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LUÍS MAURÍLIO DA COSTA CAMÊLLO A RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL Lorena 2008

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LUÍS MAURÍLIO DA COSTA CAMÊLLO

A RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA

DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS

Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL Lorena

2008

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LUÍS MAURILIO DA COSTA CAMELLO

A RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA

DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação “stricto sensu” em Biodireito, Ética e Cidadania, do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, U. E. Lorena, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação do Professor Doutor Lino Rampazzo.

Lorena/SP 2008

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DDDD EEEE DDDD IIII CCCC OOOO

Este trabalho ao Prof. Maurílio Este trabalho ao Prof. Maurílio Este trabalho ao Prof. Maurílio Este trabalho ao Prof. Maurílio Camello, pai, amigo e mestre, cujo Camello, pai, amigo e mestre, cujo Camello, pai, amigo e mestre, cujo Camello, pai, amigo e mestre, cujo exemplo não é nada menos quexemplo não é nada menos quexemplo não é nada menos quexemplo não é nada menos que minha e minha e minha e minha fonte de inspiração.fonte de inspiração.fonte de inspiração.fonte de inspiração. A Alessandra, minha companheira em A Alessandra, minha companheira em A Alessandra, minha companheira em A Alessandra, minha companheira em todas as horas, que tanto me incentiva todas as horas, que tanto me incentiva todas as horas, que tanto me incentiva todas as horas, que tanto me incentiva a ser uma pessoa melhor.a ser uma pessoa melhor.a ser uma pessoa melhor.a ser uma pessoa melhor.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Lino Rampazzo , paciente e ilustrado orientador,

que, mesmo em sua residência, renunciando às poucas horas de

descanso que se devia, não se negou a receber, gentilmente, o

autor destas linhas, para ler, corrigir e sugerir .

Ao Prof. Dr. Guilherme Guimarães Feliciano , pela sua

extrema cortesia em colaborar, como co-orientador, apontando

fontes de pesquisa, questões, impasses e soluções jurídicas, na

partilha generosa de seu muito saber.

Às Professoras Doutoras Grasiele Augusta Ferreira

Nascimento e Ana Maria Viola de Souza , pela leitura

cuidadosa deste trabalho e sugestões oferecidas.

À Professora Doutora Regina Vera Villas Bôas , pela

competência e extremada simpatia.

A todos os Ilustres Professores e Colegas do Programa de

Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São

Paulo-Lorena.

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RESUMO

A dissertação tem por objeto a possibil idade de responsabil ização da Pessoa Jurídica como sujeito ativo de crimes ambientais. O enfoque é, pois, na área criminal. Levando-se para tanto em consideração as dificuldades teóricas e práticas que a matéria apresenta, procede-se à investigação dos documentos jurídicos pátrios, bem assim da literatura específica, dogmática e doutrinário-zetética, com o objetivo de fundamentar a afirmação da responsabil ização da pessoa jurídica no que tange os crimes ambientais. A argumentação se constrói a partir de exposição dos elementos conceituais básicos atinentes às diversas espécies de pessoa e de pessoa jurídica. Passa-se aos aspectos éticos relativos à responsabilidade da pessoa jurídica, instituída a partir de suas finalidades e capaz de decisões. Nesse teor, analisa-se particularmente a proposta ét ica de Hans Jonas, que sugere a ultrapassagem das éticas antigas no sentido de uma ética da responsabil idade, que leve em conta as novas condições da ação humana. A seguir, discutem-se alguns conceitos relativos à responsabil idade penal subjetiva e objetiva e aborda-se o tratamento que a Constituição Federal dá à matéria. Examina-se, então, de perto a aplicação das penas à pessoa jurídica e, levando-se em conta a oposição doutrinária a respeito, aproxima-se do pensamento de Winfried Hassemer, que pondera sobre a necessidade de se rever o Direito Penal moderno, resgatando-se de um lado os princípios do Direito penal clássico, e de outro, sugerindo possíveis alterações no tratamento da responsabilização das pessoas jurídicas. Examinam-se alguns aspectos da Lei 9.605/98, que responsabiliza a pessoa jurídica nos delitos ambientais, tipificando as condutas nocivas ao meio ambiente. Analisam-se os tipos sancionadores da referida lei, com o intuito de verificar sua natureza jurídica, espécies de delitos ambientais e questões referentes à co-autoria e participação no cometimento desses deli tos. Para se evidenciar, por fim, as dificuldades de alteração do pensamento jurídico, na matéria, selecionam-se algumas decisões dos tribunais pátrios, desfavorável uma e favorável outra à responsabilização das pessoas jurídicas no cometimento dos delitos ambientais. Palavras-chave: Responsabilidade Penal – Pessoa Jurídica – Crimes Ambientais – Ética do meio ambiente - Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

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RESUMEN La disertación t iene por objeto la possibilidad de responsabilización de la persona jurídica como sujeto activo de delitos contra el medio ambiente. Ponendose para eso las dificuldades teóricas y prácticas, que la matéria presenta, procedese a la investigación de los documentos juridicos pátrios, asi como de la bibliografia especifica, dogmática y doctrinal-zetética, con el fin de fundamentar la afirmación de la responsabilización de la persona jurídica en lo que respecta a dos delitos contra el medio ambiente. La argumentación se construye desde la exposición de los elementos conceptuales básicos, relativos a las diferentes espécies de persona y persona jurídica. Pasase a los aspectos éticos relacionados con la responsabil idad de la persona jurídica, instituída desde sus propósitos y capaz de decisiones. En este contenido, analisase en particular la propuesta ética de Hans Jonas, el cuál sugere la superación de las éticas antiguas en dirección a una ética de la responsabilidad, que tenga en cuenta las nuevas condiciones de la acción humana. En lo siguiente, se examinan algunos conceptos relacionados con la responsabilidad penal subjetiva y objetiva, como es abordado el tratamiento que la Constitución Federal otorga a la cuestión. Examinase de cerca la aplicación de sanciones a la persona jurídica y, teniendose en cuenta la oposición doctrinaria acerca de ello, se hace aproximación a lo pensamiento de Winfried Hassemer, que pondera sobre la necessidad de revisar el Derecho penal moderno, haciendose el rescate, de una parte, de los princípios del Derecho penal clasico, e, de outra, com sugerencias de posibles cambios en el tratamiento de la responsabil ización de las personas jurídicas. Son examinados entonces algunos aspectos de la Ley 9.605/98, la cual responsabiliza la persona jurídica en los deli tos ambientales y describe los tipos de la conducta perjudicial para el medio ambiente. Se consideran los tipos de pena de la referida ley, a fin de determinar su naturaleza jurídica, las espécies de delitos contra el medio ambiente y cuestiones relativas a la autoria conjunta y participación en el cometimiento de estos delitos. Para demonstrar por ultimo las dificuldades de cambiar el pensamiento jurídico sobre el tema, se selecionan algunas decisiones de los tribunales pátrios, favorable una y desfavorable outra a la responsabilización de las personas jurídicas en el cometimiento de los delitos ambientales. Palabras-clave: Responsabilidad Penal – Persona Jurídica – Delitos ambientales – Ética del medio ambiente – Responsabilidad Penal de la Persona Juridica

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

CAPÍTULO I – DE PESSOAS E RESPONSABILIDADES 13

1.1 A pessoa: distinções jurídicas 13

1.1.1 A pessoa física 13

1.1.2 A pessoa jurídica 15

1.1.3 Os entes “despersonalizados” 25

1.2 Essência personalista da comunidade 27

1.3 Responsabilidade e imputabilidade: o pensamento de Hans Jonas 30

1.3.1 O horizonte das éticas antigas 32

1.3.2 O “princípio responsabilidade” 38

1.3.3 Ética da obrigação do agir responsável 46

CAPÍTULO II – RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA 51

2.1 Responsabilidade penal subjetiva ou objetiva: conceitos em discussão e aproximação legal 51

2.2 Tratamento Constitucional 57

2.3 Aplicação das penas à Pessoa Jurídica 61

2.4 Perante um conflito: a perspectiva de Winfried Hassemer 65

CAPÍTULO III – DOS CRIMES AMBIENTAIS 75

3.1 O meio ambiente e o conceito de dano ambiental 75

3.1.1 Conceito de meio ambiente 75

3.1.2 Espécies de meio ambiente 81

3.1.3 Formas de danosidade 88

3.2 Previsão legal, conceito e espécies de crimes ambientais 90

3.3 Co-autoria e participação nos crimes ambientais e a omissão penalmente relevante 94

3.4. Responsabilidade penal da pessoa jurídica nos tribunais 97

3.4.1 No Tribunal de Justiça de Santa Catarina 98

3.4.2 No Superior Tribunal de Justiça 101

CONCLUSÃO 108

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 114

ANEXO: JULGADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA 130

8

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto demonstrar, apesar das

dificuldades conceituais e práticas, a possibilidade de responsabilização da

Pessoa Jurídica como sujeito ativo de crimes ambientais. O trabalho tem,

pois, seu enfoque na área criminal.

O tema possui considerável relevância científica, pois, a

responsabil ização penal da pessoa jurídica no cometimento dos delitos

ambientais é, de certa forma, uma tentativa de proteger o meio ambiente, o

qual sofre demasiadamente com a conduta criminosa tanto das pessoas

físicas quanto jurídicas, as quais , na maioria das vezes, saem impunes

quando acusadas por crimes ambientais, visto a sua singularidade em

relação à legislação penal vigente.

Do ponto de vista acadêmico, estabelecer uma responsabilidade penal

objetiva para as hipóteses de ocorrência de crime ambiental praticado por

pessoa jurídica, sem dúvida, poderia constituir uma tentativa de

modernização do Direito Penal pátrio, o qual prevê apenas a possibilidade

de prática delit iva das pessoas naturais, que, só essas, “teriam vontade”,

essa condição sine qua non para o cometimento de uma infração penal e a

conseqüente possibil idade de sujeição à sanção penal. A pesquisa visa, pois,

especificamente, a esclarecer os fundamentos jurídicos e o suporte ético da

inclusão da Pessoa Jurídica, como sujeito ativo de crimes ambientais .

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Estrutura-se o trabalho em três capítulos, que se organizam desde os

fundamentos conceituais jurídicos e ét ico-jurídicos, até o exame das

infrações ambientais , nas quais pode manifestar-se a responsabilidade penal

das pessoas jurídicas.

No primeiro capítulo, sob o tí tulo DE PESSOAS E

RESPONSABILIDADES, expõe-se a base conceitual, digamos primária, da

dissertação, com as noções de pessoa, física e jurídica, suas espécies, e a

essência personalista da comunidade. Esse último aspecto abre-se para a

consideração de uma perspectiva ética possível , dadas as novas e inéditas

condições da ação humana, na era tecnológica e planetária. Apresenta-se,

então, o pensamento de Hans Jonas, que propõe uma ultrapassagem das

éticas antigas (preferencialmente orientadas para ação individual) em

direção a uma ética da responsabil idade, voltada para a coletividade e o

futuro.

No segundo capítulo, RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA

JURÍDICA, discutem-se alguns conceitos relativos à responsabilidade penal

subjetiva e objetiva e aborda-se o tratamento que a Constituição Federal dá

à matéria. Examina-se, então, de perto, a aplicação das penas à pessoa

jurídica. Levando-se em conta a oposição doutrinária a respeito, faz-se uma

aproximação ao pensamento de Winfried Hassemer, que pondera sobre a

necessidade de se rever o Direito Penal moderno, resgatando-se de um lado

os princípios do Direito penal clássico, e de outro, sugerindo possíveis

alterações no tratamento da responsabil ização das pessoas jurídicas.

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O terceiro capítulo, DOS CRIMES AMBIENTAIS, analisa os tipos

sancionadores da Lei 9.605/98, com o intuito de verificar sua natureza

jurídica, espécies de infrações ambientais e questões referentes à co-autoria

e part icipação no cometimento das infrações ambientais. Para evidenciar as

dificuldades de aceitação do novo ordenamento jurídico, expõem-se, por

fim, algumas decisões de tribunais pátrios, desfavoráveis e favoráveis à

responsabil ização das pessoas jurídicas no cometimento dos deli tos

ambientais. Tais decisões não só vêm corroborar a idéia básica da

dissertação. São oportunas porque, de certo modo, se constituem em base de

um direito preocupado com a tutela indispensável e urgente do meio

ambiente e, por que não dizer, do próprio homem.

Por fim, uma referência aos aspectos metodológicos e à técnica de

pesquisa.

Entendendo-se por método o suporte lógico sobre o qual se há de

desenhar a pesquisa e seu registro escrito, fez-se a mescla dos métodos

indutivo e hipotético-dedutivo. Nesse sentido, da coleta e exame de

elementos conceituais filosóficos e jurisprudenciais, encontrados em nosso

ordenamento jurídico, buscou-se chegar a uma formulação teórica geral

sobre a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, no âmbito dos delitos

contra o meio ambiente. Por outro lado, de hipóteses-princípios do Direito

Penal pátrio, como de princípios do Direito e da Ética Ambientais , se

desceu, pela análise, a conclusões e a procedimentos que atendam à

necessidade de submeter a Pessoa Jurídica à possibilidade de penalização

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criminal, para se obter mais eficácia na tutela dos bens ambientais. Pode-se

afirmar que este é o movimento geral desta pesquisa.

Quanto às técnicas de pesquisa, utilizou-se predominantemente a

pesquisa bibliográfica, por meio da leitura analítica, não só dos documentos

jurídicos disponíveis , como da produção doutrinária, já registrada em livros

e revistas especializadas na temática. Nesse sentido, é preciso tornar

pública a dívida desse trabalho a três textos julgados fundamentais. O

primeiro deles é a tese de doutorado do Professor Guilherme Guimarães

Feliciano, al iás co-orientador desta dissertação: Teoria da Imputação

Objetiva no Direito Penal Brasileiro. Não há encômio que lhe seja

adequado: o Professor Guilherme traz com sua obra um marco definitivo no

pensamento jurídico brasileiro e internacional. Menciona-se também a obra

filosófica de Hans Jonas, O Princípio Responsabil idade. Ensaio de uma

ética para a civil ização tecnológica. Se ousada na pretensão de ultrapassar

as éticas clássicas, a obra de Jonas abre novo horizonte, ao propor o

cuidado, o temor e a coragem com relação às políticas públicas e às ações

das coletividades, visto o processo desencadeado pela tecnologia

contemporânea, que poderá pôr em risco a vida do planeta e do próprio

homem. Por fim, o autor desta dissertação não ficou menos impressionado

com o pensamento de Winfried Hassemer, expresso em Três Temas de

Direito Penal , muito especialmente com o terceiro deles, Perspectivas de

uma moderna política criminal. Aí o pensador alemão demonstra com

propriedade o divórcio entre o moderno direito penal e o direito penal

clássico e, diante dos novos fenômenos criminais, propõe o que ele chama

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de “direito de intervenção”, mais orientado para a prevenção do que para a

repressão, muitas vezes inócua e desproporcionada.

Não nos furtamos a compulsar numerosas obras que, de algum modo,

tematizaram a questão e das quais se fez presença nas referências

bibliográficas finais. Pareceu-nos uma providência oportuna, para

verificarmos se não nos havíamos perdido demasiado fora do caminho, dado

o cenário de controvérsia em que se estende o problema da responsabilidade

penal objetiva da pessoa jurídica nos crimes ambientais. Ao final,

constatamos que não, e que era possível elencar uma série de proposições

conclusivas, de modo não apenas a sintetizar nossa posição, mas a deixar

suficientemente claro o eixo fi losófico e jurídico, em torno do qual girou

nossa reflexão.

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CAPÍTULO I

DE PESSOAS E RESPONSABILIDADES

1. 1 A pessoa: distinções jurídicas 1.1.1 A Pessoa Física1 Pessoa física ou pessoa natural é o ser humano, considerado como

sujeito de direi tos e obrigações. A pessoa física tem personalidade jurídica,

que não se confunde com a personalidade natural, que é individual, variável

de pessoa a pessoa. A personalidade jurídica é igual para todos os homens,

que a têm na mesma medida. A pessoa fís ica tem também capacidade

jurídica , que não se confunde com a personalidade jurídica. A capacidade

jurídica é a medida jurídica das atribuições da personalidade jurídica. A

capacidade jurídica é uma medida limitadora ou delineadora da

possibilidade de adquirir direitos e de contrai r obrigações.

Tal capacidade subdivide-se em:

a) Capacidade de fato e de direito : aquela exercida pessoalmente pelo

titular de direito ou do dever subjetivo (por ex.: a capacidade plena que tem

uma pessoa com mais de 18 anos para comprar um imóvel, assumindo a

dívida em prestações, ou para vendê-lo depois);

1 Tomamos aqui como fonte bás ica dessas d is t inções o que vem exposto por Maria Helena Diniz (2006, p . 511 et seq) e B. Mondin (1996, p .284 et seq .) .

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b) capacidade apenas de direito: aquela em que o titular não pode

responder pessoalmente, necessitando ser substi tuído ou assistido por um

terceiro (por ex.: o menor de 12 anos pode ser proprietário de um imóvel,

mas quem irá administrá-lo de fato serão seus representantes legais, que

poderão, no caso, ser seus pais).

A capacidade jurídica tem característ icas próprias, ligadas aos

diversos setores da vida jurídica, e variando de setor a setor: fala-se em

capacidade civil , penal, polí tica etc.

A capacidade civil plena é adquirida aos 18 anos de idade2. Cessará

para os menores a incapacidade: pela emancipação, ou pelo casamento, pelo

exercício de emprego público efetivo, pela colação de grau em curso de

ensino superior ou pelo estabelecimento de sociedade civil ou comercial

com economia própria.

No Direito Civil, há ainda os absolutamente incapazes e os

relativamente incapazes (CC art. 3º , 4º). São, segundo o Código Civil,

absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil as

seguintes pessoas: os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade

ou deficiência mental, mão tiverem o necessário discernimento para a

prática desses atos; os que, mesmo por causa transitória, não puderem

exprimir sua vontade. São relativamente incapazes a certos atos, ou à

maneira de os exercer, as seguintes pessoas: os maiores de dezesseis anos e

menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os

2 Art . 5 º , caput do Código Civi l : “A menoridade cessa aos dezoi to anos completos quando a pessoa f i ca habi l i tada à prát ica de todos os a tos da vida c ivi l” .

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que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os

excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; os pródigos.

A capacidade tem limites, da mesma forma, no Direito Penal, no

Direito do Trabalho etc.

1.1.2 A pessoa jurídica

Pessoa jurídica é a entidade ou instituição que, por força das normas

jurídicas criadas, tem personalidade e capacidade jurídicas para adquirir

direitos e contrair obrigações. Ela nasce de instrumento formal e escri to que

a constitui , ou diretamente da lei que a institui . No primeiro caso, temos as

pessoas jurídicas de direito privado; no segundo, as pessoas jurídicas de

direito público.

De elementos históricos e, a seguir, conceituais sobre a natureza da

pessoa jurídica se poderá passar às considerações sobre as bases ético-

jurídicas de sua responsabilidade.

Não será necessário aprofundar aqui os aspectos sociológicos que

estão na origem da pessoa jurídica. Ela se enraíza certamente no espírito e

na experiência de associação que as culturas humanas tiveram desde os

primórdios, para superar limitações e atingir objetivos que as pessoas

singulares não conseguiriam realizar. É o que bem expressa Washington de

Barros Monteiro (2007, p. 99) quando preleciona:

Acrescentando sua atividade á de seus semelhantes, juntando seu poder ao de outros indivíduos, o homem

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multiplica quase ao infinito suas possibil idades, propiciando a execução de obras extraordinárias e duráveis em benefício da comunidade. As forças assim aglutinadas não se somam, mas se multiplicam. Por isso, objetivos inat ingíveis para um só homem são facilmente alcançados pela reunião dos esforços combinados de vár ias pessoas.

A família terá sido o primeiro agrupamento natural , e, com propósitos

defensivos, as famílias se reuniram em clãs, que, por sua vez, constituíram

um poder central, embrião do Estado. É possível que diante desse poder

central as pessoas tenham sentido a necessidade de garantir seus interesses,

o que teria gerado também associações, por sua vez regidas por normas

legais . Razões sociais e econômicas estiveram presentes, portanto, na

constituição daquilo a que o futuro reservará o nome de pessoa jurídica.

Em nossa cultura não se poderá deixar de evocar o direito romano e

com ele a controvérsia que se estabeleceu entre civilistas e romanistas

(MONTEIRO, 2007, p.100). Os primeiros negam que o direito romano tenha

conhecido a pessoa jurídica. Havia, s im, entidades cuja atividade era

reconhecida por lei, mas não se definiam como pessoas, cuja existência se

distinguisse de seus integrantes. Extremamente pragmáticos, os romanos

não eram dados a abstrações, o que não lhes permitia elaborar um conceito

mais refinado de pessoa jurídica. Nesse sentido, pronuncia-se o historiador

José Reinaldo de Lima Lopes (2008, p. 411), baseando-se no modo de

produção romano:

A tradição romana não precisou chegar ao requinte da pessoa jurídica, pois a unidade de produção sendo familiar , as regras de imputação de responsabil idade e de unificação do patrimônio no pai de família dispensavam o invento da pessoa jurídica.

