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As Aes judiciAis no sus e Apromoo do direito sAde

As Aes judiciAis no sus e Apromoo do direito sAde

tniA mArgArete mezzomo Keinert silviA HelenA BAstos de pAulA jos ruBen de AlcntArA Bonfim

Instituto de Sade So Paulo 2009

Governador Jos Serra Secretrio de Estado da Sade de So Paulo Luiz Roberto Barradas Barata Diretora do Instituto de Sade Luiza Stermann Heimann Ncleo de Comunicao Samuel Antenor

Equipe de realizao do seminrio Aes Judiciais no SUS e a Promoo da Sade Coordenao Tnia M. Mezzomo Keinert Silvia Helena Bastos de Paula Comisso Cientfica Jos Ruben de Alcntara Bonfim Nelson Francisco Brando Silvia Helena Bastos de Paula Tnia M. Mezzomo Keinert Tereza Setsuko Toma Ana Lucia da Silva Comisso Organizadora Jos Ruben de Alcntara Bonfim Nelson Francisco Brando Silvia Helena Bastos de Paula Tnia M. Mezzomo Keinert Tereza Setsuko Toma Vanessa Martins da Cruz Organizao Instituto de Sade, Secretaria de Estado da Sade e Governo do Estado de So Paulo Apoio Departamento de Cincia e Tecnologia, Secretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos Ministrio da Sade Organizao Pan-Americana de Sade

Projeto editorial e capa Leitura Mdica Ltda.

As aes judiciais no SUS e a promoo do direito sade Copyright 2009 Instituto de Sade Proibida a reproduo total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou sistema, sem prvio consentimento da editora, ficando os infratores sujeitos s penas previstas em lei.

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Elaborada por Carmen Campos Arias Paulenas As aes judiciais no SUS e a promoo do direito sade, organizado por Tnia Margarete Mezzomo Keinert, Silvia Helena Bastos de Paula e Jos Ruben de Alcntara Bonfim. So Paulo: Instituto de Sade, 2009. 233p. (Srie Temas em Sade Coletiva, 10) ISBN 85-88169-01-0 Coleo Temas em Sade Coletiva ISBN 978-85-88169-16-6 1. Promoo da sade 2. Medicamentos Excepcionais 3. Direito Sade/legis I. Keinert, Tnia Margarete Mezzomo. II. Paula, Silvia Helena Bastos de. III. Bonfim, Jos Ruben de Alcntara. IV. Srie.

Impresso no Brasil 2009

soBre os orgAnizAdores

Tnia MargareTe MezzoMo KeinerTPs-Doutoramento, University of Texas at Austin,EUA (2002) - bolsa FAPESP. Doutorado em Administrao (1999) e Mestrado em Administrao Pblica e Governo (1991) pela Fundao Getlio Vargas/So Paulo. Especializao em Economia Pblica pela Universit Commerciale Luigi Bocconi/Itlia (1990) e Especializao em Administrao Municipal e Regional pela University of Haifa/Israel (1989). Pesquisador Cientfico III do Instituto de Sade da SES/SP. Consultor internacional do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento. Ex-professora da EAESP/ FGV (1993-2003) e UFMG (2006-2008). Foi bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, da Linha Especial de Financiamento em Polticas Pblicas da FAPESP/SP e da FAPEMIG/MG. Pesquisa temas relacionados Cincia, Tecnologia e Inovao, especialmente tica, Direitos Humanos e Sade. [email protected]

Silvia Helena BaSToS de PaulaEnfermeira, Doutora em Cincias pelo Programa de Ps-graduao da Coordenadoria de Cincias da Secretaria de Estado da Sade de So Paulo. Mestre em Enfermagem em Sade Pblica pela Universidade Federal do Cear. Pesquisadora cientfica do Instituto de Sade. Consultor internacional do Programa das Naes Unidas para Avaliao de Programas de DST e Aids e na integrao DST Aids e Sade Reprodutiva pelo Family Health International para avaliao e implantao de programas de preveno de Aids no Brasil, Repblica Dominicana e frica. E-mail: [email protected]

JoS ruBen de alcnTara BonfiMGraduado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco (1973), residncia mdica pela Universidade Estadual de Campinas (1975), especialista em Sade Pblica em Nvel Local pela Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo (1976), especialista em Planejamento de Sistemas Integrados de Sade pela Escola Nacional de Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz (1984), mestre em Cincias pela Coordenadoria de Controle de Doenas da Secretaria de Estado da Sade de So Paulo (2006). Mdico sanitarista da SES/SP, Mdico I Categoria 4 da Secretaria Municipal de Sade de So Paulo. reas de Atuao: Assistncia Farmacutica, Novos Frmacos e tica da Pesquisa Clnica. E-mail: [email protected]

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soBre os Autores

adriana PeTrynaAntroploga e professora adjunta, do Departamento de Antropologia da Universidade da Pensilvnia. Autora premiada de livros sobre os riscos do acidente de Chernobyl e parecerista da srie Biopoltica (NYU Press), peridico que examina a interseo de vrias prticas da medicina e da tecnocincia com a vida e com corpos humanos numa perspectiva interdisciplinar, em particular sobre as prticas das instituies mdicas, tecnolgicas e cientficas e sua funo no mundo moderno. E-mail: [email protected]

alex gerTnerAntroplogo, pela Universidade Princeton, com interesse em antropologia mdica. Autor de The Limitations of a Biomedical Understanding of Health in the Conception and Implementation of Housing as a Structural Intervention for HIV/AIDS in New York City (Princeton). E-mail [email protected]

ana lcia da SilvaDoutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo. Pesquisador Cientfico do Instituto de Sade-SES-SP. Docente do Programa de Ps-Graduao da Coordenadoria do Controle de DoenasSES-SP. E-mail:[email protected]

ari Marcelo SlonMestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP, 1987); Doutor em Direito (USP, 1993); Livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP, 2000); Docente na USP desde 1989, Professor Associado desde 2000, Faculdade de Direito da USP, Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito; Professor Associado da Universidade de So Paulo, Professor Titular da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Advogado no Frana Ribeiro Advocacia. Pesquisa a compreenso do fenmeno da cidadania modelando o Estado, pelo olhar da filosofia de Georg Lukcs e Ernst Bloch. E-mail: [email protected]

ingo Wolfgang SarleTDoutor em Direito do Estado pela Universidade de Munique. Estudos em nvel de Ps-Doutorado em Munique (bolsista CAPES/DAAD e Max-Planck) e Georgetown. Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e Cincias Criminais da PUCRS. Representante brasileiro e correspondente cientfico junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (Munique). Professor do Doutorado em Direitos Humanos da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS). Pesquisador-visitante na Harvard Law School. Juiz de Direito em Porto Alegre.

Joo guilHerMe BieHlAntroplogo brasileiro e americano, atualmente professor associado de antropologia na Universidade de Princeton. Ps-doutor pela Universidade de Harvard (1998-2000), e doutor em antropologia pela Universidade da Califrnia (Berkeley, 1999) e em teologia pela Theological Union em Berkeley. Especialista em antropologia mdica, ganhou os seguintes prmios: Rudolph Virchow Awards (2005 e 2008), conferido pelo Sociedade Americana de Antropologia, e Margaret Mead Award em 2007 pela Sociedade de Antropologia Aplicada (EUA) e Sociedade Americana de Antropologia. Seus interesses incluem antropologia mdica, estudos sociais da cincia e tecnologia, antropologia psicolgica, a globalizao e o desenvolvimento das sociedades latino-americanas. E-mail: [email protected]

JoSePH J aMonDoutor em Epidemiologia e Mestre em Medicina Tropical; Diretor da Diviso de Direitos Humanos, (Human Rights Watch, New York, NY, E.U.A), desde 2005, como chefe de seu programa de HIV / aids tendo trabalhado por mais de 15 anos realizando pesquisas, elaborao de programas e avaliao das intervenes relacionadas ao HIV, hepatite, malria para o CDC. Na HRW dedicou-se a questes sobre acesso a medicamentos (incluindo os antirretrovirais, a dependncia de drogas, tratamento e alvio da dor), teste de HIV, os direitos de reclusos e imigrantes, o acesso aos cuidados de sade, abusos aos direitos humanos relacionados com surtos de doenas infectantes e com multirresistncia a frmacos. E-mail: [email protected]

lenir SanToSAdvogada, especialista em direito sanitrio pela USP, coordenadora do Instituto de Direito Sanitrio Aplicado (IDISA) e ex-procuradora da UNICAMP. Autora de vrias obras sobre Direito Sanitrio. E-mail: [email protected]

Mariana filcHTiner figueiredoMestre em Direito (Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS). Especialista em Direito Municipal (Centro Universitrio Ritter dos Reis UniRITTER). Advogada da Unio. Integrante do GEDF Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais (PUCRS/CNPq).

Mrio ScHefferDoutor em Cincias e Ps-Doutorando do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP; especialista em Sade Pblica pela Faculdade de Cincias Mdicas da Unicamp, Diretor do CEBES-Centro Brasileiro de Estudos da Sade e Membro do Grupo Pela Vidda/SP. E-mail: [email protected]>

Paulo dornelleS PiconGraduao em Medicina pela UFRGS em 1980, fez 4 anos de residncia mdica em Medicina Interna e Cardiologia no HCPA, Mestrado e Doutorado em Medicina: Cardiologia pela UFRGS com teses em Farmacologia Cardiovascular e Trombose Arterial, Research Fellow na Harvard School of Medicine com bolsa CAPES de Doutorado. Professor Titular de Farmacologia Clnica da Universidade de Passo Fundo desde 1985. Professor Adjunto de Medicina Interna da UFRGS desde 1987. Professor do PPG em Cardiologia e de Clnica Mdica com orientaes em Cardiologia (aterosclerose e trombose) e Farmacologia Clnica. o coordenador do Grupo Tcnico que elaborou os Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas do Ministrio da Sade. Atualmente consultor da ANVISA para ATS (Avaliao de Tecnologias em Sade) e Medicina Baseada em Evidncias. Coordenador Tcnico da Poltica de Medicamentos da Secretaria Estadual da Sade do RS desde 2003. Membro da Health Technology Assessment International, entidade congregando gestores e assessores de ministrios da Sade sobre o tema Avaliao Tecnolgica em Sade (ATS), onde membro efetivo do Finance and Audit Committee e palestrante convidado. E-mail: [email protected]

regina figueiredoSociloga, Mestre em Antropologia Social e da Sade especialista em Sade Sexual e Reprodutiva, Pesquisadora Cientfica do Instituto de Sade da Secretaria de Estado da Sade de So Paulo. Coordenadora da Rede de Contracepo de Emergncia. E-mail: [email protected]

roSirene BeraldiMestre em Cincias pelo Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva da Coordenadoria de Controle de Doenas da Secretaria de Estado da Sade de So Paulo. Fisioterapeuta e professora de Educao Fsica da rede estadual de ensino. E-mail: [email protected]

vania agnelli SaBin caSalDefensora Pblica. Coordenadora da Unidade Fazenda Pblica, Defensoria Pblica do Estado de So Paulo. E-mail: [email protected]

sumrio

Apresentao ____________________________________________13tniA mArgArete mezzomo Keinert

