Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e...

27
Construindo o conhecimento agroecológico CTA-ZM Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE Uso sustentável da biodiversidade do Cerrado REDE COOPERATIVA GRANDE SERTÃO r evista ano 1 1ª edição março de 2008 Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia Experiências agroecologicas mostram a diversidade das Minas e das Gerais. a rticulação mineira de a groecologia

Transcript of Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e...

Page 1: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

Construindo o conhecimento agroecológico

CTA-ZM

Agricultura Urbana: ações e aprendizados

da REDE

Uso sustentávelda biodiversidade

do Cerrado

REDE COOPERATIVA GRANDE SERTÃO

revista

ano 1 1ª edição março de 2008

Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia

Experiências agroecologicas mostram a diversidade das Minas e das Gerais.

articulação mineira de agroecologia

Page 2: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

02 março/2008v. 1 nº 1

Í N D I C E

A P R E S E N T A Ç Ã O

03março/2008v. 1 nº 1

A agroecologia se mistura à vida do povo, na história

de uma agricultura de origem camponesa que forjou as

Minas e os Gerais. Desenvolve-se numa estreita intera-

ção com os ecossistemas, as relações sociais, a cultura

e a história do povo de cada lugar. O Estado de Minas é

plural, está inserido numa região com ambientes e con-

textos diferentes, onde a agricultura familiar se molda.

Daí, toda a diversidade de iniciativas agroecológicas,

fruto dessa rica interação, que se traduz em arranjos

produtivos e circuitos econômicos que movimentam

feiras, mercados, centrais de abastecimentos.

Essas iniciativas precisam estar mais articuladas

para ganhar força. A agroecologia precisa ser mais pau-

tada nas políticas públicas e a diversidade dos arranjos

agroecológicos de Minas Gerais, presente nas discus-

sões e no debate nacional. A Articulação Mineira de

Agroeologia - AMA surge da necessidade de juntar for-

ças e costurar uma colcha de retalho com as cores da

agroecologia. Criada em setembro de 2003, a AMA é

uma rede estadual de organizações de apoio e asses-

soria a ONG´s e organizações representativas de agri-

cultores familiares que atuam nas diferentes mesorre-

giões do estado de Minas Gerais.

Muitas dessas entidades e organizações têm expe-

riência de quase duas décadas na implementação de

serviços de organização da produção da agricultura fami-

liar junto a famílias de agricultores, assentados da refor-

ma agrária e populações tradicionais, como indígenas,

vazanteiros, geraizeiros e quilombolas. Esses serviços

são baseados nos princípios agroecológicos e na utiliza-

ção de metodologias participativas que privilegiam a rela-

ção horizontal entre agricultores e agricultoras e a cons-

trução coletiva do conhecimento agroecológico.

A base do trabalho das entidades que compõem a

AMA é a construção coletiva do conhecimento agroe-

cológico. O diálogo e o protagonismo dos agricultores

familiares são os diferenciais da produção do conheci-

mento. O saber nativo dialoga com o acadêmico e pro-

duz o conhecimento e as alternativas adaptadas a cada

realidade. E são esses mesmos agricultores e agriculto-

ras que se transformam também em educadores e mul-

tiplicam o conhecimento produzido nas comunidades e

espaços onde vivem.

Dar visibilidade, tornar conhecida a diversidade

agroecológica de Minas Gerais e fortalecer a AMA co-

mo organização capaz de intervir nas políticas públicas

estaduais são alguns dos objetivos do plano de comu-

nicação da AMA. Esta revista faz parte de uma série de

instrumentos que buscam tornar a articulação mais co-

nhecida. Outros instrumentos como boletim impresso,

site e boletim eletrônico fazem parte desta estratégia.

Tudo isso para fazer ressoar a voz dos agricultores e

agricultoras familiares e divulgar as boas práticas prota-

gonizadas por elas e eles.

Com esta revista você terá a oportunidade de co-

nhecer um pouco da diversidade dos Gerais e das

Minas. Seja bem-vindo ao mundo da diversidade!

agroecológica!

Entidades de Coordenação da AMA:

CTA-ZM - Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata;

CAT - Centro Agroecológico Tamanduá;

CAA-NM - Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas;

CAV - Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica;

CAMPO VALE - Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha

ITAVALE - Instituto dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Vale do Jequitinhonha;

SAPUCAI - Centro de Assessoria Sapucaí;

ARMICOPA - Associação Regional Mucuri de Cooperação dos Pequenos Agricultores;

Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais;

CPT - Comissão Pastoral da Terra;

REDE - Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas e

APR - Animação Pastoral Rural

Articulação Mineira de Agroecologia

Articulação Mineira de Agroecologia

Campanha ACTIONAID - Alimentação:Direito de todos

Potenciais e limitações do uso sustentável da biodiversidade do Cerrado: um estudo de caso da Cooperativa Grande Sertão no Norte de Minas

MASSACRE FELISBURGO:Quatro anos de impunidade

Universidade, extensão e desenvolvimento rural:a experiência da UFLA e do CAV no Vale doJequitinhonha

Povos e comunidades tradicionaismovimentam os sertões de minas gerais:em cena novos sujeitos sociais

Apresentação3Construindo o conhecimento agroecológico:a articulação entre o CTA, a UFV e as organizaçõesde agricultores da Zona da Mata4

9Agricultura Urbana:Ações e aprendizados da Rede10

162526

Da preservação das nascentesao desenvolvimento local 33

36Entrevista com Elmy Pereira Soares48Declaração Final do Encontro Mulheres emLuta por Soberania Alimentar e Energética50

C O N S E L H O E D I T O R I A L

Marcelo Almeida, Marcio Pereira

e Helen Santa Rosa

J O R N A L I S T A R E S P O N S Á V E L

Helen Santa Rosa - Reg. Prof. MG 12639 JP

R E V I S Ã O

Ediane Silva - Reg. Prof. MG 12716 JP

P R O J E T O G R Á F I C O

Cléber Caldeira e Clésio Robert

F O T O S

Arquivo CAA, Itavale, Rede, CTA,

Igor Homem e João Zinclar.

I M P R E S S Ã O

Dejan Gráfica

Tiragem desta edição: 1000 exemplares

REVISTA AMA é uma publicação da Articulação Mineira de Agroecologia.

Site: www.agroecologiamg.org.br

E-mail: [email protected]

Page 3: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

Introdução

O respeito, resgate e valorização dos conhecimen-

tos de agricultores e agricultoras é uma das bases da

proposta da agroecologia. A geração de conhecimento

não é uma atividade só de técnicos e cientistas, mas

deve envolver a participação ativa de agricultores/as

desde a definição dos problemas das pesquisas até a

divulgação dos seus resultados. Isso significa o romper

com a idéia de pesquisa, na qual os/as agricultores/as

são considerados apenas como aqueles que vão rece-

ber os conhecimentos ou as tecnologias geradas pela

“ciência”. Essa necessidade de entrelaçar saberes po-

pulares e científicos nos processos de construção do

conhecimento agroecológico é um grande desafio.

Este artigo apresenta a experiência de articulação

entre o Centro de Tecnologias Alternativas (CTA), alguns

departamentos da Universidade Federal de Viçosa (UFV)

e organizações de agricultores/as familiares da Zona da

Mata de MG. O caminho percorrido nessa parceria, que

já dura quase 20 anos, é rico em ensinamentos sobre os

desafios da pesquisa científica integrada a processos

locais de desenvolvimento agroecológico.

Tecnologias alternativas, mas

metodologias convencionais:

o início da interação

Boa parte da agricultura familiar da Zona da Mata

têm sistemas produtivos baseados na associação da

cafeicultura com a pecuária e o cultivo de culturas

voltadas ao auto-consumo, tais como milho, feijão e a

mandioca. Estes sistemas enfrentam problemas

relacionados à queda da produção das lavouras e à

grande variação do preço do café, sua principal fonte

de renda monetária.

O uso das tecnologias chamadas de “modernas” na

região, como os adubos químicos e agrotóxicos, piora-

ram ainda mais a exploração da natureza e tornaram os

sistemas produtivos mais arriscados, tanto do ponto de

vista econômico como ambiental.

Depois da fundação do CTA, no final da década de

80, a entidade atuou procurando difundir “tecnologias

alternativas”. Essas alternativas eram identificadas jun-

to às próprias famílias agricultoras da região ou já eram

conhecidas pela equipe técnica da entidade.

Nessa fase inicial o CTA criticava as “tecnologias

modernas”, mas não utilizava métodos muito diferen-

tes daqueles que eram empregados pelas empresas

tradicionais de pesquisa e assistência técnica. A noção

de “difusão de tecnologias” ainda estava muito impreg-

nada na formação dos técnicos e na própria entidade. A

idéia de valorização dos conhecimentos populares era

buscada, mas na prática ficava limitada à identificação

de tecnologias alternativas (populares), com o objetivo

de depois difundi-las. Já era um avanço, mas não per-

mitia o estabelecimento de relações de poder mais hori-

zontais entre assessores e agricultores. Apesar do res-

peito à cultura popular, o papel mais ativo no processo

de inovação permanecia com os técnicos.

Das tecnologias alternativas à agroecolo-

gia: uma mudança de estratégia

Para superar estas limitações, o CTA passou a reali-

zar diagnósticos participativos de agroecossistemas.

Com estes diagnósticos procurava aprofundar e siste-

matizar o conhecimento dos técnicos e agricultores,

sobre os problemas e as potencialidades de cada uma

das regiões de atuação da entidade. Os diagnósticos

permitiram definir temas que passaram a orientar a inte-

ração entre agricultores/as, técnicos do CTA e profes-

sores da universidade.

Em 1993 o STR de Araponga solicitou assessoria ao

CTA para a elaboração de um “Plano de Ação”. O traba-

lho foi iniciado com a realização de um diagnóstico de

agroecossistemas do município. Dois temas se desta-

caram nesse diagnóstico: o enfraquecimento das ter-

ras e a preocupação com a criação do Parque da Serra

do Brigadeiro, que significaria a desapropriação das

terras de centenas de famílias. Para buscar solução a

esses problemas, foram criadas duas comissões com-

postas por agricultores, técnicos do CTA e do Departa-

mento de Solos da UFV: a comissão “Terra Forte” e a

comissão do Parque.

A comissão Terra Forte incentivou experiências de

controle da erosão e reposição de nutrientes retirados

pelos cultivos, principais razões encontradas para o

enfraquecimento das terras. Entre as propostas testa-

das nas comunidades destacam-se o cultivo de cana-

de-açúcar em cordão de contorno nas lavouras de ca-

fé, a substituição da capina pela roçagem do mato nas

lavouras, o uso de calcário, o uso de leguminosas e as

práticas agroflorestais.

04 março/2008v. 1 nº 1 05março/2008v. 1 nº 1

Construindo o conhecimento agroecológico:a articulação entre o CTA, a UFV e as organizaçõesde agricultores da Zona da MataIrene Maria Cardoso e Eugênio Alvarenga Ferrari

Sistematização participativa de sistemas agroflorestais

Page 4: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

A comissão do Parque buscou a mobilização dos

STR's dos municípios do entorno do futuro parque. Um

diagnóstico sócio-econômico e ambiental da Serra foi

realizado e várias pesquisas foram realizadas, demons-

trando as vantagens do envolvimento das famílias de

agricultores na criação do parque e no desenvolvimen-

to de atividades produtivas sustentáveis. Todo esse pro-

cesso evitou as desapropriações e permitiu a criação

do Parque, de forma participativa.

Monitoramento e sistematização:

ajustando os métodos de trabalho e as

propostas agroecológicas

Após alguns anos de atuação em Araponga, as

instituições parceiras decidiram monitorar as ações

desenvolvidas, propondo aos agricultores/as de regis-

trarem e analisarem as mudanças ocorridas em suas

propriedades, após a incorporação de propostas agro-

ecológicas.

Durante o monitoramento alguns métodos adota-

dos pelos cientistas foram questionados pelos agri-

cultores. Foi preciso então redefinir metodologias pa-

ra garantir que as informações fossem úteis e de rele-

vância local. Essa experiência ajudou muito a clarear

as dificuldades existentes quando agricultores e cien-

tistas se põem em interação para produzir novos co-

nhecimentos. É preciso entrar em acordo em relação

aos métodos de coleta e análise dos dados. Aprende-

mos que o método científico não pode ser o mais im-

portante na interação, senão os agricultores irão ques-

tionar a qualidade de sua participação no processo.

Entre várias atividades desenvolvidas, decidiu-se

monitorar os resultados dos sistemas agroflorestais,

06 março/2008v. 1 nº 1 07março/2008v. 1 nº 1

principalmente seu efeito sobre o controle da erosão

e o aumento da produtividade das culturas. Foi com-

provado que os SAF's controlavam a erosão, mas o

monitoramento mostrou que a produção não era sufi-

ciente e demandava muita mão-de-obra. Para os agri-

cultores, a introdução de grande número de árvores

de uma só vez no sistema dificultou muito o manejo e

não trouxe bons resultados. Alguns tipos de árvores

foram então retiradas e outros foram introduzidos,

especialmente aquelas de mais fácil manejo (por

exemplo as arvores que deixam cair as folhas no in-

verno - que não exigem podas) e aquelas geradoras

de renda, como as frutíferas (abacate, banana e etc).

Atualmente os agricultores possuem seus sistemas

desenvolvidos a partir de suas lógicas e dos seus tem-

pos e não a partir de modelos imaginados como idea-

is, trazidos de outras realidades.

Todo o processo de experimentação com SAF's ge-

rou muitas informações, mas muitas delas estavam dis-

persas, o que dificultava o seu uso por outros agriculto-

res, pelos novos membros da equipe do CTA e por ou-

tras pessoas interessadas. Para superar essa deficiên-

cia e gerar novos conhecimentos foi realizada a siste-

matização da experiência.

Vários aprendizados importantes foram obtidos co-

letivamente nessa sistematização. Entre eles o reco-

nhecimento, por parte dos agricultores, das espécies

de árvores nativas que combinavam melhor com o ca-

fé. Por outro lado permitiu também identificar questões

que ainda precisavam ser melhor compreendidas.

Café com ciência

Para responder algumas das questões identificadas

durante a sistematização, projetos de pesquisa foram

elaborados. Parte destes projetos estão sendo desen-

volvidos em ambientes controlados ou em laboratórios,

mas estão inseridos em um processo mais amplo de

articulação entre as organizações e agricultores/as.

Estes projetos são realizados na mesma região, mas

cada um olha o agroecossistema a partir de um aspec-

to específico. A integração destes olhares não têm sido

fácil. Em um esforço de integração os participantes dos

projetos realizam reuniões para planejar as ações e dis-

cutir os resultados ou assuntos relacionados aos temas

de pesquisa.

Para ampliar esta integração foram realizados en-

contros denominados “Café com Ciência”, que visa-

vam discutir os objetivos e as metodologias dos proje-

Sistematização participativa de sistemas agroflorestais

Agricultores(as) durante encontro denominado “café com ciência”, para discutir metodologias e resultados de pesquisas. Universidade Federal de Viçosa

Page 5: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

08 março/2008v. 1 nº 1

tos de pesquisa. O primeiro encontro foi realizado em

Araponga, e procurou discutir dos objetivos e metodo-

logias a serem utilizadas. O “Café com Ciência II” foi

realizado no campus da UFV”, quando as famílias de

agricultores/as tiveram a oportunidade de observar e

manusear parte do instrumental de laboratório adotado

nas pesquisas.

Considerações finais

A longa trajetória de interação entre universidade,

CTA e agricultores/as permitiu estabelecer uma relação

marcada pelo respeito e a confiança mútua, condição

fundamental para a realização de qualquer projeto de

pesquisa dessa natureza. Professores da UFV

passaram a integrar o quadro de associados do CTA e

fazem parte do seu conselho e diretoria, e participam

das instâncias de planejamento e deliberação da

entidade. Tudo isto contribui para o sentido de

compromisso mútuo existente entre os diversos atores

na construção da agroecologia na Zona da Mata de

Minas Gerais.

Muitos desafios ainda permanecem. Entre eles está

a incorporação de pesquisadores de outras áreas do

conhecimento e o aprendizado conjunto na análise dos

agroecossistemas. Para superar esses desafios é pre-

ciso mudanças na organização da pesquisa e nas suas

formas de financiamento, que continuam sendo muito

especializadas e descoladas da realidade. É preciso

também que a universidade reconheça oficialmente o

verdadeiro valor dos agricultores/as no desenvolvi-

mento do conhecimento, desconstruindo o mito da su-

perioridade do conhecimento científico.

1 - Assegurar o direito a alimentação através de leis

2 - Expandir as medidas de proteção social

2.1 - Uma refeição na escola para todas as crianças

2.2 - Transferência de renda

2.3 - Acesso universal ao tratamento, ao cuidado e a prevenção do HIV/AIDS

2.4 - Auxílio emergencial a alimentação

3 - Melhorar a condição e a renda da mulher

Aumentar a produção local de alimentos para o consumo local

4 - Investir em menor escala na agricultura sustentável para impulsionar a produção e os rendimentos

4.1 - Expandir e melhorar o auxílio aos agricultores familiares

4.2 - As tecnologias insustentáveis dos transgênicos e da revolução verde devem ser rejeitadas

5 - Dar suporte às mulheres agricultoras e produtoras

6 - Aumentar gradualmente a mitigação, a adaptação, o financiamento e a tecnologia para responder às mudanças climáticas

Melhorar o sistema global de alimentação

7 - Regular o agronegócio

8 - Os acordos comerciais devem proteger os meios de subsistência rurais

9 - Acabar com as metas e subsídios para os biocombustíveis

10 - Parar com a especulação das commodities internacionais nas bolsas de mercados futuros

09março/2008v. 1 nº 1

Dez ações paraacabar com a fome

Mais de 950 milhões de pessoas serão vítimas da

fome esse ano. A ActionAid estima que mais 750

milhões de pessoas estejam agora correndo o risco

de cair na fome crônica. Assim como 1.7 bilhões de

pessoas, ou 25% da população mundial, pode ago-

ra carecer da segurança básica alimentar.

75% das pessoas vítimas da fome no mundo mo-

ram em áreas rurais, o que sugere que nenhuma

redução sustentável da fome é possível sem uma

ênfase especial na agricultura e no desenvolvimento

rural.

A Assistência Oficial do Desenvolvimento à Agri-

cultura vem diminuindo firmemente ao longo das

duas décadas passadas de US$ 6.7 bilhões em

1984 para US$ 3.9 bilhões em 2006.

O preço global total dos alimentos aumentou

83% nos 36 meses que conduziram até fevereiro de

2008, enquanto o trigo aumentou mais de 181%.

Os recursos alocados para as estratégias de mer-

cado das commodities tem apresentado um índice

de levantamento de US$ 13 bilhões no final de 2003

para US $260 bilhões em relação a março de 2008, e

os preços dessas 25 commodities que compõe es-

se índice levantaram em média 183 por cento nes-

ses cinco anos.

Quase metade do aumento do consumo da co-

lheita dos principais alimentos em 2007 está relacio-

nada com os biocombustíveis.

Fome e má nutrição são o risco número um à saú-

de do mundo inteiro. Maior do que a combinação da

AIDS, da malária e da tuberculose.

Quase cinco milhões de crianças morrem cada

ano de doenças que são evitáveis como a diarréia e

o sarampo.

Mais de 60 por cento das pessoas vítimas da fo-

me crônica são mulheres.

A fome em números

Page 6: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

10 março/2008v. 1 nº 1 11março/2008v. 1 nº 1

Agricultura Urbana:Ações e aprendizados da RedeDaniela Almeida e Marcelo Almeida, com colaboraçãode Ana Barros, membros da equipe técnica da REDE

Quando falamos sobre agricultura a primeira ima-

gem que vem à cabeça da maioria das pessoas está

relacionada ao cultivo em áreas rurais. Mas desde o

surgimento das primeiras cidades os/as morado-

res/as realizam atividades agropecuárias no espaço

urbano, produzindo alimentos que são utilizados prin-

cipalmente para consumo da própria família. Estas

atividades, que atualmente vêm sendo consideradas

no conceito de Agricultura Urbana, podem interagir

com vários desafios enfrentados pelas comunidades

urbanas, seja no campo da segurança alimentar e

nutricional (SAN), da saúde, da complementação de

renda, da geração de postos de trabalho, da gestão

da cidade, entre outros.

Este texto apresenta algumas reflexões sobre as

ações e os aprendizados da Rede de Intercâmbio de

Tecnologias Alternativas (REDE) sobre os temas agri-

cultura urbana e segurança alimentar e nutricional, ba-

seadas na sua atuação em comunidades de baixa ren-

da da região metropolitana de Belo Horizonte e nas rela-

ções construídas com diferentes organizações.

A REDE é uma organização não-governamental

(ONG), criada em 1986 por pessoas comprometidas

com o fortalecimento da agricultura familiar e a transfor-

mação da realidade sócio-ambiental de Minas Gerais.

Na época, as contradições das políticas agrárias no

Brasil acentuavam a concentração da terra, o êxodo

rural e a violência contra os trabalhadores e trabalhado-

ras. Atualmente, a partir de uma atuação na região leste

de Minas Gerais, a REDE continua contribuindo para o

desenvolvimento rural, por meio da construção e con-

solidação de experiências agroecológicas na agricultu-

ra familiar.