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Romanistas, porém, como entre nós José Carlos Moreira Alves (1999,

p. 131-136), esposam a tese contrária: a ordem jurídica romana teria

admitido, sim, embora após lento processo evolutivo, a existência de

entidades abstratas, atribuindo-lhes personalidade jurídica. Isso seria

verificável no período clássico3, ou seja, da Lei Aebutia ao fim do governo

de Diocleciano (ano de 305), quando se passa a entender que entidades

abstratas também pudessem, como as pessoas naturais , ser titulares de

direitos subjetivos. Reconhecem-se, então, as corporações, no contexto do

entendimento do Estado como entidade diversa (“populus romanus”, “res

publica”, “res romana”) do conjunto de cidadãos. A ordem jurídica atribui

às corporações personalidade e não as confunde com as pessoas que as

integravam: seu patrimônio é diverso do das pessoas; as corporações atuam

pelo representante e os atos desse revertem a favor ou contra elas; as

corporações não desaparecem com a substi tuição das pessoas que as

integram4. Já existem nesse período as fundações, mas seu reconhecimento

3 O d i re i to romano se divide t radicionalmente em: direi to arcaico (da fundação de Roma até o segundo século antes de Cris to); direi to c láss ico (da Repúbl ica tardia ao Pr incipado, at é pouco depois da dinas t ia dos Severos) ; tardio ou pós-cláss ico(do século II I d . C. ao f im do Império) . A Lex Aebut ia (149-126 a . C.) in t roduziu o chamado processo formular (per formulas ) . 4 Uma apreciável s íntese da or igem, espécies e condições de exis tência da pessoa jur íd ica no di re i to romano pode ser encontrada no manual de José Carlos de Matos Peixoto (1960, p. 345-365) . É de des tacar que havia as corporações de d i re i to públ ico, que compreendiam o Estado Romano, o f i sco , as províncias , as c idades autônomas, as colônias , os municípios e cer tas prefei turas ; e as de d i re i to pr ivado, que abrangiam os colégios operár ios , as mutual idades (associações de auxí l ios mútuos , como as funerár ias) , as associações re l igiosas ou recrea t ivas (sodal i t ia , sodal i ta tes ) e , ent re as sociedades comerciais somente as dos publ icanos (societates publ icanorum) , que eram as grandes empresas concess ionárias de serviços públ icos ou arrendatár ias de impostos ou de bens do Estado (p. 346-352) . Previam-se para a cons t i tuição das corporações de d i re i to pr ivado os requi s i tos: - t rês indivíduos pelo menos; - es ta tu tos para regularem a a t ividade da corporação; - objeto l íci to; - au tor i zação do governo. Já ao tempo da lex chri s t iana , essa autor ização prévia e ra d ispensada para a cr i ação das associações re l igiosas e das mutualidades . Para a cr i ação da igrejas , capelas e mostei ros , bas tava a

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legal se dá propriamente no chamado período pós-clássico, que vai do fim

do governo de Diocleciano à morte do imperador Justiniano, em 565, em

especial sob influência do crist ianismo. Observa-se, porém, que, sendo as

fundações um conjunto de bens destacados do patrimônio de determinada

pessoa, natural ou jurídica, com um objetivo previamente destacado, seu

reconhecimento como pessoa jurídica apresentava uma dificuldade ainda

maior, pois o patrimônio seria titular de si mesmo na prossecução de um

fim determinado pela pessoa ou grupo que o insti tuíra. Por essa razão, os

textos do período não se julgam suficientes para apoiar a afirmação de que

a ordem jurídica romana atribuiu personalidade jurídica às fundações.

Para se ter um embrião de teoria da pessoa jurídica, é preciso esperar

a constituição do direito canônico, em especial as idéias do Papa Inocêncio

IV (1243-1254). Esse papa conceitua a pessoa jurídica como uma

“universitas” (um todo, um conjunto) que se tem como uma pessoa:

universitas fingatur esse una persona , explica Miguel Maria de Serpa Lopes

(1989, p. 312), ou seja, uma pessoa sem um corpus , mas dotada de realidade

funcional. Atesta a respeito esse autor (p. 312):

Todos os inst i tutos da Igreja foram reputados entes ideais, fundados por uma vontade superior. Assim, qualquer ofício eclesiástico, dotado de um patrimônio, é tratado como uma entidade autônoma, e a cada novos ofícios criados correspondem outras tantas entidades independentes. Desse conceito surge o de fundação também autônoma, como o pium corpus , o hospitalis e a sancta domus . A universitas passa a representar um corpus mysticum , um nomen iuris .

autor i zação dos b ispos; para a dos es tabelecimentos de beneficência , nem mesmo ta l au tor i zação era necessár ia (p . 355) .

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Houve, assim, uma notável influência do direito canônico na

concepção moderna de pessoa jurídica, na medida em que os canonistas

conceberam certas organizações como podendo ter uma personalidade

abstrata5. Nos séculos XVIII e XIX, sobretudo autores alemães, como

Gierke, Ihering, Köhler, Oertmann e Zirwelmann, se encarregarão de

desenvolver a noção, convencidos de que o ordenamento jurídico não podia

ignorar a existência de agrupamentos humanos e de bens, dotados de

individualidade e autonomia em relação a seus componentes, cujo objetivo é

a satisfação dos interesses e necessidades coletivas. Com o reconhecimento

jurídico, essas entidades seriam autorizadas a exercer direitos subjetivos e

deveres em nome próprio (SOUSA, 2003, p. 15).

A respeito da natureza jurídica da pessoa jurídica várias são as

teorias e Diniz (2006, p. 520) as agrupa em quatro correntes:

- teoria da ficção legal , de Savigny: só o homem é capaz de ser sujeito de

direito, de modo que “pessoa jurídica” é ficção legal, isto, é criação

art ificial da lei para exercer direitos patrimoniais e facil itar a função de

certas entidades;

5 O hi s tori ador José Reinaldo de Lima Lopes (2000, p . 411) reconhece que remotamente “a teor ia ou a doutrina das corporações , de or igem medieval , é a base sobre a qual se cons t ru iu o concei to de pessoa jur íd ica”, devendo des tacar -se a d is t inção ent re corporações e sociedades : as pr imeiras podem sobreviver a seus membros . A Igreja mesma fornecia um quadro exemplar : a f regues ia ou paróquia precisava de um pároco e de um “povo” ( f ié is ) , que poderiam mudar , morrer , mas eram subst i tuídos . O mesmo se deu com as univers idades e as comunas . Já as sociedades não exis t iam para a lém de seus sócios . Assim, as corporações eram consideradas como “pessoas públ icas” , que t inham ut i l idade e reconhecimento do papa e do soberano, como do públ i co . Seus representantes podiam assentar -se em conselho ou cor tes , não sendo s imples representantes de in teresses pr ivados .

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- teoria da equiparação , de Windscheid e Brinz, para a qual a pessoa

jurídica é um patrimônio equiparado no seu tratamento jurídico às pessoas

naturais;

- teoria da realidade objetiva ou orgânica , de Gierke, Zitelmann e Von

Tuhr, para a qual há, ao lado das pessoas naturais ou organismos físicos,

organismos sociais: as pessoas jurídicas, com existência e vontade próprias,

distinta da de seus membros, com a finalidade de realizar um objetivo

social;

- teoria da realidade das instituições jurídicas , de Hauriou e Rénard, que

aceita parcialmente as teorias anteriores. Essa teoria parte do

reconhecimento de que a personalidade humana deriva do direito (tanto esse

privava seres humanos de personalidade, como os escravos), o qual pode

concedê-la a agrupamentos de pessoas ou de bens cujo escopo é a realização

de interesses humanos. “A personalidade jurídica é uma qualidade que a

ordem jurídica estatal outorga a entes que a merecerem”(DINIZ, 2006, p.

521).

Edgar de Godói da Mata-Machado (2005) reduz essas correntes a três

grupos ou espécies: as ficcionistas (na qual classifica não apenas Savigny,

mas Brinz, Windscheid, Koeppen e Becker, que afirmam uma teoria dos

direitos sem sujeito, e Schwarz, que nega simplesmente o conceito de

direito subjetivo)6; as tendencialmente realistas, também conhecidas como

6 Nessa corrente dos f iccionis tas , Mata-Machado não hes i ta em s i tuar Kelsen , cujo pensamento para e le ser ia melhor caracter izado como superf iccionismo, ao defender o concei to normat ivis ta de pessoa, a ponto de def ini r a própria pessoa natural como mera cons t rução do pensamento juríd ico , e heterogêneos, os concei tos de homem e de pessoa.

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orgânicas ou germanistas, que ele, Mata-Machado não reconhece como

realistas, dando por motivo os delírios de ficção a que se entregaram os

defensores da doutrina7; as teorias sociológico-realistas (Hauriou, Renard,

Desqueyrat, Clemens e Delos, também conhecidos por insti tucionalistas),

para as quais a chave do problema da personalidade jurídica estaria na

comunhão de homens em torno de uma idéia organizadora ou diretiva.

Teríamos, então, uma forma de hilemorfismo, em que a idéia é a forma

substancial, os homens imbuídos dela, a matéria prima8.

Vê-se, pois, pelo acima exposto, que é controvertido o próprio

conceito de pessoa jurídica, na medida em que se discute a formação ou

origem dessa. Na realidade, como muito bem deixa compreender Mata- Escreve Mata-Machado (p . 321): “Não são heterogêneos; comportam-se , um em relação ao out ro , como o concei to analógico em relação a um de seus analogados . Evidencia -se a qualquer um o arbi t rár io da af i rmação de que homem é concei to da b io logia e da f i s iologia, e pessoa, concei to da jur isprudência . Então , não há um concei to de pessoa na ordem teológica, como na ordem f i losóf ica, na ordem socio lógica e até mesmo na ordem do conhecimento vulgar?” 7 Recaséns-Siches , ci t ado por Mata-Machado (2005, p . 311) d iscr imina minuciosamente as a lucinações da teor ia , que entende o Estado como organismo biológico semelhante ao dos animais , de modo que “o tecido epi t el ia l ser ia representado pelas inst i tu ições protetoras da vida, da propriedade e da segurança exter ior ; o tecido ósseo , pela terra , as ruas , os edi f íc ios; o t ecido vascular , pelas ins t i tu ições econômicas, o tecido muscular , pelas organizações técnicas do t rabalho; o tecido nervoso, pelo governo, com as redes te legráf icas e te lefônicas que t ransmitem suas ordens”. Chega-se a t é a determinar o sexo dos Estados , “que ser iam mascul inos , como John Bul l e Tio Sam, e femininos como a bela França”. O mesmo Mata-Machado lembra a obra de Schaef f le , Vida e Es trutura do Corpo Socia l , de 1875, onde esse autor se compraz em descrever a pele , os ossos , o sangue , o s is tema nervoso e os membros das pessoas jur íd icas. Nesse diapasão, es tá também Bluntschl i , para o qual “O Estado é macho, a Igreja é fêmea. Por i sso costuma-se d izer do Estado no afor ismo: l ´État c´est l ´homme”. Mata-Machado (p . 312-313) c lass i f ica nessa teor ia os bras i le i ros Lacerda de Almeida e C. Bevi láqua. 8 Ci tando os Cahiers de La Nouvel le Journée , de Hauriou , Mata -Machado informa (p . 315-316) que esse auto r dist ingue as inst i tu ições que se personif icam das que não se personif icam. As pr imeiras são d itas ins t i tuições-pessoas ou corpos cons ti tuídos (Estado, associações , s i ndicatos) nas quais o poder e as manifes tações de comunhão se in ter iorizam no quadro da idéia; nas segundas , as ins t i tuições-coisas , não se dá tal in ter iorização (o exemplo dado por Hauriou é o da regra de d i re i to) . Os sucessores de Hauriou (Renard, Desqueyrat , Clemens , Delos) apl icaram-se a most rar o real i smo da doutr ina e não o platonismo de que era antes acusada. Clémens entende que o ponto de par t ida é um fato : os homens se agrupam. “A real idade do grupo social é um fato e é um abuso do legis lador declará -lo mera f icção” (apud MATA-MACHADO, 2005, p . 316) .

22

Machado, as diversas conceituações esbarram na falta de entendimento da

dimensão analógica do conceito de pessoa. Explica, ao que nos parece, com

muita clareza, esse autor (2005, p. 327):

Há, pois, na pessoa jurídica tecnicamente considerada um momento de ação; as pessoas jurídicas são, portanto, pessoa quanto ao modo de agir; não são pessoa entitat ivamente, ou na ordem da essência, da especificação, mas dinamicamente, ou na ordem da operação, do exercício; dizemos da União, dos estados, do Distri to Federal , dos municípios, das associações, das fundações, das sociedades mercantis , que são pessoas, na mesma acepção em que apelidamos nosso Rui de Águia de Haia [ . . . ] a relação de conformidade que gera a analogia vigora entre dois seres reais, não entre entes de razão, à maneira de Kelsen (. . . ] uma associação não deixa de ser uma entidade real , quando se lhe reconhece personalidade jurídica9.

Ao longo das páginas seguintes, voltar-se-á a alguns aspectos

filosóficos que subjazem a essas discussões. Fica-se, por enquanto, na

apresentação geral de reconhecidas distinções jurídicas sobre a matéria.

As pessoas jurídicas de direito privado caracterizam-se por ser

constituídas por instrumento escri to, para cujo registro comparecem, pelo

menos, duas pessoas (físicas ou jurídicas), que fixam as atividades e os

objetivos a serem alcançados, a forma do exercício das atividades, o

patrimônio de que a pessoa jurídica é constituída, o nome, a sede e o prazo

9 Quanto à base da analogia ent re o homem e a pessoa natural ou f í si ca , nos termos da c iência do Direi to , escreve Mata-Machado (p . 327): “E a personal idade civi l do homem – personal idade jur íd ica no sent ido de Kelsen , mas que o próprio Kelsen não aprofundou suf ic ientemente – é de ta l modo ínsi ta ao ser humano, que a le i a reconhece desde o nascimento com vida, pondo além disso , a salvo, desde a concepção , os d i re i tos do nasci turo . A comparação homem-pessoa natural faz -se, por tanto , ent re semelhanças essenciais . É propriedade do concei to pessoa a capacidade de d i re i tos e obrigações . A pessoa natural dos códigos não é s imples cons t rução do pensamento jur íd ico”.

23

de duração, dentre outras condições. Fazem exceção a essa regra as pessoas

jurídicas “individuais” e as fundações.

As individuais são de uma pessoa só: uma exceção legal (pois são ao

menos 2 pessoas exigidas), criada para apoiar a constituição de empresas do

setor de microempresários. A outra exceção são as fundações, que se

distinguem por serem constituídas antes por um patrimônio que por pessoas.

A fundação pode ser criada por escritura pública ou testamento, nos

quais o instituído designa certos bens que sairão de seu patrimônio para

fazê-la surgir. O instituidor especifica seu objetivo e será certamente

administrada por pessoas. O instrumento de constituição da pessoa jurídica

tem de ser registrado na repart ição competente (Cartório de Registro Civil

das Pessoas Jurídicas, Junta Comercial do Estado etc. ). No caso da

fundação, é necessária também a intervenção e participação do Ministério

Público, por exigência legal . Algumas pessoas jurídicas, como empresas

petroquímicas, bancos, companhias de seguros etc., precisam de prévia

autorização de órgãos governamentais para existir .

Uma vez constituída, a pessoa jurídica adquire personalidade jurídica,

isto é, passa a ter aptidão fundamental para adquirir direi tos e contrair

obrigações, e tem vida própria, independente da pessoa de seus sócios,

instituidores e administradores.

A capacidade jurídica da pessoa jurídica decorre de sua própria

natureza, de modo que varia de acordo com o fim específico da atividade

dessa pessoa jurídica, das regras e normas que a instituíram, da forma e

24

limites de sua administração etc. Em razão dessa variação, pode-se fazer

uma classificação das pessoas jurídicas:

- as fundações, que podem ser privadas ou públicas (estas, quando

instituídas por lei para o exercício das at ividades públicas);

- sociedades empresariais, aí inclusas as prestadoras de serviço, e

sociedades simples.

A tradicional divisão das pessoas jurídicas em Corporações e

Fundações, as primeiras se subdividindo em sociedades e associações, é

mantida no novo Código Civil. Entretanto, em relação às sociedades, uma

vez t razidas para o novo código, qualquer que seja o seu objeto, e ante a

adoção, pelo mesmo, da teoria da empresa, desaparece a subdivisão de

sociedades civis e comerciais , que passam a se chamar empresariais ,

quando regidas pelo regime jurídico comercial, e simples , quando suas

obrigações forem regidas pelo sistema civil.

Por seu caráter didático, transcreve-se aqui um quadro classificatório

da pessoa jurídica, atualizando-se aquele apresentado por Montoro (2005,

p.581):

25

Quadro de classificação Outros Estados Externo Organismos Internacionais de Direito União Público Administração direta Estados Municípios Interno Autarquias Pessoa Administração indireta Jurídica Fundações Públicas Fundações particulares de Direito privado Empresariais Sociedades Simples 1.1.3 Os entes “despersonalizados”

Ao lado das pessoas fís icas e jurídicas, como sujeitos de direitos e

obrigações, podem ser identificados os chamados “entes

despersonalizados”: são aqueles que, embora possam ser capazes de adquirir

direitos e de contrair obrigações, não preenchem as condições legais e

formais para serem enquadrados como pessoas jurídicas, por falta de algum

requisito ou pela sua situação jurídica sui generis.

26

Estão entre tais entes a pessoa jurídica “de fato”, a massa falida e o

espólio. A pessoa jurídica “de fato” é figura bastante conhecida no

mercado. Por ex., pequenos comerciantes que compram e vendem sem terem

uma sociedade comercial regularmente constituída; ambulantes e camelôs.

Também aqui se inclui qualquer pessoa que exerça algum tipo de atividade

industrial, comercial, de prestação de serviços etc. e que não tenha

constituído adequada e legalmente seu negócio.

Atualmente, há reconhecimento legal desses “entes

despersonalizados”, caracterizados como sujeitos de direitos e obrigações,

na figura do fornecedor, definido pelo CDC10.

A massa falida, por sua vez, surge a partir da declaração judicial da

insolvência (isto é, falência) de alguma sociedade comercial. Ela é

constituída de patrimônio – bens, direi tos, obrigações – arrecadado pelo

juízo falimentar. Tal patrimônio é administrado por um síndico, nomeado

pelo juiz, para cuidar do processo de falência e responder em nome da

massa falida, a qual é sujeito de di reitos e obrigações.

O espólio é composto do patrimônio oriundo da arrecadação dos bens,

direitos e obrigações de pessoa falecida. A arrecadação é feita no processo

de inventário, pelo qual responde um inventariante nomeado pelo juiz para

10 Art. 3º, caput, da Lei n. 8.078/90: “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.

27

representar o espólio. Assim também o espólio é sujeito de direitos e

obrigações.

1.2 Essência personalista da comunidade

Consideradas as distinções básicas e estabelecidas que a doutrina

jurídica introduz no conceito de pessoa, é necessário agora passar a algumas

considerações sobre o caráter de “pessoa” da comunidade, desdobrando-se a

analogia com a pessoa física ou natural. São considerações forçosamente

gerais, mas que parecem oportunas para uma primeira legitimação filosófica

das posições que deverão ser assumidas no decorrer desta dissertação.

Comunidades e associações foram concebidas desde a época do

Império Romano como pessoas jurídicas, capazes de agir e de se

responsabil izarem juridicamente. Entretanto, a elaboração científica a

respeito da “personalidade jurídica” é dos tempos modernos. A filosofia

individualista do Direito e da sociedade, porém, não estava habilitada a

descobrir, por trás desse aspecto do ser comunitário, nenhuma realidade.

Essa filosofia, em razão do pensamento individualista que a dominava, não

conseguia ver a realidade essencial da sociedade. Via indivíduos e vontade

de indivíduos, movida por seus próprios interesses. A personalidade das

corporações não passava de “ficção”, como foi exposto acima, citando-se

Savigny11. Foi Otto von Gierke12 um dos pioneiros mais importantes da

11 Maria Helena Diniz c i ta a inda os nomes de Aubry e Rau, Laurent e Mourlon (cf . nota 792, p.520) .

28

explicação da sociedade em seu caráter de personalidade. Foi certamente

precedido por Santo Tomás de Aquino, para o qual a personalidade do corpo

social é uma realidade absolutamente distinta da mera ficção, como o é da

realidade da pessoa natural. Diz, com efeito, o Doutor Angélico:

Todos os homens que nascem de Adão podem ser considerados como um só homem, enquanto têm em comum a mesma natureza recebida do primeiro pai, do mesmo modo que na cidade todos os membros de uma comunidade são considerados como um só corpo e toda a comunidade como um só homem. Porfí r io diz também que em razão de sua participação na espécie, vários homens são um só homem. Da mesma maneira, os muitos homens procedentes de Adão, são como muitos membros de um só corpo13.

Na realidade, devemos esperar o século XIX, com o desenvolvimento

intenso da sociedade e de seus complexos vínculos econômicos e sociais ,

para assistirmos a uma nova orientação da teoria da sociedade, com o

reconhecimento do ser das estruturas sociais, em sua personalidade jurídica

real .

Não é necessário insistir em que a sociedade não é pessoa no mesmo

sentido em que o é o indivíduo. Na antiga definição de Severino Boécio, a

12 Ot to Fr iedr ich von Gierke, jur isconsul to a lemão (1841-1921) , exerceu grande inf luência na e laboração do moderno Direi to Civi l a lemão. Sua dout r ina, que se inspi rava no h is toric ismo da escola de Savi gn y, u l t rapassando-a, sus tentava que o d i re i to ser ia produto de uma convicção comum , a convicção de uma comunidade humana, manifes tada at ravés do uso (d i re i to consuetudinár io) ou declarada pelos órgãos competentes do Estado (d i re i to legis lado) . Considerava os agrupamentos e associações que surgiam dent ro da sociedade como persona l idades reais , dotadas de consciência e vontade próprias , d iversas das dos seus membros , cf . LIMA, Paulo Jorge de . Dicionário de Fi losofia do Direi to . São Paulo: Suges tões Li terár ias , 1968, p. 116-117. 13 Suma Teológica , I -I I , q . 81 , a . 1. Em I II , q . 8 , a . 1 , af i rma Santo Tomás: “Por comparação, chama-se um corpo uma mul t idão ordenada na unidade, segundo atos e of íc ios di st intos”. AQUINO, 2005, p . 424.

