar de “modernidade”, porque

foi a partir desse conceito e de outros a ele correlacionados como “progresso” e

“desenvolvimento”, assim como o conceito de “nação”, “pátria” ou “terra”, que um conjunto

de textos e pronunciamentos, que pretendiam conferir uma visibilidade e uma dizibilidade à

vila de Morrinhos, puderam existir e circular. “Terra”15 porque, para o grupo de intelectuais do

Centro Social Morrinhense e produtores desses discursos, Morrinhos já era uma terra

naturalmente próspera e destinada ao sucesso, pois possuía, segundo eles, uma sociedade

moralista, progressista e virtuosa, que só precisava de um grupo de “homens de saber e poder”

que pudessem guiá-la nessa jornada rumo a um acontecimento inevitável e fatal: o progresso.

Portanto, o progresso seria uma fatalidade histórica da qual Morrinhos não escaparia. O CSM

seria, no entanto, o meio pelo qual esse processo seria acelerado e ganharia materialidade mais

rápido. Era também pela “terra”, a vila de Morrinhos, e em defesa dela, que, segundo eles, o

Centro Social Morrinhense teria sido fundado.

“Progresso”, porque, deveria ser por meio dele e somente através dele, de acordo com

o Centro Social Morrinhense, que a vila poderia tornar-se moderna, grande, racionalizada e

civilizada. Poderia se tornar uma cidade emancipada. Esse conceito de progresso, que aparece

com tanta regularidade nos discursos produzidos pelo Centro Social Morrinhense, é o mesmo

sonho de progresso que dominava o Brasil entre o final do século XIX e o primeiro quartel do

século XX. Todavia, é um sonho já marcado pela decepção quanto à capacidade de a República

vir realizá-lo. O ideal de uma sociedade nova, tão ambicionado pelos modernismos nos anos

1920, havia gerado uma crise de identidade nacional16. Esse progresso está intimamente ligado

14 Sobre as formações discursivas, ver FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7ª edição. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2008, p. 35-45. 15 Terra é entendida aqui como sendo uma metáfora relacionada ao espaço da vila de Morrinhos. 16Sobre essa questão, ver LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização.

IN: COSTA, Wilma Peres da. LORENZO, Helena Carvalho de (orgs). A década de 1920 e as origens do Brasil

moderno. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 93-115.

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ao crescimento econômico não só das cidades, que sofreram um violento processo de

modernização, mas também do país, que na década de 1950 passou a experimentar o projeto do

nacional-desenvolvimentismo, baseado no crescimento industrial, do consumo e no

desenvolvimento da infraestrutura, tendo um apoio estreito do Estado nesse processo.

Essa ideia de progresso é aquela que se torna dominante na história do ocidente no

século XIX, como alertou Jacques Le Goff. Para esse autor, o oitocentos é o grande fomentador

da ideia de progresso e isso está ligado ao desenvolvimento científico e técnico, e à expansão

do pensamento liberal, em todas as suas vertentes, possibilitando o conforto para as elites, o

progresso da alfabetização e da democracia17. É um progresso técnico, racionalizante, um

progresso ligado à máquina, às reformas urbanas, à educação como instrução, ao consumo, à

modernidade e à modernização do campo e das cidades18.

É preciso aqui fazer uma ressalva: em momento algum os intelectuais do Centro Social

Morrinhense utilizam o conceito de “modernidade” em seus textos. Estamos mobilizando-o

aqui para mostrar que ele não está distante de um grupo lexical específico, utilizado com

frequência, com regularidade, em um determinado tempo e espaço. Progresso, modernidade,

modernismo, moderno, modernização, desenvolvimento, embora possuam sentidos diferentes,

estão estreitamente ligados entre si, e muitos deles estão presentes nos discursos manifestados

pelo Centro Social Morrinhense. Esses ideais de modernização, desenvolvimento, progresso e

o gosto pelo moderno, em detrimento do velho e ultrapassado, são marcantes durante a década

de 1950, período de fundação e maior atividade do Centro Social Morrinhense. Esses conceitos

acabaram figurando e ganhando notoriedade nas esferas culturais, políticas e econômica, nas

discussões intelectuais, nos jornais, em livros, em discursos e pronunciamentos19.

Essa construção discursiva de Morrinhos como a “terra de progresso”, foi tão presente

que possibilitou e foi capaz de fazer emergir discursivamente, em 1953, uma nova qualidade

espacial para Morrinhos: a de “vila privilegiada”. Esse conceito apareceu pela primeira vez em

um texto que consideramos inaugurador e fundador dessa construção discursiva: “Morrinhos,

terra de progresso”, do então seminarista José Ataíde Alves de Vasconcelos, um dos membros

fundadores do Centro Social Morrinhense. Cabe aqui nos perguntar: privilegiada por que?

Quais os temas, enunciados e conceitos que foram mobilizados por esses intelectuais para

17 Sobre essa discussão, ver LE GOFF. Jacques. História e Memória. 5ª ed. Campinas, São Paulo: Editora da

Unicamp, 2003, p. 235-281. 18 Sobre o conceito de progresso técnico, ver BARREIRA, Cecília. Onde está a felicidade: o conceito de progresso

técnico no século XIX. Lisboa: Universitária Editora, 1997. 19 Sobre essa questão, ver BOTELHO, André; BATISTA, Elide Rugai; VILLAS BOAS, Gláucia. O Moderno em

Questão: a década de 1950 no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.

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justificar esse privilégio de Morrinhos? Se, ao afirmarem que Morrinhos era uma vila

privilegiada, isso estaria relacionado a um possível desprivilegio de outras cidades,

notadamente as mais próximas?

É possível então perceber que há uma relação muito íntima entre o Centro Social

Morrinhense e a vila de Morrinhos; entre a instituição e o espaço que ela pretendia representar.

É nessas relações que este trabalho irá se deter. Esta dissertação procurará tratar dos enunciados,

conceitos e estratégias utilizados pelos intelectuais do Centro Social Morrinhense para

emancipar a cidade, entendido aqui como um projeto de “cidade emancipada”, que não incluía

apenas o desmembramento territorial de Santana do Acaraú e a emancipação política, mas

também a transformação da capela de Morrinhos, vinculada a cidade de Marco, em matriz, em

uma sede paroquial. Portanto, não nos interessamos tão somente pela emergência da cidade

emancipada, o fim, mas sobretudo pelos processos, as operações e os eventos que a levaram a

se tornar um município independente. Se estamos falando de relações, então um outro conceito

aparece aqui e se faz necessário explicá-lo um pouco melhor: o conceito de práticas.

Falamos no início dessa introdução que o Centro Social Morrinhense se utilizou de

práticas discursivas (discursos, enunciados, conceitos, temas) e não-discursivas (instituições e

ações) para efetivar o seu projeto de cidade emancipada. Com isso, é necessário entender com

que concepção de discurso essa pesquisa irá dialogar. Entendemos o discurso como sendo uma

prática que possui positividade, empiricidade, como uma ordem, assim como compreendeu

Michel Foucault. Discurso, para Foucault, é uma violência que nós impomos às coisas20. Para

ele, é possível chamar de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na

mesma formação discursiva. Ele é constituído de um número limitado de enunciados, para os

quais podemos definir um conjunto de condições de existência21.

Para Foucault, os enunciados atravessam a linguagem e, portanto, são determinados por

regras discursivas singulares e historicamente limitadas. Não se pode falar sobre qualquer coisa

em qualquer época. É preciso considerar condições históricas para o aparecimento de um objeto

discursivo. Ou seja, a formação discursiva “modernidade” e a construção discursiva “terra de

20 Michel Foucault vai definir quatro princípios onde é possível a análise da formação discursiva. A inversão, que

consiste em reconhecer nas fontes do discurso, tais como autor, disciplina, etc, a possibilidade de limitá-lo e

recortá-lo. A descontinuidade, onde os discursos são práticas descontínuas, que podem se ignorar ou se excluir.

A especificidade, que o discurso não é um jogo de significações prévias nem cúmplice do nosso conhecimento,

mas sim uma violência imposta às coisas e uma prática a elas imposta. E a exterioridade, não se deve ir do discurso

ao seu núcleo interior, mas sim partir do próprio discurso para as condições externas de possibilidade. Sobre isso,

ver: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, 1996. 21 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, 1996. p. 52-53.

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progresso”, assim como os discursos que circularam a partir desse conjunto de temas,

enunciados e conceitos, não podem ser tratados como naturais, e sim como um conjunto de

práticas, limitadas e determinadas historicamente, relacionadas a condições de emergência que

devem ser analisadas pelo historiador.

O discurso, enquanto esse conjunto de enunciados que se apoia em uma formação

discursiva, não possui apenas um sentido, mas sim, uma história. Ele é acontecimento. Foucault

vai enfatizar a ideia de que todo discurso é produzido através de uma relação de poder, que para

ele, é toda e qualquer relação humana. O poder, para Foucault, não é atributo, ele é operatório;

o poder não é algo que possa ser centralizado e/ou localizado precisamente, pois ele é, antes de

tudo, uma relação. O poder, na concepção de Foucault, não é essência e não distingui os

dominantes dos dominados, e sim “passa por eles e através deles, apoia-se neles, do mesmo

modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que os

afeta”22.

Outro tipo de prática importante dentro de nossa análise sobre o Centro Social

Morrinhense e suas relações com a vila de Morrinhos, são aquelas que Michel de Certeau

chamou de “práticas de espaços”. Ou seja, o meio pelo qual os sujeitos transformam os lugares

em espaços, as formas como eles constroem significados para esses lugares, inventando novas

espacialidades. Para Certeau, há uma diferença fundamental entre espaço e lugar. Espaço, para

ele, seria o lugar vivenciado. Um lugar só se torna espaço quando indivíduos exercem dinâmicas

que o faz ser vivido, quando ele é praticado. Quando uma rua, por exemplo, geometricamente

definida por um projeto urbanístico, é constantemente atualizada, ativada e transformada por

seus usuários ela passa de lugar à espaço. Para Certeau, o espaço é o lugar praticado. Existe

“espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a

variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis”23.

Pensar o espaço urbano sob a ótica de Michel Certeau, é sobretudo imaginar a cidade

como uma categoria em constante transformação. É preciso tentar pensá-la como uma “cidade-

conceito”. Certeau afirma que essa “cidade-conceito”, especificamente falando da cidade

contemporânea, funciona como um “lugar de transformações e apropriações, objeto de

intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos: ela é ao mesmo tempo

a maquinaria e o herói da modernidade”24. Entender a cidade do ponto de vista conceitual, como

22 DELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 37. 23 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 9. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis:

Vozes, 1994. p. 201-202. 24 Ibidem, p. 174.

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faz Certeau, é concebê-la como o espaço da multiplicidade, da heterogeneidade, buscando

combater e lutar contra qualquer visão totalizante, homogeneizante e de fixidez das cidades. O

urbano é o espaço da pluralidade, do convívio e do conflito, das elites e dos sujeitos ordinários,

do fragmento e da unidade, possibilitando a presença de múltiplas identidades urbanas.

Surge então, para esta pesquisa, um grande desafio: de qual categoria de cidade iremos

tratar? A cidade idealizada, a “vila privilegiada”, construída discursivamente pelo Centro Social

Morrinhense, ou a cidade real, a Morrinhos vivida e praticada todos os dias por seus habitantes?

Estaríamos falando do mesmo espaço ou é possível encontrar contrastes entre essas duas

linguagens? É possível tomar uma em análise sem levar a outra em consideração?

Para tentar responder a essas questões que se fazem imprescindíveis para a dissertação,

seguiremos o conselho de Ángel Rama, que, através de um minucioso exame de representações

cartográficas, plantas e nomes das cidades latino-americanas, identificou a existência de duas

cidades em uma só: a cidade letrada e a cidade real25. Ambas não estão separadas, e sim

convivem juntas. Rama admite isso ao chegar à conclusão de que toda cidade pode se apresentar

como um discurso que articula vários signos, dentro de uma lógica gramatical específica. A

cidade também pode ser uma escrita, um texto.

Para Rama, as cidades desenvolvem duas linguagens sobrepostas: “a física, que o

visitante comum percorre até perder-se na multiplicidade e fragmentação, e a simbólica, que a

ordena e interpreta, ainda que somente para aqueles espíritos afins”26. Desta forma, nossa ideia

é analisar essas duas linguagens a respeito de Morrinhos: a cidade do sonho, a cidade desejada,

produzida discursivamente pelo Centro Social Morrinhense, e a cidade real, a cidade vivida, a

então pequena vila de Morrinhos, buscando seus pontos de convergência e seus contrastes; suas

coerências e suas contradições, afinal, como já advertiu Calvino, “jamais se deve confundir uma

cidade com o discurso que a descreve”27. É importante levar em consideração que as cidades

desejadas, projetadas, dizem muito das cidades do presente, as cidades vividas.

É interessante também perceber até que ponto essa figurabilidade28, que se constitui

como uma forma de fazer presença de algo e produzir uma determinada forma de ver o espaço

- a imagem de Morrinhos como próspera, progressista e civilizada - criada pelo Centro Social

25 Sobre essa questão, ver RAMA, Ángel. A cidade das letras. Tradução de Emir Sader. São Paulo: Boitempo,

2015. 26 Ibidem, p. 47. 27 CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 59. 28 Sobre o conceito de figurabilidade, ver DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada

aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34. p. 16-34.

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Morrinhense, através desse desejo da cidade ideal e simbólica, alimentou o projeto de cidade

emancipada e colaborou para a emergência da cidade institucional.

Rama afirma que a cidade letrada é reservada aos “espíritos afins”, ou seja, esse

ordenamento, essa organização da cidade das letras ficaria por conta de uma minoria, de um

grupo de letrados, de homens do saber. É possível considerar o Centro Social Morrinhense,

juntamente com seus intelectuais, como parte dessa cidade letrada, mesmo não estando

localizado em Morrinhos, e sim em Fortaleza? Acreditamos que sim, pois percebemos que seus

membros participaram ativamente do que Certeau chamou de “organização ou gestão racional

dos espaços”. Foram eles muitos mais do que praticantes dos lugares da vila. Foram gestores,

organizadores, onde tentaram inscrever nos espaços da cidade seus nomes, participando da

nomeação de ruas, logradouros, praças; solicitaram arquitetos para fazer mapas e plantas da

vila; inauguraram a luz elétrica, juntamente com o poder político municipal; participaram da

inauguração e fundação de espaços de sociabilidade literária e recreativa, como salões,

bibliotecas, etc e participaram das ações que levaram à sua emancipação.

Antes de prosseguirmos para uma justificativa social e historiográfica, bem como uma

explicação sobre as fontes da pesquisa, cabe responder uma pergunta importante: por que

chamamos os membros do Centro Social Morrinhense de intelectuais? O que nos levar a usar

esse conceito para adjetivá-los? O que nos faz admitir que um seminarista, um auxiliar de

farmácia, um profissional liberal, um jornalista, dentre outros sujeitos, seja considerado

intelectuais? Traçamos nossa resposta a partir de uma explanação do historiador francês Jean

François Sirinelli, ao tratar justamente sobre a dificuldade de explicação do conceito de

intelectual, onde ele admite que:

(...)é preciso, a nosso ver, defender uma definição de geometria variável, mas baseada

em invariantes. Estas podem desembocar em duas acepções do intelectual, uma ampla

e sócio-cultural, englobando os criadores e ‘mediadores’ culturais, a outra mais

restrita, baseada na noção de engajamento. No primeiro caso estão abrangidos tanto o

jornalista como o escritor, o professor secundário como o erudito. Nos degraus que

levam a esse primeiro conjunto postam-se uma parte dos estudantes, criadores ou

‘mediadores culturais’ em potencial, e ainda outras categorias de ‘receptores’ em

potencial, e ainda outras categorias de ‘receptores de cultura’. (…) Estes últimos

podem ser reunidos em torno de uma segunda definição, mais estreita e baseada na

noção de engajamento na vida da cidade como ator – mas segundo modalidades

diferentes, como por exemplo, a assinatura de manifestos.29

29 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais in: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed.

UFRJ/Ed. FGV, 1996, p. 242-243.

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Os membros do Centro Social Morrinhense poderiam ser considerados intelectuais

tomando esse conceito na acepção de “mediadores culturais”. Afirmar isso significa considerar

os membros do CSM não somente como sujeitos criadores e produtores de discursos, mas

também como mediadores, influenciadores e comunicadores de ideias, articulados e engajados

em torno de um projeto político-social, com atuação no âmbito educacional, na imprensa e em

outros meios de comunicação. Considerar essa nova acepção e relacioná-la com o restrito

conceito de intelectual, antes pensando apenas como aquele sujeito criador de conceitos e ideias

originais, é possibilitar uma grande expansão da categoria, fazendo com que escritores,

tradutores, professores, jornalistas, entre outros, possam integrá-la efetivamente e serem

devidamente tratados como intelectuais, como é o caso dos membros do Centro Social

Morrinhense30.

Sendo assim, esta pesquisa faz parte do campo da chamada história intelectual31,

notadamente aquela de “sabor francês”, atentando para as questões das sociabilidades dos

membros do CSM, para a análise de seus discursos, de seus itinerários pessoais e intelectuais32,

bem como a abordagem da organização, modos de filiação e do funcionamento dessa

instituição. Essa pesquisa também pode ser inscrita no interior da chamada história urbana,

notadamente uma história cultural do urbano e das práticas urbanas, problematizando as

aproximações e tensões entre os projetos da cidade ideal, da cidade desejada, urdidos pelo CSM;

e suas relações com a cidade real, a cidade vivida.

Há no Brasil uma importante produção historiográfica que trata de questões relacionadas

a instituições e intelectuais, bem como seus propósitos de inserção pública, durante a Primeira

República, até meados do século XX. Produções que forneceram excelentes possibilidades para

a construção deste trabalho, como os textos dos historiadores Ângela de Castro Gomes, Magali

Gouveia Engel, Simone de Souza, Frederico de Castro Neves e Gleudson Passos Cardoso33.

30 Para mais informações, ver GOMES, Ângela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (orgs). Intelectuais

mediadores: práticas culturais e ação política. 1ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 31 Sobre o campo da história intelectual, ver SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da história intelectual:

Entre questionamentos e perspectivas. São Paulo: Papirus, 2002. 32 De acordo com Sirinelli, a noção de itinerário permite desenhar mapas dos grandes eixos de engajamento dos

intelectuais, passando pelo gênero biográfico, tanto como pela perspectiva de trajetórias cruzadas. Essa noção de

itinerário foi importante na medida em que nos ajudou a produzir uma breve prosopografia sobre os intelectuais

do Centro Social Morrinhense. Sobre isso, ver SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais in: RÉMOND, René.

Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996. p. 231-271. 33 Ver GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996;

GOMES, Ângela de Castro. Os intelectuais cariocas, o modernismo e o nacionalismo: o caso da Festa. In:

Revista Luso-Brazilian Review. 2004; NEVES, F. C. SOUSA, S. (org). Intelectuais. Fortaleza: História e

Cotidiano. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2002; ENGEL, Magali Gouveia (org). Os Intelectuais e a

Imprensa. Editora Mauad, Rio de Janeiro. 2015; CARDOSO, Gleudson Passos. Padaria Espiritual, biscoito fino

e travoso. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado, 2006; CARDOSO, Gleudson Passos.

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Em nossa pesquisa, trataremos de dialogar mais estreitamente com dois estudos,

realizados por autores não mencionadas acima, que foram importantes para pensarmos as

problemáticas norteadoras desta dissertação. A tese de doutorado34 de Francisco Denis Melo,

onde o autor procurou pensar como a Academia Sobralense de Estudos e Letras - ASEL tratou

de inventar um discurso sobre Sobral como cidade letrada, enobrecida, distinta e intelectual; e

a dissertação de mestrado35 de José Ítalo Bezerra Viana, trabalho que parte das análises de como

as representações do passado construídas pelos membros do Instituto Cultural do Cariri - ICC

em livros de história, artigos de jornais e revistas, trataram de estabelecer os marcos históricos

do passado do Crato na tentativa de singularizar sua trajetória no tempo. Portanto, são pesquisas

que muito se assemelham a nossa proposta. São instituições mantidas por intelectuais, que

produziram discursos e que possuíram uma profunda preocupação com o espaço urbano onde

estão inseridas.

Mas, se pensarmos, mesmo com as devidas ressalvas36, em uma historiografia ou uma

história regional, em uma história produzida especificamente sobre a região onde está

localizada a cidade mobilizada nesta dissertação, nossa pesquisa se depara com um problema,

um desafio que precisa ser superado: há uma grande ausência de Morrinhos e, principalmente,

do Centro Social Morrinhense em abordagens mais específicas, mais direcionadas, mais

recortadas, mas incisivas.

O que se tem sobre a história de Morrinhos são, sobretudo, pesquisas e narrativas de

memorialistas. São produções de uma história amadora. Em 1999, um dos principais radialistas

e memorialistas da cidade, recentemente falecido, Geraldo Silveira, escreveu um breve texto,

Morrinhos: Um pouco de sua história37, a pedido de alunos da educação básica municipal, que

se queixaram da dificuldade em encontrar dados sobre a história de Morrinhos. A obra se tornou

“Bardos da Canalha, Quaresma de Desalentos”. Produção literária de trabalhadores em Fortaleza na Primeira

República. Niterói: Tese – PPGH UFF, 2009. 34 MELO, Francisco Dênis. Os intelectuais da Academia Sobralense de Estudos e Letras – ASEL – e a

invenção da cidade letrada (1943-1973). Recife: Tese de Doutorado – PPGH UFPE. 2013. 35 VIANA, José Italo Bezerra. O Instituto Cultural do Cariri e o centenário do Crato: memória, escrita da

história e representações da cidade. Fortaleza: Dissertação de Mestrado – PPGH UFC. 2011. 36 Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a “história regional participa da construção imagético-discursiva do

espaço regional, como continuidade histórica. Ela padece do que podemos chamar de uma ilusão referencial, por

dar estatuto histórico a um recorte espacial fixo, estático. Mesmo quando historiciza este espaço, valida-o como

ponto de partida para recortar a historicidade. Ela faz uso de uma região “geográfica” para fundar uma região

epistemológica no campo historiográfico, justificando-se como saber, pela necessidade de estabelecer uma história

da origem desta identidade regional, afirmando sua individualidade e sua homogeneidade. Por isso, o

questionamento da região, como uma identidade fixa, passa pela crítica desta “História Regional”, que participou

desta cristalização identitária, e passa pela retirada das fronteiras do campo historiográfico. ALBUQUERQUE

JÚNIOR, Durval Muniz. Op. Cit, 2011, p. 28-29. 37 SILVEIRA, Geraldo. Morrinhos: um pouco de sua história. Morrinhos: Sem edições. 1999.

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uma das primeiras desse gênero (memorialístico) sobre a cidade. Tratava principalmente sobre

a vida política da urbe, trazendo informações importantes sobre seus primeiros habitantes, suas

famílias, os principais governantes da cidade, etc. O Centro Social Morrinhense não é citado na

obra, parece não existir, apesar dela abordar acontecimentos referentes à emancipação política

de Morrinhos.

Em 2009, os memorialistas João Leonardo Silveira e Maria Luzia Rocha Silveira

publicaram uma obra mais densa, cheia de informações sobre a história da cidade de Morrinhos

e de seus habitantes, intitulado Morrinhos: Sua história e sua gente38. Nela, tive o primeiro

contato com a existência do Centro Social Morrinhense, através de apenas um tópico do livro,

que leva seu nome. Das 482 páginas que compõem a obra, apenas oito delas foram destinadas

ao CSM. A história de Morrinhos narrada no livro de Leonardo e Luzia, se dedica sobretudo

aos grandes acontecimentos, a explicações e grandes mapas genealógicos, notadamente da

família Rocha, trazendo uma narrativa regida e articulada dentro de uma perspectiva de longa

duração - desde o século XVIII até os dias de hoje - remetendo-se a cronologia dos fatos

políticos considerados por eles como importantes, ao enaltecimento dos “grandes homens” da

história da cidade, e a mitos fundadores, ligados principalmente a tradições familiares, aos

“primeiros povoadores do rincão pitoresco”. O Centro Social Morrinhense é coadjuvante e a

sua contribuição para o processo emancipatório de Morrinhos foi colocado em segundo plano

na narrativa. Não foram trabalhados, mas foram mencionados rapidamente.

Sendo assim, surge aqui a importância social desta pesquisa, que ultrapassa os limites

da universidade e do espaço acadêmico. Este trabalho, ao mesmo tempo em que procura

preencher uma ausência de produção historiográfica sobre a cidade39, pretende dar visibilidade

ao Centro Social Morrinhense, deixado de lado nas narrativas que se propuseram a pensar a

história de Morrinhos. Esta dissertação também se propõe a perceber, no calor dos processos e

dos eventos tratados durante a dissertação, como o Centro Social Morrinhense, entendido como

um lugar honorífico40, um lugar tão bem preparado, montado e fundado com a perspectiva de

se inventar algo, com a perspectiva de um novo tempo, tornou-se hoje o lugar do ausente, da

38 SILVEIRA, João Leonardo; SILVEIRA, Maria Luzia Rocha. Morrinhos: Sua História e Sua Gente. Realce

Editora e Indústria Gráfica Ltda. Fortaleza, Ceará, 2009. 39 Conseguimos localizar apenas uma produção acadêmica sobre a história de Morrinhos. O Centro Social

Morrinhense é trabalhado timidamente na pesquisa, com informações rasas. Ver MARANHÃO, Luciana

Vasconcelos. Vila Morrinhos: memória, história e tensão social (1953-1957). Monografia de graduação. Sobral:

Curso de História - UVA, 2009. 40 Sobre o conceito de lugar honorífico, ver ASSMAN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: Editora da

Unicamp, 2011.

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ruína, do desconhecimento, da obscuridade, do silêncio e do fracasso na preservação de sua

memória.

As fontes mobilizadas para esta pesquisa são jornais, discursos e pronunciamentos

parlamentares, atas de reuniões, documentos legislativos, projetos de lei, estatutos e

regulamento das instituições, registros paroquiais, imagens da cidade e das reuniões do Centro

Social Morrinhense. Não fazemos qualquer hierarquização quanto às fontes, mas os periódicos,

os estatutos e as atas das reuniões do CSM foram fundamentais para a viabilidade deste

trabalho.

Dispomos de várias reportagens publicadas sobre o Centro Social Morrinhense e a

cidade de Morrinhos, nos jornais O Povo, Gazeta de Notícias, Correio do Ceará, Unitário,

Correio da Semana, além do periódico mantido pela entidade, Voz de Morrinhos. Estas

reportagens compreendem os anos de 1952 até meados da década de 1960. Por meio do

periodismo é possível perceber os movimentos do cotidiano de uma cidade, seja de Fortaleza,

onde estava situada a sede do CSM, ou da vila de Morrinhos, principal assunto dos textos

analisados.

Através dos jornais, podemos pensar a relação entre imprensa, cultura escrita, cotidiano,

além, claro, a disposição, produção e recepção dos discursos. Com relação à produção

historiográfica, os periódicos foram mais utilizados como fontes de pesquisa quando os

historiadores decidiram estudar a modernidade, o modernismo e a modernização, temas

discutidos com recorrência nos periódicos. Assim, “é por meio destas que melhor se percebem

as transformações nos modos de vida informais, onde ganha visibilidade a busca por novos

hábitos em formação e costumes urbanos”41. Com relação aos jornais, é importante historicizar

o periódico, atentar para sua função social, seus leitores, tipo de linguagem que é possível

encontrar em suas páginas, os espaços de publicidade, seus anunciantes, etc42.

As atas das reuniões ordinárias e extraordinárias do Centro Social Morrinhense de que

dispomos, relativas aos encontros entre 1952 a 1957, nos permitiu compreender a dinâmica das

reuniões, saber quem eram os oradores mais atuantes, os assuntos mais discutidos, as

proposições para novos membros, a organização das reuniões extraordinárias, dentre outros

assuntos. Serão imprescindíveis para analisar os discursos da instituição, a “chave de leitura”

41 Ibidem. Pág. 93. 42 Sobre a relação metodológica por parte do historiador com a imprensa e os jornais, Heloísa de Faria Cruz e

Maria do Rosário da Cunha Peixoto, nos trazem importantíssimas considerações. Ver CRUZ, Heloísa de Faria e

PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas sobre História e Imprensa. Projeto

História, São Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007.

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através da qual liam a cidade e a construção de uma identidade intelectual que pretendia fazer

de cada membro daquela entidade, um agente importante na história de Morrinhos.

Já os estatutos, tanto do Centro Social Morrinhense, quanto da Elite Morrinhense,

entidade paralela ao CSM, criada por seus membros na vila de Morrinhos, tornam-se

importantes para entender como essas instituições vieram a se constituir em espaços de

distinção, espaços exclusivos, seletivos, portadores de um rígido estatuto e de regras muito

específicas. Estes tipo de documentação nos ajuda a compreender e problematizar as devidas

contradições referentes à entrada de novos membros, seus ordenamentos, as disposição e artigos

que dão conta da criação de uma biblioteca, de um salão de estudos, clube de recreação,

manutenção de escola para filhos de sócios, etc.

Para possibilitar uma melhor compreensão do objeto de nossa pesquisa, organizamos a

dissertação em três capítulos. O primeiro deles, intitulado “A cidade de Morrinhos e a fundação

do Centro Social Morrinhense”, é onde faremos uma apresentação da cidade de Morrinhos e

do Centro Social Morrinhense, trazendo para reflexão questões relativas ao seu perfil urbano,

além de uma descrição dos espaços da cidade através de minha relação afetiva com ela. Ainda

neste capítulo, iremos nos deter para um exame minucioso do Centro Social Morrinhense,

levando-se em consideração sua condição histórica de emergência e fundação, bem como a

análise de suas finalidades, de seus estatutos e órgãos oficiais, além de informações sobre seus

sócios e uma breve prosopografia dos três membros fundadores da instituição, buscando

compreender o que havia de comum entre eles e de que forma suas trajetórias individuais se

cruzaram.

No segundo capítulo, intitulado “Entre o papel e a pedra, a terra e os sonhos, a cidade

do desejo: o Centro Social Morrinhense, a construção de seu discurso e suas práticas de

espaço” analisamos, atentando sempre para essa relação entre duas ordens espaciais - a “cidade

ideal” e a “cidade real”- a construção de uma determinada forma de ver e dizer sobre a vila de

Morrinhos, levando-se em consideração as práticas discursivas e de espaços produzidas pelo

Centro Social Morrinhense. Neste capítulo, tratamos das condições de possibilidade de

emergência desses discursos, a partir de um texto que consideramos fundador dessa construção

discursiva: “Morrinhos, terra de progresso”, de autoria de José Ataíde Alves de Vasconcelos,

seminarista e membro fundador do CSM.

Analisamos, portanto, os sentidos dessa construção discursiva. Que temas, enunciados,

conceitos, estratégias e imagens foram produzidos e arrolados, possibilitando a invenção de

uma espacialidade chamada, de forma recorrente nos discursos, de “vila privilegiada”? De que

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forma esses discursos se configuraram em “relatos de espaços”? O capítulo se propôs, ainda,

em discutir outras práticas de espaços realizadas, direta ou indiretamente, pelo Centro Social

Morrinhense em Morrinhos. A chegada da luz elétrica, onde o CSM tomou para si a

responsabilidade pela divulgação, organização das festividades e pelos pronunciamentos; o

projeto educacional traçado por essa instituição, que foi capaz de criar espaços de sociabilidade

literária e educacional na vila, de acordo com seus estatutos; a identificação e a nomeação de

todas as ruas de Morrinhos e as intervenções materiais mobilizadas pelo CSM no chamado

“Quadro da Rua”, considerado o lugar mais importante da vila. Finalizaremos o capítulo

mostrando de que forma a “vila privilegiada”, tão bem construída e relatada nos discursos e nos

textos, acabou se tornando a “vila aterrorizada”.

No terceiro capítulo, intitulado “Surge et ambula – “Ergue-te e anda”: O Centro Social

Morrinhense e a emergência da cidade emancipada”, procuramos refletir de que forma se deu

a atuação do Centro Social Morrinhense na emergência de Morrinhos enquanto cidade

emancipada. Tanto na sua elevação à condição de município, quanto na cidade como sede de

uma paróquia.

Portanto, neste capítulo analisamos a atuação do Centro Social Morrinhense na criação

da Paróquia de Morrinhos, bem como as tensões sociais que esse processo foi capaz de gerar.

Refletimos sobre essa questão a partir de um acontecimento singular: a tentativa do Padre

Francisco Apoliano Ferreira, pároco da cidade de Marco, de forjar sua própria morte. De acordo

com jornais e documentos da época, Pe. Apoliano vinha sendo ameaçado pelo chefe político e

vice-presidente da Elite Morrinhense, Francisco Abdoral Rocha, por ser contrário a

emancipação da então capela de Morrinhos. Esse episódio acabou sendo anunciador de muitos

conflitos entre Morrinhos, Marco, os membros do Centro Social Morrinhense e chefes políticos

locais, se tornando o principal motivo para o “engavetamento” do processo de criação da

paróquia de Morrinhos na sede da Diocese de Sobral, que durou cerca de quatro anos.

Abordamos também sobre as comitivas organizadas pelo Centro Social Morrinhense, e que

foram dirigidas a Sobral para pressionar o bispo Dom José Tupinambá da Frota pela criação da

paróquia.

Por fim, o terceiro capítulo será encerrado com a análise da tramitação do processo de

criação do município de Morrinhos, tanto na Câmara Municipal de Santana do Acaraú, quanto

na Assembleia Legislativa do Ceará, onde o Centro Social Morrinhense elegeu o deputado

Francisco Vasconcelos de Arruda para apresentar o projeto de lei da emancipação municipal.

Também trataremos aqui das relações entre a constituição de 1946 e o Movimento

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Municipalista, buscando entender suas influências entre os intelectuais do Centro Social

Morrinhense.

Acreditamos que, a partir da análise dessas fontes e dessa organização estrutural do

trabalho, podemos compreender a historicidade do Centro Social Morrinhense e suas relações

intelectuais, políticas e identitárias com a vila de Morrinhos, possibilitando pensar como esses

intelectuais atuaram na invenção da cidade emancipada, de Morrinhos como município e como

sede de uma paróquia.

*

Para finalizar esta introdução, é preciso responder a uma pergunta: por que pesquisar,

diante de tantas dificuldades, duas categorias, uma instituição e uma cidade, Morrinhos e o

Centro Social Morrinhense, desconhecidas, esquecidas e renegadas pela historiografia?

Em O filho de mil homens, Valter Hugo Mãe conta de forma magistral a história de

Crisóstomo, um homem de quase quarenta anos que “sentia que tudo lhe faltava pela metade,

como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa

e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas”43. Um homem

que carregava silêncios e ausências. Sinto que devo à cidade onde cresci, onde vivi boa parte

da minha vida, uma contribuição, um esforço, um trabalho, um pedaço de mim. Talvez, se em

minha formação como historiador eu não estivesse pesquisado sobre Morrinhos, eu seria como

Crisóstomo. Eu seria um historiador sem metade.

Falar de minha relação com Morrinhos é uma tarefa difícil de ser descrita, mas não de

ser sentida. Ciente dos perigos da “romantização dos espaços”, posso afirmar que aquela

pequena cidade existe em mim, em todas as cidades onde estou. Ela fez parte de minha

formação, faz parte de minha subjetividade. Entendendo a prática subjetiva como uma

produção, como uma condição emergida através de instâncias individuais ou coletivas44, cada

conversa jogada fora nas caminhadas pelos paralelepípedos das ruas íngremes; o namoro

começado nos bancos de pedra da praça Edward Silveira; os passeios e sorvetes tomados no

Quadro da Rua, fazem parte do que hoje sou, de minha construção enquanto sujeito do mundo

e no mundo.

43 MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. 2ª edição. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016. p. 19. 44 Ver GUATARRI, Félix. Da produção de Subjetividade. In: Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução

de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

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Como Félix Guattari afirmou, “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a

produção de uma subjetividade que enriqueça de modo contínuo sua relação com o mundo”45.

Morrinhos, cidade onde cresci, teve um papel fundamental nessa produção e me acompanha até

hoje, se manifestando em minha escrita e pesquisa, “onde se embebe como uma esponja dessa

onda que reflui das recordações e se dilata”46. Deixo claro aqui que, embora pertença, assim

como todo historiador, a um lugar social de produção47 (a universidade), também falo a partir

de um lugar afetivo (a cidade), onde sou sujeito atuante de sua história. Sou, como um amante

das cidades, uma mistura entre Marcovaldo48 e o flâneur de Baudelaire49.

Michel Foucault entendia que o prazer de escrever está no meio, no processo, e não

exatamente no fim, no produto final da escrita. Escrevi este texto com prazer, com um sorriso

nos lábios, com o riso permanente, desconfiando das verdades tão bem construídas e

estabelecidas que encontrei em cada esquina de página de velhos documentos cheios de traça e

mofo. Tentei deixá-lo claro, cheio de saber e sabor, ao modo como entende este pobre aprendiz

de historiador, de como se deve escrever a história. Espero que desfrutem. Boa leitura!

45 Ibidem. p. 33. 46 CALVINO, Italo. Op. Cit. p. 14. 47 Sobre o lugar social de produção, ver CERTEAU, Michel. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel

de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2011. 48 Personagem principal do romance neo-realista de Italo Calvino, Marcovaldo é um operário cômico, melancólico

e sonhador, que não se adapta aos signos da vida urbana, e procura se deter aos indícios do mundo natural, do que

há de natureza no espaço da cidade. Ver: CALVINO, Italo. Marcovaldo ou As estações na cidade. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994. 49 O flâneur é, em um sentido mais objetivo, o observador da vida urbana. O sujeito que deambula pelas ruas, que

está imerso na multidão, que, mesmo fora de casa, sente-se em casa em qualquer esquina, onde quer que se

encontre. O flâneur, além de está intimamente ligado à cidade moderna, é a figura por excelência da modernidade,

que não implica somente no cultivo do presente, do novo, e na ruptura com o passado, o ultrapassado, o velho,

mas também com uma mudança drástica na forma de se relacionar com o mundo e com o espaço. Para mais

informações, ver BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1985; BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José

Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

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CAPÍTULO 1

A cidade de Morrinhos e a fundação do Centro Social Morrinhense

1.1 Entre o rio e os morros, Morrinhos: espaço, tempo e afeto.

1.1.1 Perfil urbano

A cidade de Morrinhos fica na região conhecida como Vale do Acaraú, localizada no

Noroeste Cearense, que compreende um conjunto de cidades que são banhadas pelo curso das

águas do rio de mesmo nome. O topônimo "Acaraú" é de origem tupi, decorrendo da fusão de

carás (cará) e 'hu (rio), fazendo-se conhecer, portanto, como "rio das garças"50. Sua nascente

encontra-se na Serra das Matas, no município de Monsenhor Tabosa, e deságua no Oceano

Atlântico, próximo à cidade de Acaraú. A extensão da bacia é de 14.500 km². A cidade de

Morrinhos, distante 208 km da capital do estado, Fortaleza, conta com uma área de 408,88 km²

e uma população estimada de 22.067 pessoas. A taxa de urbanização é de 46,43% e cerca de

11.088 pessoas (53,57%) residem na área rural do município. Conta com 5.346 domicílios,

sendo 2.634 na zona urbana e 2.712 na zona rural51.

Do ponto de vista da regionalização feita pelo IBGE, a cidade de Morrinhos figura na

microrregião do Litoral de Camocim e Acaraú, pertencente à mesorregião do Noroeste

Cearense. Além de Morrinhos, outros onze municípios fazem parte dessa rede urbana: Acaraú,

Barroquinha, Bela Cruz, Camocim, Chaval, Cruz, Granja, Itarema, Jijoca de Jericoacoara,

Marco e Martinópole. É preciso esclarecer que as mesorregiões e microrregiões são apenas para

fins estatísticos, agrupando municípios que possuem similaridade econômica e social. Não

constitui uma unidade administrativa ou política.

50 NAVARRO, E. A. Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. 3ª edição. São

Paulo. Global. 2005. p. 42. 51 Ver: Perfil Básico Municipal de Morrinhos 2016. Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece).

Disponível em: http://www.ipece.ce.gov.br/index.php/perfil-basico-municipal Acesso em: 07/04/2017.

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Imagem 1: Mapa de Morrinhos, enfatizando seus limites municipais, sua composição territorial e sua

localização no estado do Ceará. Fonte: Perfil Básico Municipal de Morrinhos. IPECE. Disponível em

http://www.ipece.ce.gov.br/perfil_basico_municipal/2016/Morrinhos

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Sua toponímia é proveniente da geomorfologia local, caracterizada por um relevo

repleto de depressões sertanejas e de uma extensa planície fluvial, além de ser a pluralização

do nome de uma antiga fazenda localizada onde hoje encontra-se o município: Fazenda

Morrinho. O clima predominante é o tropical quente semiárido, com uma pluviosidade

concentrada principalmente entre os meses de janeiro e maio, sendo a caatinga arbustiva a

vegetação predominante. Morrinhos possui seus limites municipais junto às cidades de Acaraú,

Amontada, Itarema, Marco, Santana do Acaraú e Senador Sá.

A indústria têxtil e a agropecuária são as principais atividades da economia local. No

entanto, os recursos da administração e dos serviços públicos são responsáveis por 56,26% do

Produto Interno Bruto do município. Morrinhos se destaca pela atividade agrícola, com a

produção de algodão herbáceo e arbóreo, milho e feijão. Produz ainda mandioca, que abastece

algumas fábricas de farinha, e castanhas de caju.

No que diz respeito à educação, seus índices apontam para uma melhoria significativa

do acesso à escolaridade, nos últimos anos, com o aumento da aprovação e diminuição do

analfabetismo. O município conta com vinte e cinco escolas municipais, três estaduais e três

particulares, além de duas bibliotecas estaduais e uma municipal. Possui uma taxa de

escolarização líquida de 83,4% no ensino fundamental e 57,2% no ensino médio, e uma taxa de

matrícula inicial de 5.643 alunos. Não há universidades na cidade, apenas cursos superiores

ofertados por instituições particulares que utilizam as dependências das escolas municipais para

suas aulas nos finais de semana. Na área de saúde, todas as unidades de atendimento do

município, que totalizam treze, estão ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) e contam com

138 profissionais, entre médicos, enfermeiros, dentistas e outros profissionais da saúde.

A cidade não possui cinemas, teatros, museus e se ressente de espaços de lazer. As

opções de diversão se resumem a conversas nas calçadas das residências, nas idas às praças,

aos bares, restaurantes ou lanchonetes, e outros lugares similares. As celebrações religiosas,

notadamente dominicais, são concorridas. Há também uma singularidade: os passeios noturnos

pelas ruas da cidade, de motocicleta, de carro ou a pé. Como se trata de uma área urbana

pequena, é possível percorrê-la por inteiro em poucos minutos. Observa-se assim um grande

número de pessoas, especialmente jovens e casais, que experimentam a cidade desta forma,

dando voltas em torno dela, percorrendo suas ruas.

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De acordo com o urbanista Kevin Lynch, Morrinhos pode ser classificada como uma

cidade orgânica52. Lynch afirma que as cidades orgânicas são marcadas pela imprevisibilidade

e a espontaneidade em sua formação, adaptando-se ao terreno na qual está inserida, crescendo

de maneira não planejada e negociando sua existência com a vida humana. Constantemente

muda seus traçados por conta de um rio, é cortada por morros e suas ruas organizam-se de forma

espontânea para atender às necessidades cotidianas daqueles que nela vivem.

Mas será que essa breve descrição que acabamos de fazer, de pontos superficiais sobre

a cidade e dados de seu perfil urbano atual, é suficiente para explicar Morrinhos? Acreditamos

que não.

1.1.2 Entre a carne e a pedra, o corpo da cidade: um aprendiz de historiador

experimentando as madeleines de Proust

Mas, quando nada subsistisse de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois

da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivazes, mais imateriais,

mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo,

como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais,

levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso

edifício das recordações.53

Em As Cidades Invisíveis, após o pôr do sol nas imediações do palácio real, Marco Polo

relatava ao Grande Khan tudo sobre suas viagens pelas cidades do extenso império, resultado

de suas missões diplomáticas. O horário não era coincidência: o soberano, de tanto saborear as

narrativas do viajante, acabava perdendo-se no sono e se rendia aos sonhos. Porém, em certa

ocasião, Kublai Khan não cedera à fadiga e continuava a ouvir Marco Polo, que parecia cansado

de tanto imaginar e narrar:

- Fale-me de outra cidade – insistia.

- ... O viajante põe-se a caminho e cavalga por três jornadas entre o vento nordeste e

o noroeste... – prosseguia Marco, e relatava nomes e costumes e comércios de um

grande número de terras. Podia-se dizer que o seu repertório era inexaurível, mas desta

vez foi ele quem se rendeu. Ao amanhecer, disse: - Sire, já falei de todas as cidades

que conheço.

- Resta apenas uma que você jamais menciona.

Marco Polo abaixou a cabeça.

- Veneza – disse o Khan.

Marco sorriu.

52 Sobre as categorias usadas por Lynch para as classificar as cidades, ver LYNCH, Kevin. A imagem da cidade.

São Paulo: Martins Fontes, 1994. 53 PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Volume 1: No caminho de Swann. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2016, p. 56.

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- E de que outra cidade imagina que eu estava falando?

O imperador não se afetou.

- No entanto, você nunca citou o seu nome.

E Polo:

- Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.

- Quando pergunto das outras cidades, quero que me fale a respeito delas. E de Veneza

quando pergunto a respeito de Veneza.

- Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que

permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.

- Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida,

descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações

que você tem dela.

- As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se – disse Polo –

Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela.

Ou pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco.54

Correndo o mesmo risco que correu Marco Polo, de perder minha cidade no gesto

mesmo de narrá-la, neste tópico desejo falar um pouco mais demoradamente sobre o corpo da

cidade de Morrinhos. O corpo que é visto por quem chega, o corpo que possui sabores, que

possui cheiros, que possui curvas e que emite sons. Pensando desta forma, farei aqui uma

descrição um pouco mais densa das muitas paisagens que compõem a cidade de Morrinhos, a

partir da experiência afetiva de quem é dela filho e habitante, da experimentação de seus

espaços. É preciso deixar claro aqui que não se trata de descrever Morrinhos em sua totalidade,

pois não se vive em uma cidade inteira. As vivências e as memórias estão situadas em lugares

específicos da cidade, em territórios singulares, embora eu deseje oferecer ao leitor um

entendimento mínimo da totalidade de seu espaço.

Meu texto, especificamente neste tópico, será uma descrição motivada pela minha

experiência afetiva com Morrinhos, pela minha forma de ver, sentir e ouvir a cidade, deslizando

meu olhar entre o lugar e a metáfora. Embora Marco Polo tenha receio de falar de Veneza, com

medo de perdê-la, eu estou aqui para fixar com palavras as bordas de minha memória afetiva

sobre a cidade. Escrevo neste momento sobre Morrinhos para poder deixá-la. E adianto que isto

não é tarefa fácil.

A cidade, enquanto um conceito e uma categoria de explicação, não pode ser apreendida

apenas em suas dimensões política, econômica e social. A cidade é hoje o grande palco da vida

humana. A cidade reserva uma riquíssima possibilidade de compreensão das produções de

subjetividades e das experiências mais íntimas entre sujeitos e espaços. A cidade é corpo, e, em

54 CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 82.

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um determinado momento, foi pensada enquanto um corpo55. A cidade é o espaço da carne e

da pedra56. O arquiteto Joseph Rykwert já alertava para a ausência do toque, do cheiro e do que

ele chamou de “revelações da cidade” nas análises de urbanistas, sociólogos, historiadores e

demais profissionais que se aventuraram a esboçar uma análise dos espaços urbanos57. A cidade

precisa ser refletida e construída na análise do historiador levando-se em consideração essas

“revelações da cidade”, como o espaço onde as pessoas se movem, se veem, se tocam, sentem

aromas e cheiros diversos, dos agradáveis aos desagradáveis, onde manifestam seus hábitos,

seus amores, suas dores, seus medos e angústias. Onde sonham.

*

Durante mais de uma década, pelo menos uma vez por ano, eu costumava subir o Serrote

do Cafim com meu pai. Era, já naquele tempo, um caminho difícil de ser praticado. Íamos de

moto até a altura de uma casinha que ficava no pé do morro, e de lá seguíamos a pé, castigando

a sola das sandálias com um caminhar nada agradável. No meio do caminho, sempre me

espetava nos espinhos do mandacaru ou temia pelo aparecimento repentino de um enxame de

abelhas, o que me deixava sempre em alerta e aterrorizado. Meu pai parecia não se importar, só

assoviava uma música de Renato e Seus Blue Caps e continuava caminhando. Parávamos de

conversar sempre quando a subida se tornava mais íngreme e era preciso respirar um pouco

mais. O assovio do meu pai dava lugar ao silvo fino do vento, que se fazia mais forte e intenso

à medida que encarávamos a ladeira pedregosa. Mas para onde estávamos indo e por quê?

Do alto do Serrote do Cafim, uma elevação de 110 metros, considerado o cartão postal

da cidade de Morrinhos, que contribuiu inclusive para seu nome, é possível ver uma forma

urbana que parece dormir, deitada de lado, quase de bruços, na encosta do Morro da Boa Vista.

55 Essa relação entre corpo e espaço, especificamente entre cidade e corpo, é nítida na obra do filósofo João de

Salisbury, parisiense, que no século XVIII publicou um estudo voltado para uma proposta hierarquizada e

funcionalista da cidade. Para ele, o governante era o cérebro; seus conselheiros seriam o coração da cidade; os

comerciantes como o estômago; os soldados seriam as mãos e os trabalhadores os pés. Sobre isso ver BARROS,

José D’Assunção. Cidade e História. 2ª edição. Petrópolis. Editora Vozes, 2012. p. 29-36. 56 Sobre a relação entre corpo e cidade, ver SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização

ocidental. Tradução de Marcos Aarão Reis. 3ª ed., Rio de Janeiro, Record, 2003. 57 Rykwert, embora reconhecendo que pudesse sucumbir a uma superficialidade na análise, tentou pensar a cidade

a partir de como ela se apresenta aos nossos sentidos, procurando perceber o que a ela pode revelar ou esconder,

o que ele chamou de “revelações da cidade”. Para mais informações, ver RYKWERT, Joseph. A sedução do

lugar: a história e o futuro da cidade, São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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Vislumbrá-la aí de cima é, sobretudo, lançar-lhe um olhar desembaraçado. É tentar vê-la por

completo, ver todo o seu corpo, suas curvas, suas belezas e seus defeitos.

Vista de longe, suas ruas parecem retalhos de tapetes, desses que colocamos em nossa

sala de estar, para receber as visitas e fingir harmonia. Mas esses retalhos não parecem

arrumados. Sobem e descem, configuram-se em caminhos tortuosos, em ladeiras e subidas

íngremes. Em alguns pontos, parece um tapete velho, rasgado, desbotado. Os carros e as motos

que circulam na cidade, parecem pequenos grãos de poeira, que se movimentam pelo tapete

quando alguém deixa a persiana da janela semiaberta e o vento entra sem avisar.

Do alto do Serrote do Cafim, é possível observar os principais pontos da cidade: os

pequenos morros (morrinhos) que a cercam, suas praças, suas muitas torres de comunicação, o

Rio Acaraú que banha os seus subúrbios, a igreja matriz, suas casas maiores e mais altas, suas

ruas e as duas principais vias de acesso à cidade. É possível perceber que Morrinhos é uma

cidade acanhada, angulosa, cheia de reentrâncias, de altos e baixos. Mas quem desejar

compreendê-la melhor, apenas a observando aqui de cima, não conseguirá, afinal, “a cidade

não se revela em todos os seus segredos, por mais atento que seja o olhar de quem a observa.

Ela é uma invenção humana, resultado de inúmeras aventuras, territórios das múltiplas

travessias da cultura”58. É preciso descer e impregnar-se da cidade, é preciso embrenhar-se em

e embeber-se de Morrinhos.

Quando começava a anoitecer e as primeiras luzes da cidade eram acesas, nós descíamos

com cuidado e, vez por outra, escorregávamos nas pedras e mais uma vez eu me espetava nos

espinhos do mandacaru. Depois de alguns anos, meu pai não aguentou mais subir. O tempo já

havia dito para suas finas pernas e seus pés pequenos, que aquela viagem se tornaria impossível.