A experiência da REDE em agricultura urbana inici-

ou-se em 1995, a partir de um convênio com a Prefeitu-

ra de Belo Horizonte para co-gestão do Projeto CEVAE

– Centro de Vivência Agroecológica. A intenção da

REDE com este projeto foi iniciar um trabalho em bair-

ros da periferia de Belo Horizonte, aproveitando o acú-

mulo de conhecimento adquirido com a sua atuação

em processos de desenvolvimento rural.

O Projeto CEVAE, implementado em quatro regiões

da cidade, buscava contribuir para o desenvolvimento

das comunidades a partir das recomendações da Agen-

da 21, através de dois eixos de trabalho principais: ges-

tão ambiental local e consumo alimentar e saúde. O

convênio entre a REDE e a PBH foi encerrado no ano de

2001 e, a partir de então, a REDE manteve uma ação

direta em cinco bairros de Belo Horizonte. Neste perío-

do, a entidade atuou articulada à Rede de Desenvolvi-

mento Local dos bairros Alto Vera Cruz, Granja de Frei-

tas e Taquaril (região leste), onde residem cerca de 80

mil pessoas, e à Rede de Desenvolvimento Comunitá-

rio dos bairros Capitão Eduardo e Beija Flor (região nor-

deste), com aproximadamente sete mil habitantes.

Estas redes, que chegaram a envolver 40 entidades

locais, articulam as iniciativas dos grupos de base, enti-

dades religiosas, organizações não-governamentais,

órgãos públicos e os recursos disponíveis localmente

para elaborar, executar e monitorar propostas para o

desenvolvimento das comunidades.

Uma destas propostas, desenvolvida durante o pe-

ríodo de 2002 a 2004, foi o Projeto de Formação de Edu-

cadoras Comunitárias em Segurança Alimentar e Nutri-

cional e Agricultura Urbana, que envolveu diretamente

60 famílias e uma equipe de nove educadoras comuni-

tárias. O objetivo era consolidar um grupo de educado-

ras/es comunitárias/os com capacidade de incentivar

dinâmicas locais de aprendizagem, experimentação e

criação coletiva de novas idéias, práticas e produtos

(Weitzman, 2005). O Projeto de Formação apresentava

como pilares de sua ação: 1) a parceria entre os diver-

sos atores envolvidos nas redes locais; 2) a definição

de locais pelas redes de desenvolvimento para se expe-

rimentar ações multiplicadoras em diferentes temas; e

3) o protagonismo da comunidade no diagnóstico da

realidade local, no planejamento e avaliação das

ações, no acompanhamento às famílias, na sistemati-

zação e comunicação dos resultados, e na participa-

ção em fóruns temáticos e conselhos.

Neste mesmo período, a REDE participou da cria-

ção da Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana

(AMAU), um espaço permanente de encontro, inter-

câmbio e fortalecimento de grupos e organizações soci-

ais da região metropolitana de Belo Horizonte. Desde

2005, a AMAU vem realizando atividades com o envolvi-

mento de cerca de 120 pessoas e organizações da re-

gião metropolitana. Estes momentos permitiram avan-

çar na identificação de iniciativas de agricultura urbana

e segurança alimentar desenvolvidas por grupos comu-

nitários, movimentos populares, ONGs, prefeituras e

órgãos governamentais na região metropolitana de

Belo Horizonte; criar um espaço de troca de experiênci-

as; e iniciar o debate sobre a formulação de políticas

públicas para promoção da agricultura urbana.

A partir de 2006, a REDE iniciou, em parceria com a

Prefeitura de Belo Horizonte, a implementação do Pro-

grama Cidades Cultivando para o Futuro (CCF), apoia-

do pela Fundação RUAF (Holanda) e pelo IPES (Peru).

Para conhecer melhor a realidade da agricultura urba-

na em Belo Horizonte, o Programa CCF realizou um

“Diagnóstico Participativo” que levantou informações

sobre a situação da agricultura urbana, a legislação

relacionada ao tema, os atores-chave para seu desen-

volvimento e os espaços em que as atividades se de-

senvolvem. A partir da realização do diagnóstico, inau-

gurou-se também um espaço de diálogo em Belo Hori-

zonte, do qual participam vários atores, que tem busca-

do propor e monitorar políticas municipais de agricultu-

ra urbana e instrumentos para sua efetivação.

A ação da REDE na cidade tem por objetivo potenci-

alizar iniciativas comunitárias de agricultura urbana de-

senvolvidas em bases agroecológicas e que incorpo-

ram os princípios da segurança alimentar e nutricional.

As atividades desenvolvidas procuram qualificar as ex-

periências produtivas e organizativas, por meio do

acompanhamento aos grupos comunitários e do de-

senvolvimento de processos de formação que possibi-

litem a incidência política com protagonismo das lide-

ranças. Neste exercício com as comunidades locais se

dá a experimentação e (re)criação de metodologias e

técnicas que buscam adaptar à realidade urbana os

princípios agroecológicos.

Estes processos são favoráveis à construção de

conhecimentos a partir do diálogo dos saberes popula-

res e tradicionais com o conhecimento técnico-

cientifico. Nestas dinâmicas de troca de conhecimen-

Horta da Associação Comunitária da Vila Presidente Vargas – Belo HorizonteCrédito: Marina Utsch / REDE-MG

Encontro de troca de sementes da Articulação Metropolitana de Agricultura UrbanaCrédito: Marcelo Almeida / REDE-MG

Page 7: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

12 março/2008v. 1 nº 1 13março/2008v. 1 nº 1

tos, as famílias e grupos comunitários desenvolvem

uma maior autonomia, permitindo identificar se as de-

mandas locais podem ser respondidas por iniciativas

que já existem na própria comunidade ou se há neces-

sidade de buscar uma contribuição em outro local. São

também importantes as ações de planejamento, avalia-

ção e sistematização que buscam refletir, aprender

com o próprio fazer e formular conhecimentos sobre o

processo de organização comunitária e as atividades

que são realizadas. Além de promover mudanças na

qualidade de vida das famílias das periferias da cidade,

estes conhecimentos podem inspirar outras iniciativas

comunitárias, evidenciar a agricultura urbana enquanto

uma estratégia de gestão do espaço urbano e influenci-

ar a formulação de políticas.

A seguir, compartilhamos algumas reflexões rele-

vantes para a implantação de ações governamentais e

não governamentais de agricultura urbana no Brasil,

que surgem da experiência acumulada pela REDE ao

longo de sua atuação.

Características da Agricultura Urbana

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatística (IBGE), a população de Belo Horizonte,

que é totalmente urbana, correspondia em 2007 a 2,4

milhões de habitantes, distribuídos em 330 km². As ini-

ciativas de agricultura urbana na cidade são familiares

ou comunitárias, sendo desenvolvidas, na maioria das

v e z e s , d e f o r m a e s p o n t â n e a e c o m o

(re)aproveitamento dos próprios recursos. Os/as mora-

dores/as dos bairros de baixa renda são, principalmen-

te, oriundos da zona rural de outras regiões do estado.

Ainda hoje chegam nas periferias de Belo Horizonte

muitas famílias que relacionam o conhecimento sobre

o manejo dos quintais a uma experiência rural anterior,

na qual aprenderam com os pais, mães ou avós sobre

cultivo de roças, o uso de plantas medicinais e nativas

na alimentação e a criação de animais . Estas famílias

buscam adaptar estes conhecimentos e modos de vida

ao novo contexto urbano, mantendo vivas práticas co-

mo a conservação de sementes, a diversificação de

cultivos, o manejo de plantas medicinais e a transfor-

mação de resíduos orgânicos em composto.

Em várias experiências, constata-se o envolvimento

de pessoas que, mesmo não sendo de origem rural,

apresentam grande interesse pela prática agrícola.

Observamos que uma das principais motivações para a

prática da agricultura urbana está ligada a uma questão

cultural. As pessoas plantam pelo prazer de plantar e

pela importância que dão a valores, costumes e hábitos

referentes à “vida na roça”. Quando viajam para o interi-

or, trazem mudas e sementes para plantarem e troca-

rem com os vizinhos.

As iniciativas, em seu conjunto, demonstram a di-

versidade de atividades relacionadas à agricultura urba-

na, como a produção animal, vegetal e de insumos, o

beneficiamento, a comercialização e a prestação de

serviços.

As condições e espaços urbanos para o uso agro-

pecuário também são bem variados, envolvendo o cul-

tivo em pequenos espaços domésticos, espaços insti-

tucionais públicos e privados (escolas, centros de saú-

de, empresas etc.), e espaços onde não se pode cons-

truir (margens de rios, estradas e ferrovias, debaixo de

redes elétricas, “áreas verdes” etc.). As experiências

mostram que é possível desenvolver tecnologias de

aproveitamento destes pequenos espaços domésticos

(quintais, corredores, varandas e lajes) para a produ-

ção agroecológica de alimentos, plantas medicinais,

ornamentais e criação de pequenos animais. Há quin-

tais grandes e pequenos, planos ou inclinados, com

muito ou pouco solo, onde é bastante comum o plantio

em vasilhames como pneus, bacias, balaios, latas, cai-

xotes de madeira, garrafas PET, caixinhas de leite, latas

de conserva, vasos sanitários

quebrados, carcaças de geladei-

ra e televisão.

O uso produtivo de espaços

urbanos proporciona uma maior

limpeza destas áreas e uma me-

lhoria considerável ao ambiente

local, diminuindo a proliferação

de vetores de doenças e a quan-

tidade de lixo produzido. Muitos materiais, como emba-

lagens, pneus e entulhos, também são utilizados para a

contenção de pequenas encostas e formação de can-

teiros. E os resíduos orgânicos domiciliares são apro-

veitados na produção de composto empregado nas

atividades de agricultura urbana. Há ainda o impacto

na conservação e aumento da biodiversidade urbana,

na recuperação de áreas de risco, no reaproveitamento

da água utilizada nos domicílios, além da ampliação da

área para infiltração e das possibilidade do uso de água

de chuva.

A agricultura urbana é um meio para que as popula-

ções das cidades construam sua própria capacidade

de alimentar-se, com dignidade, de forma alternativa às

vias de mercado ou às práticas assistencialistas ampla-

mente difundidas. Estas iniciativas possuem relação

direta com diferentes dimensões da segurança alimen-

tar e nutricional, como a disponibilidade e acesso a ali-

mentos de qualidade, a educação e cultura alimentar, a

ligação entre alimentação e saúde, entre outros.

Nas dinâmicas de agricultura urbana, a produção

pode ser destinada para o auto-consumo, trocada ou

comercializada. Observa-se que a pequena produção

nos quintais contribui para a renda familiar, por meio da

diminuição dos gastos com alimentação e saúde, atra-

vés das redes de troca e, eventualmente, do beneficia-

mento e comercialização de excedentes da produção.

A relação entre a agricultura urbana e a saúde é bas-

tante significativa e envolve o cultivo de plantas medici-

nais nos quintais e espaços comunitários e a prepara-

ção de remédios caseiros . As/os

moradoras/es relatam que os

hábitos de plantar, mexer na ter-

ra, conversar com as plantas e

animais também são muito im-

portante para a manutenção da

saúde. Há vários exemplos que

mostram a melhoria da pressão

arterial e da depressão de paci-

entes, a melhoria da convivência

na comunidade e a menor ne-

cessidade de procurar o centro

de saúde. Existe também uma

Cultivo de plantas em pequenos espaços – Bairro Capitão Eduardo – Belo HorizonteCrédito: Patrícia Antunes / REDE-MG

Coleta de plantas medicinais em horta no

Bairro Capitão Eduardo – Belo Horizonte

Crédito: Ana Barros / REDE-MG

Plantio na laje – Bairro Capitão Eduardo – Belo HorizonteCrédito: Anadélia de Souza / REDE-MG

Criação de pequenos animais na Regional Barreiro – Belo HorizonteCrédito: Ana Barros / REDE-MG

Page 8: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

14 março/2008v. 1 nº 1 15março/2008v. 1 nº 1

preocupação com o embelezamento das casas através

das plantas, sejam elas ornamentais ou não. As famílias

dizem que se sentem melhor se a casa e o quintal estão

cheios de plantas.

A discussão de agricultura urbana também ressalta

a importância das áreas remanescentes de vegetação

nativa que se encontram dentro e ao redor das cidades.

Estas áreas são utilizadas por conhecedores/as de

plantas medicinais e grupos comunitários que buscam

plantas para preparação de remédios caseiros. A incor-

poração deste tema nos processos educativos desper-

tou nas comunidades a necessidade de discutir o aces-

so e o manejo sustentável de plantas medicinais, relaci-

onando com a conservação destas áreas.

Aprendizados e Desafios

A incorporação do enfoque de gênero nas metodo-

logias de trabalho possibilitou identificar as tensões e

papéis assumidos por homens e mulheres nas práticas

da agricultura urbana e segurança alimentar. Essa abor-

dagem permitiu às famílias perceberem o papel impor-

tante que as mulheres desempenham na segurança

alimentar e na saúde da família e da comunidade, e tam-

bém refletirem que os trabalhos em casa, no quintal, ou

comunitários devem ser uma preocupação de todas as

pessoas.

Outro resultado importante dos processos de for-

mação se refere às mudanças de comportamento

dos/as educadores/as comunitários/as. Estas pessoas

desenvolveram a expressão oral e escrita, afetividade,

autoconfiança, maior autonomia e um sentimento de

realização pessoal por estarem contribuindo na melho-

ria ambiental e nas condições alimentares de sua comu-

nidade. Além disso, se tornaram referências nos seus

bairros e para outros grupos e experiências em Belo

Horizonte e mesmo em outras cidades do estado.

No que se refere ao trabalho desempenhado por

educadoras/es e grupos comunitários, é fundamental

aprofundar o debate e a construção de estratégias para

a sua sustentabilidade. Essas pessoas, em sua maioria

mães de família, têm atuado como agentes transforma-

dores da realidade local. Ao incorporar novas práticas

de consumo e de relação com o seu ambiente, elas mo-

bilizam e influenciam outras famílias a mudarem o com-

portamento relacionado ao quintal, ao destino do lixo,

aos hábitos alimentares, ao uso de plantas medicinais

e, por fim, à participação na vida comunitária. Mas ao

longo dos anos, constatamos situações em que pesso-

as capacitadas nas dinâmicas locais de formação tive-

ram que 'abandonar' o trabalho comunitário em função

de oportunidades de empregos formais e informais, em

sua maioria, com baixos salários.

Muitas experiências de agricultura na cidade se ba-

seiam na valorização dos recursos naturais (biodiversi-

dade, solos e água) disponíveis em cada localidade, na

baixa dependência de insumos externos para manter

sua capacidade produtiva e na capacidade criativa,

especialmente das mulheres e famílias com origem ru-

ral, de adaptar conhecimentos anteriores para a prática

agrícola no contexto urbano. Esta realidade indica um

grande potencial de consolidar e ampliar experiências

de agricultura urbana em bases agroecológicas.

Neste sentido, é necessário aprofundar o debate

sobre a agricultura urbana na sociedade civil, incorpo-

rando este tema em espaços que discutem a agroeco-

logia, a segurança alimentar e nutricional, a reforma

urbana, entre outros. Tão essencial quanto ser incorpo-

rada à discussão de outros temas, é importante incenti-

var a criação e consolidação de espaços específicos da

agricultura urbana, que promovam a articulação e o

fortalecimento das experiências comunitárias e qualifi-

quem o protagonismo das lideranças e grupos de base

na formulação de propostas e políticas. Estes espaços

devem ser geradores de novos conhecimentos que

qualifiquem a discussão sobre a contribuição da agri-

cultura urbana para as cidades, constituindo-se em refe-

renciais para estimular novas experiências e qualificar

as ações que já estão em curso.

No diálogo com o poder público para criação de

políticas e programas que promovam todo o potencial

da agricultura urbana é necessário considerar a sua

interface com os diferentes aspectos do desenvolvi-

mento urbano e o envolvimento de variados setores do

governo e da sociedade. Para potencializar a imple-

mentação das ações, deve-se analisar o contexto políti-

co e identificar a entrada mais promissora na estrutura

pública, que terá o desafio de coordenar e articular os

esforços com os outros setores do governo, como as

áreas de planejamento urbano, agricultura, meio ambi-

ente, abastecimento, saúde, educação e assistência

social. É importante reforçar que a construção das polí-

ticas deve ser subsidiada pelos conhecimentos acumu-

lados nas experiências desenvolvidas pela sociedade

civil que incentivam os processos participativos, a expe-

rimentação local e o acesso à insumos, à água e aos

espaços urbanos com potencial produtivo.

Baseada na existência de experiências em diversos

contextos e comunidades, a agricultura urbana é um

processo em constante construção, que demonstra um

potencial aglutinador e uma importante contribuição na

elaboração de propostas para um Brasil mais solidário

e sustentável no campo e na cidade.

ALMEIDA, D. Agricultura Urbana e Segurança Alimentar

em Belo Horizonte: cultivando uma cidade sustentável.

Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de

Janeiro, v.1, n.0, p.25-28, set.2004.

LOVO, I.C., COSTA, Z.R.P., MARTINELLI, J.C.M., Experiên-

cia de Governador Valadares, Minas Gerais, Brasil, com a

Implantação do Programa Municipal de Agricultura Urbana

(AU). Artigo completo a ser publicado em documento final

do evento "Building Public Spaces that Work: A Canada-

Brazil Dialogue Devoted to Enhancing the Public Realm-

2005”. Canadian Urban Institute e demais parceiros.

MONTEIRO, D; MENDONÇA, M. M. Quintais na cidade: a

experiência de moradores da periferia do Rio de Janeiro.

Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de

Janeiro, v.1, n.0, p.29-31, set.2004.

WEITZMAN, R. Construção participativa de um modelo de

formação de educadores(as) comunitários (as) em segu-

rança alimentar e nutricional. Rede de Intercâmbio de Tec-

nologias Alternativas. set. 2005. Disponível em www.rede-

mg.org.br

Referências Bibliográficas

Caminhada para identificação de plantas medicinais em área verde de Belo HorizonteCrédito: Ana Barros / REDE-MG

Page 9: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

ecológicos das comunidades em sua luta pela vida, conside-

rando “ecologia” como sendo a integração dos aspectos geo-

gráficos, biológicos e econômicos. Dessa forma, identificou

uma relação clara das comunidades com seu habitat, desta-

cando a importância da atividade de coleta de frutos nativos

em suas economias locais.

Dayrell (2000) afirma que as comunidades tradicionais do

Norte de Minas desenvolveram agroecossistemas comple-

xos, frutos de uma interação histórica com a natureza, da ex-

perimentação, da construção e da co-evolução de suas práti-

cas de transformação do meio. Para o autor, estas comunida-

des “nos legaram, até anos recentes, uma paisagem onde as

funções ecológicas dos seus ecossistemas permaneciam

praticamente intactas, fruto de um processo histórico de co-

16 março/2008v. 1 nº 1 17março/2008v. 1 nº 1

Potenciais e limitações do uso sustentável da biodiversidade do Cerrado: um estudo de caso da Cooperativa Grande Sertão no Norte de MinasIgor Simoni Homem de CarvalhoBiólogo, Mestre em Gestão Ambiental, colaborador da Cooperativa Grande Sertão e do CAA-NM

Donald Rolfe SawyerSociólogo (PhD), Professor no Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília (CDS-UnB)

Introdução

O uso da biodiversidade pelo ser humano remete à exis-

tência da própria humanidade. Ainda hoje, muitas famílias

pertencentes a diversas culturas em todo o mundo têm, no

extrativismo vegetal, uma fonte importante de alimentos, re-

médios, utilitários, combustíveis (Hironaka, 2000; Lescure,

2000; Diegues & Arruda, 2001). O bioma Cerrado, um dos

mais biodiversos do planeta (Mittermeier et al., 2004), tam-

bém oferece às suas populações uma grande variedade de

produtos que podem ser importantes aliados na promoção

de meios de vida sustentáveis, onde a geração de renda e a

qualidade de vida estejam em consonância com a conserva-

ção dos recursos naturais (Sawyer et al., 1999).

Este trabalho buscou na região norte do Estado de Minas

Gerais (meso-região Norte de Minas do IBGE) a experiência

da Cooperativa dos Agricultores Familiares Agroextrativistas

Grande Sertão Ltda., que pode ser considerada uma das

experiências mais significativas de organização e comerciali-

zação da atividade extrativa no Brasil, contando com expres-

siva escala produtiva, grande diversidade de espécies utiliza-

das e geração de renda considerável às comunidades envol-

vidas. As atividades produtivas da Cooperativa envolvem

1556 famílias de 148 comunidades pertencentes a 21 municí-

pios diferentes do Norte de Minas. A compra de volumes de

sete espécies de frutos do Cerrado para o beneficiamento e

comercialização gerou, em quatro safras, cerca de R$ 125 mil

aos agricultores extrativistas.

Pode-se dizer que o uso sustentável da biodiversidade

nativa do Cerrado contribui significativamente para a melho-

ria da qualidade de vida de populações pobres habitantes do

bioma e, ao mesmo tempo, para a conservação de seus re-

cursos naturais. Todavia, alguns aspectos apontam para a

necessidade de ações do poder público, da cooperação in-

ternacional e da sociedade civil em prol da viabilização desta

atividade econômica como geradora de amplos benefícios

sócio-ambientais.

