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A TEORIA DOS CONTRATOS INCOMPLETOS E A NATURAL INCOMPLETUDE DO CONTRATO DE CONCESSÃO por Tatiana Esteves Natal Procuradora do Estado do Rio de Janeiro

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A TEORIA DOS CONTRATOS INCOMPLETOS E A NATURAL

INCOMPLETUDE DO CONTRATO DE CONCESSÃO

por

Tatiana Esteves Natal

Procuradora do Estado do Rio de Janeiro

1. INTRODUÇÃO1

A passagem do Estado Brasileiro de Prestador para Regulador, ao contrário da

transformação do Estado Europeu, deu-se em um susto: apesar das inúmeras controversas e

impasses, entre outubro de 1991 e março de 1999 o Estado Brasileiro foi retirado da quase

totalidade dos setores econômicos sobre os quais manteve monopólio durante várias décadas.

Foram privatizadas estatais e concedida a gestão de diversos serviços públicos antes mesmo

que seu marco regulatório fosse delineado e que sua política tarifária fosse determinada. A

preocupação com a modicidade tarifária se deu em um momento posterior à assinatura dos

contratos de concessão, através da regulação tarifária ocorrendo, aparentemente, uma

incongruência com o Princípio do Equilíbrio Econômico-Financeiro, baseado na manutenção

das condições iniciais da proposta. Ao final do processo, podemos observar que, se de um

lado mantivemos a tradição francesa, na qual a titularidade do serviço permanece nas mãos do

Estado que o delega contratualmente a um particular – donde decorrem institutos afins como

o da garantia do equilíbrio econômico-financeiro – de outro buscamos no modelo americano

as bases para a regulação dos serviços concedidos.

Nesse sentido, o estudo das concessões dos serviços públicos no Brasil permite

observar que, por especificidades de nossa história, adotamos atualmente, de forma

concomitante, uma pluralidade de tradições referentes à estruturação dos serviços públicos: a

tradição francesa quanto ao caráter contratual da delegação do serviço e à consequente

obrigatoriedade de manutenção da proposta; a doutrina norte-americana de regulação tarifária

através da importação de conceitos como o do preço justo e da modicidade tarifária2, além da

teoria inglesa na regulação tarifária através da adoção de modelos de regulação por

1 A presente tese originou-se de parte do estudo realizado em dissertação defendida pela autora em julho/2009,

ainda não publicada, aprovada por unanimidade com conceito A, a qual lhe conferiu o grau de Mestre em Direito

Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, sob o título O Equilíbrio Econômico-

Financeiro: uma nova perspectiva em face do Estado Regulador. O aprofundamento do estudo ora apresentado

pode ser obtido junto à Biblioteca da UERJ. 2 O modelo americano traduz-se na taxa de retorno de capital, e tem por objetivo controlar o nível de

lucratividade das empresas privadas, eliminando excesso de lucro. Tal modelo se coaduna com o sistema daquele

País, uma vez que não se tem o sistema de serviço público delegado, mas de sim o de Public Utilities. Assim, a

regulação trata do controle do lucro de atividades que são desenvolvidas de forma privada pelos particulares, não

fazendo sentido se falar em equilíbrio econômico- financeiro. O sistema do price cap (modelo inglês) estabelece

que o índice de reajuste dos preços dos diversos serviços prestados pela empresa deve ser menor ou igual à

diferença entre o índice geral de inflação e X (valor estabelecido pela entidade reguladora para medir os ganhos

de produtividade da empresa).

incentivos, como o do price-cap3, na busca pela eficiência de mercado. Tais tradições têm

alicerces diferentes, e sua aplicação conjunta em um mesmo sistema, como ocorre no Brasil,

gera perplexidades e dificuldades.

O aprofundamento do estudo dos modelos de regulação tarifária por nós adotados

demonstra que o que inicialmente identifica-se como a adoção de marcos teóricos conflitantes

é, na verdade, uma tendência mundial de aproximação entre os modelos europeu-continental e

o norte-americano (public utilities4), fenômeno esse observado na União Européia. Nesse

sentido, inevitável a realização de uma política tarifária que busque a eficiência de mercado,

bem como a constante alteração do uso de diversos mecanismos e instrumentos econômicos

de regulação tarifária, conforme a evolução dos elementos do setor regulado (tecnologia,

mercado – concorrencial/monopolista e agentes).5

De toda sorte, podemos observar uma inevitável incompletude do contrato de

concessão visto que, durante seu termo, alteram-se os elementos do mercado, o padrão

tecnológico evolui e, da mesma forma, deverá mudar a política tarifária eleita inicialmente,

com reflexos necessários ao equilíbrio econômico-financeiro original. Nesse passo, ao longo

de um período de trinta anos, as mudanças tecnológicas tendem a ser gigantescas o que,

obviamente, traz impactos econômicos de toda ordem e, por vezes, extremamente intensos,

sobre determinado setor de serviços públicos. A tecnologia pode gerar, por exemplo,

competição econômica onde existia um monopólio natural, o que, certamente, frustraria as

previsões por demanda de serviço feitas, por vezes, pela própria administração pública, ao

realizar os estudos de viabilidade de uma concessão de serviços.

3 Tal constatação pode ser observada pela convivência das formas tradicionais de manutenção do equilíbrio

econômico-financeiro (reajuste e revisão) com outra forma de revisão, totalmente estranha à doutrina tradicional

do equilíbrio econômico-financeiro, qual seja, a revisão tarifária ordinária. 4 As public utilities são as atividades exploradas pelo setor privado que, devido a sua importância, são

permanentemente reguladas pelas Agências Reguladoras Independentes, a fim de que se garanta a concorrência e

se eliminem os vícios existentes no mercado, limitando-se, com isso, a liberdade gerencial e o planejamento dos

agentes econômicos. Assim, as empresas privadas devem adequar suas atividades de forma a otimizar a

prestação dessas atividades, principalmente no quesito qualidade, proporcionando ao usuário ou consumidor a

excelência do serviço. Perceba-se que não se fala em serviços públicos, cuja titularidade é estatal, mas sim em

atividades privadas de interesse público. Essas distintas noções decorrem da diversidade de experiências

históricas, econômicas, jurídicas, sociais e políticas vivenciadas por cada Estado. 5 Para um aprofundamento do estudo da regulação tarifária no Brasil, recomenda-se a leitura de PIRES, José

Cláudio Linhares. Avaliação dos modelos tarifários: price-cap, retorno sobre o investimento, benchmark

regulation, yardstick comparison. In Regulação, Defesa da Concorrência e Concessões, ASEP-RJ: Rio de

Janeiro, FGV, 2002.

