A Responsabilidade Social No Projeto de Instituições de Ressocialização

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2008.2 17 [CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO] http://www.mackenzie.br/dhtm/seer/index.php/cpgau ISSN 1809-4120 A RESPONSABILIDADE SOCIAL NO PROJETO DE INSTITUIÇÕES DE RESSOCIALIZAÇÃO DE ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI THE SOCIAL RESPONSIBILITY IN THE PROJECT OF INSTITUTIONS OF RE-SOCIALIZATION OF ADOLESCENTS IN CONFLICT WITH THE LAW DUARTE DE OLIVEIRA, Elena Maria, UFSC, [email protected] PALERMO, Carolina, UFSC, [email protected] ABSTRACT The buildings created to shelter the adolescents with Law conflict continue to be the subject of several discussions in order to promote the improvement of its spatial conditions and the social recovery of their residents, more so than simply complying with the law on safety, but moreover a full application of these social programs. This paper intent to investigate the relationship that is established between the adolescent and institutional space through a draw analysis (mental maps) made by the adolescents how lived in this institution. Through the analysis of the proximity with the domestic space, this paper intents to detach the necessity of a change in the formal paradigm that guides the project of these constructions, detaching the social responsibility of the designer on the result of its work: the built set. Finally, it becomes clear that for built public buildings to “shelter” a marginalized segment of society, three important projects attributes are required: functional adequacy of the spaces to the activities, adequacy of the interaction and appropriation level to the finality of the institution, and mainly, the relation established between adolescents and institutional space, focus of this research. KEY WORDS: dwelling, social responsibility, adolescent in conflict with the Law. RESUMO As edificações criadas para abrigar adolescentes em conflito com a Lei vêm sendo alvo de diversas discussões visando à melhoria de suas condições físicas e à recuperação social dos

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A RESPONSABILIDADE SOCIAL NO PROJETO DE INSTITUIÇÕES DE RESSOCIALIZAÇÃO DE

ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI

THE SOCIAL RESPONSIBILITY IN THE PROJECT OF INSTITUTIONS OF RE-SOCIALIZATION OF

ADOLESCENTS IN CONFLICT WITH THE LAW

DUARTE DE OLIVEIRA, Elena Maria, UFSC, [email protected]

PALERMO, Carolina, UFSC, [email protected]

ABSTRACT

The buildings created to shelter the adolescents with Law conflict continue to be the subject

of several discussions in order to promote the improvement of its spatial conditions and the

social recovery of their residents, more so than simply complying with the law on safety, but

moreover a full application of these social programs. This paper intent to investigate the

relationship that is established between the adolescent and institutional space through a

draw analysis (mental maps) made by the adolescents how lived in this institution. Through

the analysis of the proximity with the domestic space, this paper intents to detach the

necessity of a change in the formal paradigm that guides the project of these constructions,

detaching the social responsibility of the designer on the result of its work: the built set.

Finally, it becomes clear that for built public buildings to “shelter” a marginalized segment of

society, three important projects attributes are required: functional adequacy of the spaces

to the activities, adequacy of the interaction and appropriation level to the finality of the

institution, and mainly, the relation established between adolescents and institutional

space, focus of this research.

KEY WORDS: dwelling, social responsibility, adolescent in conflict with the Law.

RESUMO

As edificações criadas para abrigar adolescentes em conflito com a Lei vêm sendo alvo de

diversas discussões visando à melhoria de suas condições físicas e à recuperação social dos

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internos, respeitando não apenas a legislação de segurança, mas também a plena aplicação

dos programas de ressocialização. Este artigo, busca investigar a relação estabelecida entre

o adolescente e o espaço institucional através da análise de desenhos (mapas mentais),

realizados por grupos de meninas internas em centro de socioeducação. Através da análise

da proximidade com o espaço doméstico, procura-se destacar a necessidade de uma

mudança no paradigma formal que norteia o projeto dessas edificações, destacando a

responsabilidade social do projetista sobre o resultado de seu trabalho: o conjunto

edificado. Ao final do estudo, ficou claro que quando se trata de construir prédios públicos

para “abrigar” uma parcela marginalizada da sociedade e em fase de formação moral e

social, três importantes atributos do projeto devem ser atendidos: a adequação funcional

dos espaços às atividades desenvolvidas, o grau de interação e apropriação adequado aos

fins a que se destina a instituição, e principalmente, a relação estabelecida pelos internos

com esta instituição, foco da pesquisa apresentada.