Atesta-se também para a grande complexidade da organi-

zação da atividade extrativa na experiência da Grande

Sertão, na qual se destaca a importância da organização

social e da participação política das comunidades para a

sustentabilidade econômica e sócio-ambiental da ativida-

de extrativa, e a necessidade de aprofundamento das

ações relativas ao manejo e recuperação dos ecossiste-

mas.

A experiência da Cooperativa Grande Sertão é uma

referência indispensável para aqueles que se propõem a

estudar o extrativismo no Cerrado, e pode contribuir sen-

sivelmente para o debate em torno do uso da biodiversi-

dade e repartição de benefícios travado em diferentes

partes do globo. Evidencia-se a grande complexidade da

inserção do extrativismo praticado por populações rurais

no Norte de Minas em uma rede de ações e cadeias pro-

dutivas embasadas por uma proposta de justiça social e

conservação ambiental. Contudo, fica claro também que

a ousadia dessa proposta, incluindo toda a reflexão sobre

a abertura de novos caminhos e paradigmas, tem contri-

buído na busca pela necessária sustentabilidade.

Origem e consolidação

da Cooperativa Grande Sertão

O Norte de Minas é a maior das meso-regiões mineiras:

abrange 88 municípios, ocupa cerca de 128 mil km² e abriga

pouco mais de 1,5 milhão de habitantes. Segundo o censo do

IBGE do ano 2000, o Índice de Desenvolvimento Humano -

IDH da região é de 0,691. No processo de formação sócio-

econômica da região, ao mesmo tempo em que houve uma

apropriação desigual da terra, gerando a formação de enor-

mes latifúndios, houve também a ocupação de grandes ex-

tensões com base em “um sistema de uso da terra subjacen-

te à diversidade cultural da região, inclusive, ao seu regime

alimentar”, contribuindo para a formação da identidade políti-

ca e cultural dos “Gerais” (Gonçalves, 2000).

Donald Pierson (1972), ao estudar as populações do Vale

do São Francisco, conferiu especial atenção aos aspectos

evolução social e ambiental” (Dayrell, 2000:190). Ele também

destaca a necessidade do reconhecimento social destas po-

pulações que ainda carregam um estilo étnico próprio onde a

racionalidade produtiva não está totalmente dissociada da

natureza, o que pode nos dar pistas mais seguras quando

debatemos a sustentabilidade da agricultura e apontamos

alternativas de desenvolvimento

que permitam conciliar a produ-

ção com a preservação dos cer-

rados.

O extrativismo de plantas frutí-

feras, oleaginosas, medicinais,

de madeira e de forragem é in-

tensamente praticado pelas po-

pulações locais com fins domés-

tico e comercial, sendo que em

muitas das comunidades repre-

senta a principal fonte de renda.

A partir da década de 50, no en-

tanto, o Norte de Minas começa a

sofrer as transformações advin-

das do modelo desenvolvimen-

tista, com a apropriação das ter-

ras públicas pelo capital privado,

através de incentivos governa-

mentais ou de títulos ilegais (Gon-

çalves, 2000). A implantação de

grandes projetos agropecuários,

além de uma pesada política de

subsídios e financiamentos a

empreendimentos de perfil urba-

no-industrial, têm gerado graves

conseqüências negativas na re-

gião, como o aprofundamento

das desigualdades entre os muni-

cípios, a exclusão social, a perda da biodiversidade e o com-

prometimento da oferta de água e de outros serviços ecossis-

têmicos.

Hoje, boa parte do território está tomada por monocultu-

ras, principalmente de eucalipto, inviabilizando a reprodução

sócio-econômica de milhares de agricultores, que têm cada

vez mais dificuldade em acessar recursos como terra, água,

frutos nativos, ervas medicinais e lenha (D'Angelis Filho,

2005). Como dito anteriormente, apesar de serem comprova-

damente prejudiciais às populações locais e aos ecossiste-

mas naturais, as grandes plantações de eucalipto estão incluí-

das no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), em

uma estratégia liderada pelo Banco Mundial junto às empre-

sas do ramo e à certificadora Forest Stewardship Council

Extrativistas coletando coquinho na região da Serra Geral - Norte de Minas

Page 10: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

18 março/2008v. 1 nº 1 19março/2008v. 1 nº 1

(FSC), contando, inclusive, com o apoio de algumas entida-

des “ambientalistas” (Laschefski, 2003).

Como reação a este processo, iniciou-se, em princípios

da década de 1980, um movimento de organização e politiza-

ção dos agricultores familiares, como estratégia de luta pela

conquista dos direitos de acesso a terra, à água, à biodiversi-

dade, aos mercados, à qualidade de vida, à dignidade. Tive-

ram especial destaque neste movimento as organizações

ligadas às igrejas (Pastorais e Comunidades Eclesiais de Ba-

se), os Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) e, princi-

palmente, o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Mi-

nas (CAA-NM).

O CAA-NM foi fundado em 1987, por agricultores familia-

res, organizações sociais, lideranças locais e técnicos unidos

em torno da preocupação com o modelo agrícola predatório

que avançava sobre a natureza e a cultura norte-mineira. Des-

de sua criação, o CAA-NM vem atuando a favor de propostas

de desenvolvimento que favoreçam os agricultores familiares

e valorizem as práticas agroecológicas e os ecossistemas

nativos (Carrara, 2006).

Em 1995, começou a ser construída, pelo CAA-NM, a fá-

brica de polpas que iniciaria o beneficiamento das frutas dos

rurícolas da região, como parte do processo de “busca de

alternativas inovadoras para a geração de renda e o fortaleci-

mento da economia local” (Carrara, 2006:81). Em 1997 come-

çou a produção de polpas de frutas integrais congeladas,

ainda de maneira informal.

A história da Grande Sertão pode ser divida em três fases:

a experimental, na qual ocorreram a articulação dos agriculto-

res, a apropriação da tecnologia de beneficiamento de frutas

e o início da comercialização; a segunda, de aperfeiçoamento

tecnológico, organizativo e comercial; e, finalmente, a de con-

solidação e sustentabilidade, marcada pela fundação, em

2003, da Cooperativa propriamente dita (Carrara, 2006). Atu-

almente, a Cooperativa atua em 21 municípios, englobando

148 comunidades e 1556 famílias, e conta com 41 coopera-

dos.

As atividades que culminaram na fundação e no desenvol-

vimento da Cooperativa Grande Sertão têm origem em traba-

lhos que, desde o princípio, estiveram intimamente ligados

aos trabalhadores rurais do Norte de Minas, em sua grande

maioria, representantes das populações tradicionais locais –

Geraizeiros, Caatingueiros, Quilombolas, Vazanteiros, Xacria-

bás. Assim como estas populações desenvolveram agroe-

cossistemas vinculados e harmônicos com os ambientes que

as cercavam, a Grande Sertão vem trabalhando com a biodi-

versidade nativa e com cultivos ecológicos, contribuindo para

reforçar os laços territoriais e culturais históricos da sociedade

Norte-Mineira.

Das frutas processadas, 10 espécies são exóticas (prove-

nientes de cultivos agroecológicos), uma é nativa da Caatinga

(o umbu) e outras seis provêm do extrativismo em áreas de

Cerrado, sendo elas: a cagaita (Eugenia dysenterica), o co-

quinho azedo ou coco-butiá (Butia capitata), a mangaba (Han-

cornia speciosa), o maracujá nativo (Passiflora cincinnata), o

panã ou araticum (Annona crassiflora) e o araçá (Psidium ara-

ca). A Cooperativa trabalha também com o pequi (Caryocar

brasiliensis), que é transformado em óleo, polpa em compota

ou “caroços” congelados. Fazem parte ainda das atividades

da Grande Sertão as cadeias produtivas do mel, rapadura e

cachaça.

A Grande Sertão tem buscado ainda trabalhar com o pro-

cessamento de outras espécies nativas do Cerrado, tendo já

realizado experimentos com pelo menos três delas: a fruta-

de-leite (Pouteria sp.), a pitomba (Talisia esculenta) e a ma-

cambira (Bromeliaceae). Dessa forma, o aproveitamento sus-

tentável de uma grande diversidade de espécies do Cerrado,

em quantidades relativamente altas, traz a perspectiva de ge-

ração de renda substancial a diversas famílias de extrativistas,

ao mesmo tempo em que promove a valorização e a conser-

vação da biodiversidade e dos recursos naturais.

Nas safras ocorridas entre setembro de 2002 e abril de

2006, foram entregues, por agricultores extrativistas do Norte

de Minas, cerca de 72 toneladas dos frutos do Cerrado para a

produção de polpa congelada, gerando uma renda bruta total

de cerca de R$ 35 mil aos fornecedores. Já a renda gerada

pela entrega do pequi à Cooperativa nestas quatro safras foi

de aproximadamente R$ 90 mil. É significativa, portanto, esta

renda, principalmente por estar sendo revertida para comuni-

dades rurais com acesso restrito a recursos financeiros.

A Cooperativa Grande Sertão tem um modelo de organi-

zação onde núcleos de agricultores se agrupam em quatro

núcleos territoriais e interagem no Fórum de Agricultores, que

apóia a gestão da Cooperativa e viabiliza a interlocução com a

base. Os agricultores dos Núcleos Territoriais também se orga-

nizam em três núcleos de produtos, quais sejam: mel, pequi e

frutas e cana-de-açúcar. E, desde 2007, os agricultores e a

Grande Sertão passam a se inserir também na cadeia das

oleaginosas, voltadas para atender a demanda de biodiesel

da unidade da Petrobras em Montes Claros, porém sem per-

der de vista sua estratégia sócio-agrobiodiversa.

A complexidade de funcionamento desta organização

revela as dificuldades em se trabalhar com um grande núme-

ro de famílias de diferentes comunidades, e com um amplo

leque de produtos. A logística de entrega dos frutos pelos

agricultores à Grande Sertão apresenta-se igualmente com-

plexa. A figura central nesta organização é o mobilizador, res-

ponsável por orientar o acompanhamento técnico e organiza-

tivo nas comunidades inscritas no lócus de atuação da Coo-

perativa. Todos os mobilizadores têm algum tipo de atuação

na própria comunidade, no município ou em espaços mais

amplos, relacionados com movimento sociais locais.

Inicialmente, a Grande Sertão trabalhou na busca pelo

acesso aos mercados varejistas (lanchonetes, padarias, pe-

quenos mercados), conquistando uma clientela significativa

neste setor. Também se inseriu no chamado mercado institu-

cional – escolas, creches, hospitais, asilos etc. – via negocia-

ção direta com as prefeituras. Em 2004, a Grande Sertão fe-

chou seu primeiro contrato com a Companhia Nacional de

Abastecimento (CONAB), via Programa de Aquisição de Ali-

mentos (PAA). Este Programa permite que as prefeituras ad-

quiram alimentos diretamente do agricultores familiares de

seus municípios, com recursos da União. Estes alimentos

adquiridos são então repassados ao mercado institucional

local.

Com a demanda advinda do contrato com a CONAB, foi

possibilitando um crescimento de 300% no volume de produ-

ção e vendas de polpas de frutas da Grande Sertão. Estima-

se que, nas duas safras recentes, cerca de 85% de toda a pro-

dução da Cooperativa tenha sido destinada a atender tal de-

manda. Só no ano de 2005, foram fornecidas pouco mais de

93 toneladas de polpas de frutas ao mercado institucional de

municípios do Norte de Minas via PAA.

Além do PAA estar beneficiando diretamente os trabalha-

dores agroextrativistas que fornecem seus produtos à Grande

Sertão, destaca-se que a inserção da produção local na me-

renda escolar é estratégica do ponto de vista cultural e territo-

rial, pois permite que os filhos dos extrativistas consumam o

suco oriundo da produção familiar, reforçando laços nas famí-

lias e nas comunidades, e transmitindo a valorização da biodi-

versidade nativa para as futuras gerações de trabalhadores.

Uma possível fonte de insegurança proveniente do PAA

diz respeito às mudanças políticas que podem acabar com o

Programa, como, por exemplo, a troca de ministros ou de

governo. A Grande Sertão, contudo, tem levado este risco em

consideração, e tem buscado firmar compromissos com as

prefeituras, escolas e outras instituições beneficiadas pelo

Programa, para que elas mantenham a aquisição de produtos

da Grande Sertão mesmo no caso no PAA se extinguir. Muitas

destas instituições públicas parecem estar abertas a este com-

promisso.

O volume total de frutos nativos do Cerrado processados

nas safras ocorridas entre 2002 e 2006 foi de 72.066,10 kg,

resultando na produção de 27.900 kg de polpas congeladas.

Cooperados da Grande Sertão da comunidade de Abóboras, municipio de Montes Claros

Page 11: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

20 março/2008v. 1 nº 1 21março/2008v. 1 nº 1

Na safra de 2003/04, a quantidade entregue de coquinho aze-

do, de 12.996,9 kg, aliada a do umbu, nativo da Caatinga, que

foi de 10.122,7 kg, fez com que o volume dos frutos nativos

superasse o dos exóticos no beneficiamento realizado pela

Cooperativa nesta safra.

Contudo, observa-se uma irregularidade nas quantidades

entregues destes frutos, e uma diminuição da proporção dos

nativos do Cerrado em relação aos demais frutos utilizados na

produção de polpas congeladas. Alguns motivos podem ex-

plicar essa irregularidade e diminuição: a variação natural na

produtividade das plantas, ano a ano; a presença do gado,

que come frutos, brotos e pisoteia mudas de diversas espéci-

es nativas; o fogo, utilizado tradicionalmente por agricultores

da região, que também afeta a safra dos frutos coletados, de

acordo com depoimentos dos extrativistas e estudos ecológi-

cos (cf. Miranda & Sato, 2005). Outros motivos peculiares a

cada fruto podem ajudar a explicar a grande variação nas en-

tregas feitas à Grande Sertão, com destaque para as pragas

que atingiram principalmente o panã.

Paradoxalmente, o PAA/CONAB, reconhecidamente o

responsável pelo salto na escala produtiva da Grande Sertão,

também contribuiu para a diminuição da proporção do uso da

biodiversidade nativa do Cerrado na produção de polpas.

Isso pode ser explicado pelo fato de que os frutos cultivados

têm uma melhor condição de atender ao aumento da deman-

da verificado, contrastando com a dispersão, irregularidade e

imprevisibilidade da produção nativa do Cerrado. Além disso,

a organização da produção extrativa apresenta-se como de

maior complexidade, e portanto exige um maior investimento

na logística de coleta e entrega dos frutos por parte da comu-

nidade. Uma vez que a equipe da Grande Sertão passou a se

ocupar mais no atendimento às metas de produção determi-

nadas pelos contratos com a CONAB, ficou impossibilitada de

fornecer uma maior atenção à organização das comunidades

para o extrativismo no Cerrado em escala.

As próprias comunidades também têm na entrega de fru-

tos nativos à Grande Sertão uma fonte de renda interessante,

mas, em muitos casos, pode ser mais atrativo vender estes

frutos em feiras, onde se consegue preços melhores, apesar

da escala de venda ser menor. O investimento de trabalho em

atividades rurícolas convencionais, como pecuária e planta-

ções, bem como a prestação de serviços em outras frentes,

podem também concorrer com a atividade extrativa, desfavo-

recendo-a. Dessa forma, torna-se importante discutir, no âmbi-

to das políticas públicas, e mesmo da legislação, um trata-

mento diferenciado aos produtos de origem extrativa, de for-

ma a aumentar a segurança e as vantagens em seu aproveita-

mento.

É importante computar os benefícios ambientais globais

que a atividade extrativa sustentável pode induzir, em especial

aqueles relacionados com a manutenção dos ciclos hidrológi-

cos e com a fixação dos estoques de carbono. O Cerrado é

considerado uma grande “caixa d'água”, pois abriga nascen-

tes, rios e lençóis subterrâneos de onde sai grande parte da

água doce que alimenta algumas das principais bacias da

América do Sul. Desenvolver atividades econômicas que con-

tribuam para a manutenção e a recuperação da vegetação

nativa do bioma é fundamental para manter a qualidade e a

disponibilidade dos recursos hídricos e evitar impactos advin-

dos do modelo agropecuário predominante, como o assorea-

mento e a poluição dos corpos d'água e a diminuição da pene-

tração das águas das chuvas nos solos.

Aspectos relativos a algumas comunidades extrativistas

envolvidas no trabalho da Cooperativa Grande Sertão

Foi realizada uma pesquisa de campo na qual visitou-se

cinco comunidades que fornecem frutos nativos para a Gran-

de Sertão: Abóboras, município de Montes Claros; Água Boa,

município de Rio Pardo de Minas; Vereda Funda, município

de Rio Pardo de Minas; PA Americana, município de Grão

Mogol; e Campos, município de Serranópolis de Minas. Em

cada uma destas comunidades foi aplicado um questionário

semi-estruturado, em reunião coletiva, e realizadas visitas às

suas áreas de coleta.

No processo investigativo, foi possível imergir em diversas

questões que dizem respeito aos potenciais e limitações do

uso sustentável da biodiversidade do Cerrado, trazendo à

tona alguns aspectos relevantes ao debate sobre: a sustenta-

bilidade; a geração de renda para populações pobres do me-

io rural; o fortalecimento de meios de vida sustentáveis no

Cerrado; a conservação da biodiversidade; e a formulação de

políticas públicas concernentes a todos esses temas.

Primeiramente, foi observado que a organização das co-

munidades é fundamental para que a atividade extrativa gere

benefícios socioambientais significativos. A inserção do extra-

tivismo na logística de um empreendimento que busca sua

consolidação no mercado se apresenta como de grande com-

plexidade, devido à imprevisibilidade, dispersão e irregulari-

dade da produção, além do fato de que não há um controle

por parte dos rurícolas sobre o processo produtivo. As comu-

nidades mais inseridas nos projetos do CAA-NM foram aque-

las que apresentaram maior disposição em investir trabalho

na coleta dos frutos do Cerrado.

A questão do acesso às áreas de coleta é também crucial

para se pensar no extrativismo como atividade agrária a ser

incentivada. Foram encontradas situações diversas nas comu-

nidades visitadas: a comunidade de Campos, por exemplo,

tendo reconhecida e titulada toda a extensão territorial que

ocupa, realiza coleta dentro de suas próprias glebas; os as-

sentados do PA Americana realizam coletas em seus lotes e,

no caso do pequi, em fazendas vizinhas; a comunidade de

Água Boa tem como área de produção extrativa uma terra

devoluta, alvo de disputas entre empresas locais; e a comuni-

dade de Abóboras extrai frutos do Cerrado de uma área per-

tencente a uma grande empresa instalada no local.

Em Água Boa, o extrativismo estimulado pela Grande Ser-

tão tem sido o alicerce na luta pela posse de uma significativa

extensão de terras denominada Areão. Esta área, considera-

da “devoluta”, estava já “acerada” (delimitada para o desma-

te) por uma empresa que pretendia o plantio de eucalipto,

quando a comunidade, assessorada pelo CAA-NM, pela Pas-

toral e pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Pardo

de Minas, acionou a Promotoria de Justiça do Município rei-

vindicando a propriedade da área. Atualmente, o Areão se

encontra em processo, junto ao IBAMA, para a criação de

uma Reserva Extrativista, que beneficiará Água Boa e outras

comunidades extrativistas da região.

Pode-se dizer que os extrativistas de Água Boa e região

são os legítimos ocupantes do Areão, cuja destinação à uma

Reserva Extrativista promoveria a justiça social e também a

defesa e proteção do meio ambiente. Vale ainda mencionar

que, sendo o Areão um topo de chapada, ele se configura em

uma área de recarga de lençol freático, e, portanto, de abaste-

cimento de nascentes e corpos d'água da região, o que refor-

ça a importância de sua conservação e uso sustentável.

Já os comunitários de Abóboras coletam frutos do Cerra-

do em uma área de propriedade de uma grande empresa

instalada no local. Existe um acordo entre as partes que per-

mite o acesso dos extrativistas à área. Este acordo, contudo,

foi construído após anos de luta da comunidade, que, em

várias situações, foi prejudicada pelas atividades da empresa

no local. Após diversos embates travados, a empresa assu-

miu uma “postura socioambiental”, e hoje é tida pela comuni-

dade como uma grande parceira. Contudo, seria o caso de se

perguntar: deverá estar a atividade extrativa praticada pela

comunidade sujeita à “boa vontade” da diretoria de uma em-

presa? Que garantias estão asseguradas à perpetuação da

atividade e à integridade dos recursos explorados?

Outra questão que remete à perpetuidade do aproveita-

mento dos frutos nativos é, para autores como Homma

(1989), exatamente o indicativo da tendência inexorável de

extinção do extrativismo: a domesticação e o cultivo das espé-

cies de valor econômico. O que se observa, no entanto, é que

os sistemas de cultivo de frutos demandados pelo mercado

sofrem uma apropriação pelo capital, excluindo do processo

produtivo qualquer preocupação relativa aos aspectos sociais

e ambientais. No caso das comunidades fornecedoras de

frutos do Cerrado para a Grande Sertão, já existem algumas

Geraizeiros do Assentamento Americana voltando das atividades de coleta de frutos do cerrado.