Nunca mais praticamos aquele lugar, e ele logo se tornou um espaço cada vez mais ausente em

nossas lembranças.

Em As Cidades Invisíveis, o viajante veneziano Marco Polo afirma que há duas maneiras

de se chegar em Despina: de navio ou de camelo, e essa “cidade se apresenta de forma diferente,

para quem chega por terra ou por mar”59. No Recife de Gilberto Freyre, de acordo com seu

Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, a cidade também se apresenta de

58 REZENDE, Antonio Paulo de Morais. As múltiplas cidades de Calvino e Freyre. In: FREYRE, Gilberto. Guia

prático, histórico e sentimental da cidade do Recife. 5ª edição. São Paulo: Global, 2007. p. 11. 59 CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 21.

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forma diferente ao viajante que lá chega, por mar, trem ou avião, mas “a nenhum, porém, a

cidade se entrega imediatamente”60. Em Morrinhos não é diferente.

Costuma-se dizer por aqui que há duas possibilidades de se chegar em Morrinhos: pelo

sertão ou pelo litoral. “Sertão” e “litoral”, duas categorias espaciais que serviram para pensar o

espaço do que viria a ser o Brasil, desde a carta de Caminha. Essa dualidade espacial,

sertão/litoral, permeou e foi parte constitutiva do imaginário social61 sobre o Brasil e as cidades

brasileiras62. Mas, no caso de Morrinhos, emprega-se essa divisão por conta de uma

particularidade em sua paisagem: se se chega à cidade pela Avenida Alcides Rocha, diz-se que

se chegou pela passagem do “sertão”, porque aí a caatinga é implacável e as carnaubeiras

desfilam sua tristeza à beira das estradas. Já na Avenida Coração de Maria, o caminho do

“litoral”, nota-se um grande número de cajueiros e uma vegetação mais esverdeada, o que

contrasta com a sequidão amarronzada do outro lado. São duas avenidas largas, cortadas ao

meio por rodovias estaduais, as CE-178 e 179.

Ambas as avenidas se encontram no “Triângulo de Morrinhos”, que simboliza a divisão

entre dois bairros, o Centro e São Luís. É também o início de uma das principais e maiores ruas

da cidade: Rua Joaquim Coriolano da Rocha. Esta rua, outrora conhecida por Rua da Piçarra,

por conta do acúmulo de barro vermelho em seu solo, ou Rua do Comércio, pelo fato de abrigar

diversas lojas e o mercado público da cidade, ainda hoje, possui o maior número de pontos

comerciais da cidade, localizados em um mesmo lugar. As residências, geralmente construídas

no andar superior das lojas, são uma pequena minoria. São mercadinhos, depósitos de bebidas,

lojas de roupas e sapatos, oficinas, lanchonetes, pontos de venda de rações e medicamentos para

animais, frigoríficos, colégios, restaurantes, delegacia, uma lotérica, uma agência bancária e o

Mercado Público.

A rua também compreende, dentro de seus limites, a Praça Edward Silveira. Foi nessa

praça que tive o primeiro contato, ou pelo menos que consigo lembrar, com um monumento

edificado em memória a alguém: o busto do ex-prefeito Edward Silveira, que cometeu suicídio

na década de 1980. Edward foi membro da Elite Morrinhense e escreveu vários artigos para o

60 FREYRE, Gilberto. Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife. 5ª edição. São Paulo: Global,

2007. p. 23. 61 O historiador Bronislaw Baczko afirma que o termo “imaginário social” se configura como um conjunto de

imagens, de sentidos, de estratégias de evocação, de ideias e representações coletivas fundamentadas socialmente

e localizadas historicamente. Sobre o conceito de imaginário social, ver BACZKO, Bronislaw. Imaginação social.

In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Antropos, 1985. 62 Sobre essa discussão, ver PEIXOTO, Fernanda Arêas. As cidades nas narrativas sobre o Brasil. In: FRÚGOLI

JÚNIOR, Heitor; ANDRADE, Luciana Teixeira de; PEIXOTO, Fernanda Âreas (orgs). As cidades e seus

agentes: práticas e representações. Belo Horizonte: PUC Minas/Edusp, 2006, p. 177-198.

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jornal Voz de Morrinhos durante a década de 1950. Quando criança, enquanto minha mãe

cuidava do restaurante e servia carne de sol às mesas de pessoas famintas, eu brincava na praça

e sentava nos ombros do busto de Edward, e não fazia ideia de quem era ou o que aquilo

representava. Mas eu achava feio e mal feito.

Foi também nessa praça, perto da meia noite, em um banco de pedra frio e úmido, que,

com o coração acelerado e um Trident desgastado e já sem açúcar na boca, observado por um

homem visivelmente bêbado, que eu beijei uma garota pela primeira vez. Isso aconteceu em

setembro de 2008, vésperas de uma intensa disputa eleitoral para eleger o novo prefeito

municipal. A garota é a mulher que está ao meu lado agora, enquanto escrevo este texto, em

uma tarde outonal, quente e ventosa de domingo em Morrinhos.

Era na Rua Joaquim Coriolano Rocha, precisamente ao lado da Praça Edward Silveira,

que, por volta das 04:30 da manhã, quando comecei a estudar em Sobral, eu esperava o ônibus

passar e me levar para uma cidade que não era minha. Nesse horário da manhã, eu conseguia

ver Morrinhos em preto e branco, entre o término da madrugada e o ainda tímido despertar da

manhã. No inverno, quando estava frio, a neblina me fazia companhia enquanto esperava a

Carolina, o ônibus que rasgava a fumaça trêmula com seus faróis amarelados.

Enquanto o ônibus percorria as ruas da cidade, buscando os outros alunos em suas

residências, eu a observava enquanto seu corpo descansava e ela ainda dormia e relutava em

acordar. Sentia, nessa hora, uma profunda melancolia. Observava as casas com portas e janelas

fechadas e ficava imaginando o que as pessoas estariam fazendo lá dentro naquele momento.

Minha divagação só era interrompida quando sentia o cheiro do pão quente saindo das padarias,

ou quando via os açougueiros espantando, com o balançar dos facões, os cachorros que faziam

filas nos frigoríficos à espera do que restava da carne. Enquanto isso, a Carolina, guiada pelo

motorista Sr. Raimundo, me levava para uma cidade que eu desconhecia em grande parte.

Porém, mal sabia eu que, em pouco tempo, também estaria apaixonado pela Princesa do Norte

e faria morada em seu corpo quente.

Por conta dessa diversidade de lugares, ao longo de 750 metros, a rua Joaquim Coriolano

Rocha possui uma paisagem olfativa e sonora bem peculiares. Quando era criança, ao ir para a

escola, eu sempre a evitava, talvez justamente por conta dessa profusão de diversos cheiros,

que me deixava enjoado. O monóxido de carbono expelido pelo escapamento barulhento dos

velhos automóveis Chevrolet abarrotados de pessoas da zona rural, notadamente pela manhã,

misturava-se com o cheiro do óleo quente que fritava os pastéis e as coxinhas nas lanchonetes,

e com o odor forte do ferro presente no sangue do gado ou do porco morto na madrugada, que

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acabou deslizando pela beira da calçada e coagulou. Minha mãe também a evitava, mas por

outras razões, especialmente por seu trânsito caótico.

Naquela rua, eu sentia e ouvia de tudo. Ouvia o grito de crianças, o apelo dos vendedores

ambulantes para que as pessoas comprassem seus produtos, a buzina dos chamados “carros de

horário”, alertando que já estavam partindo, a maioria para os distritos rurais da cidade, como

Sítio Alegre e Espinhos dos Lopes. Eu observava filas e mais filas de pessoas, que se protegiam

do sol como podiam, cobrindo seus rostos com pastas já completamente amassadas de tanto se

abanarem, feitas de papelão colorido. Elas esperavam, geralmente, do lado de fora da agência

bancária e da lotérica, pois não havia mais espaços em seus interiores entupidos de gente. Na

beira das calçadas, estacionavam-se motos, bicicletas e carros no meio-fio, o lugar por

excelência da divisão e hierarquização da rua e da calçada; do espaço das pessoas e dos

automóveis.

Em Morrinhos, as calçadas se constituem numa extensão das casas. Algumas inclusive

são personalizadas, com o mesmo piso do interior das residências, como azulejos com detalhes

em alto relevo, cerâmicas lisas ou somente o cimento grosso. Caminhar em Morrinhos pode

parecer, em um determinado momento, algo dificultoso e, sem o devido cuidado, pode se tornar

doloroso. As calçadas não são bem arranjadas, algumas com batentes enormes e altos. Outras

estão parcialmente destruídas, com buracos e rachaduras.

Morrinhos também não possui semáforos e nenhuma orientação sistematizada para o

trânsito, nem mesmo fiscalização, tornando-o confuso e marcado pela imprudência dos

motoristas. Não há quebra-molas, nem “tartarugas”, ou qualquer outro tipo de redutor de

velocidade. A maioria de suas vias hoje estão asfaltadas, com exceção do Quadro da Rua que

possui ruas calçadas de blocos de paralelepípedos, e nos bairros mais afastados do centro da

cidade, estes com calçamentos de pedras irregulares, disformes e pontiagudas, que dividem seu

espaço com a areia.

No Bairro do Centro é onde se localiza o espaço mais emblemático da cidade: o Quadro

da Rua, um quadrilátero formado pelas ruas Abdoral Rocha, José Ibiapina Rocha, Monsenhor

Ataíde e Padre João Batista. Foi esse quadrilátero o primeiro traçado da cidade e foi a partir

dele que ela cresceu. É um espaço emblemático por conta da religiosidade, manifestada pela

presença da Igreja Matriz e das missas campais que são realizadas aos finais de semana. Espaço

emblemático pelo valor altíssimo dos imóveis existentes em suas ruas, geralmente pertencentes

as famílias mais antigas, que ocuparam aquele espaço quando Morrinhos ainda possuía

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paisagem de fazenda. Espaço emblemático por abrigar, no ponto mais elevado do antigo “Alto

da Totonha”, a sede da Prefeitura Municipal, da Câmara Municipal e do Fórum Municipal.

A colocação dos três poderes municipais (Executivo, Legislativo e Judiciário) no

Quadro da Rua e no topo de uma elevação, não foi um ato sem racionalidade, não foi ingênuo.

Visualizar a cidade de cima, significa lançar sobre ela um olhar que possa ir o mais longe

possível, um olhar panóptico que pretenda abarcar uma boa parte de seu espaço. Um olhar

vigilante, fiscalizador, amedrontador. Ao mesmo tempo em que faz da localização um espaço

de distinção, tomando para si uma posição privilegiada nas relações de poder no espaço da

cidade.

No centro do Quadro da Rua está localizada a principal praça de Morrinhos: Praça

Coração de Maria, mais conhecida como Praça da Matriz, que também parece representar, para

muitos, o coração da cidade. Como todas as outras praças, é um quadrilátero arborizado, com

canteiros regados e cheios de roseiras, além de possuir palmeiras em algumas extremidades.

Outrora, a praça abrigava uma grande quantidade de girassóis, que desapareceram nas últimas

reformas que a praça sofreu63.

Antes mesmo de conhecer Marcovaldo, suas aventuras e seu olhar pouco afeito às

paisagens da cidade, eu muitas vezes deitei no banco de pedra dessa praça, ainda frio e úmido

pelo orvalho caído na noite anterior. Fazia isso cedinho, enquanto minha mãe, dentro de um

Volkswagem usado, ia comprar pão na Padaria do Jerônimo. Eu fechava os olhos e conseguia

ouvir não o canto dos rouxinóis, como o sonhador Marcovaldo, mas o som dos pardais que

pulavam de galho em galho. Ouvia o barulho da moto do padeiro, que seguia entregando suas

cestas de pães nas bodegas e comércios menores do bairro. Ouvia o apito ou sentia o cheiro do

cigarro, feito do fumo Maratá, do Raimundo, um desses “tipos populares”64, que vagava durante

a noite inteira pelas ruas desertas, até o amanhecer. Ouvia o barulho das patas de jumentos

exaustos, misturados com o arrastar do pneu da carroça nas ruas de pedra, trazendo um homem

impaciente, de chicote na mão, com grandes baldes de alumínio cheios de leite mungido, para

abastecer os vários pontos de venda espalhados por toda cidade.

Se uma pessoa estiver neste mesmo lugar, assim como eu, mas ao final da tarde, terá

uma percepção sensorial diferente. Os sons que eu ouvia pela manhã serão substituídos

principalmente pelo barulho do sino da igreja, que badala insistentemente chamando os fiéis

para mais um encontro com o corpo e sangue do bom Jesus, notadamente para aqueles que

63 Neste momento, todas as praças da cidade estão passando por grandes reformas. 64 Sobre os tipos populares, ver FREYRE, Gilberto. Op. Cit. 2007, p. 55-57.

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podem experimentá-lo. O movimento do padeiro e do leiteiro darão lugar a uma grande

procissão de homens, mulheres e crianças, estas últimas manifestando como protesto por sair

de casa, um choro agudo. É possível observar um grande número de pessoas que seguem

carregando suas cadeiras de plástico em direção à igreja, murmurando entre os passos, uma

prece silenciosa, enquanto agarram-se aos terços de madeira escorridos pelos braços. Ao cair

da noite, os cheiros que eu havia sentido, do pão quente e do leite recém colhido de uma vaca

gorda de tetas enormes, são substituídos pelo forte incenso saído de um turíbulo em chamas,

manuseando pelas mãos de um pároco quase invisível em meio a fumaça da queima da resina.

Próximo à igreja, no início da Rua Nossa Senhora de Fátima, está localizado o maior

número de bares da cidade, muito provavelmente para desgosto da santa que ofereceu seu nome

à rua. Minha mãe, entre 1986 e 2008, possuía uma lojinha de roupas nessa rua, vizinho a um

antigo ponto onde minha avó mantinha uma bodega e vendia, principalmente, gêneros

alimentícios, antes do câncer a levar embora no final dos anos 1990. Aos domingos pela manhã,

eu costumava sair de casa e ir para a loja da minha mãe. Sentava próximo à porta e observava

o movimento da rua, enquanto a Auri, amiga da minha mãe, coçava minhas costas depois de eu

muito implorar.

O início dessa rua não é plano, tem a forma de um V, com uma ladeira e uma subida. A

paisagem sonora e olfativa muda radicalmente daquela que eu experimentava no Quadro da

Rua, embora estivessem muito próximos. O clamor dos fiéis e a Ave Maria em uníssono davam

lugar ao lamento de bêbados, com hálitos fétidos da mistura de cachaça com limão, que

reclamavam veementemente da mulher que ficou em casa e da grande quantidade de filhos que

precisavam comer todos os dias. Alguns não aguentavam e desabavam na beira das calçadas,

em frente aos bares do Nicolau e do Antônio Célio. Dormiam como se estivessem em casa,

embora seja de lá que a maioria estava fugindo. Eu observava tudo isso ao som melancólico do

dueto de Leno e Lílian, da voz chorosa de Amado Batista, ou do vozear grave e possante de

Nelson Gonçalves. Tudo isso vindo de uma caixa de som no porta-malas de um velho Fiat Uno

mal estacionado.

Walter Benjamin, ao dedicar um texto sobre sua infância em Berlim por volta de 1900

ao filho Stefan, afirmou que “saber orientar-se em uma cidade não significa muito. No entanto,

perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução”65. Benjamin

toca em um ponto importante: o aprendizado da cidade pelos sujeitos que nela vivem. Meu

65 BENJAMIN, Walter. A infância em Berlim por volta de 1900. In: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense,

1987. p. 73.

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aprendizado de Morrinhos foi juvenil, onde eu partia dessa rua para explorar a cidade. Não ia

muito longe é verdade, mas andava por todo o bairro.

Naquela rua eu jogava bila e bola, e, sentado na janela da vizinha Dona Jovem, eu

debulhava feijões enquanto assistia atrações em uma TV antiga, com imagem em preto e

branco. Naquela rua eu tive a primeira impressão do contraste entre o lugar da tradição e do

moderno, do campo e da cidade66, quando minha mãe estacionou o Del Rey azul ao lado de

uma carroça puxada por um burro visivelmente cansado. Ainda hoje, em uma cidade onde os

limites do rural e do urbano se confundem, possuindo fronteiras imprecisas, é uma situação

comum de se ver quando se percorre suas ruas.

A rua, como lembrou João do Rio, possui uma alma. Nasce, assim como o homem, de

um soluço, um espasmo. “Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se

ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros,

ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopeia tão triste que

pelo ar parece um arquejante soluço”67. Eu solucei e derramei muito suor e lágrimas nessa rua,

correndo, caindo e ralando meus joelhos e cotovelos em suas pedras pouco polidas.

A Rua Nossa Senhora de Fátima corta três bairros de Morrinhos: Começa no Centro,

passa pelo Cruzeiro e termina no Bairro São José. Nunca morei no Cruzeiro, mas me afeiçoei

muito àquele bairro, principalmente por conta de sua praça, que leva o mesmo nome. A Praça

do Cruzeiro é a segunda mais antiga da cidade, atrás apenas da Praça da Matriz. Possui este

nome por conta de um enorme cruzeiro feito de aroeira retirada da Serra do Mucuripe e

trabalhada por Raimundo Nonato Silveira, conhecido popularmente por Doca Silveira, o

principal marceneiro da vila. Foi fincado ali em 1938, por ocasião das celebrações das primeiras

Santas Missões na pequena localidade, por dois frades capuchinhos. Lembro que à tardinha,

quando eu ainda era muito novo, uma mulher que até hoje é muito próxima da minha família,

Maria Perbeniza, me levava para dar voltas na praça, com minha bicicleta adaptada com

rodinhas. Na volta para casa, eu passava com ela na Bombonière do Betão e enchia os bolsos

do jeans levemente rasgado de doces. Minha mãe enlouquecia.

Próximo à Praça do Cruzeiro existe um lugar, além da famosa “Caixa d’Água”, que

atiçava e convivia intimamente com as fantasias eróticas dos rapazes do meu tempo: o Beco da

Calcinha. Na escola, durante o recreio, ele era sempre assunto nas rodas de conversa. Ir ao Beco

66 Sobre campo/cidade e suas relações, ver WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura.

Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 67 DO RIO, João. A Alma Encantadora das Ruas. Companhia das Letras, São Paulo, 1997.

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da Calcinha acompanhado de alguém era sinal de “ser adulto”, de provar sabores que, para os

rapazes da nossa idade, não era permitido. Certo dia, já tomado por curiosidade e a excitação,

eu resolvi visitar aquele tão falado lugar. Eu era extremamente tímido e convidar uma garota

para ir lá comigo estava fora de questão. Fui sozinho, pedalando nervosamente minha bicicleta

Caloi verde de sete marchas e, logo na curva de entrada, bati o pneu na quina da calçada e caí

quebrando meus óculos, rolando para dentro do beco. Perto de onde esbarrei, avistei com

dificuldade, lutando contra uma miopia teimosa, uma embalagem que possuía um formato

muito estranho, que parecia uma bexiga murcha. Mais tarde fui saber que aquilo era uma prova,

a evidência do gostoso pecado da carne. Nunca mais voltei lá.

Minha primeira casa foi no bairro São José e eu a adorava. Era grande e lá cabia todos

os meus sonhos. Havia uma garagem na frente e um extenso quintal ao fundo, divido entre dois

muros, com um alto coqueiro e onde criávamos dois cachorros. Eu só ia até a primeira divisão,

pois minha mãe não deixava que eu fosse além, e a porta estava sempre trancada. Mas sei que

na outra parte havia muito mato, era um terreno selvagem, irregular, disforme. De lá eu só

conhecia, de vista, uma bananeira e um pé de pinha.

Lembro que na sala havia uma pequena área coberta com pedras cimentadas na parede,

onde era possível ver o céu entre as vigas. Meu pai, à noite, sempre depois do jantar, me levava

para lá e atava uma rede tucum verde e me fazia dormir, cantando músicas do Roberto Carlos,

especialmente Calhambeque e Obsessão. Em determinada ocasião, onde eu já estava entre o

sono e o sonho, ele me mostrou entre as pedras e as vigas, apontando para o céu escuro, a

constelação de Órion, me ensinando o nome das estrelas que dela fazem parte.

Vivi naquela casa durante dez anos, entre 1992 e 2002. Em 1999 minha mãe abriu um

restaurante no Centro e, como morávamos relativamente distante, tivemos de nos mudar. Não

queria aceitar de forma alguma, pois adorava aquela casa e aquele bairro. Minha mãe acabou

vendendo o imóvel para um senhor chamado Elias, que vende peixe na cidade e ele tratou de

fazer uma grande reforma na casa. Aquilo me deixou triste, pois não a reconhecia mais como

minha, como uma extensão do meu corpo, como um lugar da minha segurança, do meu refúgio.

Não é mera coincidência a psicologia freudiana associar a casa à figura materna, da mulher, do

útero. Tudo aquilo que acontece dentro da casa, acontece também dentro de nós. A gente habita

a casa para depois habitar o mundo.

Próximo à nossa casa, havia um grande terreno onde hoje se localiza a Praça Eduardo

Davi, mais conhecida por Praça São José. Essa praça, quando eu morava no Bairro São José,

não existia, e foi construída depois que me mudei. Era apenas uma grande área quadrada,

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coberta de mato, com um caminho muito pequeno que serpenteava no meio das urtigas. Eu o

praticava quase todos os dias, saindo de casa em direção à Locadora do Deon, depois de ter

feito os deveres da escola, onde jogava videogame até minha mãe sentir minha falta. Também

era ali que, nos meus tempos de bom cristão, eu frequentava o catecismo. Fazíamos círculos e

fingíamos aprender os sacramentos, quando na verdade passávamos o tempo quase todo

flertando com as garotas. O “sagrado” e o “profano” sempre caminharam juntos.

Quando se aproximava do Natal, o parque de diversões chegava à cidade, juntamente

com inúmeras barracas que vendiam desde lanches suculentos até panelas de pressão e mídias

piratas. Durante a véspera de Natal, uma grande quantidade de pessoas vinha de todas as

localidades e as principais ruas eram interditadas para que os veículos não trafegassem. Era

nessa área da inexistente praça onde eles instalavam os brinquedos do parque, depois de

solicitar à prefeitura uma limpeza mínima naquele espaço, para a retirada do excesso de mato.

O circo também chegava e arrancava risos das pessoas enquanto desfilava suas atrações pelas

ruas da cidade. Da minha janela, eu via o movimento da rua e observava a montagem da roda

gigante, do autopista, do minhocão, da barraca de tiros e da lona laranja do circo sendo erguida.

À noite eu comia algodão doce, me divertia com os palhaços e observava a cidade e suas luzes

do alto da roda gigante, como quem admira o céu noturno no verão.

Nos dias de folga, meu pai me colocava na garupa de uma moto que era bem maior que

ele, e me levava ao Bairro Areal, através da extensa Rua Nossa Senhora de Fátima, que cruza

o Bairro São José e se encontra com a Estrada Curralinhos. Eu ficava impressionado de como

a paisagem visual e olfativa da cidade mudava drasticamente de um bairro para o outro.

A rua do bairro onde eu morava, que misturava pedra com asfalto, dava lugar a uma

estrada carroçável, pedregosa e poeirenta. As casas eram substituídas por carnaubeiras enormes

e algumas pequenas fazendas com suas plantações de milho e suas cercas de arame. As pessoas

conversando na calçada, jogando dominó ou baralho na praça, desapareciam. Ao invés delas,

apenas algumas vacas e bois pastando e comendo capim seco à beira de pequenos fluxos de

água. O cheiro do churrasco de calabresa do Tenente e do doce de leite fervendo da Dona

Jovem, eram substituídos por um odor forte de fezes, fétidas e frescas, que os animais deixavam

pelo caminho. Meu pai me levava até o Poço da Cabrita, onde me falava sobre o mundo,

enquanto jogávamos pedras na água fazendo-as pular até se afogarem. Hoje, a paisagem

continua mudando drasticamente, mas o Poço da Cabrita já não existe mais. É apenas saudade

e terra rachada.

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Alguns anos depois da mudança para o Centro, meus pais se separaram definitivamente,

e tive que viver numa casa incompleta, mas que agora contava com a presença da minha irmã

mais nova. Essa mudança fez com que eu me aproximasse um pouco mais de um bairro que foi

profundamente estigmatizado na cidade: o Bairro São Luís, que até pouco tempo era mais

conhecido por Bairro da Brasília, embora estivesse longe de ser planejado, ou “favela”, muito

pelo aspecto de suas casas e de suas ruas. Eu o visitava quando ia cortar o cabelo na casa da

Dona Neide, ou aos domingos de tardezinha, quando assistia as partidas de futebol amador no

Campo da Brasília.

É um bairro de ruas escuras, de caminhos tortuosos. Até pouco tempo, a grande maioria

de suas casas eram de taipas, feitas com barro e amparadas por troncos de carnaubeiras. Porém,

a sua fisionomia vem mudando drasticamente durante os últimos dez anos. O governo

municipal vem investindo em projetos para melhorar a qualidade das residências, construindo

pequenos conjuntos habitacionais. Vem melhorando também a qualidade das ruas do bairro,

que antes eram apenas caminhos de terra e poeira, e hoje a maioria já estão calçamentadas. A

energia elétrica, que antes se limitava à Rua José Ibiapina Rocha, agora contempla todo o bairro.

Porém, não poderia falar de Morrinhos sem mencionar um lugar bastante especial: o Rio

Acaraú. Não se pode falar de Morrinhos sem falar do rio. Não se pode conhecer Morrinhos sem

visitar o rio. A cidade e as pessoas que nela residem necessitam dele para viverem. As minhas

primeiras experiências com o “rio das garças” não foram através de meus pais, e sim da amiga

Perbeniza, que me levava sempre para passear pela cidade, e no roteiro o rio estava incluso. Na

ausência de meus pais, eu ia com ela e sua família ao rio, vestindo minha apertada sunga azul

com listras verdes.

Aqui parece que a cidade vive um tempo diferente. Não o tempo da aceleração, da pressa

das pessoas ao telefone, dos automóveis, do relógio analógico que parece deslizar seus

ponteiros mais rapidamente. Perto do rio, parece que a cidade, que se banha em suas margens,

se dá ao luxo de deitar e descansar. É um tempo lento, arrastado, vagaroso, moroso. É o tempo

do pescador, que espera pacientemente o peixe morder a isca bem colocada no anzol e fazer

balançar a vara. Daquele que não busca o peixe grande, mas joga a tarrafa na água à procura

das pequenas piabas. É o tempo do agricultor, que mobiliza sua enxada cavando pequenos

buracos para plantar o feijão em sua vazante. É o tempo da lavadeira, que se aproxima do rio

com uma enorme trouxa equilibrada na cabeça, puxando dois ou três filhos pequenos vestidos

com retalhos de vestes remendadas e surradas, para ajudá-la a bater as roupas contra as pedras

sujas de lodo e sabão.

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Eu observava tudo isso enquanto enterrava meus pés na areia, já com as pontas dos

dedos enrugadas de tanto tomar banho. Quando olhava em minha volta, tinha a certeza de que

o rio aqui era mais azul. Era mais vivo do que quando eu o admirava de longe, de cima do “Alto

da Prefeitura” ou do Serrote do Cafim. Mas eu tinha medo de sua correnteza, da forma como

ela levava as flores, de como tragava os peixes que tentavam nadar contra seu fluxo e de como

arrastava os pequenos pedaços de troncos das árvores que se desprendiam dos barrancos. Tinha

medo da correnteza levar meus sonhos de garoto direto para o mar.

Enquanto escrevia este texto, resolvi novamente subir ao topo do Serrote do Cafim, para

ver as mudanças no corpo de Morrinhos lá de cima. O caminho de subida mudou bastante: a

metade do percurso agora é calçamentado, e várias outras antenas de TV e telefonia móvel

foram colocadas no local. Desta vez, não me furei com os espinhos de mandacaru. A paisagem

da cidade, porém, parece não ter mudado muito quando vista aqui de cima. Continua com seu

corpo anguloso, cheio de curvas e reentrâncias, deitada de lado, quase de bruços, enquanto

observa o rio que beija sua cintura. O rio, embora parcialmente seco por conta da escassez de

chuvas dos últimos anos, ainda banha as margens da cidade que não deixa de viver sem ele.

Porém, parece que agora, a já mais velha Morrinhos se espreguiçou e estendeu seus

braços e suas pernas. É possível notar o crescimento dos bairros mais extremos, São Luís e

Areal, com seus novos conjuntos habitacionais e suas novas ruas. As pequenas casas, a grande

maioria com apenas o térreo, que observávamos lá de cima, agora ganharam novos andares,

ficaram mais altas. As ruas, antes cinzentas por conta das pedras, agora estão banhadas pela

camada negra do asfalto.

Enquanto descia e sentia o odor forte de fumaça do lixo queimando no pé do Serrote do

Cafim, adentrei na cidade e senti aquilo que Mevlut Karataş, vendedor turco de boza e iorgute,

retratou a respeito de sua Istambul: “uma sensação estranha”68. Uma cidade que se moderniza

e se modifica de forma violenta, que derruba seus edifícios, que alarga suas ruas e que destróis

suas tradições. Sinto que a Morrinhos que vivenciei durante a infância, a cidade das ruas de

pedra, do chafariz azul, das histórias de vampiros, lobisomens e discos voadores, da praça com

girassóis e dos sorvetes e cachorros-quentes comprados nas barracas durante o Natal, vai cada

vez mais se perdendo na poeira do tempo, indo embora todos os dias junto ao pôr-do-sol.

Antes de subir no Serrote do Cafim, resolvi convidar meu pai mais uma vez para ver

Morrinhos lá de cima, mesmo sabendo que ele não iria. Cheguei em sua casa e lá estava ele,

68 Sobre a história de Mevlut Karataş, ver PAMUK, Orhan. Uma sensação estranha. 1ª edição. São Paulo:

Companhia das Letras, 2017.

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sentado em uma cadeira de madeira à beira da calçada, afinando o violão Giannini com suas

cordas de nylon já muito gastas. Quando fiz o convite, ele sorriu e começou a cantar o trecho

de uma música triste de Lupicínio Rodrigues:

Eu vou mudar o meu barraco mais pra baixo

As minhas pernas já não podem mais subir

Alto do morro era bom na mocidade

Na minha idade a gente tem que desistir

Subir o morro antes era brincadeira

Até carreira eu apostava e não perdia

Quando eu subia todo mundo me aclamava

E reclamava toda vez que eu descia.69

*

No início de uma quente tarde de domingo, do dia 29 de março de 1992, minha mãe

sentia fortes dores. A bolsa havia estourado e ela só estava com sete meses de gestação. Minha

avó, naquele momento, puxou o terço e começou a rezar. Eu queria logo sair ao mundo e não

media esforços para isso. Às pressas, a bordo do Fusca da amiga Marialda, minha mãe me

levava a Fortaleza para nascer. Apertava a barriga com força, como se quisesse me dizer que o

mundo era demasiado desumano e eu era inocente demais para encará-lo de frente naquele

momento. Eu não a escutei. Assim, no balanço do Fusca e após a agonia da viagem, eu nasci

prematuro e desterritorializado da cidade que mais tarde tomei como minha.

A viagem de Morrinhos a Fortaleza, com uma breve parada em Itapipoca, foi minha

primeira migração entre cidades. Não foi a única. Mas minhas idas e voltas para conhecer o

mundo foram sempre entre cidades, e isso talvez justifique minha paixão por elas. Minhas

vivências no campo foram mínimas. E assim como Orhan Pamuk, que nunca deixou Istambul,

nunca deixou seus bairros, as ruas de sua infância, embora tenha vivido em cidades diferentes

de tempos em tempos70, eu também nunca deixei a cidade onde cresci, onde brinquei em suas

ruas, onde amei em suas esquinas.

Atualmente, a Morrinhos que acabei de descrever e que possui um papel importante em

minha vida e neste trabalho, tem muito em comum com as cidades do interior cearense,

especialmente aquelas à sua volta, que nasceram e sonharam um dia ser grandes. Muitos

69 Canção “Meu Barraco”, composição de Lupicínio Rodrigues, 1973. 70 Sobre a relação entre memória e cidade, ver PAMUK, Orhan. Istambul: memória e cidade. Tradução Sergio

Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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daqueles que vivem em Morrinhos migram para trabalhar no polo moveleiro da cidade vizinha

de Marco, nas indústrias da Princesa do Norte, em Sobral, ou se aventuram a viver na capital,

Fortaleza.

Com um crescimento econômico lento, dependendo em grande medida do comércio e

dos serviços públicos municipais, Morrinhos sobrevive à beira do rio que a possibilitou nascer.

Nasceu perto do rio e cresceu desordenadamente, entre o morro e o asfalto, com um roteiro de

fazer inveja as músicas de Adelino Moreira.

Depois deste passeio pelas ruas da cidade de Morrinhos, guiado em grande medida pelo

meu “edifício das recordações”, pelos meus sentidos, pela minha memória afetiva, chegou a

hora de apresentá-los ao Centro Social Morrinhense.

1.2 O Centro Social Morrinhense: “tudo pelo progresso de Morrinhos”

Imagem 2: Foto de posse da primeira Diretoria do Centro Social Morrinhense. Em destaque, ao centro da

imagem, e da esquerda para a direita, José Ataíde Alves de Vasconcelos, Raimundo Nonato Araújo da Rocha e

José Adrião Sousa, os três que idealizaram a criação da instituição. Fonte: Arquivo pessoal de João Leonardo

Silveira

Na madrugada de terça-feira, dia 12 de junho de 1952, era impresso, em um pequeno

volume, os exemplares do jornal O Nordeste, periódico fundado em Fortaleza pela Igreja

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Católica em 1922, que circularia na capital do estado a partir das primeiras horas da manhã.

Trazia, no canto inferior direito da página 13, no pé da folha, a seguinte notícia:

CENTRO SOCIAL MORRINHENSE: Foi fundado domingo último, 10 do corrente

mês, às 16 horas, na rua Padre Mororó 916 (sede provisória), o Centro Social

Morrinhense, entidade que agrega jovens daquela próspera vila do interior cearense.

Após uma movimentada sessão, foi constituída sua primeira diretoria: Diretor – José

Ataíde Vasconcelos; Presidente – Raimundo Nonato Araújo da Rocha (Mundico);

Vice-presidente – Miguel Cialdine Lima; 1º secretário – José Adrião Sousa; 2º

secretário – Manoel Valdeci Vasconcelos; 1º tesoureiro – Raimundo Nonato Rocha

(Raimundinho); 2º tesoureiro – Miguel Cialdine Silveira; Orador – João Expedito

Sousa.71

Pela localização da notícia, longe das grandes manchetes, dos anúncios publicitários e

das crônicas esportivas sobre o último Clássico-Rei, ela poderia muito bem ter passado

despercebida. E talvez passou. Mas que instituição era essa? O que pretendia? Como e onde

funcionava? Quem foram seus idealizadores e fundadores?

*

No final da década de 1940, durante uma quente tarde de domingo na cidade de

Fortaleza, um jovem alto e esguio esperava por alguma coisa, parado em uma esquina próximo

à Praça do Ferreira. Aparentava ter entre 18 e 21 anos e vestia um suéter azul-escuro com um

colarinho levemente desbotado, dando contornos a um decote generoso em V, que deslizava

pelos ombros, e uma calça social larga que quase lhe cobria os pés. O sapato tinha um bico fino

e era negro, da cor da noite. Constantemente passava a mão pelo cabelo, embora já estivesse

um pouco calvo. Parecia impaciente. Vendo que sua espera seria ainda mais demorada, sentou-

se em uma cadeira de madeira que pertencia a uma banca de jornal ali perto, e correu os olhos

pelo último número do jornal Tribuna do Ceará. Não era possível identificar o que lia, mas de

vez em quando sorria, mostrando os dentes brancos e arregalando os olhos. Poucos minutos

depois, o barulho do bonde elétrico deslizando e rangendo sobre os trilhos, fez com que o jovem

se apressasse a jogar alguns cruzeiros ao dono da banca, enquanto corria com o jornal debaixo

do braço. Pegou o bonde e se foi.

Passado algum tempo, depois de serpentear nas ruas de uma cidade em ebulição, pelo

calor e pelo movimento das pessoas e dos automóveis, o bonde parou ao pé da Ladeira da

71 Jornal O Nordeste: 12 de agosto de 1952, p. 13.

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Conceição. O jovem saltou, mas sem o jornal. Esquecera dentro do transporte. Resmungou, mas

logo se arrependeu, ao descobrir que teria de subir a ladeira a pé, sob o sol vespertino e

escaldante da capital alencarina. O seu destino era o Seminário Maior, dirigido por lazaristas

desde 1864, situado em um enorme edifício em estilo neoclássico, localizado no antigo bairro

da Prainha. Estava ali para visitar um amigo de longa data, que lá estava morando. Naquele

prédio, em um quartinho perto do pátio, onde havia um painel repleto de azulejos que trazia o

nome de alunos e professores ilustres, no seio de um centro eclesiástico e intelectual, o Centro

Social Morrinhense começou a ser idealizado72.

O jovem se chamava Raimundo Nonato Araújo da Rocha, o Mundico, e a viagem ao

Seminário Maior era para visitar o amigo José Ataíde Alves, que havia firmado um

compromisso com Deus no mundo dos Homens. Esse percurso ocorria sempre aos domingos,

as três horas da tarde, e durou cerca de seis anos. No Seminário, José Ataíde e Mundico

conversavam sobre a vida na cidade nova, seus sonhos, seus desejos, suas ideias, seus medos e

sobre as angústias de dois jovens do interior que se aventuraram a viver na capital. Porém, não

haviam de deixar de falar sobre uma pequena vila no interior do estado, que ambos haviam

deixado esquecida, sob a poeira provocada pelo atrito dos pneus, dos ônibus abafados da

empresa Redenção, na terra batida e amarelada. Foram para longe dela, mas queriam saber

notícias de lá, fazer algo pelo lugar onde nasceram:

Depois de dois anos que eu já estava em Fortaleza, o Ataíde foi para o Seminário

Maior. Era meu amigo de infância, nossos pais eram muito católicos. Tivemos uma

relação de muita amizade, muita íntima, frequentávamos os mesmos lugares. Quando

ele veio para Fortaleza, para o Seminário, nossa amizade voltou. Aí eu passei a visitá-

lo e durante seis anos, todo domingo às três horas da tarde estava eu no Seminário da

Prainha visitando o querido amigo Ataíde. Nós queríamos saber de notícias de

Morrinhos, trazidas por amigos em comum. O Ataíde me influenciou muito. Ele foi

quem influenciou para nós criarmos o Centro Social Morrinhense, juntamente com o

José Adrião Sousa, que era o grande intelectual do Centro, bibliotecário, homem de

letras. O Centro foi criado para unir o pessoal da cidade. Unir e trabalhar pela cidade.

O interesse era de fazer crescer a cidade, ninguém nem pensava nesse negócio de

prefeitura, de emancipação não. Morrinhos era muito pequeno, tinha pouca gente. Era

atrasada.73

Raimundo Nonato Araújo da Rocha, José Ataíde e José Adrião Sousa, os três nomes

citados na fala de Mundico, serão, como veremos mais adiante, os sujeitos mais atuantes dentro

da instituição que tiveram a ideia de criar, uma associação onde pudessem trabalhar “em prol

72 Estes dois últimos parágrafos foram construídos com base em informações concedidas em entrevista pelo próprio

Mundico Rocha, e também a partir de pesquisas e análise de dados dispersos na documentação. 73 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha, realizada em 16/05/2017, em Morrinhos, Ceará.

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do progresso de sua pequena vila localizada junto as ribanceiras do Rio Acaraú”74. Com o passar

do tempo e dos encontros entre eles, ela foi ganhando corpo e forma.

Imagem 3: Seminário Maior, no antigo bairro da Prainha, em Fortaleza. Local onde as primeiras ideias relativas

à criação do Centro Social Morrinhense aconteceram. Fonte: Arquivo Nirez.

O fato é que essa iniciativa de criação de uma instituição que pudesse representar uma

pequena vila encravada entre o litoral e o sertão, no interior cearense, composta de oito ruas,

dois grandes quadriláteros que os moradores chamavam de “praça” e com aproximadamente

1.097 habitantes75, foi se concretizando a partir de reuniões informais, seja nas casas de seus

idealizadores, dentro das dependências do Seminário Maior ou mesmo em passeios e prosas

pelos cafés e quiosques da Praça do Ferreira. O Centro Social Morrinhense só foi devidamente

instalado em 10 de agosto de 1952, através de uma sessão solene na residência de José Mauri

Rocha, irmão de Mundico, outro que também havia deixado Morrinhos. Ele se localizava na

estreita rua Padre Mororó, no Centro de Fortaleza, sua primeira e provisória sede.

Tido como uma instituição centralizadora que congregava, de acordo com João

Leonardo Silveira, aqueles “filhos e amigos de nossa terra, colegas nossos da capital e

simpatizantes de nossa luta pelo progresso da vila e do povo morrinhense”76, o CSM reuniu

74 SILVEIRA, João Leonardo; SILVEIRA, Maria Luzia Rocha. Op. Cit. p. 406. 75 MARANHÃO, Luciana Vasconcelos. Vila Morrinhos: Memória, história e tensão social (1953-1957).

Monografia de graduação. Sobral: Curso de História – UVA. 2009. p. 22. 76 Ibidem. p. 408.

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nomes que acreditaram e assumiram o discurso de que sua vila estava desamparada e

abandonada pelo poder público. Pessoas que compartilhavam e comungavam de um mesmo

horizonte de ideias. Era “pequena e atrasada”, como disse Mundico Rocha, mas que com ajuda

de seu povo, tido como exemplo natural de uma sociedade virtuosa, moralista e progressista,

poderiam colocá-la dentro de um “horizonte de expectativas”77 de desenvolvimento e

progresso. O Centro Social Morrinhense seria o guia, a vanguarda e a bandeira desse

movimento.

Em entrevista concedida ao jornalista Manuel Aguiar de Arruda, publicada em 1958, no

jornal Voz de Morrinhos, em número comemorativo à emancipação política de Morrinhos,

Mundico, como presidente da associação durante seus cinco primeiros anos, relatou quais foram

as preocupações do Centro Social Morrinhense durante sua primeira gestão. Segundo ele, a

maior preocupação foi oficializar o CSM, torná-lo uma entidade de utilidade pública e sem fins

lucrativos, além de aprovar seus estatutos, que foram reconhecidos pelo Cartório Pergentino

Maia e, posteriormente, publicados no Diário Oficial do Estado em 15 de dezembro de 1952.

De acordo com seus estatutos, a finalidade do Centro Social Morrinhense era de “congregar

filhos e amigos de Morrinhos, para defender os interesses desta localidade e de seus associados,

proporcionando-lhes solidariedade, auxílio moral e material, quando se fizer necessário e de

acordo com suas possibilidades”78.

Dentre outras finalidades do CSM, estavam: 1º) proporcionar as melhores ocasiões de

progresso àquela vila; 2º) levantar o nível social de seus habitantes; 3º) auxiliar os estudantes

pobres do distrito; 4º) promover campanha sobre assuntos dos mais variados: educação, cultura,

escolas, alfabetização de adultos, agricultura e outros problemas locais”79. O Centro Social

Morrinhense estava disposto, também, a manter um “club” diversional, uma biblioteca

franqueada ao público, escola para os filhos de associados e um jornal, além de ofertar e cobrir

despesas e assistência médica, hospitalar, jurídica e odontológica de seus sócios, organizando

também um lactário para os “filhos de associados que fossem reconhecidamente pobres”80.

77 Espaço de experiência e horizonte de expectativa são duas categorias concebidas por Reinhart Koselleck

fundamentais à Teoria da História, numa tentativa de compreensão dos regimes de temporalidades (passado,

presente e futuro) que atravessam cada época, possibilitando entender como são pensadas as relações entre eles.

Para o autor, o presente tanto pode ressignificar o passado, quanto o futuro. Ver KOSELLECK, Reinhart. Futuro

Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto 2006. 78 Estatutos do Centro Social Morrinhense: Art. 2º. Diário Oficial do Estado, 15 de dezembro de 1952. 79 Ibidem. 80 Ibidem.

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O investimento do CSM em “levantar o nível social de seus habitantes” e “promover

campanha sobre assuntos dos mais variados”, denuncia o incômodo dos membros dessa

instituição com a existência de uma população majoritariamente iletrada, que necessitava ser

guiada, conduzida à luz da instrução e do conhecimento. Seriam eles, homens construtores do

saber, que responderiam à essa falta de letramento, promovendo campanhas contra os

“problemas locais”, sendo uma delas a ausência de instrução. Fica muito claro, a partir da leitura

dos objetivos da criação da instituição em seus estatutos, que o Centro Social Morrinhense

procurava cultivar as atividades culturais entre seus associados, mas também existia uma

preocupação em torno do espaço, da vila de Morrinhos e com as pessoas que lá residiam.

Havia uma preocupação, nas reuniões da entidade, de compreender como o que ali se

debatia poderia influenciar na vida das pessoas e no desenvolvimento da vila. Essas “ocasiões

de progresso”, sejam elas intervenções materiais e /ou culturais, acabaram se tornando o

principal elo de ligação entre os de “dentro e os de fora”, buscando romper qualquer embaraço

ao diálogo entre os centristas e a população. Incentivar e lutar por essas “ocasiões de progresso”,

seria a melhor forma de anunciar que o Centro Social Morrinhense estava à serviço da vila de

Morrinhos e de seus habitantes.

Os sócios seriam os fundadores da associação, e os que desejassem associar-se a ela

posteriormente, deveriam ser classificados em uma das quatro categorias disponíveis: sócios

fundadores, efetivos, beneméritos e honorários. O pagamento da joia, que deveria ser quitado

no momento da inscrição, possuía o valor estabelecido em Cr$ 50,00 (cinquenta cruzeiros)81.

Eram considerados sócios fundadores aqueles que estiveram intimamente ligados à ideia

de criação do Centro Social Morrinhense, participando das primeiras reuniões e,

principalmente, que seus nomes estivessem grafados na lista de presentes ao final da ata da

sessão solene de fundação da instituição. Já os sócios efetivos foram divididos em dois grupos:

aqueles comprovadamente nascidos em Morrinhos, e os outros que, mesmo não sendo “filhos

da terra querida”, partilhavam das mesmas ideias e participavam intensamente das discussões

em prol do CSM e da vila de Morrinhos.

Os sócios beneméritos eram os associados que haviam prestado uma doação de alto

valor e/ou contribuíram de forma significativa com seus serviços ofertados à instituição. Já os

sócios honorários eram os únicos que não necessariamente deveriam fazer parte do quadro de

81 Não foi possível localizar o valor da mensalidade paga pelos sócios de quaisquer categorias. O livro de atas não

menciona essa informação, e os estatutos se limitam a dizer que “os sócios ficarão obrigados a pagamento de uma

mensalidade que será fixado pela Diretoria”, sem descriminar seu valor.

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sócios da associação, embora a categoria levasse o nome de “sócio”. Eram pessoas que

colaboraram com sua “influência e serviço de real valor para o engrandecimento da instituição,

tornando-se, por este motivo, digno deste título”82. Para se tornar um sócio honorário do CSM,

era preciso que a proposta de admissão do requerente fosse aprovada pela Diretoria e Conselho

Superior.

Imagem 4: Diploma que era entregue aos sócios beneméritos do Centro Social Morrinhense. Fonte: Arquivo

pessoal de João Leonardo Silveira

É preciso aqui fazer uma ressalva: embora os estatutos não tratem dessa informação, foi

localizada, em outra documentação referente ao Centro Social Morrinhense, menção a duas

outras categorias de sócios, ambas com apenas um integrante: presidente honorário e sócio

essencial. A primeira categoria, no momento da fundação do CSM, foi ocupada pelo

comerciante fortalezense Alberto Bardawill, que possuía uma loja no Centro da capital, ao lado

da Farmácia Santa Helena, onde Mundico Rocha trabalhava. Foi Bardawill, afirmou ele em

entrevista, “quem me apresentou e me inseriu na imprensa e nas redes de sociabilidade

intelectuais fortalezenses”83. A loja de Alberto Bardawill era tão famosa que deu inclusive nome

a uma parte da rua em que estava localizada: Esquina da Broadway, mais conhecida como

“esquina do pecado”. Sobre Bardawill e sua loja, escreveu o memorialista Marciano Lopes:

82 Estatutos do Centro Social Morrinhense: Art. 13º. Diário Oficial do Estado, 15 de dezembro de 1952. 83 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha, realizada em 16/05/2017, em Morrinhos, Ceará.

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Uma loja que, embora bem menor em instalações, possuía, talvez mercê de seu nome,

incrível fascínio na cidade, era a “Broadway”, de Alberto Bardawill, na esquina

famosa das ruas Major Fecundo e Guilherme Rocha. Tinha duas vitrines, uma em cada

rua e era o próprio Bardawill quem montava as vitrines e “vestia” as bonecas-

manequins. A casa não tinha maiores atrativos em decoração, porém, só trabalhava

com tecidos de alta classe e sua clientela era de primeira linha. Sua fama maior, veio

do forte vento que soprava, constantemente na sua esquina, levantando as saias das

moças e provocando o ajuntamento dos rapazes, o que deu origem ao epíteto de

“esquina do pecado”. Aquele vento, seria originado pelos altos tapumes da construção

do Cine São Luiz que não permitiam a sua passagem pelas galerias laterais

obstruídas.84

Alberto Bardawill permaneceu como presidente de honra do Centro Social Morrinhense

até o ano de 1957, sendo substituído pelo deputado estadual Francisco Vasconcelos de Arruda,

que também fazia parte do quadro de associados. O primeiro e único sócio essencial do Centro

Social Morrinhense foi um outro comerciante, desta vez de Morrinhos, José Wilson Araújo,

que chegou a ser subprefeito da vila em 1956. Era considerado como um “jovem ornamento da

sociedade morrinhense”85, e possuía um pequeno clube que se destacava por ser o principal

espaço de sociabilidade da pequena vila: o Astória Bar.

O fato é que, para ser um sócio do Centro Social Morrinhense era preciso cumprir todas

as disposições contidas no regulamento, o que possivelmente não era uma tarefa fácil, visto que

os estatutos estavam divididos em 15 capítulos, contendo 48 artigos ao total, explicando

minuciosamente os deveres a serem seguidos e respeitados por todos os membros da instituição.

As penalidades eram mais severas para os sócios efetivos, distribuídas entre advertências,

suspensões e, em último e extremo caso, eliminações. As faltas leves, que acarretariam em

advertências, seriam desde ausências nas reuniões até aquele “que solicitar convites com

pessoas não compatíveis com o quadro social da instituição”86. O sócio que desviasse valores

do CSM, apresentasse documentos falsos ou tentasse envolver a instituição em conflitos com

outras entidades, seria suspenso ou até expulso, a depender de julgamento interno feito pela

Diretoria e Conselho Superior.

Para se tornar sócio do Centro Social Morrinhense, era preciso enviar à Diretoria uma

proposta de admissão, escrita em formulário fornecido pela instituição, que deveria ser assinada

previamente por dois sócios em pleno gozo de seus direitos legais. Depois da aprovação do

requerimento, seria marcada uma “sessão de aceitação”, onde o futuro sócio deveria realizar

um juramento, pronunciando as seguintes palavras sob a bandeira do CSM: “Nas possibilidades

84 LOPES, Marciano. Royal Briar: a Fortaleza dos anos 40. Fortaleza: Editora Tiprogresso. 1988. p. 114. 85 Jornal Voz de Morrinhos, nº 1. 06 de janeiro de 1953. 86 Estatutos do Centro Social Morrinhense: Art. 21º. Diário Oficial do Estado, 15 de dezembro de 1952.

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das minhas forças, comprometo-me abraçar e defender as justas causas por que se batalha o

Centro Social Morrinhense”87. Entre os deveres e direitos dos sócios, independente da

categoria, estavam: “utilizar todas as dependências do Centro, de acordo com as normas de

conduta; prestar toda a cooperação moral e intelectual para um maior desenvolvimento da

entidade; respeitar as convenções sociais e os poderes competentes; pagar rigorosamente todas

as mensalidades em dia; participar ativamente de todas as sessões e reuniões do Centro Social

Morrinhense”88.