PALAVRAS–CHAVE: Habitação, responsabilidade social, adolescente em conflito com Lei.

1 A PROBLEMÁTICA DO ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI

A infração juvenil é um problema para o qual se vem buscando soluções ao longo dos

últimos anos. Várias são as questões consideradas, focando principalmente temas

referentes às áreas jurídicas e assistenciais.

A política de atendimento a adolescentes em conflito com a lei teve grande evolução desde

a instauração do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, e do Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo – SINASE, em 2006. Esses documentos, entretanto, avançam

pouco sobre a caracterização do espaço físico destinado ao cumprimento das medidas

socioeducativas de internação. São utilizadas ainda edificações que correspondem ao

pensamento pré-Estatuto e cuja arquitetura sofreu adaptações no sentido de tentar, muitas

vezes sem sucesso, corresponder de forma mais adequada ao processo de ressocialização

do interno.

Essas instituições assumem um papel importante na vida do adolescente por representarem

uma ruptura com o mundo no qual ele estava habituado a viver, e devido ao tempo de

permanência e à intensidade da vivência, passam a figurar como ambiente estruturador da

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vida de seus usuários. Enquadram-se na definição de Goffman (2001) de instituições totais,

entendidas com locais de residência e trabalho, onde indivíduos em situação semelhante

são separados da vivência social por um longo período de tempo, levando uma vida

enclausurada e permanentemente monitorada. Este tipo de ambiente atua de forma

intensa na estrutura emocional dos usuários e, quando não é adequado ao propósito das

atividades desenvolvidas, pode comprometer seriamente a ressocialização dos

adolescentes.

No campo da arquitetura, ainda são poucas as pesquisas realizadas visando um maior

entendimento do tipo de edificação adotada e, principalmente, da forma como seus

principais usuários se relacionam com o espaço durante o processo de uso. Este estudo

aprofunda o campo de conhecimento, através da aproximação com meninas internadas em

uma instituição de ressocialização, investigando a relação estabelecida com o ambiente

institucional e principalmente, a forma como este ambiente pode interferir no próprio

processo de ressocialização.

Considerando que, como uma instituição total, esses locais podem assumir a imagem de

casa para seus usuários, buscou-se, através da identificação da imagem de casa que as

adolescentes possuíam antes da internação e na que conseguiam projetar após algum

tempo de internação, compreender a forma como se relacionam com o espaço institucional

e o quanto elas podem ser afetadas por ele.

2 O ADOLESCENTE E O SISTEMA DE INTERNAÇÃO

As edificações que abrigam instituições de ressocialização de adolescentes em conflito com

a lei no Brasil, raramente oferecem instalações capazes de atender de forma adequada a

seu propósito. Geralmente possuem precárias condições ambientais, fruto de adaptações

feitas em edificações originalmente destinadas a outros usos. A falência do sistema atual

evidencia a necessidade de se estabelecer estratégias arquitetônicas mais adequadas ao

modelo educativo, baseado no princípio da ressocialização, em detrimento da punição pura

e simples.

O que se vê, entretanto, é a repetição de uma estrutura formal já desgastada e carregada de

preconceitos, que acaba por cristalizar no adolescente, e na sociedade, o estigma de infrator

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irrecuperável. Segundo Queiroz (1984) o adolescente internado assume pra si a qualidade

de “infrator”, que é ainda alimentada por crenças, advindas da falibilidade do sistema no

qual se encontra internado, que reforçam e sedimentam esta condição perante a sociedade

legal e aqueles que como ele, vivem na marginalidade.

Além da estigmatização, o adolescente internado sofre com a institucionalização, onde ele

deixa de existir como sujeito e passa a ser um número que o designa como infrator, tendo

aniquilada a sua personalidade e sua relação com o mundo exterior. Ele se vê obrigado a

interiorizar os valores da instituição através do mito do certo e do errado, onde este é

sempre solucionado por meio de castigo. O adolescente passa a ter que aprender a

sobreviver dentro de uma instituição onde tudo, desde o edifício, os funcionários e o

ambiente, são potencialmente agressivos.

Soma-se a esse contexto o fato de que grande parte dos adolescentes internados é

originária de ambientes domésticos desestruturados, física e socialmente. Além das difíceis

relações familiares, muitas vezes o principal causador do comportamento anti-social do

adolescente (Queiroz, 1984), é o próprio espaço doméstico degradado, acabando por

fragilizar a noção de lar e a espacialidade da habitação. Alguns desses adolescentes

abandonam suas casas antes mesmo de cometerem os primeiros delitos e passam a morar

nas ruas, onde essa noção é ainda mais frágil e deturpada.