Page 12: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

22 março/2008v. 1 nº 1 23março/2008v. 1 nº 1

iniciativas de plantio das espécies utilizadas, o que pode vir a

solucionar problemas de escala e acessibilidade às áreas de

coleta, sem no entanto ter que se adequar à agricultura de-

mandante de altos investimentos e geradora de impactos

ambientais negativos oriunda da “Revolução Verde”.

Ao refletir a respeito de ações adequadas a essa “domes-

ticação camponesa” dos frutos nativos do Cerrado, deve-se

ter em conta que não interessam os plantios em grandes mo-

noculturas demandantes de insumos externos. Os sistemas

experimentais e agrobiodiversos se apresentam com maior

potencial para a geração dos benefícios socioambientais es-

perados da valorização e aproveitamento da flora nativa.

Existem ainda algumas iniciativas importantes de plantio

de espécies nativas pelos extrativistas, como o plantio direto

de cerca de mil sementes de pequi em Vereda Funda (que

resultou no nascimento de cerca de cem mudas) e o plantio

de cerca de 200 mudas de coquinho no PA Americana. So-

mando-se a isso os plantios dispersos de espécies nativas em

outras comunidades, e os investimentos que estão sendo

feitos pelo CAA-NM na implantação de viveiros (um profissio-

nal e alguns comunitários), tem-se que a recuperação da ve-

getação do Cerrado está sendo potencializada na região. Vale

notar que as sementes oriundas da fábrica de polpas repre-

sentam um grande potencial para a recuperação dessa vege-

tação, ainda pouco aproveitado, mas já inserido nas estratégi-

as de ação futura do CAA-NM e da Grande Sertão.

Pode-se argumentar sobre a tendência de se plantar so-

mente aquelas espécies nativas com aproveitamento direto,

como coquinho azedo e pequi, resultando na recuperação de

um Cerrado menos biodiverso. Contudo, conforme pôde ser

observado no caso das mudas de coquinho plantadas no PA

Americana, já se fazem perceber as vantagens de se preser-

var espécies não utilizadas diretamente, que estão cumprindo

o papel de “viveiro natural”, pois têm protegido as mudas da

incidência direta do sol e do vento. Ainda, o plantio de poucas

espécies nativas em uma área degradada pode tornar seu

ambiente propício para o repovoamento por outras espécies

não plantadas. Isso pode ser presumido devido ao alto poder

de recuperação da vegetação do Cerrado observado por

exemplo em Vereda Funda. Além disso, a agricultura tradicio-

nal Geraizeira também deve influenciar positivamente na recu-

peração da alta diversidade biológica característica do Cerra-

do, por ser biodiversa, e poder incorporar com certa facilidade

os sistemas agroflorestais (SAFs), por exemplo.

Um outro problema que tem causado a erosão da biodiver-

sidade em todo o Cerrado, e talvez em grande parte dos bio-

mas mundiais, é o fogo. Ele é usado há muitos anos por agricul-

tores, com a finalidade de se “limpar” os pastos e a roça. O tra-

balho do CAA-NM em prol da agroecologia já resultou em mu-

danças nas práticas de muitos agricultores, demonstrando a

importância de se preservar o “cisco”, ou seja, a cobertura mor-

ta da roça, ao invés de queimá-la. O uso da biodiversidade nati-

va vem reforçar esta “campanha” contra o fogo, que prejudica

bastante a safra dos frutos do Cerrado. Alguns extrativistas têm

se empenhado nessa “campanha”, valendo-se do argumento

da importância da atividade extrativa para suas comunidades.

Na maior parte das comunidades visitadas, relatou-se uma dimi-

nuição no uso do fogo nos últimos anos.

A criação de gado é outra prática tradicional das popula-

ções rurais do Cerrado, com grande importância econômica.

Em muitos casos, o gado atrapalha a safra de frutos do Cerra-

do, com destaque para o caso do coquinho azedo. No pasto

da fazenda onde a comunidade do PA Americana coleta o

pequi, por exemplo, relatou-se a ausência de mudas e plantas

jovens da espécie, que seriam destruídas pelas roçagens,

gradeamentos, fogo e pelo próprio gado. A população de

pequizeiros da área pode ser caracterizada como uma popu-

lação velha – em poucos anos, pode tornar-se improdutiva. A

viabilidade populacional das espécies aproveitadas em pas-

tos depende, principalmente, do manejo adequado do gado

e das pastagens, e do plantio e proteção de mudas. A criação

de gado também está associada ao fogo, duplicando o prejuí-

zo à atividade extrativa.

De todo modo, essa questão deve ser trabalhada com

cuidado, de modo a não interferir negativamente nas estraté-

gias de sobrevivência incorporadas pelos agricultores mui-

tas vezes há séculos. É importante notar a existência de tra-

balhadores rurais como o Sr. Jair, de Abóboras, que não tra-

balha com gado e se dedica com eficiência ao extrativismo.

Observa-se que, em determinadas situações, o uso da bio-

diversidade pode ser uma atividade mais rentável e mais

sustentável que a pecuária.

É importante que se realize investigações de longo prazo

sobre os efeitos do extrativismo sobre as populações das

espécies coletadas. Em casos extremos, a coleta intensiva

pode exaurir o recurso, comprometendo a regeneração natu-

ral das plantas. Contudo, como foi observado em diversas

situações, os extrativistas dificilmente conseguem aproveitar

todos os frutos de uma árvore, muito menos de uma popula-

ção de tamanho razoável. Em geral, muitos frutos caem no

chão antes da chegada de um coletor, prestando-se à germi-

nação no local ou à alimentação de animais que atuam co-

mo dispersores. Estudos sobre manejo que definam, por

exemplo, percentagens de coleta que garantam a sustenta-

bilidade do extrativismo, são importantes. O CAA-NM já tem

desenvolvido ações nessa linha, como por exemplo aquelas

previstas no projeto Agrobio. Por outro lado, não se deve

superestimar a capacidade da coleta manual de frutos em

prejudicar populações inteiras de espécies nativas, cujos

ciclos são naturais e totalmente adaptados às condições

ambientais locais.

A hipótese do papel de “guardiões” da biodiversidade

assumido pelos extrativistas parece ser corroborada pelo

trabalho. O interesse na conservação de áreas naturais de

Cerrado passa a ser significativo, à medida em que estas

áreas representam uma fonte de renda e qualidade de vida

para suas famílias e comunidade. A vigília contra o fogo e

grileiros, por exemplo, pode ser incorporada à rotina dos

extrativistas que freqüentam com assiduidade áreas de vege-

tação nativa. O plantio de espécies nativas e o zelo pelas

mudas geradas naturalmente também pode ser relevante

para a conservação das áreas. Dessa forma, o aproveita-

mento da biodiversidade pode servir também como uma

vitrine da importância da natureza, influenciando na mentali-

dade de outros trabalhadores rurais e também dos consumi-

dores dos produtos oriundos das espécies nativas. Pode-se

atestar que o trabalho realizado pela Grande Sertão tem con-

tribuído nesses aspectos.

É importante computar os benefícios ambientais globais

que a atividade extrativa sustentável pode induzir, em espe-

cial aqueles relacionados com a manutenção dos ciclos hi-

drológicos e com a fixação dos estoques de carbono. O Cer-

rado é considerado uma grande “caixa d'água”, pois abriga

nascentes, rios e lençóis subterrâneos de onde sai grande

parte da água doce que alimenta algumas das principais

bacias da América do Sul. Desenvolver atividades econômi-

cas que contribuam para a manutenção e a recuperação da

vegetação nativa do bioma é fundamental para manter a

qualidade e a disponibilidade dos recursos hídricos e evitar

impactos advindos do modelo agropecuário predominante,

como o assoreamento e a poluição dos corpos d'água e a

diminuição da penetração das águas das chuvas nos solos.

Da mesma forma, observa-se que a vegetação do Cerra-

do apresenta grande potencial de manutenção de estoques

de carbono, e sua recuperação pode desempenhar um im-

portante papel na fixação de carbono atmosférico, contribu-

indo em grande medida para a redução do efeito estufa no

planeta. Ressalta-se, portanto, a necessidade do desenvol-

vimento de alternativas econômicas que promovam a valori-

zação e a conservação da cobertura vegetal dos ecossiste-

mas do bioma.

Considerações finais

(...) O agronegócio esquenta os bancos internacionais

com o dólar, o euro e a gente pergunta: onde está a vida hu-

mana? Ela está na plantinha que se chama extrativismo, que

é um cuidado de viver com a natureza. Um dia esse povo vai

pedir socorro de uma gota d'água e a gente precisa cuidar

dessa gota d'água, que eles vão gritar socorro e não vão en-

contrá-la. Cuidemos (...), com a singeleza, com o cantar dos

pássaros, com o frescor da sombra de um pequizeiro, com o

nosso Cerrado que faz a nossa caixa d'água. (Irmã Mônica,

depoimento a Dayrell e Santa Rosa, 2006:73)

Estas palavras proferidas por Irmã Mônica, militante

religiosa do norte-mineiro, traduzem um pouco do que es-

te trabalho procurou demonstrar: que o extrativismo no

merenda numa escola em Monte ClarosFuncionários da Grande Sertão entregando

Page 13: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

24 março/2008v. 1 nº 1 25março/2008v. 1 nº 1

Cerrado, entendido como o uso sustentável de sua biodi-

versidade, tem grande potencial para se configurar em

uma alternativa econômica que promova a conservação

dos bens naturais ao mesmo tempo em que gere renda e

qualidade de vida para diversas famílias de diferentes co-

munidades habitantes deste rico bioma – “um cuidado de

viver com a natureza”. A humanidade está vivendo um mo-

mento no qual a busca por estas alternativas pode definir a

sobrevivência da própria espécie humana e da vida no pla-

neta. O modelo desenvolvimentista predominante – que

“esquenta os bancos internacionais” – mostra-se cada vez

mais insustentável, o que torna fundamental a inserção

efetiva de novos valores e novas formas de organização no

rol de ações provenientes da política e da economia inter-

nacional e dos países.

O empreendimento Grande Sertão vem demonstrando

que o uso sustentável da biodiversidade do Cerrado pode

efetivamente contribuir para solucionar três das principais

questões ambientais atualmente em debate: a perda da

biodiversidade, os impactos sobre os recursos hídricos e o

lançamento de carbono na atmosfera. Ademais, gera bene-

fícios sociais e renda distribuídos a um número significativo

de famílias e comunidades pobres da região em que atua,

demonstrando a aliança possível e necessária entre de-

senvolvimento social, econômico e sustentabilidade ambi-

ental. O empreendimento se baseia na economia da agri-

cultura familiar da região, e portanto valoriza a cultura tradi-

cional Geraizeira, além de promover o fortalecimento dos

laços territoriais no Norte de Minas.

Foi evidenciado que a viabilidade de empreendimentos

como este e a geração dos benefícios supracitados reque-

rem organização social e apoios de outras organizações,

sejam elas entidades de assessoria, órgãos públicos ou da

cooperação internacional. Foram apontadas também algu-

ma limitações do empreendimento em seu trabalho com

os produtos extrativos do Cerrado, e ações no sentido de

superá-las são viáveis e têm sido encampadas pela Gran-

de Sertão e pelo CAA.

Não se pretende aqui argumentar que somente o extrati-

vismo pode, sozinho, “salvar” o que resta de Cerrado, mas

sim que ele se constitua em uma atividade estratégica para a

conservação do bioma e a geração de renda e segurança

alimentar em sua região de abrangência. A complexa inser-

ção de agricultores extrativistas em empreendimentos eco-

nomicamente viáveis, com substantivo apoio técnico e orga-

nizacional, possibilita o aproveitamento dos frutos nativos

em maior escala e a abertura de mercados para estes produ-

tos. A partir daí, é importante que a geração de renda de for-

ma amplamente distribuída seja acompanhada da preocu-

pação com a sustentabilidade ambiental da atividade. Dessa

forma, pode-se concretizar alternativas econômicas que

CARRARA, Álvaro A. Cooperativa de Agricultores Familia-res e Agroextrativistas Grande Sertão. Cadernos do CEAS - Centro de Estudos e Ação Social. n. 222, p.79-88, 2006.

D'ANGELIS FILHO, João Silveira. Políticas locais para o "des-envolvimento" no Norte de Minas: uma análise das articulações local e supralocal. Mestrado em Gestão em Desenvolvimento Rural e Agricultura Sustentável, Universi-dad Catolica de Temuco, Temuco, Chile. 142p., 2005.

DAYRELL, Carlos A. Os Geraizeiros descem a serra ou a agricultura de quem não aparece nos relatórios do agrobu-sines. In: LUZ, Claudia; DAYRELL, Carlos. Cerrado e de-senvolvimento: tradição e atualidade. Montes Claros: Cen-tro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, p.189-272, 2000.

DAYRELL, Carlos A.; SANTA ROSA, Helen. Narrando o enredamento das populações do sertão norte-mineiro e do CAA: uma trajetória de 20 anos. Revista Verde Grande, v.1, n.3, p.52-73, 2006.

DIEGUES, Antônio C.; ARRUDA, Rinaldo S. V. (orgs). Sabe-res tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasilia: Minis-terio do Meio Ambiente, 176p., 2001.

GONÇALVES, Carlos W.P. As Minas e os Gerais: breve ensa-io sobre desenvolvimento e sustentabilidade a partir da geografia do Norte de Minas. In: LUZ, Claudia; DAYRELL, Carlos. Cerrado e desenvolvimento: tradição e atualidade. Montes Claros: Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas. p.19-46, 2000.

HIRONAKA, Giselda M.F.N. O extrativismo como atividade agrária. 4ed. Teresina: Jus Navigandi, 2000.

HOMMA, Alfredo K.O. A extração dos recursos naturais renováveis: o caso do estrativismo vegetal na Amazônia. Doutorado em Economia Rural, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa. 575p., 1989.

LASCHEFSKI, Klemens. O comércio de carbono e a certifi-cação: uma "lavagem verde" para as plantações. In: FASE/TNI. Aonde as árvores são um deserto. Vitória: FASE- Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional/ TNI - Transnational Institute. p.22-27, 2003.

LESCURE, Jean-Paul. Algumas questões a respeito do extrativismo. In Emperaire, Laure. A floresta em jogo: o extrativismo na Amazônia central. São Paulo: UNESP/ Imprensa Oficial. p.191-204, 2000.

MIRANDA, Heloísa S.; SATO, Margarete N. Efeitos do fogo na vegetação lenhosa do Cerrado. In: SCARIOT, Aldicir; SOUSA-SILVA, José C.; FELFILI, Jeanine M. Cerrado: eco-logia, biodiversidade e conservação. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. p.93-105, 2005.

MITTERMEIER, Russel A. et al. Hotspots revisited. Conser-vation International, Cidade do México: CEMEX, 2004.

PIERSON, Donald. O homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: SUVALE/ Ministério do Interior, 1972.

SAWYER, Donald; SCARDUA, Fernando; PINHEIRO, Leo-nardo. Extrativismo vegetal no Cerrado: análise de dados de produção, 1980-1993. Brasília: ISPN/CMBBC. 9p., 1999.

Referências Bibliográficas

Quatro anos de impunidadeEm 20 de novembro de 2004, o fazendeiro Adriano Chafik juiz estadual. "Digo, sem medo de errar, que a desapropria-

Luedy e seus jagunços invadiram o acampamento Terra Pro- ção da Nova Alegria diminuirá a violência e o número de con-

metida, no município mineiro de Felisburgo, assassinaram flitos no campo. A partir do exemplo de Felisburgo, será dado

cinco trabalhadores rurais Sem Terra e deixaram mais de 20 um recado aos latifundiários de todo o país", afirmou o Ouvi-

gravemente feridos. O Massacre de Felisburgo, que comple- dor Agrário Nacional, Gercino José da Silva Filho.

ta quatro anos nesta semana, é considerado um retrato da

atualidade da violência no campo, da impunidade da Justiça Ameaças

e da paralisação da Reforma Agrária. Em Felisburgo, os Sem Terra relatam que até ainda so-

Cerca de 230 famílias haviam ocupado a Fazenda Nova frem constantes ameaças de jagunços de Chafik. "Eles fa-

Alegria, considerada zem isso porque sabem do

devoluta pelo Iter (Insti- descaso político com que o

tuto de Terras de Minas caso vem sendo tratado.

Gerais), em 1º de maio Temos certeza de que pode

de 2002. Seis meses de- haver outro massacre se a

pois, o latifundiário Adri- área não for desapropriada.

ano Chafik comandou Será que vamos ter que espe-

pessoalmente o ataque rar por uma nova tragédia?",

às famílias. O fazendeiro argumentou Maria Gomes,

foi preso e posto em li- trabalhadora rural acampa-

berdade por duas vezes, da na fazenda Nova Alegria.

por decisão do STJ (Su- "Já fizemos mais de 20

perior Tribunal de Justi- denúncias de que jagunços

ça), mesmo depois de e pistoleiros estão rondando

confessar a participação o acampamento. Alertamos

na chacina em depoi- as autoridades públicas da

mento. Atualmente, ele aguarda o julgamento do Tribunal do possibilidade de um novo massacre na região, caso não se

Júri de Belo Horizonte, enquanto seus advogados protelam resolvam os três problemas em definitivo: a desapropriação

sua realização. da terra, a indenização das famílias, e a punição dos culpa-

Semanas após o massacre, as famílias voltaram a ocupar dos. E se acontecer de novo vai ser por completa omissão do

a fazenda, onde permanecem até hoje, reivindicando a desa- Estado e governos", avisa Martini.

propriação da área por não cumprir sua função social. a inde- Segundo ele, o quadro de violência contra trabalhadores

nização das famílias que perderam seus familiares e punição sem-terra continua em Minas Gerais. "Há uma rearticulação

dos assassinos. "O massacre de Felisburgo marca quatro das milícias armadas no campo, principalmente de cinco

anos de completa impunidade e abandono dos acampados anos pra cá, pela não realização da Reforma Agrária. Os fa-

na área – que até agora não foi desapropriada. As famílias zendeiros estão se dando ao luxo de rearticular as milícias, já

que perderam seus entes queridos também não foram inde- que também não há nenhuma iniciativa do Estado para coi-

nizadas. Não houve julgamento nem punição aos assassi- bir".

nos", afirma Vanderlei Martini, da coordenação nacional do O MST denuncia também que a Reforma Agrária está

MST. parada em Minas Gerais. "A meta do governo federal nos

Em 2007, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e últimos seis anos, de assentar 14 mil famílias no estado, foi

Reforma Agrária) iniciou o processo de desapropriação da cumprida em torno de 40%, ou seja, apenas 6 mil famílias

fazenda. Depois de completar todo o procedimento com vis- foram assentadas. O governo não cumpriu sua própria meta.

tas à desapropriação, o órgão encaminhou a ação para ser Algumas famílias estão acampadas há mais de 10 anos deba-

assinada pelo presidente Lula. No intervalo entre a conclu- ixo de lona preta. O latifúndio está cada vez mais concentra-

são do trabalho da autarquia e a chancela presidencial, Cha- do, e agora nas mãos de empresas transnacionais", afirma

fik conseguiu uma ordem judicial na capital mineira, que man- Vanderlei Martini.

dou suspender todo o processo. Segundo dados do Incra, 15 mil famílias vivem em 93

Em setembro, integrantes do MST se reuniram em Brasí- acampamentos em Minas Gerais. Do total, mais de 5.000

lia com o advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, estão em 44 fazendas ocupadas. Nas regiões do vale do Mu-

para pedir a apresentação, junto com o Incra, de reclamação curi e Jequitinhonha, são mais de 1.200 distribuídas em oito

ao STF (Supremo Tribunal Federal) para cassar a decisão do fazendas ocupadas.

valorizam as culturas e a biodiversidade do Cerrado, assim

como vem buscando a Cooperativa Grande Sertão.

Page 14: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

26 março/2008v. 1 nº 1 27março/2008v. 1 nº 1

Universidade, extensão e desen vo vimento rural:A experiência da UFLA e do CAV n Vale do JequitinhonhaEduardo Magalhães Ribeiro; Flávia Maria Galizoni; Boaventura Soares de CastroEconomista, professor da Universidade Federal de Lavras, pesquisador CNPq, do Núcleo PPJ/UFLA; [email protected] Antropóloga, do NúcleoPPJ/UFLA; [email protected]. Agricultor, apicultor, técnico do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica; [email protected]

1. Universidade, conhecimentos e soci-

edade

A relação entre universidades e agricultores familia-

res costuma ser muito difícil. Agricultores consideram,

na maior parte das vezes com muita razão, que a pro-

dução científica das universidades tem pouca ou ne-

nhuma serventia direta para eles, porque geralmente

elas se voltam para os grandes negócios rurais e se inte-

ressam muito pouco pelos problemas de produção,

terra ou renda de pequenos lavradores. Embora muitos

pesquisadores e estudantes universitários se interes-

sem por trabalhar com agricultores familiares, acabam

enfrentando muitas dificuldades: da falta de recursos

materiais à inexistência de técnicas apropriadas, do

preconceito à inadequação das metodologias. Às ve-

zes, quando é criada uma boa oportunidade de traba-

lho conjunto entre universidade e agricultores, acaba

fracassando pela falta de continuidade das ações.