ParTe i eSTado, Tica, cidadania e direiTo _____________________________19 tica, cidadania e direito sade ________________________________21Ari mArcelo slon

Algumas consideraes sobre o direito fundamental proteo e promoo da sade aos 20 anos da Constituio Federal de 1988________ 25ingo WolfgAng sArlet e mAriAnA filcHtiner figueiredo

SUS: Contornos jurdicos da integralidade da ateno sade ___________63lenir sAntos

Do direito sade _________________________________________73vniA pereirA Agnelli sABin cAsAl

Direitos fundamentais, direito sade e papel do executivo, legislativo e judicirio: fundamentos de direito constitucional e administrativo ________ 87tniA mArgArete mezzomo Keinert

Direito autonomia em sade: onde mora a vontade livre?____________ 109silviA BAstos, AnA lciA dA silvA e rosirene BerAldi

Sade e direitos sexuais e reprodutivos: o Poder Judicirio deve garantir o acesso contracepo de emergncia ___________________________ 119reginA figueiredo e silviA BAstos

ParTe ii aeS JudiciaiS e evidnciaS cienTficaS _______________________ 127 Judicializao e incorporao de tecnologias: o caso dos medicamentos para tratamento da aids no Sistema nico de Sade______ 129mrio scHeffer

Demandas judiciais por frmacos no Sistema nico de Sade: direitos dos pacientes e provas cientficas para se realizar o acesso ______ 139jos ruBen de AlcntArA Bonfim

Judicializao do direito sade no Brasil ________________________ 157joo BieHl, AdriAnA petrynA, Alex gertner, josepH j. Amon, pAulo d. picon

ParTe iii SeMinrio aS aeS JudiciaiS no sus e a ProMoo do direiTo Sade _______________________________________ 161 Apresentao da proposta do seminrio _________________________ 163 Mesa de abertura __________________________________________ 165 Tema I Estado, tica, cidadania e direito ________________________ 173 Tema 2 Aes judiciais e evidncias cientficas ____________________ 199

ApresentAo

Tnia Margarete Mezzomo Keinert1

No conceito moderno, sade um direito fundamental do cidado que gera, tambm, para ele e para a coletividade onde vive, obrigaes e deveres de participao.

Procurador-Geral da Agncia Nacional Vigilncia Sanitria - ANVISA2

Helio Pereira Dias

Temos a satisfao de apresentar este volume que integra a coleo Temas em Sade Coletiva - uma publicao do Instituto de Sade, agora j em sua 10 edio temtica. A obra que inicialmente abarcaria as transcries do Seminrio realizado em So Paulo em 8 de maio de 2009, com o ttulo As aes judiciais no SUS e a promoo do direito a sade, ganhou corpo e consistncia com a incluso de textos redigidos pelos palestrantes especialmente para complementar e ampliar o que consta nas transcries das falas apresentadas naquela ocasio. Temos em mos, portanto, uma obra completa, a qual trs, alm da transcrio dos debates ocorridos no Seminrio, textos escritos especialmente para este livro3. O Seminrio aconteceu em um momento peculiar na concretizao do Direito Sade no Brasil: imediatamente aps a Audincia Pblica promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) - nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009 -, para, com a participao de amplos segmentos da sociedade brasileira estabelecer parmetros que auxiliassem os magistrados no julgamento de aes judiciais pleiteando medicamentos e/ou equipamentos por via judicial ao SUS. A Audincia Pblica ouviu 50 especialistas, entre advogados, defensores pblicos, promotores e procuradores de justia, magistrados, professores, mdicos, tcnicos de sade, gestores e usurios do sistema nico de sade. O objetivo foi buscar esclarecimentos

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Pesquisadora Cientfica do Instituto de Sade, Coordenadora do Projeto As Aes Judiciais e a Promoo do Direito Sade junto do Decit/MS e OPAS/OMS. Disponvel em http://www.anvisa.gov.br/divulga/artigos/artigo_direito_sanitario.pdf, acesso em 14.11.09, 10h 48 min. A apresentao de slides utilizada pelos conferencistas no seminrio encontra-se disponvel no site do Instituto de Sade: http://www.isaude.sp.gov.br/?cid=1488

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As aes judiciais no SUS e a promoo do direito sade

junto sociedade para subsidiar o julgamento dos processos4 de competncia do STF que versam sobre o direito sade.5 Foi um momento rico em Braslia e, posteriormente, aqui em So Paulo. Aproveitamos, portanto, do rescaldo das discusses no STF para acalentar as discusses no Seminrio e, posteriormente, nos textos adicionais s transcries das Conferncias, os quais compem este livro. Buscvamos um entendimento desde uma perspectiva pluralista deste fenmeno que por muitos foi denominado judicializao da sade6. Este termo, considerado pejorativo por muitas pessoas, passou a ser utilizado para denominar o crescente nmero de aes judiciais impetradas para garantir o acesso a medicamentos e equipamentos considerados por seus prescritores indispensveis garantia da sade, e por alguma razo no obtidos pela chamada via administrativa (Secretarias de Sade), ou seja, no obtido o tratamento, equipamento ou medicamento pelas vias usuais de acesso ao Sistema nico de Sade (SUS), buscava-se, como alternativa, o Judicirio. Procuramos, nessa obra, enfrentar a questo da crescente necessidade de respostas administrativas, ticas e jurdicas para a incorporao das novas tecnologias (novos frmacos, em especial) no Sistema nico de Sade (SUS) sob contexto de consolidao da noo de direitos. Assim reunimos juristas renomados e estudiosos da questo do direito sade da perspectiva do Direito; mdicos e profissionais da sade que utilizam a viso da medicina baseada em evidncias cientficas como instrumento para realizar o acesso aos servios; bem como a perspectiva de usurios e pacientes. O resultado apresentamos agora ao leitor em forma de livro. Nos parece termos atingido nossos objetivos, especialmente o de aproximar os operadores do direito aos mdicos e profissionais da sade tornando as duas reas, obviamente vitais para o exerccio do Direito sade, menos distantes. Comeamos por propiciar o debate e agora sediment-lo com essa coletnea de textos. Na prtica nos parece que a tendncia haver um cenrio de equilbrio entre o planejamento efetuado pelo Poder Pblico (Executivo) que passa a ser mais eficaz na oferta de atendimento integral populao e as decises judiciais, at porque sero menos demandadas7, restritas aos casos que a omisso estatal for evidente.4 Tramitavam no STF naquela data os Agravos Regimentais nas Suspenses de Liminares ns 47 e 64, nas Suspenses de Tutela Antecipada ns 36, 185, 211 e 278, e nas Suspenses de Segurana ns 2361, 2944, 3345 e 3355, processos de relatoria da Presidncia. A ntegra das falas dos especialistas, vdeo das sesses, legislao correlata, jurisprudncia bibliografia e material enviado pelos representantes da sociedade civil se encontra disponvel no site do STF: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico= processoAudienciaPublicaSaude Alguns autores preferem o termo justiciabilidade ou controle judicial. Ver, por exemplo interessante estudo da Profa. Flvia Piovesan que compara a jurisprudncia do STF e STJ nos casos referentes aos direitos sade e educao. In: Piovesan, F. Justiciabilidade dos direitos sociais e econmicos: desafios e perspectivas, Revista da Defensoria Pblica, Ano 1 n. 1- jul/dez 2008, p. 161-178. Na mesma Revista, a qual tem como tema da edio justamente o Direito Sade fala-se em direitos exigveis ou justiciveis. Ver do Defensor Pblico Tiago Fensterseifer: Defensoria Pblica, direito fundamental sade, mnimo existencial, ao civil pblica e controle judicial de polticas pblicas, Revista da Defensoria Pblica, Ano 1 n. 1- jul/dez 2008, p. 411-441. Sempre bom lembrar que o Poder Judicirio inerte, s age se provocado, quando ento tem o dever de prestar a jurisdio, ou seja, dizer a lei, julgar, dar uma sentena para solucionar o litgio. O direito ao contraditrio (direito de contradir, ou seja contradizer, direito de defender-se, enfim) garantia constitucional, portanto, no haver, em nenhuma instncia, deciso ju-

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Apresentao

Ressalte-se que, especialmente a partir da promulgao da Constituio Federal de 1988 (bem como da adeso do Brasil aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, alm da participao brasileira em organismos internacionais como a Organizao Mundial da Sade (OMS) e Organizao Panamericana de Sade) criou-se no Brasil um ramo especfico do Direito denominado Direito da Sade, Sade ou Direito Sanitrio.8 Esse ramo do Direito revela-se de grande complexidade dada a existncia de um enorme conjunto de normas abrangidas pelo Direito Sanitrio. Auby9 afirma que tal campo comporta trs categorias de regras: a) uma regulamentao das aes humanas, no sentido de que as mesmas concernem aos objetivos da sade, traduzidas em interdies, limitaes ou controle de aes dirigidas contra a sade, proibies ou determinaes de obrigaes de efetuar aes dirigidas no sentido da sade. O Direito de Sade aparece aqui como um direito de polcia no sentido literal do termo. Engloba, por exemplo, como importante, a polcia de profisses que regulamenta o acesso de profissionais ao mbito da sade e suas condies de exerccio. Compreende tambm uma polcia de produtos e objetos teis ou nocivos sade. b) o direito sade comportaria, em segundo lugar, o conjunto de regras que administram os servios pblicos que intervm em matria de sade. c) o direito sade regulamenta diversas formas de relaes entre os indivduos, do tipo contratual entre os interessados em matria sanitria, especialmente entre os doentes e os profissionais de sade. O Direito Sade ou Direito Sanitrio comporta, portanto, uma dimenso regulatria e (e repressiva); outra administrativa (ou de gesto dos servios e do sistema de sade); e, por fim, regulamenta a prpria relao entre indivduos e, entre esses e os profissionais de sade. No Brasil, a Revista de Sade Pblica publicou um artigo, em 1996, no qual se pretende sistematizar as caractersticas que permitem a definio do termo: a existncia de um direito ainda no positivado ou a ineficcia de um direito legalmente reconhecido, seja por falta de regulamentao ou por falta de execuo material da prestao prevista, ainda que devida existncia de conflitos culturais; a viabilidade tica da reivindicao desse direito; e o objetivo de advog-lo, com todas as conseqncias dele derivadas, tais como a previso dos meios para apurar o ambiente poltico e as razes tcnicas envolvidas na disputa, para adequar a defesa s esferas de atuao necessrias (legislativa, administrativa, judiciria ou cultural) e, principaldicial sem que se tenha ouvido os acusados (rus no processo). Difere portanto, o Judicirio dos Poderes Executivo e Legislativo os quais tm iniciativa prpria, obviamente nos limites de suas competncias constitucionais. 8 Verifica-se, no Brasil, o surgimento dos primeiros Ncleos de Ensino e Pesquisa em Direito Sanitrio a partir dos anos 90. Para os interessados em compreender melhor a gnese e composio desse Ramo do Direito, um excelente trabalho, a tese de doutorado defendida na Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo, de Fernando Mussa Abujamra Aith, Teoria Geral do Direito Sanitrio est disponvel em resumo e na ntegra em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/tde-23102006144712/ J. M. Auby, Le Droit de la Sant, Ed. Presses Universitaires de France, Paris, 1981, pgs. 13 e seguintes.