3 QUANDO A FEBEM VIRA CASA

Segundo Santos e Duarte (2002), quanto mais frágil é a imagem ou noção de casa, maior é a

chance de o indivíduo perder o contato com a realidade e com os valores da sociedade

legal. Quando a casa passa a ser a rua, ou um ambiente muito degradado, essa noção é

ainda mais difícil de ser apreendida. O indivíduo faz então o possível para caracterizar os

espaços de longa permanência, tal qual sua casa, mesmo em situações extremas de

degradação. Sempre existe a tentativa de reproduzir a noção de lar, onde quer que esteja,

pois “por menos concreta que seja, é essencial para a integridade psíquica do indivíduo, que

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a reproduz (a casa)1

Os ambientes destinados à internação de adolescentes deveriam possuir qualidades que

lhes conferissem habitabilidade, contemplando características que permitissem com que o

usuário pudesse se apropriar minimamente do espaço na sua integridade, possibilitando o

resgate como “ser social”. Bachelard [1988:112] afirma que “Todo espaço verdadeiramente

habitado traz em si a essência da noção de casa.”, o que é reforçado por Malard [1992]

na tentativa de manter os nexos simbólicos que ordenam a vida social,

rompidos com a situação de exclusão.” [SANTOS, DUARTE in DEL RIO, 2002:281].

Bachelard [1988:113] afirma que a casa é o local que abriga os devaneios do homem, que

protege o sonhador “(...) a casa nos permite sonhar em paz.”. Ela deixa marcas profundas

nos seus habitantes, representa a extensão de seus corpos e de suas existências, guardando

dentro de suas paredes toda a história daqueles que a habitam. É onde o homem vive, não

apenas sua realidade, mas reforça sua capacidade de sonhar novas vidas para si. O autor

afirma ainda:

“(...) Somente os pensamentos sancionam os valores humanos. Aos devaneios pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele desfruta diretamente de seu ser. Então, os lugares que viveu o devaneio se reconstituem por si mesmos num novo devaneio. É justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas que as moradias do passado são em nós imperecíveis.” (op. cit. P:113)

Enquanto a casa é o lugar que abriga os devaneios do homem, os locais institucionais de

vivência prolongada sejam quais forem (asilos, abrigos, hospitais, manicômios,

reformatórios ou prisões), fornecem um ambiente completamente oposto. O longo período

de permanência acaba transformando esses espaços em uma segunda casa, mas este

ambiente, muitas vezes opressor, acaba eliminando qualquer tipo de sentimento ou

possibilidade de devaneio. É o chamado mal da institucionalização, definido por Sommer

[1973:117] como a ausência de queixas sobre os fatores que são incômodos ao usuário. O

autor afirma ainda não saber ao certo se essa falta de queixas se dá por “sentimentos de

resignação e impotência (…), ou o embotamento sensorial depois de longo período de

internação.”.

1 Parêntese das autoras

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quando destaca que a finalidade de toda edificação é ser habitável. Conclui-se então, que

mesmo uma instituição de ressocialização deve ser provida de condições de habitabilidade

aceitáveis.

Malard [1992] define essa habitabilidade, no caso da habitação, em três dimensões: a

pragmática, referente à função de proteger contra as intempéries; a simbólica, relacionada

com a necessidade de se mostrar agradável e segura; e a funcional, composta pelos

atributos que facilitam a realização das atividades diárias. Dentro dessas dimensões, a

autora estabelece os conceitos que tornam um ambiente habitável: territorialidade,

privacidade, identidade e ambiência.

A territorialidade pode ser entendida como a demarcação da relação entre os espaços

internos e externos à determinada espacialidade; privacidade tem a ver com o controle do

que pode ou não ser visto de fora para dentro desse espaço; já a identidade está

relacionada com a capacidade do ambiente de ser apropriado pelo usuário, agindo e

cuidando do mesmo. Neste sentido, tem ligação direta com a ambiência, definida como a

necessidade de se sentir confortável para agir e cuidar do ambiente. Um ambiente provido

de habitabilidade favorece o dia-a-dia dos usuários, com efeitos psicológicos positivos.

Como a internação de adolescentes, tal como mencionado, é feita em locais desprovidos de

habitabilidade, o processo de recuperação, principal finalidade da instituição, fica

prejudicado, assim com fica prejudicada a capacidade do adolescente de projetar um futuro

melhor.