Este relacionamento pouco fértil já vem sendo deba-

tido há alguns anos, desde que começaram a ficar evi-

dentes os riscos ambientais e o caráter concentrador

de terras e rendas do modelo de desenvolvimento rural

derivado da revolução verde. A distância entre a prática

dos agricultores e a ciência das universidades traz mui-

tos prejuízos para a sociedade brasileira: a produção

de técnicas adaptadas é reduzida, são formados pou-

cos jovens pesquisadores e extensionistas que com-

preendam as necessidades dos agricultores, o conhe-

cimento tradicional criado pelos lavradores em déca-

das de experimentação é ignorado pela pesquisa cien-

tífica. Um bom relacionamento entre universidades e

agricultores permite reunir saberes diferentes e inovar

em pesquisa e extensão. Mas, para isto, é preciso res-

ponder algumas questões básicas: quem faz a interme-

diação entre agricultores e universidade, quem traduz e

organiza as demandas dos lavradores, quem continua

realizando as atividades de campo depois que a univer-

sidade se retira do lugar?

Desde 1998 o Centro de Agricultura Alternativa Vi-

cente Nica, ong de atuação na área rural do vale do Je-

quitinhonha, e o Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricul-

tura Familiar Justino Obers, Núcleo PPJ, grupo de pes-

quisa e extensão da Universidade Federal de Lavras,

têm partilhado uma experiência de cooperação em

agroecologia. Este artigo é um breve relato do aprendi-

zado.

2. O CAV e o Núcleo

O CAV é uma organização construída e animada por

agricultores familiares, surgida da luta por terra no alto

Jequitinhonha, que foi em parte dirigida pelo legendá-

rio ambientalista e líder camponês Vicente Nica. Da luta

surgiu o Sindicato de Trabalhadores Rurais, e dele sur-

giu o CAV como braço técnico do movimento dos lavra-

dores. Desde 1994 o CAV se dedica a construir siste-

mas produtivos sustentáveis e espaços de comerciali-

zação solidária para a agricultura familiar. Sediado em

Turmalina, o CAV extrapolou os limites do município e

passou a atuar junto ao movimento sindical dos traba-

lhadores rurais e com as agências públicas e da socie-

dade civil da região.

Sua equipe tem 20 técnicos que atuam em três áre-

as. A primeira delas trata dos sistemas agroflorestais,

usando a vegetação para recompor a fertilidade dos

solos e produzir alimentos, atuando com 32 famílias de

agricultores monitores que mantém nos seus próprios

terrenos unidades de demonstração de sistemas agro-

florestais abertas à visitação e debate comunitário. A

segunda área de atuação é água, com ações para con-

servação das nascentes, captação de água de chuvas

(“Programa Um Milhão de Cisternas”, P1MC) ou ações

estruturantes, de educação ambiental para o longo pra-

zo. A comercialização é a terceira área de atuação do

CAV, que neste campo desenvolve produtos - como

frutas desidratadas e alimentos processados – e espa-

ços de comercialização para a produção, por meio de

Amostrador de Uhland: PorosidadeDensidade do solo Trado: coleta de solopara análises químicas e físicas

Page 15: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

28 março/2008v. 1 nº 1 29março/2008v. 1 nº 1

vendas em grandes lotes para o comércio solidário ou

fortalecendo a posição dos lavradores nos mercados

tradicionais, como as feiras livres (consultar Agricultu-

ras, vol 2, número 2, junho 2005).

A Universidade Federal de Lavras é um centro de

pesquisa, extensão e ensino dedicado principalmente

às ciências agrárias. O Núcleo PPJ surgiu em 1998 com

alguns princípios: atuar em parceria com organizações

locais, partilhar conhecimentos, promover intercâmbi-

os entre agricultores e universidade, formar profissio-

nais para trabalhar com a agricultura familiar. Sua equi-

pe de 20 pessoas é formada por estudantes de gradua-

ção em Administração, Agronomia, Biologia, Engenha-

ria Florestal, Veterinária e Engenharia Agrícola, estu-

dantes de pós-graduação, professores.

A integração das equipes do CAV e do Núcleo come-

çou com o apoio recebido da Federação Nacional dos

Estudantes de Administração, FENEAD, que instituía

um prêmio em dinheiro para financiar a cooperação

entre universitários e sociedade civil. Depois vieram

recursos da Universidade Solidária e de pequenos pro-

jetos do Ministério da Educação; sempre eram recur-

sos captados em editais abertos para custear um con-

junto restrito de atividades. Estes apoios foram funda-

mentais para consolidar o relacionamento e definir os

rumos de trabalho do Núcleo com o CAV. A partir deles

a parceria foi construída, solidificou-se, criou métodos

e adquiriu experiência na caminhada.

3. A dinâmica da parceria

No meio rural de Minas Gerais há um ditado: “-Tudo

que é combinado, é barato”; quer dizer: não há surpre-

sas quando existe um bom acordo prévio. Organiza-

ções diferentes que atuam junto precisam atentar para

a sabedoria deste dito popular, porque dinâmicas, obje-

tivos e ganhos precisam ser concertados com muita

clareza. Ao longo do tempo o CAV e o Núcleo combina-

ram quatro normas de procedimento que são essencia-

is para o sucesso da parceria.

Primeiro: é preciso fazer planejamento. As duas or-

ganizações são parceiras, mas autônomas: cada uma

tem sua lógica própria de ação e o planejamento bem

feito é o melhor instrumento para definir pontos de con-

tato entre objetivos comuns. Cada uma tem suas ativi-

dades, mas apenas algumas serão conjuntas; essas

deverão ser conciliadas em termos de propósitos, méto-

dos e, principalmente, agendas.

Segundo: é necessário investir muito na capacita-

ção, porque todo ano as turmas de estudantes são par-

cialmente renovadas, por seleção, para participar do

Núcleo. A capacitação, em parte, serve para moderar a

ansiedade dos estudantes que ingressam, afoitos por

trabalhar com lavradores, animados por um extensio-

nismo muito nobre, mas pouco consistente. É preciso

convencê-los que não poderão contribuir muito com os

lavradores enquanto desconhecerem suas especifici-

dades sociais, produtivas e culturais. No início são os

agricultores que mais contribuem para a formação dos

estudantes, num processo que, meio de brincadeira,

tem sido denominado de “intensão rural” por ser o con-

trário da “extensão rural”: o estudante vai a campo para

aprender com os lavradores e com as suas organiza-

ções.

Terceiro: é preciso muita atenção com os ritmos pró-

prios de cada organização. Há uma certa pressão na

ong por resultados práticos e rápidos; há uma certa

lentidão da universidade para elaborar produtos, seja

pesquisa ou atividades de sensibilização. Nem sempre

resultados de pesquisa, por exemplo, aparecem nos

prazos curtos que a ong precisa deles. Nem sempre,

também, os técnicos da ong podem dedicar a uma reu-

nião com agricultores o tempo que estudantes e pes-

quisadores consideram necessário para aprenderam

“tudo” com aqueles agricultores. Por isso é preciso co-

nhecer as condições objetivas em que o parceiro atua e

respeitar o ritmo que sua atividade pode ter.

Quarto: a avaliação deve ser permanente, porque a

equipe do Núcleo sempre se renova e a equipe do CAV

também incorpora sempre assuntos novos. A avalia-

ção, além de proporcionar o balanço dos avanços e

perdas, serve para partilhar com todos os participantes

o histórico daquele processo, serve para que cada equi-

pe exponha sua interpretação da atividade. Muitas ve-

zes as atividades de campo têm implicações que pes-

soas de fora não percebem: influências na política lo-

cal, por exemplo. A avaliação evita que ações desastra-

das arranhem arranjos locais, sempre muito delicados.

Curso sobreproduçãode mudas

Page 16: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

30 março/2008v. 1 nº 1 31março/2008v. 1 nº 1

4. As dificuldades

No relacionamento entre universidade e ONG algu-

mas dificuldades são, realmente, estruturais.

Uma delas é a falta de tempo para sistematizar as

informações dentro da ONG. A demanda das ativida-

des é muito grande, exige demais dos técnicos, e colo-

car no papel informações precisas acaba sendo muito

custoso. Isso faz com que o processo de aprendizado

seja quase sempre marcado pela informação oral: os

técnicos guardam informações na cabeça e as transmi-

tam aos estudantes nas avaliações de trabalho, num

processo que tem pouca possibilidade de replicação.

Outra dificuldade é a perda constante de estu-

dantes experientes, que concluem seus cursos depois

de alguns anos participando de atividades do Núcleo e

do CAV. Isto é ótimo para quem os contrata para traba-

lhar, porque já tem muita vivência profissional. Mas é

um prejuízo para o Núcleo e o CAV, porque ao fim do

curso o estudante já domina os códigos de convívio

com os lavradores, tem grande experiência em exten-

são e pesquisa, lidera equipes em campo e, principal-

mente, supre o CAV com uma assessoria técnica de

qualidade, formada em três ou quatro anos de aprendi-

zado conjunto.

Além disso, o prazo é um grande problema:

estudantes têm que freqüentar aulas e provas, com pe-

quena possibilidade de substituir cursos regulares por

atividades de campo. Então, se retorna ao ponto de

partida: é necessário planejar, planejar, planejar. Mes-

mo assim, o tempo que sobra para atividades de cam-

po dos estudantes - férias, finais de semana, feriados –

costuma coincidir com os períodos de descanso e féri-

as que a equipe técnica do CAV também precisa des-

frutar.

Entre todas, porém, talvez a maior das dificul-

dades seja o financiamento de longo prazo. Até poucos

anos atrás existiam somente programas de financia-

mento de prazos curtos, 6 ou 10 meses, para integra-

ção de pesquisa/extensão entre universidades e orga-

nizações rurais. Isto colocava os parceiros sob pres-

são: contratavam um financiamento e já precisavam

buscar outro, e freqüentemente não havia edital aberto

que custeasse o tipo de atividade que estava sendo

executada. Uma excelente inovação nesta área foi in-

troduzida pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvol-

vimento Científico e Tecnológico/Ministério da Ciência

e Tecnologia), que a partir de 2001 abriu editais volta-

dos para agricultura familiar, e depois de 2003 melho-

rou ainda mais os editais ao reunir pesquisa com exten-

são nas suas chamadas de projetos. Mas o problema

continua, porque a maioria das agências de fomento

apóia apenas atividades pontuais e em prazos reduzi-

dos, e isso impede que organizações da sociedade civil

e universidades criem relações estáveis de trabalho

conjunto e diversificado.

5. As vantagens

As vantagens para os dois lados, porém, são maio-

res que as dificuldades e compensam todos os percal-

ços que até agora apareceram no caminho.

As vantagens para o CAV estão na possibilidade de

ampliar sua equipe agregando um grupo de estudan-

tes, pesquisadores e extensionistas; significa receber

um setor de pesquisa e formação que atua em sintonia

com suas necessidades de trabalho. Há, também, a

possibilidade de sistematizar experiências agroecoló-

gicas em curso, de explorar com pesquisa aplicada os

temas e áreas em que a ong pretende expandir o traba-

lho, de avaliar os programas de desenvolvimento que

são levados para a região. De resto, acrescenta à sua

uma equipe flexível e sem custos, que pode ampliar sua

capacidade de ação em alguns momentos, como dias-

de-campo, sensibilizações, jornadas de educação de

jovens rurais. Além desses, um aspecto que o CAV tem

considerado muito importante na parceria é a possibili-

dade de instrumentalizar a pesquisa: seu trabalho de

campo passa a ser precedido, acompanhado e sucedi-

do por pesquisas realizadas por uma equipe externa,

que o informam, mas também expandem a informação

para o público que consulta as monografias, disserta-

ções ou artigos científicos produzidos sobre a base de

trabalho do CAV.

As vantagens para a universidade também são imen-

sas, e a maior delas não é exclusivamente sua: é o ga-

nho de toda a sociedade brasileira com a capacitação

de jovens pesquisadores e extensionistas que se for-

mam, ao mesmo tempo, no convívio com famílias rurais

e nas salas de aula. O estudante aprende a valorizar o

saber local sempre que é desafiado pelas particularida-

des do lugar, e valoriza o saber acadêmico a cada vez

que é desafiado a dar uma resposta técnica. Isto ensina

os estudantes a selecionar e organizar rapidamente

seus conhecimentos. Existem outras vantagens: pes-

quisar a mesma comunidade por muitos anos dá ao

pesquisador uma visão rica e complexa do meio rural; a

mediação local dá continuidade, segurança e agilidade

às relações entre universidade e lavradores; a pesquisa

dedicada a um público delimitado cria relações de con-

fiança e co-responsabilidade entre pesquisadores e

agricultores e, sobretudo, permite ao pesquisador com-

preender a dimensão social do seu trabalho.

Há, ainda, um ganho maior em cidadania, quando

lavradores descobrem que universidades podem ter

utilidade prática se as suas organizações influem na

seleção das linhas de pesquisa que efetivamente con-

tribuam para o desenvolvimento rural. A partir daí inte-

ressa a eles, realmente, disputar com as organizações

patronais essas instituições públicas, seus profissiona-

is e seu patrimônio tecnológico.

6. Produtos atuais e futuros

Em oito anos de parceria foram concluídos quinze

projetos de pesquisa e outros estão em andamento,

feitas dezenas de atividades de sensibilização, capaci-

tação, seminários e dias de campo em comunidades e

escolas rurais, escritas vários dissertações, monografi-

as e artigos técnicos. Mas alguns produtos são mais

importantes porque resultam de pesquisa específica

aplicada às demandas locais.

Um deles é o programa de nascentes. Os agriculto-

res demandaram e o CAV propôs ao Núcleo pesquisar

a oferta e as fontes de água nas áreas rurais. A pesquisa

revelou que a maioria das famílias rurais dispunha de

água e conservava como um tesouro suas fontes pró-

prias – as águas pequenas das nascentes. A partir daí

foi construído um programa de conservação de nas-

centes baseado nas famílias, em práticas agrícolas con-

servacionistas e usos múltiplos das áreas fechadas pa-

ra recarga dos mananciais - como apicultura, coleta de

Entrevista Roteiro semi-estruturado abordando as mudanças antes/depois do SAF Resultados apresentados comparando SAFs novos/antigos

Page 17: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

Da preservação das nascentesao desenvolvimento local

O município de Medina, localizado na região do Mé-

dio Jequitinhonha, Minas Gerais, assim como outros

municípios vizinhos, vivencia um grande desafio relacio-

nado aos rumos do seu desenvolvimento. A expansão

desenfreada da atividade mineradora realizada por em-

presas de extração de granitos vem causando enormes

danos ambientais, colocando em risco a permanência

das famílias de agricultores que compõem a maioria par-

te da população rural da região.

A partir da iniciativa de um grupo de agricultores e

agricultoras, que entendiam que o seu futuro estaria

comprometida caso não se mobilizassem para reverter

as tendências de degradação das nascentes em função

da mineração de granito, o Sindicato de Trabalhadores

Rurais (STR) de Medina se sensibilizou e passou a tomar

providências concretas. De forma articulada com asso-

ciações comunitárias do município, o STR procurou esta-

belecer parceiras com outras instituições no sentido ela-

borar e executar uma estratégia para enfrentar o proble-

ma. O Instituto dos Trabalhadores e Trabalhadoras na

Agricultura do Vale de Jequitinhonha (Itavale), uma enti-

dade de abrangência regional, e a Universal Federal de

Lavras foram os primeiros a se comprometer e, por meio

dessa parceria interinstitucional, foi desenvolvido o pro-

33março/2008v. 1 nº 1

Márcio Pereira SilvaColaborador do Itavale

Área degradada porpedreiras em Medina

32 março/2008v. 1 nº 1

frutos do cerrado e plantas medicinais. Alguns anos

depois de implantando o programa, nova rodada de

pesquisa mostrou que comunidades com nascentes

cercadas pelo programa dispunham de muito mais

água por pessoa que aquelas que não as conserva-

vam. No caso, a pesquisa sugeriu o rumo da ação e ava-

liou sua eficácia. Mas não se pode esquecer: a pesqui-

sa foi mediada pelo CAV, que soube traduzir a deman-

da, definir seu objetivo e implantar seus resultados.

Outro exemplo é o programa de apoio às feiras li-

vres. Na busca por mercados para os lavradores do

Jequitinhonha, o CAV e o Núcleo resolveram examinar

a importância das feiras livres em termos de abasteci-

mento, renda e produto. Os resultados da pesquisa

foram surpreendentes: as feiras abasteciam quase 80%

das populações urbanas, geravam mais renda para os

agricultores que as transferências do governo, aumen-

tavam em média 20% o movimento do comércio urba-

no. Esses resultados foram usados para mobilizar la-

vradores, prefeituras, sindicatos, associações e agên-

cias públicas no apoio às feiras, enfrentar com mais

vigor os problemas dos feirantes, oferecer cursos e tro-

cas de experiências entre feirantes de municípios dife-

rentes.

Narrado assim, até parece que foi fácil encontrar

esta parceria; mas não foi, e finalmente é preciso ensi-

nar ao leitor o caminho das pedras: na relação entre

universidade e agricultores familiares, a mediação local

é fundamental. Universidades só conseguem fazer tra-

balhos de longo prazo com lavradores quando existe

uma organização que os conhece; pode ser ong, sindi-

cato, pastoral, associação ou fórum, mas deve ter capi-

laridade e facilitar os diálogos, dar consistência às de-

mandas por pesquisa e saber transformá-las em produ-

tos úteis no dia-a-dia.

Se existe uma boa mediação tudo o mais se torna

possível. E aí, não custa nada fazer mais duas ou três

recomendações que deslanchariam esse trabalho: dis-

ponibilizar financiamentos de longo prazo para integrar

universidades e organizações mediadoras; oferecer

bolsas para fixar jovens profissionais de pesquisa e ex-

tensão ao mesmo tempo nas universidades e organiza-

ções da sociedade civil; estimular redes para trocas de

experiências entre universidades e organizações loca-

is; criar currículos flexíveis para estudantes trocar algu-

mas horas-aula por atividades de campo. Há, aí, um

percurso longo e trabalhoso a ser trilhado, mas há tam-

bém a certeza que é o caminho para construir uma ou-

tra universidade, mais cidadã, mais roceira, localizada

mais perto do Brasil.

Referências Bibliográficas

7. Bibliografia recomendada, produzida na parceria

CAV/UFLA

ASSIS, T. R. de P. “Agricultura familiar e gestão social: ongs,

poder público e participação na construção do desenvolvi-

mento rural.” Lavras, Dissertação (MS), PPGAD/UFLA, 2005.

DANIEL, L.O. “O processo decisório numa organização não-

governamental: o caso do Centro de Agricultura Alternativa

Vicente Nica, CAV, de Turmalina, MG.” Lavras, Monografia de

conclusão de curso, 2000.

FREIRE, A.G. "Águas do Jequitinhonha." Lavras, Dissertação

(MS), PPGA/UFLA, 2001.

GALIZONI, F.M. "A terra construída". S. Paulo. Dissertação

(MS). FFLCH/USP, 2000.

RIBEIRO, E.M. e GALIZONI, F.M. "Água, população rural e

políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha". Ambi-

ente e Sociedade. vol VI, número 1, jan/jul 2003.

RIBEIRO, E.M., CASTRO, B.S., SILVESTRE, L.H., CALIXTO,

J.S., ARAÚJO, D.P., GALIZONI, F.M., AYRES, E.B. “Progra-

mas de apoio às feiras livres e à agricultura familiar no Jequiti-

nhonha mineiro.” Agriculturas, experiências em agroecolo-

gia. V.2, N.2, junho 2005.

Page 18: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

jeto Gestão e Conservação de Nascentes de Medina. A

ação articulada em torno à execução desse projeto criou

as condições para que, com o tempo, outras questões

relacionadas ao desenvolvimento local fossem incorpo-

radas à agenda dessas instituições.

O ponto de partida

O meio rural da região é essencialmente ocupado

por uma agricultura de base familiar, produtora de lavou-

ras diversificadas e de pequenos animais. A principal

fonte de sustento das famílias dos municípios é a produ-

ção própria ou a renda da aposentadoria dos idosos.

Embora a agricultura de Medina enfrente sérias dificul-

dades como resultado do histórico descaso do Estado

com relação à produção familiar, a chegada das empre-

sas de mineração ao município agravou bastante a situ-

ação.

Apesar disso, sob o pretexto de gerar emprego e ren-

da, a extração do granito nas pedreiras de Medina foi

fortemente incentivada, sendo beneficiada pela admi-

nistração municipal com a insentação de impostos por

um período de quinze anos. Atualmente, existem 31 pe-

dreiras distribuídas em diferentes localidades do municí-

pio e, essa atividade está na região há cerca de 20 anos.

Nesse período a mineração já causou danos ambientais

e sociais graves devido à sua exploração desordenada e

sem planejamento.

Para enfrentar a situação, as organizações dos agri-

cultores decidiram fazer um levantamento sobre as con-

dições das nascentes nas ares rurais. Para tanto, conta-

ram com a contribuição de uma turma de alunos do pro-

jeto Semear composta por jovens e adultos das próprias

comunidades.

Após a finalização do levantamento, foi realizado o

Seminário de Gestão das Águas , oportunidade em que

os resultados da pesquisa foram apresentados e debati-

dos. A partir daí, o trabalho foi ganhando uma dinâmica

própria, buscando sempre levar a discussão a outros

espaços, como reunião, seminários e fóruns regionais e

estaduais, além de apresentar reivindicações poder pú-

blico local e organizar passeatas e manifestações.