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mente, para permitir a construo de uma slida argumentao10. Em paralelo ao surgimento desse novo campo jurdico complexo, a ateno sade tambm se complexifica, fazendo uso cada vez mais de novas tecnologias, sejam elas de diagnstico (exames e equipamentos sofisticados) ou curativas ( como uma gama crescente de novos medicamentos, inclusive porque so descobertas novas doenas). O SUS, com o objetivo de lidar com essa crescente complexidade passou a adotar critrios da Medicina com Base em Evidncias (MBE) e dos Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas; conjunto de critrios que permitem determinar o diagnstico de doenas e o tratamento correspondente com os medicamentos disponveis. A MBE11 se baseia na aplicao do mtodo cientfico a toda a prtica mdica, seja esta ligada tradies mdicas estabelecidas ou quelas que ainda no foram submetidas ao escrutnio sistemtico cientfico. Evidncias significam, aqui, provas cientficas. Essas provas sero buscadas na crtica da literatura, consulta da literatura original (fontes primrias) e/ou revises sistemticas da literatura e diretrizes clnicas baseadas em evidncias (fontes secundrias). Segundo o Ministrio da Sade a Medicina baseada em evidncias consiste no uso consciente e minucioso das melhores evidncias atuais nas decises sobre assistncia sade individual. A prtica da medicina baseada em evidncias significa integrar a experincia individual s melhores evidncias cientificamente tidas como vlidas.12 Ocorre que, muitas vezes, as evidncias cientficas disponveis e as necessidades dos usurios encontram-se em rota de coliso. Como ressaltado pelo prprio Ministro da Sade na Audincia Pblica no STF (antes mencionada), h necessidade de reviso peridica dos protocolos existentes e de elaborao de novos protocolos. Assim, no se pode afirmar que os Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas do SUS sejam inquestionveis, pois podem estar desatualizados, o que permite sua contestao judicial. Colocada essa problemtica, de forma a se ter uma prvia da discusso da questo das Aes Judiciais no SUS e da Promoo do Direito Sade, convidamos o leitor a um passeio pelas diferentes vertentes que a compem. Sair satisfeito cremos. Provavelmente no com certezas, talvez com mais dvidas, porm, com uma viso ampla do cenrio onde se desenrolam os embates para a garantia do direito Sade.

10 Ver da Profa. Sueli Dallari, Advocacia em sade no Brasil contemporneo. Rev.Sade Pblica, 30 (6):592- 601, 1996. Em texto anterior, porm, a autora j lanava as bases do novo campo de conhecimento: Uma nova disciplina: o direito sanitrio. Rev. Sade Pblica vol.22 no.4 So Paulo Ag. 1988; Alm desse, em outros textos a autora retoma-se a gnese do Direito Sanitrio no Brasil, como os disponveis em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/26843/public/26843-26845-1-PB.pdf http://www.opas.org.br/observatorio/Arquivos/Destaque76.pdf#page=187 11 A utilizao do termo medicina meramente exemplificativa, dado que, ocorre o mesmo movimento em outras reas do cuidado sade, como a Enfermagem. Um termo mais abrangente poderia ser o de prticas baseadas em evidncia (PBE). Ver, por exemplo, A Prtica de Enfermagem Baseada em Evidncias. Conceitos e Informaes. Disponvel Online. Maria Helena Larcher Calir e Maria Helena Palucci Marziale na Rev. Latino-Am. Enfermagem vol.8 no.4 Ribeiro Preto Ag. 2000. Ver http:// www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-11692000000400015&script=sci_arttext Para uma perspectiva crtica da MBE ver: Medicina Baseada em Evidncias: novo paradigma assistencial e pedaggico?de Luis David Castiel e Eduardo Conte Povoa, Interface - Comunic, Sade, Educ, v6, n11, p.117-32, ago 2002, disponvel em http:// www.interface.org.br/revista11/debates1.pdf. 12 Disponvel em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/sus_3edicao_completo.pdf

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Apresentao

Uma derradeira afirmao sobre a essencial participao de todos na construo das polticas pblicas de sade. Como se disse na frase em epgrafe no incio deste texto: s a participao cidad na gesto pblica (especialmente, no caso do acesso aos servios do SUS) e na elaborao oramentria - momento esse em que decises tico-valorativas as quais posteriormente iro influenciar na gesto das polticas pblicas so tomadas - ir garantir avanos na consolidao do direito sade. Note-se que a dotao oramentria (dada a escassez de recursos) sempre um fator limitante no exerccio do Direito Sade13. Observaes, crticas e sugestes podem ser enviadas ao e-mail: [email protected].

Uma excelente leitura a todos!

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No obstante, em publicao chamada Medicamento: um Direito Essencial o Conselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo (Cremesp) e o Conselho Regional de Farmcia do Estado de So Paulo (CRF-SP) em parceria com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) enumeram 16 formas de acesso a esses servios, sendo apenas 4 delas pela via judicial. Portanto, entende-se que h um conjunto de mecanismos de gesto do prprio SUS que pode se acionado antes da via judicial. A cartilha est disponvel no site da ANVISA: http://www.anvisa.gov.br/DIVULGA/noticias/2006/071206_1.htm bem como no site do Cremesp: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Publicacoes

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pArte iestAdo, ticA, cidAdAniA e direito

ticA, cidAdAniA e direito sAde

Ari Marcelo Slon

As questes de ordem tcnica e administrativa concernentes ao sistema de sade brasileiro j foram bem abordadas por colegas deste seminrio. Assim, discutirei o tema que me foi atribudo cidadania e direito sade dentro de uma discusso filosfica, sociolgica e jurdica em torno da chamada crise de legitimidade por que passam as modernas democracias, inclusive a brasileira. Mas para isso se faz necessria, antes, uma breve reconstruo histrica. O Sistema nico de Sade, tanto quanto a Constituio de 1988 que o institui, surgem no bojo do processo de redemocratizao do Brasil, de incluso de novos sujeitos na esfera poltica, e trazem consigo a esperana de implementao de uma ampla rede de seguridade social, como a Europa dos anos 1950/1970 conheceu. Problema: o modelo de Estado plasmado na Constituio Federal de 1988 vem na contramo do movimento histrico real vivido na maior parte do mundo, nos pases centrais. Trata-se justamente do perodo de crise da social-democracia, do Estado de Bem-Estar Social. A crise desse iderio poltico consequncia de uma crise econmica anterior, ou melhor, do remdio adotado para san-la. A crise de estagflao e de baixas taxas de acumulao que o capitalismo americano, europeu e japons enfrentou nos anos 1970 encontrou soluo no abandono do modelo keynesiano praticado havia 30 anos e na restrio dos encargos do fundo pblico com os direitos sociais. tambm o momento do encarecimento do crdito internacional. Todo esse contexto desgua, na dcada de 1980, para os pases latino-americanos, na crise da dvida pblica, crise inflacionria, que ser interpretada, como o fora na Europa e Estados Unidos, como crise fiscal. Assim, a dcada de 1990 ser para o Brasil e pases vizinhos uma dcada de reformas estruturais, de redirecionamento do Fundo Pblico para a estabilidade monetria (Oliveira, 1998), e, portanto, do apelo governamental a ONGs e companhias privadas para colaborarem em setores tradicionalmente geridos e financiados pelo investimento pblico. Um desses setores a sade. Trata-se de um perodo de abertura comercial (desde o governo Fernando Collor), de aumento do rigor fiscal (Plano Real), de apreciao cambial (idem) e de controle da inflao por meio da elevao dos juros reais (idem). Diretrizes que, direta ou indiretamente, limitam o investimento estatal. A juridificao desse novo modelo de Estado e de espao pblico se constri por vrios instrumentos legais e jurdicos. Poderamos citar aqui a prtica recorrente e comum aos ltimos quatro governos federais da Desvinculao das Receitas da Unio (DRU), a Lei de 21

As aes judiciais no SUS e a promoo do direito sade

Responsabilidade Fiscal, que j de 2000, etc. Na esteira da interpretao de Celso Furtado (1998, 2002), poderamos caracterizar as inovaes legislativas trazidas por esse momento histrico como ambguas: de um lado, buscam coibir o endividamento irresponsvel por parte do Estado, marca da tradio clientelista e paternalista da poltica brasileira. Mas, de outro lado, deixam intocada a segunda metade do problema: como permitir o planejamento pblico do desenvolvimento nacional com um Estado tradicionalmente descapitalizado e, agora, de mos atadas? Como capitaliz-lo, se a diretriz mundial a desregulao financeira? Toda essa reconstruo histrica nos permite agora compreender a abordagem que gostaria de dar ao tema deste seminrio: As Aes Judiciais no SUS e a Promoo do Direito Sade. Ora, visto por esse prisma, o problema da judicializao da poltica de sade no Brasil torna-se um espao em que colidem duas lgicas distintas, que poderamos apresentar da seguinte forma, de maneira bem esquemtica: A lgica do jurista. Noes de repblica e democracia implicam noo de Direitos, dotados de carter universal. A lgica do economista. Ateno ao equilbrio macroeconmico, ao equilbrio fiscal e monetrio. Racionalidade tcnica, administrativa. Essa polaridade se repe na tenso entre Executivo (critrio tcnico-fiscalista) e Judicirio (perspectiva garantista). Alis, importante que os juristas reconheam que, muitas vezes, o Judicirio est muito longe de dominar o conhecimento tcnico adequado dos problemas. Ademais, isso talvez seja pior, por um problema de formao universitria, o Judicirio tende a encarar o problema numa chave privatista, enxergando um conflito atomizado entre contratantes o Estado e o cidado individual onde h, na verdade, um conflito ou um problema estrutural, social, envolvendo sujeitos mais amplos que o cidado singular, um problema de sade pblica, no qual deve preponderar o interesse pblico, e no um vnculo contratual de direito privado. O problema precisar para qual direo, para qual daquelas duas lgicas pende o interesse pblico.