29

pessoa é rationalis naturae individua substantia , isto é, a substância

individual de natureza racional (2005, p.165). Ora, a sociedade, enquanto

tal, não tem nenhum ser próprio de tipo substancial. Aqui, é preciso

conservar a l ição de Johannes Messner 14, para o qual não se há de entender

que a sociedade seja pessoa em sentido meramente figurado, metafórico. É

pessoa em sentido analógico, com fundamentos que se evidenciam a seguir,

por uma comparação entre a pessoa natural ou física e a social. Tem traços

comuns. De início, a pessoa social tem um ser real próprio, que sobrevive a

várias gerações de seus membros. Como a pessoa natural , a social possui,

enquanto unidade, poder de auto-determinação para realizar seus fins

essenciais característicos e, em conseqüência, a capacidade de querer e de

agir. Sendo responsável por seus fins existenciais próprios, possui direi tos,

como a pessoa natural. Seu agir produz conseqüências jurídicas: um Estado

celebra tratados juridicamente válidos com outros Estados, do mesmo modo

que sindicatos e associações patronais celebram convênios entre eles. Por

fim, a pessoa social dispõe de amplas faculdades: pode ser membro de uma

sociedade maior; assim a família, o município, a associação profissional

podem ser membros do Estado e esse, por sua vez, membro da comunidade

internacional. Mesmo fazendo parte de um todo maior, a pessoa comunitária

guarda seus fins e responsabilidade própria. A raiz disso que se poderia

chamar de “pluralismo social” é que a associação se funda nos próprios fins

14 Ética Social . O Di rei to natural no mundo moderno. (Das Naturrech t ) . São Paulo: Quadrante , s . d. , p . 164 .

30

existenciais do homem, possuindo por isso os traços de dignidade e de

liberdade da pessoa humana.

Da essência personalista da comunidade emana a responsabilidade

coletiva tanto do conjunto social e jurídico, como dos membros que o

compõem, em graus que, evidentemente, se podem distinguir: o da

comunidade propriamente dita, dos órgãos e dos indivíduos.

1. 3 Responsabilidade e imputabilidade: o pensamento de Hans Jonas

É de admitir que, embora tratando-se de duas esferas distintas da ação

humana, o direito e a ét ica têm uma relação íntima, tal que os últimos

fundamentos do direito se enraízam no terreno ético, como os formula

Ulpiano, em seu Líber Regularum: honeste vivere, alterum non laedere,

suum cuique tribuere: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada

um o seu (JUSTINIANO,1878, I,1,10). Entretanto, para além dessa

indicação, mas não a excluindo, a questão da responsabilidade moral serviu

de fundamento para a imputação e responsabilidade jurídicas, com sua

teoria da ação humana, desde a percepção dos fins até a escolha e decisão

sobre os meios para atingi-los, supondo sempre a capacidade do sujeito

moral (e jurídico) de realizar esses atos. È possível que as condições

subjetivas da ação moral tenham servido de razão mais remota do brocardo:

Societas delinquere non potest , porque faltariam ao sujeito coletivo aquelas

propriedades psíquicas, que se afiguram como condições necessárias para o

agir, entre as quais o livre arbítrio, a capacidade psicológica autônoma de

31

tomar decisões e executá-las. Não há como negar essas premissas e suas

conclusões. Porém, com a mudança dos tempos, a constante verificação dos

atos, muitas vezes gravíssimos, de delinqüência das sociedades e Estados no

prejuízo de outras sociedades, Estados e indivíduos, e, por muito grave, a

extensão de tais prejuízos sobre as gerações futuras e sobre o planeta, viu-

se de extrema urgência rever conceitos e teses no terreno do direito e da

ética. Uma dessas revisões, se assim se pode expressar, está no pensamento

de Hans Jonas (2006)15, que muito brevemente se chama aqui à colação, pois

trata-se de uma proposta contemporânea que leva em conta o novo quadro

de existência humana, profundamente marcado pela emergência da

tecnologia e pelas transformações da economia globalizada. Tais mudanças,

com efeito, vieram exigir não só a reflexão detida sobre os paradigmas

morais matriciais de nossa cultura, como parecem provocar o esforço para

15 Hans Jonas nasceu em 1903, na Alemanha, e morreu em New Rochelle, estado de Nova Iorque, em 1993. Estudou com Husserl, Heidegger e Bultmann. Em 1933, com o advento do nazismo, emigrou para a Palestina, daí para a Itália, onde, como soldado da brigada judaica, ajudou a combater o fascismo. Passa depois ao Canadá e aos Estados Unidos, onde viveu e lecionou. Tornou-se célebre por seu trabalho sobre a gnose e, depois, sobre a filosófica da biologia. A partir do final dos anos 60, dedicou-se às questões suscitadas pelo progresso da tecnologia. O princípio Responsabilidade, ensaio de uma ética para a civilização tecnológica é sua obra principal, publicada em 1979. Compõe-se de seis capítulos: I – A natureza modificada do agir humano; II – Questões de princípio e de método; III – Sobre os fins e sua posição no Ser; IV – O bem, o dever e o Ser: teoria da responsabilidade; V – A responsabilidade hoje: o futuro ameaçado e a idéia de progresso; VI – A crítica da utopia e a ética da responsabilidade. Muitos estudos já aparecem sobre o pensamento de Hans Jonas. Citem-se: GIACOIA JUNIOR, Osvaldo. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 193-206; SIQUEIRA, José Eduardo de. Ética e tecnociência: uma abordagem segundo o princípio da responsabilidade de Hans Jonas. In: SIQUEIRA, J. E. (Org.). Ética, ciência e responsabilidade. São Paulo: Centro Universitário São Camilo-Edições Loyola, 2005, p. 101-205. Breve biografia de Hans Jonas pode ser encontrada em RAI Educacional. Enciclopédia delle scienze filosofiche. Dinsponível em: <www.educat ional .rai.it>. Acesso em 19 de set.2008. É de grande utilidade o artigo de Federico Sollazzo, La Naturphilosophie di Hans Jonas, publicado em Prospettiva Persona Terano (I tá l ia) , anno XVII , n . 64, p . 28-31, 2008. Em sua dissertação de mestrado, Paulo Potiara de Alcântara Veloso aplicou o pensamento de Hans Jonas à questão das relações econômicas internacionais: Investimentos estrangeiros diretos face à ética da responsabilidade de Hans Jonas: os paradoxos das políticas de atração. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.

32

construir novos modelos de imperativos éticos, que atendam mais

especificamente à responsabilidade coletiva.

1. 3.1 O horizonte das éticas antigas

Não é este o lugar de adentrarmos em todo o pensamento de Hans

Jonas, o que mereceria certamente uma dissertação à parte. O quadro geral

de sua reflexão e algumas linhas especiais, atinentes às característ icas de

uma “nova ética”, qual seja a que ele propõe, serão suficientes para o

entendimento de seu conceito de “responsabilidade”, elemento que acha

ausente das éticas tradicionais por razões que apresenta e que se poderá

discutir.

Hans Jonas constata que ação humana se modificou nas últimas

décadas, graças à vocação tecnológica do homem, no âmbito das relações

entre o homem e a natureza e entre os homens entre si. “Prometeu

desacorrentado”, resgata Jonas o mito grego, para dizer que a tecnologia

desencadeou alterações inéditas e de tal magnitude no quadro das

possibilidades do agir humano, que a ét ica tem de superar-se, isto é, não

apenas interessar-se por ações de sujeitos isolados, mas por uma

causalidade, às vezes anônima e impessoal, que se projeta sem precedentes

na duração do futuro. Isso é de tal gravidade que a tarefa mais modesta

imposta à ética pelo princípio (da) responsabilidade, é obrigar-se ao temor e

ao respeito: “conservar incólume para o homem, na persistente dubiedade

33

de sua liberdade, que nenhuma mudança das circunstâncias poderá suprimir,

seu mundo e sua essência contra os abusos de seu poder” (2006, p.23).

Esse temor como ponto de partida ético resulta, pois, da compreensão

do desajuste entre nosso saber e poder, ou seja, sabemos muito pouco,

prevemos muito pouco das conseqüências de nosso poder de agir, em

especial no campo da biotecnologia, se atendemos às profundas e

significativas alterações que já começam a pôr-se em prática ou se

programam, com efeitos que podem ser desastrosos para a natureza e para o

próprio homem. Ao temor se somará o respeito aos seres vivos e ao futuro

da existência humana, formando a base emocional da “nova” ética.

Por que nova? O que apresentam as ét icas antigas que parece não

satisfazer, segundo Hans Jonas, às novas e inéditas exigências da

consciência humana frente a esse futuro perturbador? O fi lósofo destaca

cinco características do agir humano que interessava às éticas até o

presente.

1) Toda relação com o mundo extra-humano (domínio da téchne) era

eticamente neutro, à exceção da medicina, quer do ponto de vista do objeto,

quanto do sujeito. Quanto ao objeto, a arte só afetava superficialmente a

natureza das coisas, que se preservava como tal, não se pondo a questão de

um dano duradouro ao objeto ou à ordem natural em seu conjunto. Quanto

ao sujeito, a téchne como atividade entendia-se como um tributo

determinado pela necessidade e não como um progresso autojusticado como

fim principal da humanidade. Numa palavra, a atuação sobre os objetos não

humanos não formava um domínio eticamente significativo.

34

2) Além disso, toda a ética era antropocêntrica, interessando-se pelo

relacionamento direto do homem com o homem e até do homem consigo

mesmo.

3) Por outro lado, a entidade “homem” e sua condição fundamental

eram tidas como constantes quanto à sua essência, não sendo objeto da

téchne reconfiguradora.

4) O bem e o mal inscreviam-se na ação em seu alcance imediato,

sem requerer um planejamento de longo prazo, ou seja, o alcance efetivo da

ação era pequeno, curto o intervalo de tempo para previsão, definição de

objetivo e imputabil idade. O longo trajeto das conseqüências era entregue

ao acaso, ao destino ou à providência. Assim, a ét ica tinha a ver com o aqui

e agora, e as situações eram recorrentes e típicas da vida privada e pública.

5) Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional

evidenciavam esse confinamento ao círculo imediato da ação, como por ex.:

“almeja a excelência por meio do desenvolvimento e da realização das

melhores possibilidades da tua existência como homem”, “nunca trate os

teus semelhantes como simples meios, mas sempre como fins em si

mesmos” etc. Sempre aquele que age e o “outro” de seu agir são partícipes

de um presente comum. O universo moral consiste nos contemporâneos, e

seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas,

como, do ponto de vista do espaço, o que age e o outro são vizinhos, amigos

ou inimigos, superior ou subalterno, mais forte ou mais fraco. O saber

necessário para consti tuir a moralidade da ação correspondia a essas

limitações e estava ao alcance de todos os homens de boa vontade. Jonas

35

cita Kant, para o qual “em matéria de moral a razão humana pode

facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as

mentes mais simples” (p. 36)16. Tratava-se de um conhecimento do aqui e

agora, de modo que ninguém era responsável pelos efeitos involuntários

posteriores de um ato bem-intencionado, bem-reflet ido e bem-executado. E

conclui Hans Jonas:

O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quando a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente (2006, p. 37).

Ora, esse horizonte de pressupostos das éticas antigas mudou

significativamente, originando novas dimensões da responsabilidade. A

esfera mais próxima da interação humana torna-se ensombrecida pelo

crescente domínio do fazer coletivo, que, de certo modo, pôs em grande

evidência a vulnerabilidade da natureza. Aqui, Hans Jonas evoca o conceito

e o surgimento da ciência do meio ambiente (ecologia), provocada pelo

choque dessa descoberta, bem como a modificação completa de nossa

representação que tínhamos “de nós mesmos como fator causal no complexo

sistema das cosias” (p. 39). Modificou-se de facto a natureza da ação

humana. Um objeto de ordem inteiramente nova, a biosfera inteira do

16 Ci ta-se o prefácio da Fundamentação da metaf ís ica dos cos tumes , de Kant . E complementa Jonas : “Nenhum out ro teórico da ét ica foi tão longe na d iminuição do lado cogni t ivo do agi r moral . Mas , mesmo quando es te ganha um s igni f i cado mui to maior , como em Aris tótel es , para quem o conhecimento da s i tuação e daqui lo que lhe convinha es tabelece exigências cons ideráveis à experiência e ao ju ízo , ta l saber nada tem a ver com a c iência teór ica . . .” (p . 37) .

36

planeta, veio acrescentar-se à nossa responsabilidade. A natureza tornou-se

um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. É oportuno

citar as palavras mesmas do pensador:

Desaparecem as delimitações de proximidade e simul taneidade, rompidas pelo crescimento espacial e o prolongamento temporal das seqüências de causa e efeito, postas em movimento pela práxis técnica mesmo quando empreendidas para fins próximos. Sua irreversibil idade, em conjunção com sua magnitude condensada, introduz outro fator, de novo t ipo, na equação moral. Acresça-se a isso o seu caráter cumulat ivo: seus efeitos vão se somando, de modo que a si tuação para um agir e um existir posteriores não será mais a mesma da si tuação vivida pelo primeiro ator, mas sim crescentemente dist inta e cada vez mais um resultado daquilo que já foi feito. Toda ética tradicional contava somente com um comportamento não cumulativo (2006, p. 40).

Outro aspecto é o descompasso entre o saber previdente

(anteriormente exigido para ao agir moral) e o saber técnico, sempre à

frente, e tal descompasso vem conferir novo significado ético, ou seja, o

reconhecimento de nossa ignorância e, em conseqüência, da necessidade de

novos controles sobre nosso excessivo poder. Defende Jonas que “nenhuma

ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida

humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie” (p. 41). È,

assim, imprescindível nova concepção de direitos e deveres. E mais

profundamente, procurar não só o bem humano, mas também o bem das

coisas extra-humanas, ampliando o reconhecimento dos “fins em si” para

além da esfera do humano. Um direito moral próprio da natureza. Isso

implicaria, na realidade, pensa Jonas, que se deverá evoluir de uma doutrina

37

do agir (uma ética) para uma do existir , ou seja, para uma metafísica em

que toda ética deve fundar-se.

Essa proposição se explica melhor nos desenvolvimentos que Hans

Jonas faz a seguir, ao mostrar como o homo faber sobrepujou o homo

sapiens e como se estruturou uma “pólis” universal do homem sobrepondo-

se a toda a natureza.

A moderna técnica, diz ele, transformou-se num infinito impulso da

espécie para diante, levando a crer que é nesse progresso que passa a

consistir a plenitude do homem: o homem se realiza na medida em que se

expande seu domínio total sobre as coisas. A tecnologia passa a assumir um

lugar ético inédito, ao ditar os fins subjetivos da vida humana. Sua criação

acumulativa reforça os poderes por ela mesma produzidos e os leva

constantemente a desenvolver-se, aumentando a sensação do sucesso, que

pode, ao fim e ao cabo, transformar-se numa prisão. Percebe-se bem que o

homem atual, nessa representação programática que determina o seu Ser e o

reflete, produz e é produzido. Mas quem é esse “homem”? Responde Jonas:

Nem vocês nem eu: importam aqui o ato coletivo e o sujeito coletivo, não o ator individual e o ato individual; e o horizonte relevante da responsabi l idade é fornecido muito mais pelo futuro indeterminado do que pelo espaço contemporâneo da ação. Isso exige imperativos de outro t ipo. Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial , então a moral idade deve invadir a esfera do produzir , da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de polí t ica pública (2006, p. 44).

38

Numa palavra, a natureza modificada do agir humano altera a

natureza fundamental da política. Houve, de fato, um alargamento de

fronteiras do “Estado” (polis): outrora era um enclave no mundo não-

humano, agora espalha-se sobre a totalidade da natureza terrestre,

desaparecendo a diferença entre o artificial e o natural. Isso trouxe como

conseqüência à cidade “global” a necessidade de legislar sobre questões

inéditas, para que se possa pensar num mundo para as próximas gerações de

homens. Que o homem deva existir e existir de modo digno num futuro

distante é uma proposição moral , uma assert iva distinta dos imperativos da

“antiga ética da simultaneidade”. Antes, a presença do homem no mundo

era, explica Jonas, um dado primário e indiscutível, donde part ia toda idéia

de dever relat ivo à vida humana. Agora, ela tornou-se um objeto de dever,

ou seja, “o dever de proteger a premissa básica de todo dever” (2006, p.

45), a presença de candidatos a um universo moral no mundo físico do

futuro. É imperativo, portanto, proteger esse mundo em sua vulnerabil idade

diante das ameaças produzidas apelo próprio homem.

1. 3. 2 O “princípio responsabilidade”

Falou-se acima de mudança de imperativos éticos. A exposição de

Jonas toma como contraponto diferencial o imperativo categórico kantiano,

que se deixava assim formular: “Age de maneira tal que possas também

querer que a máxima de teu agir se transforme em lei universal da

natureza”. A base desse imperativo é a idéia de contradição lógica ou da

39

discordância interna da vontade, enquanto razão prática, consigo mesma.

Observe-se que a reflexão básica da moral não é propriamente moral

(aprovação moral ou desaprovação), mas lógica (autocompatibil idade ou

incompatibilidade). Ora, não existe nenhuma contradição, argumenta Jonas,

na idéia de que a humanidade cesse de existir, como nenhuma contradição

em si na idéia de que a fel icidade das gerações presentes e seguintes possa

ser paga com a infelicidade ou não-existência das gerações futuras, como, a

contrario , na idéia de que a existência e a felicidades das gerações futuras

seja paga com a infelicidade ou eliminação parcial da presente. Numa

palavra, a série das gerações deva prosseguir não se deduz da regra de

autoconcordância no interior da mesma série. Entende Jonas que se trata de

um imperativo que precede a própria série dessas gerações e, por último, só

pode ser fundamentado metafisicamente.

Explica Sollazzo (2008, p. 30) que a base metafísica da ética de Jonas

se constrói a partir da convicção da existência ontológica de um “valor

absoluto”, compreensível intuitivamente. Tal valor ou bem-em-si é a vida,

uma vez que se todas as coisas que existem valem na relação com um fim, então esta “cascata de fins” se detém somente perante um fim considerado como um valor em si , a vida mesma [. . . ] só depois de ter posto estes fundamentos metafísicos, pode-se construir uma ética fundada sobre aquele “princípio responsabil idade”, que intui o dever de preservar a existência como a responsabil idade máxima do ser humano (p. 30).

É preciso, conclui Sollazzo no mesmo lugar, reter-se esse princípio

como universalmente válido e sendo sua aplicação hoje part icularmente

40

urgente, tanto mais que as religiões tornaram-se um fato subjetivo e

pessoal, não constituindo mais fontes normativas universais.

Em vista dessas dificuldades ou não adequação do imperativo

kantiano ao novo estado da questão, Jonas propõe a formulação de outro

imperativo:

Age de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra; ou expresso negat ivamente: Age de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibil idade futura de uma tal vida; ou simplesmente: Não ponhas em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra ; ou, em um uso novamente posit ivo: Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer (2006, p. 47-48) (grifos nossos).

Valemo-nos aqui da síntese crít ica, apresentada por Giacoia Junior

(2000) a propósito desse imperativo de Jonas. Constata o autor que não há

contradição racional no descumprimento dessa espécie de imperativo. Eu

posso querer o meu fim, explica Giacoia Junior, e até mesmo o fim da

humanidade, sem incorrer em contradição. Entretanto, se é admissível que

possamos arriscar nossa própria vida, não estamos autorizados a fazê-lo

quando se trata de pôr em risco a vida da humanidade. A simples existência

é vista como um dever a ser levado imperativamente em conta pelas novas

dimensões do agir humano. Desse modo, não temos o direito de escolher o

não ser de futuras gerações, em proveito do ser da geração presente ou da

subseqüente. Trata-se de uma obrigação em relação ao não existente que,

enquanto tal , não pode sustentar qualquer pretensão à existência. Giacoia

41

Junior reconhece que tal obrigação constitui objeto de rigorosa

fundamentação metafísica no resto da obra de Jonas,

o que empresta à ética de Jonas uma aura de arcaísmo, admitida pelo autor, uma vez que retorna explicitamente aos grandiosos projetos antigos (Aristóteles, por exemplo), mas também modernos (não há como evitar a associação com os sistemas das fi losofias de Leibniz, Schell ing ou Hegel) de fundamentar metafisicamente a passagem da fi losofia da natureza para a fi losofia do espíri to ou para ética (2000, p. 200).

Explica Giacoia Junior que o novo imperativo não se dirige, como o

kantiano, ao comportamento do indivíduo privado, mas ao agir coletivo, de

modo que sua destinação não é a esfera próxima das relações entre

singulares, mas o campo da polít ica pública. A concordância que Jonas

reivindica não é a compatibilidade lógica interna da vontade, nem a do ato

consigo mesmo, mas a concordância entre os efeitos últimos do ato com a

permanência da atividade humana autêntica no futuro. O imperativo

kantiano “totalizava” no sentido de transferir a máxima subjetiva a uma

hipotética comunidade de todos os seres racionais (situação em que a

máxima da vontade não geraria autocontradição); para Jonas, “a totalização

se faz a partir da objetividade dos efeitos do agir coletivo que, em sua

realidade, afeta a humanidade como um todo” (2000, p. 200).

Hans Jonas exemplifica, para mostrar o alcance desse “axioma ético”,

expresso no seu imperativo, três si tuações criadas pela técnica ao tomar o

homem como “objeto”: a questão do prolongamento da vida, o controle do

comportamento e a manipulação genética. No primeiro caso, discute os

42

problemas possíveis decorrentes do desejo (e já efetivação) do adiamento da

morte, e acrescenta:

Também se deveria considerar o papel do memento mori na vida de cada indivíduo. Como ele seria afetado pelo fato de que o momento dessa morte possa se prolongar indefinidamente? Talvez todos nós necessitemos de um limite inelutável de nossa expectativa de vida para nos inci tar a contar os nossos dias e fazer com que eles contem para nós (2006, p. 59).