Do ponto de vista estrutural, o Centro Social Morrinhense era organizado a partir de sua

Diretoria, do Conselho Superior e do Conselho Fiscal. Caberia a Diretoria, como o órgão

executivo do CSM, administrar a instituição, elaborar seus regimentos, fiscalizar o

cumprimento do estatuto por parte dos sócios, organizar eventos relativos às datas festivas do

Centro Social Morrinhense “e de outras que se fizerem dignas, além de incentivar a cultura

moral, cívica e física de seus associados”89.

O Conselho Superior era formado por cinco membros, e competia a eles decidir sobre

assuntos que lhes eram submetidos pela Diretoria e/ou pelos sócios. Era tarefa do Conselho

Superior a análise do relatório mensal do Conselho Fiscal, do relatório anual da Diretoria e do

balanço financeiro. Já o Conselho Fiscal era o responsável pela fiscalização e balanço das

contas, e da produção mensal do relatório sobre a condição das finanças da instituição. Todos

os membros dos órgãos que citamos eram votados em Assembleia Geral e o tempo de gestão

era de um ano. Havia também um Departamento Feminino e um Departamento Recreativo, mas

ambos foram criados depois, não estando contemplados nos estatutos e pouco são mencionados

nas atas ou em outras fontes.

As eleições para composição dos órgãos anteriormente citados, ocorriam durante as

assembleias gerais, com frequência anual, no segundo domingo de julho, com a posse sendo

efetivada no segundo domingo de agosto, próximo ao aniversário da instituição. O voto era

secreto e só poderiam participar da eleição quem estivesse presente na reunião. Votar por

intermédio de procuração não era permitido.

As sessões e reuniões ordinárias do Centro Social Morrinhense ocorriam geralmente às

14 horas, no segundo e quarto domingo do mês, em sua sede, na rua Senador Pompeu, em

Fortaleza. Já as sessões solenes, marcadas sempre visando a comemoração de datas e eventos

87 Ibidem. Art. 15º. 88 Estatutos do Centro Social Morrinhense: Art. 17º. Diário Oficial do Estado, 15 de dezembro de 1952. 89 Estatutos do Centro Social Morrinhense: Art. 42º. Diário Oficial do Estado, 15 de dezembro de 1952.

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importantes, tais como aniversários da instituição, posse de nova diretoria e confraternizações

consideradas de caráter oficial pelo CSM, transcorriam sempre às 20 horas, no mesmo

endereço, e contavam com a presença de políticos, empresários, acadêmicos, profissionais

liberais e representantes do governo do estado.

É interessante notar o papel importante que a história exercia dentro das reuniões do

Centro Social Morrinhense. As sessões solenes eram feitas exclusivamente para

comemorações, e as datas eleitas importantes dentro da história de Morrinhos, do Centro Social

Morrinhense, do Ceará e do Brasil, eram exaustivamente festejadas. Por meio da repetição

dessas comemorações, tentava-se apre(e)nder o passado pensando em sua “importância

normativa para o presente”90.

Os rituais de comemoração, de acordo com Fernando Catroga, são importantes pois,

através da constante evocação de um passado, de sua repetição, da regularidade em sua

comemoração, sujeitos e instituições produzem representações simbólicas constituídas de uma

memória em torno de determinados eventos, que deveriam responder às demandas do presente.

Em nosso caso, seja ela uma necessidade ligada ao CSM, aos seus associados, à vila de

Morrinhos, ou mesmo à acontecimentos considerados pela instituição como importantes dentro

da história de construção da nação, como sua independência e a proclamação da República,

datas tratadas muito a sério pelo Centro Social Morrinhense e, por isso mesmo, muito

comemoradas91.

As sessões eram organizadas dentro de um padrão muito comum e característico: depois

de aberta a reunião pelo Presidente, seguia-se a leitura e despachos de anúncios e telegramas

durante o expediente, adentrando na ordem do dia, discutindo-se os principais assuntos em

pauta, e, por fim, finalizando o encontro com a ordem cultural, onde facultava-se a palavra aos

sócios e se ouvia números de sanfona, violino, além da declamação de poesias e a discussão de

artigos de autoria dos associados, versando sobre temas históricos, filosóficos, educacionais

etc.

90 OZOUF, Mona. A festa Sob a Revolução Francesa. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: Novos

Objetos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1995. p. 216. 91 Para mais informações, ver CATROGA, Fernando. Ritualizações da História. In: A História da História em

Portugal – séculos XIX-XX: da Historiografia á Memória Histórica. Temas e Debates, Coimbra, 1998. p. 221-

361.

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Imagem 5: Garota tocando sanfona, instrumento musical muito apreciado pelos centristas, durante a ordem

cultural de uma das sessões ordinárias. Em destaque, acima, as bandeiras do Brasil e do Centro Social

Morrinhense. Data não localizada. Fonte: Arquivo pessoal de João Leonardo Silveira

Um exame minucioso das atas de reuniões do Centro, nos possibilitou realizar o

mapeamento dos sujeitos que mais comandaram sessões, entre 1952 e 1963, ano em que o CSM

foi desativado, totalizando 219 reuniões.

NOME TOTAL DE REUNIÕES

Raimundo Nonato Araújo da Rocha (Mundico) 66 reuniões

João Leonardo Silveira 45 reuniões

João Otacílio Oquendo 37 reuniões

João Expedito de Sousa 17 reuniões

José Alcides Oquendo 13 reuniões

João Gentil Lopes 11 reuniões

Manoel Roque Rocha 5 reuniões

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Miguel Cialdine Lima 4 reuniões

José Adrião Sousa 3 reuniões

Tabela 1: Lista da quantidade de reuniões do Centro Social Morrinhense e seus respectivos presidentes entre

1952 e 1963. Elaboração do autor

A presença de Mundico Rocha no topo da tabela acima não causa estranhamento, visto

que ele foi um dos fundadores e presidente do Centro Social Morrinhense durante as cinco

primeiras gestões. João Leonardo Silveira figura em segundo lugar com o maior número de

reuniões presididas, porque foi eleito presidente em agosto de 1959. João Otacílio Oquendo,

que chegou a ser vice-presidente na gestão de Mundico Rocha, assumiu a presidência quando

ele pediu afastamento e desligamento definitivo da instituição, completa a lista dos três que

mais estiveram à frente no comando das sessões92. Os demais nunca chegaram a ocupar o cargo

de presidente do CSM, com a exceção de João Gentil Rocha, que recebeu a direção da

instituição já em profunda decadência. Por isso o número relativamente baixo, se comparado

aos outros, de encontros dirigidos por eles, onde apenas os substituíram durante suas ausências

nas reuniões.

O Centro Social Morrinhense possuía ainda um símbolo, que era usado como selo, uma

forma de oficializar e reconhecer os papéis que eram expedidos, como telegramas e cartas; um

hino oficial, escrito pelo Pe. Cornelio da Silva, e uma bandeira, que era hasteada durante todas

as reuniões. A letra do hino diz muito da relação entre os membros do CSM e o espaço que se

propunham a representar:

Os teus filhos, cidade encantada.

Levam sempre onde quer que eles vão.

Um pedaço da gleba sagrada:

Escondido no seu coração.

Morrinhenses, garbosos e unidos.

Seja o lema do nosso ideal:

Trabalhar como filhos queridos.

Pela glória da terra natal.

O progresso, a beleza da terra.

A grandeza do povo também:

É a divisa sagrada que encerra.

Os anseios de quem te quer bem.

Morrinhense, que és livre, que és forte.

Trazes n’alma o ardor juvenil.

A coragem da gente do Norte.

92 É importante deixar claro que o número de reuniões descritas na tabela não traz diferenciações entre sessões

ordinárias, solenes e assembleias gerais.

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E a doçura do céu do Brasil.

Salve o branco da nossa bandeira.

Forma o azul um mimoso painel:

Belo exemplo de paz altaneira.

E a amizade serena e fiel.

Tem também nosso trapo de glória.

Grande V majestoso a luzir:

É virtude, é valor, é vitória.

Apontando o risonho porvir.93

Pela leitura e análise do hino, é possível perceber, também, quais linhas foram seguidas

para a confecção da bandeira, que, de acordo com o CSM, “traduz o sentimento expressivo e

patriótico que reina entre seus membros”94. A cor branca, “exemplo de paz altaneira”,

representaria a relação entre o distrito e as cidades vizinhas, sobretudo Marco e Santana, que

possuíam ligações espaciais estreitas e sobrepostas com Morrinhos: sendo Marco, a sede da

paróquia a que pertencia Morrinhos, e Santana, a sede do município, do qual Morrinhos era

distrito. Ao centro, a bandeira possuía um globo azul, entremeado por uma faixa branca, que

simbolizavam o manto que veste o Sagrado Coração de Maria, a padroeira de Morrinhos.

Amparando o globo, ao centro, havia um V maiúsculo e encarnado, que remetia a qualidades

que caracterizariam o presente e o futuro da terra: “virtude, valor e vitória”, trazendo grafado

em caixa alta, o lema do Centro Social Morrinhense: “tudo pelo progresso de Morrinhos”.

O fato é que, a partir de 1952, o Centro Social Morrinhense passou a construir relações,

sobretudo espaciais, importantes com Morrinhos, como veremos durante o andamento deste

trabalho. O Centro Social Morrinhense foi, nas palavras de José Ataíde Alves, “a fagueira

esperança de melhores dias”, aquele que cuidaria, trazendo afago e esperança de dias melhores

àquela pequena vila que dormia entre o litoral e o sertão cearenses. Mas, cabe aqui uma pergunta

que ficou latente e não foi, propositalmente, respondida: por que uma instituição, que se dizia

representar sua tão amada terra natal, não foi lá fundada e sim em outra cidade, Fortaleza?

1.2.1 A sedução da “loira desposada do sol”

Cheguei na casa do filho de Mundico Rocha, Paulo, às 16 horas de uma sexta-feira, na

hora do café da tarde. O aroma forte daquela bebida, misturando-se com o cheiro do pão e da

93 Hino oficial do Centro Social Morrinhense: Jornal Voz de Morrinhos, nº 3. 06 de janeiro de 1954. 94 Jornal Voz de Morrinhos, nº 1. 06 de janeiro de 1953.

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manteiga-da-terra, que havia saído do fogão naquela manhã, ocupava todo o espaço da casa,

constituindo uma particular paisagem olfativa. Mundico, com a boca ainda suja de farelo de

pão, pediu-me que entrasse e sentasse à mesa. Ele logo iria ao meu encontro.

A casa era enorme, composta por vários cômodos e escadas que davam acesso a lugares

que não conheci. Na sala, uma mesa robusta de madeira envernizada e pintada de preto, com

um vidro espesso colocado ao centro, envolta de paredes alaranjadas com vários quadros, entre

eles uma representação artística muito bonita de uma imagem do Quadro da Rua, em Morrinhos,

provavelmente durante a década de 1960. Mundico veio vagarosamente, caminhando com

cuidado, com seus quase noventa anos. Sentou-se e eu liguei o gravador. Conversamos. Entre

muitas das perguntas que lhe fiz, uma o fez sorrir, como se alguém já o tivesse perguntado antes

e por várias vezes: “por que o Centro Social Morrinhense foi fundado em Fortaleza, e não em

Morrinhos? ”95.

Porque o Centro necessitava de um centro e, no Ceará, Fortaleza era o centro de tudo.

Lá ficaríamos mais perto dos poderes governamentais, da imprensa. Tínhamos tudo

ali ao alcance da gente. Fortaleza era pequena e a gente se reunia toda semana na sede

da ACI. Todos nós que fundamos o Centro morávamos em Fortaleza, por isso não

fazia sentido fundar o Centro em Morrinhos. Fortaleza tinha um ar de intelectualidade

e isso favorecia a gente, nos reuníamos muito. Éramos um centro social e cultural.96

Por mais que Mundico insistisse em dizer que Fortaleza era o “centro”97 do Ceará, e na

época de fundação do Centro Social Morrinhense realmente já era considerada a principal

cidade do estado, sabemos que nem sempre foi assim. Até o início do século XIX, Fortaleza era

uma vila sem atrativo algum, e quase nenhuma influência econômica no estado. O que a fez

sobreviver, em princípio, foi sua fortaleza, que possibilitava segurança e garantia de estadia aos

navegantes que mareavam entre o Maranhão e Piauí, onde atracavam para abastecer ou

pernoitar. Um forte, um riacho e uma pequena porção de moradores: essa era a imagem da

antiga vila de Fortaleza98. As vilas de maior importância no Ceará estavam situadas no interior:

Sobral e Crato, com exceção de Aracati, que também margeava o litoral.

95 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha. Op. Cit. 96 Ibidem. 97 A palavra “centro” aqui foi empregada no sentido de uma centralização das relações políticas, de um

agrupamento populacional elevado e de um núcleo econômico importante. 98 Para mais informações, sobretudo a respeito do desenvolvimento da forma urbana de Fortaleza ao longo do

século XIX e de sua emergência como capital cearense, ver COSTA, Maria Célia Lustosa. Fortaleza, capital do

Ceara: transformações no espaço urbano ao longo do século XIX. Revista do Instituto do Ceará, 2014. p. 81-111.

Já para uma descrição mais densa do espaço urbano fortalezense, ver GIRÃO, Raimundo. Geografia estética de

Fortaleza. Fortaleza: Casa José de Alencar, 1997.

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Com a emergência do algodão na lista de produtos exportados pelo Brasil, desde o final

do século XVIII, a vila de Fortaleza passou a ser contemplada com infraestrutura e serviços

adequados para atender as transações comerciais diretas com Portugal. Mas foi durante a

primeira metade do século XIX, com a consolidação e expansão da indústria têxtil, que a

produção de algodão aumentou consideravelmente, por consequência da demanda do produto,

e isso assentou a hegemonia de Fortaleza dentre as demais cidades cearenses onde, além do

algodão, se comercializava em grande número o charque.

A partir de meados do século XIX, “a queda na produção de outros fornecedores e a

Guerra da Secessão (1861-64) nos Estados Unidos, poderoso concorrente, contribuíram para

expandir significativamente a indústria algodoeira cearense e para dinamizar o comércio de sua

capital”99. Guilherme Studart, o Barão, afirmou que no momento da Independência do Brasil,

em 1822, Fortaleza contava com 45 ruas espaçosas, 2 travessas, 4 bulevares, 16 praças, 3.855

casas, compreendendo as estradas empedradas do Visconde de Cauhipe e da Pacatuba, 10

igrejas e 24 edifícios públicos100. Um ano depois, passou à condição de cidade.

A cidade de Fortaleza em que Mundico e seus amigos viveram e da qual experenciaram

o cotidiano, onde o Centro Social Morrinhense passou a existir e funcionar, era um espaço

urbano ainda marcado pelos tempos idos e alucinantes da belle époque101, época onde a “loira

desposada do sol”102 observava Paris com olhos de inveja. O que se sentia também era o alívio

trazido pelo fim da Segunda Guerra Mundial, que possibilitou a emergência e “difusão mundial

de comportamentos e estilos de vida apoiados no modelo urbano-industrial norte-americano –

o chamado American way of life”103. Desde a virada do século, a cidade já experimentava

profundas modificações em seu corpo, que foi cada vez mais especializado e espacializado,

seguindo às margens do Rio Pajeú. Foram executadas várias reformas urbanas, especificamente

nos espaços públicos da cidade, sendo construídos largas avenidas e ruas espaçosas, jardins,

99 COSTA, Maria Célia Lustosa. Op. Cit. p. 94. 100 Ver STUDART, Guilherme (Barão de Studart). Datas e factos para a história do Ceará. Fortaleza:

Typographia Studart, 1896. 101 O historiador Sebastião Rogério Ponte estudou o processo de remodelação urbana e disciplinarização social em

Fortaleza entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX. O autor analisa como essa ordenação

urbana constituiu-se, na cidade, por meios de projetos e imposição de novos valores. Para mais informações, ver

PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: reforma urbana e controle social (1860-1930). Edições

Demócrito Rocha. 5. Edição. Fortaleza. 2014. 102 A expressão “loira desposada do sol” aparece pela primeira vez no poema “Fortaleza”, de Francisco de Paula

Ney, jornalista, poeta e boêmio por excelência, conterrâneo de Rocha Lima, Domingos Olímpio e Rodolfo Teófilo.

Frequentou o Ateneu Cearense e o Liceu do Ceará, além de um curto tempo no Seminário, quando foi expulso por

falta de vocação e mau comportamento. Nasceu em Aracati, em 1858. 103 SILVA FILHO, Antônio Macêdo. Entre o fio e a rede: a energia elétrica no cotidiano de Fortaleza (1945-

1965). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História – PUC-SP. 2008. p. 7.

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cafés, edifícios, além da tomada de uma série de medidas higienizadoras e de saneamento

ambiental.

Fortaleza já detinha a sétima maior população urbana do país, fazendo crescer de forma

assustadora o seu número de habitantes, passando de 40.902 em 1890, para 180.185 habitantes

em 1940104. Com essa modernização desenfreada, surgiram inúmeros problemas de gestão de

espaços, como a precária rede de esgotos, o péssimo projeto de saneamento ambiental e de um

transporte público que não estava atendendo as demandas da população, além de uma rede

elétrica precária que convivia com quedas e panes, deixando a “loira desposada do sol” atônita,

entre a luz e a escuridão. 105.

Era uma cidade em constante efervescência, alucinada pelas novidades tecnológicas que

adentravam às residências106, sobretudo das elites urbanas. A eletricidade ainda tímida, os

novos equipamentos urbanos e a Coca-Cola faziam parte de um “sentido histórico de

modernidade vincado nas promessas de prazer e autorrealização individual mediante a

aquisição de mercadorias e as debilidades da rede tecnológica para atender a essa fabricação

massificada do desejo107.

Em Fortaleza, essa proximidade com “os poderes governamentais e a imprensa”,

mencionados anteriormente por Mundico, foi o que possibilitou o Centro Social Morrinhense

existir depois do papel, em sua materialidade. Apesar de todo o investimento na construção de

uma imagem de “instituição apolítica”108, suas causas não teriam sido atendidas e seu

funcionamento estaria em risco sem as doações que recebia de políticos, notadamente

deputados estaduais e federais em legislatura pelo Ceará109. Já a relação entre o Centro Social

104 Para mais informações, ver AZEVEDO, Miguel Ângelo. Cronologia ilustrada de Fortaleza: roteiro para um

turismo histórico e cultural. Fortaleza: Banco do Nordeste, 2001. 105 O jornalista Gilmar de Carvalho afirma que, em uma cidade com 270.000 habitantes e que sofria constantemente

com períodos de seca, “apenas 5.400 casas da cidade eram abastecidas pelo açude do Acarape. A maioria usava

água sem tratamento, transportada pelas carroças. Um dos chafarizes mais disputados era o da Pirocaia, que atendia

ao que depois passou a se chamar Montese. No que se refere ao esgotamento sanitário, apenas 4.300 residências

eram beneficiadas, ficando o restante sujeito às fossas. (...) A energia elétrica, sujeita a quedas e panes, só

melhoraria a partir de 1965, com a integração à rede da hidrelétrica de Paulo Afonso”. ARRUDA, Gilmar de.

Moisés Matias de Moura: O Cordel de Fortaleza. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011, p. 29. 106 Sobre essa questão, é interessante notar que essas novidades tecnológicas presentes na Fortaleza da década de

1950, como “geladeiras, ventiladores, lavadoras de roupa, aspiradores de pó, ferros de passar, batedeiras,

lâmpadas... – objetos que, por sua imbricação com as rotinas diárias de homens e mulheres, não se resumem à pura

instrumentalidade, mas se tornam prolongamentos do corpo, incrementando suas habilidades, adestrando seus

gestos, rentabilizando seus esforços. Na verdade, por meio deles é possível detectar alterações na vida ordinária,

vibrações nessa corda tênue e sensível que liga as existências dos indivíduos em sociedade”. SILVA FILHO,

Antônio Luiz Macêdo. Op. Cit. p. 5. 107 Ibidem. p. 7. 108 Estatutos do Centro Social Morrinhense: Art. 18º. Diário Oficial do Estado, 15 de dezembro de 1952. 109 Sobre as doações, não foi possível chegar a um número preciso, por conta da escassez de informações na

documentação sobre essas questões e da não preservação de documentos relativos à Tesouraria do Centro Social

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Morrinhense e a imprensa cearense, foi mais intensa e duradoura. Durante praticamente toda a

sua existência, salvo nos primeiros meses a partir de sua fundação, o CSM fez sua sede e suas

reuniões no edifício da Associação Cearense de Imprensa110, localizado na rua Senador

Pompeu, no Centro de Fortaleza. Não por acaso essa rua era conhecida como a “rua dos jornais”,

por abrigar a sede dos Diários Associados e do jornal O Povo, além da ACI.

Mundico contou que “perto da Farmácia Santa Helena, onde trabalhava, se reuniam

diariamente intelectuais, advogados e jornalistas. O dono da farmácia também era intelectual,

solteiro. Eu acabei ficando amigo de todos eles”111. Essa amizade, sobretudo com Perboyre e

Silva, presidente da ACI, professor de Direito e membro da Academia Cearense de Letras, onde

ocupava a cadeira de Rodolfo Teófilo, fez com que o Centro Social Morrinhense pudesse andar

de mãos dadas e abusar de todo o apoio oferecido pela Associação Cearense de Imprensa, seja

na divulgação de notícias sobre o CSM e a vila de Morrinhos, nos principais periódicos de

Fortaleza, seja através do uso do espaço cedido para a realização de reuniões e encontros dos

centristas.

É interessante notar que, quando Mundico fala a respeito de Fortaleza, uma cidade

possuidora de um “ar de intelectualidade”, e que isso os favorecia, ele está colocando o CSM

também em um lugar de distinção social, inserindo-o em uma rede de sociabilidade intelectual

restrita, juntamente com as demais instituições sociais, culturais e literárias que existiam em

Fortaleza, naquele período. Talvez por essa razão ele realmente tenha sido fundado na capital

cearense, e não em Morrinhos. Essa atmosfera intelectual, porém, não pode e nem deve ser

encarada como algo natural. Foi uma construção historicamente localizada, e por isso mesmo

necessita ser compreendida, para que se possa entender melhor o que Mundico quis afirmar

com essa expressão.

Esse “clima intelectual” no Ceará, tendo Fortaleza como o principal centro, se

consolidou na segunda metade do século XIX, com a emergência de várias associações

literárias. O pensamento literário cearense no fin de siècle estava fragmentado entre várias

escolas, como o Realismo, o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo. O fato é que a

Morrinhense. Porém, os políticos que mais doaram dinheiro, com uma maior regularidade e aporte, ao CSM foram

Francisco Vasconcelos de Arruda, que militou pelo PSD e PSP; Walter de Sá Cavalcante, ex-deputado e, na época

de sua maior aproximação do CSM, exercia o cargo de secretário de educação do município de Fortaleza, e

Francisco de Almeida Monte, conhecido por Chico Monte, deputado federal pelo PTB. 110 Em 14 de julho de 1925 foi fundada a Associação dos Jornalistas Cearenses, hoje Associação Cearense de

Imprensa (ACI). Sem instalações fixas, as reuniões ocorriam nas casas dos filiados, e em seguida no palacete do

Clube Iracema, Excelsior Hotel e Casa Juvenal Galeno, até que, na década de 30, instalou-se sua sede, na rua dos

jornais, Senador Pompeu 1098 (onde estavam os Diários Associados e O Povo) 111 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha. Op. Cit.

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maior parte dessas produções surgiram através de pequenos grupos, anônimos ou públicos, que

se encontravam principalmente nos quiosques e cafés da Praça do Ferreira. O caso mais

representativo foi, sem dúvida alguma a fundação, em uma das mesas do Café Java, da

associação literária nomeada de Padaria Espiritual112, em 1892, que fez circular seu jornal O

Pão até 1898, em uma cidade onde a imprensa foi muito ativa no último quartel do século XIX.

O que fez a Padaria Espiritual ser emblemática foi o fato de que essa associação

pretendia ser diferente das outras até então fundadas na cidade113. Nas palavras de um de seus

idealizadores, o poeta e escritor Antônio Sales, a Padaria Espiritual deveria ser distinta das

outras sociedades literárias presentes na capital, pois elas possuíam um “caráter formal de

academia-mirim, burguesa, retórica e quase burocrática”114. Deveria incentivar o gosto pelas

letras, pois elas estavam em “estado de letargia” na província115. Através de versos pessimistas,

mórbidos e soturnos, os padeiros denunciavam as relações de poder e os partidos políticos,

utilizando metáforas e alegorias de forma facciosa na imprensa literária, principalmente através

de seu próprio jornal. E assim a cidade pulsava, com seus cafés, suas associações literárias e

científicas, seus jornais, seus panfletos e suas luzes tremulantes alimentadas por gás carbônico.

Pode-se dizer que esse “ar de intelectualidade”, mobilizado na fala de Mundico, é bem

diferente daquele das primeiras décadas do século XX, mas não se pode negar o fascínio que

Fortaleza exercia nos jovens que moravam em cidades quase esquecidas no interior do estado.

Fortaleza, como um capital e cidade grande, seduzia aqueles que desejavam uma vida melhor,

com mais opções de trabalho, de lazer, cheias de novas experiências, boas ou ruins. Aos que

nasceram no berço de família abastadas e com boas condições financeiras, essa transição era

mais fácil e quase obrigatória. Já aos outros, restava a incerteza da possibilidade de uma

aventura pelo corpo da “loira desposada do sol”.

O fato é que essa grande migração, na maioria jovens que moravam em cidades do

interior e foram para Fortaleza, no início da década de 1950, possibilitou a emergência de várias

instituições com propostas muito semelhantes às do Centro Social Morrinhense. O Centro

Santanense, o Centro Marquense, o Centro Parapuiense, o Centro Massapense, que possuía uma

112 Para mais informações sobre a Padaria Espiritual, ver AZEVEDO, Sânzio de. Breve História da Padaria

Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 2011. 113 É importante ressaltar, no entanto, que não foi a Padaria Espiritual a inaugurar essa atmosfera intelectual e

literária no Ceará. Era uma tradição que vinha de muito longe, primeiro com os Oiteiros, fundado em 1810, e

depois com a Academia Francesa, criada em 1871, composta por vários nomes importantes como Capistrano de

Abreu, Domingos Olímpio, Tristão Alencar e Thomás Pompeu Sobrinho. 114 SALES, Antônio. Novos Retratos e Lembranças. Fortaleza: Casa de José de Alencar: Programa Editorial,

1995. p. 9. 115 Ibidem. p. 10.

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rica sede no nobre bairro de Meireles, e o Centro Acarauense, este último composto apenas por

advogados, médicos e políticos oriundos da cidade de Acaraú, formaram uma extensa rede de

sociabilidade política e intelectual, juntamente com o Centro Social Morrinhense.

Os Centros organizavam festas, bingos e encontros nas suas respectivas sedes.

Trocavam correspondência através de cartas e telegramas, além do planejamento de ações em

conjunto, principalmente na organização e envio de comissões à Assembleia Legislativa, a fim

de pressionar deputados na resolução de suas causas. Havia também inúmeros passeios à praia

do Pirambú, onde ficavam hospedados na casa de associados, além da organização de

piqueniques, em áreas mais afastadas da zona urbana de Fortaleza, ou como afirmou Mundico,

“em áreas mais aprazíveis, onde podíamos nos divertir, em um contato maior com a natureza,

com muita música, brincadeiras, mas nada de bebida, hein? Não tinha bebida”116, dizia com um

pigarro e um sorriso maroto estampado no rosto.

As despesas com os piqueniques eram arcadas pelo próprio Centro Social Morrinhense,

onde cada sócio contribuía com um valor. Os convites poderiam ser adquiridos na sede do CSM,

e os demais Centros com sede na capital estavam convidados a se fazerem presentes. O ônibus

disponível para os participantes, de forma gratuita, saía geralmente as sete e trinta da manhã,

em frente ao Teatro José de Alencar, rumo ao sítio Orilândia, no distante bairro da Serrinha,

local mais utilizado para a realização dos piqueniques. Anúncios sobre esses encontros eram

expostos nos principais jornais que circulavam na capital, principalmente O Povo, O Nordeste,

Gazeta de Notícias, Correio do Ceará e Unitário, periódicos com os quais o Centro Social

Morrinhense mantinha uma estreita relação.

Mas então, como o Centro Social Morrinhense cuidaria de Morrinhos, já que essa era

sua proposta, sem conhecer de perto sua realidade, sem viver e praticar aquele espaço todos os

dias? Eram poucas as vezes durante o ano que o CSM organizava comissões de centristas e os

mandavam para Morrinhos. As estradas eram ruins, caminhos difíceis, além do alto custo das

passagens. Foi então que o Centro Social Morrinhense resolveu parir uma filha na terra que

havia deixado, para ser a mais “fina flor do lugar”.

1.2.1 A Elite Morrinhense: “a mais fina flor do lugar”

116 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha. Op. Cit.

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Meses após sua fundação, o Centro Social Morrinhense já manifestava o desejo de

formar um grupo de apoio em Morrinhos. Os estatutos, porém, não mencionam, no momento

de sua publicação, qualquer informação a respeito dessa possibilidade, o que nos indica que

essa proposta deve ter sido considerada algum tempo depois, mediante uma série de

dificuldades que foram impostas ao CSM117. A distância entre Morrinhos e Fortaleza, a péssima

condição estrutural das estradas e o alto custo com passagens, que ameaçava sua saúde

financeira, fez com que o Centro Social Morrinhense tomasse a iniciativa de criar uma outra

associação, desta vez em Morrinhos, oficializada no dia 06 de janeiro de 1953, que recebeu o

nome de Elite Morrinhense:

Desde a fundação do Centro, planejou-se ser indispensável a criação de uma elite

representativa do Centro Social Morrinhense em Morrinhos. Surgirá por tanto, nesta

data, com o nome de Elite Morrinhense. Em qualquer movimento de interesse do

Centro que puder nascer dentro de Morrinhos, terá a Elite o dever de resolvê-lo como

melhor puder. Os membros desta filial deverão ser sempre aqueles que representam a

cidade, seja qual for o campo de atividades em que isto se faça necessário118.

As condições precárias das rodovias, aliadas à demora na comunicação e no envio de

notícias à capital, além da falta de apoio organizado para agilizar a tramitação de processos,

“movimentos de interesse do Centro”, fez com que essa instituição considerasse

“indispensável” ter com quem se comunicar, de forma melhor e com maior rapidez, em

Morrinhos. A notícia do jornal relata ainda que os membros da Elite Morrinhense “deverão ser

aqueles que “representam a cidade”. Mas quem são eles? Quem representa a cidade? São os

trabalhadores que, de enxada na mão, quando galo canta, caminham para os roçados perto do

rio? São os “homens dos carnaubais”, que desfilam com seus jumentos cansados, carregados

de palhas amareladas e secas pelas ruas da cidade no começo e ao final do dia? Ou são os

“moços de boa família”, de gravata e terno Zoot?

A finalidade da Elite Morrinhense, de acordo com seu regulamento, e de comum acordo

com os estatutos do Centro Social Morrinhense, era de “congregar pessoas da mais fina flor da

sociedade morrinhense, para colaborarem na resolução de problemas sociais surgidos em

Morrinhos”119. Dentre seus outros propósitos, estavam: “1º) promover campanhas em prol dos

melhores costumes para os morrinhenses; 2º) realizar festas de caráter social como bailes,

117 Infelizmente, não tive acesso ao Livro de Atas referente ao primeiro ano de atividades do Centro Social

Morrinhense, com exceção da ata de sessão solene sobre sua fundação e alguns registros de reuniões anteriores,

em folhas amareladas e soltas, mas a partir de maio de 1953. Portanto, o registro das sessões entre agosto de 1952

e abril de 1953 foram perdidos, não foram preservados. 118 Jornal Voz de Morrinhos, nº 1. 06 de janeiro de 1953. 119 Regulamento da Elite Morrinhense. Art. 1º. 25 de julho de 1953.

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vesperais, matinais, quermesses, leilões e promoções outras, para maior desenvolvimento de

Morrinhos; 3º) cooperar com o Centro Social Morrinhense na resolução dos problemas de

assuntos gerais ligados a Morrinhos; 4º) construir oportunamente sua sede própria, com salões

amplos para diversões, conferências, solenidades, etc120.

Assim como acontecia no CSM, os sócios da Elite Morrinhense eram distribuídos em

categorias, a saber: diretores, integrantes e honorários. Os sócios diretores eram aqueles que

foram designados pelo Centro Social Morrinhense para compor a Diretoria Executiva da EM,

no momento de sua criação. Os sócios integrantes compreendiam as pessoas que faziam parte

do quadro social da instituição. Era a categoria mais ampla de associados. Já os sócios

honorários recebiam este título quando prestavam serviços e ajuda de grande valor à Elite

Morrinhense, e a aprovação para compor essa categoria deveria passar por uma análise do

Centro Social Morrinhense, através de seu Conselho Superior121.

Fica muito claro, a partir da leitura de seu regulamento, que a Elite Morrinhense, além

de um espaço voltado para a cooperação juntamente com Centro Social Morrinhense no trato

dos “problemas sociais de Morrinhos”, também se configurava como um local de distinção

social122 e extrema restrição e seleção quanto a entrada e permanência de seus associados. Essa

instituição seria a responsável por determinar as regras do convívio social das elites na vila,

com suas normas de convivência e civilidade, mediando e observando o comportamento de seus

associados dentro e fora de suas dependências. Basta observar o primeiro ponto, e também mais

importante, para ser admitido como sócio da “fina flor”: “gozar de, pelo menos, regular conceito

perante a sociedade”123.

As outras obrigações eram: “ser apresentado por um sócio pertencente a diretoria da

Elite Morrinhense; ser filiado também ao Centro Social Morrinhense”124. Ora, se para adentrar

à porta da Elite Morrinhense era preciso um “convite” de um sócio diretor, além do “regular

conceito perante a sociedade”, podemos afirmar ainda mais nossa hipótese de que a Elite

Morrinhense se constituía como um espaço de distinção e de segregação, gerando um quadro

de associados inflexível e marcado profundamente por uma estratificação social. Remete a uma

sociedade estamental, onde há a prevalência por escolhas e indicações, sendo estas

fundamentais para a manutenção das relações de apadrinhamento e de apoios pessoais. Mas

120 Regulamento da Elite Morrinhense. Art. 2º. 25 de julho de 1953. 121 Regulamento da Elite Morrinhense. Art. 4º, 5º, 6º e 7º. 25 de julho de 1953. 122 Para maiores informações sobre o conceito de distinção, ver BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do

julgamento. São. Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. 123 Regulamento da Elite Morrinhense. Art. 8º. 25 de julho de 1953. 124 Ibidem. Art. 8º.

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isso não é surpresa, visto que a Elite Morrinhense era composta por um grupo seleto de

comerciantes, de políticos, fazendeiros e profissionais liberais.

Entre os deveres e direitos dos sócios, independente da categoria, estavam: 1º) votar e

ser votado; 2º) participar das reuniões e realizações de qualquer natureza da Elite Morrinhense;

3º) apresentar sugestões que visem o progresso da EM; 4º) aceitar a nomeação e a eleição

emanadas das reuniões ou das autoridades elitenses, desempenhando-as com vivo interesse”125.

O sócio que não comparecesse a três sessões ordinárias consecutivas, sem uma prévia

justificativa encaminhada à Diretoria, estaria desligado da Elite Morrinhense, sendo seu cargo

preenchido de forma interina por algum sócio indicado pelo quadro diretivo.

As sessões da Elite Morrinhense também eram divididas em ordinárias, extraordinárias

e solenes, seguindo o mesmo ritual das que ocorriam no Centro Social Morrinhense, porém

ocorriam somente uma vez ao mês. A Diretoria da EM era composta de sete membros, sendo

um presidente, um vice-presidente, um secretário, um tesoureiro, um orador e dois membros

suplentes126. Caberia aos dois suplentes substituir qualquer um dos membros da Diretoria que

estivesse ausente durante as reuniões.

A Elite Morrinhense não possuía brasão, hino, bandeira ou qualquer outro símbolo

considerado oficial. Também não dispunha, em seus primeiros anos de existência, de uma sede

própria. Durante as reuniões, que geralmente ocorriam na residência do Presidente, de outros

associados ou até mesmo na igreja, era hasteada a bandeira do Centro Social Morrinhense e seu

hino era cantado. O regulamento da EM afirma ainda que, em caso de dissolução da Elite

Morrinhense, todo o seu patrimônio deveria ser revertido ao CSM127. As portas da Elite

Morrinhense, porém, fecharam-se juntamente com as de seu “pai”.

1.2.2 Jornal Voz de Morrinhos: “aparece nos grandes momentos”

Antônio Bezerra de Menezes afirmou, durante suas andanças pelo sertão do Ceará, no

final do século XIX, que “uma cidade sem jornal é como uma fonte sem água”128. Bezerra de

Menezes manifestava assim uma preocupação interessante: o sertão, apesar de sua intensa

125 Ibidem. Art. 9º e 10º. 126 Ibidem. Art. 14º e 15º. 127 Ibidem. Art. 25º. 128 Sobre a constituição de uma rede de comunicações na região norte do Ceará no final do século XIX, ver

BARBOSA, Marta Emisia Jacinto; LIMA, Jorge Luiz Ferreira. História, imprensa e redes de comunicação. In:

História e Perspectivas, nº 39, julho-dezembro. 2008. p. 37-57.

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construção espacial amparada no “discurso da estereotipia”129, deveria ser um lugar de leitura

e de escrita. E o jornal, para Bezerra de Menezes, era o “livro dos homens”, a fonte que deveria

estar sempre cheia, afinal, mais cedo ou mais tarde, a seca havia de chegar. Os jornais, enquanto

veículos de instrução, deveriam cada vez mais circular pelo sertão. Era preciso ter sede de

palavras130.

Foi a partir dessa mesma linha de raciocínio que o Centro Social Morrinhense criou o

seu veículo oficial, o jornal Voz de Morrinhos. Mais do que um espaço destinado à leitura,

informação e à possibilidade de escrita, que claro, deveria obedecer a determinados padrões de

construção e elaboração, o periódico do CSM serviu sobretudo para a afirmação e visibilidade

social e política do Centro Social Morrinhense, como um “representante digno” do povo e da

vila de Morrinhos, visto que agora a presenteava com um jornal; e a consolidação do próprio

periódico como um instrumento de projeção e construção de um projeto de cidade que aos

poucos estava sendo urdido.

Sua primeira edição foi lançada em 06 de janeiro de 1953, e trazia uma carta de

apresentação ao leitor:

Com o intuito de sublimar as nobres aspirações de um povo idealista, apresento-me

ao público: “Voz de Morrinhos”, patenteando uma faceta desta terra. Como órgão dos

grandes momentos, apresento-me nesta data perenizando grandiosa eclosão para os

grandes passos na senda do progresso. Pleno deste ideal irradio a todos o vigor que

animou seus filhos a se devotarem totalmente a execução desse plano maravilhoso

que um dia se lhes transparece na fulguração na brilhante estrela do ideal. Em todas

as minhas páginas, vigora uma só luz: Morrinhos progrediu, progride e continuará

progredindo porque a boa vontade de seus filhos extingue os óbices mais diversos e

concretizam os esforços que transluzem em seus montes. Surgiram os obstáculos,

ergueram-se as marés-montantes, mas venci-os, esvaíram-se todas as tentativas de

pessimismo. É com este título, “Voz de Morrinhos”, que felicito a todos por tão

vitoriosas jornadas e n’um augúrio de melhores realizações, faço minhas despedidas

até a ocorrência de mais um grandioso momento.131

A primeira coisa a ser observada e que chama atenção é o estilo da narrativa: o jornal

escolhe escrever ao público em primeira pessoa. Isso mobiliza algumas considerações

interessantes que devem ser mencionadas: a primeira delas, e que está bastante clara, é a

129 Durval Muniz de Albuquerque Júnior compreende o discurso de estereotipia como um “discurso assertivo,

repetitivo, uma fala arrogante, uma fala que leva à estabilidade acrítica. O estereótipo nasce de uma caracterização

grosseira e indiscriminada”. O historiador chama atenção aqui para uma série de imagens e vozes que produzem

uma estratégia de estereotipização, imagens e vozes que são recorrentes e tratadas como naturais, que circulam no

interior dos discursos, produzindo preconceitos sociais, culturais, espaciais, etc. ALBUQUERQUE JÚNIOR,

Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. p. 30. 130 Sobre essa questão, ver MENEZES, Antônio Bezerra. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária do

Ceará, 1965. 131 Jornal Voz de Morrinhos. nº 1. 06 de janeiro de 1953.

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tentativa de se aproximar ao máximo do leitor, cativando-o, utilizando uma linguagem em

grande medida subjetiva, afetiva, falando de seus problemas, de suas vitórias e de suas

perspectivas de futuro.

A outra questão é que, ao seu usar primeira pessoa, o periódico possibilitava a não

identificação do sujeito que escreve a matéria. O texto não está assinado. Quem toma para si o

papel de narrador é o próprio jornal, atuando como membro ativo de um grupo, como

representante de uma unidade sem rosto: a própria vila. O jornal, ao escolher o nome de “Voz

de Morrinhos”, pretendia ser o vozear de uma vila, de uma comunidade. O porta-voz de um

discurso da cidade e na cidade. Mas será que ele era mesmo essa voz que poderia ser ouvida

perto do rio? Ou será que ela vinha de mais longe, da “Terra de Iracema”? O jornal Voz de

Morrinhos não seria, na verdade, a voz do Centro Social Morrinhense? Não seria ele o ruído

dos interesses dessa instituição?

A mensagem termina com uma despedida. O jornal promete voltar na “ocorrência de

mais um grandioso momento”. O jornal circulou pela primeira vez durante os festejos de

instalação da luz elétrica na vila. Os exemplares foram distribuídos pelos próprios centristas, e

os números poderiam ser adquiridos através dos membros da Elite Morrinhense, recém-criada

naquela ocasião, ou com José Wilson Araújo, no Astória Bar. A ideia de aparecer apenas “nos

grandes momentos” marcou a chamada do jornal, numa tentativa de introduzir o Centro Social

Morrinhense nos grandes acontecimentos da história da vila, inscrevendo-o dentro de uma

memória de longa duração, construindo um horizonte de expectativas a partir do espaço de

experiência e atuação do CSM. No futuro, lembrar os “grandes momentos” do passado de

Morrinhos, seria também evocar a presença do CSM e de sua relação com esses acontecimentos.

Veremos mais adiante o quanto essa estratégia deu certo. Ou não.

“Aparecer nos grandes momentos” significava também a frequência com que o jornal

era publicado. Geralmente, apenas um número era publicado por ano, ou no máximo dois. Mas

algo era certo: todo dia 06 de janeiro, uma nova edição era editada e colocada em circulação. A

data não poderia ser mais simbólica: 06 de janeiro, na tradição cristã, é o Dia de Reis.

Comemora-se a visita dos três reis magos ao menino Jesus recém-nascido, onde ofertaram-lhe

presentes. O jornal Voz de Morrinhos era o presente enviado pelo Centro Social Morrinhense

ao povo e à vila de Morrinhos.

Na carta de apresentação emitida pelo jornal, menciona-se também que “surgiram

obstáculos, ergueram-se marés-montantes”. Isso diz respeito à dificuldade de viabilização do

jornal, tanto em sua produção quanto em sua circulação. O dinheiro para a edição do jornal

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vinha, principalmente, da cota paga por anunciantes. O Centro Social Morrinhense organizava

comissões de centristas que deambulavam pelo centro de Fortaleza à procura de comerciantes

que desejassem tornar público anúncios de seus empreendimentos nas páginas do periódico.

Quando não se atingia a meta estabelecida, os associados arcavam com as despesas da

publicação.

Vale ressaltar aqui que o jornal não circulava apenas em Morrinhos. Várias cidades da

região foram contempladas com seus números, tais como Acaraú, Santana do Acaraú, Massapê,

Sobral e Fortaleza. O Centro Social Morrinhense contava com a ajuda dos demais Centros

instalados na capital para a distribuição das publicações nessas cidades. Os primeiros números

foram impressos na sede do jornal Tribuna do Ceará e, a partir de 1954, a construção das

edições ficou sob a responsabilidade da tipografia Alm. Parnaíba.

A década de 1950 possibilitou uma grande modernização da imprensa brasileira,

reconfigurando o papel do jornalista e do jornalismo. Até o final do século XIX, a produção

dos jornais se caracterizava por ser essencialmente artesanal, produzindo poucas tiragens e

marcadas por uma profunda escassez de recursos técnicos e financeiros. O jornalismo que se

desenvolveu no entre séculos até os primeiros anos do século XX, era ideológico, militante e

panfletário. Durante as primeiras décadas do século XX, foi um período de intensas atividades

jornalísticas em Fortaleza e em outras cidades do interior cearense, como Sobral. Em Fortaleza,

a presença de instituições de ensino, como o Liceu do Ceará, e também de associações literárias

e centro sociais, como foi o caso do Centro Social Morrinhense, possibilitou a difusão e o

desenvolvimento de novas publicações, além de que esses espaços se tornaram importantes na

formação de novos jornalistas.

Geraldo Nobre compreende que os jornais de Fortaleza, durante a década de 1950,

sobretudo O Povo, Correio do Ceará e Unitário, periódicos que possuíam uma estreita ligação

com o Centro Social Morrinhense e com o jornal Voz de Morrinhos, passaram por uma intensa

“despolitização”. De acordo com o autor, dava-se mais ênfase às questões sobre o cotidiano da

cidade, às crônicas esportivas, às ocorrências policiais e também ao cenário político, mas desta

vez buscando a neutralidade e a objetividade. Para Nobre, houve uma diminuição drástica do

jornalismo de opinião132.

132 Para mais informações, ver NOBRE, Geraldo da Silva. Introdução à História do Jornalismo Cearense.

Edição fac-similar. Fortaleza: NUDOC, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, Arquivo Público do Ceará,

2006.

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De fato, a década de 1950 marcou notadamente a construção e afirmação do campo

profissional do jornalista no Brasil, e o Ceará não ficou longe disso. Mas falar de uma

“despolitização”, é, no mínimo, algo perigoso. A maioria dos jornais, nesse período, entraram

em uma verdadeira “aventura industrial”, passando não mais a pertencer a pequenos grupos,

que antes o fabricavam de forma artesanal, mas sim a grandes conglomerados empresarias,

como os Diários Associados133, que detinha os direitos de publicação, em Fortaleza, dos jornais

Correio do Ceará e Unitário.

Será mesmo possível tratar os jornais a partir de conceitos como neutralidade,

imparcialidade, objetividade, e despolitização, sendo que essas grandes empresas detentoras

dos meios de comunicação impressos recebiam “benesses” do poder público? Elas não

deveriam responder aos interesses de seus patrocinadores, sendo muitos deles militantes na

política partidária? Se levássemos em consideração essa tese da “despolitização” dos jornais,

poderíamos considerar o jornal Voz de Morrinhos como uma singularidade, como um ponto

fora da curva. Esse periódico claramente tomava partido, escolhia um lado a partir de seus

interesses, dos desejos de seu conselho editorial, sujeitos que lutavam em benefício da vila de

Morrinhos e do Centro Social Morrinhense.

Infelizmente, por conta de uma baixa quantidade de exemplares do jornal Voz de

Morrinhos que foram preservados, não foi possível montar uma série e verificar com mais

acuidade as mudanças estruturais que o periódico sofreu durante sua existência. O que se pode

dizer com mais certeza e sem muitas especulações, é que o jornal possuía a característica de ser

uma publicação voltada para a descrição de atividades do Centro Social Morrinhense, dos

“grandes momentos” que ocorriam na vila de Morrinhos, além da divulgação de textos escritos

pelos membros do CSM, impregnados de temas relacionados às questões cívicas, ao

nacionalismo, ao progresso e à civilização. Os artigos eram muito bem arrumados, construídos

numa retórica impecável, com frases polidamente bem formadas, através dos recursos

estilísticos que eram empregados. Estes textos eram lidos durante a ordem cultural das sessões

ordinárias e, posteriormente, eram publicados no jornal.

Por que então os intelectuais do Centro Social Morrinhense não investiram em uma

revista ou livros, como fizeram várias outras instituições, mas sim em um jornal? A nossa

hipótese é de que esse universo da imprensa e dos jornais possibilitava, para eles, um espaço de

133 Hoje, os Diários Associados é o terceiro maior conglomerado de mídia no país, mas essa corporação já foi a

maior da história da imprensa brasileira. Foi fundada por Assis Chateaubriand em 1924, no Rio de Janeiro.

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performance134, uma maior visibilidade para suas pretensões, para seus projetos. Os periódicos

atraíam porque lá eles poderiam publicar suas ideias e tornarem-se conhecidos, “já que o

mercado de livros e revistas, em geral, era muito fechado”135. Além de possuir uma circulação

bem menor, seus custos poderiam ser mais elevados, fazendo com que o Centro Social

Morrinhense optasse pela produção de um jornal.

O periódico publicava em cada edição uma coluna chamada “Flagrantes sociais”, onde

eram expostos pequenos dados sobre alguns associados e suas famílias (nascimentos,

formaturas, noivados, casamentos, velórios, etc) e suas datas de aniversário dentro daquele

respectivo mês de circulação. Em todas as páginas havia, pelo menos, um anúncio publicitário,

trazendo detalhes do(s) proprietário(s), com o endereço do estabelecimento muito bem

informado. As propagandas eram geralmente de armazéns, fábricas, lojas de tecidos, clubes

recreativos, bares, farmácias, alfaiatarias, oficinas, etc.

O jornal trazia, com menos frequência é verdade, pelos menos um poema ou um soneto,

escrito por associados, além de textos de viajantes, geralmente políticos, padres ou profissionais

liberais de outras cidades, que visitavam Morrinhos e lá pernoitavam ou passavam alguns dias.

A maioria deles viajavam a convite do próprio Centro Social Morrinhense, que solicitava, após

a experiência, um texto para ser publicado em seu jornal, sobre suas impressões a respeito da

vila. Publicava-se também entrevistas com políticos, notadamente aqueles que de alguma forma

ajudavam o Centro Social Morrinhense, sendo sócios ou não. Ao lado do texto, as fotografias

serviam também como anunciantes.

Durante dez anos, foram editados apenas onze números do Voz de Morrinhos, e

infelizmente nem todos foram preservados. Em 1963, quando o Centro Social Morrinhense

encerrou suas atividades, a Voz de Morrinhos emudeceu, calou-se.

1.2.3 Os fundadores: (prosopo)grafando sujeitos

Já sabemos até aqui o nome dos três fundadores do Centro Social Morrinhense:

Raimundo Nonato Araújo da Rocha, o Mundico, José Ataíde Alves de Vasconcelos e José

Adrião Sousa. Mas quem foram realmente estes sujeitos? Onde nasceram, onde viveram, onde

estudaram, onde sonharam? Quais foram suas ocupações, suas profissões, seus trabalhos? Quais

134 Falo de performance aqui no sentido de aparecer-se, exibir-se, de movimentos visando uma manifestação. Para

mais informações, ver ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naif, 2014. 135 LUCA, Tânia Regina de. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In PINSKY, C. B

(Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 125.

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eram as relações entre eles, entre suas famílias? É possível afirmar que todos eles participaram

de uma mesma geração e frequentaram os mesmos espaços de sociabilidade intelectual e

política?

Para responder minimamente a essas questões, fizemos, a partir de dados sumários, de

biografemas136, um breve experimento de prosopografia. A prosopografia vem do grego e

“etimologicamente se refere à descrição de uma pessoa ou de um personagem”137. A escolha

do método prosopográfico, especialmente para este item, se fez pela possibilidade de, a partir

do cruzamento de dados individualizados dos sujeitos que fundaram o Centro Social

Morrinhense, visualizá-los como um conjunto, como uma unidade, atentando para seus traços

em comum.