A sistematização da experiência e seus impactos

Recentemente, o Itavale realizou uma sistematização

sobre a trajetória do trabalho no município. Além de ava-

liar a experiência em si, esse esforço teve como objetivo

fornecer referências para organizações que desejam

promover iniciativas similares em outras regiões, sensi-

bilizar os poderes públicos nas esferas municipais e regi-

onal sobre o potencial do enfoque agroecológico para o

desenvolvimento rural e, por fim, fundamentar a constru-

ção coletiva de alternativas de conservação da natureza,

de modo a influenciar as políticas publicas implementa-

das no Médio Jequitinhonha.

O documento final foi apresentado e referendado

nas próprias comunidades. Foi também apresentado

em um seminário realizado na sede do município que

contou com a participação de cerca de 300 pessoas, a

maioria representantes das comunidades rurais, mas

também de escolas, de organizações parceiras, de ór-

gãos públicos, como o instituto Estadual de Florestas

(IEF), a Empresa de Assistências Técnicas e Extensão

Rural do Estado de Minas Gerais (Emater), e algumas

ONGs que atuam no Médio Jequitinhonha.

Muitos agricultores e agricultoras reconhecem a im-

portância do sindicato nesse processo e o consideram

como uma escola que não tiveram quando jovens, já

que é lá que se mantêm informados “sobre tudo o que

acontece e que seja de nosso interesse”. As associa-

ções comunitárias rurais também têm buscado atuar

contra a degradação do meio ambiente e assegurar a

participação de seus representantes nos conselhos Mu-

nicipais Sociais, Criança e Adolescente, Segurança Pú-

blica) e nos fóruns de abrangência regional e estadual

em que o tema é debatido.

35março/2008v. 1 nº 1

Filó do município de Varzelândia e Joaninha do assentamento Tapera

34 março/2008v. 1 nº 1

Curso de Mudas Nativas no PA SurpresaMedina-MG

Dona Eva - Medina

Família de Lô e João Franco no assentamento Tapera

Gente que faz da agroecologiauma opção de vida

Dona Lizardado quilombode Brejo dos Criolos

Page 19: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

36 março/2008v. 1 nº 1 37março/2008v. 1 nº 1

Povos e comunidades tradicionais movimentam os sertõesde minas gerais: em cena novos sujeitos sociaisCarlos Alberto DayrellTécnico e pesquisador do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, Mestre emAgroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável – Universidade Ibero Americana - Espanha

Neste artigo vamos apresentar a movimentação

que vem emergindo no campesinato regional no

momento em que agricultores familiares passam a

assumir identidades especificas, sejam como gerai-

zeiros, quilombolas, vazanteiros, catingueiros ou

veredeiros. Movimentação onde disputam projetos

econômicos e territoriais que colocam em xeque

programas convencionais como o de reforma agrá-

ria. Movimentação que acontece em uma região on-

de o clientelismo e paternalismo tem uma forte pre-

sença, acentuado pela ação do estado com suas

políticas compensatórias que contribuem para a ma-

aberto à grilagem

(Chaves, 2006).

Saluzinho mor-

reu em 1990 na cida-

de de Itacarambi no

anonimato. Depois

do episódio da resis-

tência isolada na

gruta, percorreu um

longo calvário de

prisões em cadeias

de Minas Gerais,

entre estas a do

DOPS em Belo Hori-

zonte, onde apren-

deu a ler e escrever

com outros presos

políticos, a quem

deixava encantados

com sua história sin-

gular de luta pelo direito à terra. A história de Saluzi-

nho é emblemática e se cruza com outras tantas his-

tórias, algumas conhecidas, muitas outras se per-

dendo nas memórias dos mais velhos que ainda vi-

vem nos sertões de Minas Gerais. Histórias cujos

fragmentos, mas principalmente, a densidade rela-

cionada ao viver dos sertanejos foi capturada pelo

escritor Guimarães Rosa ao romancear a trajetória

da jagunçagem, os conflitos de seus personagens e

também a disputa de projetos, abrindo ao mundo os

sentimentos que ainda hoje transparecem no sertão

norte mineiro.

Em outubro de 1967, após cinco dias de cerco

em uma gruta da região de Cachoeirinha, hoje muni-

cípio de Verdelândia (MG), a policia militar mineira

precisou chamar um comando especial do DOPS,

vindo de Belo Horizonte, para ajudar no combate de

uma perigosa célula comunista que estaria implan-

tando a resistência armada na região norte mineira e

enfrentando as forças públicas. Este reforço, con-

tando com mais quarenta homens, veio a se juntar a

outro vindo do Batalhão de Montes Claros, três dias

antes, e já contava com um pesado arsenal de guer-

ra. Tanta movimentação chamou a atenção da opi-

nião pública, inclusive da imprensa que, ao acom-

panhar o caso, obrigou o estabelecimento de uma

negociação para que os bandidos se entregassem

vivos. Então, após cinco dias de artilharia pesada,

explosões de bananas de dinamite, de gás lacrimo-

gênio e até mesmo incêndio provocado por gasoli-

na esparramada na porta da gruta e, como baixa

entre os policiais, um morto e dois feridos, apareceu

na porta da gruta um vulto esquelético, com o corpo

recoberto de fuligem de carvão e fumaça. A perigo-

sa célula comunista era constituída apenas de um

homem conhecido como Saluzinho armado com

uma garrucha, cujo crime foi o de defender o possei-

ro Teço contra os jagunços a mando do fazendeiro

Oswaldo Antunes. É assim que Luiz Chaves nos rela-

ta na Revista Verde Grande a saga deste camponês

que se insurge contra a violência policial a mando

dos interesses dos fazendeiros que avançavam so-

bre um vasto território até então ocupado por comu-

nidades negras e que encontrava-se desde então

nutenção da letargia social. Movimentação que

acontece em uma das regiões de Minas Gerais onde

a colonização de origem européia primeiramente

fincou os seus pés em meio a comunidades negras

e indígenas e onde campesinato se desenvolveu em

um ambiente constrastivo que favoreceu o desen-

volvimento de agroecossistemas culturais singula-

res e diferenciados. Região que o campesinato en-

frentou e vem enfrentando a subjugação política e

econômica do coronelismo, que aprofunda o pro-

cesso de exclusão quando o estado implanta políti-

cas visando a sua inclusão na dinâmica do capital

global.

Por outro lado, Guzmán & Molina (s/d) ao anali-

sar a matriz sócio-cultural latino-americana à luz do

“Pensamento Social Agrário alternativo” lança um

entendimento de como populações camponesas

com séculos de submissão aos interesses oligárqui-

cos, vivendo em uma aparente letargia social, con-

seguem manter traços significativos de resistência

capazes de emergir em determinados cenários. Se-

gundo estes autores, as formas históricas de domi-

nação política negam as etnicidades profundas com

um marco legal que não reconhece a mestiçagem.

Por outro lado, a heterogeneidade sócio-cultural

das classes oprimidas é portadora de diferentes for-

mas de conflitividade que se mantêm latentes. Esta

conflitividade muitas vezes está associada ao catoli-

cismo popular onde crenças ancestrais sincretizam

religiosidades que podem aportar elementos que

eles denominam de “potencial endógeno de mobili-

zação social”. Em outras palavras, trazendo estas

reflexões a nossa realidade societária, em meio à

aparente calmaria das águas, movimentos até então

subterrâneos podem vir à tona colocando em xeque

a ordem social dada até então como imutável.

À Alvimar e Zilah cuja trajetória nos serve de exemplo com a causa dos povos do sertão

Geraizeiros durante mística na 3ª Conferência

Page 20: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

38 março/2008v. 1 nº 1 39março/2008v. 1 nº 1

Não podemos esquecer que a história de Saluzinho

está relacionada com um anterior assassinato, o do preto

velho Martim Fagundes, fuzilado na cidade de Janaúba

em 1964 quando procurava por providência contra o des-

pejo empreendido pelo coronel Georgino Jorge de Sou-

za, então comandante do 10º Batalhão de Policia Militar

de Montes Claros, defendendo interesses seus e de ou-

tros grileiros no distrito de Cachoeirinha, hoje Verdelândia

(Chaves, 2006).

À esta história de Saluzinho, Alvimar Ribeiro dos San-

tos , nos relata como testemunha ocular dezenas de ou-

tros acontecimentos relacionados com a disputa territorial

que resultaram no assassinato de lideranças campone-

sas: como a de Eloy Ferreira da Silva, morto em dezem-

bro de 1984 no conflito da Fazenda Menino ; Rosalino,

Manoel Fiúza e José Teixeira, lideranças do Povo Xakria-

bá, assassinados em um massacre promovido pelo fa-

zendeiro Amaro em território demandado pela comunida-

de indígena, em fevereiro de 1987; Donato, assassinado

por jagunços na Fazenda Água Branca, município de São

Quilombolas do Nortede Minas durantemanifestação em Brasília

Francisco, em julho de 1989 a mando de Antonio Luciano,

empresário e latifundiário residente em Belo Horizonte.

Casos que se somam com outros inúmeros não relata-

dos, que contaram com a cumplicidade da ditadura militar

instaurada no Brasil a partir de golpe de estado em 1964.

Período a partir do qual se inicia uma grande transforma-

ção no campo brasileiro e que resultou na “modernização

da agricultura” através da denominada Revolução Verde.

Foi quando uma série de programas e projetos, tanto

do governo federal quanto do estadual, passaram a ser

implementados no intuito de “integrar a região na dinâmi-

ca da economia nacional, eliminar os bolsões de pobreza

e combater os efeitos maléficos da seca” (Dayrell, 1998).

A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste –

SUDENE -planeja e executa as políticas governamentais

de estímulos financeiros e fiscais, enquanto o governo do

Estado realiza investimentos públicos em infra-estrutura

básica: estradas, energia e telecomunicações. E promo-

ve, com a RURALMINAS, um amplo processo de regulari-

zação fundiária ao inverso, privatizando terras comunais

dos Xakriabá e de comunidades geraizeiras, veredeiras,

quilombolas e catingueiras, em favor dos fazendeiros e

novos empresários que vêem na região uma oportunida-

de de novos negócios ou mesmo de enriquecimento fácil

frente às ofertas patrocinadas pelo Estado.

Hoje é possível ver os resultados de tal façanha. Com

os investimentos públicos em infra-estrutura básica, na

pecuária de gado de corte, na produção florestal e agricul-

tura intensiva, principalmente via irrigação, a paisagem

regional foi bruscamente alterada: circuitos econômicos

que não estavam amarrados com a lógica do capital fo-

ram paulatinamente desestruturados; os territórios tradici-

onais invadidos pelas grandes fazendas e empresas rura-

is; e a rica biodiversidade e agrobiodiversidade substituí-

da pelos plantios homogêneos de eucalipto, capins, algo-

dão e bananas entre outros. Acrescente-se a estes a de-

gradação dos ecossistemas locais – cerrados, mata seca,

caatinga e amplos refúgios de mata atlântica, e a deterio-

ração dos recursos hídricos regionais provocados pela

alteração do delicado equilíbrio hidrológico mantenedor

de uma extensa rede hidrográfica. A resistência campone-

sa era rapidamente silenciada com assassinatos, expul-

são violenta, oferta de barracos ou lotes nas cidades.

No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, em defe-

sa dos direitos dos camponeses expropriados, o movimen-

to sindical cresce na região, animados pelas CEBs e CPT. É

neste contexto que emergem personagens como Saluzi-

nho, Jader de Paula, Senhorinha, Antonio Inácio, Rosalino,

Bui, Eloy Ferreira. E não se poderia dizer que esta resistên-

cia estivesse isolada do contexto nacional que se vivia na

época. Antonio Inácio, antes de 1980, ao abandonar o oficio

de tropeiro na linha de comércio entre a cidade de Januária

e os veredeiros e geralistas que habitavam as cabeceiras

dos rios Carinhanha , Pardo, Pandeiros e córrego do Gibão,

ajuda a criar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ja-

O Norte de Minas no contexto do Desenvol vimento Regional...ou como a Revolução Verde encontra e en frenta um adversário inesperado: Saluzinho

nuária. O ofício de tropeiro, tão antigo quanto a história da

ocupação colonial, decaiu com as rodovias que iam sendo

abertas para viabilizar a ocupação de terras supostamente

desocupadas. Estas são tomadas pelos gaúchos no antigo

distrito de Serra das Araras , ou pelas empresas refloresta-

doras nas vastas chapadas arenosas situadas na margem

esquerda e direita do rio São Francisco, em cima de terras

griladas ou regularizadas pela RURALMINAS. Antonio Iná-

cio, católico convicto, leitor da Bíblia, mas também de todos

os livros e jornais que lhe caiam em mãos, ingressa no movi-

mento sindical e, em 1980, no emergente Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, cujas raízes no sul

do Brasil se espalham levando esperanças às milhares de

famílias que vão perdendo suas terras em função do avanço

do latifúndio. Passa então a percorrer as comunidades de-

fendendo os direitos dos camponeses que resistem à grila-

gem das terras. Através do movimento sindical se torna ami-

go íntimo de Eloy Ferreira da Silva, sindicalista como ele no

município de São Francisco. Juntos, desenvolvem uma lei-

tura crítica sobre a região norte mineira e a vão divulgando

por onde passam ou são chamados, pois segundo Eloy,

suas ações não continham fronteiras: “no lombo de um bur-

ro onde estiver um trabalhador, lá estarei defendendo” . Nes-

te tempo Antonio Inácio divulga suas idéias em uma coluna

semanal de um jornal local e que depois é publicado como

livro intitulado “O Reino do Latifúndio”

Mas os ares da opressão explicita foram aos poucos

mudando. Com a nova Constituição do país, fruto das arti-

culações da sociedade civil brasileira durante o processo

constituinte, os povos e as comunidades tradicionais, não

apenas as indígenas, mas também outras, começam a

emergir no cenário agrário brasileiro com feição diferenci-

ada da até então vivida. Nos sertões de Minas, rompendo

com a invisibilidade que foi fundamental em garantir suas

estratégias de reprodução social, tanto as populações

negras passam a reivindicar o direito à terra ancestral, co-

mo as populações das vastas chapadas onde os cerrados

dominam, o direito à terra comunal, ambas imprescindíve-

is para preservação do patrimônio imaterial de que são

portadores (Costa, 2005).

Page 21: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

40 março/2008v. 1 nº 1 41março/2008v. 1 nº 1

Outras estratégias visando à reprodução material e

social das famílias rurais norte mineiras foram instituí-

das desde esse período e, dentre elas, a articulação

com entidades e organizações que se posicionaram a

favor das categorias rurais excluídas dos processos

sociais verificados regionalmente. É neste contexto

que é criado, a partir de 1985 a organização que veio

se chamar Centro de Agricultura Alternativa do Norte

de Minas . Durante os anos 1990 o Fórum Regional de

Desenvolvimento Sustentável foi um dos espaços on-

de o CAA, a CPT, CUT, FETAEMG e Sindicatos de Tra-

balhadores Rurais promoviam debates e ações em

torno do desenvolvimento regional, se posicionando

em favor de novas perspectivas societárias, que não a

de subordinação aos ditames do capital e à lógica da

revolução verde. O CAA, assim analisava o contexto

regional:

O “desenvolvimento” ocorrido no norte mineiro não

levou em conta a existência de uma diversidade de popu-

lações rurais que, historicamente, desenvolveram estra-

tégias sensíveis no manejo dos recursos naturais, como

o aproveitamento das potencialidades de distintos habi-

tats, uso de variedades genéticas de plantas desenvolvi-

das e adaptadas aos diferentes agroambientes e no apro-

veitamento intrínseco da biodiversidade presente na flora

nativa. Pelo contrário, afetou as bases de sustentação e

de reprodução social dos grupamentos humanos, desig-

nados genericamente como pequenos produtores rurais,

deixando-os ainda mais frágeis frente às adversidades

climáticas da região (CAA NM, 2005).

Esta articulação se conecta aos cerrados brasilei-

ros através da REDE CERRADO, constituída em 1992

durante a ECO 92, na qual lideranças camponesas da

região tiveram uma participação expressiva, assim

como pelo semi-árido, inicialmente com o movimento

ambiental e cultural em torno do rio São Francisco, ao

ser constituída a “Associação Pra Barca Andar” e, pos-

teriormente, a Articulação do Semi-árido – ASA. Ao

mesmo tempo, amplia-se a interação com setores liga-

dos à pesquisa, com professores e estudantes pas-

sando a dedicar o olhar para o entendimento da com-

plexidade ecossistêmica e cultural da região que, pelo

seu caráter de transição de ecossistemas, de clima,

com ambientes e paisagens diferenciadas e singula-

res abriga em seu interior uma ampla diversidade cul-

tural.

A constituição da Cooperativa Agroextrativista

Grande Sertão no final dos anos 1990 promovida por

um grupo de extrativistas e agricultores de origem

camponesa apresenta-se como uma iniciativa econô-

mica diferenciada. Insere-se em circuitos econômicos

da agricultura camponesa até então invisíveis às políti-

cas públicas, como o do extrativismo associados aos

cerrados e caatinga junto com o aproveitamento de

frutíferas cultivadas de forma generalizada nos quinta-

is. Em pouco tempo amplia-se a articulação com ou-

tras iniciativas também econômicas envolvendo comu-

nidades geraizeiras, veredeiras, catingueiras, quilom-

bolas e com o povo Xakriabá, que passam também a

dialogar em outros espaços de articulação regional,

nacional e até mesmo internacional como, por exem-

plo, com o movimento Slow Food.

Mais ainda. As lutas isoladas que aconteciam de

extensas famílias designadas genericamente como

posseiras localizadas em diferentes ambientes e con-

textos sócio-econômicos e culturais, sejam de comu-

nidades negras como as que se verificaram em Ca-

choeirinha no começo da década de 1960, ou as en-

volvendo comunidades geraizeiras e veredeiras nos

municípios de São Francisco e Januária, ou comuni-

dades catingueiras nos municípios de Varzelândia,

tomam um novo fôlego quando se descobrem porta-

doras de distintas geo-histórias (Dangelis Filho, 2005).

Assim, o Povo Xakriabá consegue a demarcação de

parte de seu território e continua mobilizado na con-

quista de áreas que ficaram de fora, ao mesmo tempo

em que assumem no pleito de 2004 o destino político

do município em que são maioria populacional e elei-

toral. Em Brejo dos Crioulos uma acirrada e perma-

nente luta da comunidade quilombola, após o seu re-

conhecimento pela Fundação Palmares, leva o INCRA

MG a elaborar e publicar o “Relatório Técnico para

regularização de território quilombola” . Na região do

Alto Rio Pardo comunidades geraizeiras insurgem

contra a perda de seus territórios tradicionais e inves-

tem na retomada articulando-se com a Via Campesi-

na. Em poucos anos duas áreas anteriormente ocupa-

das pela monocultura do eucalipto – Muselo e Vereda

Funda - são retomadas iniciando-se a execução de

um projeto de reconversão agroextrativista. Nas am-

plas baixadas sanfranciscanas, território onde con-

centram centenas de comunidades negras e, ao lon-

go do rio São Francisco, onde concentram outras tam-

bém centenas de comunidades vazanteiras, inicia-se

uma insurgência contra o encurralamento dos cam-

poneses pelos grandes projetos agropecuários ou

pelos parques – Unidades de Conservação de Prote-

ção integral - que são criados como compensação

ambiental destes mesmos grandes projetos e que inci-

dem em seus territórios tradicionais.

Diferentes movimentos de luta pela terra inserem-

se nestes distintos ambientes colocando em cena a

gravidade da questão agrária regional. Novos assen-

tamentos de reforma agrária são criados, alguns deles

com peculiaridades como o Assentamento America-

na no município de Grão Mogol e que propõe um mo-

delo diferenciado de ocupação das terras consideran-

do os usos e manejos dos ambientes desenvolvidos

pelas populações tradicionais dos gerais. Ao mesmo

tempo, percebendo-se detentores de uma grande

Vazanteiro remando nas águas do São Francisco

Page 22: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

42 março/2008v. 1 nº 1 43março/2008v. 1 nº 1

diversidade genética associados aos seus cultivos

tradicionais de alimentos, fibras e óleos movimentam

ações de valorização da agrobiodiversidade local, esti-

mulando a produção e melhoramento das sementes

locais denominadas de crioulas e organizando feiras

regionais de sementes.

Em 2006, após uma série de lutas iniciadas ainda

no final dos anos 1980, o Assentamento Tapera locali-

zado em Riacho dos Machados sedia um encontro

convocado por lideranças geraizeiras que vinham par-

ticipando da construção da Política Nacional de Povos

e Comunidades Tradicionais . Este encontro, que veio

a se denominar de I Conferência Geraizeira, reuniu as

lideranças mais expressivas de suas comunidades

que vivem nos altiplanos da Serra Geral, divisor de

águas de três bacias hidrográficas: São Francisco,

Pardo e Jequitinhonha. Abrem o diálogo em torno da

constituição de suas identidades e colocam como

principal meta a luta pelo reconhecimento de seus

territórios tradicionais Esta conferencia se soma a ou-

tras que passaram a ser realizadas, a partir de então,

em diferentes localidades e envolvendo diferentes ca-

tegorias populacionais, engrossando um caldo de

luta que extrapola os limites convencionais de acesso

à terra via assentamentos rurais cujos procedimentos

formalizados revelam-se insuficientes frente às comu-

nidades que reivindicam a reapropriação de seus terri-

tórios tradicionais usurpados pelo Governo do Estado

de Minas décadas atrás, ou pela grilagem promovida

pelos grandes empreendimentos florestais.