Diante desse fato, Hans Jonas volta à mesma tecla, isto é,

que há questões que nunca foram postas antes no âmbito da escolha prática e de que nenhum princípio ético passado, que tomava as constantes humanas como dadas, está à al tura de respondê-las. Contudo, essas questões devem ser encaradas, et icamente e conforme princípios, e não sob pressão de interesses (2006, p. 59).

Quanto ao controle do comportamento, após considerar a manipulação

social daí decorrente com a subversão dos direitos do homem e dignidade

humana, adverte que

sempre contornamos dessa maneira o caminho humano para enfrentar os problemas humanos, substi tuindo-o pelo curto-circuito de um mecanismo impessoal, subtraímos algo da dignidade dos indivíduos e damos mais um passo á frete no caminho que nos conduz de sujeitos responsáveis a sistemas programados de conduta (2006, p. 60).

Por fim, quanto à manipulação genética, lembra ser esse um sonho

ambicioso do Homo faber , sonho pelo qual ele quer tomar em suas mãos sua

própria evolução, com o intuito de modificar e melhorar a espécie. A grave

43

pergunta é se temos o direito moral de fazer experimentos com seres

humanos futuros.

Essas considerações levam naturalmente a um exame da teoria da

responsabil idade, uma das partes mais interessantes e complexas da obra e

pensamento de Hans Jonas. Após voltar às conhecidas distinções entre

responsabil idade moral e responsabi lidade legal e sua condição geral , o

poder causal, desenvolve outra noção de responsabilidade, a que não

concerne ao cálculo do que foi fei to ex post facto , mas à determinação do

que se tem de fazer: “eu me sinto responsável não por minha conduta e suas

conseqüências, mas pelo objeto que reivindica meu agir” (2006, p. 167).

Uma responsabilidade, por exemplo, pelo bem-estar dos outros. Aqui o

objeto contrapõe ao meu poder o seu direito de existir, de certo modo

submete a si o meu poder: “em primeiro lugar está o dever ser do objeto; em

segundo, o dever agir do sujeito chamado a cuidar do objeto” (2006, p.

167). Nasce daí o sentimento de responsabil idade “do eu ativo que se

encontra sempre intervindo no Ser das coisas. Caso brote aí o amor, a

responsabil idade será acrescida pela devoção da pessoa, que aprenderá a

temer pela sorte daquele que é digno de existir e que é amado” (p. 167).

Jonas dist ingue, para melhor esclarecer esse conceito, a

responsabil idade natural e a contratual. Exemplo da primeira é a

responsabil idade parental, que não depende de aprovação prévia, sendo

irrevogável e não-rescindível. A segunda, art ificial, instituída a partir da

atribuição e acei tação de um cargo, é delimitada pela tarefa, quanto ao

conteúdo e quanto ao tempo. Tal responsabilidade extrai sua força

44

imperativa do acordo do qual ela é criatura, mas “é a garantia das relações

de lealdade sobre as quais se fundam a sociedade e a vida coletiva” (2006,

p. 171). É, por exemplo, a responsabilidade livremente escolhida pelo

homem político que, entretanto, tem no cumprimento de sua tarefa, o

cuidado com a res publica,fica mais estreitamente ligado ao objeto, passa a

pertencer-lhe, de modo que ele não se pertence mais a si mesmo. Quanto

maior o poder, maior a responsabilidade. Tal responsabilidade possui três

propriedades: a total idade, a continuidade e o futuro. Quanto à totalidade,

assim como a responsabilidade paterna relaciona-se com o fi lho como

totalidade e não apenas em suas necessidades imediatas, analogamente, o

político ou o governante é responsável pela vida de toda a comunidade,

abarcando desde a existência física até os interesses mais elevados, desde a

segurança até a plenitude da existência, desde a boa condução até a

fel icidade (2006, p.180). Quanto à continuação, isso significa que a

responsabil idade total não pode ser suspensa, devendo sempre se perguntar:

o que vem depois? Onde levará? O que havia antes? Como o que está

acontecendo agora se encaixa no desenvolvimento total da existência. Dessa

forma, a responsabilidade total inclui em seu objeto a capacidade de pensar,

de pautar o agir de maneira que tenha sempre como horizonte o seu encargo,

não se esquecendo de onde veio, onde está agora e para onde pretende ir

(2006, p. 185). Trata-se de uma identidade a ser garantida, que integra a

responsabil idade coletiva.

Por fim, a responsabilidade por uma vida, individual ou coletiva, se

ocupa com o futuro, bem mais do que com o presente imediato. Essa

45

inclusão do amanhã no hoje, aliás óbvia para qualquer responsabilidade,

tem uma dimensão e qualidade inteiramente diferentes em relação à

responsabilidade “total”. Com todas as dificuldades que esse aspecto

contém para o governante, que não tem o dom profético, esse não pode

eximir-se do cuidado. Pela gravidade aqui lançada, as palavras de Hans

Jonas necessitam ser transcritas:

O caráter vindouro daqui lo que deve ser objeto de cuidado consti tui o aspecto de futuro mais próprio da responsabil idade. Sua realização suprema, que ela deve ousar, é a sua renúncia diante do direito daquele que ainda não existe e cujo futuro ele t rata de garant ir . À luz dessa amplidão t ranscendente, torna-se evidente que a responsabil idade não é nada mais do que o complemento moral para a const i tuição ontológica do nosso Ser temporal (2006, p. 187).

Isso significa que toda política é responsável da possibilidade de uma

política futura. A proposta de Hans Jonas atende assim a uma direção

fundamental: o zelo pela existência do ser humano em uma natureza

aceitável contra os perigos que os avanços técnicos cumulativamente t razem

ao futuro. Nascida do temor, a ética para ele deve ser uma ética de

conservação, de custódia, de preservação e não necessariamente do

progresso e do aperfeiçoamento desmedidos. Lembra muito bem que tal

desmedida decorre do próprio paradigma baconiano17, adotado nos inícios

17 Franci s Bacon (1561-1626) fo i f i lósofo e homem de Estado inglês . Suas obras mais importantes são: Novum Organum (1620) e De Augment is et Dignita te Scient iarum (1623) . Na pr imeira defende a idéia de que o homem por meio da nova c iência (a ant iga, de or igem ar is to té l ica , era es tér i l para e le) , indut iva e inves t igat iva, haveria de dominar a natureza e usa r de suas le is e processos para o bem-es tar e fe l ic idade da espécie humana. “Ciência e poder do homem coincidem” , af i rma ele no a for isma III , no l ivro I do Novum Organum (1973, 19) .

46

dos tempos modernos, que coloca o saber a serviço do domínio da natureza,

conduzindo a uma produção e a um consumo cada vez maiores. O perigo,

analisa Jonas, está na magnitude do êxito econômico e biológico desse

paradigma. Nesse sentido, o autor não teme em propor que se detenha o

incremento de prosperidade no mundo, pois ele não tem trazido para todos a

satisfação razoável de suas necessidades básicas, nem a paz e a harmonia

entre os povos. Não há como não concordar com ele no que afirma que o

progresso intelectual , técnico-científico tem superado de muito o moral, a

ponto de que os insti tutos éticos e morais existentes se mostram impotentes

para trazer parâmetros de valores humanizantes – o que ficaria a cargo da

ética da responsabilidade.

1. 3. 3 Ética da obrigação do agir responsável

Acompanhamos aqui as análises pertinentes de Veloso (2006) sobre

alguns aspectos de uma ética da ação humana, tal como a propõe Hans

Jonas, orientada para o futuro. O problema de fundo é saber como tal ética

alcançaria universalidade, ou seja, como “toda a humanidade” se poderia

impor o princípio de responsabilidade.

Veloso traz à colação o pensamento de Hannah Arendt (2004) que

argumenta, na análise das crises políticas da humanidade no século XX, que

o colapso moral constatado, algumas vezes, em especial no episódio nazista

da Segunda Guerra Mundial, se devia, sobretudo, à inadequação das

verdades morais como parâmetros de julgamento daquilo que os homens

47

eram capazes de fazer. Aqui Arendt não está longe de Jonas, quando esse

também estabelece, como vimos, que os padrões morais existentes não são

mais capazes de determinar o que seria o bem e o mal do agir humano, nas

novas coordenadas de tempo espaço, provocadas apela tecnologia moderna.

Arendt, tendo presentes os absurdos do nazismo na Alemanha, analisa

o julgamento do ex-oficial da SS, Karl Adolf Eichmann, que fora

responsável pela questão judaica e o envio de muitos judeus para os campos

da morte. Diante de seus juízes, Eichmann não apresenta nenhum remorso

pelo que cometeu, ao contrário se julga inocente, pois teria agido segundo

os preceitos legais estabelecidos pelo partido nazista. Era tão-só um “dente

da engrenagem” burocrática e outro teria fei to o que fez se não tivesse

fei to. Observa Arendt de modo agudo:

Era como se a moralidade, no exato momento de seu total colapso dentro de uma nação antiga e altamente civil izada, se revelasse no significado original da palavra, como um conjunto de costumes , de usos e maneiras, que poderia ser trocado por outro conjunto sem dificuldade maior do que a enfrentada para mudar as maneiras à mesa de um povo (2004, p. 106).

Numa palavra, como observa Veloso (2006, p. 117), novas regras de

conduta ordenadas por um governo se transformam em regras superiores de

moral, tornando paradoxalmente o homicídio como regra geral , e o direito à

vida, uma exceção. As pessoas eram fiéis ou no mínimo coniventes com as

atitudes do partido nacional-socialista, como se trocassem muito

naturalmente um modelo por outro. Mas houve pessoas, aquelas capazes de

48

pensar, que não se ajustaram automaticamente a essa prática. Na realidade,

observa Arendt, esses decidiram ser melhor não fazer nada, não porque o

mundo mudaria para melhor, ou porque houvessem decidido obedecer ao

“não matarás”, mas porque não estavam dispostos a conviver com

assassinos, ou seja, eles próprios. Pode ser que, na esfera individual, que é

o campo da análise de Arendt, o comportamento do não-agir seja até

legít imo. Quando, porém, se passa à esfera coletiva – como prefere pensar

Jonas – quando se ligam poder e competência, a inação passa a ser

irresponsabilidade. Para ilustrar a diferença, Jonas ci ta a história do capitão

de uma embarcação, responsável pelo transporte e segurança dos

passageiros, e que, nessa condição, não deve seguir instruções de risco do

proprietário da embarcação. Ele tem o dever de agir, pois não está só

consigo mesmo, mas responde pelo bem-estar de outras pessoas. Associado

o poder à competência, há necessidade de uma ação responsável. E ali onde

um grande poder traz em si a possibil idade de um agir responsável, a

competência traz o dever de assim proceder.

Veloso especifica com propriedade que essa ética da responsabilidade

é eminentemente política e coletiva (2006, p. 120). O poder munido de

competência para agir é obrigado a agir com responsabilidade. Isso deve

afastar os poderes incompetentes, como o econômico e o do mercado, do

agir público. Arendt já est igmatizara o poder incompetente, caracterizado

pela lógica dos meios e fins, como se vê nas atividades do homo faber, que

“invade o mundo com seus hábitos fabricados e traz como conseqüência a

49

instrumentalização não só do mundo, mas de nossa capacidade de pensar”

(Apud VELOSO, 2006, p. 120).

Jonas perfila mesma convicção, ao propor que aquela esfera

produtiva, que invadiu o espaço da ação do homem, deve, por conseqüência,

ser invadido pela moral. Ambos, Arendt e Jonas, estão concordes em que a

responsabil idade para com a durabilidade do mundo deve implicar um agir

consistente, que ficará a cargo de todas as entidades sociais, mas, de modo

muito definido, pelo governo. O Estado tem aqui um papel primordial .

O modelo econômico que se adota atualmente visa acima de tudo o

lucro e a satisfação individual imediata. O Estado e o Direito não podem, na

linha do pensamento de Jonas, dar preferência ao uti litarismo e se deixar

levar “pela truculência egoística de uma humanidade economicamente

injusta e socialmente desigual” (VELOSO, 2006, p. 122).

O desideratum é que, sobre os Estados, a comunidade internacional

deve procurar uma ética global com direitos e deveres comuns a toda a

humanidade, de modo a se poder esperar uma nova ordem de consecução do

bonum humanum . Caberá a essa autoridade mundial e às instituições

internacionais garantir a humanidade do risco destrutivo, ínsi to no poder

tecnológico. Como afirma A. Del Lago,

Trata-se em suma de estabelecer [ . . . ] se à cega autonomia do mercado e do progresso técnico e científico, seja preferível um centro decisional, dotado de responsabil idade pela humanidade inteira (apud SOLLAZZO, 2008, p. 30)

50

Para finalizar essas considerações sobre a proposta ética de Hans

Jonas, pode-se dizer com ele que a responsabilidade é o cuidado

reconhecido como dever ser por outro ser que, dada a sua vulnerabil idade,

faz com que esse cuidado se converta em preocupação. Para medir a

responsabil idade devida, deve-se perguntar: o que sucederá a esse ser se eu

não me ocupar dele? Quando mais obscura for a resposta, mais clara será a

responsabil idade18.

Os desenvolvimentos seguintes nesta dissertação podem ter agora uma

base filosófica, que permite, segundo cremos, que se pense a questão da

responsabil idade e imputabilidade da pessoa jurídica num contexto mais

amplo, para além dos limites tradicionais e formais de tempo e espaço do

direito.

18 Ao final de seu trabalho sobre a ética de Hans Jonas, Sollazo (2008, p. 31), não omite uma observação crítica, sobre o que chama o “calcanhar de Aquiles” do pensamento jonasiano: a carência de uma reflexão antropológica que possa soldar a ontologia, a metafísica à ética. Com efeito, argumenta o autor, Jonas, em sua ética naturalística, confia ao homem tão só o papel de compreender, secundar e preservar. Nessa perspectiva, o homem perderia um traço seu particular antropológico: “a possibilidade de transcender a natureza, podendo dizer-lhe ´não´ . Em Jonas, em suma, o homem passa do extremo, cartesiano, de ser o maitre et possesseur de la nature, àquele de ser o simples guardião”, negando uma parte de si mesmo. Não é o lugar de discutir esse aspecto levantado, aliás com razão, por Sollazzo, mas pode-se apenas lembrar o quanto uma visão antropológica excludente (o homem como centro absoluto de referência) causou de prejuízos à própria natureza.

51

CAPÍTULO II

RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA 2.1 Responsabilidade penal subjetiva ou objetiva: conceitos em discussão e aproximação legal

A responsabilidade penal consagrada pelo Código Penal pátrio tem

como princípio fundamental o da culpabilidade “nullum crimen sine culpa” ,

sendo que a imputação de uma infração penal a alguém dependeria da

existência de uma vontade, a qual deve estar aliada a um conhecimento

sobre a i lici tude do fato, bem como a possibilidade de se exigir do agente

outra conduta, nas circunstâncias do cometimento da infração. Tais

elementos, somados à imputabilidade do agente, formam para a Teoria

Geral do Delito o conceito de culpabilidade19. Não é difícil, nem tampouco

problemático, aferir esses elementos quando o agente delituoso é uma

pessoa natural, eis que, como tal , atua com vontade e potencial consciência

da i licitude, porém, ao se tratar de pessoa jurídica, a configuração destes

elementos torna-se inviável ou impossível, tendo em vista a sua natureza,

uma vez que, se se aceita ser uma ficção jurídica e desprovida de vontade,

não poderia praticar a conduta criminosa20. Há muito tempo e até

19 Trata-se de um concei to complexo, cujos e lementos , segundo a teor ia normat iva pura, acham-se bem expl icados por Bi t encourt (2008, p. 350-353) . 20 Expl i ca Smanio (2004) que no f inal do século XVIII impôs -se a Teoria da Ficção, formulada por Feuerbach e Savigny, segundo os quais a pessoa juríd ica é uma cr iação ar t i f ic ia l da le i e, como tal , não pode ser objeto de autênt ica responsabi l idade penal . Apontam-se como princ ipais fundamentos para não se reconhecer a poss ibi l idade de

52

hodiernamente grande parte dos juristas21 nega a possibilidade de

responsabil ização criminal da pessoa jurídica, utilizando como argumento

mais forte a inexistência de uma vontade de ação, que seria exclusiva do

homem, podendo tal vontade ser entendida como uma faculdade psíquica da

pessoa individual (BITENCOURT, 2008, p.232), a qual não estaria presente

nas pessoas jurídicas. Defendem estes doutrinadores que a responsabilidade

penal ainda se limita à responsabil idade subjetiva e individual. Em que pese

as considerações acerca da impossibilidade de se responsabilizar

criminalmente a pessoa jurídica, é certo que, se adotarmos o sistema atual

sobre a responsabilização penal, não nos restará alternativa senão

concordarmos com essa corrente doutrinária; porém, a responsabilidade

penal da pessoa jurídica não seria subjetiva, mas sim objetiva. Não

dependeria, assim, da existência de uma vontade humana de ação, mas da

simples ocorrência de um nexo causal entre o fato e o eventual dano

material causado ao meio ambiente. Não haveria também a necessidade de

se questionar as intenções dessa pessoa jurídica, por exemplo, na hipótese

da ocorrência de um dano ambiental. A responsabil ização seria feita de

forma objetiva, isto é, sem a exigência de ser comprovada a prática da

conduta a tí tulo de dolo ou culposa em sentido estrito. As grandes barreiras

para a aceitação dessa hipótese é o conservadorismo penal e a fal ta de

responsabi l ização penal da pessoa jur íd ica são: a fa l ta de capacidade de ação e de culpabi l idade. Cf . ,supra ,o tópico 1 .1.2, onde se especi f icaram as correntes de pensamento sobre a natureza jur ídi ca da pessoa jur íd ica. 21 É o que constat a Bi tencourt (2008, p . 231-232) que refere os nomes de René Arial Dot t i , Muñoz Conde, Reinhart Maurach, para o qual “a incapacidade penal de ação da pessoa jur íd ica decorre da essência da associação e da ação”.

53

previsão legal no “atual” Código Penal brasileiro de 194022. A lei dos

crimes ambientais, em seu art igo 3°, estabelece que as pessoas jurídicas

serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente. Há, assim, um

aparente conflito entre a lei 9.605/98 (norma especial), a qual prevê a

responsabil ização da pessoa jurídica nas hipóteses de crimes ambientais, e o

Decreto-Lei 2.848/40 (norma geral), o qual estabelece a responsabilidade

exclusiva da pessoa natural. Para solucionar-se esse conflito, pode-se

invocar o Princípio da Especialidade, previsto explicitamente no sobredito

Decreto-Lei, em seu artigo 12 23. Tal dispositivo legal prevê que as regras

gerais do Código Penal devem ser aplicadas aos fatos incriminados por lei

especial, salvo quando a lei específica não dispuser de maneira diversa.

Assim, mesmo que o Código Penal não consagre a responsabilidade penal

da pessoa jurídica, ele não estaria legitimado a impedir que uma lei

específica o fizesse, o que de fato acontece, quando invocamos o artigo 3º

da lei 9.605/98:

Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabil izadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual , ou de seu

22 Anote -se , porém, que, por ser causal is ta , o Código de 1940 admit ia de cer to modo a responsabi l ização objet iva da pessoa jur íd ica, conforme deixava impl íc i to pela redação do ar t . 88: “As medidas de segurança d ivi dem-se em pat r imoniais e pessoais . A in terdição de es tabelecimento ou de sede de sociedade ou associação e o conf isco são as medidas da primeira espécie ; as da segunda espécie subdividem-se em detent ivas e não detent ivas” (gri fos nossos ) . É necessár io lembrar , contudo, que ta l d ispos it ivo fo i revogado pela Lei 7.209/84, que al terou subs tancialmente o Código Penal . 23 Art . 12 do CP, in verbis : “As regras gera is des te Código apl i cam-se aos fa tos incr iminados por le i especial , se es ta não dispuser de modo diverso”. Nucci (2008, p . 108) expl ica que “a l ei especial afas ta a apl icação da le i geral ( l ex special i s derogat legi general i ) - , como, a l iás , encont ra-se previs to no ar t . 12 do Código Penal” .

54

órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. (gri fo nosso)

O parágrafo único do mesmo dispositivo reforça a idéia de

responsabil ização penal da pessoa jurídica ao dispor que a responsabilidade

das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, as quais poderão ser

autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato criminoso. Assim, mesmo

sendo a conduta delituosa praticada por uma pessoa natural , a qual agiria

em benefício da empresa, ambas responderiam pelo resultado lesivo ao meio

ambiente. Não há que se falar em bis in idem neste caso, uma vez que a

pessoa jurídica não possui meios de, sozinha, praticar um delito. Porém, é

certo também, que essa pessoa jurídica é constituída por pessoas naturais,

as quais agem em interesse daquela, praticando condutas tipificadas como

delitos ambientais. As ações criminosas praticadas por essas pessoas

naturais , refletiriam na pessoa jurídica, eis que foram praticadas, em regra,

no interesse da empresa. É o que afirma Fernando Quadros da Silva (apud

CAMPOS, 2006):

[ . . . ] o art igo 121-2 do Código Penal Francês leva à constatação de que as infrações imputáveis às pessoas jurídicas devem ter sido cometidas por pessoas físicas (as pessoas morais são penalmente responsáveis pelas infrações praticadas por seus órgãos ou representantes), e , portanto, é em relação aos indivíduos que devem ser apreciados o dolo ou a culpa, persist indo uma preocupação com a culpabil idade, numa concessão à dogmática tradicional. Conclui afirmando que esta disposição consagra a tese do reflexo onde a pessoa jurídica é responsável por r icochete, indiretamente, e que é em relação à pessoa do indivíduo que se deve aferir o dolo ou a culpa.