Assim, na realidade do dia a dia das contratações de concessões de serviços públicos,

sem prejuízo da crítica a uma teoria que preconiza uma divisão abstrata de riscos, com base na

natureza dos mesmos (Teoria das Áleas)6, não há como as partes preverem todos os riscos e

incertezas possíveis, já que alguns decorrem da própria evolução tecnológica da atividade, ou

mesmo de alterações da política tarifária. Parece-nos aplicável, portanto, aos contratos de

concessão de serviços públicos, a teoria dos contratos incompletos, razão pela qual decidimos

estudá-la.

2. CONCEITUAÇÃO

Vai longe o tempo onde as transações econômicas caracterizavam-se pelo modelo

clássico ideal, composto por agentes atomizados, transacionando produtos indiferenciados,

envolvidos em uma transação única de troca pura ou monetária realizada no âmbito do

mercado, orientada pelo funcionamento do mecanismo de preços, como sinalizador único para

a avaliação da disposição das partes em negociar, sem que houvesse diferenças relevantes no

que tange à dominância entre partes que experimentam um equilíbrio recíproco em seu poder

de barganha.

Tais relações estavam sujeitas a contratos não-escritos, de curta vigência (de modo

geral, limitada à conclusão da aquisição ou troca) e fortemente baseados na confiança mútua

entre as partes transacionantes – que, via de regra, faziam-se fisicamente presentes no ato da

transação.

Com o avanço da modernização e complexificação das relações sociais, as transações

econômicas avançaram para formas multilaterais (para além do simples intercâmbio bilateral),

sujeitas ao interesse de agentes externos à transação (com ou sem a interveniência desses

terceiros), continuadas (ao invés de esporádicas), de execução diferida no tempo e vigência de

longo prazo, orientadas por um conjunto de sinalizadores de decisão mais amplo que o

mecanismo alocativo clássico dos preços relativos (um sistema articulado de incentivos e

6 O aprofundamento da crítica à teoria tradicional de divisão de riscos nos contratos de concessão pode ser

encontrado na dissertação de autoria dessa subscritora, ainda não publicada, todavia disponível junto à biblioteca

da UERJ, sob o título Equilíbrio Econômico-Financeiro: uma nova perspectiva em face do Estado Regulador.

coerções), efetuadas entre agentes detentores de diferentes poderes de barganha, que

intercambiam direitos de uso e uso-fruto em torno de ativos específicos e complementares,

acordando em torno de salvaguardas e provisões para lidar com contingências que pudessem

afetar o balanço de riscos e o comprometimento das partes com os termos inicialmente

contratados.

Surgiram também um amplo conjunto de transações econômicas que se dão extra-

mercado (como por exemplo, as relações internas ao âmbito das corporações e firmas e as

relações entre Poder Público Concedente e o agente concessionário no âmbito administrativo.

Tal surgimento impulsionou a necessidade de celebração de contratos elaborados que

dessem conta da complexidade e da intertemporalidade (diferimento no tempo) de tais

transações. Surge, assim, a busca pela elaboração de contratos completos.

A elaboração de contratos que se pretendam capazes de abarcar toda a complexidade

das relações econômicas modernas não é tarefa simples. Trata-se da institucionalização das

transações em um conjunto articulado de regras que contemplam incentivos e obrigações das

partes envolvidas. Em busca de uma definição precisa do conceito de contrato completo,

Cateb & GALLO7 oferecem-nos uma primeira – e bastante precária - aproximação:

“(...) Assim, contratos completos seriam aqueles capazes de especificar, em

tese, todas as características físicas de uma transação, como data,

localização, preço e quantidades, para cada estado de natureza futuro. Em

um contrato completo, a princípio, não haveria necessidade de verificação

ou determinação adicional dos direitos e obrigações das partes durante sua

execução, já que o instrumento delinearia todas as possibilidades de eventos

futuros envolvidos com o objeto da transação (...)”

Por sua vez, na esfera da Economia, Milgrom & Roberts8 oferecem uma definição das

características mínimas de um “contrato completo”:

(a) as partes devem antever todas as contingências relevantes ao longo da vigência do

contrato, devendo estar especificadas as “obrigações de fazer” (ações) e obrigações

pecuniárias (pagamentos) em caso de ocorrência;

7 CATEB, A. B. & GALLO, J. A. (2007). Breves considerações sobre a teoria dos contratos incompletos.

Berkley Program in Law and Economics Working Papers: 050107-4/2007. 8 MILGROM, P. & ROBERTS, J. Economics, Organization and Management. New York: Pilgrim Books: 1992.

(b) devem ser capazes de descrever nos contratos essas contingências, de modo que

não haja ambiguidade, precavendo-se, assim, de possíveis questionamentos;

(c) todas as partes devem estar satisfeitas (dispostas a se aterem aos termos do

contrato);

(d) as partes devem ser capazes de verificar se os termos do contrato estão sendo

cumpridos; e

(e) não deve haver incentivos para a renegociação.

Percebe-se que a elaboração de um “contrato completo” requer das partes uma ampla e

perfeita cognição do futuro, a capacidade de acordar em torno de um entendimento comum a

ser expresso no tempo presente e a disposição em obrigar-se em torno de inescrutáveis

contingências, repartindo riscos e resultados futuros com base em estimativas e expectativas

formadas pela investigação do passado.