A crise de legitimidade da democracia e o sistema de sade brasileiroAs principais foras polticas do pas comungam das mesmas estratgias para salvaguardar a estabilidade fiscal e monetria. Essa no , pois, uma varivel em questo. Tambm verdade que a noo de democracia, desde as origens gregas, implica a participao no espao pblico entre iguais. A tica, a liberdade, a ao livre se d num terreno de liberdade, onde se livre da necessidade, necessidade essa que caracteriza justamente a esfera privada, mas no a pblica (Arendt, 2005), onde se livre para participar do poder, das decises pblicas. Alm disso, a liberdade ganha um contedo novo no sculo 20: o gozo de direitos que tm como marca a universalidade e que demandam prestaes positivas por parte do Estado. Assumidas essas premissas, localizo duas tenses: A restrio do carter universalista do Direito Sade em virtude de limitaes oramentrias pe em causa o sentido de igualdade e de reconhecimento da alteridade 22

tica, cidadania e direito sade

entre cidados valores esses de concretizao j tradicionalmente precria em nossa sociedade (Chau, 2000) , e com isso ameaa o prprio sentido de democracia como comunidade poltica no Brasil. A transferncia, no sistema de sade, de parte da racionalidade decisria para agentes privados atinge o sentido de participao no poder por parte do cidado, de influncia do homem comum nos processos decisrios, de participao pblica no poder, atingindo-se tambm, com isso, o prprio sentido da democracia. Essas duas tenses, que a criatividade poltica ter de resolver, com a oportuna contribuio de discusses como esta que aqui realizamos, guardam muita semelhana com o diagnstico partilhado por alguns juristas, socilogos e filsofos sociais contemporneos: o de que a crise de legitimidade atravessada pelas democracias contemporneas exemplo trivial dessa crise a tendncia observada j h mais de uma dcada baixa frequncia dos eleitores s urnas em pases como Frana, Itlia... que essa crise radicaria, em parte, no encolhimento e na despolitizao do espao pblico (Habermas, 1983, para um diagnstico que toca essas questes j em fins dos anos 1960).

Referncias BibliogrficasArendt, Hannah. A Condio Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria; 2005. Chau, Marilena. Brasil mito fundador e sociedade autoritria. So Paulo: Fundao Perseu Abramo; 2000. Furtado, Celso. O capitalismo global. So Paulo: Paz e Terra; 1998. Furtado, Celso. Em busca de novo modelo. So Paulo: Paz e Terra; 2002. Habermas, J. Tcnica e Cincia enquanto Ideologia. Em: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. Textos escolhidos. So Paulo: Abril Cultural; 1983, pp. 313-343. (Os pensadores). Oliveira, Francisco. Os direitos do antivalor. A economia poltica da hegemonia imperfeita. Petrpolis: Vozes; 1998.

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AlgumAs considerAes soBre o direito fundAmentAl proteo e promoo dA sAde Aos 20 Anos dA constituio federAl de 19881Ingo Wolfgang Sarlet2* Mariana Filchtiner Figueiredo3**Sumrio: I. Comentrios introdutrios: a constitucionalizao do direito fundamental sade e os principais instrumentos legislativos de sua regulao. II. Anotaes concernentes ao regime jurdico-constitucional do direito sade. 2.1. Generalidades. 2.2. A dupla fundamentalidade formal e material do direito sade. 2.3. O dever fundamental de proteo da sade. 2.4. Contedo do direito fundamental sade. 2.5. Titulares e destinatrios do direito fundamental sade. III. O Sistema nico de Sade. 3.1. O Sistema nico de Sade como garantia institucional fundamental. 3.2. Princpios informadores do SUS: unidade, descentralizao, regionalizao e hierarquizao, integralidade e participao da comunidade. 3.3. A assistncia sade prestada pela iniciativa privada: a sade suplementar. 3.4. A relevncia pblica dos servios e aes de sade. IV. A exigibilidade do direito fundamental sade como direito subjetivo: limites, possibilidades e a busca de critrios seguros para orientar a interveno judicial. 4.1. As diferentes posies jurdico-subjetivas decorrentes do direito fundamental sade e o problema de sua efetivao diante da assim denominada reserva do possvel. 4.2. O princpio da igualdade e a interpretao dos conceitos de gratuidade, universalidade e atendimento integral na efetivao do direito fundamental sade. V. A concretizao (eficcia social) do direito sade: alguns dados para discusso e algumas tendncias. VI. Consideraes finais: algumas tendncias no que diz com a efetivao do direito sade no Brasil.

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Verso originalmente divulgada na Revista de Direito do Consumidor n 67, julho setembro 2008, p. 125-172.

2* Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Munique. Estudos em nvel de Ps-Doutorado em Munique (bolsista CAPES/DAAD e Max-Planck) e Georgetown. Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e Cincias Criminais da PUCRS. Representante brasileiro e correspondente cientfico junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (Munique). Professor do Doutorado em Direitos Humanos da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS). Pesquisador-visitante na Harvard Law School. Juiz de Direito em Porto Alegre. 3** Mestre em Direito (Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS). Especialista em Direito Municipal (Centro Universitrio Ritter dos Reis UniRITTER). Advogada da Unio. Integrante do GEDF Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais (PUCRS/CNPq).

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Resumo: O presente artigo, buscando contribuir para um balano, examina o direito fundamental sade, especialmente em termos das possibilidades e limites no que diz com sua eficcia e efetividade, tomando por parmetro os desenvolvimentos doutrinrios, jurisprudenciais e institucionais verificados desde a promulgao da Constituio Federal de 1988. Palavras chave: direito sade Constituio Federal de 1988 eficcia e efetividade Abstract: This article examines the fundamental right to health, specially in terms of the possibilities and limits of its efficacy and effectiveness, based on doctrinal, jurisprudential and institutional developments verified since the promulgation of the Brazilian Federal Constitution, in 1988. Key words: right to health Federal Constitution from 1988 efficacy and effectiveness

I. Comentrios introdutrios: a constitucionalizao do direito fundamental sade e os principais instrumentos legislativos de sua regulaoA consagrao constitucional de um direito fundamental sade, juntamente com a positivao de uma srie de outros direitos fundamentais sociais, certamente pode ser apontada como um dos principais avanos da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 (doravante designada CF), que a liga, nesse ponto, ao constitucionalismo de cunho democrtico-social desenvolvido, sobretudo, a partir do ps-II Guerra. Antes de 1988, a proteo do direito sade ficava restrita a algumas normas esparsas, tais como a garantia de socorros pblicos (Constituio de 1824, art. 179, XXXI) ou a garantia de inviolabilidade do direito subsistncia (Constituio de 1934, art. 113, caput). Em geral, contudo, a tutela (constitucional) da sade se dava de modo indireto, no mbito tanto das normas de definio de competncias entre os entes da Federao, em termos legislativos e executivos (Constituio de 1934, art. 5, XIX, c, e art. 10, II; Constituio de 1937, art. 16, XXVII, e art. 18, c e e; Constituio de 1946, art. 5, XV, b e art. 6; Constituio de 1967, art. 8, XIV e XVII, c, e art. 8, 2, depois transformado em pargrafo nico pela Emenda Constitucional n 01/1969), quanto das normas sobre a proteo sade do trabalhador e das disposies versando sobre a garantia de assistncia social (Constituio de 1934, art. 121, 1, h, e art. 138; Constituio de 1937, art. 127 e art. 137, item 1; Constituio de 1946, art. 157, XIV; Constituio de 1967, art. 165, IX e XV). 26

Algumas consideraes sobre o direito fundamental proteo e promoo da sade aos 20 anos da Constituio Federal de 1988

A atribuio de contornos prprios ao direito fundamental sade, correlacionado, mas no propriamente integrado nem subsumido garantia de assistncia social, foi exatamente um dos marcos da sistemtica introduzida em 1988, rompendo com a tradio anterior, legislativa e constitucional, e atendendo, de outra parte, s reivindicaes do Movimento de Reforma Sanitria, que muito influram o constituinte originrio, notadamente pelo resultado das discusses travadas durante a VIII Conferncia Nacional de Sade4. A explicitao constitucional do direito fundamental sade, assim como a criao do Sistema nico de Sade (SUS) decorrem, assim, da evoluo dos sistemas de proteo antes institudos em nvel ordinrio (do Sistema Nacional de Sade, criado pela Lei n 6.229/1975 e, j em 1987, do Sistema Unificado e Descentralizado de Sade SUDS). Algumas das principais caractersticas do regime jurdico-constitucional do direito sade tambm so reflexos deste processo, tais como: a) a conformao do conceito constitucional de sade concepo internacional estabelecida pela Organizao Mundial da Sade (OMS), sendo a sade compreendida como o estado de completo bem-estar fsico, mental e social; b) o alargamento do mbito de proteo constitucional outorgado ao direito sade, ultrapassando a noo meramente curativa, para abranger os aspectos protetivo e promocional da tutela devida; c) a institucionalizao de um sistema nico, simultaneamente marcado pela descentralizao e regionalizao das aes e dos servios de sade; d) a garantia de universalidade das aes e dos servios de sade, alargando o acesso at ento assegurado somente aos trabalhadores com vnculo formal e respectivos beneficirios; e) a explicitao da relevncia pblica das aes e dos servios de sade5. Alm de consideraes mais especficas acerca do regime jurdico-constitucional do direito sade, a serem desenvolvidas nos tpicos subseqentes, importa aqui salientar, ainda, que a concepo larga do direito sade, na esteira da consagrao de outros direitos fundamentais sociais, tem sido objeto de uma constante abertura ao Direito Internacional, cujas normas passam, assim, a dialogar com o sistema constitucional ptrio. Nesse sentido, e no que concerne ao direito sade, destacam-se alguns dispositivos protetivos, entre os quais (e a listagem , evidncia, meramente exemplificativa): Declarao Universal de Direitos Humanos da Organizao das Naes Unidas (DUDH/ONU), de 1948, arts. 22 e 25 (direitos segurana social e a um padro de vida capaz de assegurar a sade e o bem-estar da pessoa); Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 19666, art. 12 (direito ao mais alto nvel possvel de sade); Conveno Americana de Direitos Humanos, conhecido como Pacto de So Jos da Costa Rica7, arts. 4 e 5 (direitos vida e integridade fsica e pessoal); Protocolo Adicional Conveno Americana sobre Direitos Humanos4 Como informa Ana Paula Raeffray, as Conferncias Nacionais de Sade foram institudas em 1937, pela Lei n 378, tendo por escopo facilitar o conhecimento, por parte do Governo Federal, acerca das atividades relativas sade no pas, assim como orientar a execuo dos servios locais o que ficou muito evidenciado na VIII Conferncia, em 1986. Cf. RAEFFRAY, A. P. O. de. Direito da Sade de acordo com a Constituio Federal. So Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 260-262. Idem, p. 262 e ss. O PIDESC foi internalizado pelo Decreto-legislativo n 226, de 12 de dezembro de 1991, e promulgado pelo Decreto n 591, de 06 de julho de 1992. O Pacto de So Jos da Costa Rica foi internalizado pelo Decreto-legislativo n 27, de 26 de maio de 1992, e promulgado pelo Decreto n 678, de 06 de novembro de 1992.

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em matria de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, o denominado Protocolo de So Salvador8, art. 10 (direito sade); Declarao de Alma-Ata, de 1978, item I (a realizao do mais alto nvel possvel de sade depende da atuao de diversos setores sociais e econmicos, para alm do setor da sade propriamente dito)9.