55

A propósito dessa questão, o Professor Guilherme Guimarães

Feliciano escreveu (2005, p.219) uma página extremamente elucidativa, que

deve ser transcrita:

Assim, o paradoxo da capacidade de culpa resolve-se aqui, como se resolveu no direito penal francês (cujas l inhas gerais estão no art igo 3º da LCA): os elementos psicológicos (consciência e vontade) apuram-se por simetria (“par ricochet”), projetando-se à pessoa jurídica, reflexivamente, o elemento anímico de quem age por ela, desde que a infração seja cometida sob a égide da corporação e no seu interesse. Dito de outro modo, “o mesmo vínculo jurídico e moral que l iga os co-partícipes une também a pessoa jurídica a seus dirigentes ou prepostos e justifica-se especialmente quando a atividade criminosa é praticada em proveito da pessoa jurídica”24.

É o que sustenta João Marcello de Araújo Júnior, citado por

Eduardo L. S. Cabette (2003, p. 62), para o qual, reconhecida a capacidade

de ação e vontade, emerge conseqüentemente uma capacidade de culpa,

capacidade que se fundamenta, explica Cabette (p. 62) na “teoria do risco

da empresa”, também chamada na Comunidade Européia de

“responsabilidade própria da empresa”25.

Entretanto, poder-se-ia acrescentar, para uma segunda discussão,

que o dano ambiental ocorrido por um ato descuidado de um funcionário da

empresa não isentaria a responsabilidade penal dessa, sendo-lhe feita

objetivamente a imputação. Embora a lei 9.605/98 coloque expressamente

24 Ci ta-se ARAUJO JUNIOR (Dos cr imes cont ra a ordem econômica . Rio de Janei ro: Forense, 1993) , p . 76 . 25 O mesmo Cabet t e defende que esse “r isco da empresa” pode se r perfei t amente adequado à “Teoria da Imputação Objet iva” , sob o aspecto do chamado “r i sco permit ido”. E reconhece: “A atuação dos entes colet ivos surge não como mera f icção, mas nos dias a tuais especialmente , como uma avassaladora real idade, pr incipalmente nos campos da a t ividade econômica e das ques tões ambientais” (2003, p. 64) .

56

que a conduta do funcionário deva ser em benefício ou interesse da

empresa, entendemos que tel dispositivo legal deva sofrer al teração, sendo

suprimido esse elemento subjetivo do injusto. Não se defende aqui a idéia

de responsabilidade objetiva em relação ao dirigente ou funcionário da

empresa. Para tais pessoas, a atual teoria geral do delito é suficientemente

clara e precisa quanto à responsabilização subjetiva. Porém, a necessidade

de proteger o meio ambiente, preservando, assim, a existência de todos nós,

justificaria, a nosso ver, a responsabil idade penal objetiva da pessoa

jurídica. O bem jurídico “meio ambiente” não está l igado a uma só vítima,

mas, sim, a uma coletividade. A agressão ao meio ambiente coloca em risco

não só a vítima direta do dano ambiental, pois , sendo difuso esse bem

jurídico, todos os habitantes do planeta serão afetados. O atual Código

Penal não vislumbra essa possibilidade de responsabil ização penal objetiva

da pessoa jurídica, porque foi promulgado em uma época onde se entendia

que a prática criminosa era exercida por uma pessoa natural , a qual agia

com dolo e, assim, responderia pelos seus atos. Entretanto, com o passar do

tempo, e com a modificação da criminalidade, conceitos e dogmas do

Direito Penal Clássico não são mais eficazes para combater uma

criminalidade moderna. É preciso que ocorra uma mudança profunda no

atual Direito Penal para que haja, realmente, uma efetividade da lei penal, a

qual, vale lembrar, é usada sempre em ult ima ratio . A intervenção penal não

pode e não deve ocorrer quando outros ramos do Direito forem suficientes

para inibir a prática de ataques a determinado bem jurídico, porém, não

utilizá-lo quando necessário, sob pretextos dogmáticos e conceituais, é, no

57

mínimo, render-se ao conformismo covarde e temerário, o qual implicaria

em um risco desnecessário à existência humana. Responsabilizar

criminalmente a pessoa jurídica seria uma forma de se tentar combater as

práticas nocivas ao meio ambiente, protegendo-o de forma efetiva e

garantindo, assim, o bem estar de todos. Não há dúvida que a intervenção

do Direito Penal nestes casos seria um meio intimidativo encontrado pelo

Estado para proteger o meio ambiente, fazendo com que os dirigentes de

uma empresa, pensem duas vezes antes de praticarem uma infração

ambiental .

Assim, pelo já exposto, concluímos que a responsabilidade

criminal da pessoa jurídica deve ser sempre objetiva, havendo dano ou risco

ao meio ambiente, sendo essa responsabilização possível se levarmos em

consideração o atual quadro legal acerca do tema.

2. 2 Tratamento Constitucional

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a responsabilidade

penal da pessoa jurídica passou a fazer parte, expressamente, do nosso

ordenamento jurídico. Os art igos 173, §5º e 225, § 3º da Carta

Constitucional assim o dispõem:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Consti tuição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei .

58

[ . . . ]

§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabil idade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabil idade desta, sujei tando-a às punições compat íveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Art. 225. Todos têm direi to ao meio ambiente ecologicamente equil ibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

[ . . . ]

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrat ivas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

A matéria não está livre de controvérsia. Destacam-se, com efeito,

duas posições antagônicas. A primeira é a de Paulo José da Costa Junior,

para o qual,

nos termos da Const i tuição vigente, embora tenha sido adotada a responsabil idade penal pessoal, o parágrafo 3º do art . 225 admitiu que as pessoas jurídicas poderão ser agentes de crimes lesivos ao meio ambiente.Com tal posicionamento, nada impede que o legis lador ordinário venha a regulamentar, em legislação especial , a criminalidade ecológica, onde se venha eventualmente, a admiti r que “societas puniri potest” (CERNICHIARO; COSTA JUNIOR, 1990, p. 242).

Já Luis Vicente Cernicchiaro (1998, p.191-193) defendeu tese

diametralmente oposta, ao afirmar:

59

Ampliar a área de sujeitos ativos implicará reviver proposta da Escola Positiva ao repousar a responsabil idade penal na responsabil idade social. Responder-se-ia criminalmente porque se vive em sociedade. Só por isso, em havendo a prática de fato definido como infração penal, justificar-se-ia a reação do Estado. A pena, por sua vez, ganharia significado diferente. Deixaria de ser mensagem para traduzir simples resposta. Análise mais profunda mostra que só restará, como identidade, o princípio da anterioridade da lei .

E com mais ênfase ainda escreve esse autor, no mesmo lugar:

Estruturalmente, para os efeitos penais, a pessoa física e a pessoa jurídica só têm em comum a personalidade jurídica. Não é, entretanto, suficiente para o sistema do Direito Penal . É impropriedade atrair a pessoa jurídica. Não se ajusta aos princípios penais. [. . . ] Aplicar o Direito Penal às pessoas jurídicas, na verdade, é fazer aplicação de princípios de outra área jurídica. Poder-se-á , quando muito, por transigência e homenagem à denominação, dizer - Direito Penal II. Não é melhor dar-lhe o nome próprio? Respeitar-se-á a substância!

Criteriosamente, o Prof. Guilherme Feliciano encontra que

o consti tuinte não pretendeu exaurir toda a matéria penal relevante no art . 5º da Consti tuição Federal . Ao contrário, há princípios penais cont idos no art . 5º quer estão expressamente excepcionados fora dele, como há também normas de garantia e responsabil idade penal si tuadas além do art . 5º , com azo no seu próprio parágrafo 2º (2005, p. 208).

Depois de citar alguns exemplos desses princípios excepcionados fora

do art. 5º (como o disposto nos art. 136 e 139 da Consti tuição), o autor

refere que o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu, “incidenter

60

tantum” , a existência de direi tos e garantias fundamentais fora do elenco do

5º art igo. E conclui:

Logo, o argumento topológico – de que uma autêntica responsabil idade penal de pessoas jurídicas teria de estar disposta no art . 5º , entre as “linhas mestras” do Direito Penal – não é convincente.O consti tuinte não estava premido por coisa alguma (tanto menos pelos l imites do t í tulo II) , podendo inserir , onde melhor lhe aprouvesse, normas de garant ia e responsabi l idade penal, mesmo porque se tratava de uma carta de ruptura. Compreende-se, desse modo, que tenha estabelecido exceções relativas e pontuais ao princípio da responsabilidade pessoal nos art . 173, par. 5º , e 225, par. 3º da CRFB, em vista da especial gravidade, para o meio ambiente e para a ordem econômico-financeira, da delinqüência estri tamente corporativa. Quanto aos outros dois princípios – o pr incípio da culpabil idade e o princípio da individualização das penas – não foram excetuados, mas relativizados (2005, p. 209-210).

As sobreditas normas constitucionais que nos parece serem de

eficácia limitada, uma vez que necessitam de uma norma ulterior que lhes

desenvolvam a aplicabilidade, só foram regulamentadas após a promulgação

da lei nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), a qual institui a

possibilidade da pessoa jurídica figurar como sujeito ativo nos delitos

contra o meio ambiente. A sobredita lei, em seu artigo 3º, dispõe sobre a

possibilidade de responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas nas

hipóteses de crimes ambientais. O constituinte de 1988 não fugiu de sua

responsabil idade polí tica ao proteger expressamente o meio ambiente,

responsabil izando criminalmente as pessoas fís icas e jurídicas pelo

cometimento de delitos contra o meio ambiente.

61

Dessa forma, temos sobre o tema em baila, previsão constitucional e

regulamentação em lei específica, razão pela qual, entendemos não existir

qualquer óbice legal para aceitar a hipótese de uma pessoa jurídica

responder pelos crimes praticados contra o meio ambiente.

2. 3 Aplicação das penas à Pessoa Jurídica

Há quem defenda peremptoriamente que outro óbice para se

responsabil izar a pessoa jurídica pela prática de um delito ambiental estaria

no fato de essa não poder sujeitar-se à sanção penal por excelência, a saber,

a pena privativa de liberdade. Tal argumento, embora verdadeiro, não é

justificativa suficiente para corroborar a vedação desta responsabilização

penal. Na verdade, o legislador tomou o cuidado de, no texto constitucional,

afirmar que a pessoa coletiva fosse penalizada com sanções compatíveis

com a sua natureza, in verbis:

Art. 173.Ressalvados os casos previstos nesta Consti tuição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse colet ivo, conforme definidos em lei .

[ . . . ]

§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabil idade individual dos dirigentes da pessoa jurídica , estabelecerá a responsabil idade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza , nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. (grifos nossos)

62

É certo e notório que a aplicação de privação de liberdade é

incompatível com a pessoa jurídica, mas, outras formas de sanção penal

estão previstas e, produzem, conforme a espécie, afl ição maior na ré que,

simplesmente, a privação de l iberdade. Assim, exemplificando, se a pessoa

jurídica é punida com a pena de suspensão parcial ou total de suas

atividades ou, então, proibida de contratar com o Poder Público, bem como

dele obter subsídios, subvenções ou doações, isso poderia acarretar a sua

falência, o que, para ela significaria a sua “morte”. A lei dos crimes

ambientais prevê em seu art. 21, as seguintes espécies de penas:

Art. 21. As penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas, de acordo com o disposto no art. 3º , são:

I – multa; II – restri t ivas de direitos; III – prestação de serviços à comunidade.

As penas de multa e restritiva de direitos são, entre as previstas, as

que mais se compatibilizam com a natureza das pessoas coletivas. A

terceira espécie de sanção, prestação de serviços à comunidade, oferece

alguma dificuldade já que seria realizada pelos funcionários da empresa ou

por pessoas contratadas para executarem a tarefa imposta à pessoa jurídica,

e não por ela própria. Constitui princípio basilar da pena e garantia

individual a impossibilidade de esta passar da pessoa do condenado, o que,

de fato, ocorreria. Assim dispõe o art 5º , XLV da Consti tuição Federal:

Art. 5º [. . . ]

63

XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei , estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o l imite do valor do patrimônio transferido.

Tal argumento, data venia , não leva em conta que quando um

funcionário da empresa presta serviços à comunidade ele está empregando o

seu tempo de serviço e esforço laboral para cumprir a pena e não em prol da

pessoa jurídica. Ademais, essa prestação de serviços à comunidade seria

uma forma da empresa poluidora do meio ambiente em reparar o dano

causado à própria coletividade. Assim, a sobredita pena, não passaria da

pessoa do condenado, uma vez que seus empregados, ao invés de trabalhar

em benefício da empresa, realizariam tarefas impostas pelo juízo da

condenação para reparar o dano causado ao meio ambiente. Chega-se a esta

conclusão levando-se em conta apenas as espécies de pena de prestação de

serviços à comunidade, previstas no art igo 23 da lei 9.065/98. São elas:

Art. 23. A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consist irá em: I- custeios de programas e de projetos ambientais; II- execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III- manutenção de espaços públicos; IV- contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.

Com exceção da primeira e quarta espécies de penas de prestação de

serviços à comunidade, custeio de programas e projetos ambientais e

contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas , as demais penas

serão executadas por pessoas naturais, as quais , poderão ou não, ser

64

funcionários da empresa poluidora. Embora, à primeira vista, dê a

impressão que a pessoa moral não está cumprindo a sua pena, já que a

execução das sobreditas tarefas é realizada por pessoas naturais, isso não é

verdade. A pessoa jurídica arcará com toda a despesa necessária para a

reparação do meio ambiente, além de sofrer, com a eventual condenação em

âmbito penal, todo estigma suportado por aqueles que têm o seu nome

lançado no rol dos culpados. Para o professor Oswaldo Henrique Duek

Marques (Apud SILVA, 2008), as sanções previstas na lei dos crimes

ambientais não possuem cunho penal, mas sim, administrativo ou civil. Em

que pese o entendimento do ilustre jurista, tais sanções são exeqüíveis e não

perdem a sua essência penal, a qual, está embasada na retribuição e

prevenção do crime26. Ninguém, seja pessoa natural ou moral, quer ter seu

nome lançado no rol dos culpados, sendo certo que para a pessoa jurídica, o

efeito danoso decorrente desse fato poderia resultar em um total descrédito

por parte dos consumidores, os quais, deixando de consumir o produto da

empresa poluidora, sujeitariam a mesma à bancarrota. Corroborando esse

entendimento parece oportuna a análise dos efeitos jurídicos e sociais de

uma condenação criminal levada a efeito pelo Prof. Guilherme G. Feliciano

que assim se exprime:

A pessoa jurídica será reincidente em novamente delinqüindo (observado os parâmetros do art . 63 do CP), suportando reprimenda paulatinamente mais severa. A pecha do crime não se apaga com facil idade, repercutindo na opinião pública e produzindo efeitos duradouros nos

26 Concei tua Nucci (2007, p . 289) a pena como sendo a sanção imposta pelo Estado, por meio de ação penal , ao c r iminoso como ret r ibuição ao del i to perpet rado e prevenção a novos cr imes .

65

diversos nichos de mercado. Assim, por exemplo, a empresa delinqüente poderá encontrar no mercado de consumo, resistência similar àquela que os egressos lamentavelmente amargam no mercado de trabalho. Além disso, o empresário identificado com sua empresa (fato comum em sociedades por cotas e empresas familiares) repudiará visceralmente o epíteto “criminoso” que é a condenação penal traria à pessoa jurídica, buscando elidi-la em juízo e – antes disso – preveni-la fora dele, ajustando-se ao paradigma local de responsabil idade social (2005, p.222).

Questão interessante a ser levantada ocorre quando a pessoa jurídica

não cumpre a prestação de serviço imposta à comunidade e não justifica o

descumprimento. Quando o mesmo fato acontece às pessoas naturais , o

juízo da execução irá converter a pena de prestação de serviços em pena

privativa de l iberdade27. Porém, a mesma medida é impossível, quando se

trata de pessoa jurídica. A lei 9.605/98 é omissa, cabendo ao juiz da

execução tomar as medidas coercitivas necessárias para o efetivo

cumprimento da reprimenda. Tal é o nosso entendimento, que

especificamos. Tratando-se da pessoa jurídica, deve evitar-se a aplicação de

pena de prestação de serviços à comunidade, tendo-se em vista a sua

inexequibilidade. Entretanto, não ocorreria a situação de impunidade, caso

o juiz da condenação aplicasse ao ente moral as sanções de multa ou

interdição de direitos28.

27 É o que es tá previs to no ar t . 44 , parágrafo 4º do Código Penal : “A pena res t r i t iva de d i re i tos convert e-se em privat iva de l iberdade quando ocorrer o descumprimento in just i ficado da res t r ição imposta [ . . . ] .” 28 Eduardo L. S. Cabet te não es tá longe dessa pos ição, ao reconhecer a lacuna legal na matér ia (2003, p . 69) e sugere o es t abelecimento de uma mul ta cominatór ia d iár ia pelo ju iz , ao molde do que acontece com as pessoas f í s icas (CP, ar t . 51) . Reconhece, porém, que t al solução não pode atualmente ser posta em prát i ca , “por fa l ta de previsão legal” .

66

2.4 Perante um conflito: a perspectiva de Winfried Hassemer

Foi fácil perceber após essas considerações que há um conflito

doutrinário a respeito da responsabilização da pessoa moral no cometimento

de um crime contra o meio ambiente. Uma primeira posição, a mais

tradicional e aceita, defende a impossibil idade de o ente moral praticar uma

infração penal, tendo em vista a sua essência e a ausência da vontade e

ação. Outra posição sustenta que a pessoa jurídica não é uma mera ficção

jurídica desprovida de vontade, mas sim um ente objetivo, com existência e

vontade próprias, distinta da de seus membros, com a finalidade de realizar

um objetivo social . Nesse sentido teria capacidade de responder pelos atos

nocivos ao meio ambiente. Em vista desse quadro doutrinário, Winfried

Hassemer29 sugere repensar o Direito Penal, por meio daquilo que ele chama

de “Direito de Intervenção”30. Há algum tempo, pensa ele, os delitos e os

delinqüentes sofreram uma metamorfose profunda, observando-se uma

extensividade inédita: atualmente o bem jurídico atingido pela ação

delituosa não afeta apenas certa e determinada vítima, mas sim, a

coletividade, muitas vezes global e planetária. Exemplifica o i lustre jurista,

29 Winfr ied Hassemer (nascido em 17 de feverei ro de 1940 em Gau-Algesheim), é um cient ista do d i re i to penal a lemão e vice-p res idente do Tribunal Const i tucional Federal . Hassemer fo i ent re 1964 e 1969 ass istente c ient í f ico no Ins t i tuto de Leis Sociai s e Fi losof ia da Uni vers idade do Sarre . Tornou-se depoi s Catedrát ico de Di rei to Penal , de Socio logia e de Teor ia do Direi to na Univers idade de Frankfurt . Des taca-se ent re seus escr i tos Três Lições de Direi to Penal , obra aqui u t i l izada nes ta d isser tação. 30 Winfr ied Hassemer (1993, p .84) ao d iscut i r o assunto, af i rma que: “a a tual polí t ica cr iminal é to talmente di ferente do que era há vin te anos a t rás . O Direi to Penal é incapaz de so lucionar os modernos problemas da cr iminal idade e nós temos que ref le t i r a respei to de a lgo que seja melhor , mais ef icaz, que seja capaz de so lucionar esses problemas . Eu chamo a i sso de “Direi to de In tervenção”.

67

reportando-se à Alemanha Federal, que o fenômeno que inquieta a

comunidade daquele país é a criminalidade organizada, a criminalidade

econômica, grandes atos criminais na área da ecologia planetária, o tráfico

de drogas. Constata que a criminalidade organizada é o centro das

preocupações da polí tica geral. Essa criminalidade organizada não é apenas

uma organização bem feita, não é somente uma organização internacional,

mas é, em última análise, a corrupção da legislatura, da magistratura, do

Ministério Público, da política, ou seja, a paralisação estatal no combate à

criminalidade.

A criminalidade ecológica, para Hassemer, é um dos exemplos da

criminalidade moderna, compreendendo entre outras coisas o transportar

cargas perigosas de um lugar para outro, transferir det ritos radioativos de

um país para outro, acontecendo até mesmo o contrabando de detritos

poluidores de um país para outro, sobretudo para fora da Comunidade

Européia. A criminalidade moderna apresenta as seguintes característ icas:

1) ausência de vítimas individuais. Esse tipo de criminalidade não possui

vítimas individuais, ou melhor, as vít imas individuais só existem de forma

mediata (na criminalidade clássica poderíamos apontar, como semelhante,

os delitos fiscais , onde a vítima imediata é o Estado). Via de regra, a

criminalidade moderna não tem vítimas individuais. As vítimas são o

Estado ou as comunidades, como o caso da Comunidade Européia.

2) Pouca visibilidade dos danos causados. Os danos causados por essa

criminalidade não são sempre bem visíveis. Por exemplo, no direito

ecológico alemão, o Código de Direito Ambiental diz genericamente que

68

quem polui a água será sancionado (simplifica o autor). Mas para isso é

necessário colocar l imites de poluição, é preciso saber em que momento

começa o ato criminoso, pois, logicamente quem coloca um quilo de sal no

rio Reno não comete um delito ambiental, mas quem coloca uma tonelada

sim, ou quem sabe cem toneladas, ou talvez não com sal, mas com outros

gêneros mais poluentes. Então, traduzindo, a autoridade administrativa

precisa definir os limites do proibido e do permitido. Hassemer completa

que o Código Ambiental não pode descrever o deli to, como no caso do

homicídio, da fraude, mas pode descrever apenas a sua moldura, e o deli to

efetivo deve ser descrito pela Administração Pública. Chama a isso de

“acessoriedade administrativa”, ou seja, o delito se define por um ato do

Poder Executivo. Isso é Direito Penal moderno, ou seja, os danos não são

mais visíveis, o deli to perde a sua tangibilidade, adquire outra estrutura. A

criminalidade moderna transcende os direitos individuais universais, não é

o corpo, a vida, a liberdade, a honra, o patrimônio das pessoas como falava

o Direito Penal clássico, mas, a capacidade funcional do mercado de

subsídios, por exemplo, no caso das fraudes ao subsídio; a saúde pública

nos casos de produtos farmacêuticos etc. Esses são os bem jurídicos da

criminalidade moderna e do Direito Penal moderno. São bens jurídicos

supra-individuais, são universais e são vagos, possuindo sujeito passivo

indeterminado.