Um breve escrutínio mental acerca das transações econômicas realizadas no cotidiano

da vida social sugere a inexistência empírica de contratos completos.9 Quando observamos

mais detidamente as transações econômicas mais simples e de pequeno valor (nas quais há

uma relação contratual tácita, porém não escrita), aprendemos que sua incompletude

intrínseca é suficiente, uma vez que as contingências possíveis e riscos relevantes são

diminutos e – uma vez presentes – são equacionados pela cooperação e solidariedade entre as

partes.

9 Não causa estranhamento o fato de que a ocorrência majoritária no mundo real é a de contratos incompletos. O

contrato completo é um conceito ideal. Em economia, os modelos teóricos são úteis para conformar, por

hipótese, situações ótimas (situadas no plano das é) e ilustrar seu afastamento de situações empíricas (os casos

concretos situados no mundo real). Assim, não há sentido prático em falar acerca da completude e incompletude

de um contrato, mas em ”grau de completude” dos contratos.

A completude contratual é tão mais desejável ou imperiosa quanto mais complexa e

potencialmente prenha de contingências e riscos seja a transação. Assim, uma transação

complexa demanda de seus agentes um maior esforço em busca da completude contratual do

que uma transação simples. Os contratos de concessão encaixam-se nesse segundo grupo. Sua

complexidade deriva não somente da temporalidade de sua vigência, da necessidade da

prestação continuada dos serviços ou da especificidade dos ativos envolvidos, mas também do

conjunto diverso de fatores externos que impactam a relação contratual estabelecida entre o

Poder Concedente e o concessionário. Tais fatores determinam a amplitude da tarefa

regulatória que encontra nas modalidades mais tradicionais de regulação por preços (price

cap, taxa de retorno ou margem), por quantidades (cotas, escala mínima) e por entrada e

saída, instrumentos precários para a consecução de resultados alinhados com os objetivos

regulatórios, com o interesse público e com o bem-estar social.

3 - A INCOMPLETUDE INTRÍNSECA DOS CONTRATOS DE LONGO PRAZO E A

TAREFA REGULATÓRIA

Para entender a tarefa regulatória, socorremo-nos em Sherer & ROSS (1970)10

. Sua

sistematização do modelo “Estrutura-Conduta-Desempenho” esquematiza as condicionantes

da dinâmica concorrencial e o amplo conjunto de variáveis a serem abarcadas pela tarefa

regulatória.

10

SHERER, F.M. & ROSS, D. (1970) Industrial Market Structure and Economic Performance. New York:

Rand McNally & Co., p. 576.

Figura 1. O modelo “Estrutura-Conduta-Desempenho” [SCP - The Structure-Conduct-Performance Model]

Observando o elevado número de fatores que impactam a estrutura do mercado, a

conduta dos agentes e o desempenho das firmas, podemos ter ideia de quão complexa e

intrincada é tal atividade a partir da perspectiva do poder regulador.

Ainda assim, em que pese a miríade de condições externas e internas a que uma

relação contratual regulatória está sujeita, parece-nos que a tal ação (em todas as sua

variantes) continua preponderantemente marcada pelo uso do mecanismo de preços

como instrumento principal – no caso em tela, a política tarifária. Toda a complexidade

parece reduzir-se à adoção de uma tarifa que garanta o equilíbrio econômico-financeiro do

contrato celebrado com o concessionário vis à vis os objetivos intertemporais do regulador:

garantir a modicidade tarifária, a universalização da cobertura, a continuidade e a qualidade

da prestação do serviço público pelo concessionário.

Acreditar ser possível conceber um contrato que garanta ex ante seu equilíbrio

econômico-financeiro ao longo do período de vigência implica em supor que os preços

refletem toda a informação relevante (o que é verdadeiro somente no modelo ideal da

competição perfeita) e as mudanças no ambiente externo relevante (o que não é verdadeiro

para nenhum modelo de organização de mercados) ou que as imperfeições deste sinalizador

(notadamente, os riscos derivados de comportamentos não-antecipados dos preços relativos)

possam ser objeto de repartição justa e/ou eficiente entre as partes no âmbito das disposições

contratuais.

A redução de todas essas condicionantes a uma equação tarifária que se pretenda

ajustável ao longo da vigência do contrato e capaz de reestabeler o equilíbrio econômico-

financeiro do contrato é de uma precariedade evidente, todavia inescapável, ainda que o

contrato de concessão estabeleça ex ante os riscos a que cada parte está sujeita. Por essa

razão, no mundo real, todo contrato que guarda algum grau de intertemporalidade – como

no caso dos contratos de concessão – é refém de sua incompletude implícita: é custoso, se

não impossível, antever todas as situações e combinações cambiantes a que estão sujeitos os

atributos do contrato.

Assim, considerando os contratos de longo prazo como intrinsecamente incompletos e

sendo tal incompletude relativa à complexidade e à especificidade da relação econômica que o

contrato pretende institucionalizar, cabe perguntar: até que ponto um contrato deve dar conta

da previsão ex ante de um futuro incerto?

4 - A BUSCA DO CONTRATO “EFICIENTE” PELA ABORDAGEM DOS CUSTOS

DE TRANSAÇÃO DE COASE

Antever o futuro no presente com base no passado é um esforço cognitivo complexo.

A elaboração de um contrato que se pretenda completo demanda tempo e implica na

mobilização de recursos econômicos e humanos especializados. Assim, supõe-se a existência

de um trade-off necessário entre seu grau de completude e os custos para alcançá-lo.

Ao ponto teórico de equilíbrio de tal impasse – ou seja, até onde deve avançar o

esforço concreto de detalhamento de um contrato – dá-se o nome de “contrato eficiente”. O

problema relativo à elaboração de contratos eficientes (que se mostrem “suficientemente”

completos ex ante) pode ser orientado por Coase (1960)11

.