4 A EXPRESSÃO DO SONHO

Tendo em vista essa aproximação com o espaço doméstico, além das implicações

comportamentais e psicológicas, é importante a identificação da relação que o adolescente

internado de fato possui com o ambiente institucional vivenciado. Por se tratar de análise

subjetiva, optou-se por investigar, através da representação gráfica, a imagem de casa que

estes adolescentes possuem.

Foi aplicada a técnica do Mapa Mental, utilizada por Lynch, a partir da qual se pode

compreender a vivência no espaço construído através da análise dos elementos

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representados no desenho. Para este estudo foram solicitados às participantes os seguintes

desenhos:

- a casa onde moravam antes da internação: com o objetivo de verificar o quanto da imagem daquela casa, a adolescente mantinha presente consigo, quais elementos foram lembrados e a intensidade dos laços estabelecidos;

- a casa dos sonhos:

4.1 INTERPRETANDO OS DESENHOS

objetivando verificar no que diferia da casa anterior, e principalmente, a capacidade de pensar algo diferente pra si, levando em consideração para isso, o tempo de internação da adolescente.

A técnica foi aplicada a nove meninas de um centro socioeducativo do estado de Santa

Catarina. Foi realizada na sala de atividades do núcleo de internação feminina. A atividade

consistiu na distribuição de folhas de papel em branco, duas para cada adolescente, e lápis

de cores variadas. Algumas adolescentes optaram por trabalhar com lápis grafite e régua.

Durante o desenvolvimento da atividade, foram colhidos depoimentos das adolescentes

sobre o que estavam desenhando e sobre o ambiente institucional.

A atividade foi não-conduzida, objetivando deixar as adolescentes livres quanto à forma de

expressão, ao ritmo, à realização da atividade em si e principalmente, sobre os relatos

fornecidos. Foram utilizadas diferentes abordagens nas questões que não ficavam claras e

não se insistia numa mesma questão mais que duas vezes.

A abordagem buscava criar um clima amistoso e conquistar a confiança das internas,

colocando-as mais como colaboradoras da pesquisa do que como objeto em si.

Durante a atividade observou-se também o comportamento das internas e a reação frente

às imagens desenhadas. A observação foi importante para complementar as informações na

hora do cruzamento dos dados obtidos.

Para compreender a relação das internas com a instituição, o conjunto de desenhos foi

separado em dois grupos:

Grupo A: desenhos realizados por adolescentes internadas há mais de 3 meses;

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Grupo B: desenhos realizados por adolescentes recém-chegadas (ressalta-se que todas as

recém-chegadas estavam na instituição há menos de três semanas).

Esta distinção buscou identificar o quanto o tempo de internação influenciava na relação

com a moradia anterior, com o ambiente da instituição e principalmente na capacidade de

projeção de futuro das adolescentes.

Para a análise dos desenhos foi necessário buscar suporte junto a um psicólogo, visando

corrigir eventuais desvios de abordagem. Primeiro analisou-se cada desenho em separado,

depois foram comparados os dois desenhos de cada adolescente e por último foi feita uma

análise comparativa entre os desenhos produzidos pelos grupos A e B, levando em conta os

relatos feitos pelas adolescentes.

Como critérios para a análise foram utilizados: o uso da cor, o nível de detalhamento da

imagem registrada, o uso de legendas, a dificuldade declarada e a utilização do espaço da

folha.

Com relação à primeira atividade houve maior aceitação por parte do Grupo B, e durante a

realização o Grupo A expressou verbalmente maior dificuldade de executar o desenho

proposto. A única abstenção foi de uma adolescente do Grupo B que não realizou os

exercícios alegando não gostar de desenhar casas. Ela forneceu, entretanto, depoimentos

diluídos na conversa com o grupo onde relatou que “não tinha casa” antes de ir para a

instituição, fato que explica a relutância em participar da atividade. A Figura 1 mostra o par

de desenhos realizados por uma das participantes.

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(a) (b)

Figura 1: Participante 01 Ad. Grupo A: Casa onde morava antes de ir para a instituição (a); expressão do ideal de

casa através da escrita (b); embotamento sensorial devido ao grande período de internação (interpretação

psicológica).

Apenas uma das cinco adolescentes do Grupo A utilizou apenas uma cor no desenho, o

restante dividiu-se entre a utilização de mais cores e apenas lápis preto.