A prosopografia, neste caso, se torna uma ferramenta interessante de trabalho para o

historiador, pois ela articula trajetórias individuais, fazendo emergir as ações dos indivíduos em

conjunto, as ações articuladas que realizaram, as aproximações e dissenções políticas,

ideológicas, de visão de mundo e as diversas correspondências de atitudes, valores ideias que

foram possíveis de enxergar entre eles. A prosopografia nos ajuda a perceber, até que ponto os

sujeitos que fundaram o Centro Social Morrinhense estabeleceram entre si laços de cooperação,

de correspondência, de diálogo, através do cruzamento de seus dados biográficos. Optando por

realizar uma prosopografia, estamos declinando da proposta de se fazer uma biografia profunda

sobre cada um dos membros fundadores do CSM, evitando cair naquilo que Bourdieu alertou

como “ilusão biográfica”, ou seja, a ilusão de se descrever e escrever uma vida em toda sua

complexidade, em todas as suas dimensões138:

A prosopografia é a investigação das características comum do passado de um grupo

de atores na história através do estudo coletivo de suas vidas. O método empregado é

o de estabelecer o universo a ser estudado e formular um conjunto uniforme de

questões- sobre nascimento e morte, casamento e família, origens sociais e posições

econômicas herdadas, lugar de residência, educação, tamanho e origem das fortunas

pessoais, ocupação, religião, experiência profissional, etc. Os vários tipos de

informação sobre indivíduos de um dado universo são, então, justapostos, combinados

e, em seguida, examinadas por uso de variáveis significativas.139

136 Durval Muniz de Albuquerque Júnior compreende biografemas como “espécie de átomos do discurso

biográfico, de elementos fundamentais em que se pode decompor a maior parte dos discursos de cunho biográfico,

como: nome, data e local de nascimento e morte do biografado, nome dos pais, família a que pertenceu e veio a

constituir, se veio, profissões e cargos que exerceu, lugar ou lugares onde viveu, legado que deixou para a

sociedade”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura

popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013. p. 121. 137 Ibidem. p. 119. 138 BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta Moraes e AMADO, Janaína. Usos e

abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed FGV; 2006, p. 183-191. 139 STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, jun. 2011. p. 115.

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Cabem aqui duas observações antes de continuar: a primeira delas diz respeito ao motivo

da escolha de apenas três sujeitos para fazerem parte dessa prosopografia. Essa decisão foi

tomada baseada na impossibilidade de analisar todos os membros da instituição, que chegou a

ter mais de duzentos sócios, entre todas as categorias. Verticalizar a análise apenas nos

fundadores foi a alternativa que encontramos para dar conta de nosso objetivo, onde foi levado

em consideração também a ausência de informações mais precisas a respeito dos outros

membros da instituição. Isso justifica uma possível assimetria em nossa análise.

A outra ressalva a ser feita aqui é sobre os dados coletados para a produção do nosso

experimento prosopográfico: trata-se de versões já biografadas destes sujeitos, feitas

anteriormente, por eles mesmos ou através de seus biógrafos, onde a maioria delas foram

encontradas em recortes de reportagens de jornais ou em pequenos fragmentos de memórias

localizados dispersos na documentação utilizada para a produção desta dissertação. Por isso

mesmo é que escolhemos e colhemos os dados mais “objetivos”, os biografemas. Informações

obrigatoriamente presentes nas biografias de pessoas e personagens, que são: local de

nascimento, origem social, formação escolar, ocupações profissionais e suas articulações

políticas e sociais.

Este item, portanto, tem o objetivo de mostrar o que há de comum na trajetória de vida

daqueles sujeitos que fundaram o Centro Social Morrinhense, que o idealizaram desde o início,

quando era apenas um fiapo de ideia que se materializava em um papel grosso e amarelado, em

cima da mesa de madeira envernizada e manchada pela cera derretida da vela acesa na noite

anterior, no quarto de um morrinhense, no Seminário Maior.

*

O primeiro ponto que podemos destacar é que todos eles nasceram no mesmo local e

são pertencentes a uma mesma geração. Todos eles nasceram e viveram grande parte de sua

infância e adolescência em Morrinhos, durante as décadas de 1930 e 1940. O mais velho deles,

José Ataíde, nasceu em 04 de julho de 1929, e o mais novo, José Adrião Sousa, no dia 01 de

março de 1934. Mundico Rocha nasceu em 30 de abril de 1929. Esse sentimento de

pertencimento à cidade, ao espaço transformado em lugar pela vivência, se torna claro nos

textos que os três escrevem nos jornais. Artigos permeados de ideias referentes à defesa

permanente “do torrão natal”, da “pátria mãe”, da “terra querida”, da “vila privilegiada”.

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Nasceram em um momento particular na história cearense: a década de 1930, com a

chegada do gaúcho Getúlio Vargas à presidência do Brasil e a chefia política do Ceará sendo

entregue a interventores nomeados pelo governo federal, registrou uma série de políticas

intervencionistas para acabar com o monopólio das oligarquias, que atingia diretamente o

distrito de Morrinhos, ameaçando enfraquecer o grupo oligárquico dominante no distrito, a

família Rocha, representada pela figura do “coronel” Joaquim Coriolano da Rocha, avô de

Mundico, que comandava o cenário político morrinhense desde o final do século anterior.

Soma-se a isto uma crescente modernização das cidades, principalmente as que se

localizavam no interior do estado, manifestadas e regidas ainda sob o discurso da modernidade,

do sonho pela cidade moderna e da prevalência da vida urbana. Isso provocou um consequente

declínio da vida rural, dos setores ligados ao campo, iniciado já no fin de siècle, com a

emergência de uma classe industrial, burguesa e citadina. Muito provavelmente, as famílias dos

três fundadores do CSM, organizações familiares ligadas à posse de terras, sofrendo com essa

perda de prestígio da vida rural, teriam permitido e incentivado que seus filhos tomassem o

rumo das grandes cidades.

Os três se conheceram ainda na infância, frequentaram os mesmos espaços em

Morrinhos, notadamente espaços ligados a uma sociabilidade religiosa, católica, levados por

seus pais, como reuniões em capelas, procissões, celebrações eucarísticas, catecismos, etc.

Geralmente esse trânsito se dava entre uma cidade e um distrito: Marco e Morrinhos. Mundico,

em sua entrevista, falou da importância do catolicismo como um elemento importante para a

construção da amizade entre eles:

Nossos pais eram católicos. Minha mãe morreu quando eu tinha onze anos, mas ela

me deixou um ensinamento muito profundo que ficou dentro de mim, de modo que

eu me alinhei a uns colegas, entre eles José Ataíde e Adrião, que os pais eram também

muito religiosos. E por causa disso nós pegamos uma amizade muito íntima.

Brincávamos carnaval, que na época era chamado de entrudo, onde pegávamos um

copo d’água, uma bacia d’água e saíamos correndo para jogar nos outros. Depois,

quando tínhamos uns 13, 14 anos, o padre do Marco tomou posse e saiu uma notícia

que dizia assim: quem, durante 63 semanas, na primeira sexta-feira do mês se

confessasse e comungasse, ganharia um prêmio. E nós do grupinho íamos, toda

primeira sexta-feira, para o Marco, a pé. Atravessávamos o rio, de cavalete ou de

canoa, todos jovenzinhos. O prêmio era o céu.140

O fato de haver uma amizade entre eles desde a infância se torna um dado importante

de ser mencionado aqui, pois um “amigo” não é apenas um conceito pertencente ou que denota

140 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha. Op. Cit.

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uma exterioridade. Amigo é “uma presença intrínseca, uma categoria viva”141. Amigo é uma

condição de possibilidade de pensamento, de ação, de relação, de correspondência, de atuação,

de ocupação. Essa amizade entre os três foi fundamental para que se estabelecesse uma

profunda relação de reconhecimento entre os três, que mutualmente se referenciavam, se

reconheciam como membros fundadores do Centro Social Morrinhense, como seus

idealizadores, como aqueles responsáveis por sua criação e manutenção. Se reconheciam como

amigos, como os homens responsáveis por inventar um futuro melhor para Morrinhos. Quem

sabe aí, através dessa relação construída entre os “jovenzinhos” que estavam buscando o “céu”,

atravessando o rio caudaloso em uma canoa insegura, experenciando os lugares na vila de

Morrinhos, a instituição que teria o nome de Centro Social Morrinhense já não estava se

formando?

Imagem 6: Raimundo Nonato Araújo da Rocha, o Mundico. Fonte: Jornal Voz de Morrinhos, 1958.

Todos eles nasceram no seio de famílias possuidoras de uma boa e estável situação

econômica, ligadas às atividades comerciais, agrárias e políticas em Morrinhos. O pai de José

Adrião, Virgílio Alberto Sousa, possuía um açougue bem movimentado no centro da vila, um

dos poucos existentes até então, e sua mãe, Raimunda Nonata Sousa, se limitava aos afazeres

141 DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 11.

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domésticos e as idas à igreja. As famílias de Mundico Rocha142 e José Ataíde143 eram

proprietárias de grandes faixas de terras, nas margens do Rio Acaraú, repletas de carnaubeiras,

onde fabricavam a cera de carnaúba, produziam palhas, principalmente para confecção de

chapéus, plantavam feijão, milho, oiticica, mandioca e cuidavam do gado. A família de

Mundico Rocha, como já mostramos em tópico anterior, também comandava o cenário político

da pequena localidade.

Todos eles transitaram e/ou moraram nas mesmas cidades: Morrinhos, Marco, Sobral e

Fortaleza. Alguns experimentaram outros lugares, como é o caso de José Adrião, que

posteriormente viajou à França, e José Ataíde, que viveu seus últimos dias como monsenhor

em Reriutaba. Mas essas quatro cidades estão muito presentes na vida dos três. O interessante

aqui é que a experiência espacial deles, uma vivência notadamente urbana, é completamente

diferente da que tiveram seus pais, que viveram sempre em Morrinhos, onde os limites entre o

rural e o urbano eram muito imprecisos naquele momento. Eram famílias presas à terra, e com

a emergência e consolidação de uma ordem urbana e industrial, gerando um consequente

declínio das atividades agrícolas, fizeram com que seus filhos migrassem e optassem pela vida

nas cidades, dedicando-se ao serviço público ou atuando como profissionais liberais.

Apesar do memorialista João Leonardo Silveira afirmar que eles, em Fortaleza,

“estudavam em pequenos colégios, cursos e escolas quase sempre de subúrbios”144, a

prosopografia mostrou justamente o contrário. Mundico Rocha estudou no Ginasial Farias

Brito, fundado em 02 de fevereiro de 1935, na esquina da Barão do Rio Branco com a Clarindo

de Queiroz, no centro de Fortaleza, por iniciativa do professor Adualdo Batista, onde concluiu

o curso de humanística em 1953. O Ginasial Farias Brito, hoje Colégio Farias Brito, é uma das

maiores e mais tradicionais organizações privadas de ensino do estado do Ceará.

José Ataíde frequentou o Seminário Maior, fundado em 10 de outubro de 1864 por Dom

Luís Antônio dos Santos, o primeiro bispo de Fortaleza, e logo se tornou a maior instituição

católica de formação eclesiástica do estado, ligada à Arquidiocese de Fortaleza. Antes já havia

passado seis anos no Seminário São José, criado por Dom José Tupinambá da Frota, em Sobral,

142 Um fato curioso sobre o pai de Mundico Rocha, João Cariolano Rocha casado com Maria Adelaide Rocha, foi

narrado por ele em entrevista: “Depois da divisão de terras feitas pelo meu avô, meu pai ficou com a pior parte das

terras, onde hoje se encontra o mercado público da cidade. Além disso, ele possuía uma vazante no rio e tinha

umas vaquinhas. Certo dia pela manhã, quando estava tirando leite de uma vaca, pegou um coice muito forte e

ficou com o pescoço torto. E assim permaneceu. Morreu aos 79 anos sem nunca ter ido ao médico. Ficou conhecido

na cidade como Careca, o homem do pescoço torto”. Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha. Op. Cit. 143 Seus pais eram Antônio Osmar Vasconcelos e Maria Abigail Alves Vasconcelos. Moravam em uma casa no

centro da cidade, no Quadro da Rua, próximo à igreja Matriz. A rua hoje leva o nome de seu filho. 144 SILVEIRA, João Leonardo; SILVEIRA, Maria Luzia Rocha. Op. Cit. p. 406.

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entre os anos de 1944 e 1950. José Adrião estudou no Ginásio Sobralense e no Liceu do Ceará,

este último criado por decreto em 19 de outubro de 1845, sob direção de Thomás Pompeu de

Souza Brasil, o Senador Pompeu. O Liceu era o principal destino dos estudantes, notadamente

filhos das elites locais, das principais cidades da província, e exerceu uma enorme influência

no ensino secundário de Fortaleza durante o século XX145. Pode-se perceber, portanto, que eles

não estudaram em pequenos centros de formação escolar e intelectual, muito menos eles se

localizavam em subúrbios.

Imagem 7: José Ataíde Alves de Vasconcelos. Fonte: Jornal Voz de Morrinhos, 1956.

Dois deles, Mundico Rocha e José Adrião, fizeram o ensino primário em Morrinhos,

frequentando aulas particulares nas casas dos próprios professores, por falta de um espaço mais

adequado para as aulas. A partir de 1936, ingressaram nas escolas isoladas, um programa

voltado para atender as demandas e combater o analfabetismo em bairros periféricos, nas vilas

e em áreas rurais, cuja função era dar uma formação básica, como leitura, escrita e as operações

elementares da aritmética, à população pobre, residente nesses locais. Logo também foi fundado

145 Para mais informações sobre o ensino secundário cearense, notadamente na primeira metade do século XX, ver

OLIVEIRA, Joyce Carneiro de. Entre a guerra e as reformas: o ensino secundário cearense (1918-1930).

Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação-UFC/Mestrado em Educação Brasileira. 2007.

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o curso particular São Gerardo, com um programa de ensino “para alunos mais adiantados”146,

voltado para aqueles que desejavam prestar seleções para estudar em Fortaleza, como foi caso

de José Adrião e Mundico Rocha. José Ataíde, no entanto, fez seu curso primário não em

Morrinhos, mas no Educandário São Manuel, em Marco, tendo sido o primeiro aluno a ser

formado naquela instituição.

Dois deles, à exceção de José Ataíde, vieram a ocupar cargos públicos. José Adrião foi

funcionário do Banco do Brasil em meados da década de 1950, e foi um dos coordenadores da

comissão de instalação do Banco do Estado do Ceará – BEC. Mundico Rocha trabalhou, na

segunda metade da década de 1950, no Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários

– IAPC, criado no governo constitucional de Getúlio Vargas, ligado ao que conhecemos hoje

como Previdência Social.

Todos eles tiveram uma estreita relação com a vida político-partidária, notadamente

quando faziam parte do Centro Social Morrinhense, onde constantemente estavam em diálogo

com deputados estaduais, em várias legislaturas, visando alcançar aquilo que idealizavam para

a cidade. Porém, apenas Mundico Rocha chegou, de fato, a exercer carreira política, mesmo

que por apenas quatro anos, quando foi eleito o primeiro prefeito de Morrinhos, entre 1958 a

1962, com a ajuda e apoio de sua família, que já estava no comando da política morrinhense.

Todos eles participaram, direta ou indiretamente, de instituições destinadas a uma

sociabilidade literária e ao cultivo da memória e consagração de grandes personalidades,

notadamente pertencentes a uma elite política e intelectual, no âmbito estadual. José Adrião,

dentre os três, é o caso mais ilustrativo dessa situação: ao concluir o curso ginasial no Liceu do

Ceará, em 1953, logo ingressou na Academia Centrista de Letras, fundada em 10 de janeiro de

1943, instituição subordinada ao Centro Estudantal Cearense-CEC. Frequentava as atividades

na instituição, ao mesmo tempo em que comparecia e se mostrava como um dos principais

oradores do Centro Social Morrinhense. José Adrião começou atuando na Academia Centrista

de Letras como arquivista, e logo depois passou a exercer o cargo de bibliotecário e responsável

pelo acervo da biblioteca da instituição.

146 Ibidem. p. 195.

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Imagem 8: José Adrião Sousa. Fonte: Jornal Voz de Morrinhos, 1956.

Todos eles exerceram as atividades de jornalista, publicando seus escritos em vários

periódicos de Fortaleza. O papel da imprensa na trajetória deles foi importantíssimo, pois, além

de exercerem o cargo de correspondentes, também fundaram um jornal, o Voz de Morrinhos.

Escrever nos principais jornais levaram estes sujeitos a utilizarem seu conhecimento e saber

para se firmarem como autores, como pessoas públicas, como personas, como homens das

letras, como intelectuais e formadores de opinião pública.

O jornal seria, para eles, uma vitrine, uma possibilidade de elevar o status social do

grupo, um espaço de visibilidade, onde “consagrava certos autores e relegava outros ao

ostracismo”147. Foi também uma forma de angariar recursos financeiros, visto que a imprensa

já estava se profissionalizando e remunerando seus correspondentes. Dentre os três, José Ataíde

era o que menos publicava, muito provavelmente por sua ligação com o Seminário Maior e com

a Arquidiocese de Fortaleza, como um aspirante à carreira sacerdotal, situação que o deixava

mais recluso. Quando o fazia, geralmente escrevia no próprio jornal do CSM, sob o pseudônimo

de Artur Campos148. José Adrião e, principalmente, Mundico Rocha, ao lado também de outros

147 LUCA, Tânia Regina de. A Revista no Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo: Editora da Unesp,

1996, p. 36. 148 Infelizmente não foi possível descobrir os motivos que fizeram José Ataíde escolher especificamente esse nome,

“Artur Campos”, como pseudônimo.

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membros do Centro Social Morrinhense, trabalhavam como correspondentes nos periódicos O

Povo, O Nordeste, Gazeta de Notícias, Correio do Ceará e Unitário.

Todos eles foram, juntamente com os demais centristas, vinculados à Associação

Cearense dos Jornalistas do Interior – ACEJI, ligada à Associação Cearense de Imprensa. Essa

filiação institucional possibilitou a eles ainda mais espaço como correspondentes nos jornais de

Fortaleza, especialmente no Correio do Ceará e Unitário, onde João Leonardo Silveira, na

época já presidente do CSM, fundou a Coluna Morrinhense, que trazia diariamente notícias de

Morrinhos e do Centro Social Morrinhense. Leonardo Silveira contava com o apoio,

principalmente, de Mundico Rocha e Otacílio Oquendo, que mantinham a Coluna Morrinhense

junto com ele.

Portanto, este breve experimento prosopográfico foi para mostrar que, embora os

sujeitos que fizeram parte do Centro Social Morrinhense tivessem constituído um grupo não

homogêneo, foi possível, a partir do cruzamento de suas trajetórias, visualizar um perfil comum

entre eles, notadamente aqueles três que tiveram a ideia de fundação do CSM.

Nascidos no seio de famílias em decadência, cuja base econômica principal era a

propriedade de terras, pertencendo a uma geração que sofria com a desilusão da vida rural e o

declínio das atividades agrícolas, fazendo com que muitos deles se estabelecessem nas cidades

e nos grandes centros urbanos, foram sujeitos cujas famílias foram articuladas umas às outras,

por parentesco ou relações de compadrio, ligadas intimamente ao grupo oligárquico que

comandava a política morrinhense, a organização familiar dos Rocha.

Frequentaram os melhores colégios e centros de formação educacional do estado, onde

aproveitaram o capital cultural que dispunham para participar de atividades sociais, políticas,

intelectuais e culturais, principalmente em Fortaleza, integrando e fomentando sociabilidades

literárias em instituições dedicadas aos homens das letras. Espaços institucionais de

preservação e preocupação com a perenidade de seus nomes e de suas histórias, como “homens

preciosos que funcionariam como faróis, como guias para a sociedade de que foram membros,

que para eles deveriam olhar e neles se espelharem”149. Espaços como o Centro Social

Morrinhense. Foram sujeitos que militaram ativamente na imprensa do Ceará, onde escreveram

nos principais jornais de Fortaleza e fundaram seu próprio periódico, pertencente ao CSM.

*

149 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit. 2013, p. 133.

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Depois de apresentar os principais espaços da cidade de Morrinhos e sua formação

urbana, além de um passeio pelo Centro Social Morrinhense, mostrando as suas condições de

possibilidade de emergência e fundação, seu funcionamento e seus membros mais atuantes,

podemos agora avançar e analisar as relações, notadamente intelectuais, políticas e identitárias,

que essa instituição manteve com a pequena vila de Morrinhos durante a década de 1950.

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CAPÍTULO 2

Entre o papel e a pedra, a terra e os sonhos, a cidade do desejo: o Centro

Social Morrinhense, a construção de seu discurso e suas práticas de espaço

2.1 “Morrinhos terra de progresso”: a emergência de uma construção discursiva

Na noite do dia 09 de agosto de 1953, ventava bastante na capital alencarina, fazendo

com que os cabelos da “loira desposada do sol” esvoaçassem. Por volta das 20 horas, um

movimento incomum chamou a atenção daqueles que transitavam pela Rua Senador Pompeu.

Encostados ao meio-fio, responsável pela divisão e hierarquização entre o asfalto e a calçada,

os pedestres e os carros, uma grande fileira de automóveis se fazia presente, em frente a um

prédio azul de dois andares.

A sede da Associação Cearense de Imprensa estava movimentada naquela noite.

Homens trajados de ternos e sapatos reluzentes e mulheres com seus vestidos e saias rodados,

cobertos por vivas estampas e forrados de anáguas, entravam e saíam do edifício. Os mais

jovens demoravam-se a entrar, aproveitavam o sopro do vento que vinha desde a Praia de

Iracema e se quedavam no passeio enquanto acendiam um cigarro, objeto tão glamourizado

pelo cinema de Hollywood, nos anos de 1950. Era moda fumar. Conversavam animadamente,

escorados em um Chevrolet. Um ou dois mendigos deitavam-se no lancil, mais afastados. Mas

o que de fato estava ocorrendo ali?150

A noite do dia 09 de agosto de 1953 marcou a sessão solene de comemoração do

primeiro ano de fundação do Centro Social Morrinhense. Uma semana antes, a instituição havia

realizado eleição para escolher nova diretoria: Raimundo Nonato Araújo da Rocha, o Mundico,

foi reeleito presidente. Aquela noite seria de comemoração, mas também pautada por discussões

a respeito do futuro da entidade, e porque não dizer também, de seu passado, de suas conquistas

e das benesses conseguidas através do CSM para a vila de Morrinhos até aquele momento.

Além da presença na reunião dos membros da Diretoria, do Conselho Fiscal e do

Conselho Superior do Centro Social Morrinhense, “compareceram à mesma as mais altas

150 Os dois últimos parágrafos foram escritos utilizando-se de informações coletadas em entrevista com Raimundo

Nonato Araújo da Rocha e na análise da documentação, como fotografias, atas de reuniões do Centro Social

Morrinhense e artigos de jornais da época.

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autoridades do estado”151. A ata da sessão solene destaca as presenças de Pio Saraiva,

representante do governador do estado; Valdemar de Alcântara, secretário de educação;

Francisco Monte, deputado estadual; Francisco Abdoral Rocha, vice-presidente da Elite

Morrinhense; Francisco Vasconcelos de Arruda, “líder político na capital e outros”152. A

reunião de comemoração foi conduzida pelo presidente do Conselho Superior, José Mauri

Rocha, recém empossado e irmão de Mundico.

Após os pronunciamentos de Pio Saraiva e José Mauri Rocha, o som grave das vozes

daqueles homens que suavam por baixo dos paletós e ternos engomados, fora substituído pelo

gemido melancólico de um violino tocado por Célio Alan Meneses, estudante secundarista.

Logo depois, seguiu-se um choro desafinado de sanfona, tocado pelo também estudante Alcides

Batista, acompanhado por um recital de poesias de Domingos Gomes de Aguiar “e da senhorita

Temes Araújo”153. Após todos escutarem “embevecidos” os musicais, Mundico toma a palavra

e:

com lacônicos vocábulos, exprimiu sua gratidão pela sua ascensão ao cargo que antes

vinha ocupando e prometeu envidar os maiores esforços no sentido de tudo colaborar

para o florescimento deste grêmio que vem sendo a pedra fundamental a valorizar os

anseios e facilitar as vitórias daquele povo da vila de Morrinhos, a quem a Providência

deu por berço as margens do Acaraú.154

Antes do encerramento da reunião, porém, ocorreu um fato curioso aos olhos de um

historiador: o orador oficial da instituição, José Adrião Sousa, “assumiu a tribuna para discorrer

sobre Morrinhos e o Centro Social Morrinhense”155. O que foi dito por José Adrião? Não

sabemos. Mas logo após sua fala, pediu para ler, novamente, naquela sessão solene tão

importante, um texto já conhecido e que já havia sido publicado anteriormente: “Morrinhos,

terra de progresso”, do também centrista José Ataíde Alves de Vasconcelos, que não esteve

presente por conta de compromissos no Seminário Maior de Fortaleza. José Adrião, amparado

por um pulpitum improvisado, “leu em voz alta e pausada”156, o texto impresso na primeira

edição do Jornal Voz de Morrinhos:

Morrinhos, terra de progresso: Ancorando-se aos grandes ideais que fulgem no

luminoso céu das mentes humanas, o povo idealista de Morrinhos, vem n’um gesto

de evolução e heroísmo, n’uma afirmação concreta, plasmando a urbanização de sua

amada terra, deixando para trás definitivamente sua paisagem de fazenda. Morrinhos,

cédula do grandioso Ceará, plantado pela Providência à margem do grandioso Rio

151 Ata da sessão solene do CSM, em 09 de agosto de 1953. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense. 1953-

1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 2. 152 Ibidem, fl. 3. 153 Ibidem, fl. 3. 154 Ibidem, fl. 4. 155 Ibidem, fl. 4. 156 Ibidem, fl. 4.

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Acaraú, nas imediações das cidades de Licânia e Acaraú, oferece aos seus visitantes

uma graciosa e hospitaleira estada. Abstraído das diferentes marchas de progresso,

linear, helicoidal ou horizontal, o povo entusiasta deste distrito, abandonando o

marasmo e a utopia de muitos outros, está se construindo pasmorosamente.

Engalanou-se internamente, abriu estradas, enviou filhos aos estudos e representantes

aos poderes constituídos e hoje é possuidora de um ar de princesa. Todos colaboram

para um verdadeiro progresso, uma verdadeira evolução. Conquistam luz para as

inteligências, organizando casas de estudos onde se cultivam as inteligentes crianças,

esperanças do porvir. Adquirem luz, conseguindo possante energia motora,

iluminando suas alamedas e suas praças num encantador deslumbramento. Boas

estradas o mantêm em contínuas relações comerciais e sociais com a capital.

Instalações radiofônicas torna-o em contacto com o movimento e progresso de outras

regiões e fornecem ao povo momento de ócio reconfortante e regenerador. E

Morrinhos se impõe contra os opressores de sua eclosão rica de ensinos porque

ministra a outros distritos a grande lição do quanto pode um povo varonil. Em

Fortaleza, organiza-se o Centro Social Morrinhense, fagueira esperança de melhores

dias, e nele pulsa um só coração e se alimenta um só ideal: combater denodadamente

por uma melhor posição social de seu solo natal. O simbólico estandarte dessa

associação no tremular nervoso de suas dobras, sob o bafejo suave da brisa idealista

dos jovens que a idolatram faz bater os corações e pulsar os íntimos recessos de suas

almas. E lançam-se na refrega e Morrinhos progride, e Morrinhos avança lançando

aos quatro ventos o seu brado de vitória: somos um povo forte e lutamos por uma terra

forte. Fortaleza material, intelectual e moral. Tríplice coroa que podem depor sobre o

altar das glorias erguido a esta gente nobre. Morrinhos, terra de progresso, deixa em

surpresa ao que vai visitar, o evoluir rápido de um povo laborioso apesar dos óbices

artificiais e naturais. De parabéns o povo de Morrinhos, continue firme e destemido a

sua marcha, edificando em granito o pedestal de sua gloriosa avançada contra as raias

do marasmo. Entusiasmo, meio crítico, alegria da vitória, tríplice itinerário atravessou

este povo. Oxalá ele usufrua desta brilhante caminhada merecendo de Deus, dos seus

e alcançando da Pátria as condecorações de honra. Na próspera vila cuida-se do ensino

dos pequenos aos jovens, e em centros adiantados há filhos que, esmerando-se no

aprimoramento da inteligência, constroem o futuro da cultura morrinhense. Aí estão

os meios de diversão sadia, como o serviço de auto-falantes que a todos proporcionam

momentos de agradável recreio. Aí está a luz elétrica, onde as ruas e residências

desfrutarão do benefício do motor de luz. Aí estão as estradas em construção, que

trarão em breve a esta vila uma posição invejável pela facilidade de comunicação com

outras cidades. Por tudo isso e por outros empreendimentos que seria longo enumerar

neste ligeiro artigo, Morrinhos vem alcançando um lugar de vila privilegiada. 157

José Adrião, ao terminar a leitura entusiasmada do texto, “desceu da tribuna em delirante

salva de palmas”158. Mas por que a ênfase de José Adrião neste artigo? Por que realizar sua

leitura em uma sessão solene tão importante, quando este já havia sido publicado sete meses

atrás e a grande maioria o conhecia? Acreditamos que, se de fato o Centro Social Morrinhense

é a “pedra fundamental”, como afirmou Mundico, o artigo de José Ataíde emerge como o

discurso inaugural de uma construção discursiva mais ampla, que permitiu dizer e fazer ver

Morrinhos como a “terra de progresso”. Mas qual o sentido em afirmar que o artigo lido em

voz alta por José Adrião se trata de um discurso inaugural?

157 Morrinhos: terra de progresso. Jornal Voz de Morrinhos, nº 01. 06 de janeiro de 1953. 158 Ata da sessão solene do CSM, em 09 de agosto de 1953. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense. 1953-

1957, fl. 2.

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Primeiro, é necessário levar em consideração suas características de publicação. Não se

tratou de um texto publicado em qualquer data, em um número avulso do jornal da instituição.

Morrinhos, terra de progresso apareceu publicado no primeiro número impresso a circular do

jornal do CSM, foi colocado estrategicamente na primeira página, logo ao lado da carta de

apresentação do periódico. Devido ao seu tamanho, o texto não se esgota na primeira folha.

Suas últimas frases são ditas na última página da edição número um do Voz de Morrinhos,

fazendo com que o leitor folheie o jornal por inteiro antes do texto ultimar-se. Se de um lado

temos a carta de apresentação do jornal, do outro temos o texto que inaugura a construção

discursiva do Centro Social Morrinhense a respeito da vila de Morrinhos, um discurso positivo,

uma forma muito particular de ver e dizer aquele espaço.

Imagem 9: Primeiro número do jornal Voz de Morrinhos. Em destaque, ao lado esquerdo, a carta de

apresentação do jornal. Ao lado direito, o texto de José Ataíde Alves de Vasconcelos.

O texto de Ataíde que trouxemos na íntegra acima, levando-se em consideração seu

sentido de discurso inaugurador159, reflete uma tentativa de uma escrita que (de)marque e

ordene a temporalidade160 de um espaço em construção, discursiva e materialmente,

especialmente um tempo que se manifeste enquanto novo. O texto procura consolidar e

sedimentar um saber a respeito do espaço nomeado de Morrinhos. Entendemos que o texto de

159 Sobre a noção de discurso inaugurador e as possíveis justificativas para uso deste conceito, recomendamos a

análise primorosa que o historiador Diego José Fernandes Freire fez em sua dissertação de mestrado sobre o

capítulo Massangana, presente na obra Minha Formação, de Joaquim Nabuco. Para Freire, Massangana emerge

como o discurso inaugurador da formação discursiva que o autor nomeou como “literatura de engenho”. Ver

FREIRE, Diego José Fernandes Freire. Contando o passado, tecendo a saudade: a construção simbólica do

engenho açucareiro em José Lins do Rego (1919-1943). João Pessoa: Ideia, 2015. p. 159-193.

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Ataíde, para além de uma descrição e construção de uma visibilidade e dizibilidade de

Morrinhos, é também um esforço de construir uma ordem para uma dada dispersão, de

organizar o diverso, o que estava fragmentado, o que estava irregular161. O que se tinha a

respeito de Morrinhos, antes da publicação do artigo de Ataíde no Jornal Voz de Morrinhos,

eram apenas fragmentos de palavras, lampejos de ideias esquecidas. Ataíde as organiza, as

coloca em uma ordem, escreve e descreve a vila a partir de sua perspectiva, construindo um

discurso espacial positivo, onde Morrinhos aparece no texto como um espaço sempre em

movimento, sempre em combate contra o “marasmo”, como um espaço que se ergue em busca

do “altar das glórias”.

O artigo procura fixar imagens de uma cidade ideal, um espaço desejado por ele e pelo

Centro Social Morrinhense, onde se corta o fio tênue entre passado e presente, onde Morrinhos

deixa para trás sua “paisagem de fazenda” e, “n’um gesto de evolução e heroísmo” de seu povo,

embarca nos delírios e devaneios da urbanização e da “modernidade”. O presente é o que se

deseja para o futuro. O espaço de experiência constrói e possibilita a invenção do horizonte de

expectativas, a projeção do futuro dessa “cédula grandiosa do Ceará”. Neste sentido, o desafio

de José Ataíde e do Centro Social Morrinhense era de construir um discurso sobre Morrinhos

que o coloque enquanto espaço vocacionado para o progresso, “em suas diferentes marchas”,

fazendo com que essa espacialidade nomeada servisse como exemplo para outras cidades,

mesmo que, juridicamente, ainda nem fosse uma cidade, mas um distrito. Morrinhos, segundo

Ataíde, já havia abandonado o “marasmo e a utopia de muitos outros”, e estaria em direção ao

“verdadeiro progresso”.

Se existia um “verdadeiro progresso”, tão clamado por Ataíde e pelos membros do

Centro Social Morrinhense, deveria haver, para eles, um “falso progresso”, ou um movimento

em direção errada e contrária aos ideais “que fulgem no luminoso céu das mentes humanas”.

Ou seja, para Ataíde e os intelectuais do CSM, esse caminho até o progresso, que no texto dá

impressão de ser algo palpável, que já podia ser sentido e visualizado através da modernização

e urbanização do espaço de Morrinhos, no entanto ainda está ausente, exigindo, ainda, um

caminho a percorrer para atingi-lo em toda sua integridade. Caminho que só poderia ser trilhado

por uma comunidade singularizada por sua “fortaleza material, intelectual e moral”, pela

“tríplice coroa” que sustentaria a cidade ideal. De acordo com Marcel Roncayolo, cidade ideal

161 Sobre a narrativa enquanto uma forma de organização temporal, ver LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo.

Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

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“é um projeto político no mais lato sentido do termo; não se refere, portanto, apenas ao

ordenamento da cidade, mas também da população no seu conjunto”162.

A “fortaleza material” estaria no desejo de, discursivamente, forjar uma modernidade

urbana para Morrinhos, aparelhando a vila com as novidades tecnológicas e fazendo-a

“moderna”, um espaço reconhecido por se colocar como vanguarda progressista. Isto, porém,

não seria tarefa fácil, visto que Morrinhos, primeiramente, ainda não era cidade. Segundo, que

se tratava de uma vila tradicionalmente rural, com uma identidade fortemente ligada ao campo

e às atividades agrárias, além de possuir uma população muito pobre. O Centro Social

Morrinhense cultivava entre seus membros um profundo “patriotismo citadino”163, e era

necessário construir entre os morrinhenses um sentimento que os deixassem pretensamente

orgulhosos de sua terra. Na edição do jornal Voz de Morrinhos de 1955, é possível encontrar

uma passagem que traduz bem a construção de “patriotismo citadino” para além dos membros

da instituição:

Morrinhenses, patriotas, mesmo que os poderes públicos, impassíveis, não realizem

vossos ideais de progresso; mesmo que a natureza impiedosa não faça brotar de vosso

solo, a prosperidade; lutai indiferentes. Depois, se não fizerdes de Morrinhos uma

cidade importante, havereis ao menos de fazê-la notável pela nobreza de seu povo e

pela entidade que vos representa.164

O CSM admitia que, se não fosse possível alcançar o progresso desejado, só esse

patriotismo citadino, construído e alimentado no presente, o tempo que marcava justamente a

presença da própria instituição na vila, já seria o suficiente para fazer esse espaço ser notado.

Seria por meio dela que todos alcançariam um futuro melhor. O importante seria lutar pelo

progresso e por uma “cidade importante”. A cidade desejada ia se constituindo aos poucos, com

seus olhos voltados para frente, para o horizonte. Não poderia olhar para trás, porque o passado

simbolizava o atraso. Era vazio.

Aqui poderíamos apontar uma diferença fundamental entre o Centro Social Morrinhense

e outras instituições de intelectuais cearenses, como, por exemplo, o Instituto Cultural do Cariri,

no Crato, e a Academia Sobralense de Estudos e Letras, em Sobral: ambas se aventuraram na

tentativa de uma escrita da história dos espaços que representavam. No ICC, figuras como

Irineu Pinheiro e o Padre Antônio Gomes de Araújo, almejaram construir uma história que

162 RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Enaudi. Porto: Imp. Nacional, 1986, p. 469. 163 Segundo Roncayolo: “O patriotismo citadino é certamente uma ideologia muitas vezes utilizada, se não mesmo

criada, pelas classes ou pelas elites dirigentes, que lhe definem o conteúdo”. RONCAYOLO, Marcel. Op. Cit. p.

433. 164 Jornal Voz de Morrinhos, nº 5, janeiro de 1955, p. 5.

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glorificasse o passado do Crato e justificasse sua superioridade na região do Cariri. De acordo

com José Ítalo Bezerra Viana, o:

ICC se esforçou em produzir narrativas que visavam gerar orgulho e admiração pelos

feitos heróicos do passado. Havia uma preocupação, por parte dos membros do ICC,

de produzir a crença de que foram “os dias de glória e de martírio da jornada de maio”

de 1817, que fizeram o Crato e o Cariri “nascerem” para a história do Brasil.165

Neste mesmo sentido estava a ASEL e seus intelectuais, que visavam fazer do passado

o lugar da história de Sobral, inventando-a como cidade intelectual, enobrecida e distinta.

Francisco Denis Melo afirma que:

(...) o passado é certamente o vértice de praticamente todas as discussões relativas a

História de Sobral perpetrada por esses autores e de maneira geral pelos intelectuais

das duas Academias da cidade. A “volta ao passado”, ou ao “futuro do passado”, para

citarmos Koselleck, o retorno contínuo ao sentido do que seria considerado “a

História” de Sobral move os textos de muitos membros dessas instituições, que

buscam desse modo a virtualidade da “fonte de uma cultura sofisticada e distinta”.

Assim considerado, o passado transubstanciado, retomado, ou desejado, assume

perspectivas de invenção à medida em que constantemente é entendido e sentido como

alimento crucial para as faltas do presente.166

Dentro das reuniões do Centro Social Morrinhense não há nenhum movimento amplo

que invista na construção de uma história de Morrinhos, muito menos na veneração e

glorificação de seu passado. É interessante notar que Ataíde não menciona em seu texto nenhum

personagem histórico de Morrinhos. Diferentemente do ICC e da veneração dos nomes de

Bárbara de Alencar e Tristão Gonçalves Pereira de Alencar, uma das expressões mais regulares

no discurso de Ataíde é o conceito de povo, justamente pela necessidade que ele via de

mobilizar um corpo sem rosto, uma unidade representativa do todo, notadamente pela ausência

de “figuras ilustres”. Enquanto que na ASEL se construía, através do culto ao passado e na

descrição de personagens de uma elite intelectual e política, os chamados “vultos de Sobral”, e

a ideia de uma cidade enobrecida, Ataíde não menciona nome algum, muito menos sobrenome

algum da história de Morrinhos. O conceito de “povo” é que acaba ganhando centralidade em

seu discurso167.

Os conceitos de “caminho”, de “evolução”, de uma “brilhante caminhada” todos

presentes no texto de Ataíde, mostram qual sentido de história possuíam os intelectuais do

165 VIANA, José Italo Bezerra. O Instituto Cultural do Cariri e o centenário do Crato: memória, escrita da

história e representações da cidade. Fortaleza: Dissertação de Mestrado – PPGH UFC. 2011. p. 148. 166 MELO, Francisco Dênis. Os intelectuais da Academia Sobralense de Estudos e Letras – ASEL – e a

invenção da cidade letrada (1943-1973). Recife: Tese de Doutorado – PPGH UFPE. 2013. p. 148-149. 167 O filósofo Giorgio Agamben afirma que, toda interpretação que começa através do conceito de povo, deve levar

em consideração o fato singular de que ele abrange, ao menos nas línguas modernas, os pobres, os excluídos e os

deserdados. Sobre isso, ver AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a Política. São Paulo: Autêntica,

2015.

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CSM: a história era processual168. Ou seja, o presente é melhor do que o passado. Ao ser

processual, a história de Morrinhos seria a história de seu progresso. Se não progredisse, não

haveria história. A história como processo, como um desejo ardente pelo futuro, esquece do

passado e o engaveta na mais escura cômoda da realidade. Na produção do Centro Social

Morrinhense, não há sequer a preocupação de buscar um passado transubstanciado, retomado,

(re)significado por eles. Simplesmente parece que a história de Morrinhos começa juntamente

com o CSM e sua fundação, no alvorecer da década de 1950.

No entanto, temos aqui uma cisão de ideias, ou pelo menos alguém dentro da instituição

considerava importante e se propôs a escrever algo a respeito da história de Morrinhos: José

Adrião Sousa, à época, membro também da Academia Centrista de Letras. Ele escreve um breve

texto de apenas três parágrafos para o terceiro número do jornal Voz de Morrinhos, publicado

em 1954. A viagem de José Coriolano da Rocha, um sujeito que veio de um distrito de Acaraú

em busca de um lugar onde pudesse viver e morrer, foi eleita por José Adrião, baseada na

tradição oral e no relato “dos nossos antepassados”, como um “primeiro passo”, ponto de

origem da narrativa de fundação da cidade de Morrinhos.

O centrista estabelecia um marco temporal inaugurador (1862), e ao admitir José

Coriolano Rocha como “o primeiro habitante desse rincão pitoresco”, estabelece a família

Rocha como o grupo fundador da cidade, fato que será repetido e naturalizado nas tentativas

posteriores de construção da história de Morrinhos. Quando José Adrião escreve e publica seu

texto, a família Rocha dominava a política local, e o jovem Mundico, presidente do CSM era

um de seus principais representantes. A emergência dessa organização familiar no cenário

público de Morrinhos data das últimas décadas do século XIX, e até hoje se manifesta no

governo municipal. Em um exame atento da trajetória da família Rocha de Morrinhos, foi

possível verificar entre seus membros, enlaces matrimoniais com pessoas de famílias abastadas

de outros distritos, como é o caso de José Coriolano Rocha, que se casou com Maria Francisca

Neves Osterno, pertencente a uma família rica da cidade vizinha de Marco, que na época era

distrito de Santana do Acaraú, assim como Morrinhos. As famílias Neves e Rios comandavam

a política local naquele lugar. Além disso, temos registros de casamentos entre os Rocha e

outras famílias da região e também de Morrinhos, tais como os Vasconcelos, Silveira, Soares,

168 A filósofa Hannah Arendt afirma que na época moderna foi que o conceito de história se tornou processual. A

respeito disso, ver ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução: Mauro W. Barbosa. São Paulo:

Perspectiva, 1979.

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etc. Há de se notar também o grande número de casamentos entre primos, como uma forma de

manutenção dos interesses da família169.

A “fortaleza intelectual” se manifestava no próprio Centro Social Morrinhense, uma

instituição de intelectuais e homens do saber, a “fagueira esperança de melhores dias”. Daí a

necessidade que o CSM via em dotar a pequena vila de Morrinhos de “casas de estudo” para os

estudantes, que são “a esperança do porvir”. A ideia de se “cultivar as inteligentes crianças” e

o “evoluir rápido de um povo laborioso”, que emergem como esperança para um futuro melhor,

seja para a cidade desejada ou para a nação, o que mostra o sentido que possui a educação para

o Centro Social Morrinhense: o ensino como formação. De acordo com Durval Muniz de

Albuquerque Júnior, “a ideia de formação é teleológica, pressupõe um tempo que se preenche

e se satura, que aponta para um final”170. Este final seria o sujeito formado: conclusão da

constituição de um Eu e o encerramento de sua trajetória de construção subjetiva.

Já a “fortaleza moral” deveria se fazer inerente a caminhada em busca do tão almejado

progresso, afinal, “não há progresso que não seja também moral”171. Ataíde entendia, em

consonância com o CSM, que lutar pelo progresso de Morrinhos, era também “lutar pelo

progresso dos direitos dos homens”172. Mas esta “fortaleza moral” se traduzia, também, na

religiosidade, sobretudo no cultivo e manutenção da fé católica, na valorização da moral e dos

bons costumes. Já compreendemos que o texto “Morrinhos, terra de progresso” procura

construir uma narrativa idealizada a respeito da vila de Morrinhos, mas neste ponto é preciso

levar em conta uma dimensão que não poderíamos deixar de mencionar: o texto traz consigo,

também, seu sujeito-autor, sua figura que se constrói à medida em que ele o escreve. Por mais

que o Centro Social Morrinhense compreendesse que o texto de seu centrista era uma

representação da vila, de sua terra natal, possibilitando a quem lesse chegar verdadeiramente

àquele espaço, era inevitável também não ir de encontro a face de Ataíde, a forma como ele

enxergava Morrinhos naquele momento.

A estreita relação que o texto faz entre espaço e religiosidade, admitindo que Morrinhos

fora “plantado pela Providência nas margens do Rio Acaraú” e seria “o altar das glórias”, reflete

169 Sobre isso ver SOUSA, José Adrião. Para a História de Morrinhos: primeiros passos. Jornal Voz de

Morrinhos, n.1, 1954. p. 3; SILVEIRA, Maria Luzia Rocha. Resgatando a origem da família Rocha em Morrinhos.

In: SILVEIRA, João Leonardo; SILVEIRA, Maria Luzia Rocha. Morrinhos: Sua História e Sua Gente. Realce

Editora e Indústria Gráfica Ltda. Fortaleza, Ceará, 2009. 170 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. De armazém à campo cultivável: a instrução e a formação como

diferentes formas de aprendizagem e como diferentes relações com o saber e com a leitura, produzindo

subjetividades e sujeitos outros. Revista Línguas e Letras, nº 10, 2005. p. 249-271. 171 LE GOFF, Jacques. Progresso/Reacção. In: História e Memória. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 229. 172 Ibidem, p. 229.

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a escrita de um jovem seminarista que se tornaria padre três anos depois. Por mais que o ardor

pelo sonho do progresso dizimasse, em tese, as tradições, Morrinhos, para Ataíde, deveria

seguir o caminho de uma modernização conservadora, pois deveria ser preservadora das

tradições católicas de seu povo. Morrinhos, segundo o texto de Ataíde, chegaria ao progresso,

essa seria uma fatalidade histórica, porém, para ele, esse “tríplice itinerário”, “fortaleza

material, intelectual e moral”, deveria merecer as bênçãos de Deus na sua “brilhante

caminhada”.

Ao final do texto, a última frase chama atenção: “Morrinhos, vila privilegiada”. Mas

que privilégio seria esse? E por que Morrinhos? Que tipo de imagens, temas e enunciados são

mobilizados para justificar esse privilégio?

No final da noite, Pio Saraiva já falava novamente, desejando votos de sucesso à

instituição que “bravamente luta por Morrinhos”173. Depois da palavra do presidente Raimundo

Nonato Araújo da Rocha, agradecendo a todos pela presença na sessão, a mesma foi encerrada,

“seguindo-se logo os abraços e um cock-tail ofertado pelo Centro Social Morrinhense aos seus

assistentes”174. Antes das 23 horas, a rua já estava silenciosa e escura. Sem carros. Sem

ninguém.

2.2 “Morrinhos, a vila privilegiada”: a invenção de uma identidade espacial

No final de 1953, Francisco Vasconcelos de Arruda, então presidente do Centro

Acadêmico Clóvis Beviláqua da Faculdade de Direito do Ceará, visitava Sobral “tentando

melhor sorte nos bancos de aulas do Colégio Sobralense”175, quando recebeu o convite de

amigos para apoiar a candidatura de João Alfredo Araújo para prefeito de Santana do Acaraú.

Sendo de Massapê e tendo aspirações políticas, resolveu ajudar João Alfredo, realizando

comícios em todo os distritos e comunidades do município santanense, inclusive Morrinhos.

De acordo com ele:

(...) fui percorrendo as estradas poeirentas de minha terra, de fazenda em fazenda, de

vila em vila, levando a palavra de ordem do Partido Social Democrático. Não podia

deixar fugir o ensejo que me proporcionaram de sentir de perto como vive o povo de

173 Ata da sessão solene do CSM, em 09 de agosto de 1953. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense. 1953-

1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 4. 174 Ibidem, fl. 5. 175 ARRUDA, Francisco Vasconcelos de. Parabéns Morrinhos. Jornal Voz de Morrinhos, nº 03, janeiro de 1954.

p. 4.

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minha gleba, especialmente o de Morrinhos, que meu pai colocou-me no coração,

num halo de admiração e respeito.176

Francisco Vasconcelos de Arruda ouviu falar de Morrinhos através do pai, Ricardo José

de Arruda, que viveu ali durante grande parte de sua “meninice de sofrimentos e canseiras”177.

Logo ao saber de sua viagem, o Centro Social Morrinhense pediu-lhe que escrevesse um breve

texto sobre suas impressões a respeito da vila. Seu artigo foi publicado no número três do jornal

Voz de Morrinhos, o primeiro a ser lançado no ano de 1954:

Foi assim que conheci Morrinhos, numa manhã festiva de domingo de sol. O povo

todo esperava nas ruas a nossa caravana, e ali permaneceu atento a ouvir nossa

palavra. Lembro-me ainda: em cima da carroceria dirigi-me àquela gente. O

espetáculo jamais me fugirá da lembrança (...) é na lembrança da terra que me viu

nascer, no evocar do espetáculo daquela manhã de sol na vila privilegiada de

Morrinhos, que vou encontrar alento para uma nova caminhada.178

Francisco Vasconcelos de Arruda se tornaria uma figura importantíssima para o Centro

Social Morrinhense, mas trataremos desta questão somente no próximo capítulo. Agora,

precisamos atentar para um detalhe que pode muito bem passar despercebido por olhos

desatentos. Se Michel Foucault insiste, dentro de sua metodologia da análise do discurso, que

é preciso procurar na dispersão uma determinada regularidade discursiva, uma repetição de

enunciados, conceitos e temas, algo aqui nos chama atenção. Assim como no texto Morrinhos,

terra de progresso, que consideramos como discurso inaugurador de uma determinada forma

de ver e dizer o espaço de Morrinhos, o enunciado “vila privilegiada” também aparece no texto

de Francisco Vasconcelos de Arruda.

Na verdade, o número três do jornal Voz de Morrinhos está repleto de textos, a princípios

dispersos, mas que transitam dentro da mesma construção discursiva e praticam um mesmo

discurso, apresentando justificativas do porquê de ser Morrinhos uma espacialidade

privilegiada, em todos aparecendo o enunciado “vila privilegiada”. Todos eles também mantem

um estilo muito comum: são relatos de pessoas que, como visitantes, estão de passagem por

aquelas terras. A pedido do Centro Social Morrinhense elas escreveram suas impressões a

respeito de sua estadia na vila de Morrinhos. Se estão de certa forma a serviço do CSM, devem

claramente respeitar determinadas regras de produção discursiva, o que Foucault chama de

“regras de formação”179. Devem fabricar uma imagem homogênea de cidade para Morrinhos,

176 Ibidem, p. 4. 177 Ibidem, p. 4. 178 Ibidem, p. 5. 179 Sobre isso ver, FOUCAULT, Michel. As formações discursivas. In: A arqueologia do saber. 8ª edição. Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 38-49.

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pautada justamente nos três princípios elencados por Ataíde: “fortaleza material, intelectual e

moral”. Logo ao lado do texto de Francisco Vasconcelos de Arruda, temos outro, de autoria do

clérigo viajante João Batista Leite:

Num pedaço do Brasil onde seu progresso é mais ativo, mais cheio de vida, de luz e

de emoção, um visitante sente seu coração abalado. Um torrão onde o sol descortina

com um maior esplendor à janela da natureza. (..) Tudo ali é vida, é encanto, é alegria,

é luz. (...) Tudo isso eu vi, admirei e presenciei naquela cidadezinha da ribeira do

Acaraú, aquele torrão onde o progresso está no presente e no futuro. (...) Morrinhos,

tu também és brasileira e sou também teu filho; deixe que eu abrase meu coração junto

aos teus queridos, ó vila privilegiada.180

Michel Foucault afirma que, se não houver regularidade de enunciados, temas ou

conceitos, não há a possibilidade de existir discurso. O que temos aqui, para além da

regularidade de um enunciado tornado conceito, o de “vila privilegiada”, é um conjunto regular

de temas, de determinadas imagens, que relata esse espaço, que verbaliza e faz ver como a vila

de Morrinhos deve ser, que normatiza e ordena sua visibilidade e dizibilidade, mesmo na

dispersão dos textos e dos autores. O que fica claro, ao analisarmos as séries de textos escritos

e publicados em estreita colaboração com o Centro Social Morrinhense, é que há a tentativa de

invenção de uma identidade espacial para Morrinhos, fabricada estrategicamente pelo CSM.