Em sua Teoria dos Custos de Transação, Coase observa que existem custos para

realizar transações de qualquer tipo, e esses “custos de transação” diferem em função da

natureza da transação e do modo pelo qual ela é organizada. Por exemplo, transações simples

(unitárias e esporádicas) de compra e venda de um ativo indiferenciado à vista podem ser

realizadas com menores custos no âmbito do mercado (tome-se o caso ilustrativo de uma ida à

feira). Por outro lado, transações complexas e continuadas (que implicam no cumprimento de

um conjunto de obrigações entre as partes para que a relação permaneça vigente) em torno de

ativos específicos com mecanismos de liquidação intertemporais recomendam a celebração de

um contrato, uma vez que os “custos de transação” são relativos à procura, identificação,

barganha, entrega, liquidação e verificação do cumprimento de tais obrigações.12

Considerando, ainda, o “princípio da eficiência”, a tendência dos agentes seria adotar o modo

organizacional13

que tem custos de transação menores.

11

COASE, Ronald. The problem of social cost. Journal of Law and Economics, 3 no: 1960, p. 1:1-44. 12

A noção de custos de transação é quase intuitiva. Uma transação simples como a compra de um pé de alface

em uma feira de bairro não requer a celebração de um contrato escrito (ainda que haja uma relação contratual no

ato de compra e venda). Por outro lado, o provimento de serviços de energia elétrica a uma residência no mesmo

bairro implica a celebração de um contrato formal que discipline as obrigações relevantes de parte a parte. Impor

um contrato por escrito aos negócios celebrados entre donas-de-casa e feirantes seria incorrer em ineficiência,

uma vez que uma transação desta natureza incorre em menores custos de transação (sempre levando em conta os

resultados pretendidos e riscos enfrentados) quando realizada através do mercado. Ao revés, se tivéssemos de “ir

a mercado” para buscar a quantidade de kw necessária para alimentar o chuveiro elétrico para banho matinal,

identificando fornecedores confiáveis e barganhando preços, estaríamos incorrendo em custos de transação

muito mais elevados do que se optássemos pela celebração de um contrato de fornecimento continuado. 13

Em Coase (1960), o termo “modo organizacional” refere-se aos diferentes locus de efetivação das transações:

o mercado, a firma ou a Lei (no caso em tela, os contratos).

A questão da eficiência dos contratos não se esgota na seleção do modo organizacional

mais adequado à realização da transação, mas depende, ainda, do poder de barganha detido

por cada parte contratante.

Segundo o Teorema de Coase14

, as partes envolvidas na negociação de um contrato

poderão chegar a um contrato eficiente ex ante quando o diferencial nas condições iniciais ou

adquiridas de poder de barganha eventualmente existentes entre as partes não afetarem o

andamento da negociação.15

Assim, se as partes isolarem tal diferencial, barganharem em

condições de igualdade segundo seus próprios interesses e implementarem os acordos

decorrentes do processo de negociação de uma maneira eficaz (fazendo valer suas decisões),

os resultados finais observados serão eficientes.16

Ocorre que, no mundo real, o agente econômico auto-interessado fará valer seu poder

de barganha, se não para apropriar-se privadamente de ganhos econômicos privados, ao

menos para contemplar regras que, a seu juízo, garantirão condutas da parte afetada que se

coadunem com os objetivos do detentor da posição de dominância relativa. No caso das

concessões de serviços públicos, está clara a impossibilidade de, segundo o Teorema de

Coase, concessionário e Poder Concedente chegarem a um contrato eficiente ex ante, visto

que a relação de igualdade entre as partes contratantes não é uma constante, e sequer uma

realidade ao longo do contrato de concessão.

Desta forma, como apontam Cateb & GALLO17

, “instrumentos cujo desempenho de

seus termos contratuais deixam ganhos potenciais de transação irrealizados, face às

14

O Teorema de Coase está assim anunciado: “Se as partes negociam um acordo eficiente e se suas preferências

não apresentam como efeito riqueza, então as atividades de criação de valor que elas acordam não dependem do

poder de barganha (negociação) das partes ou de quais ativos cada parte detém quando se iniciou a barganha (ou

das condições iniciais). Ao contrário, apenas a eficiência (aqui entendida como “no sentido de Pareto”)

determina a escolha da atividade. Os outros fatores afetam as partes somente no que tange a decisões sobre como

os custos e benefícios serão divididos. 15

Note-se que um maior poder de barganha detido por um dos agentes sobre seu par (como é o caso do poder

concedente sobre o agente concessionário) pode não necessariamente afetar a transação econômica, uma vez

que, por alguma razão estratégica ou “de fundo”, aquele pode não exercê-lo. 16

As expressões “contratos eficientes” e “resultados eficientes” fazem referência àa uma situação de equilíbrio

eficiente “no sentido de Pareto”, onde uma das partes somente pode obter uma melhora marginal de sua utilidade

total, caso a outra parte experimente uma piora marginal correspondente”. Em linguagem corrente, uma das

partes somente pode melhorar às custas da outra parte. 17

CATEB, A. B. & GALLO, J. A. (2007). Breves considerações sobre a teoria dos contratos incompletos.

Berkley Program in Law and Economics Working Papers: 050107-4/2007.

informações disponíveis para os agentes e para as cortes de justiça no momento em que o

desempenho ocorre seriam denominados “contratos incompletos”.

Ainda que – em tese – fosse possível arcar com todos os custos de transação

necessários a garantir a completude de um contrato (diga-se custos virtualmente infinitos),

restariam presentes fontes primárias de incompletude fundadas em falhas nas informações

relevantes à transação, nas capacidades cognitivas e na conduta egoísta dos agentes, bem

como nas ocorrências de relevância transitória no ambiente externo à transação.

5 - AS CAUSAS DAS INCOMPLETUDES CONTRATUAIS SEGUNDO A TEORIA

A incompletude implícita de contratos pode derivar de um conjunto de fontes (causas)

de incompletude principais, presentes nos diversos elementos da relação contratual (agentes,

contrato, incentivos e punições); ou mesmo em elementos aparentemente alheios a esta

(competidores, mídia etc.). A primeira fonte potencial (todavia, não principal) de

incompletude contratual deriva da presença de assimetria de informação entre os agentes

envolvidos em uma transação econômica (quer seja efetuada no âmbito do mercado, quer seja

institucionalizada por meio de contrato, em âmbito privado ou em âmbito público).