3) Novo “modus operandi”. Como última característica da criminalidade

moderna, Hassemer coloca que “suas formas de ação são civis, não corre

sangue, só no final , talvez, haverá um pouco de agressão” (1993, p. 89). De

69

um modo geral há colarinhos brancos, caneta, papel, assinaturas de

contratos e, também por isso, os danos desse tipo de criminalidade não são

visíveis: contratos, pagamentos, cartas, negociações, solicitações. E,

finalmente, completa Hassemer, aquela criminalidade apresenta três

característ icas fundamentais: internacionalidade desse tipo de crime,

profissionalidade e gente boa, gente com cabeça e proteção contra a

investigação policial .

Perante esses fatos, o Direito Penal moderno, verifica Hassemer

(1993, p. 89), é totalmente diferente em muitos aspectos do Direito Penal

clássico. Existe uma nova criminalização e um aguçamento das medidas, em

especial na fase de investigação. Descendo a detalhes, Hassemer refere-se

ao “aumento da moldura penal”, dando como exemplo a elevação das penas

na área de drogas e do direito comercial , à criminalização terri torialmente

extensa, com o crescimento da contextualização dos crimes, onde “o

legislador procura descrever todas as hipóteses imagináveis” (1993, p. 90),

à utilização exagerada de delitos abstratos. No que diz respeito ao Direito

Penal Processual, refere-se Hassemer ao uso de novos métodos

investigatórios, que vão em geral muito além do objeto e do sujeito

investigados, como acontece com a introdução de métodos técnicos

audiovisuais, de dados informatizados, do uso de colaboradores disfarçados

ou infiltrados, da invasão da privacidade de terceiros, atingindo como

rotina aquele campo de ações que no Código de Processo tradicional

deveriam constituir exceção. Destaca ainda o autor a privatização da

segurança, sem um controle estatal eficiente, e a transação – ou a chamada

70

“negociação no Direito Penal” – de modo que grandes processos penais

econômicos, na área de drogas, na área ambiental , entre outras, não são

decididos através de uma sentença, mas através de negociação, não raro

secreta: “negocia-se quanto se pode dar e quanto se pode ceder. Eu acho

isso um escândalo em processo penal!” (1993, p. 93). O jurista acredita que

“isso provém do fato de o direito material ter recebido demasiados encargos

da nova criminalidade, encargos que não pode suportar” (p. 93).

Fazendo uma avaliação pessoal desse cenário, Hassemer afirma de

princípio que o Direito Penal não pode renunciar a determinados princípios

que estão “atravessados”, rejeitados, na modernidade. Fundamenta sua tese

em quatro pontos principais: a) os déficits de execução; b) a

Individualização da pena; c) o princípio in dubio pro reo; d) o Juízo de

certeza.

Constata quanto ao primeiro que o moderno Direito Penal não está

funcionando satisfatoriamente. Nele os campos obscuros, não esclarecidos,

são muito amplos: o comércio internacional de detritos, o tráfico

internacional de drogas, a criminalidade econômica. Esses campos “não são

apenas muitos, mas são também seletivos. No campo ambiental, no tráfico

de drogas, por exemplo, nunca se apanham os chefões, apenas o chamados

peixes pequenos, e isso é injusto do ponto de vista jurídico” (1993, p. 93-

94). Nessas circunstâncias, a não finalização dos processos numa sentença,

substi tuída muitas vezes por um acordo, ou mesmo uma sentença dada no

limite inferior, porque o juiz sabe que foi pego apenas um entre milhares –

tudo isso está a indicar os déficits de execução.

71

Quando à individualização da pena, que é um dos princípios

fundamentais do Direito Penal, parece não funcionar no Direito Penal

moderno, pois no novo tipo de criminalidade, não se age individualmente,

mas sempre em grupo – “a divisão do trabalho”, quando normalmente há

uma diretoria que toma decisões, se não por unanimidade, ao menos por

maioria, não ocorrendo a decisão criminosa de uma pessoa só.

Também não funciona, na criminalidade moderna, o princípio In

dúbio pro reo . Se se espera até não se ter dúvida, “o problema da

criminalidade internacional se tornará insolúvel” (1993, p. 94). Há a

necessidade de uma intervenção oportuna, de se saber oportunamente o que

aconteceu. É preciso poder intervir nesse campo, como no caso dos

armamentos de guerra, no comércio e contrabando de material radioativo.

Intervir, mesmo tendo dúvidas.

Por fim, o juízo de certeza nem sempre é possível . Acha Rassemer

que é necessário ter respostas flexíveis , ditadas pela mudança de situação.

A cada dia se inventam novas drogas, drogas sintéticas, de modo que, nesse

como em outros casos, até o legislador intervir se levarão uns três anos. A

certeza exige uma legislação clara. “Isso hoje não funciona. O Direito

Penal, nesse sentido, não pode se modernizar sem abrir mão de alguns

princípios” (1993, p. 95).

Diante dessa situação, o que fazer, pergunta-se Hassemer. Como linha

geral, acha ele que o Direito Penal deve voltar ao aspecto central, ao

Direito penal formal, “a um campo no qual pode funcionar, que são os bens

e direi tos individuais, vida, liberdade, propriedade, integridade física,

72

enfim, direitos que podem ser descritos com precisão, cuja lesão pode ser

objeto de um processo penal normal” (p. 95). Entretanto, diante da nova

criminalidade, é necessário encontrar outras saídas. Aqui volta ele a propor

o “Direito de intervenção”, que não se limitará a aplicar as pesadas sanções

do Direito Penal, em especial as sanções de privação da liberdade, mas que

optará por garantias menores. Esse novo campo do direito se localizaria

“entre o Direito Penal, o Direito Administrativo, entre o direi to dos atos

ilícitos no campo do Direito Civil , entre o campo do Direito Fiscal e

utilizaria determinados elementos que o fariam eficiente” (p. 95).

Que elementos seriam esses? Hassemer avalia que se necessita, para

começar, de instrumentos eficientes contra as pessoas jurídicas, pois o

Direito penal clássico está totalmente voltado para o indivíduo, para a

pessoa física, enquanto o problema moderno são os grupos, as instituições,

ramos inteiros de organizações sociais. São também grupos dentro do

Estado. São bastante esclarecedoras as palavras do jurista alemão:

É necessário que nos concentremos nesse campo do Direito Penal , na criação e divisão de hierarquias, na criação de sistemas de proteção. E é exatamente isso que o Direito Penal que temos não pode fazê-lo. Arrebentaremos com o Direito Penal. Nós já começamos isso na Alemanha Federal e no final teremos um instrumento ineficiente. Este campo do Direito tem que ser efetivamente orientado pelo perigo, pela pericli tação e não pelo dano. A criminalidade moderna não é um caso de danos, é um caso de riscos. Normalmente nem se chega a produzir um dano, ou o dano ocorre quando é tarde demais. Assim, esse campo do direito precisa poder reagir ao perigo, ao risco, precisa ser sensível diante da mínima mudança, que pode se desenvolver e transformar-se em grandes problemas (1993, p. 95-96).

73

Reforçando sua proposta, Hassemer sustenta que esse campo de

direito se deverá organizar preventivamente, já que o Direito Penal sempre

se orientou pela repressão e pelo passado. Ora, a repressão pode vir tarde

demais. Uma intervenção oportuna, por exemplo, no que se refere à

corrupção, seria muito mais eficaz. Agir no nascedouro, antes que as coisas

estejam instaladas. É o que se chama “direito de intervenção”. É difícil não

concordar com o autor no que se segue:

Nesse aspecto os direi tos coletivos são muito mais importantes que os direitos individuais. É importante que os direitos da coletividade, do funcionalismo, da justiça, da bolsa, dos subsídios, do mercado de capi tais estejam no centro dessa área do direito e esse “direito de intervenção” pode ser orientado pelo mercado, algo que no Direito Penal não cabe. É um mundo diferente, o Direito Penal nunca pode orientar-se pelo mercado, como, por exemplo, no campo do direito ambiental , da poluição ambiental em grande esti lo, pode-se trabalhar com permissões de poluição até determinado l imite [. . . ] (1993, p. 96).

O autor faz diversas aplicações de sua proposta, em especial na

questão controvertida da descriminalização das drogas, sonegação dos

impostos, como reguladores de comportamento, do direito penal ambiental.

Em todos esses campos, observa a incapacidade do direito penal de atender

com eficiência e com instrumentos sensatos às ações delituosas. Uma das

razões, talvez uma das principais , não deixa de formular: o fato de o Direito

Penal fundamentar-se na culpa , impedindo que se criem instrumentos

eficientes para combater a moderna criminalidade.

As idéias de Hassemer vêm ao encontro, segundo nos parece,

daquelas anteriormente expostas sobre ética da responsabil idade de Hans

74

Jonas. Ambos os pensadores estão de acordo sobre as novas realidades e a

magnitude de seus problemas, entre os quais, certamente, a enorme

potencialidade humana de produzir riscos tanto para o hoje quanto para o

amanhã. As injustiças do presente poderão multiplicar-se, ao limite da

destruição do homem, para o futuro. Indivíduos e coletividades estão aí

implicados, mas essas últimas, certamente, com mais força. Ser responsável

para Jonas era, antes de mais nada, tornar-se consciente do perigo, que a

nova tecnologia pode trazer (e já traz) para a vida em geral , e para o homem

em particular. Hassemer emprega, como se viu, o termo jurídico

pericli tação , diante do cenário da nova criminalidade. E assim como Jonas

vê a insuficiência das éticas clássicas em responder à nova tipologia das

ações humanas, muito embora seus princípios básicos atinentes aos

indivíduos, possam e devam ser mantidos, Hassemer considera também

defasado o Direito Penal moderno, isto é, o que modernamente se executa,

face aos novos problemas advindos das relações comunitárias e sociais e ao

dinamismo das pessoas jurídicas, muito embora também reconheça a

necessidade de se manter os princípios fundamentais do Direito Penal

clássico, sem os quais se eliminam as garantias e a potência protetora dos

indivíduos, das comunidades e dos Estados, consubstanciadas no Direito

Penal.

75

CAPÍTULO III

DOS CRIMES AMBIENTAIS

3.1 O meio ambiente e o conceito de dano ambiental O conceito de crime ambiental supõe, evidentemente, que se tenha a

compreensão do que seja meio ambiente. O termo possui hoje livre curso,

embora já se tenha observado que é pleonástico, pois “meio” e “ambiente”

se equivalem. Ele aparece por diversas vezes, como se sabe, na Constituição

Federal de 1988, e, antes dela, a Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política

Nacional do Meio Ambiente, já o definia como sendo “o conjunto de

condições, leis , influências e interações de ordem física, química e

biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art.

3º, I).

3.1.1 Conceito de meio ambiente

De início, é preciso anotar que meio ambiente é conceito que se

vincula ao homem e a ele está relacionado. Se, a princípio, prevalecia, na

ecologia, uma abordagem dita autoecológica, isto é, que não incluía o

homem, passou-se depois a entender que a disciplina devia direcionar-se no

76

sentido de uma integralização de natureza-homem. É dessa forma que

Jollivet e Pavê puderam formular esta valiosa definição de meio ambiente:

O conjunto dos meios naturais ou art ificializados da ecosfera, onde o homem se instalou e que explora e administra, bem como o conjunto dos meios não submetidos à ação antrópica, e que são considerados necessários à sua sobrevivência (1996, p. 63).

A referência ao homem não quer significar, entretanto, um

antropocentrismo tal , que toda a natureza esteja à sua disposição, para seu

uso e abuso. Ele não é o “proprietário absoluto” da natureza, ao contrário

necessita de conviver com ela numa convivência pacífica, mesmo porque o

contrário poderia acarretar o extermínio da espécie humana. Por essa razão

é que se chegou à necessidade de se falar em bioética e em biodireito, aliás

interrelacionados, pois as condutas morais do homem, em qualquer de suas

atividades, em especial aquelas que dizem respeito à vida, se devem

regular pelas normas jurídicas para a eficaz proteção e tutela dos valores

que estão em jogo. Os avanços tecnológicos e as possibilidades de

intervenção (e de destruição) na natureza levaram à consciência da

vulnerabilidade dessa, como também ao interesse intergeracional31 de modo

a preservar os recursos naturais para as gerações futuras.

Essas preocupações não ficaram em esquecimento pelo constituinte

pátrio que, pode-se dizer, admitiu um “antropocentrismo alargado” na

expressão de Leite (2003, p. 75). Esse autor constata, com efeito, a partir

31 Fala -se , com propriedade, em equidade in tergeracional , que exige que cada geração t ransmita à seguinte” um nível de qual idade ambiental igual ao que recebeu da geração anter ior” (LEITE, 2003, p. 75)

77

do art . 225, caput , da Constituição Federal de 1988, bem assim do art . 3º , I,

da Lei 6.938, de 1981, que nosso ordenamento jurídico contempla a

responsabil idade social perante o meio ambiente, a ser executada não só

pelo Estado como também pela coletividade. Tal perspectiva

antropocêntrica, escreve Leite, coloca o homem como integrante da

comunidade biota. E acrescenta:

Apesar da falta de uma tutela di fusa do bem ambiental o Novo Código Civil (art . 1.228, § 1º , da Lei 10.406, de 2002) l imitou o direito de propriedade ao exercício das final idades sociais, incluindo a preservação da flora, da fauna, das belezas naturais, do equi l íbrio ecológico e do patrimônio cultural , bem como procurando evi tar , por uso inadequado, a poluição do ar e das águas (2003, p. 75-76).

É preciso assim reconhecer que o legislador deu um passo à frente,

não mais se l imitando exclusivamente a entender a proteção ao meio

ambiente sob a razão de seu aproveitamento pelo homem, numa posição

economocêntrica. Poderíamos dizer mesmo que se trata de um importante

deslocamento rumo a um eixo axiológica ecocêntrico. Trata-se, então, de

um direito ao meio ambiente equilibrado, como bem da coletividade e

essencial à sadia qualidade de vida. É o que se depreende do art. 225,

caput , da Constituição Federal.

Vimos que a Lei 6.938/81 entendera por meio ambiente “o conjunto

de condições, leis , influências e interações de ordem física, química e

biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. É de

ver, então, que o legislador optou por um conceito amplo que abriga a vida

animal e vegetal no mesmo nível de importância que a vida humana, “a vida

78

em todas as suas formas”. José Afonso da Silva justifica com propriedade

essa globalização conceitual:

O conceito de meio ambiente há de ser, pois,

globalizante, abrangente de toda a natureza, o art ificial e original, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar , a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, art íst ico, turístico, paisagíst ico e arquiológico.

O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, arti f iciais e culturais que propiciem o desenvolvimento equil ibrado da vida em todas as suas formas (2002, p.20) (Grifo do autor).

O legislador pátrio não se l imitou, portanto, ao conceito restri to de

proteção aos recursos naturais. É claro que a conotação dos bens naturais e sua

proteção fica expressa , como ecossistema e equil íbrio ecológico, mesmo porque

disso depende também o aproveitamento humano do bem ambiental . Mas a

expressão ampla da lei permite entender que ela considera o meio ambiente como

um “macrobem”, um bem incorpóreo e imaterial , que se configura como bem de

uso comum do povo. É o que explica Antônio Herman Benjamin:

Como bem – enxergado como verdadeira universitas corporalis , é imaterial – não se confundindo com esta ou aquela cosia material (floresta, r io, mar, sí t io histórico, espécie protegida etc .) que o forma, manifestando-se, ao revés, como o complexo de bens agregados que compõem a real idade ambiental . Assim, o meio ambiente é bem, mas, como entidade, onde se destacam vários bens materiais em que se firma, ganhando proeminência, na sua identificação, muito mais o valor relativo à composição, característ ica ou uti l idade da coisa do que a própria coisa. Uma definição como esta de meio ambiente, como macrobem, não é incompatível com a constatação de que o complexo ambiental é composto de entidades singulares (as coisas, por exemplo) que, em si mesmas, também são bens jurídicos: é o rio, a casa de valor histórico, o bosque com apelo paisagístico, o ar respirável, a água potável (Apud LEITE, 2003, p. 82-83).

79

Alerta José Rubens Morato Leite (p. 83) que o legislador

constitucional, ao caracterizar o meio ambiente como bem comum de todos,

não legit imou exclusivamente o Poder Público para sua tutela jurisdicional

civil , como interesse difuso, e assim apartou o meio ambiente de uma visão

de bem público em sentido estrito. Um dos sinais comprobatórios disso é

que, quando há pagamento pecuniário, a título indenizatório dos danos aos

bens ambientais , os montantes arrecadados são depositados em fundo que

não é gerido e administrado só pelo Poder Público. O bem ambiental

(macrobem) não é, pois, patrimônio público, mas pertence à coletividade, é

de interesse público32. Em consequência, anota ainda Leite (p. 84) que esse

bem deve ser separado da definição de bens públicos e privados que fora

dada pelo Código Civil brasileiro de 1916, erro em que incidiu também o

novo Código Civil, classificando os bens de uso comum do povo como bens

públicos, verbis :

Art. 99 – São bens públicos: I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças [ ...] 33

Outro aspecto também relevante que se destaca na caracterização do

meio ambiente, considerado como bem comum a que “todos têm direito”,

segundo a expressão const itucional34, é justamente que se trata de um bem

32 José Afonso da Si lva (2002, p . 83) def ine que os bens de in teresse públ ico se subordinam a pecul iar regime jur ídico , em relação a seu gozo e à d ispon ibil idade e a um part icular regime de po l íc ia de in tervenção e de tu te la públ i ca , d is t inguindo-se duas categorias de bens de int eresse públ i co: os de ci rculação contro lada e os de uso contro lado. O autor dá como exemplo o meio ambiente cul tural e o natural . 33 O Código Civi l de 1916 rezava igualmente no ar t . 66: “Os bens públ icos são: I – de uso comum do povo, ta i s como os mares , es t radas , ruas e praças ; [ . . . ]” . 34 Const i tu ição da Repúbl ica Federat iva do Bras i l , ar t . 225, caput : “Todos t êm di rei to ao meio ambiente ecologicamente equi l ibrado, bem de uso comum do povo e essencial à

80

jurídico fundamental, objeto de um direito fundamental do homem.Tal

direito se insere ao lado do direito à vida, à igualdade, à liberdade, de

amplo cunho social e não só individual. Cabe assim ao Estado e à

coletividade o cuidado para a efetivação desse direito, esperando-se daquele

os meios instrumentais indispensáveis, e a essa, a abstenção de práticas

nocivas ao meio ambiente. Por outro lado e como consequência dessa

solidariedade de obrigações, ressalte-se que o direito fundamental ao meio

ambiente apresenta-se com dupla natureza jurídica: é um direito subjetivo

da personalidade e de caráter sobretudo público, e também como elemento

fundamental de ordem objetiva. No primeiro aspecto, reconhece-se a

possibilidade aos indivíduos de pleitear o direito de defesa contra atos

lesivos ao meio ambiente, já que o desenvolvimento da personalidade

humana necessita da preservação ambiental ecologicamente equilibrada35. Já

a dimensão objetiva do direito do meio ambiente se depreende da

incumbência de tarefas essenciais à preservação ambiental, que a

Constituição Federal (art . 225, § 1º) faz ao Estado. Nesse sentido, José de

Sousa Cunhal Sendim (apud LEITE, 2003, p. 89) salienta que a dimensão

objetiva vem assegurada pelas normas-fins e normas tarefas, que a

Constituição Federal positivou, e que impõem aos poderes constituídos a

proteção e promoção do direito fundamental ao meio ambiente.

sadia qual idade de vida, impondo-se ao Poder Públ ico e à colet ividade o dever de defendê-lo ou preservá-lo para as presentes e fu turas gerações”. 35 Segundo o ar t . 5 º , i nciso LXXIII , da Const i tui ção Federal , o d i re i to de defesa subjet ivo do meio ambiente , de caráter públ ico, poderá ser exercido a t í tulo individual .

81

3.1.2 Espécies de meio ambiente

José Afonso da Silva (2002, p. 21-23) apresenta a seguinte divisão:

a) o meio ambiente natural ou físico: os recursos naturais (solo, água, ar

atmosférico, flora, fauna e em geral, todas as formas de interação entre os

seres vivos e seu meio36.

b) o meio ambiente artificial, que inclui o espaço urbano construído, ou

seja, o conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos

públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livros em geral (espaço urbano

aberto);

c) o meio ambiente cultural , “integrado pelo patrimônio histórico, artístico,

arqueológico, paisagístico, turíst ico, que, embora artificial, em regra, como

obra do homem, difere do anterior (que também é cultural) , pelo sentido de

valor especial que adquiriu ou de que se impregnou”;

d) o meio ambiente do trabalho, entendido como “o local em que se

desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por

isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente” (segundo esse

autor, essa espécie é inclusa no conceito de meio ambiente artificial).

O meio ambiente natural é aquele “complexo de elementos, condições

e leis da biota, sujeitos a interações de ordem física, química e biológica,

que permite, abriga e rege a vida em todas as formas”(FELICIANO, 2005,

p. 329). Pode-se especificar, embora de maneira breve, esses elementos,

36 Cf . ar t . 3 º , I , da Lei n . 6 .938/81.

82

objeto da ecologia, enquanto ciência biológica “que estuda as funções

relacionais de organismo vivos com seu entorno natural” (p. 333). São

eles:

a) a biosfera , a parte do globo terrestre onde a vida existe e se reproduz.