Fazer de Morrinhos uma “vila privilegiada” é torná-la uma espacialidade pronta para

alçar voos maiores do que ser um simples distrito. O Centro Social Morrinhense é quem toma

para si o dever de fazê-la privilegiada e levar as pessoas e autoridades a reconhecê-la como tal.

Fazer com que outros sujeitos que não formavam, diretamente, a instituição escrevessem sobre

Morrinhos, o inventando enquanto espaço privilegiado, foi uma estratégia adotada pelo CSM

para legitimar e constituir a validade e a veracidade de seu discurso. Não bastava os intelectuais

afirmarem que Morrinhos era uma “vila privilegiada”. Era preciso que outras pessoas

comprovassem esse dizer, validassem essa imagem. Por isso a escolha e a quantidade de textos

de sujeitos que estão de passagem pela vila, que lá não fizeram sua morada, que não

experimentaram o sentimento do “patriotismo morrinhense”.

Neste mesmo número de jornal, há um texto interessante, porém anônimo, intitulado

“Carta recebida: impressões de um leitor”:

(...) Enquanto isso, Morrinhos, pequena vila privilegiada – não sei se pitoresca ou não,

pois só conheço a “Voz” – provavelmente esquecida pelas autoridades, como o são

quase todos os nossos distritos, prospera e procura se declarar independente por meio

de seu jornal, clamando que com esforço e entusiasmo, tudo se vence. Luz elétrica,

casas de estudos, boas estradas, urbanização de seus centros. (...) Um pensamento me

180 LEITE, João Batista. A terra que visitei. Jornal Voz de Morrinhos, nº 03, janeiro de 1954. p. 4.

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empolgou ao ler este jornal: foi como se todas as nossas cidades, fossem outras tantas

Morrinhos.181

Este “esquecimento pelas autoridades” fez com que o Centro Social Morrinhense, desde

o início, se apresentasse à população como o responsável pela gestão das principais causas

sociais que surgissem na vila, juntamente com a Elite Morrinhense. Isso já se tornou claro para

nós quando analisamos os estatutos de ambas as instituições. O fato de o leitor sentir uma

empolgação a ponto de imaginar Morrinhos em “todas as nossas cidades” só mostra como o

CSM, pelo menos através de seu jornal, obteve êxito na construção discursiva de um dado lugar

central para si e para seu espaço e como naturalizou uma identidade de Morrinhos como “vila

privilegiada”. Morrinhos, desta forma, além de ser vila progressista, seria também, segundo o

leitor, um modelo a ser seguido por “todas as nossas cidades”.

Nessa perspectiva, o grupo reunido em torno do CSM procurava, através de suas “artes

de fazer”, articular o movimento dos centristas com as transformações que ocorriam na vila.

Ou seja, temos a clara impressão de que a primeira justificativa, quiçá mais importante para

Morrinhos ser considerada “vila privilegiada” é ter a presença do próprio CSM. Afinal, como

diz o leitor, Morrinhos “prospera e procura se declarar independente por meio de seu jornal”.

Por mais que seu título seja a Voz de Morrinhos, é muito mais a “voz” do Centro Social

Morrinhense e de seus membros, os responsáveis por Morrinhos experimentar esse surto de

progresso.

Portanto, além da interrogação a respeito dessa identidade espacial, é preciso questionar

“o lugar discursivo e disciplinador de onde as questões de identidade são estratégica e

institucionalmente colocadas”182. Em nossa análise, esse “lugar discursivo” e ao mesmo tempo

disciplinar e institucional onde essa identidade de “vila privilegiada” foi forjada, é o próprio

Centro Social Morrinhense. Resta-nos saber o que realmente o CSM quis afirmar com este

conceito, com esta imagem. De como essa verbalização do discurso transitou entre o papel e a

pedra, entre a cidade ideal e a cidade real.

2.2.1 “A alegria mais intensa das noites”: A luz elétrica chega à vila

Em dezembro de 1952, os membros do Centro Social Morrinhense se preparavam para

sair de Fortaleza em uma enorme caravana em direção a Morrinhos. O motivo: a inauguração

181 Carta recebida: impressões de um leitor. Jornal Voz de Morrinhos, nº 03, janeiro de 1954. p. 4. 182 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. p. 81

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da eletricidade na vila e a colocação de um sistema sonoro próximo a igreja, nas dependências

do Astória Bar. A data coincidiria justamente com a divulgação do primeiro número do jornal

Voz de Morrinhos: 06 de janeiro de 1953. O evento, por coincidência ou não, ocorria no Dia de

Reis, o dia dedicado aos presentes. O Centro Social Morrinhense fez um grande investimento

na divulgação da festa, imprimindo cartazes e colocando anúncios em vários jornais da capital

cearense.

Imagem 10: Convite produzido pelo Centro Social Morrinhense e distribuído na vila de Morrinhos em 20 de

dezembro de 1952. Fonte: Arquivo do autor.

Os membros do Centro Social Morrinhense foram em uma comitiva que saiu na

madrugada do dia 06 de janeiro de Fortaleza. Um dos principais oradores da instituição,

Amadeu Vasconcelos, publicou posteriormente uma nota intitulada “O que vimos em

Morrinhos”, no jornal Gazeta de Notícias:

Tivemos terça-feira última o ensejo de conhecer a vida e as atividades do povo

morrinhense, que se encontram adiantadas graças ao bom conceito do Centro Social

Morrinhense. Ao seu convite, assistimos a inauguração da luz elétrica naquela

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privilegiada vila do Baixo Acaraú. Partimos de Fortaleza às 4 horas da manhã em

camionetes especiais ofertadas pelo Governador do Estado e às 9 horas chegávamos

àquela localidade, sob ovações e fogos, numa demonstração de simpatia e apreço. A

vila estava cheia de gente, as ruas embandeiradas, numa animação como só acontece

nos dias de festa da padroeira do lugar. Aguardávamos nós e o povo com ansiedade

pela chegada da comitiva do Governador do Estado para então ter início o programa

das festividades. (...) Morrinhos está se credenciando para maiores conquistas num

futuro próximo, pois já conta com uma poderosa força organizada: o Centro Social

Morrinhense.183

Eis aí a primeira imagem que justifica Morrinhos enquanto “vila privilegiada”: a

presença da luz elétrica. No entanto, Amadeu Vasconcelos esquece, ou realmente não quis

dizer, que o projeto de implantação da eletricidade em Morrinhos foi conseguido pelo prefeito

de Santana do Acaraú (que na época ainda se chamava Licânia), José Osmar Carneiro,

juntamente com o subprefeito de Morrinhos, Joaquim Soares Rocha, que era também presidente

da Elite Morrinhense. Quando se lê o texto, tem-se a clara impressão de que o Centro Social

Morrinhense foi o responsável pela implantação da luz elétrica na vila. O jornal Voz de

Morrinhos, que circulava naquele momento, também não poderia deixar de mencionar o que

ocorria:

Inaugura-se hoje, nesta progressiva Vila, o serviço de luz. Não há dúvida de que é um

acontecimento notável para a vida de Morrinhos. O adiantamento de uma terra mede-

se pelo número de realizações. Dotando-se da iluminação elétrica – fator que se fazia

indispensável pela situação promissora deste lugar – Morrinhos marcou mais um

agigantado passo nesta marcha firme e decidida em busca de um futuro brilhante. (...)

A paz e a tranquilidade deste povo bom e ordeiro misturar-se-ão com a alegria mais

intensa das noites iluminadas, que refletirá a felicidade, honestidade e pureza de seus

habitantes. Sabe-se que Morrinhos progride. A notícia corre mundo a fora. É vivo o

interesse de seus filhos. É louvável a tenacidade dos que trabalham para dotá-lo do

quanto precisa para viver e crescer. E em Morrinhos há vida. Morrinhos cresce. E

Morrinhos tem luz elétrica. Estão de parabéns os morrinhenses e aqueles que fazem o

Centro Social Morrinhense.184

É preciso esclarecer, antes de prosseguir, que o Centro Social Morrinhense não era o

representante do Estado no distrito de Morrinhos. Em alguns momentos, notadamente através

das ações do CSM e de suas práticas sociais e de intervenção no espaço público da vila, como

foi o caso da inauguração do serviço de luz, pode-se pensar que era este o papel da instituição:

ser responsável pela gestão de Morrinhos. No entanto, havia no distrito o cargo de subprefeito

desde os anos 1940 e seu representante era nomeado pelo governo de Santana do Acaraú.

Desde sua criação, o cargo máximo da subprefeitura de Morrinhos foi majoritariamente

ocupado por representantes da família Rocha ou de seus aliados políticos, e a partir de 1952 os

membros do Centro Social Morrinhense e da Elite Morrinhense passaram a cobiçar o posto de

183 VASCONCELOS, João Amadeu. O que vimos em Morrinhos. Jornal Gazeta de Notícias. Janeiro, 1953. 184 Luz em Morrinhos. Jornal Voz de Morrinhos, nº 01, janeiro de 1953. p. 1-3.

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subprefeito, como foi o caso das eleições de Joaquim Soares Rocha, Francisco Abdoral Rocha

e José Wilson Araújo. Foi através das alianças firmadas entre o Centro Social Morrinhense e a

subprefeitura de Morrinhos, administração desconcentrada de Santana do Acaraú, que

possibilitou e legitimou a atuação do CSM nas decisões governamentais do distrito.

O artigo de jornal que citamos acima, que foi assinado por “Um Morrinhense”, para

além da informação que traz a respeito da inauguração da luz elétrica na vila, procura

estabelecer uma certa divisão entre o Morrinhos de ontem e de hoje; do antes e depois da

chegada da eletricidade e, principalmente, do antes e depois da fundação do Centro Social

Morrinhense. O autor coloca o CSM como principal responsável pelo progresso de Morrinhos,

louvando a “tenacidade dos que trabalham para dotá-lo do quanto precisa para viver e crescer”.

A ênfase no enunciado de que “em Morrinhos há vida”, no presente, nos faz questionar: e antes

não havia? Isso se traduz como uma negação do próprio passado de Morrinhos, de sua

historicidade. É como se Morrinhos não existisse antes do Centro Social Morrinhense. A

afirmação deste “Um Morrinhense”, todavia, tem lá sua justificativa. Em uma sociedade que se

estrutura com base em um conceito referencial como o de progresso, aquilo que não se

movimenta, que não caminha, que não evolui, é visto como não sendo possuidor de história. O

progresso é um processo, é um conceito que implica movimento, que se “radica num imaginário

onde as etapas se diluem num gesto único, reparador e generoso de vitalização”185. Para a

maioria dos intelectuais do Centro Social Morrinhense, se Morrinhos não crescera e não

despontara o suficiente em épocas anteriores, não adiantaria olhar para seu passado.

As festividades começaram às 18 horas do dia 06 de janeiro de 1953. Em um palco

improvisado na carroceria de um caminhão Ford, várias autoridades subiram e discursaram,

entre elas o Governador do Estado do Ceará, Raul Barbosa186. O último pronunciamento foi do

presidente do Centro Social Morrinhense, Raimundo Nonato Araújo da Rocha, o Mundico, que

logo depois o enviou para publicação no jornal Correio do Ceará:

Meus senhores e conterrâneos meus,

O Centro Social Morrinhense não podia neste instante de tão grande significação para

nós, filhos de Morrinhos, permanecer calado, por mais que a modéstia ou a

incapacidade nos calasse a alma. Não podíamos deixar de dizer da emoção que invade

os corações dos morrinhenses, residentes e estudando em Fortaleza. (...) A

inauguração é, por assim dizer, o descortinar de novos horizontes para a vila e a gente

de Morrinhos, que aqui nesta região cresce e prospera. Com a instalação da luz, outro

aspecto terá nossa urbs, ficará mais bela e as possibilidades de evoluir serão de bem

maiores proporções. Com a energia a baixo preço, elemento indispensável a indústria,

185 BARREIRA, Cecília. Onde está a felicidade: o conceito de progresso técnico no século XIX. Lisboa:

Universitária Editora, 1997. p. 28. 186 Infelizmente não foi possível localizar o texto do discurso de Raul Barbosa. Também não conseguimos

fotografias deste evento.

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teremos beneficiado os nossos produtos sem a necessidade de serem transportados

para outros centros mais civilizados e progressistas; o comércio tomará grande

impulso e a agricultura terá mais apoio técnico. (...) Meus senhores, seria enfadonho

enumerar os benefícios da energia elétrica. Basta dizer que sem ela a humanidade

pouco ou nada teria realizado. (...) O Centro Social Morrinhense apresenta neste

momento os mais sinceros parabéns aos filhos de Morrinhos e aos seus benfeitores,

senhores José Osmar Carneiro, Joaquim Soares Rocha, Dr. Raul Barbosa e ao

deputado Walter de Sá Cavalcante, os agradecimentos mais justos e sentidos.187

Ao contrário de Amadeu Vasconcelos, o discurso de Mundico foi mais direcionado ao

grupo político de Santana do Acaraú, agradecendo-o pela entrega do motor de luz. Mas, para

além de toda a sensibilidade derramada nas palavras do presidente do Centro Social

Morrinhense e de como a eletricidade “irá descortinar novos horizontes para a vila e a gente de

Morrinhos”, é interessante chamar atenção para quando ele afirma que, a partir da instalação da

luz elétrica, “outro aspecto terá nossa urbs, ficará mais bela”. Isso demonstra uma certa

preocupação do Centro Social Morrinhense com a estética espacial e o embelezamento da

vila188. O benefício da luz elétrica, para Mundico, transcende seu uso para a iluminação pública.

Ou seja, a energia elétrica participaria ativamente da “busca pelo agradável, das aspirações de

uma vida mais livre, mais radiosa”189.

Para os intelectuais do Centro Social Morrinhense, a luz representava o perfeito

“domínio sobre o mundo terreno na dupla fundamentação: espiritual e material”190. Material no

sentido da estética e do aformoseamento urbano, fazendo com que o dia dure mais e as noites

sejam mais breves e menos escuras. O importante era desterrar a noite de uma vez por todas,

descobrindo um “sol que se pudesse colocar na mesinha de cabeceira e perdurar pela noite fora

até que, finalmente, o verdadeiro sol nascesse no horizonte”191.

A luz como fundamentação espiritual se manifestava como um elemento que “preenche

um espaço paradigmático: é uma estrela que brilha, iluminando o espaço onde se movem os

homens na labuta infindável pelo progresso e pelo aperfeiçoamento”192, seja no ensino ou até

mesmo na religiosidade. Ataíde, que até onde sabemos não participou da festa inauguração,

escreveu um texto para o jornal Voz de Morrinhos, onde parabeniza Morrinhos pela “feliz

coincidência da inauguração da vossa usina de luz com o dia da Epifania”193. Para ele, a vila de

187 ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da. Discurso. Jornal Correio do Ceará. 07 de fevereiro de 1953. 188 Falaremos melhor sobre essa questão no final deste capítulo. 189 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seus destinos nas cidades modernas. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989, p. 88. 190 BARREIRA, Cecília. Op. Cit. p. 91. 191 Ibidem, p. 98. 192 Ibidem, p. 91. 193 VASCONCELOS, José Ataíde Alves de. Feliz coincidência. Jornal Voz de Morrinhos, nº 01, janeiro de 1953.

p. 1-2.

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Morrinhos era ainda mais privilegiada por isso, pois é em “Cristo que a luz que se manifesta

hoje ao mundo e a Morrinhos, apontando-lhe o caminho do bem, da felicidade e do

progresso”194.

A luz elétrica na vila, todavia, era um serviço muito precário. Funcionava apenas das 18

às 22 horas e quem supervisionava o funcionamento do motor de luz era o eletricista Vicente

de Paulo Ursulino. Ele funcionou muito bem durante dois anos e depois de uma fase repleta de

defeitos, parou definitivamente, deixando Morrinhos, a “vila privilegiada”, sem luz até a

véspera do Natal de 1956.

Imagem 11: Raimundo Nonato Araújo da Rocha e João Leonardo Silveira supervisionando o motor de luz,

juntamente com Vicente de Paulo Ursulino. Fonte: Silveira, 2009.

Como afirmamos anteriormente, essa “fundamentação espiritual da luz” também se

traduzia no ensino, no desejo do “cultivo das inteligências, em derramar-lhes a luz”. Cecília

Barreira afirma que “esse mito da luz, figuração simbólica do esclarecimento, da sabedoria e

da evolução, quer em gravuras, quer ao nível do discurso, encontrava-se obsessivamente

presente”195. O Centro Social Morrinhense não virou as costas para isso, afinal, o progresso do

194 Ibidem, p. 2. 195 BARREIRA, Cecília. Op. Cit. p. 92.

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ensino em Morrinhos também era uma imagem que sedimentava a sua identidade de “vila

privilegiada”.

2.2.2 “O amanhã dos municípios”: o Centro Social Morrinhense e seu projeto

educacional

As primeiras escolas existentes no espaço hoje ocupado pelo município de Morrinhos

foram as chamadas escolas isoladas, instaladas em 1936, com o apoio da Secretaria de Educação

do Ceará. Não havia espaços destinados à prática docente na vila, e as pessoas que se

candidatavam a professores ministravam suas aulas na sala de suas casas, com cadeiras

improvisadas, por vezes as mesmas utilizadas na capela. Lourenço Filho, em uma conferência

em 1940, afirmou que a educação primária brasileira era exercida no país de duas formas, em

dois tipos de escolas: as isoladas e as agrupadas. Segundo ele, as escolas isoladas eram descritas

como:

(...) o da escola de um só professor, a que se entregam 40, 50 e às vêzes mais crianças.

Funciona quasi sempre em prédio improvisado. É de pequeno rendimento, em geral,

pelas dificuldades decorrentes da matrícula de alunos de todos os graus de

adiantamento, falta de direta orientação do professor, falta de fiscalização, falta de

material, falta de estímulo ao docente. É a escola típica dos núcleos de pequena

densidade de população, a escola da roça, a escola capitulada de “rural”.196

Já as escolas agrupadas "toma o nome de escolas-reunidas, se poucas classes possue; de

grupo escolar, se as mantém numerosas. Aquí, o prédio oferece melhores condições de confôrto

e higiene, mesmo quando adaptado. As classes apresentam, em geral, efetivo menos numeroso

que o das escolas isoladas, e os alunos se distribuem por elas, segundo os respectivos graus de

adiantamento”197. As escolas isoladas em Morrinhos funcionaram até 1949, quando foram

substituídas pelas escolas reunidas, conseguidas junto ao governador Faustino de Albuquerque,

através do subprefeito de Morrinhos, João Alberí de Vasconcelos, aliado político e muito amigo

do Secretário de Educação e Saúde do Ceará na época, Domingos Braga Barroso. Novos

professores foram remanejados para Morrinhos e um prédio foi doado para que a escola pudesse

funcionar adequadamente.

196 LOURENÇO FILHO. Alguns aspectos da educação primária. Revista Brasileira de Estatística. Rio de

Janeiro. 1940, n. 4, p.658. 197 Ibidem, p. 658.

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Imagem 12: Primeiro prédio escolar de Morrinhos e primeira turma de formandos. Fonte: Silveira, 2009.

O Centro Social Morrinhense, no entanto, acreditava que Morrinhos merecia e precisava

de mais. Necessitava de um grupo escolar para melhorar a qualidade e a sistematização do

ensino primário na vila, além de preparar devidamente os alunos para exames ginasiais em

outras cidades, como Sobral ou Fortaleza. Um dos primeiros a se preocupar com isso foi

Amadeu Vasconcelos. Por ocasião da visita do governador Raul Barbosa para a inauguração da

luz elétrica na vila, o questionou veementemente sobre isso, afirmando que em Morrinhos “não

há grupo escolar e nem escolas suficientes e cerca de 500 crianças estão sem receber a menor

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formação”198. O próprio Amadeu Vasconcelos escreveu um artigo no primeiro número do jornal

Voz de Morrinhos alertando sobre a importância do ensino:

Problema como o do ensino, inadiável pela importância que se tem, já pelo poder de

formar e elevar política e socialmente o homem, como o de servir para fixar o moço

à terra e por ela trabalhar, deve ter a especial atenção dos homens públicos do Estado,

do Município, e dos demais responsáveis pela felicidade dos filhos de Morrinhos,

como o Centro Social Morrinhense. (...) O amanhã dos municípios, próspero ou

decadente, está na razão direta do trabalho e da inteligência. Que Morrinhos seja

depositário de cultura, viveiro de homens operosos e honestos e centro do progresso

da região Norte-Oriental do Ceará.199

Amadeu Vasconcelos, juntamente com o Centro Social Morrinhense, constrói outra

imagem para compor a construção discursiva de Morrinhos “como terra de progresso e vila

privilegiada”: deveria ser “depositário de cultura, viveiro de homens operosos e honestos” e

mais: centro do progresso de toda uma região. O fato é que, levando-se em consideração o

ensino como formação:

(...) o investimento educativo não pode se limitar, agora, a fornecer um volume de

informações que possam servir na vida futura, mas deve investir na formação integral

do corpo e do espírito de um sujeito que deve ser preparado para o exercício de papéis

cada vez mais diferenciados e que tenha flexibilidade subjetiva necessária para se

adaptar aos diferentes contextos de fala e de ação que esta sociedade cada vez mais

complexa oferece. A formação deve ser capaz de preparar um sujeito mais flexível,

mais plástico, capaz de separar em esferas diferenciadas sua própria vida e assumir

diferentes máscaras conforme as situações. Somente uma educação calcada na

racionalidade permitiria formar sujeitos que possuindo uma consciência moral

individual, submeteriam suas vontades individuais aos princípios gerais que

regulariam a ordem social. Só um indivíduo racional manifestaria sua liberdade ao se

subordinar racionalmente a princípios ideais sem os quais a convivência social seria

impossível e com ela a própria vida do indivíduo.200

Portanto, o Centro Social Morrinhense e seus intelectuais buscaram defender que o

ensino é um dos pilares para sustentar essa imagem de “fortaleza material, intelectual e moral”

que procuravam construir. O ensino era fundamental para Morrinhos, pois consolidaria sua

identidade de “vila privilegiada” e o CSM deveria batalhar por isso. Afinal, “formar-se é

aprender a se pensar como uma unidade constante e singular em meio a uma ordem social em

mutação, em progresso, em desenvolvimento, em evolução”201. E era exatamente isto que o

CSM almejava: o telos harmonioso entre corpo e espírito, resultando na formação de um sujeito

plástico e flexível, inserido em uma ordem social e espacial marcada pela transitoriedade, pelo

198 VASCONCELOS, João Amadeu. Op. Cit. 199 VASCONCELOS, João Amadeu. O amanhã dos municípios. Jornal Voz de Morrinhos, nº 01, janeiro de 1953.

p. 4. 200 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Op. Cit. 2005, p. 258. 201 Ibidem, p. 258.

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movimento, pelo progresso constante, de acordo com seus ideais. Pensando assim, o Centro

Social Morrinhense enviou um telegrama ao deputado federal pelo Ceará, Walter de Sá

Cavalcante, e depois o transformou em um artigo, publicando-o no jornal O Estado, reportando

do desejo de fundar tal empreendimento e, claro, clamando por ajuda:

Desde que o Centro Social Morrinhense compreendeu a necessidade de trabalhar

ativamente pela terra natal, arrefeceu o coração de seus moços e de tôda sua gente o

entusiasmo de crescer no sentido de atingir o alvo do verdadeiro progresso. O

adiantamento de uma terra não se funda só em cima de pedra, mas mede-se pelo

número de realizações. Ao lado do progresso material, se deve crescer

simultaneamente o progresso intelectual. E em vista mesmo do progresso da terra, que

suscitamos este problema de ordem econômico-social. O ensino em Morrinhos está

necessitando da generosa colaboração de quem é de direito, pois, infelizmente, numa

vila privilegiada como Morrinhos, cerca de 500 crianças estão sem receber a menor

formação, que é conhecida como o único bem impossível. Com a construção e

manutenção do Grupo Escolar em Morrinhos, soluciona-se o problema da formação

primária daquele povo de aspirações nobres que quer filhos bem formados nas

ciências e nas letras. O povo de Morrinhos, através de sua elite, de seus estudantes e

do CSM, apresenta as autoridades governamentais esta ideia pela qual quer trabalhar

ativamente no sentido de consegui-la, pois é no ensino que está o segredo da

prosperidade e do engrandecimento dos povos nascentes.202

Três dias depois do envio do telegrama, veio a resposta de Walter de Sá Cavalcante,

também publicada no jornal O Estado. No texto, o deputado afirma que “tudo farei no sentindo

que sejam atendidas as justas reivindicações a favor dessa progressista vila”203. Enquanto

esperavam a ajuda dos representantes do governo para a construção do Grupo Escolar, Amadeu

Vasconcelos sugeriu que o Centro Social Morrinhense acelerasse o processo de construção da

sua biblioteca, “nosso templo do saber, já que faz parte de nossos estatutos”204. Os intelectuais

do Centro Social Morrinhense aceitaram nomeá-la de “Biblioteca Dr. Waldemar de Alcântara”,

em homenagem ao médico e deputado estadual pelo PSD, José Waldemar de Alcântara e Silva,

que ficou de doar à biblioteca algumas estantes para a organização dos livros.

No que diz respeito ao seu acervo, as informações são escassas. Não foi preservado o

catálogo de obras da biblioteca, muito menos a lista de doadores. Poucos são mencionados e

registrados no Livro de Atas. Os títulos das obras e quem realizou as respectivas doações pouco

são identificados. Porém, foi possível montarmos uma pequena tabela contendo o título de

algumas obras e o nome de seus doadores a partir de informações colhidas nas atas das sessões

ordinárias.

202 O Centro Social Morrinhense luta pela aquisição do Grupo Escolar. Jornal O Estado, 10 de março de 1953. 203 Walter de Sá Cavalcante e as reivindicações da população de Morrinhos. Jornal O Estado, 13 de março de

1953. 204 Ata de sessão ordinária do Centro Social Morrinhense, em 27 de setembro de 1953. Livro de Atas do Centro

Social Morrinhense. 1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 6.

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Título da Obra Autor Doador Ano de

Doação

Os Sertões Euclides da Cunha Rádio Iracema 1954

Dom Casmurro Machado de Assis José Adrião 1953

Iracema José de Alencar Amadeu Vasconcelos 1953

Triste Fim de Policarpo

Quaresma

Lima Barreto Amadeu Vasconcelos 1953

Memórias Póstumas de Brás

Cubas

Machado de Assis José Adrião 1954

O Cortiço Aluísio Azevedo José Adrião 1953

O Guarani José de Alencar Amadeu Vasconcelos 1954

A Escrava Isaura Bernardo Guimarães Amadeu Vasconcelos 1954

Oração aos Moços Rui Barbosa José Ataíde 1954

Memórias de um Sargento de

Milícias

Manuel Antônio de

Almeida

Amadeu Vasconcelos 1953

Tabela 2: Lista de doação de livros. Elaboração do autor.

Com exceção da Rádio Iracema e de José Ataíde, os maiores doadores de livros para a

biblioteca do Centro Social Morrinhense, pelo menos com os dados que conseguimos apurar,

foram seus oradores: José Adrião Sousa e João Amadeu Vasconcelos. O caráter, digamos, mais

clássico dessa lista, com obras de escritores consagrados nacionalmente e de diferentes escolas

literárias, do Romantismo ao Realismo, mostra um desejo antigo do Centro Social Morrinhense,

de transformar o acervo da instituição na primeira biblioteca pública da vila. Porém, em nenhum

momento temos indícios que essa mudança ocorreu, visto que a primeira biblioteca pública só

foi instalada em Morrinhos no ano de 1979.

Enquanto recebia doações para a organização de sua biblioteca, que permaneceu na sede

da ACI, o Centro Social Morrinhense também procurava angariar fundos para a construção do

Grupo Escolar em Morrinhos. Foi aí que as aspirações e os sonhos dos intelectuais sofreram

um grande revés: a morte do deputado Walter de Sá Cavalcante, em 10 de junho de 1954, no

Rio de Janeiro. Walter de Sá Cavalcante era um importante aliado do Centro Social

Morrinhense e conseguia recursos financeiros para a instituição. Chegou a doar, de uma só vez,

Cr$ 10.000,00 ao CSM, valor que ficou penhorado durante vários meses até ser liberado.

Sem recursos e sem resposta do poder público, os membros do Centro Social

Morrinhense resolveram, em 1955, através do jornal Voz de Morrinhos, realizar uma campanha

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intitulada “Você me ajuda?” que se traduziu como “um clamor que dura por três anos, sempre

à luz da esperança, sempre à sombra do insucesso”205, para que os habitantes do distrito

colaborassem financeiramente para a construção do grupo escolar:

V. Excia. me ajuda? Numa casa onde não há pão, todos choram sem ter razão. Assim

tem sido a história da campanha que o CSM lançou há 3 anos para a aquisição do

grupo escolar. Dias melhores, dias piores, o certo é que o grupo escolar de Morrinhos

ainda não foi construído. (...) Você pode construir um grupo escolar! Sim, esta é a

finalidade desta campanha, a maior de todas já empreendida pelo Centro Social

Morrinhense. Não sabemos muito bem expressar a insatisfação que temos em

construir um Grupo Escolar às suas custas. Mas de uma coisa reconhecemos: somos

forçados a isso. Sim, eu você, este e aquele. Todos somos forçados a isso.206

A campanha funcionou da seguinte forma: os residentes em Fortaleza deveriam procurar

a sede do Centro Social Morrinhense para realizar suas doações financeiras, e aqueles que

moravam em Morrinhos, teriam que buscar depositar suas quantias na sede da Elite

Morrinhense. De acordo com o CSM, quem estivesse disposto a contribuir financeiramente na

campanha teria “seu nome lançado no Livro de Ouro, “para que este permaneça indelével nos

corações das futuras gerações formadas no Grupo Escolar que você construiu”. As justificativas

para a realização da campanha, que o CSM tratou como sendo obrigação da população, eram

as de que há “em Morrinhos quase seiscentas crianças em idade escolar e que não se conta um

estabelecimento de ensino primário em uma distância de oito léguas, em qualquer direção, já

que sua primeira escola desapareceu por mesquinhez política”207.

Se levarmos em consideração o pilar “fortaleza intelectual”, o projeto de

desenvolvimento do ensino em Morrinhos, a “vila privilegiada” não foi tão privilegiada assim.

Não temos indícios se a campanha de arrecadação de fundos do Centro Social Morrinhense para

a construção do grupo escolar foi exitosa ou não, mas a análise das fontes nos faz crer que não,

já que o primeiro grupo escolar de Morrinhos só foi fundado em 1959, pelo próprio Centro

Social Morrinhense, durante a gestão de João Leonardo Silveira, quando Morrinhos já se

apresentava como uma cidade jurídico-politicamente emancipada. A biblioteca da instituição,

que não recebeu a doação de estantes de Waldemar de Alcântara, passou a se chamar Biblioteca

Walter de Sá Cavalcante a partir de 28 de novembro de 1954, mas nunca chegou a Morrinhos.

Foi instalada na sede da ACI e lá permaneceu, com seus livros engavetados e empoeirados, até

a decadência do Centro Social Morrinhense.

205 Você me ajuda?. Jornal Voz de Morrinhos, nº 07, 06 de janeiro de 1955, p. 6. 206 Ibidem, p. 6. 207 Ibidem, p. 6.

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Resta-nos então saber da “fortaleza material”, das inscrições no barro e na pedra dos

sonhos construídos nas reuniões do Centro Social Morrinhense, de seus desejos para o corpo

da vila de Morrinhos, para seu espaço.

2.2.3 Ordenando o “desordenado”: o Centro Social Morrinhense e suas práticas de

espaço

Sabemos que a partir da instauração do regime republicano no Brasil, a urbanização em

determinadas cidades, notadamente nas capitais, deixou de ser apenas um adensamento

populacional localizado e se transformou em um processo mais amplo e complexo: a

modernização. Este processo, amparado por uma ideia de modernidade, que consideramos aqui

como uma experiência histórica208, foi fundamental no contexto das mudanças espaciais, sociais

e econômicas que passaram a se desenvolver nas cidades brasileiras.

Nos anos 1950, a questão do “moderno” ainda se manifestava, tendo em vista a

necessidade do projeto de urbanização e modernização, que havia atingido em cheio as grandes

zonas urbanas na virada do século, chegar às cidades localizadas no interior do país. O projeto

do nacional-desenvolvimento norteou e implantou a necessidade de remodelação dos principais

centros urbanos brasileiros, bem como o desenvolvimento e expansão das indústrias e a

tentativa, do ponto de vista espacial, da centralização do poder político, que levou o Rio de

Janeiro às lágrimas209 com o nascimento de Brasília210.

O Centro Social Morrinhense também estava atento a essa necessidade de trazer para o

espaço que representava, elementos que remetessem à modernidade, levando a que o olhar de

quem chegasse a Morrinhos, percebesse aquele espaço como “moderno” e “progressista”.

Afinal, a construção da imagem da “fortaleza material” para Morrinhos era um dos principais

pontos para sustentar sua identidade de “vila privilegiada. O Centro Social Morrinhense, como

208 No Brasil, “a noção de modernidade tradicionalmente foi incorporada como algo que vem de fora, que deve ser

apreciado e adotado. As ideias e os modelos externos gradativamente passam a se aclimatar na sociedade brasileira,

sendo absorvidos num ideário de modernidade. A formação da concepção de modernidade no Brasil toma forma

inspirada em tendências europeias e surge a partir das formulações geradas em cidades como São Paulo e Rio de

Janeiro, principais centros econômico, político e cultural do Brasil no final do século XIX e início do século XX.

Trata-se de um processo que se propagou pelas grandes capitais e que teve início com o advento da República,

quando uma nova ordem política foi instaurada, tornando necessário adaptar as cidades ao crescimento do

comércio e das atividades industriais de exportação”. Sobre essa questão ver OLIVEN, Ruben George. Cultura e

modernidade no Brasil. São Paulo: São Paulo Perspectiva, v.15. nº. 2, abr/jun. 2001. 209 Sobre isso, ver VIDAL, Laurent. As lágrimas do Rio: o último dia de uma capital: 20 de abril de 1960.

Tradução de Maria Alice Araripe de Sampaio. São Paulo. Martins Fontes, 2012. 210 Sobre essa questão, ver VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-

XX). Tradução de Florence Marie Dravet. Brasília. Editora UnB, 2009.

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o principal representante da “cidade letrada”, ou seja, daqueles que tentam ordenar “o mundo

físico, normatizando a vida da comunidade”211, percebeu a necessidade de organizar

espacialmente Morrinhos, a começar justamente pelo nome: Morrinho ou Morrinhos?

A maioria das fontes que mobilizamos neste trabalho traz a grafia Morrinhos, e não

Morrinho. Porém, ressalva-se que em sua grande maioria foi produzida pelo próprio CSM. O

fato é que, na vila, a situação não era bem assim. Também se usava o nome Morrinho, ou até

mesmo Alto das Flores, nome de uma das principais elevações da vila. Isso gerou a necessidade

de que o Centro Social Morrinhense emitisse uma nota de jornal, escrita por José Adrião Sousa,

que foi amplamente divulgada e distribuída, intitulada “Morrinhos e não Morrinho”:

O nome de Morrinhos, em se tratando de sua etimologia, tem se constituído um

verdadeiro problema para quase todos que desejam escrevê-lo de forma correta. Dos

próprios morrinhenses são poucos os que têm a certeza de que se deve usar Morrinhos

e não Morrinho. Não sei porque razão, talvez por influência da lei do menor esforço,

o singular Morrinho é bem mais escrito. (...) Ora, observemos o aspecto físico da

região que Morrinhos se acha localizado. O terreno atravessado de sul a norte pelo

Rio Acaraú é mais ou menos plano, e apresenta o dorso levantado aqui e acolá

mostrando altitudes de pequena consideração. Entre outras, podemos citar o Serrote

do Cafim, o Alto das Flores, o Outeiro da Sulina, o Arara e o Morro do Macaco, no

Riacho do Sangue. De todas essas elevações, nenhuma possui altitude considerável.

Se quisermos dar título a uma região desta natureza, só podíamos chamá-la de

Morrinhos, vocábulo que nos traz a convicção de que devemos escrever Morrinhos e

não Morrinho.212

O Centro Social Morrinhense sabia muito bem que aquele espaço já tinha nome, mas de

certa forma eram “palavras dos outros”213, como escreveu Todorov. No entanto, nomear

equivale a tomar posse, transformar o que é do outro, o desconhecido, em algo seu. Desta forma,

o CSM procurou justificativa na natureza, na presença das “altitudes de pequena consideração”

que circundavam a vila, a utilização do nome Morrinhos, o legitimando, oficializando através

da escrita e da publicação desse artigo. Como membros da “cidade letrada”, ao instituírem uma

ordem, “se opõem à fragmentação e ao particularismo de qualquer invenção”214 que não

partissem de suas letras. Pediu inclusive aos professores das escolas reunidas para incentivarem

seus alunos a escreverem Morrinhos, e não Morrinho.

Contardo Calligaris, psicanalista gaúcho, escreveu que “a história da cidade é a história

das três plantas e suas relações: a organização das ruas e dos bairros, a distribuição da inquietude

sexual e a monumentalidade”215. Podemos dizer que o Centro Social Morrinhense se preocupou,

211 RAMA, Angel. Op. Cit. p. 45. 212 SOUSA, José Adrião. Morrinhos e não Morrinho. Jornal Voz de Morrinhos, nº 02. 14 de junho de 1953. 213 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982. 214 RAMA, Angel. Op. Cit. p. 45. 215 CALLIGARIS, Contardo. Elogio da cidade. In: PECHMAN, Robert Moses (org). Olhares sobre a cidade.

Rio de Janeiro: Editoria da UFRJ, 1994, p. 99.

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direta ou indiretamente, com estes três elementos apontados por Calligaris. Comecemos pela

organização e identificação das ruas da vila.

Os primeiros indícios de que o Centro Social Morrinhense estava preocupado em

organizar e identificar as ruas da vila de Morrinhos apareceu na sessão ordinária do dia 08 de

novembro de 1953. Neste encontro, o presidente do CSM mencionou que fez uma visita ao

prefeito de Licânia, José Osmar Carneiro, “e na conversa reiterou o seu pedido para fazer o

quanto mais breve a planta da vila de Morrinhos, que ele prometeu para janeiro próximo”216. A

planta seria fundamental para que o CSM pudesse identificar e nomear as ruas da vila217, que

segundo a instituição, teria o nome “de filhos ilustres da vila de Morrinhos ou do Ceará, e datas

importantes”218. O assunto da planta da vila não foi mais colocado em pauta durante nenhuma

sessão posterior, e não sabemos se foi entregue ou não pelo prefeito, pois não a encontramos

nos arquivos consultados. Já o projeto de identificação das ruas de Morrinhos foi aprovado e

comunicado via telegrama ao CSM pelo presidente da Câmara Municipal de Licânia, o vereador

Raimundo Ademar Magalhães, em 13 de dezembro de 1953.

A inauguração do emplacamento das ruas ocorreu no dia 06 de janeiro de 1954219. Dez

ruas de Morrinhos foram identificadas, bem como suas duas únicas praças, ganhando os

seguintes nomes: Praças Coração de Maria e do Cruzeiro; Rua Major José Lourenço; Rua

Coronel Coriolano; Rua Pe. Antônio Tomás; Rua 10 de agosto; Rua Nossa Senhora de Fátima;

Rua 6 de janeiro; Rua 7 de setembro e Rua Professor José Hermínio.

Francisco Firmino Sales Neto nos alertou que, “homenagear personalidades do passado

e, na maioria das vezes, do presente é a lógica da composição da toponímia urbana no Brasil”220.

Justamente por conta dessa obviedade, de algo tão natural, é que se torna tão importante ao

historiador responder à pergunta feita por Shakespeare, ou melhor, por Julieta: “o que há num

216 Ata de sessão ordinária do Centro Social Morrinhense, em 08 de novembro de 1953. Livro de Atas do Centro

Social Morrinhense. 1953-1957, fl. 7. Arquivo de João Leonardo Silveira. 217 Nesta reunião, um fato curioso: em uma discussão acalorada, quando todos estavam sugerindo nomes para as

futuras ruas da vila, um dos centristas, que não teve o nome divulgado, “falou de improviso e pediu para uma das

ruas se chamar Rua Dona Teresa”, em uma clara homenagem à sua esposa. “Depois disso, nada mais foi decidido

nesta sessão”. Ibidem, fl. 7. 218 Ibidem, fl. 7. 219 Há uma divergência quanto a data dos festejos do emplacamento das ruas de Morrinhos. O memorialista João

Leonardo Silveira afirma que foi em 06 de janeiro de 1955. Já o Livro de Atas do Centro Social Morrinhense,

precisamente na sessão ordinária do dia 24 de janeiro de 1954, traz detalhes sobre o nome das ruas e de “uma festa

do Centro Social Morrinhense ao povo de Morrinhos em 06 de janeiro do vigente ano. Para a execução deste plano,

a Tesouraria do Centro Social Morrinhense arcou com a despesa de Cr$ 1.000,00”. Ata de sessão ordinária do

Centro Social Morrinhense, em 24 de janeiro de 1954. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense. 1953-1957,

fl. 11. Arquivo de João Leonardo Silveira. 220 SALES NETO. Luís Natal ou Câmara Cascudo: de ator a autor da cidade do Natal. Campina Grande,

EDUFCG, 2013, p. 140.

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nome?”221. Segundo Michel de Certeau, “os nomes próprios cavam reservas de

significações”222. Então, o que há nestes nomes no caso de Morrinhos?

O primeiro nome, que corresponde a primeira praça construída na vila de Morrinhos,

leva o nome de Coração de Maria, em homenagem à padroeira do lugar. É justamente nesta

praça, localizada no centro da vila, onde está localizada a capela. A praça do Cruzeiro, como já

mencionamos no capítulo anterior, foi nomeada pelo CSM levando-se em consideração um

cruzeiro de madeira que foi colocado no centro da praça, coberta apenas por mato, em 1938,

por ocasião dos festejos das Santas Missões.

Imagem 13: Região da Praça do Cruzeiro nos anos 1950. Fonte: arquivo do autor.

O Centro Social Morrinhense batizou uma das ruas da vila de Morrinhos de Rua Major

Lourenço, em homenagem, segundo João Leonardo Silveira, “a um importante membro da

sociedade local”223. A Rua Coronel Coriolano foi nomeada em consideração a Joaquim

Coriolano Rocha, considerado pela memória oficial como patriarca da família Rocha e fundador

da cidade. Três ruas receberam nomeações fazendo referência a datas: 10 de agosto, aniversário

de fundação do Centro Social Morrinhense; 07 de setembro, independência do Brasil e 06 de

221 SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2011, p. 45. 222 CERTEAU, Michel de. Op. Cit, p. 171. 223 SILVEIRA, João Leonardo. O primeiro emplacamento das ruas de Morrinhos. In: SILVEIRA, João

Leonardo; ROCHA SILVEIRA, Maria Luzia. Op. Cit. 2009, p. 227.

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janeiro, em homenagem ao Dia de Reis e a posse do primeiro vigário da Paróquia de São

Manoel da cidade do Marco, a qual pertencia a capela de Morrinhos. Duas ruas foram

identificadas levando-se em consideração “homens das letras”: Rua Professor Hermínio, um

dos primeiros docentes das escolas isoladas e reunidas em Morrinhos, e Rua Padre Antônio

Tomás, o “príncipe dos poetas cearenses”224. Por fim, a Rua Nossa Senhora de Fátima, em

homenagem a visita da imagem peregrina da santa que veio de Portugal e viajou pelo Ceará em

1953.

Mais do que a nomenclatura, é interessante notar as dimensões da realidade social que

nortearam a escolha desses nomes pelo Centro Social Morrinhense. Temos a atividade política

local manifestada nas figuras do Major José Lourenço e Joaquim Coriolano da Rocha; a

religião, inscrita no espaço através dos nomes das duas praças e da Rua Nossa Senhora de

Fátima; o cultivo das letras, manifestado no tributo a Antônio Tomás e José Hermínio; o

“patriotismo”, simbolizado na rua 7 de setembro e, por fim, o próprio Centro Social

Morrinhense, representado pela Rua 10 de agosto.

Sobre os festejos de inauguração da identificação das ruas, o jornal Voz de Morrinhos

tratou de publicar um pequeno texto que, entre outras coisas, afirmava:

Realizar-se-á hoje a inauguração oficial das placas, confeccionadas de material

esmaltado, postas nas praças e ruas de Morrinhos. Constitui-se uma grande vitória, os

esforços dos rapazes do Centro Social Morrinhense, radicado em Fortaleza, que não

mediram sacrifícios para a realização desse sonho. Morrinhos apresenta hoje ao

visitante um aspecto soberbo que lhe é peculiar, dando um exemplo edificante aos

seus vizinhos, do amor e dedicação de seus filhos à terra que os serviu de berço. Como

é sabido por todos e largamente conhecido no interior do Estado, somente se vê placas

dos tipos das de Morrinhos nas grandes urbs. Morrinhos, a pitoresca vila da Ribeira

do Acaraú, vem atingido nesses últimos anos um acentuado progresso. Chama-se, por

isso mesmo, de vila privilegiada.225

Percebemos uma clara necessidade do Centro Social Morrinhense de tornar o corpo da

“vila privilegiada”, um espaço de distinção, “onde só se vê placas dos tipos das de Morrinhos

nas grandes urbs”, tornando-o uma espacialidade que servisse de “exemplo edificante” aos seus

vizinhos”. Aqui entramos em uma outra questão que não podemos negligenciar em nossa

análise das práticas de espaço do Centro Social Morrinhense na vila de Morrinhos: a construção

de uma monumentalidade.

224 Interessante notar que, por conta de seu sepultamento em Santana do Acaraú, em 1941, quando Morrinhos se

configurava ainda como distrito dessa cidade, dizem por aqui que o grande “príncipe dos poetas” ainda é um pouco

morrinhense. 225 Emplacamento das ruas de Morrinhos. Jornal Voz de Morrinhos, nº 03, 06 de janeiro de 1954.

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Os textos escritos pelos membros do Centro Social Morrinhense e publicados em

jornais, notadamente o Voz de Morrinhos, dão conta de afirmar que Morrinhos está no caminho

de um progresso sem volta, que é uma “vila privilegiada” especialmente por seu

desenvolvimento e as transformações que ocorrem em seu corpo, em seu espaço estriado. No

entanto, um destes espaços nos chama atenção, pois é ali onde se concentraram o maior número

dos “melhoramentos urbanos”226, as tentativas de urbanização e modernização de Morrinhos,

do qual o Centro Social Morrinhense participou ativamente: o Quadro da Rua.

Uma das primeiras “operações de demarcação” realizadas pelo Centro Social

Morrinhense foi a transformação de um lugar presente naquele espaço: o Alto das Flores, onde

o Centro Social Morrinhense fez uma extensa remodelação, retirando o excesso do capim, a

mata de cipaúba e as roseiras que cresciam desordenadamente. Para os membros do Centro

Social Morrinhense, era preciso harmonizar o espaço da vila juntamente com a natureza quase

selvagem que crescia ao seu redor. Era preciso que a cidade, que desejava ser moderna,

convivesse com uma natureza controlada pela ação humana. Na imagem abaixo, é possível ver

o Alto das Flores, antes da ação do Centro Social Morrinhense, emergindo por trás da capela.

226 Segundo Bresciani, a noção de melhoramentos liga-se a uma diversidade de situações “portadoras de benefícios

à cidade e à sua população”. BRESCIANI, Stella. Melhoramentos entre intervenções e projetos estéticos: São

Paulo (1850-1950). In: BRESCIANI, Stella (Org.). Imagens da Cidade. São Paulo: FAPESP; Porto Alegre:

Editora da UFRGS, 2000, p. 344.

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Imagem 14: Capela e Alto das Flores nos anos 1950. Fonte: arquivo do autor.

O Alto das Flores foi completamente limpo do excesso de mato no início de 1953,

“sendo plantados 50 pés de fícus-benjamins, proporcionando um melhor passeio e uma vista

deleitosa”227. Ao fim, rebatizaram o alto, trocando seu nome para Alto dos Estudantes, como

ficou conhecido até pouco tempo. Michel de Certeau já apontava que as operações de

demarcações possuem a finalidade de “fundar e articular espaços”228, de dotá-los de

significação, de transformar os lugares em espacialidades vividas, praticando-os. A instituição

ia escrevendo e inscrevendo seu nome nos espaços do projeto de cidade ideal que desejavam,

procurando relacionar os seus “desejos de dizer” com as suas “artes de fazer”.

Foi assim também com a campanha de limpeza dos prédios públicos da vila. Em debate

realizado em sessão ordinária do Centro Social Morrinhense em 13 de dezembro de 1953, foi

dito que o “lodo, fruto do acumulo da água das chuvas, escorria e esverdeava o branco cintilante

do prédio. O mal cheiro dos animais mortos, das frutas podres e do sangue derramado no chão

afastava os compradores e atraía os cachorros que, naquela altura, era em maior quantidade do

227 Alto dos Estudantes. Jornal Voz de Morrinhos, nº 01, 06 de janeiro de 1953, p. 4. 228 CERTEAU, Michel de. Op. Cit. p. 190.

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que os cidadãos”229. O prédio do qual se falou na reunião é o Mercado Público de Morrinhos,

inaugurado antes da fundação do Centro Social Morrinhense, em 25 de setembro de 1949, com

a presença do então prefeito de Santana do Acaraú, João Alfredo de Araújo, mas que não recebia

manutenção desde então. Muito comum nas cidades interioranas do Ceará, era formado por

“quartos de comércio” com várias portas centrais que davam acesso ao seu interior.

Imagem 15: Mercado Público de Morrinhos durante a década de 1950. Fonte: arquivo do autor.

Em 1954, inaugurou-se também no Quadro da Rua, uma pequena Avenida, juntamente

com uma grande reforma da Praça Coração de Maria, ambos projetos submetidos à Câmara

Municipal de Santana do Acaraú, com a ajuda do Centro Social Morrinhense. Quem falou a

respeito disso foi o sócio do CSM, Edmir Vasconcelos, escrevendo ao jornal Voz de Morrinhos:

Desde que Morrinhos começou a se evoluir, a se desenvolver e a marchar na via Apia

do progresso, descortinando assim sua melhor aparência, ante aos olhares

contemplativos de seus visitantes, jamais pôde sair da mente de sua juventude idealista

a ideia singular e patriota de construir uma Avenida larga ou passeio, para onde

pudessem afluir todos os rapazes e as senhoritas num passatempo agradável e

reconfortante. (...) Vitória gloriosa ao nosso Morrinhos, graças ao trabalho hercúleo

do Centro Social Morrinhense e do dinamismo do chefe político Abdoral Rocha.230

229 Ata de sessão ordinária do Centro Social Morrinhense, em 13 de dezembro de 1953. Livro de Atas do

Centro Social Morrinhense. 1953-1957, fl. 5. Arquivo de João Leonardo Silveira. 230 VASCONCELOS, Edmir. A Avenida de Morrinhos. Jornal Voz de Morrinhos, 07 de setembro de 1954.

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É interessante que a escrita de Edmir Vasconcelos frise a importância da Avenida de

Morrinhos ser larga. Ora, o próprio conceito de “avenida” é algo que se projeta para a

imensidão, que se diferencia da rua, pensada como um espaço mais estreito. Estes adjetivos,

porém, são muito usados ao nível do discurso, notadamente aqueles que remetem noção de

grandeza, de vastidão, de amplificação. Isso deixa claro como o imaginário do progresso técnico

estruturou o mundo material, sobretudo nos espaços que experimentaram historicamente, pela

ação do homem, a modernidade. A avenida de Morrinhos seria então o lugar privilegiado para

o passeio, para o flerte, para o footing, para os olhares perdidos que se encontravam à tardinha,

para as tramas dos afetos cotidianos.