A assimetria de informação é falha de mercado (ou ainda uma “falha transacional”)

derivada de diferenças no acesso, uso e apropriação de informações relevantes para uma

transação econômica. Tais informações podem referir-se ao bem objeto da transação em tela

ou ainda a informações que impactam a percepção de seu valor presente ou futuro.

A assimetria de informação pode também referir-se às informações relativas a

condutas das partes na direção do cumprimento progressivo (ou não) das obrigações

contratuais. De modo geral, as partes envolvidas em um contrato complexo não conseguem

observar as ações específicas que desejam disciplinar. Fazem-no então através de indicadores

– que sinalizam o cumprimento ou o descumprimento da obrigação ou da conduta julgada

desejável da outra parte. Todavia, caso ocorra um erro de desenho no sistema de incentivos

contratuais (como, por exemplo, a adoção de indicadores de desempenho ambíguos), a

intenção de premiar comportamentos desejáveis (ou punir indesejáveis) pode resultar em seu

revés, ocorrendo o chamado “risco moral”18

.

No caso dos contratos de concessão de serviços públicos, a assimetria de

informação entre o poder concedente e o concessionário talvez seja a principal fonte de

incompletude contratual, sendo certamente uma determinante na escolha da política

tarifária (regulação por incentivo, em vez de regulação por custo). Assim, por exemplo,

informações sobre o fluxo de caixa futuro a ser obtido pelo concessionário na exploração do

serviço de distribuição de energia elétrica de modo a recuperar o valor da outorga paga pela

concessão, o custo dos investimentos necessários à operação dos serviços e o lucro pretendido

são informações importantíssimas, sobre as quais o Poder Público não tem certeza, havendo

assim uma importante assimetria informacional.

Considerando que, em um momento anterior à concessão do serviço, o Poder

Concedente tinha responsabilidade pregressa pela operação do serviço (detido anteriormente

pelas estatais), este detém vantagem informacional inicial na fase da outorga da concessão.

Após o início da execução do contrato, é justo esperar que a vantagem informacional vá

transferindo-se paulatinamente ao concessionário em função do aprendizado e sua posição de

agente principal.

Uma segunda fonte de incompletude de contratos corresponde à crítica de Hebert

Simon ao edifício teórico da economia clássica no que diz respeito à racionalidade limitada.

Simon (1982)19

avança contra o fundamento epistemológico da teoria clássica, denunciando a

impossibilidade concreta (dada no mundo real) do conceito ideativo (dado no mundo das

ideias) de homo economicus: o agente dotado de uma subjetividade maximizadora de seus

próprios interesses e de uma racionalidade ilimitada expressa em preferência reveladas

consistentes, cujas escolhas e condutas estão sujeitas – exclusivamente – a limitações de

ordem econômica (cite-se o exemplo clássico da escassez relativa de recursos subjacente ao

mundo econômico) e institucional (cite-se o exemplo das normas positivas e não positivadas

18

O conceito de “risco moral” (do inglês moral hazard) apresentado inicialmente por Akerlof (, G. The market

for lemons: qualitative uncertainty and the market mechanism. Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p.

488-500: 1970), diz respeito à assunção continuada de riscos marginais pela parte que se vê continuamente

dispensada de punições emanadas da parte contrária ou de um agente coercitivo terceiro quando da adoção de

uma conduta não-desejável no âmbito de uma relação contratual qualquer. 19

SIMON, Herbert. Models of Bounded Rationality. New York: MIT Press.

(regras de convivência, hábitos e costumes; bem como suas punições correlatas aplicáveis aos

desvios de conduta nocivos à vida social).

A crítica heterodoxa de Simon20

implica que a racionalidade dos agentes envolvidos

em uma transação econômica (e, por conseguinte, partes de um contrato que lhe dá formato

institucional) está limitada por: (a) incerteza, qual seja a incapacidade dos agentes em

conhecer por completo o conjunto de alternativas disponíveis21

, e (b) precariedade de

estimação e alocação de riscos, qual seja a incapacidade dos agentes em converter incerteza

em risco, por meio da computação e atribuição de probabilidades estimadas a cada evento

possível.22

Ainda que – em teoria – fosse possível afastar as falhas contratuais associadas à

assimetria da informação e à racionalidade limitada dos agentes, restar-nos-ia uma terceira

fonte de incompletude contratual: a adoção de condutas oportunistas pelos agentes envolvidos

na relação contratual, o chamado “oportunismo”.23

Tais condutas desviam-se do

comportamento cooperativo esperado em relações contratuais de longo prazo – geralmente

marcadas por incremento da confiança mútua entre os agentes – ou até mesmo do preceito

contratual da boa-fé das partes.24

Destaque-se, todavia, que o oportunismo pode ser

engendrado no âmago do contrato per se, caso o desenho equivocado (ou incompleto) do

sistema de incentivos e limitações contratuais resulte em oportunidade para ganhos

extraordinários por uma das partes, que agirá para capturá-los pura e simplesmente por meio

da estratégia de maximização de seus interesses.

20

Ainda que as idéias de Herbert Simon tenham encontrado suporte no conceito de “consequências não

pretendidas dos atos prefeitos” presente na obra do filósofo moral utilitarista do séc. XVI John Stuart Mill

(prócere da vertente clássica em seus primórdios), a síntese neoclássica posterior à Simon ofereceu resposta à

crítica heterodoxa ao postulado de racionalidade ilimitada do homo economicus, reformando tal racionalidade e

circunscrevendo o conceito – e, por conseguinte, seu caráter ilimitado – à esfera procedimental, qual seja a plena

capacidade de antevisão da relação causa-efeito. Trata-se de discussão epistemológica que permanece em aberto

no seio da teoria econômica, separando, de um lado economistas auto-classificados como ortodoxos e, de outro

lado, economistas autoclassificados como heterodoxos. 21

No termos de Simon, “incapacidade cognitiva”. 22

A conversão de incerteza em risco dá-se comumente por meio da atribuição de probabilidades a um conjunto

definido e completo de eventos possíveis. A definição de tais probabilidades de ocorrência dá-se através da

investigação de padrões pregressos, fazendo com que a estimativa de contingências futuras dependa, fortemente,

das ocorrências passadas. 23

Note-se que, quando a conduta oportunista é adotada de modo oculto, sem o conhecimento das demais partes

envolvidas na transação, ocorre a geração de vantagem informacional em favor do agente oportunista. 24

Como aponta MACEDO JÚNIOR (, R.Porto. Contratos Relacionais no direito brasileiro. 24º Reunião da

latin American Society Association – LASA. In HTTP://lasa.international.pitt.edu/LASA97/portomacedo.pdf,

1997), “o conceito de boa-fé vem ganhando importância cada vez mais destacada no âmbito da doutrina e prática

contratual contemporâneas, constituindo-se, em boa medida, na principal norma de ligação dos princípios de

cooperação, confiança e solidariedade no direito moderno.”