Compreende a massa atmosférica circundante, a água líquida e quantidade

menor de terrenos sólidos, Aí se incluem também as populações vivas,

vegetais e animais. Divide-se em biociclos (o terrestre, a vida em água

doce, a vida no mar), biocoras (as unidades dos biociclos) e biomas (zonas

particulares dos biomas, por ex., a floresta tropical )37. Distinguem-se nesse

conjunto a biomassa , matéria orgânica total de um dado ecossistema; a

biota , o conjunto de todos os seres vivos que habitam a biosfera e formam

as populações e as comunidades ;

b) o solo, a camada mais superficial da crosta terrestre. Aqui, há de se

distinguir o subsolo, os recursos minerais , as jazidas, as minas, as lavras;

c) a erosão, ou seja, o transporte dos elementos constituintes do solo para

as planícies, vales, leito dos rios ou para o mar, como conseqüência de

agentes externos, de origem natural ou humana;

d) a atmosfera, isto é, a massa de ar que envolve a Terra e que fornece às

populações aeróbicas o elemento indispensável às quebras energéticas em

nível celular e outras muitas funções, dentre as quais a de servir de fil tro

contra as radiações do espaço exterior que se propagam pelo vácuo (as

radiações UV-A, UV-B e infravermelho);

37 SILVA JUNIOR, Cesar; SASSON, Sezar. Biologia. 4. ed. São Paulo: Atual, 1984, p. 183.

83

e) o clima, que é a sucessão habitual dos tipos de tempo e seus elementos

são a temperatura, a pressão atmosférica, a umidade, os ventos e as

precipitações atmosféricas;

f) os recursos hídricos, compreendendo as reservas líquidas úteis de um

país: rios, lagos, lençóis freáticos e outras reservas aquosas em terreno de

domínio público ou particular;

g) a biodiversidade, que é a variabilidade de organismos vivos de todas as

origens e os complexos ecológicos de que fazem parte (FELICIANO, 2005,

p. 339). Como explica esse autor, a biodiversidade compreende a

diversidade dentro de uma mesma espécie, a diversidade entre espécies e a

diversidade entre ecossistemas;

h) a biossegurança, entendida como a qualidade própria ao manejo

sustentável dos recursos naturais genéticos e correspondente ao uso seguro

de técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação,

transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo

geneticamente modificado, com a finalidade de proteger a vida e a saúde do

homem, dos animais e das plantas, e assegurar a integridade do meio

ambiente ecologicamente equilibrado (FELICIANO, p. 340).

Define-se o meio ambiente artificial como o conjunto de edificações,

reconhecido como espaço construído fechado, e equipamentos públicos

(ruas, praças, áreas verdes, represas, iluminação pública etc. – dito espaço

construído aberto) que forma o espaço humano construído, urbano ou rural.

Tal definição evidencia que a preocupação com o meio ambiente vai além

da proteção à natureza e da luta contra a poluição, devendo abranger

84

também todos os elementos art ificiais que se relacionem com a qualidade de

vida e com a forma de uti lização e organização dos espaços construídos, na

cidade ou no campo38. No meio ambiente rural predominam as at ividades

econômico do setor primário (extrativismo, pecuária e agricultura) e no

urbano, as at ividades econômicos do setor secundário (indústria) e/ou

terciário (serviços).

Como se observa, por toda parte, o fenômeno da urbanização da

população, é de entender-se, observa o Prof. Guilherme Feliciano (p. 345)

que as medidas de defesa e preservação do meio ambiente são mais

prementes nas zonas urbanas, onde o desequilíbrio ecológico afeta grandes

populações, em razão da maior densidade demográfica e à impermeabilidade

do entorno. Reconhece-se, porém, hoje que as alterações da “paisagem

campesina” também podem ser muito graves, com a poluição dos rios e

mananciais pelo uso desordenado dos agrotóxicos, devastação da cobertura

vegetal etc.

Merece, entretanto, atenção especial o meio ambiente urbano, em que

a política ambiental é indispensável, mesmo porque, afirma o Prof.

Feliciano (p. 348), os conflitos suscitados na organização do espaço urbano

é que engendram os principais movimentos ecológicos da atualidade. E

pondera, com muita propriedade, que as cidades não passam de uma “pálida

38 Prieur, citado por Feliciano (2005, p. 345), entende que a expressão “meio ambiente cultural” compreenderia tudo o que é transformado pelo homem, contrapondo-se à idéia de meio ambiente natural. Opõe-se a isso o Prof. Guilherme Feliciano (ibidem), alegando que “meio ambiente cultural é usualmente empregado em contextos de fundo sociológico e/ou arquitetônico (patrimônio cultural, como no art. 216 da Constituição Federal), a que não pertencem as construções urbanas recentes ou vulgares –que, nada obstante, são a causa principal dos problemas típicos do meio ambiente artificial (edificações desordenadas, favelização, poluição visual etc.)”.

85

cópia” dos ecossistemas naturais, não sendo orgânicos os vínculos de

interdependência (como nas cadeias alimentares), mas, sobretudo,

socioeconômicos. Por essa razão, são numerosas as possibilidades de

agressão ao meio ambiente artificial equil ibrado, como, por exemplo, a

conspurcação de edificação urbana, a poluição visual, que pode vir até a

atingir o patrimônio cultural 39, a poluição sonora etc.

A expressão “meio ambiente cultural”, numa acepção lata, se

identifica com “patrimônio nacional ambiental”, ou seja, o espólio nacional

integrado de todos os objetos de valor ambiental reconhecido, naturais ,

art ificiais ou ambientais . No sentido estri to, equivale ao espólio nacional de

todos os bens do patrimônio histórico, artístico, arqueológico,

paleontológico, turístico e científico, neles mesmos e nas interações com o

entorno e o homem. É que esclarece Feliciano (2005, p. 352), que define,

acompanhando Sebastião Valdir Gomes, como sendo o meio ambiente

cultural “as sínteses culturais que integram o universo das práticas sociais

das relações de intercâmbio entre o homem e a natureza”. Entretanto, não

fariam parte desse conjunto as edificações os equipamentos públicos sem

relevante interesse cultural , que, como se viu, pertencem ao meio ambiente

art ificial40.

39 O crime de conspurcação de edificação urbana está previsto no art. 65 da Lei n. 9.605/98. Tal conspurcação pode ser qualificada, quando atinge o ordenamento urbano e o patrimônio cultural brasileiro. Explica o Prof. Feliciano que todos os modos de tutela convergem para a garantia plena de direito à cidade. “O direito à cidade, paulatinamente reconhecido entre as nações do mundo, é um consectário do próprio ideário democrático ocidental” (p. 350). 40 No caso do meio ambiente cultural brasileiro, a Constituição Federal de 1988 estabelece constituir nosso patrimônio “os bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (art. 216, caput)

86

Entre os bens componentes do meio ambiente cultural podem ser

listados: os objetos de arte e/ou de interesse arqueológico, pré-histórico,

etnográfico, religioso, científico, tecnológico ou popular; as coisas de

interesse histórico e as obras de arte histórica; as coisas de interesse de arte

erudita e as obras de artes aplicadas; as jazidas que representem testemunho

das culturas indígenas antigas, como sambaquis, poços sepulcrais, jazigos,

estearias e outras; cemitérios, sepulturas e locais de pouso prolongado ou

de aldeamento, com os vestígios humanos de interesse arqueológico ou

paleoetnográfico; as inscrições rupestres e outras manifestações culturais

ou etnológicas, nos locais onde ocorrem41.

José Afonso da Silva (2002, p. 23) define o meio ambiente do

trabalho, como “o local em que se desenrola boa parte da vida do

trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da

qualidade daquele ambiente”. De maneira mais específica, Purvin de

Figueiredo afirma que se trata do “conjunto de condições, leis, influências e

interações de ordem física, química e biológica, que incidem sobre o

homem em sua atividade laboral”(2000, p. 44). Vê-se que é muito ampla a

abrangência das condições que concorrem para o ambiente equilibrado do

trabalho, como, em contrapartida, são também numerosos os riscos

possíveis de agressão à saúde física e psíquica do trabalhador.

41 O Prof. Feliciano enumera (p. 353-354), por sua nota de relevância, todos os principais objetos ambientais que constituem o meio ambiente cultural brasileiro, com fulcro na Constituição Federal de 1988, no Decreto-lei n. 25 de 30 de novembro de 1937, na Lei n. 3.924, de 26 de julho de 1961, na lei n. 6513, de 20 de dezembro de 1977 e na Lei n. 8.181, de 28 de março de 1991. Pelo art. 24, VII, da Constituição, o meio ambiente cultural abarca o patrimônio histórico, o patrimônio artístico e o patrimônio turístico (o inciso não inclui o patrimônio científico “que reúne o cabedal de invenções, modelos, informações e patentes de relevante valor científico, desde que genuinamente brasileiros” (p. 355). Aqui, fez-se apenas um resumo do rol apresentado pelo autor.

87

Segundo Feliciano (2005, p. 364), esses riscos podem ser

classificados como:

f ísicos (o ruído, a vibração, as temperaturas extremas, as pressões anormais e as radiações ionizantes e não-ionizantes); químicos (névoas, neblinas, poeiras, fumos, gases e vapores) e biológicos (bactérias, fungos, helmintos, protozoários e vírus) – a par dos riscos ergonômicos e psíquicos, inerentes às at ividades penosas e carentes de regulação adequada.

É certamente por isso que a Organização Internacional do Trabalho

(0IT) vem produzindo ao longo de sua história numeroso conjunto de

“Convenções” e “Recomendações”, que vivam à consti tuição de um direito

tutelar do trabalhador nas mais diversas atividades42. Muitos desses

documentos já foram, como se sabe, promulgados no Brasil.

É de notar, como conclusão, que, sendo o trabalho uma das dimensões

mais importantes do ser humano, não apenas como condição de

sobrevivência, mas como constitutiva de sua própria natureza social , as

agressões ao meio ambiente do trabalho podem atingir a própria dignidade

humana, significando desrespeito e exploração injusta.

42 Elenco significativo dessa legislação é apresentado por Feliciano (2005, p. 364-366), abrangendo a inspeção do trabalho e a prevenção dos acidentes, o trabalho subterrâneo das mulheres, os acidentes de trabalho na agricultura, as condições de trabalho nas plantações, no ramo da construção civil, no trabalho portuário e marítimo, na prevenção do câncer operacional, a prevenção contra as radiações ionizantes, o ambiente do trabalho no comércio e nos escritórios. Ao referir-se ao panorama nacional, no que tange à proteção penal, atesta que “no ordenamento brasileiro, a tutela penal do meio ambiente do trabalho é pífia” (p. 366).

88

3.1.3 Formas de danosidade

Após a consideração do que seja meio ambiente, do conceito jurídico

que se pode a seu respeito estabelecer e do direito que desse decorre, bem

como de quais espécies pode dividir-se o meio ambiente, torna-se

necessário abordar as possíveis formas de danosidade, que darão

fundamento às iniciativas penais legalmente previstas.

Uma primeira observação a fazer-se é de que a expressão “dano

ambiental” admite duplo sentido: as alterações nocivas ao meio ambiente, e

os efeitos daí decorrentes para a saúde e interesses das pessoas. A lesão ao

patrimônio ambiental pode, então, significar não só o dano à coletividade,

mas aos interesses legít imos de determinada pessoa. Fica, em ambos os

casos, subentendida a reparabilidade pelo prejuízo patrimonial ou

extrapatrimonial .

A danosidade pode se dist inguir em várias formas, segundo se considere a

amplitude do bem protegido ou a reparabil idade e o interesse envolvido, ou, por

fim, a extensão do dano perpetrado. Vale-se aqui, uma vez mais, da l ição de José

Rubens Morato Leite (2003, p. 93-100), cujos méritos de exposição clara e

didática são de reconhecer. Quanto à amplitude do bem protegido, pode-se falar

de um dano ecológico puro, isto é, quando são lesados componentes naturais do

ecossistema e não o patrimônio cultural ou art ificial . Atingem-se, assim, bens

próprios da natureza, em sentido estri to. Quando se abrangem todos os

componentes do meio ambiente, aí incluindo-se o patrimônio cultural , fala-se

num dano ambiental lato sensu , que diz respeito aos interesses difusos da

89

coletividade. Por fim, nomeia-se o dano individual ambiental ou reflexo, que

atinge o microbem ambiental , ferindo-se interesses próprios do lesado. Se se

atende à reparabil idade e o interesse envolvido, temos o dano ambiental de

reparabil idade direta, quando o interessado que sofreu a lesão deverá ser

diretamente indenizado; e o dano ambiental de reparabil idade indireta, quando

relacionado a interesses difusos, coletivos, e eventualmente individuais de

dimensão coletiva, e, neste caso, a reparabil idade é fei ta indireta e

preferencialmente ao bem ambiental de interesse coletivo, sem objetivo de

ressarcir interesses próprios e pessoais. Por fim, se se considera a extensão do

dano ambiental , dist ingue-se o dano patrimonial ambiental e o extrapatrimonial

ou moral ambiental .O primeiro exige a resti tuição, recuperação ou indenização do

bem ambiental lesado. É de lembrar que, em sua versão de macrobem, o bem

ambiental é de interesse de toda a coletividade, não se aplicando a versão

clássica de propriedade, que, entretanto, vem aplicada quando se tratar de

microbem ambiental , relacionado a um interesse individual (dano individual

reflexo). O dano extrapatrimonial ou moral ambiental diz respeito não a

interesses de natureza material ou econômica, mas a valores de ordem espiri tual,

ideal ou moral, por acaso feridos em virtude da lesão ao meio ambiente.

É oportuno ter presente que o dano causado ao meio ambiente,

ecologicamente equil ibrado, diz respeito a um bem incorpóreo, imaterial,

autônomo, de interesse da coletividade. Trata-se, pois, de um dano de t ipo

especial , cujo ressarcimento também transcende a concepção tradicional de

atendimento à parte que postulou em juízo, justamente porque se trata aqui de

interesses di fusos. Mas é um bem de interesse jurídico autônomo e, portanto

reparável.

90

Da consideração do dano ambiental pode-se passar agora à dos crimes

ambientais.

3.2 Previsão legal, conceito e espécies de crimes ambientais

Capitulados pela Lei 9.605/98, os crimes ambientais podem ser

definidos, numa conceituação muito ampla, como toda conduta nociva e

atentatória ao equil íbrio do meio ambiente. Entretanto, é de observar-se que

não se trata de qualquer conduta danosa ou que provoque perigo ao meio

ambiente, mas aquela que é prevista pelo diploma legal. Tal obrigatoriedade

decorre do princípio constitucional da legalidade, o qual estabelece que não

há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação

legal43.

Nossa atenção será voltada de modo especial , embora não exclusivo,

para os delitos passíveis de serem cometidos pelas pessoas jurídicas.

A Lei 9.605/98 especifica os comportamentos danosos ao meio

ambiente, nos artigos 29 ao 69-A, os quais estão divididos em: crimes

contra a fauna (art. 29 ao 37); crimes contra a flora (art . 38 ao 53); da

poluição e outros crimes ambientais (art . 54 ao 61); crimes contra o

ordenamento urbano e o patrimônio cultural (art. 62 ao 65) e, por fim,

crimes contra a administração ambiental (art . 66 ao 69-A).

43 É o que est abelece o ar t igo 1º do Códi go Penal pát r io e o inci so XXXIX, ar t igo 5º da Const i tu ição Federal .

91

Na seção I do capítulo V da Lei 9.605/98 o legislador tutelou a

“fauna”, tomando o devido cuidado de defini-la legalmente, assim, in

verbis :

Art. 29. [ . . . ] § 3º São espécimes da fauna si lvestre todos aqueles pertencentes às espécies nat ivas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos l imites do terri tório brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras.

Na seção II a tutela penal recai sobre a flora. O art igo 38 da Lei

9605/98, não traz o conceito de flora, mas, sim, prevê as condutas nocivas a

ela nos verbos “destruir” e “danificar” floresta considerada de preservação

permanente, mesmo que em formação. Utilizou-se o legislador de norma

penal em branco, sendo necessário ao intérprete recorrer a outro dispositivo

legal para tomar o conhecimento sobre a matéria, por exemplo, os artigos 2º

e 3º do Código Florestal44.

44 Os ar t igos 2º e 3º do Código Flores ta l es tabelecem que: ar t . 1° As f lores tas exi st entes no terr i tór io nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de u t i l idade às terras que reves tem, são bens de in teresse comum a todos os habi tantes do País , exercendo-se os d i re i tos de propriedade, com as l imi tações que a legi slação em geral e especialmente es ta Lei es tabelecem; e ar t . 2° Consideram-se de preservação permanente , pelo só efei to des ta Lei , as f lores tas e demais formas de vegetação natural s i tuadas : a) ao longo dos r ios ou de qualquer curso d 'água desde o seu n ível mais a l to em faixa marginal cuja largura mínima será: 1 - de 30 ( t r int a) metros para os cursos d 'água de menos de 10 (dez) metros de largura; 2 - de 50 (c inquenta) metros para os cursos d 'água que tenham de 10 (dez) a 50 (c inquenta ) metros de largura; 3 - de 100 (cem) metros para os cursos d 'água que tenham de 50 (c inquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; 4 - de 200 (duzentos) metros para os cursos d 'água que t enham de 200 (duzentos) a 600 (sei scentos) met ros de largura; 5 - de 500 (quinhentos) metros para os cursos d 'água que tenham largura superior a 600 (sei scentos) metros ; b) ao redor das lagoas , l agos ou reserva tór ios d 'água naturais ou ar t i f ic iais ; c) nas nascentes , ainda que in termi tentes e nos chamados "olhos d 'água", qualquer que sej a a sua s i tuação topográf ica , num raio mínimo de 50 (cinquenta) met ros de largura ; d) no topo de morros, montes , montanhas e serras ; e) nas encos tas ou par tes des tas , com decl ividade superior a 45°, equivalente a 100% na l inha de maior decl ive; f ) nas res t ingas , como

92

Na seção III a preocupação legislativa recaiu sobre a poluição de

qualquer natureza: atmosférica, hídrica, terrestre etc. O artigo 54 da Lei

9.605/98 estabelece pena de um a quatro anos de reclusão quando alguém

causar poluição de qualquer natureza e em níveis tais que resultem ou

possam resultar em danos à saúde humana, ou então, que provoquem a

mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.

Nos crimes previstos na seção IV da sobredita lei, a tutela penal recai

sobre o meio ambiente diversificado, ou seja, aquele art ificial, o qual é

denominado pela lei como Ordenamento Urbano. É nesse local onde

habitamos. Esse ordenamento urbano é composto pelas construções

art ificialmente erguidas, bem como pelo meio ambiente cultural. Para

chegarmos a uma melhor definição legal, necessário se faz invocarmos o

art igo 216 da Constituição Federal, in verbis :

Art. 216. Consti tuem patrimônio cultural brasi leiro os bens de natureza material, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar , fazer e viver; III- as criações científicas, art ísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos , documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações art íst ico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sí t ios de valor histórico, paisagíst ico, art íst ico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

f ixadoras de dunas ou es tabi l i zadoras de mangues ; g) nas bordas dos tabulei ros ou chapadas , a par t i r da l inha de ruptura do re levo, em faixa nunca infer ior a 100 (cem) metros em projeções hor izontais; h) em al t i tude superior a 1 .800 (mi l e oi tocentos) metros , qualquer que se ja a vegetação.

93

A seção V da lei dos crimes ambienta is prevê os crimes contra a

administração ambiental . Nessa seção, em nosso entendimento, apenas duas

figuras t ípicas podem ser prat icadas pela pessoa jurídica, tendo em vista as

elementares descritas no t ipo. São os art igos 68 e 69 da sobredita lei. No art igo

69 a conduta proibida consiste em deixar, aquele que t iver o dever legal ou

contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental .

Assim, qualquer pessoa incumbida desse dever, seja ela física ou jurídica, ao

deixar de cumpri-lo, comete o deli to. Na figura t ípica do art igo 69, a proibição

está l igada ao fato de alguém obstar ou dificultar a ação fiscal izadora do Poder

Público no t rato de questões ambientais. Ora, quem mais teria o interesse em

dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público em questões pertinentes ao meio

ambiente, senão a empresa poluidora? É claro que em todas essa figuras t ípicas,

será necessária a participação ativa de pessoas naturais, as quais, em nome e

interesse da pessoa jurídica, ingressam efetivamente no cometimento do crime

ambiental .

Nas demais seções, segundo nosso entendimento, todos os preceitos

incriminatórios podem ser praticados pelo ente moral.

Uma característ ica interessante dos crimes ambientais é a sua natureza

preventiva de proteção ao meio ambiente. São, em sua maioria, crimes de perigo

abstrato, ou seja, para a sua consumação basta que o bem jurídico seja colocado

em risco, não sendo necessária a efetiva ocorrência do dano ao meio ambiente.

94

3.3 Co-autoria e participação nos delitos ambientais e a omissão penalmente relevante A co-autoria pode ser definida como sendo a ajuda mútua entre os

agentes no cometimento do crime. Tal cumplicidade e somatória de esforços

irão, de certa forma, viabilizar a execução do crime, facilitando, assim, a

sua consumação. O artigo 29 do Código Penal pátrio prevê a co-autoria nos

seguintes moldes:

Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabil idade.