A Praça Coração de Maria, que também compunha a paisagem do Quadro da Rua, era

o lugar do diálogo, das falas perdidas no tempo, dos encontros demorados no banco ao lado das

roseiras amarelas. Mas a praça também é o lugar da diversão, do comércio ambulante praticado

fora das portas de madeira das casas, dos deslocamentos cotidianos, da fala dos “passos

perdidos”, como diria Michel de Certeau. Isso fez com que as praças, e a de Morrinhos não

ficou fora deste cenário, fossem utilizadas de diferentes maneiras, em diferentes horários, em

diferentes camadas de tempo.

Imagem 16: O Quadro da Rua no final da década de 1950. Fonte: arquivo de Paulo Rogério da Rocha.

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O fato é que os “melhoramentos” efetuados no Quadro da Rua, acabaram por construir

uma imagem de monumento para aquele espaço. Era ao redor da Praça Coração de Maria, na

Avenida, que se localizavam espaços de sociabilidade como o Astória Bar e seu sistema de alto

falantes, a capela, as melhores e maiores casas da vila. A metonímia da “vila privilegiada” foi

gestada a partir desse conjunto espacial. O Centro Social Morrinhense queria fazer do Quadro

da Rua, da área central da vila, “o traço isolado que valia pelo todo, onde alguns elementos da

modernidade estendem-se ao conjunto”231. Desta forma, o Quadro da Rua, com todos os

“melhoramentos” recebidos, valeria por toda a vila, e serviria como a imagem que projetava a

cidade moderna desejada, principalmente pelos intelectuais do Centro Social Morrinhense.

Todavia, distante da monumentalidade do Quadro da Rua, parecia existir uma outra vila,

com suas ruas tortuosas cobertas de barro, com entulhos nas calçadas de casas com estruturas

precárias e fachadas discretas. A hoje Rua Joaquim Coriolano Rocha, a principal e mais

importante rua da cidade, era, naquele tempo, um caminho de piçarra, de barro vermelho, que

beijava o rio ao final do percurso. Bem diferente do organizado e limpo Quadro da Rua.

Imagem 17: Rua Joaquim Coriolano Rocha durante os anos 1950. Fonte: arquivo de João Leonardo Silveira.

231 PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto

Alegre. 2ª edição. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p.159.

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Era ali, longe dos olhos e ouvidos do vigário, onde se manifestava, mais explicitamente,

a segunda versão da cidade mencionada por Calligaris: a distribuição da inquietude sexual. Era

afastado do Quadro da Rua, da igreja e da pretensa elite morrinhense, que funcionava o mais

famoso cabaré da vila: o Chifre Torto, onde as noites eram quentes e longas. Localizado à beira

do traçado rodoviário carroçável que ligava Morrinhos às cidades vizinhas:

(...) tinha uma casa que servia de clube, era o Chifre Torto, era uma casinha de

prostituta, uma casinha comum. Um balcão de bodega, naquelas duas vasilhas vendia

bebida e ele fez um puxado assim do lado e cimentou. Era uma casa onde o dono fez

um alpendre, puxou um vanzão assim do lado e lá tinha bebida. Mas só quem ia lá era

os homens ou as negas, e faziam seus sambas nas calçadas de casa.232

É a partir da vontade de querer viver de outra forma e a partir da ideia de fundar uma

vila progressista e moderna, que a prostituição, como outras práticas ligadas aos grupos menos

abastados da vila, como as práticas do “jogo de caipira”, que os membros do Centro Social

Morrinhense moveram uma verdadeira cruzada visando a extirpação dessas práticas dos

espaços mais públicos da cidade, principalmente do Mercado Público, clamando por seu

controle e vigilância, na impossibilidade de sua extinção, colocando--as para fora dos limites

da “cidade desejada”. Por isso a sua localização na extremidade da cidade, à beira da estrada.

Ao mesmo tempo em que via a necessidade de intervir no espaço físico da vila, o Centro

Social Morrinhense manifestava a preocupação em exercer uma ação pedagógica em relação a

seus moradores. Sempre enfatizavam a necessidade da articulação entre “progresso material” e

“progresso moral”, pois, “a cidade (desejada) se torna um lugar exemplar a partir do qual o país

exibe a posição que ocupa na ordem civilizatória mundial”233. Para isso, disponibilizavam um

pequeno espaço em seu jornal para reclames e denúncias de práticas que destoavam da “moral

e dos bons costumes”. O seminarista Valderi Rocha foi um dos que lá escreveu, estupefato,

sobre os rumos que a vila estava tomando com seu “progresso desenfreado”:

Verdadeiramente lamentável é o estado moral em que se encontra nossa terra, que

com os olhos fechados marcha para o abismo da precarização dos costumes. E

Morrinhos não pode continuar assim. Morrinhos que tem o exterior de uma cidade de

progresso material, deve também ser uma cidade de progresso moral - o que ela não

poderá conseguir se entregando ao mais miserável e pernicioso vício que dominam

nas aglomerações humanas – o jogo e a prostituição. O jogo e a prostituição nada mais

são do que a podridão de um cadáver a contaminar as auras da sociedade. Nada mais

do que um miasma que exala seus odores na atmosfera do lar católico. (...) batalhar

pela extinção de tais vícios é um dever das autoridades locais. Ação esta que significa

232 Entrevista de Geraldo Silveira concedida a Luciana Vasconcelos Maranhão. 30 de fevereiro de 2006. 233 ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Da natureza à técnica: a capital do Rio Grande do Norte no início do

século XX. In: FERREIRA, Ângela Lúcia; DANTAS, George. Surge et ambula: a construção da cidade moderna

em Natal (1890-1940). Natal: EdUFRN, 2006, p. 123.

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não só satisfazer os anseios da religião, mas também colaborar para a redenção moral

de Morrinhos.234

Valderi expõe uma das faces que devia ser privilegiada pela “vila privilegiada”: ela era,

e deveria continuar a ser, extremamente católica. A cidade desejada pelo Centro Social

Morrinhense era aquela onde os sacramentos são derramados nas esquinas e o incenso invade

as casas. O que o CSM busca é fazer de Morrinhos uma cidade moderna, mas dentro de uma

modernização conservadora, onde ao mesmo tempo em que desejam uma avenida, um lugar de

passeio para o flerte e a paquera, para o encontro entre “rapazes e senhoritas”, lutam por uma

“atmosfera católica”, religiosa, batalhando pela transformação de sua capela em sede

paroquial235. Assim, por meio de um discurso marcado pela prática e pela positividade da ação,

o Centro Social Morrinhense construiu a identidade de “vila privilegiada” para Morrinhos,

forjada entre o papel e a pedra, entre a terra e os sonhos.

Michel Foucault aponta que a produção dos discursos é cuidadosa, é estratégica, é

organizada e bem distribuída, de forma procedimental. Mas é possível que um discurso

identitário seja abalado por um acontecimento que emerge de forma imprevisível dentro de uma

determinada realidade histórica? Seria possível destronar a “vila privilegiada”?

2.3 “Morrinhos pede socorro”: da vila privilegiada à vila aterrorizada

No dia 10 de fevereiro de 1953, pouco mais de um mês depois da publicação do texto

“Morrinhos, terra de progresso”, que consideramos aqui como discurso inaugural que

possibilitou a emergência da identidade espacial de “vila privilegiada”, o Centro Social

Morrinhense enviava seus membros para as sedes dos maiores jornais de Fortaleza. Um deles,

Amadeu Vasconcelos, foi à redação do jornal O Povo, acompanhado de outros centristas, para

contar o que de fato estava motivando aquela ação de caráter emergencial: Morrinhos havia

sido invadido, no dia 02 de fevereiro, por cerca 200 retirantes que, famintos, atacaram o posto

de leite local. Este acontecimento assombrou a Elite Morrinhense e o próprio CSM, que

recebera um telegrama de Abdoral Rocha, vice-presidente da EM, relatando o que estava

ocorrendo naquela vila, que se encontrava aterrorizada. Todos os jornais de Fortaleza, em

234 ROCHA, Valderi. Os dados, dia e noite, balançam na latinha. Jornal Voz de Morrinhos, 07 de setembro de

1954. 235 Falaremos melhor desta questão no capítulo seguinte.

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grande parte pela influência de Mundico Rocha, estamparam o pedido de socorro da “vila

privilegiada”:

Tendo à frente o estudante João Amadeu Vasconcelos, esteve na redação do O Povo,

uma comissão do Centro Social Morrinhense com o objetivo de solicitar a atenção das

autoridades para a aterrorizante situação da vila de Morrinhos, no município de

Licânia. Segundo a comissão que nos visitou, as ruas de Morrinhos se encontram

cheias de flagelados e maltrapilhos famintos, constituindo uma ameaça para a

população, dado que, sem meios para sua própria subsistência, talvez se desesperem.

Para comprovar a gravidade do estado de cousas, foi-nos exibido pela comissão uma

carta do presidente da “Elite Morrinhense”, fazendo um relato do que ali ocorre.236

Outra comissão foi à Rádio Iracema, onde foi lido o curto telegrama enviado por

Abdoral Rocha ao Centro Social Morrinhense, onde se dizia que “mais de duzentos famintos,

cassacos, quase nus, invadiram o posto de leite. Peço por gentileza e com urgência para o

Governador providências, remeter trabalho a fim de mitigar tanta miséria”237. Stenio Lopes,

correspondente do jornal O Povo e que estava na festa de inauguração da luz elétrica em

Morrinhos junto ao governador Raul Barbosa um mês antes deste acontecimento, escreve a

respeito da situação de Morrinhos e da visita do Centro Social Morrinhense à redação do jornal:

O caso é este: cerca de 200 trabalhadores rurais invadiram Morrinhos procurando com

o que matar a fome. Procuraram em Morrinhos alguma cousa que fosse do governo,

pois o que é do governo, eles naturalmente julgaram que era deles. Fora a subdelegacia

de polícia, o que havia do governo em Morrinhos era um lactário. Pois eles foram ao

lactário e, sem nenhuma cerimônia, beberam todo o leite. O diretor do lactário e o

presidente da Elite Morrinhense pediram socorro à capital. O “Correio do Ceará”

estampou em sua edição de ontem o grito de socorro do diretor. E os rapazes do Centro

Social Morrinhense vieram à redação reforçar o pedido do homem.238

É interessante notar a ausência quase completa da presença do governo do estado em

Morrinhos, representado por apenas dois órgãos governamentais: uma “subdelegacia de

polícia” e um posto de distribuição de leite. Amadeu Vasconcelos, na ocasião da visita do

governador, já o alertava que Morrinhos “não possui assistência social, não há nenhum posto

de assistência à maternidade, não se conhece assistência médica e nem dentária, posto de

puericultura e outros benefícios, e não se tem esperanças para tão cêdo”239. Parece que, ao

menos do ponto de vista de assistência governamental, a “vila privilegiada” era uma imagem

esquecida e dada ao fracasso.

236 A situação de Morrinhos. Jornal O Povo, fevereiro de 1953. 237 Telegrama enviado ao Centro Social Morrinhense por Abdoral Rocha, vice-presidente da Elite Morrinhense.

03 de fevereiro de 1953. 238 LOPES, Stenio. Gratidão para Morrinhos. Jornal O Povo, fevereiro de 1953. 239 VASCONCELOS, João Amadeu. O que vimos em Morrinhos. Jornal Gazeta de Notícias. Janeiro, 1953.

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Imagem 18: Manchete de notícia do jornal Gazeta de Notícias. 03 de março de 1953. Fonte: arquivo de João

Leonardo Silveira

Quando Abdoral Rocha em seu telegrama pede para o governador “remeter trabalho a

fim de mitigar tanta miséria”, ele está falando precisamente da continuação da construção da

estrada de rodagem Itapipoca-Acaraú-Granja, que beneficiaria Morrinhos e poderia ocupar com

trabalho aqueles retirantes da seca que haviam invadido o lactário. Stenio Lopes aponta essa

questão em seu artigo, afirmando que “só há para êles uma saída: a continuação das obras da

estrada de Itapipoca a Granja. Essa estrada, em que se trabalhou em 1951, foi abandonada

precisamente em Morrinhos”240.

Uma resposta para essa questão só veio em 05 de maio de 1953, e foi noticiada em todos

os jornais do estado. As obras nas rodovias cearenses, que antes eram administradas pelo

Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER, ficariam agora sob controle do

governo estadual, como medida de emergência para solucionar a situação crítica apresentada

pela falta. Para isso, foi liberada uma verba ao Ceará de 97 milhões de cruzeiros, que foram

divididos para execução de obras em novas estradas.

NOME DA RODOVIA VALOR DE REPASSE (Cr$)

Rodovia Aratuba - Capistrano Cr$ 1.500.000,00

Rodovia Coreaú - Granja Cr$ 2.300.000,00

Rodovia Cedro – Várzea Alegre - Crato Cr$ 2.300.000,00

Rodovia Catunda - Tamboril Cr$ 5.000.000,00

Rodovia Jaguaribe – Alto Santo Cr$ 3.500.000,00

240 LOPES, Stenio. Op. Cit.

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Rodovia Aracati - Jaguaruana Cr$ 4.500.000,00

Rodovia Cristais – Morada Nova Cr$ 2.300.000,00

Rodovia Aracati - Mossoró Cr$ 3.400.000,00

Rodovia Canindé – Campos Sales Cr$ 4.500.000,00

Rodovia Itapipoca - Assunção Cr$ 2.300.000,00

Rodovia Morrinhos - Licânia Cr$ 2.300.000,00

Rodovia Aurora – Iara Cr$ 1.200.000,00

Rodovia Iguatu - Acopiara Cr$ 4.500.000,00

Rodovia Quixeramobim – Boa Viagem Cr$ 2.300.000,00

Rodovia Barbalha - Jardim Cr$ 1.200.000,00

Rodovia Limoeiro – Morada Nova - Quixadá Cr$ 1.000.000,00

Rodovia Acopiara – Saboeiro Cr$ 1.000.000,00

Tabela 3: Lista de rodovias e as verbas destinadas para a obra. Elaboração do autor

De acordo com a tabela acima, que elaboramos com base nas informações coletadas e

divulgadas pelos jornais em maio de 1953, seria destinado uma verba de dois milhões e

trezentos mil cruzeiros para a continuação da estrada entre Morrinhos e Licânia. Porém, de

acordo com as informações de João Leonardo Silveira, em Morrinhos, as obras das estradas só

foram retomadas em 1958, sendo ele um dos que trabalhou em sua construção:

Muita gente da vila e do interior do distrito, se alistou para trabalhar nessas

construções. Uns como simples operários, que viviam morando em tendas e barracos

levantados para a sua proteção e de suas famílias. Conhecidos por brincadeiras, que

eles mesmo aceitaram com certa benevolência, pelo nome de cassacos, e outros por

terem um nível de conhecimento um pouco mais elevado, conseguiram trabalhos mais

amenos. Eu mesmo fui um deles, mas fui o cassaco número um da minha equipe, uma

turma de vinte homens.241

Será mesmo que estes retirantes aceitavam “com certa benevolência” serem chamados

de cassacos? O que é um cassaco? Como este conceito emergiu e qual sua relação com os

retirantes das secas? Por que a figura e a afluência destes “flagelados” aterrorizavam as cidades

que desejavam ser modernas?

*

241 SILVEIRA, João Leonardo. Op. Cit, 2009. p. 266-267.

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Os retirantes são sujeitos sociais que surgem quando as relações socioeconômicas,

especialmente no semiárido, não estão em consonância com as possibilidades dos recursos

naturais disponíveis. A concentração de terras estava nas mãos de uma elite agrária minoritária,

sendo que poços, açudes e rios encontravam-se nas propriedades de grandes latifundiários.

Sendo assim, esses sujeitos, não conseguindo facilmente os recursos que lhes possibilitem

subsistir, ou mesmo existir, partem a pé pelas estradas na tentativa de encontrar alimento, água,

trabalho e repouso. Vida. Transformados em andarilhos, em uma massa uniforme de sujeitos

sem rosto e sem corpo, despossuídos de terras e sem meios de produzir para si mesmos, os

retirantes formavam um grupo social marginalizado na sociedade cearense desde, pelo menos,

o final do século XIX, com a seca de 1877.

Mesmo oriundos de diversos lugares, os retirantes tinham algo em comum: eram

geralmente trabalhadores campestres, pobres, analfabetos, famintos, em geral doentes, a grande

maioria de tifo, e que estavam em um processo de deslocamento a pé pelas estradas. Eram

homens do caminho. Podemos definir retirante como o sujeito social que deixou seu espaço de

origem, seus lares, para buscar por meio da deambulação ordinária, outros lugares e as

condições propícias de sua fixação em um novo lugar.

Observamos a partir das informações nos periódicos e na produção literária, que um dos

interesses das autoridades governamentais era converter retirantes em força de trabalho, no

intuito de construir obras de socorros públicos, como as estradas de rodagem. Tal medida visava

afastar as multidões das práticas criminosas, dos saques e da vadiagem repudiadas pela elite

cearense desde os oitocentos.

As autoridades governamentais e as elites políticas locais e regionais elaboravam

projetos dos mais diversos tipos, construções destinadas a paliar os problemas sociais dos

efeitos da seca. O problema das irregularidades de chuvas se transforma em um obstáculo ao

mobilizar as elites políticas, incumbindo-as de procurar os meios de solucionar os danos

provocados pelas estiagens, com a decisão de converter os retirantes em trabalhadores e

operários nas obras de socorros públicos. Consideramos que uma das medidas das autoridades

governamentais e das elites locais, a partir da seca de 1877, foi a formação de uma visão

diferente em relação ao trabalho no Norte do país. Durval Muniz de Albuquerque Júnior nos

sugere que:

O trabalho era um tema muito presente nos discursos do final do século XIX (...) A

seca, que vai ser responsabilizada pelo rompimento das relações de trabalho

tradicionais, onde o ritmo das relações de trabalho era muito menos intenso e o nível

de exploração menor, havendo uma intensa associação entre trabalho e lazer (...)

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Estava-se diante da formação deste mercado e da necessidade de disciplinarização

desta mão de obra, adaptando-a às novas exigências das relações de trabalho no

interior.242

Conduzir os retirantes para as atividades de trabalho nas obras de socorros públicos foi

a solução encontrada pelas autoridades para ocupa-los, vigiá-los e controlar aqueles que

vagavam pelas estradas, lugarejos, vilas e distritos. Aproveitar-se da presença de milhares de

flagelados e recrutá-los para o trabalho, foi a grande jogada das elites locais para evitar um

possível caos nas cidades e demais espaços onde esses sujeitos eram estigmatizados.

Mas por que cassacos? Por que ligar este conceito aos retirantes? Cassaco remete a um

animal de hábito noturno, de aparência feia e que deixa um rastro de odor nauseante por onde

passa. Sente uma necessidade quase constante de comer, e consegue sua caça furtivamente,

deixando suas presas atentas, em profunda vigilância, ao menor gesto de ataque. A feiura, o

forte odor e a fome parecem ter sido as características responsáveis por se atribuir esse nome

aos retirantes e flagelados das secas. Mas quando este conceito emerge? Quais as suas

condições históricas de possibilidade?

O retirante é a grande imagem fomentadora do discurso literário das secas que emergiu

na segunda metade do século XIX, e que Durval Muniz de Albuquerque Júnior chama de

“literatura das secas”243. A figura do retirante aparece, por exemplo, na produção literária de

Rodolfo Teófilo, como um “errante das misérias das secas”, um “esqueleto animado”, sendo a

seca a principal responsável pelas mazelas de sua vida, pelo seu sofrimento diário e por sua

constante migração244. Já para Euclides da Cunha, os retirantes são os “amansadores do sertão”,

são desbravadores espaciais que vagam diante das imposições ardorosas do meio árido em que

vivem. Euclides, na verdade, trata os retirantes como sujeitos desterritorializados, como

242 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino

– de problema a solução (1877-1922). Dissertação de Mestrado em História do Brasil. Campinas: Unicamp, 1988.

p. 130. 243 Sobre essa questão, ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. As imagens retirantes: A constituição da

figurabilidade da seca pela literatura no final do século XIX e do início do século XX. In: Varia História, Belo

Horizonte, vol. 33, n. 61, p. 225-251, jan/abr 2017. Neste texto, Durval “trata da emergência da chamada “literatura

das secas” do Norte, na segunda metade do século XIX, e de como ela construiu uma estrutura narrativa para esse

fenômeno, centrada no acontecimento da retirada, que servirá de modelo para toda a produção literária subsequente

acerca das estiagens. Partindo de dois modelos narrativos clássicos, presentes na cultura ocidental — a narrativa

do êxodo e a narrativa da via sacra — essa literatura construiu um conjunto de imagens e enunciados que, ainda

hoje, permanecem como o “ser” mesmo da seca do Nordeste do Brasil. Ignoradas pela vasta produção

historiográfica existente a respeito desse fenômeno, essas imagens e cenas vão ser figuradas, inicialmente, e

recorrentemente reapresentadas na produção literária que se diz regionalista, sendo posteriormente apropriadas por

outros gêneros narrativos e artísticos. Mesmo em permanente reelaboração e reinscrição, essas imagens retirantes,

sobrevivem e retornam periodicamente nos discursos em torno desse fenômeno dito regional”. 244 Ver THEÓFILO, Rodolpho. História das secas 1877-1889. Rio de Janeiro: Imprensa, 1922.

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expatriados, como figuras nômades que praticam espaços sem nem se atentarem ao seu próprio

gesto, “gesto admirável”245.

O fato é que a imagem do retirante participará dessa flutuação: ora como vítima, como

sujeitos sem casas, sem lugar, sem vida, sem rosto e sem corpo; e ora como herói, que com seu

ato de gigante bravura, mesmo sem perceber, desbrava o sertão, sendo também um obreiro

incansável nas frentes de serviço.

Já o termo cassaco, utilizado para adjetivar a figura do retirante, parece emergir com a

produção literária do sobralense Cordeiro de Andrade, especialmente na obra Cassacos,

publicada em 1934, que relata o drama dos retirantes, tendo por espaço a cidade de Sobral,

distante 66km de Morrinhos, durante a seca de 1919246. O interessante é que Cordeiro de

Andrade não faz menção a presença dos retirantes nas obras de socorro público, o que nos faz

deduzir que a relação com bicho é estritamente com o retirante, e não com os trabalhadores nas

frentes de serviço das secas. Cordeiro, durante uma passagem do livro, narra a chegada dos

retirantes em Sobral, cidade tida como enobrecida, intelectual, progressista e distinta:

Os trens despejavam, diariamente, na cidade, chusmas de retirantes, de todas as

espécies e de todas as idades. Povo sem sexo. Eram, apenas, os Cassacos.

Esfarrapados, os olhos compridos de fome, engolindo cuspo, mastigando vento,

corriam os olhos súplices pelos tabuleiros, sortidos de broas, que se enfileiravam em

linha reta, estação em fora.247

Era exatamente por conta desses “esfarrapados”, com seus olhos “compridos de fome e

mastigando vento” que aqueles que desejavam uma cidade moderna, progressista e civilizada

tinham medo deles. A imagem do maltrapilho errante, de um faminto adjetivado de animal, que

trazia consigo sua mulher magra e suas crianças chorosas, eram tudo que as elites urbanas não

queriam ver, porque justamente era a imagem oposta da cidade civilizada e moderna: limpa,

esteticamente bem arranjada, organizada, higienizada, salubre e com a fome controlada, mesmo

em tempo de estiagem. A própria figurabilidade da retirada, da cena de uma procissão de corpos

quase nus se aproximando das cidades, deixavam seus habitantes apavorados. O fato de “serem

de todas as espécies” mostra o não-reconhecimento, inclusive humano, daqueles que pereciam

e morriam de fome e sede longe dos grandes solares e dos ricos palacetes.

Como então seria vista a “vila privilegiada” com suas ruas lotadas de flagelos que

clamavam por comida, que remexiam nos lixos, que ameaçavam atacar pequenas casas

245 Ver CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. 20. Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. 246 Ver ANDRADE, Cordeiro de. Cassacos. Rio de Janeiro: Andersen, 1934. 247 Ibidem, p. 53.

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comerciais para matar a fome? O Centro Social Morrinhense sabia que era necessário imunizar

a cidade ideal dos cassacos, dos retirantes, dos flagelos que na espreita atacaram o lactário da

vila, roubando-lhes o leite. A “vila privilegiada”, portanto, se transformou em uma “vila

aterrorizada”. O projeto de cidade ideal do Centro Social Morrinhense foi sacudido pela

violência dos passos desarrumados dos cassacos. O “grito de socorro” do presidente da Elite

Morrinhense, era também o clamor por ajuda do CSM, que via seu projeto de cidade ideal, em

plena construção, já ameaçado.

Não sabemos que destino levou os retirantes que fizeram de Morrinhos sua morada por

alguns meses. Eles simplesmente desaparecem das fontes, e só retornam com outro período de

estiagem, em 1958, quando as obras das estradas no entorno de Morrinhos recomeçaram. Mas

aquilo foi o suficiente para abalar as estruturas da “vila privilegiada”, porém este conceito volta

a ser usado anos depois, após passado o trauma da invasão, como mostraremos no capítulo

seguinte.

*

Nosso desejo, neste capítulo, foi refletir a respeito de como o Centro Social Morrinhense

construiu uma imagem ordenada e um espaço do desejo. Esta imagem é para nós muito mais

um conceito do que uma paisagem. É um conceito, pois, “é um campo de saber e, portanto, uma

maneira de poder”. É um conceito que acaba sendo naturalizado nos discursos, tomado como

identidade espacial para uma pequena vila da ribeira do Acaraú, que mesmo tendo que se

deparar com uma realidade que o contradiz, continua sendo utilizado em discursos que

estrategicamente buscam a realização de um desejo maior. E que desejo seria este? Saberemos

adiante.

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Capítulo 3

Surge et ambula – “Ergue-te e anda”: O Centro Social Morrinhense e a

emergência da cidade emancipada

3.1 “Um lugar para rezar mais perto de Deus”: Morrinhos, entre uma capela e uma matriz

Era início de manhã de domingo em meados de agosto e serenava. Antônio Osmar,

conhecido por “O procurador”248 e pai de José Ataíde, já esperava à beira da calçada a chegada

do Padre Apoliano. No interior da casa, sua esposa Abigail Vasconcelos preparava a dormida

do vigário e a comida para logo mais. Era sempre motivo de festa a visita de um representante

da Igreja à vila de Morrinhos. Várias eram as famílias que matavam garrotes e compravam

quilos e mais quilos de costela para o almoço de domingo, nessas ocasiões.

Na quinta-feira da mesma semana, à tardinha, uma caravana de crianças, jovens, adultos

e velhos deambulava em ladainha pelas estradas de terra e pedras soltas e redondas, entre a vila

de Morrinhos e o distrito de Marco, envoltas de carnaubeiras tristes e despalhadas. Como não

havia padre na vila, o jeito era peregrinar dezoito quilômetros para se confessar e receber a

Eucaristia na sexta pela manhã na Paróquia de São Manoel. Como relembrou Mundico,

“dormíamos na casa do Sr. Antônio Minervino, um velho farmacêutico barbudo que vendia

remédios homeopáticos”249. Faziam tudo aquilo porque queriam se livrar da presença post

mortem do inferno, embora muitos ali experimentavam o próprio inferno em vida.

Ao longe, depois da sombra da capela, Antônio Osmar avistou o pequeno grupo que

chegava próximo ao Quadro da Rua. Entre eles, no cavalo da frente, o padre Apoliano. O sino

da capela badalava para anunciar a chegada do sacerdote e chamar os fiéis à missa dominical.

O incenso e a mirra estavam prontos. A celebração seria logo mais.

***

248 Mundico, em entrevista, afirmou que Antônio Osmar recebia essa alcunha por cuidar das dependências da

capela quando da ausência do vigário de Marco. 249 ROCHA, Paulo Rogério. Uma vida sem reticências: a história abreviada de Mundico Rocha. Cruz: Gráfica

Nova Cruz, 2018, p. 22.

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A cena que descrevemos acima é bastante comum nas cidades do interior cearense. Um

olhar mais atento para a história da formação dos espaços urbanos no Ceará, sobretudo dos

interioranos, nos faz esbarrar em uma instituição que forneceu a base da organização social e

espacial dessas cidades: a presença da Igreja. Essa instituição, direta ou indiretamente,

participou ativamente da produção dos primeiros marcos simbólicos que nortearam a invenção

de vilas e distritos, por meio da edificação de capelas, cruzeiros, do deslocamento e fixação de

imagens de santos, dentre outros símbolos de fundação250.

Em Morrinhos não foi diferente, e o Centro Social Morrinhense não ficou alheio à

necessidade de colocar como pauta do seu projeto de cidade emancipada, a criação de uma

paróquia para a vila. Já era possível visualizar essa manifestação nas primeiras reuniões

documentadas em ata da instituição. Na sessão ordinária do dia 13 de setembro de 1953, o

presidente do CSM, Mundico Rocha, discorreu sobre a necessidade de “se apresentar na

Câmara de Licânia um decreto-lei que peça um auxílio financeiro de vinte mil cruzeiros para a

confecção do patrimônio do Imaculado Coração de Maria, a futura paróquia de Morrinhos”251.

Pelo menos três motivos principais parecem emergir e que tornaram a fundação da

paróquia de Morrinhos um dos principais objetivos do CSM desde sua fundação, em 1952. O

primeiro deles é a relação íntima dos centristas, notadamente dos fundadores da instituição,

com o catolicismo, “que veio desde o berço”252, e os acompanhou ao longo de suas vidas. Isso

fez com que participassem ativamente de movimentos religiosos, seja em Morrinhos no tempo

das coisas miúdas, da infância, ou em Fortaleza, já adultos. José Ataíde frequentava o Seminário

Maior de Fortaleza, estudando para se tornar um sacerdote da Igreja, enquanto Mundico Rocha

participava dos encontros da União dos Moços Católicos, no Edifício Epitácio Pessoa, na Rua

Barão do Rio Branco na capital cearense. Em sua “história abreviada”, escrita por seu filho

Paulo Rocha, o advogado conta que “todos os domingos ele lá estava, juntamente com outros

companheiros, rezando e tratando de assuntos religiosos. Durante alguns anos, a si fora confiado

o cargo de secretário e era quem redigia as atas das reuniões”253. A grande maioria dos diretores

do CSM também participavam das Congregações Marianas.

250 Sobre essa questão, ver SILVA JÚNIOR, Agenor Soares e. História Urbana e a Igreja Católica no Ceará. In:

SILVA JÚNIOR, Agenor Soares e. Cidades sagradas: da “Roma cearense” à “Jerusalém sertaneja”: A Igreja

Católica e o desenvolvimento urbano no Ceará (1870-1920). Sobral: Edições Ecoa, 2015. p. 23-71. 251 Ata da sessão ordinária do CSM, em 13 de setembro de 1953. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 6. 252 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha, realizada em 16/05/2017, em Morrinhos, Ceará. 253 ROCHA, Paulo Rogério. Op. Cit. p. 30.

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O segundo motivo nomeia este tópico: Morrinhos se encontrava espacialmente entre

uma capela, que era a sua, e uma matriz, a principal igreja da Paróquia de São Manuel, na cidade

vizinha de Marco. Por conta disso, dependiam das espaçadas visitas do padre Francisco

Apoliano Ferreira254, que geralmente só ocorriam duas vezes ao mês, salvo alguma visita em

caráter de urgência. Os habitantes da vila de Morrinhos acabavam se queixando frequentemente

de abandono por parte da Igreja. Isso fez com que os políticos locais, entre eles o vice-presidente

da Elite Morrinhense, Francisco Abdoral Rocha255, manifestassem apoio ao CSM naquela

campanha pela criação da paróquia de Morrinhos.

Em 25 de Outubro de 1953, o Centro Social Morrinhense recebeu um telegrama de

Abdoral Rocha contendo apenas uma frase: “Se Deus quiser dezembro próximo será a posse do

nosso vigário”256. No Salão Nobre da ACI, “uma salva de palmas eufóricas se fez ouvir por

parte dos presentes”257. Para comemorar, a manchete do próximo número do Jornal Voz de

Morrinhos, que circulou em 06 de janeiro de 1954, tratava justamente da aguardada criação da

paróquia:

O Centro Social Morrinhense, juntamente com o povo de Morrinhos está empenhado

numa campanha, que pelo seu alto valor e gigantescas proporções, é a mais simpática e

encomiástica até então levada por nossa gente. Trata-se da criação da Paróquia de

Morrinhos, empreendimento que vem empolgando a todas as camadas sociais,

interessadas nessa monumental campanha que ali se está realizando, sob os auspícios

do povo morrinhense, organizado em sua entidade de classe. Todo o esforço foi

desprendido no sentido de que o povo morrinhense recebesse entre palmas e flores e

com o coração não menos festivo, o seu vigário. Orientador espiritual como o é, e pessoa

indispensável aos agrupamentos humanos, para assegurar a paz entre as famílias. Numa

cidade em que não se há vigário, o seu catolicismo tende sempre a diminuir, por mais

fervoroso que seja o povo. Morrinhos não goza deste grande dom de Deus, mas sempre

se conservou católica, integral. Podemos, pois, afirmar que Morrinhos viveu, vive e

viverá na fé. Vive pela cobiça veemente de vir a ser um dia uma paróquia completa.

Nada foi possível até agora, mas não tardará muito a acontecer.258

O terceiro motivo podemos entender pela leitura do texto acima. De acordo com o CSM,

por mais que Morrinhos fosse predestinada a se conservar “católica, integral”, por conta de seu

254 Francisco Apoliano Ferreira nasceu em Pitombeiras, distrito de Senador Sá, em 1917. Ordenou-se padre no

Seminário Menor de Sobral em 26 de novembro de 1926, e com 25 anos de idade foi nomeado por Dom José

Tupinambá da Frota, o primeiro vigário da recém-criada Paróquia de São Manuel, em Marco, então distrito de

Santana do Acaraú. 255 Francisco Abdoral Rocha nasceu em 04 de março de 1913. Filho de um dos principais comerciantes e chefe

político nos anos de 1930 na vila de Morrinhos, José Ibiapina Rocha, Abdoral Rocha se transformou no principal

líder político local em Morrinhos durante a década de 1950, o que lhe rendeu anos depois o cargo de prefeito

municipal. 256 Telegrama enviado ao Centro Social Morrinhense por Abdoral Rocha, vice-presidente da Elite Morrinhense.

25 de outubro de 1953. 257 Ata da sessão ordinária do CSM, em 25 de outubro de 1953. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 8. 258 Morrinhos terá brevemente o seu vigário. Jornal Voz de Morrinhos, nº 3. 06 de janeiro de 1954.

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“povo fervoroso”, havia uma preocupação que, na ausência de um vigário, o sentimento de

religiosidade diminuísse, mesmo entendendo que “Morrinhos viveu, vive e viverá na fé”. Isso

nos leva uma questão interessante que não podemos deixar de levar em consideração.

No Brasil, a separação entre a Igreja e o Estado se deu a partir da constituição de 1891.

Com a emergência da República, e diante dessa nova realidade política experimentada pelo

Brasil, sobretudo no início do século XX, vários eclesiásticos tiveram de se empenhar na

tentativa de liderar uma recatolização. Esse movimento, ganhou força com a publicação da

Carta Pastoral Saudando a sua Archidiocese, publicada em 1916, por Dom Sebastião Leme, e

pretendia restaurar as bases políticas da Igreja Católica retomando sua presença junto às

diversas instituições comprometidas com a ordem social e dentro do compromisso religioso,

que fora, segundo ele, afetado com o crescente processo de secularização.

O fato é que a maioria dos movimentos ditos modernos, que levantaram a bandeira da

modernidade e do culto ao progresso, mesmo aqueles distantes do padrão de civilização da

época, participaram ativamente da reprodução das ideias progressistas que se espalhavam como

o vento nas cidades brasileiras desde o início do século. A Igreja se mostrou preocupada com a

educação católica e a falta de mobilização dos fiéis e dos intelectuais nas atividades

eclesiásticas, o que limitava a atuação da Igreja nas esferas políticas e sociais. No documento

publicado por Dom Sebastião Leme, o bispo procurou direcionar sua preocupação à

necessidade da formação de uma neocristandade, com o objetivo de restaurar o poder político

da Igreja e seu prestígio no país259.

O Centro Social Morrinhense, embora profundamente alinhado ao discurso do progresso

e da modernização, não abriu mão da necessidade urgente de colaborar com o movimento de

expansão do catolicismo na vila de Morrinhos. Com vários textos, publicados em grande

maioria no jornal da instituição, os intelectuais do CSM participaram da difusão de ideias que

defendiam, sobretudo, a conquista de novos fiéis. Um exemplo disso foi o texto escrito pelo

orador do CSM, Amadeu Vasconcelos, e publicado na edição do Jornal Voz de Morrinhos de

1955, intitulado “O que é o homem?”, onde afirma que “o católico não praticante é um homem

incompleto, que não participa do equilíbrio moral e não é orientador dentro da cadeia afetiva

de sua família. Sem religião e ordem não há progresso, pois são esses os elementos que fazem

a grandeza de um povo”260.

259 Sobre essa questão, ver MOURA, Carlos André Silva. Histórias Cruzadas: debates intelectuais no Brasil e em

Portugal durante o movimento de Restauração Católica (1910 - 1942). Campinas: Tese de Doutorado – Unicamp,

2015. 260 VASCONCELOS, Amadeu. O que é o homem?. Jornal Voz de Morrinhos, janeiro de 1955.

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Percebemos aqui que os signos do novo e do progresso almejados pelo CSM para

Morrinhos, que discutimos melhor no capítulo anterior, são profundamente conservadores. O

culto à tradição e uma modernização conservadora, para eles, deveriam andar juntos. Ao mesmo

tempo em que se desejava luz elétrica, ruas alargadas, grupos escolares e demais

“melhoramentos” considerados modernos, a “vila privilegiada” deveria ser regida pelas

badaladas do sino da igreja e pela presença de um vigário, “orientador espiritual indispensável

aos agrupamentos humanos”. Morrinhos, segundo o Centro Social Morrinhense, deveria ter

uma “paróquia esplendorosa, um lugar para se rezar mais perto de Deus”261.

No entanto, o “orientador espiritual” demoraria a chegar.

3.1.1 “A morte como farsa”: a tensão entre Morrinhos e Marco e os dois Franciscos, o

padre e o político

Na manhã do dia 19 de agosto de 1954, nas imediações do Açude da Serrota no então

distrito de Marco, um grupo de trabalhadores que voltava dos carnaubais com um comboio de

jumentos, se deparou com uma cena inusitada: um jipe parcialmente submerso à beira do açude.

Amarraram os animais em um pé de oiticica e foram observar mais de perto a situação. Logo

notaram que o automóvel não era estranho. Havia manchas de sangue no banco dianteiro e na

carroceria do veículo. Pendurado no retrovisor, um terço feito de madeira. Foi então que

descobriram que o jipe era do padre Francisco Apoliano Ferreira, pároco de Marco. Procuraram

e não encontraram nenhum sinal do corpo do vigário.

O desaparecimento do padre Apoliano se tornou manchete em diversos periódicos a

partir da manhã seguinte. O jornal O Povo detalhou os trâmites da investigação, publicando o

radiograma que a Secretaria de Polícia recebera do Major Bento, delegado regional de Sobral:

Comunico segui madrugada hoje diligência ao distrito de Marco, município de

Santana do Acaraú (Licânia) a fim de apurar desaparecimento misterioso do vigário

Francisco Apoliano. A população de Marco julga ter sido o mesmo assassinado, sendo

corpo abandonado lugar ermo ou lançado rio. Mesma madrugada prendi individuo

com história contraditória alusiva ao desaparecimento. Logo retorne, informarei

vossencia pormenores do fato.262

O “indivíduo com história contraditória”, conhecido popularmente como Miguel

Pelado, que o delegado prendeu preventivamente, era filho de um senhor chamado Zeca Freitas,

261 Ata da sessão ordinária do CSM, em 13 de setembro de 1953. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 6. 262 Telegrama do Major Bento, delegado regional de Sobral, publicado no jornal O Povo, 20 de agosto de 1954.

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e que supostamente estaria junto com o padre no momento em que o jipe teria virado e

mergulhado no açude, apesar de “não apresentar ferimento algum no corpo”263. Ainda no

mesmo dia, a equipe do jornal Unitário havia conversado com a senhora Maria do Carmo

Apoliano Dias, irmã do padre desaparecido, que forneceu detalhes colhidos posteriormente pela

polícia:

(...) a senhora Maria do Carmo Apoliano Dias fez uma revelação que justifica a

hipótese do assassinato do seu irmão. Disse que existiam certas desinteligências entre

o padre Apoliano e pessoas residentes em Morrinhos, em virtude de haver aquele

sacerdote fornecido a Dom José Tupinambá da Frota, Bispo de Sobral, informações

desfavoráveis quanto à criação de uma paróquia para Morrinhos. Um chefe político

dessa localidade, interessado pela criação dessa referida paróquia, acrescenta d. Maria

do Carmo, ameaçou assassinar o padre.264

Logo após tomar ciência do depoimento da irmã do padre, os principais veículos de

comunicação do estado já especulavam o possível destino do padre desaparecido. Acidente?

Fuga? O jornal O Povo estruturou a reportagem do caso a partir da fala de Maria do Carmo

Apoliano Dias, o que gerou uma grande repercussão na região.

Figura 19: Notícia sobre o desaparecimento do padre Apoliano. Jornal O Povo, 20 de agosto de 1954. Fonte:

Arquivo pessoal de Leonardo Silveira

O chefe político mencionado na reportagem era Francisco Abdoral Rocha, que também

ocupava o cargo de vice-presidente da Elite Morrinhense. A notícia caiu como uma bomba no

Centro Social Morrinhense, embora desde fevereiro de 1954, mais precisamente desde a sessão

263 Ibidem. 264 Ibidem.

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ordinária do dia 14 de fevereiro, a instituição já tomara conhecimento dos boatos que davam

conta da tentativa da população de Morrinhos de assassinar o pároco de Marco. A situação foi

inclusive discutida entre os sócios durante a ordem do dia daquela reunião:

O plenário recebeu ordem dos diretores da Elite Morrinhense para lançar uma nota de

protesto em nome do Centro Social Morrinhense, devido a calúnia que o povo do

Marco levantou contra a nossa ordeira população. Foi esta calúnia um meio de sufocar

a ideia de criação da Paróquia de Morrinhos. Espalhou-se pela Ribeira do Acaraú a

notícia triste de que em Morrinhos se aguardava uma ocasião propícia para assassinar

o vigário do Marco, o Revmo. Francisco Apoliano Ferreira. E ainda eram citados os

nomes dos assassinos: Sr. Abdoral Rocha e Lourival Rocha.265

O fato é que a relação entre Morrinhos e Marco, e consequentemente entre o Centro

Social Morrinhense e o vigário, estavam longe de ser das melhores. Tudo começou quando,

durante a sessão ordinária de 25 de novembro de 1953, o CSM recebeu por meio de um

telegrama a notícia de que “uma comissão chefiada pelo padre Apoliano estava tentando desviar

para Marco os recursos da construção de uma ponte que deveria seguir para Morrinhos”266.

Apesar do pedido da Elite Morrinhense para que o CSM interferisse e apurasse o caso, não há

indícios na documentação de que isso foi feito.

No entanto, a relação entre a instituição e o padre de Marco, que antes rendia-lhe notas

generosas no jornal Voz de Morrinhos, ficou profundamente estremecida. Quando soube da

notícia, que logo tratou como boato, de que o vice-presidente da Elite Morrinhense, Francisco

Abdoral Rocha, havia ameaçado matar o padre Apoliano, o CSM se apressou em publicar uma

dura nota no terceiro número do Voz de Morrinhos, que intitulou “Morrinhos Protesta!”:

Espalha-se pelo Ceará afora a monstrenga notícia de que alguns filhos morrinhenses

ou povo de Morrinhos ou como quer que chamem, maquinam contra a existência do

Pe. Francisco Apoliano, vigário de Marco e Morrinhos. A caluniosa notícia teve sua

origem e o mais amplo desenvolvimento na visinha cidade de Marco que, como é

sabido, se emudece ao ouvir dizer que o sopro do progresso tange a bons tempos os

negócios e campanhas morrinhenses. Acreditamos que não obterão êxito algum os

fomentadores da traição, da sórdida e capciosa mentira, calúnia da mais hedionda que

se podia levantar contra uma gente como a de Morrinhos. Um povo como o nosso,

católico, ordeiro, generoso e bom, amante da paz e do progresso, e que procura com

todas as forças levantar-se do marasmo em que se encontram quase todas as vilas e

cidades do Ceará, difícil é encontrar semelhante em terras brasileiras. Para não se crer

na veracidade desse fato, basta que se lhe diga caro leitor, que não há nenhum povo

mais religioso e amigo do Clero do que o de Morrinhos. Há por ventura na história

religiosa do Ceará, uma gente que tenha se empenhado com mais ardor, através de sua

entidade de classe, para a criação de sua paróquia como a de Morrinhos? Há por acaso

nas margens do Acaraú um povo de tradições cívicas e religiosas mais acentuadas do

que o nosso. Só a ignorância, mãe do desrespeito, da inveja e da maldade, trevas

265 Ata da sessão ordinária do CSM, em 14 de fevereiro de 1954. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 12. 266 Ata da sessão ordinária do CSM, em 25 de novembro de 1953. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 9.

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malditas que pesam sobre a alma humana, pode escurecer as inteligências, apagar as

virtudes e desconhecer a verdade.267

O Centro Social Morrinhense se utiliza de dois argumentos para justificar a

impossibilidade do “povo morrinhense” ter desejos de morte contra o padre Apoliano. O

primeiro deles é que se trata de uma notícia forjada na mentira, devido o sentimento de inveja

e emudecimento que Marco nutria com relação a Morrinhos, que não suportava sentir o “sopro

do progresso e dos bons tempos que tangem os negócios das campanhas morrinhenses”. Chega

inclusive a admitir que é “difícil encontrar semelhante em terras brasileiras”, que se levanta do

“marasmo” e progride como Morrinhos. O segundo é que, sendo um “povo católico, ordeiro,

generoso e bom, amante da paz e amigo do Clero”, jamais poderia cometer tamanho crime

contra a vida do pároco de Marco.

Quando tomou conhecimento do desaparecimento do padre Apoliano, o Centro Social

Morrinhense acompanhou de perto o desfecho da história e das investigações policiais. A sessão

ordinária do dia 23 de agosto de 1954 foi dedicada quase que exclusivamente para tratar da

questão do desaparecimento do vigário, conforme registrado em ata:

A casa recebeu comunicação de que em Morrinhos reapareceu a notícia de assassinato

contra o Revmo. Pe. Apoliano. Desta vez o caso está bem complicado, porquanto se

sabe que o referido padre não tem paradeiro certo. O CSM, embora não possa entrar

tão logo em ação, tem o propósito de protestar veemente como da primeira vez. Ficou

acertado que se devia telegrafar urgente para Morrinhos pedindo notícias verídicas.

Por outro lado, soube-se que o citado padre havia dito que conseguiria vasta extensão

de terras do distrito de Morrinhos para o município de Marco. Esta notícia não teve

séria repercussão, mas ficou acertado que os diretores procurariam informa-se em

fontes fidedignas.268

O mistério sobre o desaparecimento do padre só foi desvendado no início do mês de

setembro de 1954, quando Miguel Pelado resolveu contar o plano do sacerdote, do qual também

fizera parte. Segundo ele, em depoimento ao delegado regional de Sobral e aos correspondentes

do jornal Correio do Ceará, o padre havia desistido da viagem no meio do caminho e expôs ao

empregado o seu plano, e que Miguel seria bem remunerado se o ajudasse. Os detalhes do caso

foram explicados em telegrama pelo Major Bento:

Comunico vossencia que retornei de diligência nos municípios de Marco, Licânia,

Acaraú, Granja e Massapê. Neste constatei que o padre Apoliano não fora assassinado,

nem tampouco vítima de morte em consequência de virada de jipe como a população

daquele município afirmava. O referido padre propositalmente poz o jipe na água do

Açude de Serrota simulando desastre ou sinais de seu assassinato, pedindo a seu

empregado, Miguel de tal, para matar galinhas e derramar sangue nos bancos e

carrosserie do jipe. Nas minhas diligências apurei que o citado padre fugiu do local

267 Centro Social Morrinhense. Morrinhos Protesta. Jornal Voz de Morrinhos, nº 04, 10 de agosto de 1954. 268 Ata da sessão ordinária do CSM, em 23 de agosto de 1954. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 26.

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em companhia dos operários José Maria e Aprígio, trajando à paisana e indo tomar

transporte na cidade de Granja com destino a Parnaíba, de acordo com o vigário de

Granja Manuel Vitorino. O padre Apoliano, na ocasião de simular seu assassinato,

fazia-se acompanhado de Miguel de tal, vulgo Pelado, a quem dera quantia de 500.00

cruzeiros para não descobrir sua fuga, tendo ordenado a Miguel que enterrasse a

quantia e não descobrisse seu destino. Logo fosse serenado os comentários,

desenterrasse para si a citada quantia, o que foi feito.269

Não sabemos os reais motivos que levaram o vigário de Marco a simular sua própria

morte. Ele foi encontrado pela polícia já em Fortaleza, tentando se hospedar em uma pequena

pensão. A Diocese de Sobral abafou o caso e o enviou para Bom Jesus do Itabapoana, no estado

do Rio de Janeiro, onde o religioso fundou o Abrigo dos Idosos José Lima e permaneceu até a

sua morte, em 2005. O memorialista João Leonardo Silveira chega a afirmar que “a sua saída

da paróquia do Marco, que não foi muito feliz, só a Deus pertence”270.

O fato é que o Centro Social Morrinhense respirou aliviado com o desfecho das

investigações. Na sessão ordinária do dia 12 de setembro de 1954, o CSM esclareceu a seus

sócios e demais presentes que “o caso do Pe. Apoliano pode ser explicado por acesso de loucura,

o que vem tirar qualquer dúvida sobre o acontecido. Mais uma vez provou-se a falta de lógica

em tais boatos, pois o povo morrinhense é pacífico por índole e por tradição mesmo”271.

No entanto, por conta das declarações do padre Apoliano e de seu fervoroso

posicionamento contrário a criação da paróquia de Morrinhos, o processo foi paralisado na

Diocese de Sobral. Restou ao CSM pedir ajuda ao Bispo Conde de Sobral.

3.1.2 Em busca do bispo: as comitivas do Centro Social Morrinhense rumo à “Princesa

do Norte” e a criação da Paróquia do Sagrado Coração de Maria.

Em toda sua história, Sobral nunca tinha vivido festa tão apoteótica e alegria tão

transbordante. As ruas estavam profusamente ornamentadas de folhas e folhagens. O

chão tapizado de pétalas de rosas e os ares embandeirados com milhares de flâmulas

de papel colorido tremulando ao vento e de artísticos paquifes verdejantes O

espetáculo era digno de ser visto. Duas bandas de música, vestidas em traje de gala,

estavam de prontidão e milhares de fogos de artifícios preparados para o exato

momento da chegada.272

269 O Pe. Apoliano simulou sua própria morte. Correio do Ceará, setembro de 1954. (A data precisa não pode

ser localizada devido a rasura no documento). Arquivo de João Leonardo Silveira. 270 SILVEIRA, João Leonardo. Op. Cit. p. 240. 271 Ata da sessão ordinária do CSM, em 12 de setembro de 1954. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira. fl. 27. 272 ARAUJO, Francisco Sadoc de. Traços biográficos de Dom José Tupinambá da Frota. Sobral: Academia

Cearense de Letras, 1982, p. 15.

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Foi assim que Sobral recebeu Dom José Tupinambá da Frota, seu primeiro bispo, e um

dos personagens mais emblemáticos da história da “Princesa do Norte”. Profundamente

identificado com rituais, decidiu entrar na cidade como fizeram os primeiros bispos do Ceará:

de forma apoteótica, desfilando em carro aberto pelas principais ruas.

Dom José nasceu em Sobral, no ano de 1882, e desde muito cedo foi direcionado para

rígidos estudos religiosos, já que vivia no seio de família abastada e de longa tradição religiosa.