O nível de detalhamento dos desenhos variou muito. A maioria das adolescentes do Grupo

A detalharam a casa por dentro e por fora, desenhando a mobília e utilizando legendas

explicativas. O restante manteve o nível de detalhe muito próximo ao das adolescentes do

Grupo B, que apresentaram um baixo nível de detalhamento, não entrando na edificação e

muitas vezes não desenhando nem o entorno imediato.

Todas as adolescentes se expressaram verbalmente sobre a casa. Esse processo ocorreu em

conversas informais, em grupo e isoladamente. Durante os relatos pôde-se perceber que as

adolescentes do Grupo A possuíam um laço afetivo maior com a casa, uma vez que

relataram várias histórias sobre a moradia, verbalizando inclusive o quanto gostavam da

casa, apesar dos “defeitos” que elas apontavam (ser pequena, de madeira, ser na favela,

não ter espaço, entre outros). No Grupo B poucos foram os relatos positivos sobre a

moradia anterior e percebeu-se que os relatos mais negativos produziram desenhos menos

expressivos nos quesitos uso da cor e detalhamento.

Quanto ao segundo desenho, notou-se uma maior dificuldade de expressão da casa ideal,

principalmente do Grupo A que preferiu se expressar através de relatos. Das adolescentes

que optaram por desenhar apenas uma não complementou o desenho com texto. Todas

verbalizaram maior dificuldade em imaginar algo diferente do que tinham antes de ir

“morar” na instituição, havendo apenas duas que realmente se permitiram sonhar.

No Grupo B, a realização do exercício foi rápida, sem muitas reclamações, porém houve

pouca diferença dos desenhos desta etapa em relação aos da primeira. A maior diferença se

deu na ocupação da folha que passou a ser utilizada quase que na sua totalidade, ao

contrário do que ocorreu no primeiro desenho que muitas vezes se concentrava no centro

ou em um dos cantos da folha, como visto na Figura 2.

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(b) (b)

Figura 2: Participante07 Ad. Grupo B: Casa onde morava antes de ir para a instituição (a); expressão do

ideal de casa (b); muita semelhança formal entre os desenhos.

4.2 AVALIANDO OS DESENHOS

Atividade 1:

O objeto casa carrega forte significado negativo no imaginário das adolescentes. Essa

ausência de laços levou a não realização da primeira atividade por parte de ambos os

grupos, ou na ausência do uso de cores e detalhes em alguns desenhos apresentados. As

que mostraram ligação mais positiva utilizaram cores e maior detalhamento. Segundo Van

Kolck (1981) a cor é expressão da afetividade. O afeto, a emoção e o sentimento das

adolescentes pela casa são revelados nos desenhos pelo uso das cores.

Atividade 2:

A insegurança inicial com relação à atividade já havia sido quebrada, deste modo, houve

melhoria da qualidade gráfica em relação à atividade anterior em alguns casos. Isso ficou

mais claro no caso das adolescentes recém-chegadas, que desenvolveram desenhos com

mais detalhes. Já as adolescentes internadas há mais tempo ocorreu o contrário, os

desenhos perderam expressividade ou sequer foram feitos. Sommer (1973) afirma que essa

falta de expressividade se deve ao embotamento sensorial sofrido por pessoas internadas

há muito tempo em locais onde não é reconhecida a condição humana indivíduo.

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As cores utilizadas, o universo simbólico adotado e a forma de uso do espaço do papel

revelam muito sobre o estado psicológico das adolescentes e deixam implícito na forma de

representação, tanto o significado da casa para essas meninas, como os efeitos da

internação sobre sua psique.

5 UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA

Durante a realização da atividade foi possível confirmar que as adolescentes em sua

maioria, se referem à instituição como sendo sua casa. Para compreender melhor o porquê

dessa associação buscou-se uma observação mais detalhada sobre as condições de

internação no que diz respeito à organização espacial, às dimensões física, simbólica e

funcional tal como preconizado por Malard [1992].

A Figura 3 mostra a estrutura de circulação presente na instituição abordada no estudo.

Percebe-se que apesar do ambiente guardar características prisionais evidentes, como

portas metálicas, grades nas aberturas e mobiliário fixo de concreto, a articulação espacial e

funcional se assemelha a uma casa. Isso provavelmente ocorre pelo fato da edificação ter

sido adaptada para o uso socioeducativo. Anteriormente funcionava ali um abrigo para

crianças em situação de risco, onde provavelmente era importante guardar certa

semelhança com o espaço doméstico.