Por fim, uma quarta fonte de incompletude dos contratos diz respeito a elementos

externos à relação contratual e alheios ao controle (todavia, afetos às preferências) dos

agentes interessados na transação, as chamadas “externalidades”25

.

Externalidades são eventos gerados pela conduta de agentes terceiros que impactam a

relação contratual em tela, em favor ou em desfavor da(s) parte(s). Uma definição mais ampla

do termo permitiria, ainda, incorporar eventos contingentes, fortuitos e naturais, tais como

alterações anômalas no regime de chuvas relevantes para o setor elétrico ou a descoberta de

uma nova material, técnica ou processo que, em função de sua transversalidade, possa

produzir alteração do padrão tecnológico em setores diversos daquele para qual foi

inicialmente concebida.

Em suma, como apontam Cateb & GALLO (2007)26

, “(...) sob condições de incerteza,

o custo da especificação das possíveis contingências futuras em um contrato completo (e

complexo) seria proibitivo. Nestas circunstâncias, também seriam elevados os custos de

policiamento e de solução de disputas com obrigatoriedade por força da Lei em cortes

jurídicas, quando da detecção de violações”.

É possível discutir de que modo tais “falhas transacionais” resultam em incompletude

contratual à luz das características do contrato de concessão. De sua forma trilateral (poder

concedente, concessionário e usuário), não resulta uma triplicidade, e sim uma multiplicidade

de interesses conflitantes que emanam de um amplo conjunto de interesses difusos e coletivos

que elevam o grau de contestabilidade a que a relação contratual está sujeita e exigem um

esforço de completude ex ante maior, que pode, inclusive, contemplar instrumentos jurídicos

acessórios que prevejam a participação desses terceiros (termos de ajustamento de conduta,

acordos, protocolos etc.).

25

A definição mais estreita dá conta da presença de externalidades quando “os custos ou benefícios privados de

uma ação estão além ou aquém de seus custos ou benefícios públicos”. Quando os custos públicos de uma ação

privada são maiores que os custos privados desta mesma ação, estamos em presença de uma externalidade dita

“negativa” (como, por exemplo, a poluição, por uma indústria química situada na vizinhança, de um rio utilizado

como sítio pesqueiro por uma comunidade ribeirinha). Quando os benefícios públicos de uma ação privada são

maiores que os benefícios privados, estamos em presença de uma externalidade positiva (como, por exemplo,

ações de caridade desempenhadas por grupos religiosos junto a menores de rua para a segurança dos moradores

da redondeza). 26

CATEB, A. B. & GALLO, J. A. (2007). Breves considerações sobre a teoria dos contratos incompletos.

Berkley Program in Law and Economics Working Papers: 050107-4/2007.

A vantagem informacional detida pelo poder concedente não só se transfere

progressivamente ao longo da execução diferida ao contrato, como também tal padrão de

execução implica aprendizado pela parte responsável pela operação, o que reduz a assimetria

total, em favor do concessionário, relativa à relação contratual.

A continuidade das interações entre as partes e a permanência no tempo do contrato

original contribuem para o aumento da confiança entre os agentes, reduzindo custos de

transação relativos a salvaguardas relacionadas ao risco moral (previsão de punições para

condutas ilícitas da outra parte) e a busca da tutela jurisdicional. Por outro lado, a vigência

mais dilatada sujeita a relação contratual a uma maior probabilidade de ocorrência de

externalidades e desequilíbrios contratuais daí derivados.

Ainda que tais contratos contemplem cláusulas que obrigam ou induzem à repactuação

e/ou renegociação, de modo a dar conta de eventuais desequilíbrios, considerando um

conjunto de sinalizadores de decisão mais amplo que a evolução dos custos, o equilíbrio

pretensamente restabelecido e a revisão contratual estarão novamente sujeitos às falhas

informacionais, cognitivas e comportamentais similares às que comprometiam o desenho do

sistema de incentivos e coerções – bem como a completude do contrato – em seus termos

originais.

Em um contrato de concessão onde o poder público não pode interromper a prestação

do serviço pelo concessionário por razões políticas e de interesse público e o concessionário

não se vê incentivado a fazê-lo por razões financeiras, a interdependência econômica entre os

agentes tende a mitigar eventuais diferenças de poder de barganha entre as partes. Ainda

assim, resta evidente o desequilíbrio de poder em favor da parte concedente: implementar a

política regulatória, obrigar a parte concedente no âmbito administrativo, influir sobre as

políticas relevantes emanadas dos ministérios para o setor industrial e, finalmente, o poder

último de política e expropriação de ativos detido pelo Estado.

6 - AS SOLUÇÕES PARA AS INCOMPLETUDES CONTRATUAIS

APRESENTADAS PELA TEORIA

Considerando um mundo de relações econômicas complexas que demandaria

contratos com elevado grau de completude (que, por sua vez, são custosos e improváveis),

quais as soluções possíveis para o problema dos contratos incompletos?

As soluções propostas são tão díspares quanto as transações econômicas de que

pretendem dar conta e tão dissonantes quanto as escolas e linhas de pensamento que as

advogam. Parte delas oferece ênfase às soluções internas (que chamaremos de

“intracontrato”): o acordo entre as partes, no âmbito do instrumento contratual, de

dispositivos específicos que reconhecem a vulnerabilidade às falhas transacionais

mencionadas (informacionais, cognitivas, comportamentais e ambientais) e pretendem mitigá-

las. Outras destacam o papel das cortes judiciais: a estas chamaremos “soluções

extracontrato”.