Sobrinho de Dom Jerônimo Tomé da Silva, Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil, e

responsável pela criação da Diocese de Sobral, frequentou seus estudos primários na cidade do

Natal, no Rio Grande do Norte. No ano de 1899, depois de passar pelo Seminário

Arquiepiscopal da Bahia, que até então se tratava do principal centro de formação eclesiástica

da região Norte do Brasil, foi morar em Roma, onde concluiu o doutorado em Filosofia e

Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana.

Como pároco de Sobral, e depois como primeiro bispo, Dom José procurou adequar a

cidade, com sua “realidade sertaneja”, ao projeto de modernização experimentado pelas

principais cidades brasileiras, aliando o gosto pelo moderno aos princípios cristãos. É bom

lembrar que, embora de formação conservadora, Dom José estava alinhado à perspectiva de

revitalização ou recatolização da Igreja. Dom José tentou, nos moldes do catolicismo

ultramontano, revestir Sobral com toda pompa e glória possível. Seu desejo era de transformá-

la em uma “Roma Sertaneja”. Segundo um de seus biógrafos, o padre João Mendes Lira, Dom

José jamais deixara de lado a política. Toda a sua experiência e formação na cidade de Roma

não foi suficiente para que declinasse do manejo político, desta “arte de bem governar que lhe

vinha de berço”273.

Sua força política era tamanha que, segundo o historiador Agenor Soares e Silva Júnior,

“o religioso predominou no cenário regional de tal forma que as ações empreendidas pelos

administradores municipais jamais atingiram em número, dimensão e qualidade de suas obras.

As contínuas doações feitas à Diocese faziam com que esta tivesse uma arrecadação anual maior

do que a da prefeitura”274. O jornal O Noroeste, em sua edição comemorativa a Dom José,

chegou a afirmar que “Dom José dava a impressão de ser um deus, escrito com d minúsculo,

porque fazia tudo do nada”275.

273 LIRA, João Mendes. A vida e obra de Dom José Tupinambá da Frota: primeiro bispo de Sobral 1882-1982.

Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1984, p. 76. 274 SILVA JUNIOR, Agenor Soares. Op. Cit. p. 260-261. 275 O primeiro profeta de Sobral. Jornal O Noroeste, 10 de setembro de 2004.

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O bispo não abria mão de todo o fausto que podia ostentar e exigia todo o rigor possível

no cumprimento dos rituais, notadamente em suas aparições públicas. Não dispensava o uso de

joias e nem de trajes suntuosos, muito menos do tapete vermelho que era desenrolado durante

sua passagem. O cronista Lustosa da Costa procurou descrever o sujeito-espetáculo Dom José:

É um espetáculo vê-lo sair à rua com sua batina elegante, os arminhos, a pesada cruz

pastoral de ouro, o báculo dourado, seguido de numeroso séquito. Exige que os padres,

no calorão, andem de sobretudo pesado por cima da batina preta. Quer o poder político

e luta por ele.276

(...) Era tremendamente formal, a ponto de se assinar padre-doutor quando jovem e

bispo-conde, depois. Apegado à etiqueta e a liturgia, exigia que lhe beijassem,

genuflexos, o anel episcopal, trajava batina roxa com cauda, andava com mitra, báculo

e paramentos suntuosos em ocasiões solenes.277

O Centro Social Morrinhense entendia que a aproximação entre a instituição e a figura

do bispo, com tudo que ela representava, poderia trazer uma importante contribuição para

Morrinhos, nas esferas religiosa e também política. Pensando nisso, ainda no final de 1953,

resolveu reunir comissões que partiam de Fortaleza a Sobral para encontrá-lo. A decisão nasceu

na sessão ordinária de 13 de dezembro de 1953, proposta feita pelo centrista José Adrião Sousa.

De acordo com o orador, a ideia seria de entrevistar Dom José e posteriormente publicar o

resultado da conversa no próximo número do jornal Voz de Morrinhos. E assim foi feito:

Uma numerosa comissão do Centro Social Morrinhense esteve com S. Revdmo Dom

José Tupinambá da Frota, por ocasião do Tríduo Nacional de Fátima, realizado em

Fortaleza, para informa-se sobre o que o Revdmo acha sobre a campanha em apreço.

Interrogado D. José pela comissão qual foi a impressão que tivera de Morrinhos.

Disse-lhes:

-Boa. Acho-a bem adiantada e em progresso material, supera muitas outras vilas por

mim visitadas.

– E sobre o padre que pleiteamos para Morrinhos, o que diz V. Revdma?

– Eu posso indicar os caminhos, depois vamos aguardar. Eu agirei somente dentro dos

trâmites legais da Igreja.

– Mas V. Revdma não poderia nos adiantar quem é o padre e quando tomará posse

para melhor prepararmos a recepção.

– Não. Para que tanta pressa?

– V. Revdma acha que não será no dia 6 de janeiro próximo, dia que aguardamos com

ansiedade por ser uma data festiva para todos nós?

– Não sei, será brevemente.278

O Centro Social Morrinhense se manteve animado, muito embora a entrevista com Dom

José não tenha gerado os resultados esperados. Para tentar chamar a atenção do bispo, os

números seguintes do jornal Voz de Morrinhos trouxeram várias páginas a respeito de Dom

276 COSTA, Lustosa da. Vida, paixão e morte de Etelvino Soares. São Paulo: Maltes, 1996, p. 32. 277 COSTA, Lustosa da. Clero, nobreza e povo de Sobral. Brasília: Senado Federal, 1987, p. 38. 278 Jornal Voz de Morrinhos, nº 03. 06 de janeiro de 1954.

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José, traçando sua biografia e idealizando seus feitos, descrevendo como o bispo foi importante

para Sobral, “organizando obras de amparo social, multiplicando as casas de caridade,

inaugurando colégios, a fé brilhando nas consciências e Jesus Cristo reinando nos corações”279.

Para o CSM, Dom José “vai espalhando a semente que germina em flores e frutos, felicitando

a terra, glorificando o semeador e abrindo o céu aos que merecem a imortalidade”280.

Imagem 20: Imagem de Dom José estampada no número 04 do Jornal Voz de Morrinhos. Fonte: Arquivo de

João Leonardo Silveira

A tentativa de aproximação entre o Centro Social Morrinhense e Dom José não trouxe

os benefícios imediatos que a instituição tanto desejava. Prova disso é que, passados mais de

três anos após os primeiros contatos com o bispo, a paróquia de Morrinhos ainda não havia sido

criada, muito menos um vigário fora nomeado. Pouco se sabe das motivações e condições que

impossibilitaram ou que retardaram durante tanto tempo a fundação da paróquia em Morrinhos,

visto que o processo se iniciou no final de 1953 e até 1956 nada havia sido decidido.

O Centro Social Morrinhense tentou uma nova aproximação, mas desta vez não com

Dom José, e sim com o secretário do bispado, o padre José Palhano de Sabóia, considerado na

construção da memória histórica de Sobral, o filho adotivo do bispo. Segundo o cronista Lustosa

da Costa, “o sonho de Dom José era fazê-lo seu sucessor”281. Assim como aquele que o tomou

279 A Dom José Tupinambá da Frota. Jornal Voz de Morrinhos, 10 de agosto de 1954. 280 Ibidem. 281 COSTA, Lustosa da. Padre Palhano, o inventor da alegria. In: Sobral cidade de cenas fortes. Rio – São

Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 38.

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como “filho”, padre Palhano também parecia ter herdado algo do “pai”. O historiador José

Valdenir Rabelo Filho conta que “as lembranças construídas em torno desse personagem dão

conta de suas aventuras pilotando aviões e motocicletas, desfilando em carro conversível,

enamorando as jovens de sua época, presenteando com peças de grande valor figuras de

destaque na política local, e mesmo nacional”282.

Tendendo a ser muito mais político do que religioso, padre Palhano possuía um perfil

semelhante ao de Dom José, o que agradava o CSM. A estratégia fora praticamente a mesma:

comissões o visitaram em Sobral, enquanto sua imagem e seus feitos eram idealizados no jornal

Voz de Morrinhos. O CSM conseguiu também, por meio de José Ataíde, fazê-lo visitar

Morrinhos, como descreve a nota abaixo:

Com grata satisfação estampamos nas páginas do nosso jornal, a imagem do Revmo.

Pe. José Palhano de Sabóia, secretário particular de S. Excia. D. José Tupinambá da

Frota, bispo de Sobral. Pe. José Palhano que pelo seu verbo eloquente já é consagrado

orador sacro fazer o panegírico na primeira missa solene do nosso distinto

conterrâneo, Pe. José Ataíde. A estada de Pe. Palhano em nossa terra, de certo,

constituirá para todo morrinhense, motivo de grande alegria, já que Pe. Palhano é

grande amigo de Morrinhos.283

Aproveitando da amizade entre José Ataíde e José Palhano, o Centro Social

Morrinhense procurava costurar uma relação sólida entre o pároco sobralense e o distrito de

Morrinhos, algo que com Dom José não havia sido tão bem-sucedido assim. Sabendo da

manobra feita pelo CSM, que desta vez contava com a ajuda de comerciantes e políticos locais

de Morrinhos, a cidade de Marco, com receio de perder sua capela, novamente entra em cena.

Com a saída forçada de Francisco Apoliano Ferreira da paróquia marquense em agosto

de 1954, quem assume por ordem de Dom José foi o padre sobralense Egberto Andrade, que

assumiu a Paróquia de São Manuel em janeiro de 1955, vindo da cidade de Santa Quitéria. O

Centro Social Morrinhense nutria a esperança de que o vigário de Marco, ao contrário de seu

antecessor, fosse favorável à criação da paróquia morrinhense. Pelo contrário: em carta

endereçada ao bispo Dom José e redigida em uma das páginas do livro de tombo da Paróquia

de São Manuel, o padre Egberto Andrade demonstra toda a sua insatisfação com a possível

perda de sua capela para Morrinhos. Perder a capela seria, antes de tudo, perder recursos:

(..) a criação da novel Paróquia de Morrinhos vem agravar consideravelmente os

problemas para três sacerdotes a saber: o vigário de Marco, o futuro vigário de

Morrinhos e o vigário de Santana. Para o vigário de Marco: desmembrar da

pequeníssima paróquia de Marco sua capela, significa retirar dos poucos fiéis, a sua

metade e ficaria sem nenhuma capela. Para efeito, a paróquia de Marco só possui 2

282 RABELO FILHO, José Valdenir. Decifrando o silêncio da Sobral: entre a batina e as ações prefeiturais. In:

Revista Historiar, ano II. 2010, p. 226. 283 Padre José Palhano. Jornal Voz de Morrinhos, 5 de dezembro de 1956.

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capelas: a de Morrinhos e Paus-Brancos, e uma em construção em Espinhos. (...)

Exposto nestes termos, afirmo que a criação da Paróquia de Morrinhos é desnecessária

e inconveniente.284

Apesar de protestar veementemente contra a criação da Paróquia de Morrinhos, o Pe.

Egberto Andrade nada mais pode fazer para segurar sua capela. De acordo com o memorialista

João Leonardo Silveira, os irmãos Lourival Rocha e Otacílio Rocha, comerciantes e membros

da Elite Morrinhense, solicitaram junto ao deputado federal pelo PTB, Francisco de Almeida

Monte, muito familiar a Abdoral Rocha, para que “que com sua palavra empenhada,

intercedesse junto ao Pe. José Palhano de Sabóia, no sentido de que aquele sacerdote

conseguisse de Dom José Tupinambá da Frota a ereção canônica da Paróquia de Morrinhos”285.

A criação da Paróquia do Sagrado Coração de Maria, em Morrinhos, foi concluída

somente no dia 23 de janeiro de 1958, pouco mais de quatro meses após o anúncio da

emancipação política municipal. O comunicado foi feito através de uma portaria assinada por

Dom José, “por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica”, e publicada no jornal da diocese,

Correio da Semana, no dia 05 de fevereiro de 1958. O documento dava conta de estabelecer os

limites territoriais da nova paróquia, além de justificar os motivos que levaram a sua criação.

Segundo a portaria, era preciso levar “em consideração o crescente desenvolvimento da Cidade

de Morrinhos, cujas necessidades espirituais só poderão ser consequentemente atendidas com

a residência habitual de seu próprio pároco”286.

Esse “crescente desenvolvimento” de Morrinhos, mencionado na portaria, se confunde

com sua elevação a condição de município, se manifestando como um dos principais motivos

para a transformação de sua capela em matriz. Como o texto deixa claro, somente com essa

“ereção canônica” é que seria possível satisfazer as “necessidades espirituais” dos

morrinhenses. Não por acaso a palavra “cidade” está em destaque na redação do documento.

Resta-nos agora entender como se deu o processo político que fez nascer Morrinhos como uma

cidade emancipada, como mais um município a despontar em terras cearenses.

3.2 – “O que fizeram os pais da Pátria?”: a emancipação política de Morrinhos

284 Livro de Tombo da Paróquia de São Manuel. Marco: 1957, fl. 80-81. 285 SILVEIRA, João Leonardo. Op. Cit. p. 62. 286 Governo Diocesano. Portaria de ereção canônica da Paróquia de Morrinhos. Jornal Correio da Semana.

Sobral, 05 de fevereiro de 1958.

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Por volta das 17:30 daquele 16 de maio de 2017, quando a luz do sol teimava em

fracamente atravessar as palhas verdes do coqueiro na frente da casa, denunciando que já estava

indo embora, eu também imaginava que já era hora de ir. Mundico falava animadamente sobre

política, já com a voz rouca e o pescoço vermelho, quando foi interrompido pelo barulho do

liquidificador na cozinha. Cleci, sua esposa, mais uma vez nos ofereceu um pedaço de pão

francês e dois goles de café. Recusamos e Mundico se levantou, alegando que teria de trocar a

roupa para ir à missa. Já lá fora, prestes a sair, ele mais uma vez enfatizaria que no Centro Social

Morrinhense “ninguém nem pensava nesse negócio de prefeitura, de emancipação não”. E, em

parte, ele realmente estava certo.

Digo em parte, pois, em um exame atento das atas de fundação e aquelas que dão conta

dos primeiros anos de atividade do Centro Social Morrinhense, não encontramos nenhuma

menção direta ou registro claro a respeito de uma possibilidade de emancipação de Morrinhos.

Muito embora o CSM, como já relatamos no primeiro capítulo desta dissertação, em seus

escritos tenha dito que a instituição trabalhava na execução de um “plano maravilhoso” que um

dia haveria de transparecer “na fulguração da brilhante estrela do ideal”, o que nos faz pensar

que, no fundo, a grande missão e objetivo de vida do Centro Social Morrinhense era mesmo a

emancipação do seu “torrão natal”.

O fato é que uma ação efetiva neste sentido ocorreu no início do ano de 1957,

precisamente na sessão ordinária do dia 27 de janeiro, quando o Centro Social Morrinhense

organizou comissões de centristas e as enviou à Assembleia Legislativa do Ceará para

pressionar os deputados aliados à sua causa por notícias melhores para Morrinhos no que tange

a sua elevação a condição de município. Mas antes, é necessário esclarecer as condições

históricas que possibilitaram a emergência dessa iniciativa.

3.2.1 “À base de pão e laranja”: o Centro Social Morrinhense e o movimento

municipalista

Em outubro de 1955, quando circulou o número sete do jornal Voz de Morrinhos, este,

pela primeira vez, trazia um extenso editorial intitulado de “Conjuntura”, onde o Centro Social

Morrinhense reclamava e discutia a respeito da marginalização dos municípios nos planos de

governo estadual e federal:

A derrocada do município nos planos governamentais é reflexo da centralização direta

do corpo eleitoral nas mãos exclusivistas dos grandes grupos políticos. O município

como fonte produtora e organismo-mestre da vida econômico-brasileira, foi alijado,

desmonetarizado, empobrecido ao ridículo, sem crédito para solucionar seus

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problemas de educação, saúde, comunicações, etc. Que dizer então dos municípios do

Nordeste, cuja aspirações vem sendo atendidas pela União a base de pão e laranja? O

crédito, política da terra para o homem, não existe. Então, o município tem que parar

e viver aquela situação descrita pelo velho Carlyle na sua conhecida “Historie des

Revolution Française”: comer, quando tiver, o pão que os visinhos apiedados lhes

trazem.287

O texto não está assinado por um centrista ou outro autor em particular, o que nos faz

crer que se trata de um artigo feito sob a supervisão e cuidado de toda a Diretoria do CSM e

publicado em nome dela. O texto reflete uma preocupação sobre a situação, sobretudo

financeira, que os municípios estavam enfrentando, que nem mesmo a autonomia proposta pela

constituição de 1946 aos municípios nas esferas administrativa, política, financeira e legislativa

parecia ter dado conta de resolver. Isto porque, segundo Giovani Corralo, “ainda havia o

resquício de um modelo concentrador e na nomeação de prefeitos das capitais, das estâncias

hidrominerais e das localidades estratégicas para a segurança nacional”288. Para o CSM,

utilizando a frase de Carlyle, o “pão que os vizinhos apiedados lhes trazem”, representa os

poucos recursos e linhas de crédito que principalmente os estados repassavam aos municípios,

que eram insuficientes, deixando-os “alijados, desmonetarizados, empobrecidos ao ridículo,

sem crédito para solucionar seus problemas”.

A constituição de 1946289, em relação a sua antecessora290, se mostrou muito favorável

à autonomia dos municípios, sendo considerada por pesquisadores do Direito Administrativo e

constitucional como a mais municipalista das constituições, assegurando uma “real autonomia

287 Conjuntura. Jornal Voz de Morrinhos, nº 07, outubro de 1955. 288 CORRALO, Giovani da Silva. Município: autonomia na federação brasileira. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2014, p.

92. 289 Com relação a autonomia municipal, o texto constitucional de 1946 afirma que: “Art. 28. A autonomia dos

Municípios será assegurada: I - pela eleição do Prefeito e dos vereadores; II - pela administração própria, no que

concerne ao seu peculiar interêsse e, especialmente, a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência

e à aplicação das suas rendas; b) à organização dos serviços públicos locais.

§ 1º Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os prefeitos das capitais, bem como

os dos Municípios onde houver estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União.

§ 2º Serão nomeados pelos governadores dos Estados ou dos Territórios os prefeitos dos Municípios que a lei

federal, mediante parecer do Conselho de Segurança Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcional

importância para a defesa externa do país. Art. 29. Além da renda que lhes é atribuída por fôrça dos §§ 2º e 4º do

art. 15, e dos impostos que, no todo ou em parte, lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municípios

os impostos: I - predial e territorial, urbano; II - de licença; II - de indústrias e profissões; IV - sôbre diversões

públicas; V - sôbre atos de sua economia ou assuntos de sua competência”. BRASIL. Constituição (1946).

Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 18 de setembro de 1946, Rio de Janeiro. 290 De acordo com Giovani Corralo, “a Constituição de 1937 incorporou o espírito ditatorial com o decreto

constitucional de 10 de novembro, que ignorou as conquistas alcançadas com a constituição anterior, solapando o

incipiente regime democrático. Além disso, desconsiderou os avanços do regime municipal e restringiu a

autonomia consignada na constituição anterior, com a indicação dos prefeitos pelos governadores, e silenciando

quanto ao princípio da autonomia municipal, tanto que não possibilitava mais a intervenção nos Estados pelo seu

descumprimento. Esta ordem constitucional reafirmou a antiga posição do município como um ente

administrativo, não político, sem um princípio intrínseco, que possuem os Estados e a União”. CORRALO,

Giovani da Silva. Op. Cit. p. 90-91.

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aos municípios sem precedentes na história normativa brasileira”291. Diante disso, o movimento

municipalista foi decisivo para potencializar as discussões a respeito dessa autonomia

municipal presente no texto constitucional, dando contornos mais explícitos, realizando

campanhas, organizando congressos e fundando uma organização importante e que existe até

hoje: a Associação Brasileira dos Municípios.

A ABM foi fundada em 15 de março de 1946 na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo

de prefeitos, vereadores, deputados e senadores. A associação foi criada visando acompanhar

de perto o que se debatia a respeito, principalmente, da descriminação de rendas na Assembleia

Nacional Constituinte292, parte fundamental para a sobrevivência e bom funcionamento dos

municípios. Em sua primeira assembleia geral, que empossou Rafael Xavier como seu primeiro

presidente, foram definidos os seus estatutos, organizados em seis capítulos e trinta e dois

artigos. De acordo com eles, a Associação Brasileira dos Municípios “é uma sociedade civil de

âmbito nacional, destinada ao estudo e elaboração de soluções para os problemas municipais,

operando num regime de estreita colaboração e íntima cooperação com as Municipalidades e

quaisquer entidades federais ou estaduais”293. Mas o qual a importância da ABM para o Centro

Social Morrinhense e para Morrinhos?

Durante a sessão ordinária do dia 26 de junho de 1955, foi discutido entre os centristas

os assuntos e os textos que seriam impressos no próximo número do jornal Voz de Morrinhos.

Um dos sócios presentes, Expedito Leite, que depois se transferiu para o Rio de Janeiro, se dizia

“muito orgulhoso de pertencer ao número daqueles que trabalhavam pela causa Morrinhense, e

feliz pelo Centro Social Morrinhense o receber como centrista não pelo sangue, mas sim pelo

ideal”294. Discorrendo durante a ordem cultural daquela sessão, Expedito Leite, apoiado pelo

orador Amadeu Vasconcelos, falou da necessidade dos centristas ficarem a par das discussões

sobre o movimento municipalista, que há muito teria “deixado de ser apenas uma semente e

agora brotava para garantir bons frutos”295. Afirmou que era preciso entender “o que fazem,

nesse sentido, os pais da Pátria por seus municípios”296.

291 Ibidem, p. 93. 292 É importante salientar que a Associação Brasileira dos Municípios foi fundada antes da publicação da Carta

Constitucional de 1946. 293 Estatutos da Associação Brasileira dos Municípios. Revista Brasileira dos Municípios. Rio de Janeiro: Ano

I, janeiro-junho de 1948, p. 121. 294 Ata da sessão ordinária do CSM, em 26 de junho de 1955. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira, fls. 41-42. 295 Ibidem, p. 42. 296 Ibidem, p. 42.

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O interessante aqui foi a última frase proferida pelo centrista não-morrinhense: “o que

fazem, nesse sentido, os pais da Pátria”. Esta mesma construção foi usada, em um sentido

interrogativo, pelo presidente da Associação Brasileira dos Municípios, Rafael Xavier da

Silva297, durante uma conferência realizada em 28 de novembro de 1948, na cidade de

Araçatuba, no interior de São Paulo. Rafael Xavier palestrava sobre a relação entre o

movimento municipalista e a política partidária:

As circunstâncias em que realizo esta visita a linda e progressista cidade de Araçatuba

me causam impressão jubilosa e confortadora, como poucas tenho tido em minha já

longa vida pública: a impressão de que a Campanha Municipalista de que há muito

ultrapassou a fase da semeadura, atingido agora a do amadurecimento e colheita dos

frutos da pregação pelo reerguimento e reabilitação das nossas comunas. Numerosas

cidades brasileiras tenho percorrido, incansavelmente, espalhando os nobres ideais

que nos animam. (...) Que fizeram, nesse sentido os pais da Pátria? Arrebataram à

órbita comunal a maior parte das iniciativas que de fato e de direito lhe cabiam, no

tocante ao desenvolvimento e melhoria da vida local. Dessoraram o Município pela

sangria fiscal, para em detrimento dele, alimentar até a indigestão os erários federais

e estaduais.298

Pela semelhança dos discursos dos dois é possível afirmar que, ao menos Expedito Leite

estava acompanhando de perto as discussões mobilizadas pela ABM e queria que o assunto

passasse a ventilar com mais força no espaço do Centro Social Morrinhense. Porém, não foi

possível saber com mais detalhes até que ponto os centristas se envolveram e quiseram saber

dos projetos da associação presidida por Rafael Xavier.

Após a publicação do editorial “Conjuntura”, no sétimo número do jornal Voz de

Morrinhos, em outubro de 1955, foi possível verificar uma série de outros textos, assinados ou

não, que passaram a verticalizar suas discussões em torno da questão do municipalismo e da

autonomia municipal. O desejo do Centro Social Morrinhense era combinar acontecimentos

com os artigos de opinião de seus principais intelectuais, procurando refletir sobre a situação

do município no Brasil e produzir uma afluência de novos simpatizantes das causas

municipalistas na região de Morrinhos. Exemplo claro dessa nova fase de escritos inaugurada

pelo editorial “Conjuntura” foram os artigos de José Adrião Sousa e João Amadeu Vasconcelos,

intitulados “O patriotismo” e “Homens, não espereis por governos”:

A pátria é a família crescida na harmonia e dilatada nos seus puros ideais, cultuando

o passado e dignificando o presente. Não obstante a sua complexidade de elementos,

297 Rafael da Silva Xavier nasceu em Areia, município paraibano, em 20 de abril de 1894, filho de Francisco Xavier

Júnior e de Maria da Silva Xavier. Era graduado pela Faculdade de Direito de Recife em 1918, tendo

posteriormente se especializado em Ciências Estatísticas e Administração. Foi um dos principais nomes do

movimento municipalista no Brasil, ao lado de Teixeira de Freitas, e o primeiro secretário a conseguir chegar à

presidência do IBGE, nomeado pelo então presidente Jânio Quadros, em fevereiro de 1961. 298 XAVIER, Rafael da Silva. O movimento municipalista e a política partidária. In: Revista Brasileira dos

Municípios. Rio de Janeiro: Ano II, março de 1949, p. 59.

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para firmá-la nessa explêndida construção dos nobres feitos, foi legado ao homem o

patriotismo, que é a virtude sublime oriunda dos mais belos predicados humanos: a

lealdade, a persistência e a dedicação. Além do sentimento de amor que o homem

consagra à terra que lhe serviu de berço - o seu município ou povoado, a primeira das

pátrias - que deve ser livre, irredutível e soberana, para assim conquistar seu lugar de

prestígio e de contribuição para a consciência nacional.299

Para José Adrião, o cultivo do sentimento de patriotismo deve começar a partir de um

movimento de “baixo para cima”, e não ao contrário. Para o centrista, a Pátria, antes de tudo, é

o chão de cimento grosso que o viu nascer e escorregar nas mãos de uma parteira idosa. A

“primeira das pátrias” é o lugar de nascimento, o município ou a vila que o possibilitou aparecer

para o mundo. E, para ter consciência nacional, é preciso que o município conquiste “seu lugar

de prestígio” como ente federativo, sendo “livre, irredutível e soberano”.

Já Amadeu Vasconcelos adotou um tom mais mórbido, de profundo desencanto com o

Estado, chegando a afirmar que uma possível solução para a autonomia do município seria

adotar um modelo de auto-gestão e de livre associação, ou entregar-se a iniciativas particulares:

O futuro da gente brasileira está se desenhando de forma sombria, pois nossa gente

não se esforça para fugir a rotina, não se liberta das formas antiquadas e retrógadas,

de agir e pensar. O nosso povo precisa reagir contra a esterilidade do meio e da

indiferença dos nossos governos. Precisa ser capaz de realizar por si mesmo, com seus

próprios elementos, a redenção econômica e moral da pátria. É necessário ofertar-

lhes, sobretudo ao município e distritos pequenos, vida própria, autonomia e

independência econômica. Uma alternativa deve ser a iniciativa de particulares, pois

ela é o sustentáculo dos maiores municípios e dos grandes países.300

Pode-se dizer que o movimento municipalista, direta ou indiretamente, inaugurou o

debate em torno da emancipação e da autonomia municipal nas reuniões do Centro Social

Morrinhense, e de como Morrinhos poderia se beneficiar disso. Por mais que a ABM ainda

trouxesse os resquícios da política ruralista e salvacionista do Estado Novo, carregando consigo

um “agrarismo” ainda muito forte, havia essa crítica ao centralismo político, que parecia

agradar os intelectuais do CSM. O economista Valdemir Pires nos lembra que, na decolagem

do movimento municipalista no Brasil, “a ideia de município como espaço do exercício do

poder, não coincidia com a ideia de cidade, de mundo urbano”301. Rafael Xavier, por exemplo,

chega a afirmar que “o urbanismo, no Brasil, devorou o país e agora também se acha dominado

pela autodestruição”302.

299 SOUSA, José Adrião. O patriotismo. Jornal Voz de Morrinhos, nº 07, outubro de 1955. 300 VASCONCELOS, João Amadeu. Homens, não espereis por governos. Jornal Voz de Morrinhos, nº 07,

outubro de 1955. 301 PIRES, Valdemir. Municipalismo no Brasil: origens, avanços pós-1988 e desafios atuais. Cadernos Adenauer

XVII (2016) nº3, p. 128-129. 302 XAVIER, Rafael. Pela revitalização do município brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE, 1948, p.66.

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Depois de compreendermos como o debate em torno da emancipação e da autonomia

municipal chega ao CSM, resta-nos agora entender como o Centro Social Morrinhense articulou

e costurou as alianças com parlamentares para ajudar na autonomia política de Morrinhos.

3.2.2 O nascimento do município e a morte da “vila privilegiada”

Em maio de 1955, a primeira edição do jornal Voz de Morrinhos daquele ano noticiava

com entusiasmo e em tom de comemoração, a eleição de três morrinhenses ao cargo de

vereadores na Câmara Municipal de Santana, nas eleições de outubro de 1954. O texto tinha o

propósito de apresentar ao público o “cartão de identidade” de cada um, e externar a satisfação

do Centro Social Morrinhense com a nomeação dos três:

No pleito eleitoral, os morrinhenses souberam escolher para seus representantes três

homens que de fato correspondem à expectativa do povo. São cidadãos que muito

poderão fazer, se continuarem conciso de seus deveres. FRANCISCO OSCAR

VASCONCELOS: Bem conhecido é este nome entre nós. Seu dinamismo e seu

esforço envidado no sentindo de conquistar algum melhoramento para sua terra,

fizeram-no admirado por todos. Cremos que agora como vereador irá, mais do que

nunca, trabalhar em benefício de Morrinhos. É casado e reside em Santana.

EDUARDO ROQUE DE MARIA: Outro morrinhense que não tem medido sacrifícios

na propagação do nome de seu torrão natal. Abastado comerciante, é um dos chefes

políticos de maior relevo da região. É casado e mora no povoado de Intans.

FRANCISCO EDMILSON VASCONCELOS: Como político, é desconhecido. É

calouro na matéria, e oxalá que seja de fato bem-sucedido. Sabe-se que é capaz de dar

show até no dia dos finados. É casado, um pouco “agoniado”, o que não é defeito,

pois já faz parte da herança. O “Voz de Morrinhos”, fazendo este registro, vem atestar

ao público sua satisfação, parabenizando-os.303

A satisfação do Centro Social Morrinhense com a vitória dos três morrinhenses citados

na matéria do jornal, pode ser explicada por dois motivos: o primeiro deles diz respeito a política

partidária local e o impacto disso para Morrinhos. O candidato José Osmar Carneiro do PSD,

apoiado por Morrinhos nas eleições, acabou derrotado pelo representante da UDN, Gerardo

Araújo. Esse episódio foi anunciador de muitos conflitos, e o que poderia amenizá-lo era o fato

dos três novos vereadores e representantes de Morrinhos serem coligados ao PSD, o que, no

mínimo, indicaria uma forte oposição ao governo de Gerardo Araújo.

O segundo motivo foi a elaboração de um projeto, liderado pelos políticos locais de

Morrinhos e os membros da Elite Morrinhense, de se criar uma “comissão emancipacionista,

afim de se discutir as melhores ideias para levar adiante o projeto de autonomia político-

303 Três filhos de Morrinhos na Câmara Municipal de Santana. Jornal Voz de Morrinhos, nº 06, maio de 1955.

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financeira para o povo morrinhense”. Oscar Vasconcelos, Eduardo Roque e Edmilson

Vasconcelos estavam entre os nomes que participariam ativamente da iniciativa.

É preciso esclarecer que, de um modo geral, o processo para a criação de um município

ocorre da seguinte forma: as instituições delimitadoras, levando-se consideração o contexto

constitucional, estabelecem os parâmetros a serem seguidos para a criação de novos municípios,

como as regulamentações e demais legislações estaduais, além de um “estoque” de localidades

que estão aptas à emancipação, ou seja, que já são prováveis novos municípios304. De posse

dessas informações, as lideranças locais reúnem uma comissão emancipacionista para iniciar o

processo. Uma vez iniciado, um projeto de lei visando a emancipação é apresentado por um

membro da Câmara Municipal do município de onde o distrito será desmembrado, que é a

instituição processual, que verifica se o distrito atende as exigências constitucionais para se

tornar um município, onde os vereadores votam a favor ou contra. Caso a maioria dos

vereadores sejam favoráveis, o projeto segue para apreciação dos deputados estaduais, cabendo

a eles aceitar ou não o pedido de desmembramento. O último passo é sanção da lei que institui

o município pelo governador em exercício. Mas o que leva um distrito a querer emancipar-se?

Muitas são as respostas possíveis a essa pergunta. No caso de Morrinhos, diante do que

pudemos analisar, o que parece mais provável é que, devido à grande extensão territorial do

município de Santana, tenha-se alegado um descaso para com o distrito morrinhense,

apresentando ausência de serviços básicos e estagnação econômica. Problemas, que segundo o

Centro Social Morrinhense, só uma independência político-administrativa poderia resolver.

Mas, não é possível esquecer os interesses políticos em jogo, e o Centro Social Morrinhense

não se distanciou deles, possibilitando, nas relações de poder, que essa consciência

emancipatória tenha sido forjada e alimentada visando, também, o interesse político de

determinados grupos305.

304 Em duas visitas a Assembleia Legislativa do Ceará, em 2016 e 2018, nos foi comunicado que o projeto de lei

da criação do município de Morrinhos, bem como outros documentos referentes ao ano de 1957, foram perdidos

em uma enchente que atingiu o prédio da Assembleia Legislativa em 2009. Por conta disso, não pudemos ter

acesso aos pareceres das comissões de justiça e finanças que avaliaram o pedido de emancipação de Morrinhos,

bem como o resultado do plebiscito que ocorreu antes do pedido de desmembramento. 305 A respeito da natureza dos movimentos que podem justificar uma emancipação política, Geroges Pinto afirma

que há duas manifestações neste sentido: na primeira, “há um movimento que vem “de baixo para cima”, ou seja,

a pressão social cria a pressão política, sendo assim muito mais democrático, uma vez que o desejo emana do povo.

Na segunda, há um movimento que vem “de cima para baixo”, uma vez que a emancipação político-administrativa

atende, de forma mais intensa, aos anseios políticos que aos desejos das populações locais. PINTO, Georges José.

Município, descentralização e democratização do governo. Caminhos de Geografia, Uberlândia–MG, v. 6, n.

3, p. 1-21, jun. 2002, p. 10.

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O fato é que a comissão emancipacionista assumiu um papel importantíssimo na

tramitação do projeto de emancipação de Morrinhos, e a Elite Morrinhense tomou para si a

iniciativa de organizá-la, contando com a presença de políticos, comerciantes e fazendeiros

locais. No entanto, os embates entre o Centro Social Morrinhense, os chefes políticos de

Morrinhos e o governo municipal de Santana, retardaram em mais de dois anos a aprovação do

projeto de desmembramento territorial. Os representantes políticos de Morrinhos e os

intelectuais do CSM acusavam Gerardo Araújo de ser omisso e pouco interessado na resolução

dos problemas de Morrinhos. A situação de tensão levou o centrista João Gentil Lopes a

publicar um artigo sob o título “Reivindicando Direitos”, no jornal Voz de Morrinhos, em um

número que circulou em dezembro de 1956, reclamando sobre o distanciamento e abandono

que Morrinhos vinha sofrendo durante o governo de Gerardo Araújo:

É com justa razão e conhecedor da verdade, prezado leitor, que através destas linhas,

vou explicar o título acima de meu pequeno artigo. Quando nos referimos a bons anos,

imediatamente nós nordestinos, assombrados pelo flagelo das secas, nos sentimos

satisfeitos, pois esse ano é de fertilidade. Mas, leitor amigo, eu não quero me referir

as estações do ano. Quero apenas patentear e dizer em poucas palavras, que nos anos

de 1953 e 1954, apesar da calamidade das secas, os homens públicos, isto é, o

governador e principalmente o prefeito do município, muito fizeram através de

melhoramentos, obras em benefício do meu torrão natal. Ao contrário dos anos

anteriores, Morrinhos já sente o desprezo e o desinteresse da autoridade municipal,

que até o presente fecham os olhos a todo o assunto em relação a Morrinhos. Vimos,

pois, reivindicar nossos direitos, que estão sendo esquecidos, exigindo que suas fontes

de renda sejam devidamente repassadas em seu benefício.306

Quando Gentil Lopes menciona os “melhoramentos” ocorridos durante os anos de 1953

e 1954, ele está falando especificamente da gestão de José Osmar Carneiro, ex-prefeito de

Santana, que em comunhão com o Centro Social Morrinhense em seus primeiros anos de

existência, conseguiu direcionar recursos e obras públicas para a vila morrinhense, ao contrário

de Gerardo Araújo, que teria fechado os “olhos a todo o assunto em relação a Morrinhos”.

Já a questão das “fontes de renda”, Gentil Lopes exigiu que fossem repassadas a

Morrinhos, como seu direito enquanto espaço sob jurisdição santanense. O então subprefeito

do distrito, José Wilson Araújo, comerciante e o único “sócio essencial” do Centro Social

Morrinhense, deu uma entrevista ao jornal Voz de Morrinhos falando a respeito dessa questão:

Jornal: Qual a situação atual de Morrinhos, Sr. José Wilson?

José Wilson: Assumi a subprefeitura de minha terra em 29 de junho de 1956, e digo:

financeiramente não está lá muito boa, pois toda a arrecadação já foi empregada em

vários melhoramentos. Estamos atualmente sem dinheiro e nada podemos fazer.

J.V.M: A arrecadação do distrito de Morrinhos é suficiente para cobrir todas as

despesas?

306 LOPES, João Gentil. Reivindicando Direitos. Jornal Voz de Morrinhos, dezembro de 1956.

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J.W: Sim, desde que a subprefeitura conte com o montante de todo o distrito.

Atualmente, parte está tomando outro destino, que não sabemos qual, pois até o

momento nada recebemos de, por exemplo, as localidades de Sítio e Intans.307

A falta de recursos parece ter sido um dos maiores problemas, mesmo com a autonomia

municipal verificada no texto constitucional de 1946, enfrentados pelos pequenos municípios e

distritos. A “parte que está tomando outro destino”, reclamada por José Wilson é referente à

arrecadação de pequenas localidades sob jurisdição de Morrinhos, pode ser tomada como um

exemplo da má distribuição desses valores repassados pela União e divididos entre os estados,

os municípios e os distritos. Relatos de administradores do Instituto Brasileiro de

Administração Municipal, entidade criada durante o fortalecimento do movimento

municipalista após 1946, dão conta de que:

(...) os velhos costumes começaram a voltar, no sentido de os Estados ambicionarem

as fontes de renda municipais, de que se podiam servir, com maior ou menor

desenvoltura. Para começar, somente Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo

repassaram a seus municípios o excesso da arrecadação dos impostos sobre as rendas

municipais. Nenhum outro fez. A União continuou a ser relapsa em pagar as cotas do

imposto de renda, sempre atrasadas e, não raro, dependendo de influências políticas

para serem liberadas.308

Diante das acusações de negligência e falta de interesse para com os assuntos

relacionados a Morrinhos, Gerardo Araújo aproveitou o espaço concedido pelo jornal Voz de

Morrinhos para publicar uma nota em sua defesa, narrada em terceira pessoa, pelos editores do

próprio jornal. Na ocasião, o prefeito de Santana afirmou que “era favorável aos problemas de

Morrinhos, mas que o êxito de sua administração estava sendo impedida por elementos

inescrupulosos, que embora reconhecendo melhoramentos em sua gestão, procuravam ocultá-

los”309. Devido à resistência do prefeito de Santana em direcionar os recursos reclamados pelos

membros do CSM a Morrinhos, e talvez temendo fazer parte do grupo desses “elementos

inescrupulosos”, o Centro Social Morrinhense resolveu que estava na hora de acelerar o

processo de desmembramento territorial, apartando de vez Morrinhos de Santana.

Na sessão ordinária do dia 24 de novembro de 1956, o Centro Social Morrinhense

recebeu membros da comissão emancipacionista em Fortaleza, onde discutiram a melhor forma

de tocar o processo da emancipação. Amadeu Vasconcelos sugeriu a necessidade de se criar,

entre o “povo morrinhense”, “uma consciência emancipatória, para que juntos, em uma só voz,

307 Sub-prefeitura em revista. Jornal Voz de Morrinhos, dezembro de 1956. 308 IBAM (2000). A evolução do município brasileiro. Textos e Discussões. RJ: IBAM, p. 6. 309 Esteve recentemente em Fortaleza o prefeito Gerardo Araújo. Jorna Voz de Morrinhos, dezembro de 1956.

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clamassem pela liberdade morrinhense”310. Durante o encontro ficou acordado que no próximo

número a circular do jornal Voz de Morrinhos, o Centro Social Morrinhense faria um balanço

dos seus quatro anos de existência e explicaria, com grande destaque, a importância de se lutar

pela emancipação da “vila privilegiada”.

O número que circulou em dezembro de 1956 do jornal do CSM, que já citamos aqui,

trouxe ao público o editorial “Todos unidos pelo progresso de Morrinhos”, um extenso texto

localizado na primeira página, ao lado de várias fotografias dos membros da Diretoria do Centro

Social Morrinhense e da Elite Morrinhense que foram empossados na eleição que ocorreu em

agosto daquele ano. O texto dava conta da:

(...) brilhante atuação do Centro Social Morrinhense, que é a autêntica concretização

de um sonho dos filhos de Morrinhos. É a encarnação verdadeira de uma ideia que

sempre atormentou este povo. É a realização mais sublime que já empreenderam os

filhos desta terra, e, numa só palavra, o Centro Social Morrinhense é Morrinhos livre

se manifestando ao mundo, é Morrinhos abrindo suas portas para o progresso da

Civilização. Todavia não podemos esquecer que a razão de ser do CSM fundamenta-

se nesta simples e eloquente frase: todos unidos pelo progresso de Morrinhos. Quem

já leu os estatutos do Centro Social Morrinhense, fica conhecendo as aspirações e os

planos desta agremiação para o futuro dos habitantes da vila privilegiada que dorme

as margens do Acaraú. Por isso é preciso que o povo testemunhe e lute com

entusiasmo pela realização da mais nobre ideia e uma áurea possibilidade: a criação

do município de Morrinhos.311

Qual seria essa “ideia que sempre atormentou este povo”? Aqui parece muito claro que

a existência do Centro Social Morrinhense se confunde com o seu próprio desejo pela

emancipação. Se o CSM é “Morrinhos livre se manifestando ao mundo, é Morrinhos abrindo

suas portas para o progresso”, isso nos faz crer ainda mais que a fundação do Centro Social

Morrinhense pode ser traduzida pela tentativa de dar corpo a um desejo antigo desse grupo de

intelectuais: a invenção da cidade emancipada, “a mais nobre ideia, o sonho dos filhos de

Morrinhos”.

O texto do editorial continua falando sobre a emancipação, enumerando uma série de

motivos para justificar que “Morrinhos precisa, pode e vai ser município”312:

Morrinhos precisa ser município para, uma vez independente, poder executar seus

anseios e marchar a passos largos para o progresso. Pode ser município porque

preenche todos os requisitos que lhe são propostos por lei. Vai ser município porque

este deve ser o desejo dos morrinhenses para sua vila privilegiada, que já tomou corpo

na relevante atuação do Centro Social Morrinhense na condução de tão nobre causa,

310 Ata da sessão ordinária do CSM, em 24 de junho de 1956. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira, fls. 41-42. 311 Todos unidos pelo progresso de Morrinhos. Jornal Voz de Morrinhos, dezembro de 1956, p.1. 312 Ibidem, p. 1.

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já por sua grande influência perante o público, já por sua alta consideração diante das

autoridades.313

Com relação aos “requisitos que são propostos por lei”, não pudemos ter acesso ao

projeto de lei para verificar as justificativas apresentadas, e de como elas se adequavam ao texto

constitucional. Mas, pensando nessa tentativa do Centro Social Morrinhense de fazer brotar

uma consciência emancipatória no corpo social do distrito, é possível entender que, no caso de

Morrinhos, a natureza do movimento pela emancipação foi construída “de cima para baixo”,

visando muito mais atender as necessidades de um grupo específico, do que mesmo os anseios

da população em geral.

Já essa “grande influência perante o público” e a “ alta consideração diante das

autoridades”, nos faz relacionar o texto do jornal com a fala de Mundico Rocha, quando

questionado em entrevista sobre o papel do Centro Social Morrinhense na emancipação política

de Morrinhos. Apesar de um certo desconforto em tratar desse assunto, Mundico afirmou que,

em se tratando da emancipação política:

Nós do Centro Social Morrinhense tivemos o papel de articuladores. Nós

aproveitamos todo o prestígio que possuíamos com as autoridades, principalmente

políticas, para acompanhar o processo da emancipação. Organizamos várias

comissões e criamos alianças com os vereadores em Morrinhos e os deputados em

Fortaleza, na Assembleia. Muita gente nos ajudou, e nós também ajudamos muita

gente.314

Por conta desse papel de articulador mencionado por Mundico, o Centro Social

Morrinhense, juntamente com a Elite Morrinhense e a comissão emancipacionista, apoiou o

vereador Edmilson Vasconcelos no momento de submissão do projeto de lei para a criação do

município de Morrinhos, na Câmara Municipal de Santana do Acaraú. A primeira votação

recebeu parecer negativo de todos os vereadores udenistas, ligados a Gerardo Araújo, maioria

na Câmara de Santana. Isto porque, de acordo com o memorialista Geraldo Silveira, o prefeito

de Santana, ressentido por “Morrinhos não ter lhe dado maioria de votos nas eleições de 03 de

outubro de 1954”, solicitou que seus vereadores votassem contra o projeto apresentado pelo

representante e membro da Elite Morrinhense, e o processo estacionou na Câmara de

Vereadores.

Ao saber do resultado da votação, o Centro Social Morrinhense publicou uma nota em

vários jornais de Fortaleza, mostrando, apesar de um tom ligeiramente calmo na escrita, sua

313 Ibidem, p. 1. 314 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha, realizada em 16/05/2017, em Morrinhos, Ceará.

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insatisfação com a posição dos vereadores ligados a Gerardo Araújo. Intitularam o texto de

“Uma sugestão ao prefeito”, onde afirmaram que:

“muitas eram as aspirações do povo morrinhense, mas a maior e mais desejada era a

criação do município, e tem o Centro Social Morrinhense como defensor desta tão

nobre causa. (...) seria um gesto elogiável do Sr. Gerardo Araújo, prefeito de Santana,

deixar que Morrinhos, como vila privilegiada, caminhe livre, pois traria um

melhoramento de caráter coletivo para o nosso povo, e na certa seu nome ficaria

gravado na memória daqueles que desejam o bem estar social e o progresso da boa

terra. Fica, pois, aqui, a sugestão e o apêlo ao Sr. Gerardo Araújo, para que s.s. dê

alguma demonstração de civismo e gratidão ao povo de Morrinhos.315

Gerardo Araújo não recebia críticas apenas do Centro Social Morrinhense, por meio da

imprensa em Fortaleza, e dos chefes políticos de Morrinhos. O jornal santanense A Crítica,

periódico tipografado com uma tiragem de oitocentos exemplares circulando em 1956, fundado

no início da década de 1950 por estudantes abastados e que se tornariam os principais líderes

políticos de Santana, também lhe dedicava severas críticas. José Arcanjo Neto, diretor do jornal

e presidente da Associação Cultural Santanense, lamentava a ociosidade e falta de interesse do

prefeito em resolver problemas pontuais, como o abastecimento de água e a falta de recursos

financeiros para arcar com projetos sociais e de saúde pública, como a manutenção da

Maternidade Escola de Santana do Acaraú.

A Crítica procurava deixar claro que:

(...) quando a irresponsabilidade chega ao cúmulo como está acontecendo, necessário

se faz que cada um de nós tome posição contrária à desonestidade. Esta sempre foi a

posição de A Crítica. Não desejamos criticar pelo simples desejo de criticar, de

destruir. Não. Criticar para nós é construir, é ajudar. Queremos para Santana outra

coisa senão o progresso. Apenas não admitimos que o progresso venha de mãos dadas

com o erro, com o crime, com a imoralidade, como está acontecendo.316

Não sabemos que tipo de “desonestidade”, “crime” e “erro” que cometeu Gerardo

Araújo, conforme foi dito pelo jornal. O fato é que, em nome do tão desejado “progresso” e da

“falta de interesse” do prefeito de Santana na resolução de problemas, o Centro Social

Morrinhense, através do jornal Voz de Morrinhos, e a Associação Cultural Santanense, com o

seu periódico A Crítica, procuravam desgastar o governo de Gerardo Araújo, cada um com seus

interesses, cada um com seu modus operandi. Devido às críticas, Gerardo Araújo foi perdendo

prestígio e suas alianças políticas foram se deteriorando, até que começou a perder também

apoio de seus vereadores na Câmara Municipal de Santana do Acaraú, fazendo com que um

deles saísse da UDN e migrasse para o PSD, apoiado por José Arcanjo Neto, Francisco das

315 Uma sugestão ao prefeito. Jornal Unitário. Devido a rasura no documento, não foi possível verificar com

exatidão a data de publicação. 316 A Crítica ressurge pregando decência e moralidade. Jornal A Crítica, dezembro de 1956.

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Chagas Vasconcelos e José Ananias Vasconcelos, os três primos que, dentro de pouco tempo,

governariam Santana do Acaraú por mais de trinta anos.

Gerardo Araújo então procurou o vereador e membro da Elite Morrinhense, Francisco

Edmilson Vasconcelos, e propôs a ele que trocasse o PSD pela UDN, e o apoiasse em seus

projetos na Câmara. Em troca ele ofereceria “a carta de alforria de Morrinhos”317. A ideia

agradou as lideranças locais de Morrinhos e o Centro Social Morrinhense, pois ainda tinham o

apoio de mais dois representantes: Francisco Oscar Vasconcelos e Eduardo Roque de Maria.

O fato é que, entre as “brigas e futricas da política morrinhense e santanense”318, como

assim chamou o memorialista Geraldo Silveira, o projeto de criação do município de Morrinhos

só foi aprovado na Câmara de Municipal de Santana em 13 de maio de 1957. O texto da ata,

durante o expediente, discorre sobre a sessão onde “o secretário leu o requerimento assinado

por diversos vereadores o assentimento desse legislativo à criação do município de Morrinhos,

com território a ser desmembrado desta Comarca. Aprovado”319.

Assim, o texto poderia seguir o seu rito rumo à Assembleia Legislativa do Ceará, onde

o Centro Social Morrinhense, já municiado com suas alianças, estava à espera para atuar no

sentido de sua aprovação.

***

As primeiras comissões organizadas pelo Centro Social Morrinhense para atuar junto à

Assembleia Legislativa do Ceará, foram enviadas tão logo se iniciaram as sessões ordinárias do

ano de 1957. Logo na primeira reunião do Centro Social Morrinhense, em 27 de janeiro de

1957, onde se discutia animadamente durante a ordem do dia, o bingo de um garrote, o

presidente Mundico Rocha sugeriu que o CSM procurasse o deputado massapeense José Firmo

de Aguiar. Este alegou “problemas de incompatibilidade na agenda” e não recebeu a comissão

do CSM que foi à Assembleia Legislativa procurá-lo. Somente em abril do mesmo ano foi que

os centristas conseguiram marcar e comparecer, de fato, a uma reunião com um parlamentar

bastante afeito às causas daquela instituição: Francisco Vasconcelos de Arruda.

317 SILVEIRA, Geraldo. Op. Cit, p. 13 318 Ibidem, p. 12. 319 Ata da sessão ordinária do dia 13 de maio de 1957. Livro de Atas da Câmara Municipal de Santana do

Acaraú - 1957. Arquivo da Câmara Municipal, fl. 53.

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Nascido também em Massapê, em 27 de março de 1913, o advogado e político Francisco

Arruda, conhecido popularmente por Chico Arruda, começou logo cedo sua carreira pública.