Durante a II Conferencia Geraizeira, realizada na

comunidade de Vale do Guará, município de Vargem

Grande do Rio Pardo, publicam e divulgam a Carta da

Conferencia que é apresentada no box a seguir:

Muitos anos passaram, na

história do Brasil, dos povos que

desbravaram o sertão, muito se

contou dos fazendeiros com

suas boiadas, do poder dos coronéis, mas muito pouco se

contou dos povos do sertão, dos que nos gerais sem fim, ali

fincaram suas moradas, uma terra de pouca serventia: diziam

que suas terras eram fracas e seu mato de madeira branca.

Pois foi nestas terras, nestes Gerais de pouca serventia que

fomos buscar refúgio. Ao longo dos séculos, com o conheci-

mento que herdamos de nossos irmãos, índios, dos negros

que fugiram do cativeiro em busca de liberdade, de campone-

ses pobres que vieram da Europa em busca de sossego, fo-

mos aprendendo a cultivar estas terras, a viver do sustento do

cerrado, de seus frutos, com os seus remédios, de sua caça,

de seus peixes. Mesmo com muitas dificuldades de acesso a

terra, do jugo dos coronéis, com este aprendizado, nós fomos

criando nossas famílias, desenvolvendo nossas comunidades,

sustentando o movimento das feiras e dos mercados, alimen-

tando uma grande população que dependia dos nossos produ-

tos. Nos chamavam de Geraizeiros, em outros de Geralistas, por-

que vínhamos dos Gerais, porque vivíamos nos Gerais. Com os

Gerais aprendemos a conviver. Nós, o Povo Geraizeiro, somos um

povo agroextrativista. Vivemos das roças, das criações, do extrati-

vismo do cerrado. Também somos extrativistas.

Uma história que não podemos esquecer

Durante as décadas de 1970 e 1980 o nosso território foi violen-

tamente expropriado pelas grandes empresas e fazendeiros para

implantação de grandes monoculturas de eucalipto e fazendas de

gado. Tal situação foi possível pelas políticas do Governo do Estado

de Minas Gerais e do Governo Federal que consideraram as terras

da população geraizeira como devolutas, terras de ninguém, terras

sem uso. A Assembléia Legislativa e o Congresso Nacional foram

coniventes e quase um milhão de hectares de nossas terras foram

alienadas (vendidas) ou arrendadas pelo governo às grandes em-

presas de eucalipto. Para as elites o Povo Geraizeiro não valia na-

da. Mas éramos nós que abastecíamos os mercados com alimen-

tos, com as frutas nativas, com plantas medicinais. E o nosso jeito

de trabalhar a terra sempre conservou os cerrados, suas águas,

CARTA DO POVO GERAIZEIRO AOS GOVERNOS

DO ESTADO DE MINAS GERAIS E DO BRASIL

seus animais.

Hoje vivemos uma situação de calamidade: nossos águas seca-

ram, córregos, nascentes e rios entupiram de areia, nossas matas

foram devastadas, nosso povo empobreceu. Passamos a viver en-

curralados: pelas grandes reflorestadoras e fazendeiros que nos

tomaram as chapadas, e também pelas grandes barragens que vem

nos expulsando das grotas e vazantes.

Mas não estamos parados. Já demonstramos o valor de nossa

cultura, aproveitando e conservando a biodiversidade dos cerrados,

que vale muito mais do que o carvão, do que o ferro, o aço, a celulo-

se, estes produtos e subprodutos que se sujam porque carregam o

sangue de nosso sofrimento. Já apresentamos nossas propostas

tanto para o Governo Estadual quanto o Federal. Queremos nossas

terras de volta. Queremos recuperar as águas, as matas, voltar com

os bichos viventes. E nesta luta não estamos sozinhos. Temos do

nosso lado as nossas associações, as igrejas, pastorais, os sindica-

tos e federação dos trabalhadores rurais. Muitas organizações e

movimentos de Minas Gerais e do Brasil estão do nosso lado, apoi-

ando a nossa luta como a ACEBEV, CAA, a Cooperativa Gran-

de Sertão, a CPT, o MST, o MPA, o MAB, o NASCer, as

CARITAS, MASTRO, FEAB, Estudantes da UFMG,

UNIMONTES, UFF, Grupo Teatral Pirraça em Praça, Irmã

Maria e muitas outras organizações.

A Conferência Geraizeira propõe

Reunidos na Comunidade Vale do Guará, município de

Vargem Grande do Rio Pardo, norte de Minas Gerais, 350

geraizeiros e geraizeiras oriundas de 40 comunidades e 16

municípios durante a II Conferência Geraizeira discutimos e

apresentamos as nossas propostas.

Cada comunidade discutir com o seu povo o seu território.

Demarcar o seu território.

Fiscalizar o território: não deixar que plantem mais a mono-

cultura do eucalipto, que desmatem o cerrado, que degradem

os recursos hídricos. Fazer denncia´s, fazer empates, buscar

apoio das organizações parceiras e movimentos que estão do

Tambores quilombolas

Page 23: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

44 março/2008v. 1 nº 1 45março/2008v. 1 nº 1

nosso lado.

Cobrar do Governo do Estado a devolução das terras que foram

arrendadas para empresas reflorestadoras. O movimento dos traba-

lhadores rurais do Alto Rio Pardo tem um projeto para estas áreas

denominado: Programa de Reconversão da Monocultura para o Agro-

extrativismo. Vamos exigir a sua implantação.

Vamos exigir do Governo do Estado e da Assembléia Legislativa

a Extinção da PEC sobre Terras Devolutas. O PEC é um Projeto de

emenda constitucional elaborado por deputados entreguistas e pelo

Governo Aécio que querem legitimar a doação de nossas terras para

os empresários e fazendeiros.

Vamos aprimorar as nossas propostas para o Território Geraizeiro

e buscar o seu reconhecimento através da nossa participação na

Comissão Nacional de Populações Tradicionais e em outros espaços

de políticas públicas do município, do estado e da união.

Vamos organizar as nossas propostas em um projeto regional

camponês que vem sendo articulado pela Via Campesina de Minas

Gerais

Vale do Guará, 14 de janeiro de 2006

Assinam esta carta:

Geraizeiros das comunidades de:Assentamento Tape-

ra; Barreiro; Bem Finca; Boa Vista; Brejão; Brejo; Caatinga;

Cachoeira Um; Caiçara; Catanduva; Cedelo; Corgo Verde;

Córregos; Curral Novo de Muzelo; Fazenda Buracos; Fa-

zenda Cercado; Fazenda Furnas; Fazenda Peri Peri; Fa-

zenda Pindaíba; Fruta de Leite; Furna; Lagoa de Pedra;

Lagoa Grande; Lagoinha; Mucambo; Mucambo da Onça;

Mumuca; Muquem Um; Muselo; Onça do Mato; Padre Cân-

dido; Raiz; Riachão; Ribeirão do Jequi; Roça do Mato; Sal-

gueiro; Salina; São Bartolomeu; São João; São José das

Contendas; Simão Guedes; Sitio Novo; Taboquinha; Tam-

buril; Tapera; Vale do Guará; Vargem da Salina; Vargem

Grande; Vereda Funda; Organizações: Cáritas Janaúba;

CAA; Cooperativa ; rande Sertão; Estudantes UFMG,

UNIMONTES, UFF, CEFET; FEAB; Grupo Teatral ; irraça

em Praça; MAB; Mastro; MST; NASCER; Povo Xakriabá;

STRs; Equipe do Território Alto Rio Pardo;

Da mesma maneira, comunidades quilombolas

em articulação com a comissão regional de povos e

comunidades tradicionais também promovem en-

contros específicos – resumindo suas principais rei-

vindicações em Cartas que são encaminhadas aos

governos federal, estadual e municipais. A I Confe-

rencia Quilombola, realizada nos quilombos do Guru-

tuba e de Brejo dos Crioulos entre os dias 17 a 20 de

janeiro de 2006 publicou ao final do encontro a carta

que apresentamos no BOX a seguir:

Para poder vivermos aqui neste grande vale dos rios Verde

Grande, Gurutuba, Arapuim e São Francisco, no meio das matas

e caatingas, tivemos que ficar escondidos durante muito tempo,

desde quando o Matias Cardoso veio para cá há quase quatro

séculos. Ele veio para prender e exterminar os negros que subi-

am o rio São Francisco, que aqui chegavam pelas estradas dos

tropeiros, fugindo da escravidão. Aqui ficamos muito tempo, rece-

bendo nossos irmãos até mesmo depois que os negros foram

alforriados, pois quando isso aconteceu nossos irmãos não ti-

CARTA DOS QUILOMBOS PARTICIPANTES DA I CONFERÊNCIA QUILOMBOLA DO NORTE DE MINAS

“...Na época de 69 (1969) chegou um Zé Cido, que disse que Moacir tava vendendo umas terras

aqui... ai, ai, ai! ! ! não tinha terras de Moacir para vender aqui não...” (Sr. Júlio, Taperinha)

nham onde ficar, não tinham garantia da integridade de suas

famílias. E nós os recebíamos, nosso povo foi crescendo livre,

pois aqui, por causa da malária, os brancos não chegavam.

Então vieram os fazendeiros, os coronéis, os cartórios, veio a

Ruralminas, e começaram a fazer documentos das terras onde

vivíamos, vender nossas terras, tirar nossa gente do lugar. Como

exemplo podemos citar a luta do povo de Cachoeirinha que foi

despejado pelos fazendeiros com o apoio do governo militar e

que aconteceu aqui do lado de Brejo dos Crioulos onde estamos

hoje. Foram muitos os casos de violência que ocorreram nesta

expropriação, muitos de nossos irmãos foram assassinados,

tiveram suas casas e lavouras destruídas, seus animais mortos,

sendo obrigados a saírem fugidos de suas terras, como o acon-

tecido com Dona Lizarda Pinheiro da comunidade de Araruba.

Depois veio a SUDENE financiando com dinheiro público

subsidiado estas grandes fazendas, o desmate de grandes

áreas, abrindo estradas onde já vivíamos há muitos séculos.

Veio a CODEVASF construindo a Barragem em São José do

Gurutuba dizendo que ia perenizar o rio, mas foi o que acabou

de acabar com o nosso rio Gurutuba e com os seus peixes,

pois suas águas hoje só correm até onde irrigam as monocultu-

ras de banana.

Hoje estamos nesta grande luta para termos reconhecidos

os nossos direitos. A cultura negra, o braço negro que abriu o

campo no Brasil ao longo de sua história, construiu riquezas, foi

sendo deixado de lado. Mas agora estamos entendendo mais os

nossos direitos e da obrigação de nossos governantes dos muni-

cípios, do Estado e da União. Por isso realizamos esta I Confe-

rência Quilombola no Norte de Minas Gerais. Viemos de diversas

regiões onde vivem os nossos irmãos e irmãs de quilombo. Fo-

mos recebidos com muita alegria pelas comunidades Gurutuba-

nas e de Brejo dos Crioulos desde o dia 17 de janeiro de 2007.

Reunimos 280 pessoas de 27 comunidades e 18 municípios.

Tivemos a visita de nossos companheiros do Quilombo de Ivapo-

runduva do Estado de São Paulo. Recontamos a nossa história,

as nossas iniciativas para sermos reconhecidos, as nossas lutas

pela reapropriação de nossos territórios, ouvimos de represen-

tantes do Governo Federal as políticas que estão sendo imple-

mentadas em nosso favor. Vimos que temos algumas conquistas

em algumas comunidades, de acesso à água, de educação,

energia elétrica. Mas as dificuldades que enfrentamos são mui-

tas. Vivemos uma realidade de grande descaso dos poderes

públicos.

O que temos a dizer é que muito do que se fala só está no

papel ou nem no papel está. Nós demos agora mais um voto

aos nossos governantes e nós estamos de olho, não estamos

mais escondidos, não estamos dispostos a ficar sendo tapea-

dos com promessas, com conversas que voam como cascas

de alho. Muitos dos políticos que foram eleitos estão atenden-

do apenas os interesses dos latifundiários e das grandes em-

presas. Isso fica muito claro quando um grupo de deputados

da Assembléia Legislativa (como Gil Pereira, Ana Maria Re-

sende, Arlen Santiago, Carlos Pimenta e outros ), com a coni-

vência do Governador Aécio Neves e do ITER propôs um Pro-

jeto de Emenda Constitucional – PEC das Terras Devolutas –

que pode transferir terras publicas para fazendeiros e empre-

sários em vez serem utilizadas para regularizar o nosso territó-

rio.

Isso fica muito claro quando o Judiciário toma decisões

para nos despejar de nossas áreas ancestrais tratando nossa

luta apenas como conflito fundiário, sem considerar os artigos

215, 216 e o artigo 68 dos Atos das Disposições Constituciona-

is Transitórias da Constituição Federal nem o Decreto 4.887 de

2003 que nos garante a propriedade definitiva de nosso territó-

rio e obriga o estado a emitir o título. Isso fica claro quando um

órgão público como o IEF elabora um laudo em favor do fazen-

deiro Albino José Fonseca dizendo que a propriedade que ele

diz que é dele é um exemplo de preservação ambiental quan-

do na verdade, além de grilar terras públicas, promoveu uma

grande destruição nesta área que é nossa. E não é só este que

está provocando estas destruições. São muitos os fazendeiros

intrusos nos nossos territórios que estão aproveitando a omis-

são do governo, do IEF, da Policia Florestal, e vendendo ilegal-

mente as madeiras de lei como as aroeiras, abrindo carvoei-

ras, tudo para deixar nossa terra arrasada.

Por tudo isso, a nossa grande luta agora é a retomada de

nossos territórios que dependem da titulação definitiva a ser

dada pelo INCRA, conforme prevê a constituição da república.

O INCRA é o nosso grande entrave hoje. Apesar do decreto

4.887 de 2003, da instrução normativa 20 que orienta e prevê

os procedimentos para titulação dos territórios quilombolas, o

INCRA continua lerdo para cumprir a sua missão.

Diante deste quadro exigimos:

O nosso reconhecimento como categoria jurídica de comu-

nidades remanescentes de quilombo;

Agilização imediata pelo INCRA de todos os processos de

titulação demandados pelas comunidades quilombolas;

Fiscalização imediata dos desmatamentos, carvoarias que

estão funcionando ou sendo implantadas pelos fazendeiros e

empresas agropecuárias nas áreas inseridas nos territórios

quilombolas;

Extinção definitiva da PEC das Terras Devolutas e elabora-

ção de um instrumento jurídico no âmbito estadual que viabili-

ze a titulação de nossos territórios.

Brejo dos Crioulos, aos vinte de janeiro de 2007

Page 24: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

46 março/2008v. 1 nº 1 47março/2008v. 1 nº 1

Finalmente, comunidades vazanteiras que vivem

ao longo do rio São Francisco que já haviam realiza-

do um primeiro encontro na Ilha da Ingazeira, MG,

em maio de 2006, outro na Comunidade Esperança

no município de Serra do Ramalho, Bahia, em 2007,

realizaram, na Ilha da Ressaca em setembro de

2008, um encontro articulando moradores de 32 co-

munidades vazanteiras. Neste seminário estava en-

volvida uma rede social de solidariedade à luta dos

Vazanteiros. Ao final foi apresentada uma carta aber-

ta à população nacional, em que foram apresenta-

das suas proposições. Veja no BOX a seguir:

Nós vazanteiros do mé-

dio São Francisco entre Ja-

nuária e Carinhanha vivendo nas ilhas, vazantes e mar-

gens do rio da integração nacional, vimos a público afir-

mar a nossa etnicidade vazanteira que contribui para a

formação da nacionalidade brasileira em sua diversida-

de. Temos uma história cuja raiz remonta aos povos indí-

genas que aqui viveram antes da chegada dos brancos.

Com a vinda dos negros que se aquilombaram no interior

do país e outras populações desclassificadas no período

colonial-imperial, nossos antepassados instituíram um

modo de vida alicerçado na convivência com os ecossis-

temas sanfranciscanos - cerrado, caatinga, mata seca e

floresta tropical úmida - no estabelecimento de relações

de reciprocidade e solidariedade com os seres humanos,

os seres dos rios e matas.

Em nosso modo de vida construímos um sistema de

produção que articula agricultura de vazante, sequeiro e

lameiro, caça, pesca, extrativismo e a criação de animais

de pequeno e grande porte. Nesse sistema manejamos

um conjunto de ambientes na terra firme, nas ilhas e no rio.

Na terra firme, o extrativismo vegetal e animal, criação de

animais na solta e agricultura de sequeiro e vazante e a

pesca artesanal nas lagoas criadeiras. Nas ilhas, pratica-

mos agricultura de vazante nos lameiros, criação de pe-

quenos animais e pesca nos baixios. E no rio, historica-

mente, realizamos a pesca. Temos como ética que norteia

nossas relações a abertura para o chegante, ou seja, aque-

las famílias que historicamente transitam pelos ambientes

vazanteiros ao longo do rio São Francisco.

A nossa territorialidade inscreveu no espaço médio

sanfranciscano múltiplas significações, diversos aconteci-

mentos históricos que alimentam o nosso sentido de per-

tencimento a um lugar específico, onde se localizam nos-

sas comunidades. O território de cada comunidade tradici-

onal vazanteira se constitui no complexo: lagoas criadeiras

- terra firme – rio pequeno – ilha – rio grande – terra firme.

Reunidos na Ilha da Ressaca, município de Matias

Cardoso/MG, para discutirmos nossa realidade, afirma-

mos a nossa especificidade étnica, ética e territorial.

Sabedores de nossos direitos, conferidos pela Con-

venção 169 da OIT, pelos artigos 215 e 216 da Constitui-

ção Federal de 1988 e artigo 68 do ADCT, pelo Sistema

Nacional de Unidades de Conservação, pelo Decreto Fede-

ral 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que regulamenta a

Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Po-

vos e Comunidades Tradicionais, exigimos:

- o reconhecimento da anterioridade de direitos de

domínio das comunidades quilombolas sobre os seus

territórios;

- prioridade da concessão de uso das terras União nas

margens do rio São Francisco às comunidades tradiciona-

is vazanteiras;

- revitalização do rio com pleno acesso aos seus recur-

sos para os pescadores artesanais que vivem em comuni-

dades tradicionais vazanteiras;

- preservação do cerrado e caatinga por meio do seu

reconhecimento como biomas nacionais (PEC 131/2003);

Ilha da Ressaca, Matias Cardoso/MG, 23 de setembro de 2008.

CARTA DA ILHA DA RESSACA

O que marca toda esta movimentação é a entrada

em cena de populações vivendo em comunidades

que reivindicam não apenas a terra, mas o direito de

serem reconhecidas como detentoras de uma cultu-

ra própria, uma maneira diferenciada de ver e agir no

mundo. Que possuem uma economia que considera

outros valores que não o lucro ou a exploração do

trabalho, um jeito diferente de usar e de manejar os

ambientes cujo lastro é o conhecimento construído

na ancestralidade: eu saí por ai, por muitos lugares,

mas voltei, tenho lá meu cantinho, minha vontade é

de viver do jeito que vivia antes. As pessoas querem

ter o direito de ser como são, de ser respeitado como

o vazanteiro é .

Referências Bibliográficas

BRITO, I. Comunidade e Território sobre a Monocultura do Euca-

lipto: o caso da Comunidade de Vereda Funda, município de Rio

Pardo de Minas. Montes Claros, UNIMONTES, PPGDS 2005.

(MIMEO).

CAA NM Populações Tradicionais do Norte de Minas: Transfor-

mando o uso sustentável da biodiversidade em trunfo para o de-

senvolvimento territorial. Montes Claros: Centro de Agricultura

Alternativa do Norte de Minas, 2005. Diagnóstico PICUS/FUNBIO

(mimeo).

CHAVES, Luiz Antonio. “Saluzinho e a luta pela terra no Norte de

Minas”. in Revista Verde Grande Vol.1, no 3 (dez/fev 2006). Mon-

tes Claros: UNIMONTES, 2006. págs 98-107.

COSTA, João Batista de Almeida. “A cultura sertaneja: a conjuga-

ção de lógicas diferenciadas”. In Santos, G. R. (Org) Trabalho,

cultura e sociedade no Norte/Nordeste de Minas. Considerações

a partir das Ciências Sociais. Montes Claros: Best Comunicação

e Marketing, 1997, pp. 77-97.

______________________________. “O Ser da Sociedade Sertane-

ja e a Invisibilização do Negro no Sertão Norte do Gerais”. In LUZ,

C. e DAYRELL, C. A (orgs.). Cerrado e Desenvolvimento: Tradição

e Atualidade. Montes Claros: Centro de Agricultura Alternativa;

Goiânia: Agência Ambiental de Goiás, 2000, pp. 107-140.

_____________________________. “A Reescrita da história, a valo-

rização do negro e a atualização das relações ancestrais no Norte

de Minas” in Revista Verde Grande / UNIMONTES, Prefeitura

Municipal de Montes Claros Vol.1, no 2 (set/nov 2005). Montes

Claros, MG:Ed. UNIMONTES, 2005. págs 12-53.