II. Anotaes concernentes ao regime jurdico-constitucional do direito sade2.1. Generalidades Questo preliminar, que antecede anlise do regime jurdico-constitucional do direito fundamental sade, diz respeito ao reconhecimento das interconexes que h entre a proteo da sade, individual e coletivamente considerada, e uma srie de outros direitos e interesses tutelados pelo sistema constitucional ptrio. Nesse sentido, assume particular relevncia a compreenso de que a salvaguarda do direito sade tambm se d pela proteo conferida a outros bens fundamentais, com os quais apresenta zonas de convergncia e mesmo de superposio (direitos e deveres), fato que refora a tese da interdependncia e mtua conformao de todos os direitos humanos e fundamentais10. Dentre esses bens constitucionais podem ser citados, a ttulo ilustrativo, a vida, a dignidade da pessoa humana, o ambiente, a moradia, a privacidade, o trabalho, a propriedade, a seguridade social, alm da proteo do consumidor, da famlia, de crianas e adolescentes, dos idosos. Tal fato reforado, ademais, pela noo de intersetorialidade, a que alude a Declarao de Alma-Ata, de 1978, que nada mais significa seno que a efetivao do direito sade no incumbe de modo exclusivo ao setor da sade, mas, diversamente, na medida em que compreendido como garantia de qualidade mnima de vida, depende da consecuo de polticas pblicas mais amplas, direcionadas superao das desigualdades sociais e ao pleno desenvolvimento da personalidade, inclusive pelo compromisso com as futuras geraes11. Refira-se, alis, que estudo recentemente publicado pela Organizao Mundial de8 9 O Protocolo de So Salvador foi internalizado pelo Decreto-legislativo n 56, de 19 de abril de 1995, e promulgado pelo Decreto n 3.371, de 31 de dezembro de 1999. VANDERPLAAT, M. Direitos Humanos: uma Perspectiva para a Sade Pblica. In: Sade e Direitos Humanos. Ano 1, n. 1. Ministrio da Sade. Fundao Oswaldo Cruz, Ncleo de Estudos em Direitos Humanos e Sade. Braslia: Ministrio da Sade, 2004, p. 27-33. Disponvel em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/publicacoes/saude-e-direitos-humanos/pdf/sdh_2004. pdf, acesso em 31-05-2008. A Declarao foi resultado da Conferncia Internacional sobre Cuidados Primrios de Sade, realizada em Alma-Ata, na antiga Unio Sovitica (URSS), entre 06 e 12 de setembro de 1978.

10 Cf. LOUREIRO, J. C. Direito (proteco da) sade. In: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano. Coimbra: Coimbra Editora (Edio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), 2006, p. 657-692 (especialmente p. 660 e ss). Em direo semelhante, cf.: BIDART CAMPOS, G. J. Lo explcito y lo implcito en la salud como derecho y como bien jurdico constitucional, in MACKINSON, G.; FARINATI, A. Salud, Derecho y Equidad. Principios constitucionales. Polticas de salud. Biotica. Alimentos y Desarrollo. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001, p. 21-28; e, na mesma obra coletiva, CAYUSO, S. G. El derecho a la salud: un derecho de proteccin y de prestacin, p. 29-45, em que destaca, com base na jurisprudncia argentina, que la consideracin de la salud como valor en s, conectable pero no subordinable a intereses internos (p. 37). 11 Neste sentido, Ana Cleusa Serra Mesquita lembra que a atuao sobre os fatores socioeconmicos que influenciam as desigualdades nos padres epidemiolgicos mais complexa por se tratar de um campo de interseo com outras reas da poltica social (habitao, saneamento, educao etc). Cf. MESQUITA, A. C. S. Anlise da Distribuio da Oferta e da Utilizao

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Sade (OMS)12 demonstra a existncia de diferenas radicais nas condies de sade de pessoas pertencentes a diferentes grupos populacionais, inclusive dentro de um mesmo (e desenvolvido) pas, fato que afasta a considerao de fatores meramente biolgicos para destacar, como causa principal do problema, os denominados determinantes sociais de sade, ou seja, o ambiente no qual as pessoas nascem, vivem, crescem, trabalham e envelhecem13. Desse modo, ainda que no tivesse sido positivado explicitamente no texto constitucional, o direito sade certamente poderia ser admitido como direito fundamental implcito, semelhana do que acontece em outros sistemas jurdicos como o caso da Alemanha14,de Servios Pblicos de Sade no mbito Nacional. Braslia, 2008, p. 05. Disponvel in: http://portal.saude.gov.br/portal/ arquivos/pdf/estudo_servicos_publicos_saude.pdf, acesso em 24-05-2008. Em sentido semelhante, documento do Ministrio da Sade afirma que o princpio da eqidade quanto s condies de sade da populao brasileira ainda estaria muito distante de sua efetivao, e ressalta que [a] maior causa intersetorial, com a iniqidade e desigualdade da oferta de bens geradores da qualidade de vida, tais como: renda familiar, trabalho (urbano e rural), emprego, habitao, segurana, saneamento, segurana alimentar, Eqidade na qualidade de ensino, lazer e outros. In: BRASIL. Ministrio da Sade. Conselho Nacional de Sade. O Desenvolvimento do Sistema nico de Sade: avanos, desafios e reafirmao de seus princpios e diretrizes. 2 ed. atual. Braslia: Ministrio da Sade, 2004, p. 23-24. Disponvel in: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/desenvolvimento_sus_avancos_diretrizes_2ed.pdf, acesso em 24-05-2008. Relacionando as condies de sade dos indivduos qualidade de vida e ao ambiente, natural e construdo, no sentido de que os benefcios do lugar onde estejam as pessoas, inclusive no sentido dos equipamentos disponibilizados, so essenciais garantia de qualidade de vida e bem-estar, consultar MAGALHES, R. Desigualdades sociais e eqidade em sade. In: Sade e Direitos Humanos. Ano 1, n. 1. Ministrio da Sade. Fundao Oswaldo Cruz, Ncleo de Estudos em Direitos Humanos e Sade. Braslia: Ministrio da Sade, 2004, p. 65-66. Disponvel em http:// www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/publicacoes/saude-e-direitos-humanos/pdf/sdh_2004.pdf, acesso em 31-05-2008. No mbito do direito internacional, como lembra Helena Nygren-Krug, o 14 Comentrio-Geral do Comit de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais da Organizao das Naes Unidas (ONU) interpretou o direito sade como um direito inclusivo, levando em conta, alm da assistncia sade propriamente dita (cuidados e acesso), os recursos, a aceitao de prticas culturais, a qualidade dos servios de sade, mas tambm destacou os determinantes sociais de sade correlacionando-os ao acesso gua de boa qualidade e potvel, ao saneamento adequado, educao e informao em sade. In: NYGREN-KRUG, H. Sade e direitos humanos na Organizao Mundial da Sade. In: Sade e Direitos Humanos. Ano 1, n. 1. Ministrio da Sade. Fundao Oswaldo Cruz, Ncleo de Estudos em Direitos Humanos e Sade. Braslia: Ministrio da Sade, 2004, p. 15. Disponvel em http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/publicacoes/saude-e-direitos-humanos/pdf/sdh_2004.pdf, acesso em 31-05-2008. No campo especfico da assistncia farmacutica, voltada ao fornecimento de medicamentos, uma das propostas apresentadas como resultado da Conferncia Nacional de Medicamentos e Assistncia Farmacutica aponta exatamente para a necessidade de um dilogo intersetorial com todos os atores envolvidos na questo, a fim de discutir os princpios da universalidade e eqidade no acesso aos medicamentos, os critrios de acesso e a sustentabilidade do prprio SUS. Conferir: BRASIL. Ministrio da Sade, Conselho Nacional de Sade. Conferncia Nacional de Medicamentos e Assistncia Farmacutica: relatrio final: efetivando o acesso, a qualidade e a humanizao na assistncia farmacutica, com controle social. Braslia: Ministrio da Sade, 2005, p. 48. In: http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/confer_nacional_de%20medicamentos.pdf, acesso em 25-05-2008. Finalmente, entre os enfoques da atual poltica de sade do Ministrio da Sade, para os anos 2008-2011, destaca-se a intersetorialidade, pela percepo de que a qualidade de vida resulta da convergncia de um amplo leque de polticas indo do saneamento, da habitao, da educao e da cultura at as polticas voltadas para a gerao de renda e emprego. Cf. BRASIL. Ministrio da Sade. Secretaria-Executiva. Mais sade: direito de todos: 2008-2011. 2 ed. Braslia: Ministrio da Sade, 2008, p. 13. In http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/mais_saude_direito_todos_2ed.pdf, acesso em 25-05-2008. 12 O relatrio, publicado em 28-08-2008, intitula-se Combler le foss en une gnration: instaurer lquit en sant en agissant sur les dterminants sociaux de la sant. Disponvel em http://whqlibdoc.who.int/hq/2008/WHO_IER_CSDH_08.1_fre.pdf, acesso em 04092008. 13 Traduo livre do original francs; cf. Une Comission de lOMS constate que les inegalits tuent grande chelle. Disponvel em http://www.who.int/mediacentre/news/releases/2008/pr29/fr/print.html, acesso em 04-09-2008. A respeito do estudo, conferir, ainda, RIMBERT, P. Linjustice sociale tue, publicado na verso eletrnica de Le Monde Diplomatique. In: http://www. monde-diplomatique.fr/imprimer/16312/1fc55feb74. 14 De modo semelhante, refira-se que, no mbito do sistema interamericano de proteo dos direitos humanos, os direitos sociais tm sido tutelados por meio de direitos correlatos, notadamente o direito vida, alm da ntida relao com o princpio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, conferir sentena no caso Nios de la calle (Corte Interamericana de Derechos Humanos, caso Villagrn Morales y otros, sentencia de 19 de noviembre de 1999, voto concurrente de los doctores Antonio Augusto Canado Trindade y Alirio Abreu Burelli), mencionada por ARANGO, R. Estado social de derecho y derechos humanos. Disponvel em:

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As aes judiciais no SUS e a promoo do direito sade

por exemplo. No fosse isso suficiente, a clusula de abertura inserida no 2 do artigo 5 da CF permite a extenso do regime de jusfundamentalidade, especialmente a presuno em favor da aplicabilidade imediata e, pois, do mandado de otimizao, previstos pelo 1 do mesmo dispositivo constitucional, a outras normas relacionadas com o direito sade, ainda que externas ao catlogo dos artigos 5 e 6 da CF. O que parece certo, ao fim e ao cabo, que uma ordem constitucional que protege os direitos vida, integridade fsica e corporal e ao meio ambiente sadio e equilibrado evidentemente deve salvaguardar a sade, sob pena de esvaziamento (substancial) daqueles direitos. 2.2. A dupla fundamentalidade formal e material do direito sade. O direito sade comunga, na nossa ordem jurdico-constitucional, da dupla fundamentalidade formal e material da qual se revestem os direitos e garantias fundamentais em geral, especialmente em virtude do regime jurdico privilegiado que lhes outorgou a Constituio de 198815. A fundamentalidade em sentido material encontra-se ligada relevncia do bem jurdico tutelado pela ordem constitucional, que se evidencia pela importncia da sade como pressuposto manuteno da vida e vida com dignidade, ou seja, vida saudvel e com certa qualidade , assim como para a garantia das condies necessrias fruio dos demais direitos, fundamentais ou no, inclusive no sentido de viabilizao do livre desenvolvimento da pessoa e de sua personalidade. J a fundamentalidade formal decorre do direito constitucional positivo e, ao menos na Constituio ptria, desdobra-se em trs elementos: a) como parte integrante da Constituio escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, tambm o direito sade), situam-se no pice de todo o ordenamento jurdico, cuidando-se, pois, de normas de superior hierarquia axiolgica; b) na condio de normas fundamentais insculpidas na Constituio escrita, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado para modificao dos preceitos constitucionais) e materiais (clusulas ptreas) da reforma constitucional, embora tal condio ainda encontre resistncia por parte da doutrina; c) por derradeiro, nos termos do que dispe o 1 do artigo 5 da CF, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais so diretamente aplicveis, vinculando de forma imediata as entidades estatais e os particulares comando que alcana outros dispositivos de tutela da sade, por fora da clusula inclusiva constante do 2 do mesmo artigo 5 da CF. Considerando a evoluo na esfera doutrinria e jurisprudencial, verifica-se, contudo, que nem sempre o pleno regime jurdico da fundamentalidade reconhecido, havendo, de resto, acirrada discusso sobre diversos dos seus aspectos o que ser considerado mais adiante. Acesso em 28-03-2005. Alis, o prprio Rodolfo Arango refere que, no direito colombiano, a proteo do direito sade pela Corte Constitucional iniciou-se exatamente por sua concepo como direito fundamental por similaridade aos direitos vida digna e integridade pessoal; nesse sentido, cf.: ARANGO, R. O Direito Sade na Jurisprudncia Constitucional Colombiana. In: SOUZA NETO, C. P. de; SARMENTO, D. (coord.) Direitos Sociais: fundamentos, judicializao e direitos sociais em espcie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, especialmente p. 723-726. 15 Nesse sentido, cf. SARLET, I. W. Algumas consideraes em torno do contedo, eficcia e efetividade do direito sade na Constituio de 1988. In: Revista Interesse Pblico. Porto Alegre, v. 12, p. 91-107, 2001; MOLINARO, C. A; MILHORANZA, M. G. Alcance Poltico da Jurisdio no mbito do Direito Sade. In: ASSIS, A de. (coord.). Aspectos polmicos e atuais dos limites da jurisdio e do direito sade, Porto Alegre: Notadez, 2007, p. 220 e ss.. Ainda: FIGUEIREDO, M. F. Direito Fundamental Sade: parmetros para sua eficcia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

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2.3. O dever fundamental de proteo da sade. Para alm da condio de direito fundamental, a tutela jusfundamental da sade efetiva-se tambm como dever fundamental, conforme positiva o texto do artigo 196 da CF: [a] sade direito de todos e dever do Estado [...]. Trata-se, portanto, de tpica hiptese de direitodever, em que os deveres conexos ou correlatos tm origem, e so assim reconhecidos, a partir da conformao constitucional do prprio direito fundamental16. Por esta mesma razo, e j antecipando o que ser exposto com maior detalhe mais adiante, o objeto dos deveres fundamentais decorrentes do direito sade guarda relao com as diferentes formas pelas quais esse direito fundamental efetivado, podendo-se desde logo identificar sem prejuzo de outras possveis concretizaes uma dimenso defensiva, no dever de proteo da sade, que se revela, por exemplo, pelas normas penais de proteo vida, integridade fsica, ao meio ambiente, sade pblica, bem como em diversas normas administrativas no campo da vigilncia sanitria, que regulam desde a produo e a comercializao de diversos tipos de insumos e produtos at o controle sanitrio de fronteiras; e uma dimenso prestacional lato sensu, no dever de promoo sade, concretizada pelas normas e polticas pblicas de regulamentao e organizao do SUS, especialmente no que concerne ao acesso ao sistema, participao da sociedade na tomada de decises e no controle das aes de sade e ao incentivo adeso aos programas de sade pblica. Isso evidencia o carter peculiar de alguns deveres fundamentais, que ademais de se fazerem cogentes no mbito das relaes individuais (e o dever geral de respeito sade pblica e dos demais, e mesmo um dever de proteo e promoo da sade de cada pessoa consigo mesma17 talvez constituam o melhor exemplo disso), do origem a deveres de natureza poltica (como os deveres de elaborao e implementao de polticas pblicas direcionadas realizao do direito sade, concretizao do SUS e alocao dos recursos oramentrios conforme os patamares mnimos constitucionalmente estabelecidos para a rea da sade), tanto quanto deveres econmicos, sociais, culturais e ambientais (v.g., o controle do mercado de assistncia sade, pela interveno direta do Estado na esfera dos planos de sade privados e na regulao dos preos de medicamentos; a implementao de programas sociais de sade, notadamente pela assistncia a grupos desfavorecidos, inclusive em funo do tipo de doena que os acometa [doenas da pobreza, doenas rarssimas, epidemias, etc.]; a insero da sade nos currculos escolares e as campanhas de preveno de cunho [in]formativo; o controle de poluio, o licenciamento ambiental, a fiscalizao sobre uso e ocupao do solo, urbano e rural, etc.). Nesse contexto, pode-se observar que os deveres fundamentais relacionados ao direito sade, a depender do seu objeto, podem impor obrigaes de carter originrio, como no caso das16 Sobre os deveres fundamentais, cf. I. W. SARLET, A Eficcia dos Direitos Fundamentais. 9 ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 240 e ss; e NABAIS, J. C. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. Disponvel em: https://www.agu.gov.br/Publicacoes/Artigos/05042002JoseCasaltaAfaceocultadireitos_01.pdf, acesso em 05-042002. Acerca da concepo de dever fundamental, decorrente do direito sade, cf. FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 86 e ss. 17 A partir da, tem-se reconhecido at mesmo a possibilidade de interveno do Estado objetivando a proteo da pessoa contra si prpria, em homenagem ao carter (ao menos em parte) irrenuncivel da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais hiptese dos casos de internao compulsria e de cogente submisso do indivduo a determinados tratamentos , aspecto que, por sua vez, guarda relao com os conflitos entre os direitos e deveres relativos sade e a outros bens fundamentais.

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polticas de implementao do SUS, da aplicao mnima dos recursos em sade e do dever geral de respeito sade, ou obrigaes de tipo derivado, sempre que dependentes da supervenincia de legislao infraconstitucional reguladora, cuja hiptese mais eloqente talvez se encontre na obedincia s mais variadas normas em matria sanitria (nos campos penal, administrativo, ambiental, urbanstico, etc.). Ademais, se os exemplos demonstram que o principal destinatrio dos deveres fundamentais certamente o Estado, fato reiterado pelas expresses usadas no texto constitucional, isso no afasta uma eficcia no mbito privado, sobretudo em termos de obrigaes derivadas. Neste sentido, alis, cumpre destacar que a noo de deveres fundamentais conecta-se ao princpio da solidariedade, no sentido de que toda a sociedade tambm responsvel pela efetivao e proteo do direito sade de todos e de cada um18, no mbito daquilo que Canotilho denomina de uma responsabilidade compartilhada (shared responsability)19, cujos efeitos se projetam no presente e sobre as futuras geraes20 21, como j reconhecido na seara do direito ambiental. O que da parece inferir-se que se os deveres fundamentais no se confundem com os limites e restries aos direitos fundamentais, podem justific-los em certas hipteses, resguardados o ncleo essencial dos direitos e a parcela de contedo que densifique a dignidade da pessoa humana e o mnimo existencial, conformando, ento, o mbito de proteo do direito fundamental de que se cuida na hiptese concreta.

2.4. Contedo do direito fundamental sade. Uma das questes mais intricadas a respeito da interpretao das normas constitucionais que asseguram o direito fundamental sade diz respeito determinao do contedo que18 Nesse sentido, cf. CASAUX-LABRUNE, L. Le droit la sant. In CABRILLAC, R.; FRISON-ROCHE, M-A; REVET, T. Liberts et droits fondamentaux. 6 ed. rev. e aum. Paris: Dalloz, 2000, p. 631 e ss. 19 Cf. CANOTILHO, J. J. G. O direito ao ambiente como direito subjectivo. In: ______. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 178. 20 No caso das polticas de sade especialmente importante atentar para o fato de que muitas vezes a boa sade de um indivduo depende da boa sade dos demais. As implicaes da sade de um indivduo extrapolam esse indivduo, gerando o que em economia se denomina externalidades e determinando uma abordagem coletiva das questes de sade, a relevar a aplicao de critrios epidemiolgicos na alocao dos recursos pblicos, conforme leciona Marcelo Medeiros. Cf.: Princpios de Justia na Alocao de Recursos em Sade. Texto para discusso n 687, Rio de Janeiro, dezembro de 1999 ISSN 1415-4765. In: BRASIL. Ministrio da Sade. Curso de Iniciao em Economia da Sade para os Ncleos Estaduais/Regionais, p. 52-53. Disponvel em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/apostila_curso_iniciacao_economia_saude.pdf, acesso em 24-05-2008. Dentre muitos exemplos que poderiam ser enumerados para ilustrar externalidades na rea da sade, podem ser lembrados alguns mais comuns: as vacinas, que ao proteger a pessoa ou o animal vacinado, diminuem a possibilidade geral de contgio, pela reduo dos possveis vetores; os antibiticos, que utilizados por uma pessoa repercutem sobre toda a comunidade na qual esteja inserida, pois quanto mais complexo o antibitico usado, mais agressivos se tornam os agentes biolgicos da doena para todos os (possveis) atingidos; a dengue, cujo controle eficiente ou precrio est essencialmente ligado s condutas de preveno praticadas por cada membro da comunidade. 21 Em interessante estudo, Joo Arriscado Nunes e Marisa Matias exploram a noo de sade sustentvel, como resultado emergente da interseco de processos ecolgicos, sociais, tecnolgicos e polticos, cuja abrangncia (no espao e no tempo) e complexidade, requerem o desenvolvimento de novas abordagens para o desenho, a realizao e a avaliao das polticas ambientais e das tecnologias amigas do ambiente e da forma como as intervenes no campo da sade coletiva e da oferta de cuidados de sade so guiadas por preocupaes com a justia social e ambiental e pela ao precaucionria. Cf. NUNES, J. A.; MATIAS, M. Rumo a uma Sade Sustentvel: sade, ambiente e poltica. In: Sade e Direitos Humanos. Ministrio da Sade. Fundao Oswaldo Cruz, Ncleo de Estudos em Direitos Humanos e Sade Helena Besserman. Ano 3 (2006), n. 3. Braslia: Ministrio da Sade, 2006, p. 11. Disponvel em http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/publicacoes/saude-e-direitos-humanos/pdf/sdh_2006.pdf, acesso em 31-05-2008.