A primeira das soluções é a constituição de salvaguardas e provisões, no âmbito do

contrato, para lidar com contingências futuras. Tais dispositivos derivam de um balanço e de

um esquema de repartição objetiva de riscos ordinários e extraordinários, expressos no

contrato de concessão entre poder concedente e concessionário, que contam – ao menos no

momento inicial – com aquiescência de ambos, onde os direitos de decisão para a solução

das lacunas contratuais são definidos ex ante. Tal solução julgada eficiente é particularmente

cara à chamada teoria da agência27

e aplica-se particularmente às relações contratuais onde há

uma parte contratante (dita “principal”), neutra em relação ao risco que supervisiona ou tutela

no desempenho de uma parte contratada (dita “agente”), avessa ao risco, como no caso de um

contrato de concessão típico.

Ocorre que quaisquer esquemas de divisão de riscos não estão imunes às falhas

transacionais anteriormente mencionadas, uma vez que estão calibrados em projeções

27

Note-se que a teoria da agência advoga ser possível uma repartição ex ante ótima dos riscos entre as partes

envolvidas que leve ao desenho de um sistema de incentivos e punições eficientes (no sentido de Pareto) e,

portanto, duradouro. Entretanto, reconhece que o contrato resultante padece dos problemas informacionais

típicos (em especial, a assimetria de informação derivada da situação de agência) que lhe emprestam algum grau

de incompletude.

efetuadas no presente com base no passado. Sua acuidade é “caminho dependente”: seu poder

de acautelamento prévio em face das contingências futuras (em especial, às externalidades)

depende do comportamento adequado dos sinalizadores de decisão “ao longo” da execução do

contrato.

Uma segunda solução emana desde a chamada Nova Economia Institucional. Klein

(1978) introduz o conceito de auto-regulação (self-enforcement), com o qual pretende lidar

com o oportunismo. Para Klein, o contrato deve prever mais que a transferência de direitos de

uso, usufruto ou propriedade de ativos, deve conter elementos de “normas de conduta ética”

que induzam a um comportamento desejável e previsível das partes por meio de punições ao

que considerarem “desvios de comportamento relevantes”. Assim, o contrato poderia

contemplar em si um “intervalo de auto-regulação”, sendo necessária a busca de tutela

jurisdicional somente em caso de desvios muito pronunciados ou reincidências, uma vez que

tal tutela não é livre de custos e a capacidade de coerção das cortes de justiça não é plena –

tendo, ademais, “valor no tempo”.

De modo oposto, desde a chamada Análise Econômica do Direito, reforça-se o papel

da cortes judiciais na solução dos contratos incompletos que não encontram formas de solução

cooperativa privada. Como apontam Cooter & Ulen (1997)28

, “(...) a justiça é capaz de atuar

como provedora de soluções a custo zero e de modo não tendencioso. Garantindo o

cumprimento das promessas, criam-se os incentivos para a cooperação eficiente”. Ocorre que

tal proposição não resiste a uma verificação empírica: fato é que os agentes privados

empreendem esforços ex ante bastante custosos para detalhar mecanismos contratuais de

modo a minimizar a necessidade de recorrer aos tribunais.

Por fim, a chamada Teoria dos Contratos Relacionais enfatiza o esforço revisional e

negocial das partes em um processo periódico de ajuste do acordo original.

Para essa perspectiva, os esforços na direção de reduzir o grau de incompletude dos

contratos são contínuos e não se veem limitados ao desenho inicial do instrumento contratual.

Por essa razão, são dois seus elementos fundamentais: a negociação e a boa-fé.

28

COOTER &,Ulen. Law and Economics, 2nd ed. Reading: Addison-Wesley, 1997.

A negociação ex post entre as partes não é somente possível, mas desejável –

constituindo uma estratégia deliberada de ação de ambas as partes em contratos de longo

prazo marcados por algum grau de dependência onde há oportunidade de aprendizado.

Acolhe-se uma incompletude permanente do contrato, e a superação das lacunas dá-se, de

modo pontual, através de sua revisão e/ou redesenho – resultado de (re)negociações ao longo

da execução.

Como aponta Gibbons 29

do ponto de vista da ciência econômica, uma vez acolhidas

as imperfeições que derivam das fontes de incompletude, a relação contratual toma então, não

mais a forma de uma curva de contrato neoclássica, mas a forma de um “jogo repetido”30

,

particularmente importante para a modelagem do processo de negociação de um contrato

relacional, tal que um contrato de concessão:

“Many economist use game theory because it allows them to study the

implications of rationality, self-interest and equilibrium when the theory of

perfect competition does not apply – such as where markets are imperfectly

competitive, or where markets are only periphericaly relevant, such as in the

relationship between a regulator and a firm (…). Repeated games allow

economist to analyze some aspects of ’trust’, ’norms’ and ’culture’ in

strategic interactions (…)”.31

29

GIBBONS, R. (1997). An introduction to applicable game theory: relational contracts. Journal of Economics

Perspectives 11: 127-149.

30

Tal abordagem apóia-se na Teoria dos Jogos para modelar as relações contratuais e as interações estratégicas

de negociação entre partes autointeressadas no longo prazo. De maneira vulgar, “jogos repetidos” é a

denominação que caracteriza, em sua forma mais simples, a interação estratégica simultânea ou sequencial de

dois jogadores (partes), onde uma das partes realiza ações estratégicas em contraposição à outra, que, por sua

vez, reage em contraposição à primeira. As rodadas negociais seguem até que se atinja uma situação de

equilíbrio parcial e temporário percebida por ambas as partes como satisfatória (não necessariamente eficiente no

sentido de Pareto) e realizam um “contrato”. Qualquer alteração relevante no conjunto de condições,

informações ou premissas contratuais (derivadas da superação de falhas informacionais, cognitivas,

comportamentais ou de emergências ou contingências que perturbem o equilíbrio acordado) faz reiniciar o jogo. 31

Tradução livre da autora: “Muitos economistas utilizam o ferramental teórico da Teoria dos Jogos (Game

Theory) porque tal teoria permite-lhes estudar as implicações da racionalidade, do intereste prórprio e do

equliíbrio competitivo quando a teoria dos mercado de competição perfeita não se aplica (como na presença de

ocorrência de mercados) ou quando os mercados tem papel apenas perifericamente relevante nas decisões de

alocação entre os agentes, como no caso das relações entre um Poder Regulador e uma empresa

concessionária. Jogos sequenciais (modelos de jogos repetitivos não simultâneos) permitem aos economistas

analizar alguns aspectos relativos a confiança, normas, hábitos e cultura em relações estratégicas.”