D’ANGELIS FILHO, João Silveira. Políticas locais para o des-

envolvimento local no Norte de Minas: uma análise das articula-

ções local e supra local. Temuco, Chile: 2005.

DAYRELL, Carlos Alberto – Geraizeiros y Biodiversidad en el Nor-

te de Minas Gerais: La contribuición de la agroecologia y de la

Povos e comunidades que trazem em si perspec-

tivas econômicas e societárias diferenciadas e que,

não por acaso, articulam-se e inserem-se na constru-

ção de uma política nacional que re-afirma o dispos-

to constitucional da existência de uma nacionalidade

plural. Estas populações buscam o reconhecimento

social de suas diversidades, para fazer cumprir os

direitos, conferidos pela Convenção 169 da OIT, pe-

los artigos 215 e 216 da Constituição Federal de

1988 e artigo 68 do ADCT, pelo Sistema Nacional de

Unidades de Conservação, pelo Decreto Federal

6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que regulamenta a

Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável

de Povos e Comunidades Tradicionais.

etnoecologia en los estudios de los agroecossistemas. Huelva:

Universidad Internacinal de Andalúcia, 1998. Dissertação de Mes-

trado.

GUZMÁN Edurdo Sevilla & MOLINA Manuel González “ Sobre la

Evolución del Concepto de Campesinato: uma aportaciõn para

Via Campesina. s/d (mimeo).

LUZ, Aline e outros. Grande Sertão: Veredas e seus ecossiste-

mas. Revista Desenvolvimento Social / PPGDS Unimontes – Vol.

1 n. 1 (1º semestre 2008) - Montes Claros: Unimntes, 2006 (págs

63-78)

LUZ de OLIVEIRA, Cláudia. Vazanteiros do Rio São Francisco: um

estudo sobre populações tradicionais e territorialidade no Norte

de Minas Gerais. Belo Horizonte:UFMG, 2005. Dissertação de

Mestrado.

PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. “As Minas e os Gerais – Bre-

ve ensaio sobre desenvolvimento e sustentabilidade a partir da

Geografia do Norte de Minas”. In LUZ, Cláudia e DAYRELL, Car-

los (orgs.) Cerrado e Desenvolvimento: Tradição e Atualidade.

Montes Claros: Centro de Agricultura Alternativa; Goiânia: Agên-

cia Ambiental de Goiás, 2000, pp. 19-46

POZO, O.V.C. “ REGIMES DE PROPRIEDADE E RECURSOS

NATURAIS: A TRAGÉDIA DA PRIVATIZAÇÃO DOS RECURSOS

COMUNS NO NORTE DE MINAS GERAIS. RIO DE JANEIRO,

UFRRJ, CPDA, 2002. TESE DE DOUTORAMENTO.

SILVA, CARLOS E. MAZZETTO.. CERRADOS E CAMPONESES

NO NORTE DE MINAS: UM ESTUDO SOBRE A

SUSTENTABILIDADE DOS ECOSSISTEMAS E DAS

POPULAÇÕES SERTANEJAS. DISSERTAÇÃO DE MESTRADO.

IGC/UFMG, BELO HORIZONTE/BRASIL. 250P., 1999, MIMEO.

STR R.P.M.; CAA NM “Projeto Reconversão Agroextrativista da

Monocultura de Eucalipto - Comunidade de Vereda Funda”. 2004

(mimeo)

Page 25: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

48 março/2008v. 1 nº 1 49março/2008v. 1 nº 1

E N T R E V I S T A

REVISTA AMA - Conte um pouco da sua história, e

como a agricultura sertaneja e as tradições influenci-

aram na sua formação?

ELMY PEREIRA SOARES - Eu venho de uma família

grande, de 12 irmãos. Sempre vivemos da agricultura e

do extrativismo, plantava mandioca e café e fazia o extrati-

vismo da madeira. Fazia farinha e ia para a feira no final de

semana. Fui criado dentro dessa cultura de produção.

Minha família, desde pai e mãe e os irmãos mais velhos,

tinha uma vida de comunidade, participando dos cultos,

cursos de base, novenas.

Comecei a participar de grupos de jovens onde a gen-

te discutia a vida do jovem, os desafios, os sistemas de

produção, porque os jovens tavam indo embora da roça.

Eu tinha 12 anos quando vi nosso sistema de produção

cair em decadência com a chegada do eucalipto. Num

desses encontros tivemos a presença de Frei Paulo da

CPT de Salinas que discutiu com a gente as alternativas.

Ai veio a oportunidade do curso de jovens do CAA, onde

a gente discutia alternativas e fazia com as comunidades

“A gente tem quevoltar a preocuparcom a produçãode alimento”

Elmy Pereira Soares. Geraizeiro da comunidade de Vereda

Funda, é uma das lideranças da luta das comunidades geraize-

iras no Alto Rio Pardo. Ocupa hoje o cargo de diretor presiden-

te do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de

Rio Pardo de Minas.

Elmy tem uma fala tranqüila, pausada, profunda. Conver-

samos pouco mais de uma hora. A cada pergunta uma pausa

pra refletir, jeito típico do geraizeiro. Conversamos com ele

sobre sua percepção quanto à agricultura sertaneja. Também

falamos sobre o projeto de desenvolvimento regional que ele

acredita e os desafios para a agricultura sertaneja no contexto

atual. Um bate-papo muito rico, que demonstra a sabedoria do

povo sertanejo.

de perto práticas de conservação de solo, produção de

composto orgânico. Comecei a participar do STR (sindi-

cato dos trabalhadores rurais). Já participava dos cursos

do CAA, tornei sócio. A gente sempre discutia a produção

da agricultura familiar e porque as coisas tinham ficado

tão difícil. Na Vereda Funda sempre a gente tinha uma

vida muito forte de comunidade, o modo de vida das pes-

soas, que fez com que as pessoas ficassem ali.

Final de 1998 o pessoal começou a refletir mais o que

tinha acabado com a água. A gente começou a sentir a

perda do território e que eram aquelas áreas de eucalipto

que tavam causando tudo aquilo na comunidade. A gen-

te começou a defender isso no sindicato. Em 2003 come-

çou a ter uma ação concreta com o vencimento do con-

trato das firmas. Tinha chegado a hora da colocar em prá-

tica tudo que a gente refletia, ter um gesto concreto. A

comunidade inteira foi pra luta defender seus direitos.

AMA - Existe um grupo que discute o modo de pro-

dução do norte de Minas e o define como agricultura

sertaneja. Para você, o que é agricultura sertaneja?

ELMY - Primeira coisa que ela é muito diversificada. A

família não conseguia sobreviver com a cultura só de uma

coisa. Produzia para o sustento da família, era a principal

coisa. A gente já sabia que no ano teria, por exemplo, 20

litros de óleo de pequi que ia ajudar. Era uma economia

muito bem feita, tinha um planejamento. O agricultor nun-

ca preocupava de plantar aquilo que ele não alimentava.

A preocupação de guardar a semente era muito forte.

Não tinha visão de comprar muita coisa de fora. Pensava

em guardar a semente, adubo, tinha até o jeito das terras.

Plantava cada cultura na terra que era certa para cada

um, dispensava o uso de veneno. A agricultura tinha sen-

tido de auto-sustentação, o agricultor conseguia viver de

forma independente.

AMA - Quando você fala da agricultura, sempre fala

no passado. Que mudanças você percebe no contexto

atual?

ALMY - Eu falo muito na realidade do que vivo, do

que vivi. Aqui foi uma região muito afetada pelo eucalip-

to, desmantelou muito o sistema de produção. Se a gen-

te for comparar duas décadas de produção de eucalip-

to, mais de 80% do território da Vereda Funda desman-

telou o sistema de produção que tinha. O que mudou

diretamente foi a ocupação do território. Por isso fica

lembrando como é que era, porque tinha muito espaço,

água, terra boa, úmida... Teve esse processo de deses-

truturação do ambiente. Ficou muito mais seco, secou

muita nascente, por isso que perdeu muito a qualidade

da agricultura e a cultura também.

AMA - Analisando a realidade, quais os desafios

você percebe para a agricultura sertaneja nesse con-

texto atual de disputa de modelo econômico?

ALMY - O principal que tem ligação é a educação. Edu-

cação eu falo não só da escola, mas da forma como os

filhos dos agricultores vão sendo educados. A educação

da escola e dos meios de comunicação vai influenciando

direto. É como se fosse um bombardeio no modo de vida

das famílias como atrasada, principalmente o que a televi-

são prega e as escolas continuam pregando. Esse é um

dos desafios – tentar valorizar. O outro é uma forma de

articular isso entre os agricultores pra poder enfrentar es-

se modelo de desenvolvimento meio que falso. O agricul-

tor não consegue sobreviver dentro desse modo, que pa-

rece muito bonito, essa ilusão de um produto para o mer-

cado. O outro acho que é uma forma da agricultura conse-

guir acompanhar o desenvolvimento que a humanidade

vai tomando. Não adianta sonhar com a volta do passado,

tem que tá inserido no mundo hoje. Não ficar mais isola-

do. Tem que buscar articular muito mais com outros agri-

cultores. A gente não veve mais isolado. Hoje em dia não

tem como ficar mais na sua roça sozinho. Outro desafio é

a gente preparar os produtos da agricultura pra enfrentar

o mercado. Os produto que vendia dentro de 1 saco de

estopa lá na feira, hoje ele não é mais aceito daquele jeito.

O outro é garantir o espaço em todos os níveis, de ter o

território do agricultor, da comunidade, porque a disputa

do agronegócio por terra é muito forte. A gente tem que

voltar a preocupar com a produção de alimento. É um de-

safio pras entidades que trabalham com as lideranças,

voltar a discutir isso com o agricultor, enfrentar isso, esse

bombardeio de produção só pro comércio. Pensar que a

agricultura familiar sempre sobreviveu produzindo alimen-

tos ali, porque tem dificuldade de preço pra vender, mas

não tem dificuldade de preço pra alimentar. Voltar a pro-

duzir pra alimentar.

AMA - Como é o projeto de desenvolvimento que

você acredita?

ELMY - A primeira base que eu acredito é que o ambi-

ente, a natureza tem que güentar, suportar a produzir.

Qualquer produção que gere muito dinheiro, mas que a

natureza não güentar, não tem como sustentar. É ques-

tão também de não depender. Desenvolvimento não

precisa ficar dependendo demais. Um empresário do

agronegócio, ele não tem preocupação com o lugar. A

preocupação é com aquilo que vai dá lucro. E pra agri-

cultura familiar não dá pra viver do mesmo jeito, porque

se ocê plantou uma cultura que o ambiente do lugar não

tá güentando produzir mais, se o mercado tá difícil de

comercializar, ele não tem como largar aqui e ir pra outro

lugar. Ele não aprendeu a fazer isso. Ele aprendeu a pro-

duzir ali alimento, que tá no dia-a-dia produzindo. O de-

senvolvimento tem que tá baseado no sentido de produ-

zir , mas que a natureza possa agüentar e que a pessoa

tenha um pouco mais de domínio, não pode ficar muito

dependente, se o dólar subiu, se vai cair, com a Bolsa

(de Valores)... Se o alimento tá muito caro, tá bom. E se

tiver muito barato pra vender, mas se ele tiver alimento

na casa isso não vai influenciar muito. Se cada lugar pre-

ocupar em desenvolver o lugar! Engraçado que a gente

preocupa de plantar uma coisa aqui pra gente poder

vender e buscar dinheiro lá em São Paulo, pro pessoal

de lá. Mas esquece que tem muito dinheiro que circula

aqui dentro que poderia fazer esse trabalho sem ter que

sair pra fora. O pessoal produzia aqui tudo antigamente,

não era? Antigamente conseguia produzir até roupa de

vestir. Pensando assim numa ligação com o mundo, tem

muita ligação mesmo. Mas a base, cada lugar tem con-

dições de se desenvolver, tem os recursos que dá pra

viver. O desenvolvimento pra mim deve partir disso ai

pra atender a necessidade das pessoas, não a vontade

das pessoas. A diferença tá aí porque a necessidade

das pessoas é pouca. Mas a vontade é muita e acaba

não conseguindo.

Page 26: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas

Por soberania Alimentar e Energética!

50 março/2008v. 1 nº 1 51março/2008v. 1 nº 1

Declaração Final do Encontro Mulheres em Luta por Soberania Alimentar e Energética

Nós, mulheres do campo e da cidade reunidas em

Belo Horizonte, de 28 a 31 de Agosto de 2008, expressa-

mos nossa visão sobre desafios e alternativas para a

construção de Soberania Alimentar e Energética.

Somos mulheres organizadas, protagonistas de lutas

de resistência em defesa de uma sociedade igualitária,

onde a organização da economia tenha como centrali-

dade a sustentabilidade da vida humana e não o merca-

do e o lucro.

O modelo atual de desenvolvimento se apropria do

racismo e do sexismo. Fundamenta-se em uma visão de

economia que considera o econômico apenas as ativi-

dades mercantis e desconsidera a reprodução e invisibi-

liza o trabalho das mulheres. Esse modelo se pauta por

uma concepção de desenvolvimento baseada na idéia

de crescimento econômico ilimitado, onde o mercado e

o lucro privado são priorizados em detrimento do interes-

se público e dos direitos humanos fundamentais, onde a

política econômica se orienta pela opção exportadora,

apoiada fortemente pelo Estado, no agronegócio empre-

sarial e no setor minero-metalúrgico-energético e em

uma demanda energética insustentável.

Para manter esse modelo, grandes projetos energéti-

cos e de infra-estrutura são construídos, distantes das

lógicas produtivas e culturais que organizam os territóri-

os, provocando a expulsão do campesinato e de popula-

ções tradicionais das suas terras, a contaminação dos

trabalhadores e trabalhadoras e o aprofundamento da

crise ambiental e das mudanças climáticas. Ao mesmo

tempo, são desconsiderados os caminhos alternativos e

modos de desenvolvimento voltados para a igualdade

social e a justiça ambiental que nossos movimentos têm

proposto a partir de suas práticas concretas nos territóri-

os que se pautam pela construção de Soberania Alimen-

tar e Energética.

Em contraposição a este modelo afirmamos nossa

luta feminista e socialista por uma nova economia e soci-

edade baseada na justiça social e ambiental, na igualda-

de, na solidariedade entre os povos, assentada em valo-

res éticos coerentes com a sustentabilidade de todas as formas de

vida e a soberania de todos os povos e comunidades tradicionais

sobre seus territórios.

Geraizeiros durante mística na 3ª Conferência

Diante disso:

Denunciamos:

O atual modelo de produção de energia que visa manter um

padrão de produção e de consumo ambientalmente insustentável e

socialmente injusto, baseado no monopólio das fontes de energia

pelas grandes empresas.

As falsas soluções de mercado que estão sendo propostas

para reverter o quadro de mudanças climáticas como a produção

de agrocombustíveis em grande escala, assim como as expansão

de impactantes projetos hidroelétricos e a retomada do programa

nuclear brasileiro, energia perigosa, cara e sem soluções para os

seus rejeitos.

O atual modelo de produção de agrocombustíveis, baseado em

monoculturas; modelo defendido pelo governo brasileiro e contro-

lado pelo agronegócio, que vem homogeneizando os territórios,

pressionando a expansão das fronteiras agrícolas, gerando impac-

tos sociais e ambientais e que tem sido um dos grandes responsá-

veis pelo aumento dos preços dos alimentos.

A especulação internacional dos produtos alimentícios que

também se constitui em uma das causas do aumento dos preços

dos alimentos, ao lado do aumento do preço do petróleo e do des-

vio de alimentos para produção de etanol e biodiesel.

O trabalho escravo que sustenta esse modelo e as péssimas

condições de trabalho e de exploração do assalariado e assalariada

rural, além do abuso sexual e o assedio moral a que são vitimas

trabalhadoras do campo e da cidade.

Que o controle da cadeia produtiva alimentar pelas grandes

transnacionais ameaça a soberania alimentar e a saúde da popula-

ção. Em especial os produtos transgênicos e os altos níveis de agro-

tóxicos utilizados nos alimentos com a cumplicidade das autorida-

des públicas que não zelam para que as legislações sobre rotula-

gem de transgênicos e agrotóxicos sejam respeitada pelas indústri-

as.

O desaparecimento de sementes crioulas, a perda de biodiver-

sidade e a ameaça a segurança alimentar em virtude da liberação

comercial de cultivos transgênicos e da expansão das monocultu-

ras de exportação, apoiadas por empresas e universidades publi-

cas, enquanto falta pesquisa para avaliar riscos no meio ambiente e

à saúde do consumo de transgênico.

A privatização dos recursos naturais e a apropriação de nossas

terras, a exploração da nossa floresta, das águas e de nossos rios,

mares e manguezais pelo capital com apoio dos recursos públicos.

A privatização do setor elétrico que contribuiu para que as tari-

fas de energia sejam diferenciadas entre os consumidores residen-

ciais e indústria e as políticas energéticas beneficiem as grandes

indústrias para obterem cada vez mais, mais lucros.

As cidades brasileiras sofrem impactos diretos desse modelo

de desenvolvimento alimentar e energético, com as altas taxas no

preço da energia, com o aumento dos preços dos alimentos, com

a precarização do trabalho e do transporte coletivo urbano e com a

especulação imobiliária.

Reafirmamos:

A necessidade de construir um novo modelo energético para o

Brasil que priorize a produção e a distribuição descentralizada de

energia visando atender as necessidades locais e territoriais e que

contemple a participação da população no seu planejamento, deci-

são e execução. E que contribua para a autonomia das mulheres,

possibilitando a elas protagonizarem experiências de Soberania

Energética em seus territórios.

A necessidade de desenvolvermos formas de consumo e co-

mercialização de produtos de forma solidária e sustentável com o

fortalecimento dos mercados locais e feiras livres, assim como o

reconhecimento do trabalho produtivo das mulheres e seu fortale-

cimento.

Que é tarefa do Estado a viabilização de políticas públicas que

garantam a nossa Soberania Alimentar e Energética.

A importância da pesquisa, desenvolvimento e implantação de

fontes energéticas alternativas e o reconhecimento e investimento

do Governo nas experiências descentrizadas de produção alternati-

va de energia, na socialização do trabalho doméstico e no fortaleci-

mento da agricultura camponesa.

A agroecologia como projeto político para alcançar a soberania

alimentar, assim como a luta pela Reforma Urbana, a agricultura

urbana e a defesa de uma nova ocupação do espaço urbano para

moradia e produção como orientadoras de políticas publicas.

A luta pelo direito à terra através da Reforma Agrária, onde este-

ja garantido o direito da mulher a terra, o acesso aos recursos natu-

rais e ̀ as decisões sobre seus usos.

Os direitos territoriais de povos indígenas e populações quilom-

bolas.

O direito ao trabalho em condições dignas e bem remunerado.

O direito a previdência social, a diminuição da jornada de trabalho, a

socialização do trabalho reprodutivo.

Uma integração regional que esteja pautada na solidariedade,

na complementariedade entre nossas economias, na sustentabili-

dade das praticas socioculturais e produtivas.

Nos comprometemos:

A lutar por justiça ambiental, pela reforma agrária, e em defesa

da sustentabilidade da vida como valor central para a economia.

A desenvolver formas organizativas de luta das mulheres con-

tra esse modelo de desenvolvimento que afeta o campo e a cidade

e a denunciar permanentemente as diferentes formas de opressão

e mercantilização que vivem as mulheres.

A construir e a fortalecer alianças entre movimentos sociais do

campo e da cidade e a defender a necessidade de articularmos

nossas experiências reivindicando políticas públicas que visibilizem

as nossas experiências alternativas e nossas propostas para cons-

trução de uma transição rumo a um modelo de desenvolvimento

que tenha como centro a sustentabilidade e a dignidade da vida

humana.

A desenvolver formas de uso sustentável dos recursos naturais

e das energias renováveis sustentáveis (eólica, solar e biomassa)

bem como o aproveitando a água da chuva através da utilização de

cisternas, o uso de placas solares e de experiências autônomas

que contribuam para a construção de um novo modelo energético;

A lutar pela reestatização do setor elétrico e a defender o uso

sustentável das águas e dos recursos energéticos.

A lutar pela autonomia econômica das mulheres e pelo direito

ao trabalho digno e a fortalecer a luta dos trabalhadoras e trabalha-

dores assalariadas.

A lutar pela recuperação, preservação e multiplicação das plan-

tas medicinais e sementes crioulas, em defesa da biodiversidade,

da água e pelo direito de decidir sobre nossa vida, nossos alimen-

tos, nosso corpo.

A lutar pelo direitos territoriais dos quilombolas e indígenas,

porque suas lutas também são nossas. Por isso apoiamos a de-

marcação continua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Rora-

ima e reafirmamos os direitos dos povos indígenas aos seus terri-

tórios.

A realizar as mobilizações dos dias 16 e 17 de outubro por Sobe-

rania Alimentar, a participar da campanha contra o preço de energia

e a fortalecer nossa marcha no 8 de março como processos de

reafirmação de nossa luta por soberania alimentar e energética,

diante da necessidade de construir um novo modelo energético e

alimentar para o Brasil.

Mulheres em Luta por Soberania

Alimentar e Energética!

Page 27: Agricultura Mineira mostra uma nova força: a Agroecologia · Agricultura Urbana: ações e aprendizados da REDE ... não é uma atividade só de técnicos e cientistas, ... voltadas