Foi um dos fundadores do Centro Estudantal Cearense, juntamente com Germano Holanda,

Edgar Carvalho, Humberto Alencar, Marcos Botelho, Jacaúna de Sousa, Colombo de Sousa,

Adahil Barreto, Sinobilino Pinheiro, Cândido Couto, Aurélio e Murilo Mota. Foi também sócio

e presidente do Centro Massapeense, instituição muito semelhante, do ponto de vista

organizacional, ao Centro Social Morrinhense. Eleito deputado estadual nas legislaturas de

1955, 1959 e 1963, teve o mandato cassado em 1964, quando militava pelo PTB. Em

consequência “da violenta perseguição política” que sofrera ainda após a cassação, veio a

falecer de acidente vascular cerebral em 1972.

A escolha de Francisco Arruda como mediador pelo Centro Social Morrinhense não foi

nada inocente, muito menos sua indicação para o cargo de presidente de honra da instituição.

Desde 1954, antes das eleições estaduais, o CSM já costurava relações com o Centro

Massapeense e seu principal representante, notadamente por intermeio de João Amadeu

Vasconcelos, amigo de infância de Francisco Arruda. Nas reuniões conjuntas, se discutia

política, firmavam acordos e parcerias para os objetivos e lutas em comum, além da promoção

de bingos e festas recreativas. O Centro Social Morrinhense, que levantava a todo momento a

bandeira do apartidarismo político, não se absteve e estampou a propaganda política da

campanha de Francisco Arruda em seu jornal.

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Imagem 21: Anúncio da campanha política de Francisco Arruda no Jornal Voz de Morrinhos de agosto de 1954.

Fonte: Arquivo de João Leonardo Silveira

A idealização em torno da figura pública de Francisco Arruda no jornal Voz de

Morrinhos era tamanha que, em dezembro de 1956, durante uma rápida visita do deputado ao

distrito de Morrinhos, o Centro Social Morrinhense fez uma convocação para que a população

saísse de suas casas e fosse receber o parlamentar, que desfilava em carro aberto pelas ruas

disformes e cheias de barro de Morrinhos:

Morrinhos deve abrir suas portas e de braços abertos com sua gente na rua, receber

um ilustre amigo, na pessoa do insigne deputado Dr. Francisco Vasconcelos de

Arruda. O povo há de prestar ao presidente de honra do Centro Social Morrinhense,

uma calorosa recepção. Os morrinhenses reconhecem o empenho do digníssimo

deputado, que desfilará por nossas ruas, e a Voz de Morrinhos oferta-lhes, desde já,

as boas vindas naquela que é também sua casa.320

A nota do jornal se encerra com um lembrete do Centro Social Morrinhense ao

deputado, alertando-lhe que “não deixes faltar verbas para o incremento do progresso daquela

que brevemente, com seu trabalho, será a cidade de Morrinhos, fruto do cultivo da vila

320 Deputado Francisco Vasconcelos de Arruda. Jornal Voz de Morrinhos, dezembro de 1956.

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privilegiada”321. Esse “trabalho” de Francisco Arruda diz respeito às suas atividades como

parlamentar, sobretudo em defesa das causas municipais, fato que o Centro Social Morrinhense

levou em consideração ao escolhê-lo como seu principal representante, quando o processo de

emancipação de Morrinhos chegou à Assembleia Legislativa. Desde 1953, quando ainda nem

era deputado estadual, Francisco Arruda ajudou na criação do município de Ipaumirim, que se

originou do distrito de Alagoinha, desmembrado do município de Baixio. Depois de eleito para

um cargo na Assembleia Legislativa, ajudou a criar mais dois municípios, ambos em 1956:

Baixio e Umari, originários de Ipaumirim. Morrinhos seria o próximo.

O projeto de lei chegou à votação no plenário da Assembleia na sessão do dia 26 de

agosto de 1957, depois de sucessivos pedidos de urgência feitos por Francisco Arruda nas

reuniões anteriores. Foi votado e aprovado, sendo encaminhado para a formulação da lei e

posteriormente sancionada pelo então governador do Ceará, Paulo Sarasate Ferreira Lopes, e

publicada no Diário Oficial do Estado no dia 06 de setembro do mesmo ano.

Imagem 22: Foto da assinatura da lei que criou o município de Morrinhos. Fonte: Silveira, 2009.

O texto contido na lei 3.798, que criou o município de Morrinhos, foi o seguinte:

321 Ibidem.

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Art. 1º - É criado o Município de Morrinhos, com sede na vila de igual nome, a qual

passa à categoria de cidade.

Art. 2º - O território do Município criado por esta lei, desmembrado do de Santana do

Acaraú, conter-se-á dentro dos seguintes limites:

a) - A oeste, com o Município de Massapê: Começa na foz do Rio Pedra Redonda e

segue pela linha divisória do Município de Massapê, até um ponto equidistante das

nascentes do Riacho dos Tanquinhos.

b) -- Ao Sul, com o Município de Santana do Acaraú: Começa no ponto aludido na

alínea anterior, equidistante do Riacho dos Tanquinhos; até a sua nascente; segue,

então, numa reta, indo às nascentes do Riacho das Cajazeiras, seguindo pelo mesmo

até a sua foz no Riacho Acaraú; deste ponto, segue numa reta, à foz do Riacho

Mucambo, e por este vai ao açude Pilões, indo apanhar as nascentes do Riacho Cruz,

seguindo pelo mesmo à sua foz no Rio Mirim.

c) - A leste com o Município de Itapipoca, limitando-se, ainda, com o Rio Mirim;

d) - Ao Norte com o Município de Marco: Começa em um ponto equidistante da foz

do Riacho São Francisco, no lugar denominado Marrecas e a ponta Sul da Lagoa Santa

Rosa; daí vai, em linha reta, até apanhar as nascentes do Riacho São Joaquim; desce

por este curso d’água até a sua foz, no Rio Acaraú, deste ponto vai diretamente às

nascentes do Riacho Boca do Córrego; dai, vai por uma reta, vai a Lagoa de São

Miguel, lado norte; indo, rumo sul, apanhar as nascentes do Riacho Pedra Redonda,

pelo qual desce até a sua foz no Rio Tucunduba.

Art. 3º - O Município de Morrinhos devera figurar na lei de Divisão Territorial e

Administrativa a ser votada nos termos da Emenda Constitucional n. 1 (um).

Art. 4º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições

em contrário.

Palácio do Governo do Estado do Ceará, em Fortaleza, aos 6 de setembro de 1957.

PAULO SARASATE322

322 Lei 3.798 de 06 de setembro de 1957. Diário Oficial do Estado do Ceará. Assembleia Legislativa do Estado

do Ceará. 14 de setembro de 1957, p. 3.

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Imagem 23: Croqui feito logo após a emancipação municipal. Autor desconhecido. Fonte: arquivo de João

Leonardo Silveira

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Apesar da votação da lei na Assembleia Legislativa ter ocorrido em 26 de agosto de

1957, no dia anterior, Francisco Arruda enviou uma carta ao Centro Social Morrinhense

relatando todos os detalhes do processo, inclusive os limites municipais e a iminente aprovação.

O presidente em exercício do CSM, João Otacílio Oquendo, afirmou aos presentes que

“Morrinhos, com muita brevidade, teria sua autonomia, tendo já o deputado Francisco Arruda

dito-nos que provavelmente nossos anseios seriam satisfeitos na semana vindoura”323. E de fato

aconteceu.

No entanto, é preciso esclarecer uma questão importante: a emancipação política de

Morrinhos não se constituiu de um acontecimento singular, muito menos de um evento

descontextualizado. Ela acompanhou uma série de criações de municípios no Ceará,

impulsionados pelo princípio da autonomia municipal consagrado pela Constituição de 1946, e

que teve seu apogeu durante a década de 1950, conforme é possível visualizar na tabela abaixo.

MUNICÍPIO CRIADO DATA DE EMANCIPAÇÃO MUNICÍPIO DE ORIGEM

Abaiara 25 de novembro de 1957 Milagres

Aiuaba 15 de setembro de 1956 Saboeiro

Alcântaras 10 de dezembro de 1957 Meruoca

Altaneira 18 de dezembro de 1958 Assaré e Farias Brito

Alto Santo 1 de junho de 1958 Limoeiro do Norte

Antonina do Norte 08 de maio de 1958 Aiuaba

Apuiarés 25 de janeiro de 1957 General Sampaio

Barro 22 de novembro de 1951 Milagres

Baixio 15 de setembro de 1956 Ipaumirim

Bela Cruz 23 de fevereiro de 1957 Acaraú

Capistrano 22 de novembro de 1951 Baturité

Caridade 06 de agosto de 1958 Canindé

Cariús 22 de novembro de 1951 Jucás

Carnaubal 22 de julho de 1957 São Benedito

Catarina 25 de maio de 1951 Saboeiro

Chaval 22 de novembro de 1951 Camocim

Frecheirinha 25 de março de 1955 Coreaú

323 Ata da sessão ordinária do CSM, em 25 de agosto de 1957. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira, fls. 83-84.

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General Sampaio 01 de março de 1957 Pentecoste

Granjeiro 09 de fevereiro de 1958 Caririaçu

Groaíras 23 de maio de 1957 Cariré

Guaramiranga 22 de setembro de 1957 Pacoti

Hidrolândia 27 de dezembro de 1957 Santa Quitéria e Ipu

Ipaumirim 12 de dezembro de 1953 Baixio

Iracema 22 de novembro de 1951 Jaguaribe

Irauçuba 20 de maio de 1957 Itapajé

Itaiçaba 15 de setembro de 1956 Jaguaruana

Itapiúna 20 de maio de 1957 Baturité

Itatira 22 de novembro de 1951 Quixeramobim

Jaguaribara 09 de março de 1957 Jaguaretama

Jati 22 de novembro de 1951 Jardim

Marco 22 de novembro de 1951 Santana do Acaraú

Martinópole 26 de março de 1957 Granja

Monsenhor Tabosa 22 de novembro de 1951 Tamboril

Moraújo 27 de novembro de 1957 Coreaú

Morrinhos 06 de setembro de 1957 Santana do Acaraú

Mucambo 12 de dezembro de 1957 Ibiapina

Mulungu 14 de março de 1957 Pacoti

Nova Olinda 14 de abril de 1957 Santana do Cariri

Novo Oriente 10 de outubro de 1957 Independência

Orós 01 de setembro de 1957 Icó

Pacujá 22 de setembro de 1957 São Benedito

Palhano 08 de maio de 1958 Russas

Palmácia 28 de agosto de 1957 Maranguape

Paracuru 22 de novembro de 1951 São Gonçalo

Parambu 15 de setembro de 1956 Tauá

Paramoti 10 de dezembro de 1957 Canindé

Penaforte 31 de outubro de 1958 Jati

Piquet Carneiro 12 de julho de 1957 Senador Pompeu

Poranga 05 de julho de 1957 Ipueiras

Porteiras 25 de março de 1953 Brejo Santo

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Potengi 04 de setembro de 1957 Ibitiara

Quixeré 15 de maio de 1957 Russas

São João do Jaguaribe 1 de junho de 1958 Limoeiro do Norte

São Luís do Curu 22 de novembro de 1951 Uruburetama

Senador Sá 23 de agosto de 1957 Massapê

Tabuleiro do Norte 13 de setembro de 1957 Limoeiro do Norte

Trairi 22 de novembro de 1951 Anacetaba

Uruoca 26 de março de 1957 Granja

Umari 15 de setembro de 1956 Baixio

Tabela 4: Municípios criados no Ceará durante a década de 1950. Elaboração do autor

Pela leitura dos dados contidos na tabela acima, é possível verificar que, dos 184

municípios do Ceará, um total de 59 deles foram criados durante a década de 1950. Mas, o que

nos chama atenção é um outro dado: dos 59 municípios, 30 foram fundados durante um ano em

específico, inclusive Morrinhos: 1957. O que explicaria essa grande quantidade de distritos

emancipados em uma mesma data?

Duas hipóteses surgem para responder a essa questão: a primeira delas é a autonomia

conferida as instituições processuais na criação de novos municípios, outorgada pela

Constituição de 1946, que já tratamos de mencionar anteriormente. Esse incentivo a autonomia

municipal verificada no texto constitucional de 1946 foi o fator preponderante para o ritmo

diferenciado na criação de municípios.

A segunda pode ser explicada pela atuação de determinados atores políticos, sobretudo

deputados estaduais, durante o processo de emancipação dos distritos. Os deputados viam na

questão da emancipação de distritos, uma excelente oportunidade de “salvação política”, de

manutenção de suas carreiras públicas. Durante a tramitação do processo de emancipação, a

interação mais frequente com lideranças políticas locais possibilitaram aos deputados, além de

uma grande quantidade de votos, a obtenção de aliados políticos, o que favoreceu a

continuidade de suas carreiras. Não podemos esquecer que 1957 é o ano que antecede as

eleições de 1958, por isso a grande quantidade de municípios criados em apenas um ano.

O caso de Morrinhos pode ilustrar muito bem essa questão. Ao participar ativamente do

processo de emancipação política de Morrinhos, juntamente com o CSM e as lideranças

políticas locais, o deputado estadual Francisco Vasconcelos de Arruda conseguiu, de acordo

com dados do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, 967 votos, de um total de 1395 votos

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válidos, nas eleições de 1958, compreendendo 69% da escolha dos morrinhenses para o cargo

de deputado estadual.

Ao saber do resultado favorável da votação do projeto de lei da emancipação de

Morrinhos na Assembleia Legislativa, o Centro Social Morrinhense apressou-se em organizar

o próximo número do Jornal Voz de Morrinhos em comemoração a emancipação política, e

uma sessão solene na sede da ACI, que ocorreu no dia 08 de setembro de 1957, dois dias após

o anúncio oficial e a assinatura da lei:

Para comemorar a transformação do distrito de Morrinhos em município, realizou-se

no salão nobre da ACI, uma sessão solene, que contou com a ilustre presença de

representantes da mais alta sociedade de Fortaleza. (...) Foi em seguida executado um

belíssimo número de sanfona pelo Trio Tupinambá. Com a palavra facultada, subiu à

tribuna o Sr. João Otacílio Oquendo, que discorreu sobre a participação desta impoluta

agremiação na campanha pela emancipação de nossa terra, da nossa vila privilegiada,

sem dúvida nenhuma, a maior vitória por nós já alcançada. Advertiu-nos que, sendo

agora o Centro o representante de um munícipio, nossas responsabilidades eram muito

maiores e devíamos esforçar-nos para podermos representa-lo condignamente. (...)

Convém salientar que a presença do orador oficial que há muito encontrava-se

afastado de Fortaleza, que na ocasião fez uso da palavra dando um resumo histórico

da nossa agremiação, parabenizando o Centro Social Morrinhense pela sua atuação.324

O “orador oficial” mencionado na reunião era o jornalista Manuel Aguiar de Arruda,

personagem que abre, na introdução, as primeiras linhas deste trabalho. O ritual da sessão

solene não poderia ser diferente e o orador sabia disso: era preciso fazer com que o passado do

Centro Social Morrinhense, refletido na leitura do “resumo histórico”, se confundisse com o

presente da agora cidade de Morrinhos.

No número de comemoração a respeito da emancipação política de Morrinhos, trazido

ao público pelo jornal Voz de Morrinhos, a estratégia foi a mesma: o “resumo histórico” escrito

por Manuel Arruda, lido durante a sessão, foi posicionado ao lado da mensagem de felicitações

elaborada pelo Centro Social Morrinhense. O passado do CSM e suas realizações, desde sua

fundação, seria a grande justificativa para o presente de Morrinhos: a cidade emancipada:

Morrinhos, no dia de hoje, apressa-se em dar ao povo do Ceará, um exemplo de vigor

e vitalidade externando os seus justos sentimentos de alegria, aqui compartilhados

pelo Centro Social Morrinhense, pela vitória conquistada, conseguindo sua

emancipação política. De agora por diante, seremos introduzidos na partilha dos

benefícios que se concedem aos outros povos do Estado, o que, certamente haverá de

produzir no nosso meio, frutos da alta civilização e progresso. Este êxito atesta o vigor

do sentimento patriótico do povo de Morrinhos, e que devemos, em grande parte, à

ação superiormente esclarecida do deputado Francisco Vasconcelos de Arruda, que

desde o início de nossas atividades em prol do município, arrastou os obstáculos que

se antepunham por demais aterrorizadores. É realmente para encarecer e admirar a

ufania com que este homem trabalha, sempre confiante, de modo a tornar-se com seu

324 Ata da sessão solene do CSM, em 08 de setembro de 1957. Livro de Atas do Centro Social Morrinhense.

1953-1957. Arquivo de João Leonardo Silveira, fls. 85-86.

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esforço, um espírito jamais esquecido pelos morrinhenses. A data de hoje, prezado

leitor, vai marcar um acontecimento de profunda repercussão nos corações dos

morrinhenses, que vivem neste dia, horas de raro empolgamento e de uma significação

única em sua história. De fato, o que mais poderíamos ambicionar? Não resta mais

nada. Libertando-se, Morrinhos sem dúvida enveredará pelo caminho fácil do

progresso. Libertando-se, Morrinhos, que antes era uma vila privilegiada, sem dúvida

caminhará para a frente, inspirado na mais justa ambição. Avante Morrinhos! Tu que

recebes neste dia um impulso importante, haverás de ser na História do Ceará, uma

expressão de vitória e de beleza.325

Infelizmente, não temos uma grande quantidade de registros da festa da emancipação

política de Morrinhos, como os discursos, pronunciamentos e outras narrativas escritas. A

maioria dos números do jornal Voz de Morrinhos pós-emancipação foram perdidos. O que

temos dela é apenas um registro, uma imagem. Pela sua leitura, é possível identificar que a festa

ocorreu no Quadro da Rua, com muitas pessoas, bandas de músicas e bandeiras hasteadas.

Imagem 24: Festa da emancipação política. Arquivo de João Leonardo Silveira

No discurso comemorativo do Centro Social Morrinhense publicado no jornal Voz de

Morrinhos, é possível perceber elementos que mostram a incerteza dessa instituição perante o

seu próprio futuro: “o que mais poderíamos ambicionar? Não resta mais nada”. A emancipação

325 Instala-se hoje o município de Morrinhos. Jornal Voz de Morrinhos, setembro de 1957.

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política de Morrinhos talvez tenha sido o ponto alto das conquistas e da trajetória do Centro

Social Morrinhense. Mas antes de refletir sobre essa questão, se faz necessário perguntar: o que

houve com a “vila privilegiada” logo depois da emancipação?

No discurso, se percebe uma mudança, uma passagem, não só de estrutura espacial e de

função, de distrito a município, mas também discursiva e conceitual: a “vila privilegiada”, que

serviu para a construção de um discurso que procurava legitimar uma estratégia política e a luta

pela criação do município, deu lugar à emergência da cidade e depois desapareceu. É no texto

do CSM comemorativo à emancipação, a última vez que podemos visualizar esse enunciado

que havia se tornado um conceito espacial fundamental dentro das práticas discursivas do

Centro Social Morrinhense. Mas, no passado, na época da invenção da “vila privilegiada”, a

perspectiva de futuro era melhor?

Pela leitura do contexto logo após a emancipação, é possível perceber um certo

desencanto com a cidade que acabara de nascer. Nas reportagens dos jornais, membros do

Centro Social Morrinhense, escrevendo nos mais diversos periódicos da capital, dão conta de

um cenário de profunda desolação e abandono. Leonardo Silveira, que depois se tornaria

presidente do Centro Social Morrinhense, escreve sobre Morrinhos após a emancipação no

jornal Unitário, na sessão chamada “Coluna Morrinhense”. Explica que, “depois de um ano de

ausência de minha terra natal, tive agora a satisfação de rever aquela, agora cidade, as margens

do Rio Acaraú. (...) Vi ruas fora de linha, muitas casas sem reboco, o que dava um aspecto

pobre, sem luz, sem transportes, sem administradores, enfim, sem conforto de qualquer

espécie”326.

O fato de Leonardo Silveira reclamar que a cidade estava “sem administradores”, se

dava por dois motivos: o primeiro deles foi a dissolução da subprefeitura, pelo prefeito de

Santana Gerardo Araújo, que o distrito possuía quando ainda estava sob jurisdição daquele

município. O segundo pelo tempo que a cidade de Morrinhos ficou à espera das eleições para

eleger seu primeiro prefeito, o que só ocorreu mais de um ano após a emancipação, sob

justificativa de que faltavam juízes eleitorais na Comarca de Santana. Mundico, em artigo para

o jornal O Povo, também reclamou sobre a situação vivida pelo recém-município:

Com a criação do município de Morrinhos, ficaram os espaços públicos da nova

comuna em uma completa revelia. Antes quando ainda éramos um simples distrito,

havia um sub-prefeito designado pelo prefeito de Santana do Acaraú. Agora, porém,

com a criação do município, o Sr. Gerardo Araújo achou por bem não mais nomear

um homem a quem o povo pudesse fazer as suas reclamações. Morrinhos vive agora

em um completo abandono: não temos mais luz elétrica, a sujeira se acumula nas ruas,

326 SILVEIRA, João Leonardo. Coluna Morrinhense. Jornal Unitário, janeiro de 1958.

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cheias de grotilhões. O Mercado Público está sendo um depósito de muito lixo, vê-se

em cada canto um montão de lixo, isso sem falar no barracão onde as mesas de cortar

carne e peixe encontram-se imundas, sem ter pelo menos um asseio por mês. Através

deste comentário fazemos um veemente apelo ao prefeito de Santana, para nomear

novamente um sub-prefeito para Morrinhos, pelo menos até que tenhamos o nosso

próprio governante.327

Mundico demonstra, no texto acima, toda aflição de uma cidade, recém-criada, à espera

do poder, à espera da presença de seu “próprio governante”. O historiador Laurent Vidal nos

alertou que o poder, como um ritual político-religioso ou uma encenação de uma fundação, por

exemplo, “sempre deu uma atenção especial aos começos, mas raramente se preocupou com os

encerramentos”328. Estamos diante de um caso particular onde essa questão é bastante clara. A

cidade não se preparou para essa transição do poder, muito menos o Centro Social Morrinhense.

Não se deram conta de que, entre o dia da emancipação e a data de posse dos novos governantes,

haveria o tempo da “dormência”329, uma forma provisória de existência da cidade, um

“território da espera”330.

A emancipação política, se por um lado tornou Morrinhos uma cidade, por outro lado

mostrou a fragilidade da “vila privilegiada”. Onde estaria os símbolos de sua modernidade,

encarnados na modernização de seus espaços, como assim se manifestava nos discursos que

circulavam em torno desse conceito? Onde estaria a luz elétrica, suas avenidas e ruas largas? O

Centro Social Morrinhense parece ter encarado, neste momento, como idealizadores que eram

da ideia da “cidade moderna e progressista” para Morrinhos, que nasceria como um produto do

“cultivo da vila privilegiada”, a ilusão de ter transformado “o fato urbano em um conceito de

cidade”331. Acreditaram que eram os detentores do domínio total daquele espaço, quando não

eram outra coisa, senão, os escritores de uma “ficção do saber”332.

A emancipação política de Morrinhos parece ter marcado, do ponto de vista das práticas

discursivas do Centro Social Morrinhense, a morte da “vila privilegiada”, e decretou também,

como veremos a seguir, a decadência da própria instituição que a produziu.

327 ROCHA, Raimundo Nonato Rocha. Sujeira no Mercado Público e situação de abandono. Jornal O Povo,

fevereiro de 1958. 328 VIDAL, Laurent. As lágrimas do Rio: o último dia de uma capital: 20 de abril de 1960. Tradução de Maria

Alice Araripe de Sampaio. São Paulo. Martins Fontes, 2012, p. 11. 329 Sobre a noção de dormência, ver VIDAL, Laurent. A gênese dos pousos no Brasil moderno: considerações

sobre as formas (urbanas) nascidas da espera. In: Revista Tempo. Niterói: 2016, p. 417. 330 Sobre o conceito de territórios da espera, ver VIDAL, Laurent.; MUSSET, Alain. (Org.). Les territoires de

l’attente: migrations et mobilités dans les Amériques (XVIIIe -XXIe siècle). Rennes: PUR, 2014. p. 285-286. 331 CERTEAU, Michel. Op. Cit. p. 142. 332 Ibidem, p. 140.

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3.3 O Centro Social Morrinhense: um espaço em ruínas

Em março, no Ceará, as chuvas tendem a molhar as terras desde as serras até o sertão e

o litoral. Era por volta das 14 horas do dia 25 de março de 1959, quando um grupo de pessoas

começou a caminhar pelas ruas da cidade de Morrinhos, com os típicos trajes de domingo,

apesar de ser uma quinta-feira. Para onde estavam indo? O destino daquelas pessoas, que

reuniam desde curiosos até representantes e diretores da Elite Morrinhense, muito bem trajados,

era o prédio que servia de Câmara Municipal e Prefeitura para a recém-criada espacialidade de

Morrinhos. Era um imóvel simples, de apenas um andar, com quatro portas centrais estreitas,

porém relativamente altas, como é possível visualizar na imagem abaixo.

Imagem 25: Primeiro edifício da Prefeitura e Câmara Municipal de Morrinhos. Fonte: Arquivo de João

Leonardo Silveira

Depois de lotada, as pessoas se espremiam do lado de fora, tentando ver o que acontecia

no interior daquele ambiente. Era um momento de muita euforia, pois enfim, Morrinhos

assistiria a posse de seus primeiros governantes municipais, do prefeito aos vereadores. Ao

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redor da Prefeitura, as pessoas estacionavam os meios de transporte que utilizaram para chegar

até ali. Os poucos automóveis se misturavam com as bicicletas e os cavalos, que tentavam se

proteger do sereno da tarde.

No dia anterior, também no mesmo horário e local, os vereadores se reuniram para a

sessão preparatória da Câmara Municipal. O dia mais esperado, no entanto, era a tarde do dia

25 de março, pois, em sessão solene, prefeito e vice-prefeito tomariam, oficialmente, posse

como representantes do poder público local. Na ocasião, uma fotografia que consideramos

emblemática foi tirada.

Imagem 26: Fotografia de posse do primeiro prefeito, vice-prefeito e dos vereadores de Morrinhos. Fonte:

Silveira, 2009.

Na imagem, há a manifestação de um fato que esclarece, em grande medida, o esforço

e a existência do Centro Social Morrinhense: o prefeito eleito e seu vice, foram,

respectivamente, o fundador do Centro Social Morrinhense e o presidente da Elite Morrinhense.

Raimundo Nonato Araújo da Rocha, o Mundico, e Joaquim Soares Rocha. No grupo dos

vereadores eleitos, todos eles participaram, de forma direta ou indireta, das reuniões e

campanhas organizadas pela EM até então. Com isso, nos cabe perguntar: com a invenção da

cidade emancipada e seus principais nomes ocupando cargos eletivos na administração do novo

município, onde estaria o Centro Social Morrinhese?

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Para responder a essa pergunta é preciso retornar um pouco. Na sessão ordinária do dia

24 de abril de 1957, Mundico anuncia seu afastamento definitivo do Centro Social Morrinhense.

Iria colaborar no que pudesse, mas distante da rotina cansativa das reuniões, do deslocamento

constantes à sede da ACI. Na ocasião, não esclareceu os motivos que o levaram a tomar essa

decisão333. O fato é que, sem a sua principal liderança, o CSM iniciou uma fase de decadência,

que enfrentou seu apogeu logo após a emancipação política de Morrinhos. João Otacílio

Oquendo acabou substituindo Mundico na presidência, e não foi um período fácil. Enfrentou a

falta de recursos, o atraso das mensalidades e, principalmente, o esvaziamento das reuniões. A

situação chegou ao ponto de, na sessão ordinária do dia 10 de novembro de 1957, apenas o

presidente e o vice-presidente, como membros da Diretoria, comparecerem à reunião. Parecia

que os centristas entendiam que o Centro Social Morrinhense já havia cumprido sua grande

missão, que era a garantia da emancipação político-religiosa para Morrinhos.

Não se sabe ao certo quando o Centro Social Morrinhense oficialmente encerrou suas

atividades. Nem mesmo Mundico lembra com lucidez sobre isso. Quando João Leonardo

Silveira assumiu a presidência, em 1959, o CSM já estava se tornando muito mais um clube

recreativo do que um espaço político, de cultivo das letras e de luta. Houve tentativas de retomar

a instituição nos anos 1970, mas sem sucesso. A última reunião documentada em ata é datada

do dia 24 de outubro de 1963, onde se fez apenas um balanço do que restava do patrimônio do

Centro Social Morrinhense e da Elite Morrinhense, que seguiu o mesmo caminho do CSM.

333 Em entrevista, questionei Mundico sobre essa decisão. Ele se limitou a dizer que pediu afastamento do Centro

Social Morrinhense “porque iria casar e se mudar novamente para Morrinhos”.

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Imagem 27: Imagem de uma das últimas reuniões do Centro Social Morrinhense no início da década de 1960.

Fonte: Arquivo de João Leonardo Silveira

No entanto, o que se percebe é que o Centro Social Morrinhense foi extremamente feliz,

de forma proposital ou não, ao projetar na vida pública e política de Morrinhos as suas maiores

figuras, inclusive a de seu fundador, que se tornou o primeiro prefeito do município. Isso nos

faz pensar até que ponto o Centro Social Morrinhense existiu apenas como meio para que seus

idealizadores conseguissem prestígio social e imortalizassem seus feitos na história da cidade.

A invenção da cidade emancipada marcou uma descontinuidade no espaço-tempo.

Durante a existência de Morrinhos como “vila privilegiada”, se manifestava o tempo do Centro

Social Morrinhense, como instituição, como um conjunto de sujeitos que comungavam de um

mesmo lema, de um mesmo ideal: “tudo pelo progresso de Morrinhos”. Após a emancipação,

predominou o tempo daqueles que foram, em grande medida, os homens do Centro Social

Morrinhense, agora não mais organizados em torno de sua bandeira e de seu nome, mas sim

como políticos influentes e administradores do recém-criado município de Morrinhos.

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É preciso olhar mais uma vez a foto da posse, pois algo ainda nos chama atenção: ao

lado dos principais nomes dos futuros políticos da cidade, prefeito e vice-prefeito, havia o

sobrenome Rocha. Se afirmamos anteriormente que a fundação do Centro Social Morrinhense

pode ser traduzida pelo desejo de um grupo muito específico em criar o município de

Morrinhos, não podemos esquecer que dentro desse grupo havia a organização familiar dos

Rocha. Essa família, possuindo representantes nos mais altos cargos diretivos do Centro Social

Morrinhense e da Elite Morrinhense, haveria de ter um real interesse no processo de

emancipação política de Morrinhos.

Sobre essa questão, Mundico Rocha afirmou que, mesmo durante os anos em que

militava no Centro Social Morrinhense, não pensava em ser político e assumir um cargo

administrativo caso Morrinhos conseguisse sua emancipação. Na época com 29 anos de idade,

Mundico esclareceu que a decisão havia sido tomada pela família, que o via como um potencial

candidato, justamente por todo o legado que havia construído quando era presidente do Centro

Social Morrinhense:

Por causa do Centro Social Morrinhense e de todas as campanhas que fiz dentro do

grupo, eu fiquei credenciado, era uma pessoa muito conhecida e estimada na vila. E a

minha família, em especial o meu primo Joaquim Soares, vendo essas minhas

qualidades, disse: rapaz, você vai ser candidato! Na hora perguntei se ele estava louco.

Mas aí ele acabou me convencendo, de que seria bom para mim e para a família. Foi

uma campanha pesadíssima, porque do outro lado tinha outro membro da família, o

Lourival, com poder aquisitivo muito maior que o meu. Ele ficou indignado. O povo

dizia que era campanha do tostão contra o milhão. Eles gastaram dinheiro, gastaram,

gastaram. Fizeram tudo que foi possível, mas eu ganhei. Mas, como eu não gosto de

inimizade, logo que tomei posse em março, mandei chamar o Lourival para almoçar

lá em casa. Foi quando a paz foi selada.334

As eleições de 1958, que definiria os primeiros governantes de Morrinhos, dividiu a

família Rocha. De um lado, Mundico, que representava o “tostão”. Do outro, o rico comerciante

João Lourival Rocha. No entanto, o que pesou para grande parte da família declarar apoio a

Mundico foi justamente sua experiência como presidente do Centro Social Morrinhense durante

seus cinco primeiros anos, além do fato de ter sido um dos fundadores da instituição que havia

ajudado a criar a paróquia e o município de Morrinhos. Joaquim Soares Rocha, o primo que o

visitou para sugerir sua possível candidatura e que foi seu vice, participou ativamente da Elite

Morrinhense, como presidente, ocupando também o cargo de sub-prefeito do distrito de

Morrinhos na primeira metade da década de 1950.

334 Entrevista com Raimundo Nonato Araújo da Rocha, realizada em 16/05/2017, em Morrinhos, Ceará.

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Durante a corrida eleitoral, o Centro Social Morrinhense, que procurava hastear o tempo

inteiro a bandeira do apartidarismo e da neutralidade política, publicou em seu jornal Voz de

Morrinhos um extenso texto sobre o agora candidato a prefeito Mundico Rocha, deixando claro

seu interesse na eleição do seu ex-presidente:

Morrinhos está de parabéns, pois saberá escolher um candidato digno de governar esta

terra que tanto merece uma administração fecunda e progressista. Mundico merece

ser o ídolo deste povo, pois, é um homem de grande família, que tem o espírito voltado

exclusivamente para o progresso do seu querido torrão natal, que ele ama com todas

as veias de seu coração. Este homem que acerca de dez anos vem trabalhando sem

qualquer interesse particular em prol de seu rincão natal, bem merece o apoio de seus

conterrâneos. Eleger Mundico a prefeito é visar um Morrinhos próspero e grandioso.

Sabemos que ele será eleito porque o povo que o escolheu reconhece que sua terra

precisa de Mundico. Porque Raimundo Nonato como presidente do Centro Social

Morrinhense fez várias visitas ao Exmo. Sr. Bispo de Sobral e empreendeu esforços

para a aquisição de nossa paróquia. E finalmente teve a arrojada ideia e lutou com

todo o ardor e força de vontade para a criação do município de Morrinhos. Como

presidente do Centro Social Morrinhense, do qual foi membro fundador em 1952, não

recua diante dos empecilhos, pelo contrário: afronta-os com força e coragem.335

A partir da leitura do texto acima publicado pela Diretoria do Centro Social

Morrinhense, fica muito claro aquilo que chamamos de projeto de cidade emancipada, e de

como este projeto foi citado para legitimar a campanha eleitoral de Mundico Rocha: a criação

da paróquia e do município são os feitos citados no texto. O seu passado como presidente do

Centro Social Morrinhense é usado para justificar todos os seus predicados, além do fato de ser

de “grande família”, de ser um Rocha, de possuir um sobrenome que estava inscrito em todas

as principais decisões políticas que eram tomadas naquele espaço conhecido por Morrinhos

desde o início do século XX. Desde Joaquim Coriolano da Rocha, eleito pela memória histórica

da cidade de Morrinhos como seu fundador. O interesse da família Rocha era que Mundico

continuasse o que sua família começou, há muito tempo, e agora havia a real possibilidade de

governar um município.

O resultado da eleição, que elegeu Mundico Rocha com 63% dos votos válidos como o

primeiro prefeito de Morrinhos, pode ser verificado na tabela abaixo.

ELEIÇÕES MUNICIPAIS de 03 de outubro de 1958

MORRINHOS

CARGO PARTIDO /

COLIGAÇÃO

SITUAÇÃO CANDIDATO VOTOS

PREFEITO PTB Eleito Raimundo Nonato da Rocha 880

UDN / PSD Não Eleito João Lourival Rocha 473

335 Parabéns, Morrinhos: Mundico será teu prefeito. Jornal Voz de Morrinhos, ano VI, número I. 9 de fevereiro

de 1958.

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VOTOS EM BRANCO 29

VOTOS NULOS 13

TOTAL DE VOTOS 1.395

VICE-PREFEITO PTB Eleito Joaquim Soares Rocha 858

UDN / PSD Não Eleito Francisco Radier Vasconcelos 490

VOTOS EM BRANCO 37

VOTOS NULOS 10

TOTAL DE VOTOS 1.395

VE

RE

AD

OR

PT

B

Eleito Jonas Roberto Magalhães 196

Eleito Valdemar Vasconcelos 147

Eleito José Expedito Lopes 101

Eleito João Pedro Alves 79

Suplente José Berchan Vasconcelos 71

Suplente José Maria Brandão 62

Suplente Brizamar Cruz 37

Suplente Luiz Gonzaga Maranhão 34

Suplente José Minervino Carneiro 20

VOTOS DE LEGENDA -

TOTAL DA LEGENDA 747

UD

N / P

SD

Eleito José Abdoral Roque 125

Eleito Raimundo Nonato Carvalho 103

Eleito Manoel Coraci Lopes 83

Suplente João Pedro André 73

Suplente Francisco Edmilson Vasconcelos 70

Suplente João Batista Alves 58

Suplente Francisco Radier Vasconcelos 37

Suplente Procopio Soares Araujo 30

VOTOS DE LEGENDA -

TOTAL DA LEGENDA 579

VOTOS EM BRANCO 43

VOTOS NULOS 26

VOTOS VÁLIDOS 1.369

APTOS 1.500

VOTANTES 1.395

Fonte: Boletim de Apuração da 44a Zona Eleitoral

Tabela 5: Resultado das primeiras eleições municipais de Morrinhos, em 1958. Fonte: TRE-CE

Após a divulgação do resultado das eleições, apoiadores de João Lourival Rocha

acusaram o Centro Social Morrinhense de influenciar diretamente a campanha eleitoral e de ter

se unido a ala familiar dos Rocha que apoiava Mundico. Para amenizar a situação, o Centro

Social Morrinhense tratou de publicar uma nota, tentando explicar sua posição:

O Centro Social Morrinhense tem sido injustamente atribuído por alguns de nossos

conterrâneos como uma instituição simpatizante e até mesmo interessada por

momentos político-partidários e defensora de determinados candidatos a cargos

eletivos naquele município. Nós que fazemos com tanto desvelo esta entidade,

consideramos este conceito uma calúnia, mesmo porque a organização a que

pertencemos sempre foi oficialmente contrária a defesa de candidato A ou B. Alegam

os que não querem pertencer as nossas fileiras e não tem disposição de se dedicarem

as causas comuns, que o Centro Social Morrinhense esteve ao lado do atual prefeito

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Sr. Mundico Rocha. É uma alegação descabida e tem o intuito de arrastar do nosso

quadro social os morrinhenses mais ligados ao Sr. Lourival Rocha, na tentativa de ver

este Centro decair do alto conceito que gosa perante o povo de nossa terra. O que

jamais alcançarão, mesmo porque, todos os morrinhenses já compreenderam nossa

neutralidade política.336

Os morrinhenses, no entanto, não compreenderam. O Centro Social Morrinhense, que

já estava lutando contra o esvaziamento das reuniões desde 1957, e agora por conta dessas

acusações pós-eleições, perdeu uma grande parte de seu quadro de sócios. As mensalidades

atrasavam e faltava recursos para manter a instituição funcionando normalmente, notadamente

com o entusiasmo que marcou seus primeiros anos. Mas o sonho do Centro Social Morrinhense,

e, porque não dizer também, da família Rocha, estavam realizados. Morrinhos era uma cidade

emancipada, jurídico-política e religiosamente autônoma, com sua prefeitura e sua igreja, como

assim desejavam aqueles homens e mulheres da Ribeira do Acaraú. Mundico foi seu primeiro

prefeito, e foi a partir dele que sua família conseguiu se manter no governo de Morrinhos, direta

ou indiretamente, durante os próximos cinquenta anos.

João Leonardo Silveira tentou, a todo custo, manter o Centro Social Morrinhense vivo,

mesmo na agonia de sua quase morte. Até que, em 24 de outubro de 1963, em uma sessão

ordinária para tratar do que sobrou do patrimônio da instituição, o Centro Social Morrinhense

fechou as portas. Foi a última ata documentada da “fagueira esperança de melhores dias”.

336 Nossa Posição. Jornal Voz de Morrinhos, janeiro de 1959.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,

Poeira ou folha levada

No vento da madrugada,

Serei um pouco do nada

Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar

Pareça mais um olhar,

Suave mistério amoroso,

Cidade de meu andar

(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso..337.

Este texto que vai chegando ao fim, cheio de ramificações, de reentrâncias, de veredas,

de caminhos pavimentados nas estradas do afeto e da pesquisa histórica, foi escrito por um autor

andarilho. Um cearense que experimentou ser potiguar, comendo bolo Souza Leão e cuscuz nos

fins de tarde da cidade do Natal. Este autor andarilho se parece, mas só um pouco, com um

outro autor andarilho: Mario Quintana. O poeta das coisas simples saiu de Alegrete e viveu

grande parte da vida em quartos pequenos e provisórios. Escreveu o poema acima, impactado

pela grandeza e o mistério da cidade grande, em um pequeno apartamento no Hotel Majestic

337 QUINTANA, Mario. O mapa. In: Apontamentos de história sobrenatural. Rio de Janeiro: Objetiva. 2012, p.

128.

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em Porto Alegre. Mais tarde teria confessado a uma amiga que preferia assim, afinal, vivia em

si mesmo. Em um quarto pequeno ele teria menos lugares para perder suas coisas.

Quintana tinha razão quando escreveu que “um dia acordarás em um quarto novo sem

saber como foste para lá”338. Foi em um quarto pequeno e provisório, que no segundo semestre

de 2016, quando agosto deixou Natal e me obrigou a abrir a janela do apartamento nas tardes

mais quentes, que eu descobri a história de Mazagão339. Uma cidade que literalmente atravessou

o Atlântico, narrada com sensibilidade e maestria pelo historiador Laurent Vidal. Durante o

mesmo período, descobri e li duas outras obras suas, que me possibilitaram pensar a cidade para

além de sua rigidez, de sua materialidade, mas encará-la como uma invenção, produto da terra,

dos sonhos, da persistência e dos desejos humanos. Em 2018, quando esteve em Natal para um

evento na UFRN, Laurent Vidal, recusando uma caneta brasileira, assim escreveu em um de

meus livros: “Para Cid, esse velho texto sobre um sonho sempre novo”.

Posso dizer que este trabalho, que é um texto novo, pretendeu mostrar a realização de

um velho sonho: a criação de uma cidade. Sonho este cultivado por um grupo de intelectuais

morrinhenses, políticos da região e uma família que desejava permanecer no poder após a

criação do município de Morrinhos. Este sonho me levou a conhecer o Centro Social

Morrinhense, e eu mergulhei em suas atas, seus estatutos, nos textos de jornais, buscando o

indício mais inocente de regularidade discursiva entre tantos enunciados, temas, conceitos,

ligando-os as estratégias e práticas de espaço. Procurei descobrir os desejos daqueles homens e

mulheres que, como representantes da “cidade letrada”, a ordenaram, sobretudo nas “palavras,

que traduziam a vontade de edificá-la”340.

Confesso que encerrá-lo, assim como foi tratar de seus começos, é sempre um trabalho

muito difícil. Em linhas gerais, procurei narrar um momento particular da história de Morrinhos,

conhecendo, analisando e problematizando a trajetória do Centro Social Morrinhense, e sua

participação na transformação daquele espaço: de distrito a município, de capela a matriz. Foi

necessário, portanto, compreender toda a complexidade que envolvia as relações entre a

instituição e o espaço que ela representava, entre aqueles que escreviam sobre ele e aqueles que

lá viviam, bem como a produção e circulação dos discursos que conferiram a Morrinhos um

sentido muito particular: deveria ser ele um espaço distinto dos outros, com uma identidade

singular, uma “vila privilegiada”, que, segundo eles, se cultivada, poderia alcançar sua

338 QUINTANA, Mario. Um dia acordarás. In: Op. Cit. 2012, p. 66. 339 Ver VIDAL, Laurent. Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. Tradução de Marcos Marcionilo. São

Paulo. Martins, 2008. 340 RAMA, Angel. Op. Cit. p. 29.

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autonomia jurídico-política e se transformar em um município civilizado, moderno e

progressista.

No primeiro capítulo buscamos apresentar os personagens centrais, o objeto e o sujeito

dessa pesquisa: a cidade de Morrinhos, o Centro Social Morrinhense e seus membros. A cidade

foi apresentada através da sensibilidade e da memória deste que vos escreve, tendo por

inspiração as madeleines de Marcel Proust, e essa capacidade que os sentidos possuem de

convocar o passado, de nos fazer caminhar entre nossas memórias voluntárias e involuntárias.

Fiz, a partir dos meus sentidos, uma forma diferente de narrar e apresentar a cidade que, em

grande medida, já deixei para trás.

Ainda no primeiro capítulo procuramos conduzir o leitor, convidando-o a entrar pela

porta do Centro Social Morrinhense e sentir-se como parte daquela instituição. Naquele

momento foi possível descobrir sua condição história de emergência e fundação, seus principais

órgãos, seus estatutos, suas finalidades, seus sócios, a forma como estava organizado, além de

uma breve prosopografia de seus fundadores, o que nos permitiu compreender o que havia de

comum em suas trajetórias de vida, de que maneira elas se cruzaram e contribuíram para que

juntos fundassem o Centro Social Morrinhense anos depois.

No segundo capítulo a intenção foi refletir a respeito de como o Centro Social

Morrinhense construiu uma imagem ordenada e uma ideia de cidade ideal. Essa imagem é para

nós muito mais um conceito do que uma paisagem. Foi interessante perceber de que maneira

um pequeno enunciado, a “vila privilegiada”, perdido na dispersão dos textos, se tornou um

conceito fundamental dentro das práticas discursivas e não-discursivas do Centro Social

Morrinhense, após a análise que fizemos de seu discurso. Foi um conceito que acabou sendo

naturalizado nos discursos, tomado como identidade espacial para uma pequena vila da ribeira

do Acaraú, que mesmo tendo que se deparar com uma realidade que o contradiz, continuou

sendo utilizado em discursos e pronunciamentos que estrategicamente buscaram legitimar a

realização de um desejo maior: a criação do município e da paróquia para Morrinhos.

Esse conceito sobreviveu e circulou em torno do desejo de uma cidade ideal, que no

caso do Centro Social Morrinhense se manifestava enquanto uma cidade moderna, progressista

e civilizada. Uma ideia de cidade que orbitou frequentemente em torno da oposição entre a

cidade ideal – um modelo de cidade existente – e a cidade imaginada, esta sonhada por eles. No

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entanto, não sabiam, ou não quiseram aceitar, que, como lembrou Angel Rama, “a cidade futura

é apenas obra do desejo e da imaginação”341.

Por fim, no último capítulo procuramos deixar claro os caminhos que o Centro Social

Morrinhense percorreu durante a tramitação dos processos de criação da paróquia e do

município, e das tensões sociais que emergiram entre Morrinhos, Marco e Santana do Acaraú.

Ao longo do capítulo, foi possível compreender as estratégias e articulações do Centro Social

Morrinhense com membros da igreja, vereadores, prefeitos, deputados e, indiretamente, com o

movimento municipalista, visando efetivar o sonho da cidade emancipada.

O interessante foi perceber que o Centro Social Morrinhense começou a ruir justamente

quando a cidade emancipada nasceu. Ele agonizou durante mais cinco anos, com reuniões

espaçadas, esvaziadas e com um quadro de sócios drasticamente reduzido. Após a criação do

município, o CSM não teve mais forças para se levantar. Ou melhor, depois da emancipação

política de Morrinhos, não teve mais razões para existir. Apesar de ser um espaço que se dizia

distinto e letrado, o CSM não investiu na fabricação de sua história, fracassou na preservação

de sua memória e acabou esquecido. No entanto, foi capaz de projetar suas figuras mais

relevantes para a vida pública. Transformou pessoas em personas. Hoje, apenas elas são

lembradas, isoladamente, como grandes nomes da história da cidade. Mas, não custa indagar:

será que essa falta de interesse do Centro Social Morrinhense em escrever sua história e

resguardar sua memória, não pode ser um indício de que ele desejava ser esquecido?

Tive a felicidade de conviver com um professor que afirmava que um trabalho dado por

encerrado é um trabalho morto. Este trabalho não procura elaborar uma verdade em torno do

Centro Social Morrinhense e de sua relação com a cidade de Morrinhos, afinal, “os historiadores

constroem frequentemente narrativas diferentes e opostas em torno dos mesmos

acontecimentos”342. É por isso que se faz necessário deixar claro aqui que as escolhas que

fizemos neste trabalho foram algumas entre muitas possíveis.

Toda a elaboração deste trabalho, desde o início, foi fruto de cuidado, seleção,

orientação e, principalmente, de uma interpretação. Como nos lembrou Walter Benjamin,

“articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como de fato foi”343. Articular

historicamente, ou seja, praticar aquilo que Michel de Certeau chamou de “operação

341 Ibidem, p. 99. 342 RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2008, p. 254.

343 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: ______. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre

Literatura e História da Cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 224.

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historiográfica”, significa buscar compreender porque algo se apresentava de uma forma no

passado, e no presente deixou de ser, ou existe de uma forma diferente.

Não podemos cair na ilusão do resgate do passado, no resgate da história, na

reconstrução fiel da trajetória do Centro Social Morrinhense. Se tivéssemos feito outras

perguntas, talvez o resultado deste trabalho tivesse sido diferente. Quando tive a primeira

experiência com o Centro Social Morrinhense, ainda na graduação, analisei a documentação

formulando outras perguntas e obtendo outras respostas, que não se traduziam necessariamente

em certas ou erradas. Provavelmente eram apenas ingênuas.

O fato é que, como lembrou Nietzsche, é preciso “dar tempo para que as ações, mesmo

quando efetuadas, serem vistas e entendidas”344. Eis aí o exemplo perfeito do tempo do

historiador, que de seu lugar social de produção, “com mais calma, analisa as asperezas do

tempo e, buscando continuidades e coerências, explica o que aconteceu”345. Ou pelo menos

tenta. Foi isso o que procuramos fazer aqui. Explicar e compreender que o Centro Social

Morrinhense, em grande medida, existiu como um meio de corporificar o desejo de um grupo

de intelectuais em emancipar político-religiosamente sua cidade natal.

Inserida também no campo da história dos municípios, este trabalho tenta responder a

uma pergunta fundamental que, em grande medida, vem sendo negligenciada pela historiografia

das cidades: o que há por trás de uma emancipação municipal? Tratada geralmente como apenas

uma data, um marco temporal que significa um deslocamento, uma transformação espacial e

jurídica, o acontecimento da emancipação se mostra muito mais complexo e por isso necessita

cada vez mais de um olhar atento por parte dos historiadores. Este trabalho, dentro de suas

limitações e das pedras que surgiram no caminho, tentou violar a data de 06 de setembro de

1957, naturalizada dentro da história do município de Morrinhos como, apenas, o “dia da

emancipação política”. A desconstrução desse marco temporal fez emergir uma série de

artimanhas, lutas, sonhos, desejos e astúcias, mas não a de Ulisses, e sim do Centro Social

Morrinhense, da família Rocha, de intelectuais, membros da Igreja e políticos locais. Do povo

da ribeira do Acaraú.

Para os historiadores que se dedicam ao que conhecemos por história urbana, é

fundamental levar em consideração aquilo que o historiador Francisco Régis Lopes Ramos

alertou sobre a compreensão da consciência histórica da cidade: “é preciso gerar reviravoltas

que só a reflexão histórica pode gerar, caso contrário o nosso devir será aquilo que já se vê

344 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 345 VIDAL, Laurent. As lágrimas do Rio. Op. Cit. p. 230.

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hoje”346. O papel social dessa pesquisa é justamente possibilitar que as pessoas conheçam o

Centro Social Morrinhense, sujeito deste trabalho, que ainda permanece invisível dentro da

construção da memória histórica morrinhense. Não se sabe quase nada, em Morrinhos, sobre a

sua contribuição na criação do município e da paróquia, muito menos sobre a produção e

circulação de seus discursos, que foi capaz de construir imagens e símbolos que até hoje

Morrinhos ainda sonha para si mesma.

346 RAMOS, Francisco Régis Lopes. O desaniversário de Fortaleza: passado e futuro. Jornal O Povo, Fortaleza,

13 de abril. 2015, p.1. Apud: ALMEIDA NETO, José Maria. As mudanças de uso da Praça Clóvis Beviláqua:

do ponto do chafariz às águas da intelectualidade (1888-1943). Dissertação de mestrado – PPGH/UFC. Fortaleza:

2015.

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