Outro requisito necessário para o preenchimento das lacunas contratuais pela via

relacional é o princípio da boa-fé. A cooperação mútua resultante da conduta de boa-fé de

cada agente envolvido na transação pode mitigar o impacto das fontes de incompletude

(assimetria da informação, racionalidade limitada, oportunismo e externalidades) sobre a

relação contratual e os custos de transação que daí emergem, reduzindo desequilíbrios

resultantes em favor de uma das partes, reforçando laços de confiança e colaborando para a

superação dos desequilíbrios por meio da negociação.

Como advoga Macedo Júnior (1997), com evidente pertinência para contratos de

concessão:

“Na perspectiva relacional, a boa-fé pode ser vista como fonte primária da

responsabilidade contratual. (…) As obrigações surgem porque a sociedade

assim as impõe e não apenas porque uma promessa individual a estipulou.

(…) A boa-fé tem o relevante papel de encorajar a continuidade das relações

contratuais. Isto porque as normas de integração não são apenas a promessa

ou a vantagem e dependência em razão da confiança, mas também a

reciprocidade, o equilíbrio substantivo e dinâmico, a confiança, a

solidariedade, o equilíbrio do poder e a harmonização com a matriz social

que lhe é subjacente.”

Parece-nos evidente que a presença de ambos elementos reforçam-se mutuamente. Ao

mesmo tempo em que a conduta boa-fé reforça a disposição para negociar; a negociação

contribui para o reforço dos laços de confiança quando da implementação dos novos termos e

dispositivos.

Finalmente, resumem Cateb & GALLO32

: “as partes somente conseguiriam lidar com

os riscos legais através do princípio da boa-fé objetiva, tanto na conclusão e durante a

execução do contrato, quanto durante a fase pós-contratual, o que eliminaria a necessidade

da excessiva previsão de contingências.”

32

CATEB, A. B. & GALLO, J. A. (2007). Breves considerações sobre a teoria dos contratos incompletos.

Berkley Program in Law and Economics Working Papers: 050107-4/2007.

7 – CONCLUSÃO: A NECESSÁRIA INCOMPLETUDE DO CONTRATO DE

CONCESSÃO: AS MUDANÇAS REGULATÓRIAS, A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA

E A CONCORRÊNCIA

1. Por todo o exposto no estudo acima, podemos concluir que o contrato de concessão de

serviços públicos é um contrato essencialmente incompleto. Tal constatação não deve,

contudo, desanimar os profissionais do direito, e sim desafiá-los.

2. Em primeiro lugar, aceitar a incompletude do contrato de concessão não significa

deixar de realizar um esforço, ainda maior, em aumentar sua completude. Nesse

sentido, podemos concluir pela necessária adoção de uma divisão objetiva de riscos,

da forma mais detalhada possível, no âmbito do contrato de concessão, abandonando a

teoria tradicional de divisão de riscos (Teoria das Áleas).

3. Em segundo lugar, restou demonstrada a existência de uma eficiência econômica em

uma certa incompletude dos contratos de concessão. Nesse sentido, a experiência

mundial demonstra que, na regulação de preços, o regulador não raras vezes deverá

escolher modelos tarifários diversos para cada tipo de serviço público, a depender do

grau de tecnologia a ser implementado, da existência ou não de concorrência, da

estrutura da empresa, do tipo de serviço a ser oferecido, dentre outros fatores. Muitas

vezes, a conveniência do interesse público se altera ao longo do contrato de concessão.

Assim, se observarmos a evolução da concessão do serviço de distribuição de energia

elétrica, por exemplo, poderemos constatar uma drástica mudança do tipo de

regulação, que passou de regulação pelo custo do serviço para regulação pelo preço-

teto (price- cap), sendo certo que esta mudança pode e deve ocorrer, sempre que

presente o imperativo do interesse público.

4. Em acréscimo, não se pode desconsiderar que, ao longo do contrato de concessão,

haverá evolução tecnológica da atividade concedida. É fato ser impossível prever a

evolução tecnológica de uma atividade em um período de 20 (vinte) ou 30 (trinta)

anos. Assim, uma atividade que antes pode ser considerada monopolista poderá ser,

alguns anos mais tarde, considerada concorrencial, com enorme afetação de seu

contrato.

5. Diante de todo o exposto, a análise da teoria dos contratos incompletos, bem como das

soluções sugeridas pela teoria, pode e deve ser aplicada aos contratos de concessão,

buscando compatibilizar a necessidade de realização de regulação ao longo do

contrato, a evolução tecnológica da atividade, além da obrigatoriedade de manutenção

dos termos iniciais da proposta.

6. Para tanto, torna-se importante a adoção de uma divisão prévia e objetiva dos riscos no

âmbito dos contratos de concessão de forma a reduzir a natural incompletude do

contrato. Não obstante, face à estudada impossibilidade teórica de previsão de todos os

eventos e riscos aos quais estará sujeito o contrato, deve-se, ainda, buscar a utilização

de outras formas de integração e revisão contratuais, destacando-se a estruturação do

contrato como project finance (teoria dos contratos relacionais) e a definição prévia da

forma de solução das controvérsias que surgirão durante as necessária e inevitáveis

revisões contratuais, com destaque para a inclusão e definição detalhada de

procedimento de arbitragem, assim como sugere a Teoria ora estudada.

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