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da pode ser depreendido e exigido, uma vez que o texto de 1988, salvo algumas pistas, no especifica o que estaria includo na garantia de proteo e promoo da sade22. Certo, porm, que essa circunstncia no pode ser legitimamente utilizada como argumento a afastar a possibilidade de interveno judicial, embora indique, por sua vez, a relevncia de uma adequada concretizao por parte do legislador e, no que for cabvel, por parte da Administrao Pblica. De qualquer modo, e na esteira do que j foi dito anteriormente, a Constituio de 1988 alinhou-se concepo mais abrangente do direito sade, conforme propugna a OMS, que ademais de uma noo eminentemente curativa, compreende as dimenses preventiva e promocional na tutela jusfundamental. Nessa direo, parece mais apropriado falarse no simplesmente em direito sade, mas no direito proteo e promoo da sade23, inclusive como imagem-horizonte24 a ser perseguida. Seguindo as diretrizes do texto do artigo 196 da CF, tem-se a recuperao como referncia concepo de sade curativa, ou seja, garantia de acesso, pelos indivduos, aos meios que lhes possam trazer a cura da doena, ou pelo menos uma sensvel melhora na qualidade de vida (o que, de modo geral, ocorre nas hipteses de tratamentos contnuos)25. J as expresses reduo do risco de doena e proteo reportam-se noo de sade preventiva, pela realizao das aes e polticas de sade que tenham por escopo evitar o surgimento da doena ou do dano sade (individual ou pblica), ensejando a imposio de deveres especficos de proteo, decorrentes, entre outros, da vigncia dos princpios da precauo e preveno. O termo promoo, enfim, atrela-se busca da qualidade de vida, por meio de aes que objetivem melhorar as condies de vida e de sade das pessoas26 o que demonstra a sintonia do texto constitucional com o dever de progressividade na efetivao do direito sade, bem assim com a garantia do mais alto nvel possvel de sade, tal como prescrevem, respectivamente, os artigos 2 e 12 do PIDESC27. Outrossim, deve-se assinalar que o direito fundamental sade envolve um complexo de posies jurdico-subjetivas diversas quanto ao seu objeto, podendo ser reconduzido s noes de direito de defesa e de direito a prestaes. Como direito de defesa (ou direito negativo), o direito sade visa salvaguarda da sade individual e da sade pblica contra ingerncias indevidas, por parte do Estado ou de sujeitos privados, individual e coletivamente considerados. Na condio de direito a prestaes (direito positivo), e especificamente como direito

22 Sobre o ponto, consultar FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 81 e ss. 23 Valem aqui as observaes feitas, no mbito do direito francs, por CASAUX-LABRUNE, L., lembrando que a sade no um bem disponvel, que possa ser conferido a algum, razo pela qual pode ser apenas resguardado e promovido. Cf. op. cit., p. 617-619. Tambm LOUREIRO, J. C. Direito (proteco da) sade, op. cit., 2006. 24 SCLIAR, M. Do mgico ao social: A trajetria da sade pblica. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 32-33. 25 Nesse sentido, Rodolfo Arango colaciona interessante precedente, no qual a Corte Constitucional da Colmbia (sentena T-001, de 1995) refere que a noo de cura no necessariamente implica erradicao total dos sofrimentos, seno que envolve as possibilidades de melhoria para o paciente, assim como os cuidados indispensveis para impedir que sua sade se deteriore ou diminua de maneira ostensiva, afetando sua qualidade de vida. Cf. ARANGO, R. O Direito Sade na Jurisprudncia Constitucional Colombiana, op. cit., p. 728. 26 SCHWARTZ, G. A. D. Direito sade: efetivao em uma perspectiva sistmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 27 e p. 98-99. Como assinala Germn Bidart Campos, no es buena una calidad de vida cuando una persona no dispone de cuanto es imprescindible para la atencin de la salud (op. cit., p. 24). 27 Art. 12, 1: Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nvel possvel de sade fsica e mental.

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a prestaes em sentido amplo, o direito sade impe deveres de proteo da sade pessoal e pblica, assim como deveres de cunho organizatrio e procedimental (v.g., organizao dos servios de assistncia sade, das formas de acesso ao sistema, da distribuio dos recursos financeiros e sanitrios, etc; bem como a regulao do exerccio dos direitos de participao e controle social do SUS, notadamente pela via dos Conselhos e das Conferncias de Sade). Por sua vez, como direito a prestaes em sentido estrito, o direito sade fundamenta as mais variadas pretenses ao fornecimento de prestaes materiais (como tratamentos, medicamentos, exames, internaes, consultas, etc.). Nesse contexto, saliente-se a tendncia crescente da doutrina e da jurisprudncia ptrias no sentido da afirmao da exigibilidade judicial de posies subjetivas ligadas tutela do mnimo existencial que, por sua vez, vai alm da mera sobrevivncia fsica, para albergar a garantia de condies materiais mnimas para uma vida saudvel28 (ou o mais prximo disso, de acordo com as condies pessoais do indivduo) e, portanto, para uma vida com certa qualidade29. De outra parte, cabe referendar o reconhecimento de uma relevante dimenso objetiva do direito sade, que, alm de outros efeitos decorrentes da dimenso objetiva dos direitos fundamentais como um todo, tem justificado a imposio de deveres de proteo ao Estado e aos particulares, direta ou indiretamente fundados no texto constitucional (deveres originrios e deveres derivados, respectivamente), como mencionado alhures. Alm disso, a dimenso objetiva do direito sade respalda a extenso da tutela jusfundamental ao prprio Sistema nico de Sade (SUS), como tpica garantia institucional, estabelecida e regulada originariamente em nvel constitucional30 o que ser objeto de consideraes mais adiante. 2.5. Titulares e destinatrios do direito fundamental sade. A letra explcita do texto constitucional desde logo aponta o carter de universalidade do direito sade (e do prprio SUS), como direito de todos e de cada um, na esteira do disposto no artigo 5, caput, da CF. Vigente, pois, o princpio da universalidade, no sentido de que o direito sade reconhecido a todos pelo fato de serem pessoas, o que tambm no impede que haja diferenciaes na aplicao prtica da norma, especialmente quando sopesada com o princpio da igualdade o que o bastante para demonstrar que, embora correlacionados, tais princpios no se confundem31. A partir disso possvel sustentar-se, em linha de prin-

28 Propugnando pela consagrao e realizao de direitos positivos e ressaltando as vantagens, a longo prazo, dos regimes jurdicos que optam pela concesso de prestaes materiais, pelo Estado, aos necessitados, consultar interessante estudo de POLLACK, M. O alto custo de no se ter direitos positivos, uma perspectiva dos Estados Unidos. Traduo de Francisco Kmmel. In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (org.) Direitos Fundamentais: oramento e reserva do possvel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 363-389. 29 Traando alguns parmetros de concretizao do mnimo existencial relativamente ao direito sade, cf. SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F. Reserva do possvel, mnimo existencial e direito sade: algumas aproximaes. In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (org.) Direitos Fundamentais: oramento e reserva do possvel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 11-53 (especialmente p. 42-49); e FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 204 e ss. 30 Sobre as garantias institucionais, consultar SARLET, I. W., A Eficcia dos Direitos Fundamentais, p. 165 e p. 200 e ss. Sobre o SUS, como garantia institucional, cf. FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 45-46. 31 Para maior aprofundamento, no que concerne titularidade dos direitos fundamentais em geral, conferir I. W. SARLET, A Eficcia dos Direitos Fundamentais. op. cit., p. 228 e ss.

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cpio, a titularidade universal do direito sade, respaldada em sua estreita vinculao com os direitos vida e integridade fsica e corporal, sendo de afastar a tese que, de forma generalizada e sem excees, procura cingi-lo somente aos brasileiros e estrangeiros residentes no pas. Ressalve-se que nem mesmo as polticas pblicas atualmente vigentes do amparo a esse tipo de interpretao restritiva, na medida em que apresentam carter nitidamente inclusivo, como so exemplo alguns programas especiais de assistncia sade, seja porque dirigidos a grupos populacionais especiais dentro do territrio nacional, como no caso dos povos indgenas32, seja porque voltados populao estrangeira que acorre aos servios pblicos nas cidades da fronteira terrestre do Brasil33, demonstrando, enfim, que o caminho no a excluso. De outra parte, a caracterizao do direito sade como um direito coletivo, ou mesmo como um interesse difuso em certas hipteses, no lhe serve para afastar a titularidade individual que apresenta, visto que, a despeito das questes ligadas sade pblica e coletiva, jamais perder o cunho individual que o liga proteo individual da vida, da integridade fsica e corporal pessoal, assim como da dignidade da pessoa humana individualmente considerada em suas particularidades, at mesmo em termos de garantia das condies que constituam o mnimo existencial de cada um. Dessa forma, em que pese ser possvel (e at desejvel!) priorizar uma tutela processual coletiva no campo da efetivao do direito sade34, isto no significa que ao direito sade possa ser negada a condio de direito de titularidade individual. No h confundir, ademais, a titularidade universal do direito fundamental com

32 Por meio da Medida Provisria n 1.911-08, de 29 de julho de 1999, e da Lei n 9.836, de 23 de setembro de 1999, foi institudo o Subsistema de Ateno Sade Indgena, de responsabilidade da Fundao Nacional de Sade (FUNASA), para atendimento a uma parcela da populao brasileira que se estima em mais de 400.000 pessoas, integrantes de 215 povos e falando pelo menos 180 lnguas. A assistncia se d de modo descentralizado, mas integrado ao SUS, por meio dos Distritos Sanitrios Especiais Indgenas (DSEI), considerados uma unidade organizacional da Funasa, com uma base territorial e populacional sob responsabilidade sanitria claramente identificada, voltada principalmente para as aes de ateno bsica, segundo as peculiaridades do perfil epidemiolgico dessas populaes. Para aprofundamento, consultar: http://www.funasa.gov.br/. 33 A partir da constatao de que os servios de sade nacionais eram utilizados por brasileiros e estrangeiros residentes nas cidades vizinhas ao territrio nacional, foi criado o Sistema Integrado de Sade das Fronteiras (SIS-Fronteiras), implementado pela Portaria GM n 1.120, de 06/07/2005 do Ministrio da Sade, com objetivo de integrar as aes de assistncia sade nas cidades da fronteira terrestre do pas e, assim, alcanar uma populao de cerca de 3 milhes de habitantes, distribudos em 121 Municpios dos 15.719km da fronteira nacional. Alm da organizao e do fortalecimento dos sistemas locais de sade, o programa tem por meta estimular o planejamento e a implantao de aes e acordos bilaterais ou multilaterais entre os pases que compartilham fronteiras entre si, por intermdio um diagnstico homogneo da situao de sade alm dos limites da fronteira geopoltica brasileira, como consta das informaes colhidas junto ao portal da sade (in http://portal.saude.gov.br/portal/ saude/Gestor/visualizar_texto.cfm?idtxt=26139). Para aprofundamento e consulta aos dados atualizados, conferir: http://portal. saude.gov.br/portal/saude/Gestor/area.cfm?id_area=1228. 34 Nesse sentido, conferir estudo do Prof. Lus Roberto Barroso sobre as aes judiciais pleiteando o fornecimento de medicamentos pelo Estado, em que sustenta a melhor adequao das demandas coletivas para a pretenso, excepcional, de incluso de novos medicamentos nas listas e diretrizes teraputicas do SUS, reservando s aes individuais o pedido dos frmacos j oferecidos pelo sistema pblico. BARROSO, L. R. Da falta de efetividade judicializao excessiva: direito sade, fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros para a atuao judicial. In: Interesse Pblico, n. 46, nov.-dez./2007, p. 31-61. Em sentido semelhante, SOUZA NETO, C. P. de. A Justiciabilidade dos Direitos Sociais: Crticas e Parmetros, in SOUZA NETO, C. P; SARMENTO, D. (coord.) Direitos Sociais: Fundamentos, Judicializao e Direitos Sociais em Espcie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 515-551; nessa mesma obra coletiva, cf., ainda: SARMENTO, D., A Proteo Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parmetros tico-Jurdicos, p. 553-586; BARCELLOS, A. P. de. O Direito a Prestaes em Sade: Complexidades, Mnimo Existencial e o Valor das Abordagens Coletiva e Abstrata, p. 803-826; e HENRIQUES, F. V. Direito Prestacional Sade e Atuao Jurisdicional, p. 827-858. Ressalvando a necessidade de um melhor aprofundamento sobre o tema, uma vez que o direito individual de ao reflete forma concreta de manifestao da cidadania ativa e instrumento de participao do indivduo no controle social das aes estatais, cf. SARLET, I. W. A Eficcia dos Direitos Fundamentais, p. 374-375.