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Figura 3: Semelhança estrutural entre os espaços vivenciados e os espaços essenciais da casa.

A identidade de casa atribuída à instituição não tem base apenas na semelhança estrutural.

Tem ligação também com a fragilidade da relação que as internas mantêm com o local

anterior de moradia. Essa semelhança pode explicar o fato das adolescentes se referirem à

instituição como “casa”, uma vez que consegue suprir, ainda que de forma frágil, as três

dimensões humanas da habitação já citadas. É importante ressaltar, entretanto, que isso

não significa que o espaço institucional seja provido de habitabilidade, tal como conceituado

anteriormente. O que pode ser aferido é que, por possuir uma frágil noção do espaço casa,

as adolescentes acabam se apropriando do único espaço que possuem, atribuindo-lhe o

caráter de casa, ainda que este não lhes ofereça os atributos necessários para tal.

Existe uma diversidade de relações adolescente-casa no universo estudado, porém pôde-se

notar que a falta de um laço afetivo com a habitação teve reflexos no imaginário e na

capacidade de sonhar situações diferentes das vivenciadas na realidade. A maior parte das

adolescentes relatou ou expressou a falta de habitabilidade das residências onde morava,

fato que não interferiu na expressão de sua afetividade com o lugar. Notou-se, entretanto,

que quanto mais frágeis eram as condições de habitabilidade, mais dificuldade elas tinham

de se expressar e de sonhar.

Notou-se ainda a grande dificuldade em definir e classificar os espaços e os desejos. Ao

mesmo tempo em que tentavam se apropriar do espaço da instituição como casa, as

internas expressavam o desejo de voltar para a casa rejeitada anteriormente. Elas não

conseguiam explicar de forma clara porque queriam voltar para um lugar do qual não

gostavam e então, apenas nesse momento, negavam o ambiente de internação. Esse

conflito leva a crer que o motivo do desgosto em relação à habitação está ligado à figura de

um dos familiares e não ao espaço propriamente dito.

Isso denota também a confusão mental que a ausência de uma imagem forte e positiva da

habitação pode causar. Segundo Santos e Duarte [2002], a situação de exclusão vivenciada

por essas adolescentes tanto no ambiente habitacional quanto no da instituição, rompe

com os nexos simbólicos que ordenam a vida social do indivíduo, fazendo com que elas

passem a viver segundo parâmetros que fazem sentido apenas para elas e muitas vezes vão

de encontro ao restante da sociedade.

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Talvez, por essa necessidade de manter os nexos simbólicos, principalmente no que se

refere ao espaço habitacional, que segundo Santos e Duarte [2002] é importante para a

integridade psíquica das internas, o ambiente institucional lhes tenha surgido como um

referencial de casa.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das maiores dificuldades encontradas na realização deste estudo, foi à condução da

atividade junto às adolescentes. O fato de algumas não realizarem as atividades como foram

propostas, resultou na busca de alternativas para a análise e comparação dos dados

obtidos.

A forma de abordagem escolhida foi um facilitador para conseguir se aproximar do mundo

interiorizado das adolescentes, revelando-se um bom instrumento e fornecendo resultados

muito ricos.

A apropriação, aparentemente positiva, do ambiente institucional como casa, foi um

resultado surpreendente, uma vez que se esperava encontrar dificuldade na apropriação

desse ambiente. No entanto, tem-se consciência que a amostra é pequena para se tirar

conclusões definitivas e que uma pesquisa em outros centros de internação, com um grupo

mais numeroso e de ambos os sexos, pode confirmar ou não a recorrência dessa

apropriação e principalmente, o seu efeito sobre o processo de ressocialização.

Em todo caso, a compreensão da relação do interno com o ambiente institucional, mesmo

considerando o caráter punitivo necessário ao cumprimento das determinações legais, pode

fornecer importantes informações para o projeto desse tipo de instituição. A adequação da

arquitetura ao propósito dos programas socioeducativos pode aumentar as chances de se

conseguir efetivamente o resgate do adolescente enquanto ser autônomo, produtivo,

responsável e consciente de seu papel na sociedade.

7 REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

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odontológica. Artigo encontrado no endereço eletrônico

<http://www.odontologia.com.br/artigos.asp?id=515&idesp=13&ler=s>, acesso em 09/12/06.

VAN KOLCK, O. L. Interpretação psicológica de desenhos. 2ª ed. São Paulo: Pioneira, 1981. 132 p.