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a universalidade do acesso ao SUS, especialmente no que concerne assistncia pblica sade, aspecto que poder eventualmente sofrer objees diante das circunstncias do caso concreto, sobretudo se tiverem por escopo a garantia de eqidade do sistema como um todo ou seja, a concretizao do princpio da igualdade em sua dimenso material, justificando, a final, discriminaes positivas em prol da diminuio das desigualdades regionais e sociais, ou da justia social, por exemplo. Relativamente aos seus destinatrios, o direito sade tem como sujeito passivo principal o Estado, como ocorre, alis, com a generalidade dos direitos fundamentais sociais. Cabe precipuamente ao Estado a realizao de medidas voltadas proteo da sade das pessoas, efetivando o direito em sua dimenso negativa (notadamente no sentido de no-interferncia na sade dos indivduos) e positiva (v.g., organizando instituies e procedimentos direcionados tutela individual e coletiva da sade, tomando providncias para o atendimento dos deveres de proteo, fornecendo diretamente os bens materiais necessrios prestao da assistncia sade). Isso no exclui, bom enfatizar, a eficcia do direito sade na esfera das relaes entre particulares35, o que se manifesta tanto de maneira indireta, mediante a prvia interveno dos rgos estatais, quanto de modo direto, cujo exemplo talvez mais conhecido so as normas de proteo ao trabalhador, j tradicionais no direito constitucional ptrio.

III. O Sistema nico de Sade.3.1. O Sistema nico de Sade como garantia institucional fundamental. A dimenso objetiva do direito sade, ademais das consideraes acerca da funo protetiva do direito e de sua eficcia entre particulares, densifica-se de modo especial e relevante pela institucionalizao constitucional do Sistema nico de Sade (SUS), que assume a condio, na ordem jurdico-constitucional brasileira, de autntica garantia institucional fundamental36. Tendo sido estabelecido e regulamentado pela prpria Constituio de 1988, que estipulou os princpios pelos quais se estrutura e os objetivos a que deve atender, alm de consistir no resultado de aperfeioamentos efetuados a partir de experincias anteriores frustradas e, de outra parte, consistir em reivindicao feita pela sociedade civil organizada, sobremodo no Movimento de Reforma Sanitria que precedeu elaborao do texto constitucional, o35 Sobre a eficcia do direito sade no mbito das relaes privadas, cf., por todos, MATEUS, C. G. Direitos Fundamentais Sociais e Relaes Privadas: o caso do direito sade na Constituio brasileira de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, especialmente p. 137 e ss. Procedendo a uma anlise mais ampla, sustentando uma eficcia direta prima facie dos direitos fundamentais nas relaes privadas, cf. SARLET, I. W. A Influncia dos Direitos Fundamentais no Direito Privado: o caso Brasileiro, in: MONTEIRO, A. P.; NEUNER, J.; SARLET, I. (orgs.) Direitos Fundamentais e Direito Privado: uma Perspectiva de Direito Comparado. Coimbra: Almedina, p. 111-144. 36 A partir do reconhecimento da dimenso objetiva dos direitos fundamentais, a doutrina alem do primeiro ps-Guerra, sobretudo pelas obras de M. Wolff e C. Schmitt, passou a sustentar que existem certas instituies (direito pblico) ou institutos (direito privado) cuja relevncia justifica a extenso da proteo jusfundamental, sobretudo contra a atuao erosiva por parte do legislador ordinrio e do poder pblico em geral, a fim de resguardar, ao menos, o ncleo essencial das assim designadas garantias institucionais. Para maior aprofundamento sobre o tema, cf. SARLET, I. W., A Eficcia dos Direitos Fundamentais, p. 165 e p. 200 e ss. Defendendo a natureza de garantia institucional do SUS, cf. FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 45-46.

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Algumas consideraes sobre o direito fundamental proteo e promoo da sade aos 20 anos da Constituio Federal de 1988

SUS pode ser caracterizado, enfim, como uma garantia institucional fundamental. Sujeita-se, por conseguinte, proteo estabelecida para as demais normas jusfundamentais, inclusive no que tange sua insero entre os limites materiais reforma constitucional37, alm de estar resguardado contra medidas de cunho retrocessivo em geral. Desse modo, eventuais medidas tendentes a aboli-lo ou esvazi-lo, formal e substancialmente, at mesmo quanto aos princpios sobre os quais se alicera, devero ser consideradas inconstitucionais, pois que no apenas o direito sade protegido, mas o prprio SUS, na condio de instituio pblica, salvaguardado pela tutela constitucional protetiva. Outrossim, a constitucionalizao do SUS como garantia institucional fundamental significa que a efetivao do direito sade deve conformar-se aos princpios e diretrizes pelos quais foi constitudo, estabelecidos primordialmente pelos artigos 198 a 200 da CF38, dos quais se destacam a unidade, a descentralizao, a regionalizao, a hierarquizao, a integralidade e a participao da comunidade. 3.2. Princpios informadores do SUS: unidade, descentralizao, regionalizao e hierarquizao, integralidade e participao da comunidade. O princpio da unidade significa que o SUS um sistema nico e unificado, caracterstica pela qual o constituinte procurou superar as distores dos modelos anteriores a 1988, em especial quanto limitao da assistncia sade somente aos trabalhadores com vnculo formal e respectivos dependentes, ento segurados do Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS)39 situao que deixava, s demais pessoas, a opo entre o atendimento sade por profissionais particulares ou simplesmente a caridade. Sistema nico, ento, importa em que os servios e as aes de sade, pblicos ou privados, devem pautar-se e se desenvolver sob as mesmas polticas, diretrizes e comando. Trata-se de um s sistema, que abrange e sujeita a uma direo nica e, portanto, a um s planejamento (ainda que compartido nos nveis nacional, regional, estadual, municipal), as aes e os servios de sade. Conquanto nico, o SUS constitudo por uma rede regionalizada e hierarquizada que, preservada a direo nica em cada esfera de governo, atua segundo o princpio da descentralizao. A atuao regionalizada permite a adaptao das aes e dos servios de sade ao perfil epidemiolgico local40, atendendo no apenas s diretrizes da Organizao Mundial de Sade (OMS), como s reivindicaes do Movimento de Reforma Sanitria41 e conformando-se,37 Em sentido semelhante, cf., no direito portugus, Acrdo n. 39/84 (Dirio da Repblica, 2 srie, de 05-05-1984), e os comentrios de NOVAIS, J. R. Os princpios constitucionais estruturantes da Repblica Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 312-313. 38 Fazendo uma anlise geral sobre os princpios do SUS, cf. FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 96-102. 39 Cf. CARVALHO, M. S. de. A sade como direito social fundamental na Constituio Federal de 1988. Revista de Direito Sanitrio, v. 4, n. 2, p. 26, jul. 2003; e BRASIL. Conselho Nacional de Secretrios de Sade. Para entender a gesto do SUS. Braslia: CONASS, 2003, p. 14. 40 Os critrios epidemiolgicos possuiriam um alto grau de orientao coletividade, como leciona Marcelo Medeiros, partindo do grau de necessidade dos indivduos, em determinada situao de espao e tempo, como critrio de alocao e distribuio dos recursos de sade. Para maior aprofundamento, consultar MEDEIROS, M., op. cit., p. 67. 41 A VIII Conferncia Nacional de Sade j sugeria que o novo sistema de sade, depois configurado no SUS, deveria ser organizado com base epidemiolgica e ter prioridades claramente definidas em funo das necessidades locais e regionais, alm de estruturar-se com base nos conceitos de descentralizao, regionalizao e hierarquizao s centralizar o que realmente no for possvel descentralizar, conforme referncia de RAEFFRAY, A. P. O., op. cit., p. 285.

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As aes judiciais no SUS e a promoo do direito sade

em certa medida, reconhecida tradio municipalista brasileira. Neste sentido, possvel verificar um evidente liame entre a estrutura constitucional do SUS e o princpio federativo, que no Brasil tem a peculiaridade de um terceiro nvel de poder formado pelos Municpios. Por isso, a municipalizao a principal forma pela qual se densificam as diretrizes de descentralizao e regionalizao do SUS, no obstante aperfeioamentos e ajustes sejam sempre necessrios42, especialmente em funo da garantia de equilbrio na distribuio dos recursos de sade, em que sobrelevam os princpios da subsidiariedade e da eqidade no acesso assistncia assim prestada. Os princpios da descentralizao, regionalizao e subsidiariedade embasam as regras constitucionais de distribuio de competncias no mbito do SUS, bem como sua regulao normativa em nvel infraconstitucional (leis, decretos, portarias), por meio das quais a responsabilidade pelas aes e pelos servios de sade, aqui abrangido o fornecimento de bens materiais, cumpre precipuamente aos Municpios e aos Estados, em detrimento da Unio, que atua em carter supletivo e subsidirio. Isso no exclui, por certo, a atuao direta do ente central em algumas situaes, o que acontece exatamente em funo da harmonizao prtica entre os princpios constitucionais da eficincia, da subsidiariedade e da integralidade do atendimento, como demonstram, por exemplo, a assistncia de alta complexidade (a cargo da Unio e dos Estados, na forma da NOAS n 01/2002 que, nesse aspecto, reiterou o que j dispunha a NOAS n 01/2001)43, a regulao do setor privado (pelo disciplinamento das relaes entre o SUS e os prestadores privados, pelo estabelecimento de critrios e valores para a remunerao dos servios, pela fixao dos parmetros da cobertura oferecida)44 e a responsabilidade pela compra e distribuio do assim designado componente estratgico da assistncia farmacutica (isto , os medicamentos e tratamentos das aes de assistncia farmacutica dos programas de sade estratgicos, concernentes ao controle de endemias, ao fornecimento de anti-retrovirais [DST/AIDS], ao sangue