Segundo o disposit ivo legal acima descrito, houve uma equiparação

entre os vários agentes do crime, não havendo qualquer distinção entre co-

autor e partícipe. A distinção entre eles é feita pela doutrina, a qual , define

co-autor como sendo aquele que conjuntamente com outra pessoa ingressa

no núcleo do tipo. Já o partícipe apenas auxilia na prática delituosa, sem,

contudo, ingressar na execução do crime. Assim, exemplificando, o

criminoso que fica esperando os comparsas na direção do veículo enquanto

esses assaltam a residência, participa do crime de roubo, sem ingressar

diretamente na execução do crime, já que não empregou contra as vítimas

do assalto violência ou grave ameaça. Embora não haja distinção legal entre

co-autor e partícipe, o legislador tomou o devido cuidado de, no final do

art igo 29 colocar a expressão “na medida de sua culpabilidade” referindo-se

à aplicação da pena. Assim, mesmo que ambos respondam pelo mesmo

95

crime, a conduta menos grave do partícipe lhe servirá no momento da

fixação da pena. Provavelmente a pena aplica ao partícipe do delito será

menor que a fixada aos co-autores, já que a conduta daquele é, em regra,

menos grave. A lei dos crimes ambientais também fez expressa menção ao

concurso de pessoas, repetindo, desnecessariamente, na primeira parte do

art igo 2º o texto do artigo 29 do Código Penal, in verbis :

Art. 2º . Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabil idade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evi tá-la. (grifo nosso)

Levando-se em conta o princípio penal da especialidade, previsto no

art igo 12 do Código Penal, o qual estabelece a aplicação da parte geral do

Código Penal a toda parte especial bem como a toda legislação

extravagante, conclui-se que a primeira parte do artigo 2º da sobredita lei é

irrelevante, pois l imita-se apenas a reproduzir o que já existe no artigo 29

do Código Penal (NUCCI, 2007, p.761). Entretanto, cabe salientar que a

segunda parte do artigo 12 da Lei 9.605/98 deixa clara a relevância da

omissão de determinadas pessoas que, sabendo da conduta criminosa de

outrem, deixam de impedir a sua prática, quando era possível fazê-lo. O

Código Penal estabelece sobre a omissão penalmente relevante o seguinte:

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se

96

causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.(grifo nosso) [ . . . ] §2º. A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: (grifo nosso) a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou

vigilância; (grifo nosso) b) de outra forma, assumiu a responsabil idade de impedir

o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da

ocorrência do resultado.

As pessoas previstas no artigo 12 da referida lei responderão como

partícipes do crime ambiental somente se, no caso concreto, t inham

conhecimento da ocorrência do crime ambiental, e se possuíam poder para

tanto. Dessa forma, o diretor da empresa, o administrador, o membro de

conselho e órgão técnico, bem como as demais pessoas elencadas no artigo

12, não conseguirão eximir-se da responsabilidade penal, alegando não

terem realizado a conduta típica. Dessa forma, se tinham o poder para agir

e, assim, impedir o cometimento do crime ambiental, e nada fizeram,

responderão juntamente com os executores do crime. É necessário também

dizer que deve haver nexo de causalidade entre o crime ambiental e a

omissão do administrador, preposto etc. Caso contrário, restando provada a

inexistência do nexo causal entre o cometimento do crime ambiental e o

poder fiscalizatório e de mando de uma das pessoas descritas no art . 2º da

Lei 9.605/98, não há que se falar em concurso de pessoas entre o suposto

agente criminoso (diretor, preposto etc).

A maioria dos crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro

são ditos unissubjetivos, isto é, podem ser praticados por uma única pessoa.

97

Não exigem, assim, a pluralidade de agentes para a prática criminosa. Ao

analisarmos a Lei dos crimes ambientais, no tocante a responsabilidade

penal da pessoa jurídica, nos parece claro, que ela responderá sempre em

concurso com as pessoas físicas que praticaram a conduta proibida. As

característ icas particulares, já expostas neste trabalho, impediriam que ela,

sozinha possa cometer o crime contra o meio ambiente. Os crimes previstos

na lei 9.605/98, não são de concurso necessário, pois os seus tipos penais

não prevêem isso. Assim, tais crimes podem ser praticados por uma única

pessoa (funcionário da empresa, por exemplo), porém, a responsabilidade

penal desse crime será atribuída também à pessoa moral. As conseqüências

da ação criminosa da pessoa física que praticou a conduta criminosa, a

omissão do diretor que não impediu o resultado lesivo ao meio ambiente,

refletirão na pessoa jurídica, a qual tinha interesse sócio-econômico na

vantagem desse crime.

3.4 Responsabilidade penal da pessoa jurídica nos tribunais

Para se evidenciar as dificuldades de alteração do pensamento

jurídico, na matéria, selecionam-se algumas decisões dos tribunais pátrios,

desfavorável uma e favorável outra à responsabilização das pessoas

jurídicas no cometimento dos deli tos ambientais .

98

3.4.1 No Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Entendimento favorável à tese da responsabilidade penal do ente

coletivo foi expresso pelo E. Tribunal de Justiça de Santa Catarina, (apud

LANFREDI et al. , 2004, p. 305-316). A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de

Justiça desse estado deu provimento ao recurso em sentido estrito contra a

decisão de primeira instância, entendendo o magistrado dessa ser

inadmissível a responsabilidade penal da pessoa jurídica, embasado no art .

43, inciso III, do Código de Processo Penal, em relação à ré Agropastori l

Bandeirante Ltda, aduzindo a falta de legitimidade passiva. A decisão da 1ª

Câmara Criminal aceitou o recurso apresentado pelo Procurador Geral de

Justiça, Dr. Vilmar José Loef. É de atender-se a alguns pontos da

argumentação, então desenvolvida, pelo Relator, Des. Relator Sólon D´Eça

Neves, contraditando frontalmente quanto se acabou de ler na peça jurídica

anterior. Eis o teor da ementa:

INCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS JURIDICAS – Recurso Criminal – recurso em sent ido estri to – cr ime ambiental – denúncia rejeitada – reconhecimento da responsabil idade penal das pessoas jurídicas – possibi l idade ante o advento da Lei n. 9.605/1998 – ausência de precedentes jurisprudenciais – orientação doutrinária – recurso provido. – Completamente cabível a pessoa jurídica figurar no pólo passivo da ação penal que tenta apurar a responsabil idade criminal por ela prat icada contra o meio ambiente

O Relator, após exposição dos dados da lide, inicia sua argumentação

constatando que são escassas as decisões sobre a questão, isto é, a

99

possibilidade de a pessoa jurídica vir a ser responsabilizada. Entretanto,

apóia-se em subsídio na doutrina, encontradiça em obras numerosas,

algumas das quais cita em seu arrazoado. É o caso, por exemplo, dos

doutrinadores Elida Séguin e Francisco Carrera que reconhecem que a Lei

dos Crimes Ambientais não foi bastante clara sobre que crimes poderiam ser

cometidos pela pessoa jurídica, sendo patente que sempre que houver a

condenação da pessoa jurídica, esta acontecerá na forma de concurso de

agentes, de acordo com o parágrafo único do art . 3º . , determinando que a

responsabil idade da pessoa jurídica não exclua a das pessoas físicas,

autoras, co-autoras ou participantes do fato (MANFREDI, 2004, p. 308).

Apesar disso, e de toda a discussão havida nos dez anos que separaram a

promulgação da Constituição Federal e a da LCA, não se pode deixar de

consignar, continuam os autores citados no parecer, que a responsabilidade

da pessoa jurídica é tendência internacional, já vigente em outros

ordenamentos jurídicos, em diversas legislações penais européias, como

conseqüência da Convenção da União Européia para os países membros45. O

Des. Relator traz, a seguir, à colação a posição doutrinária de Roque de

Brito Alves, que, por expressiva, transcrevemos aqui:

Não se justifica mais tal negativa da responsabi l idade penal da pessoa jurídica, o que permite uma evidente dist inção entre a responsabil idade penal pessoal , individual e a responsabil idade penal da pessoa jurídica que não se confunde com a responsabil idade criminal dos seus membros ou componentes. Distinção também, por outra parte entre as sanções administrativas ou civis das sanções

45 Trata-se da Declaração de Estocolmo de 1972, cujos princípios foram de certo modo encampados pelo art. 225 da Constituição Federal.

100

penais dos crimes pela pessoa jurídica (MANFREDI, 2004, p. 308).

De maior relevância ainda é a referência que o Relator faz ao

pensamento de José Henrique Pierangeli, que se pronuncia a respeito da

situação moderna da problemática em termos incisivos:

Hodiernamente pode-se afi rmar, com absoluta segurança, ser a responsabil idade ou irresponsabil idade das pessoas jurídicas, mais do que um problema ontológico ou dogmático, sendo mesmo uma questão de sistema polí t ico-econômico e de prát ica uti l idade e eficiência. O sistema da responsabil idade individual se amolda aos postulados da dogmática tradicional, e , portanto, entre nós, no sistema do Código Penal, toda a legislação em que se adote a responsabil idade penal da pessoa coletiva deve ser realizada em legislações esparsas, ou seja, legislação penal especial , cuja elaboração reclama extrema prudência. Deve-se ter presente, que mesmo a responsabil idade social é uma concepção bastante complexa, cujos componentes, atr ibuibil idade e a exigibi l idade registram tanto si tuações de fato, como ingredientes de valoração, como bem diz David Baigún (MANFREFDI, 2004, p. 309).

No parecer do Relator, o mesmo autor citado há de declarar, mais

adiante, que a aceitação da responsabilidade dos entes coletivos já não pode

causar estranheza, no estágio atual da ciência penal, e pelas experiências

existentes em outros paises, e, ademais, que, diversamente da

responsabil idade individual, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas

só pode ser entendida no âmbito de uma responsabilidade social.

Finalmente, o Des. Relator adota a posição do Procurador de Justiça,

Dr. Vilmar José Loef, que, adentrando a questão da interpretação da LCA,

em seu art . 3º , entende que

101

Não podemos interpretar como sendo inconsti tucional tal disposit ivo, vez que, segundo assinalam os doutrinadores Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, se a própria Const i tuição admite expressamente a sanção penal à pessoa jurídica, é inviável interpretar a lei como inconsti tucional, porque ofenderia outra norma que não é específica sobre o assunto. Tal t ipo de interpretação, em verdade, significaria estar o Judiciário a rebelar-se contra o que o Legislativo deliberou, cumprindo a Consti tuição Federal . Portanto, cabe a todos, agora, dar efetividade ao disposit ivo legal (MANFREDI, 2004, p. 313)46.

Encerrando seu parecer, o Des. Sólon d´Eça Neves declara seu voto,

acolhido pela 1ª Câmara Criminal de Santa Catarina:

Diante desse quadro, é clara a intenção do legislador pátrio em acompanhar a preocupação mundial na proteção e preservação do meio ambiente, adotando a tese da responsabil ização penal da pessoa jurídica, e rompendo com os princípios norteadores do Direito Penal tradicional (MANFREDI, 2004, p. 316)

3.4.2 No Superior Tribunal de Justiça A responsabil idade penal da pessoa jurídica não parece ser vista com

bons olhos no Superior Tribunal de Justiça. Em julgamento unânime

proferido em 18 de novembro de 2004, a Egrégia Corte negou provimento

ao recurso especial interposto pelo Ministério Público de Santa Catarina,

que não concordara com o acórdão do Tribunal de Justiça daquele Estado, o

46 Cita-se de LOEF, Vilmar José. Crimes contra a natureza. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 63.

102

qual manteve decisão do juiz de primeira instância de não receber denúncia

em face de pessoa jurídica, por considerar inviável a responsabilização

penal desta.

No julgamento do Recurso especial nº 622.724-SC (2004.0012318-

8)47, relatou o Min. Felix Fischer e seu parecer foi acolhido pela Quinta

Turma do Tribunal, consubstanciado na seguinte

EMENTA PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Na dogmática penal a responsabil idade se fundamenta em ações atribuídas às pessoas físicas. Dessarte a prát ica de uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal à pessoas jurídicas, fr ise-se carecedoras de capacidade de ação, bem como de culpabil idade, é inviável em razão da impossibil idade de praticarem um injusto penal. (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte). Recurso desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discut idos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e José Arnaldo da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasíl ia (DF), 18 de novembro de 2004 (data do julgamento).

47 Disponível em: <rttp://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudência>. Acesso em: 15.05.2008. Texto infra, Anexo A.

103

Tratava-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público, e

apresentado ao STJ pela Procuradoria-Geral de Justiça, face a acórdão da

Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa

Catarina, sob argumento de violação ao art . 3º da Lei nº 9.605.98 e ao art.

43, inciso III, do Código de Processo Penal, configurando a

responsabil idade penal da pessoa jurídica, já permitida por força do

dispositivo constitucional (art. 225, § 3º) . O fato em julgamento era

poluição do meio ambiente, provocada pelo Auto Posto de Lavagem Vale do

Vinho Ltda , pessoa jurídica de direito privado.

O Ministro Relator, após exposição dos fatos, refere-se ao art . 225, §

3º como gerador de “grande polêmica,tendo em vista o princípio societas

delinquere non potest , adotado pelo Brasil”. E continua:

O artigo 3º da Lei n. 9.605.98, ao declarar que as pessoas jurídicas respondem penalmente, quer aplicar o que dispõe o art igo 225, §, da Carta Magna. Resta saber se o consti tuinte, por meio do referido disposi t ivo, objetivava alcançar esta finalidade. Não nos parece que a responsabil idade penal da pessoa jurídica tenha lugar no ordenamento jurídico pátrio.

É a tese do Ministro Felix Fischer. Para demonstrá-la, recorre a Luiz

Regis Prado48, para o qual o legislador de 1998, “de forma simplista”,

limitou-se a enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sem a

instituir completamente. Diz Prado, citado pelo Ministro:

48 Cita-se desse autor: Crimes contra o Ambiente. São Paulo: RT, 1998, p. 21-2.

104

Não há como, em termos lógico-jurídicos, romper princípio fundamental como o da irresponsabil idade criminal da pessoa jurídica, ancorado sol idamente no sistema de responsabil idade de pessoa natural , sem fornecer, em contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores de um subsistema ou microssistema de responsabil idade penal, restri to e especial, inclusive com regras processuais próprias”.

Como apoio a seu ponto de vista, citam-se algumas decisões do STJ

(RHC 2.882.MS, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro; HC 15.051.SP, Min.

Hamilton Carvalhido) e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

(ACrim n. 70005157896. rel . Des. Gaspar Marques Batista). Em todos esses

julgados, transparece a tese de que a responsabilidade penal somente pode

ser atribuída ao Homem, pessoa física , que presentifica a pessoa jurídica.

Sabe-se a razão: a pessoa jurídica não possui os atributos físicos que

possibilitam vivenciar condições exclusivamente humanas, como querer e

pensar. Nesse diapasão, critica-se a lei ambiental como destoando do

Direito Penal, de modo que o Ministro Relator pode concluir: que a

responsabil idade da pessoa jurídica depende da manifestação da vontade de seus

representantes (pessoas físicas). Dessa forma, a estes aplica-se a norma penal, e

àquelas as sanções civis e administrativas.

Até agora o parecer do Ministro Fischer limitava-se a opor-se ao

entendimento da lei ambiental na criminalização da pessoa jurídica,

apoiando-se na doutrina t radicional. O que segue, porém, em sua

argumentação, é mais grave, tomando-se aqui esse termo não no sentido

crí tico-pejorativo, como se se tratasse de posição gravemente errônea.

Longe de nós tal atitude, face ao respeito a tão alta corte e julgador, como

105

ao caráter ainda controverso da matéria. Mas grave, no sentido de

extremamente sério e contundente. Expressa-se o Ministro Fischer, verbis:

Em síntese, a admissão da responsabil idade penal da pessoa jurídica – prevista em lei no ordenamento jurídico pátrio, conforme dicção do art . 3º da Lei de Crimes Ambientais – surge de uma interpretação deturpada do ar t . 225, § 3º , da CP. Este não permite, em absoluto, que se responsabil ize penalmente uma pessoa jurídica, o que se pode confirmar com uma nada complexa interpretação sistemát ica dos disposit ivos da Lei Maior – além de jogar fora séculos e mais séculos de civil ização e de evolução da ciência penal – que culminaram com a proscrição da responsabil ização penal objetiva, ou seja, aquela imputada sem a possibil idade de aferição da culpabil idade do sujeito que infringe à norma penal incriminadora [. . . ]

Fica-se assim sabendo que a Constituição Federal não quis dizer o

que disse. E que, ademais, a Lei dos Crimes Ambientais é inconstitucional,

como afirma Luiz Régis Prado, novamente citado:

Intenta-se romper, assim, pela vez primeira, o clássico axioma do societas delinquere non potest . Não obstante, em rigor, diante da configuração do ordenamento jurídico brasileiro – em especial do subsistema penal - e dos princípios consti tucionais penais que o regem (v.g. , princípios da personalidade das penas, da culpabil idade, da intervenção mínima etc.) e que são reafirmados pela vigência daquele, fica extremamente difícil não admitir a inconsti tucionalidade desse art igo [Lei 9.605/98, art . 3º ], exemplo claro de responsabil idade penal por fato alheio. Influenciado, de certa forma, pelo sistema anglo-americano, em que essa forma de responsabil idade é normalmente admitida, teve, contudo, o legislador pátrio, nit idamente, como fonte de inspiração o modelo francês. A previsão legal acima parece estar intimamente vinculada ao crescente e lamentável recurso à lei criminal como inst rumento eficiente e simbólico .

106

Mais adiante, o citado Luiz Régis Prado explica, e o Ministro Fischer

endossa, que o legislador pátrio se valeu da chamada “imperiosa

necessidade”, si tuando-se na corrente puramente utili tarista (Law and

Economics) ou análise econômica do Direito, que lança mão de técnicas,

como a análise custo-benefício “na elaboração das políticas jurídicas e na

justificação das decisões judiciais”. Diante das grandes agressões ao meio

ambiente, já em curso, inclusive em nosso país, praticadas, sim, pela

vontade de pessoas jurídicas, tem Luiz Régis Prado, e com ele o Ministro

Fischer, que, com o ordenado pela Lei Ambiental,

o legislador pelo menos obtém o crédi to pol í t ico de ter dado uma resposta célere aos medos e perturbações sociais com os severos meios criminais. Isso signi fica que a eficiência é apenas aparente – puramente simbólica - - e incidente tão-somente no âmbito psicológico-social dos sentimentos de insegurança. Ainda que adequada a escolha do paradigma, visto ser o Direi to francês escri to, e pertencente ao grupo romano-germânico, não andou bem nosso legislador em sua formulação.

O que segue no texto de Prado, e aceito pelo Ministro Relator, terá

certamente um fundo de verdade, urgindo-se a complementação normativa,

prevista pelo direito francês:

De fato em França [ . . . ], tomou-se o cuidado dede adaptar-se de modo expresso essa espécie de responsabil idade no âmbito do sistema t radicional . A denominada Lei de Adaptação (Lei 92-1336.1992) alterou inúmeros textos legais para torná-los, coerentes com o novo Código Penal, contendo inclusive disposições de processo penal, no intuito de uma harmonização processual, part icularmente necessária devido à previsão da responsabi l idade penal da pessoa jurídica. Além disso, a lei francesa proclama o

107

princípio da especialidade, vale dizer, só se torna possível deflagrar-se o processo penal contra a pessoa jurídica quando estiver tal responsabil idade prevista explicitamente no t ipo legal de deli to. Definem-se, assim, de modo taxativo, quais as infrações penais passíveis de serem imputadas à pessoa jurídica. Ora bem, em nosso país deu-se exatamente o oposto, visto que o legislador de 1998 (Lei 9.605), de forma simplista, nada mais fez do que enunciar a responsabil idade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, insti tuí-la completamente. Isso significa não ser ela passível de aplicação concreta e imediata, pois fal tam-lhe inst rumentos hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato.

Que se criem, pois, tais instrumentos. Nosso entendimento, já

expresso em páginas anteriores, é que os fatos sociais, os grandes avanços

tecnológicos, os novos perfis da pessoa jurídica (não é tão-só uma ficção,

criada pelo Direito e incapaz de atuar por si mesma), a própria evolução da

consciência jurídica, mais desperta agora para tudo isso, solicitam a revisão

radical de veneráveis brocardos, como o de que societas delinquere non

potest. Tal revisão não se inscreve, como se argumentou acima, pura e

simplesmente na corrente util itarista, econômico-política. Numa palavra,

oportunista. O direito deve redefinir-se diante da hodierna (e futura)

gravidade dos fatos.

108

CONCLUSÃO

Poderíamos, na conclusão deste trabalho, ressaltar algumas idéias que

nos parecem formar seu fio condutor ou, se se quiser, a constelação central

da reflexão sobre o problema não apenas jurídico, mas filosófico, da

responsabil idade penal da pessoa jurídica.

1. Ao se falar da pessoa jurídica, não se há de esquecer o fundo

analógico que a embasa. Não se pode, simplesmente, aproximar a pessoa

jurídica da pessoa natural e daí concluir que, ou ela tem as característ icas

orgânicas dessa, ou é uma total ficção jurídica, desprovida de qualquer

realidade ontológica. Não se há, por outro lado, de esquecer a evolução do

conceito, que toma hoje proporções inéditas, já no cenário da globalização

macroeconômica, já na extrema variedade dos tipos e sua inserção profunda

na sociedade. Diante dos grandes aglomerados financeiros, das empresas

nacionais e multinacionais, que decidem suas políticas, muitas vezes ao

arrepio dos interesses da sociedade, senão da humanidade, torna-se difícil

continuar afirmando que a pessoa jurídica não pode ser criminalizada,

sobretudo no cometimento dos delitos ambientais, porque não tem vontade.

Como corolário dessa proposta, é de encarecer que, se os outros ramos do

direito vêem a pessoa jurídica como um ente dotado de vontade, de modo

que pode firmar contratos, assumir obrigações, deter direitos, o direito

penal não pode ficar alheio a tal realidade. Um direito penal moderno pode

109

prescindir de conceitos metafísicos, se assim podemos dizer, e valer-se de

metodologia empírica voltada para as conseqüências, perfilando-se numa

concepção teórica preventiva e não retributiva.

2. E aqui deve-se ressaltar incisivamente a importância e necessidade

de tutelar o bem jurídico “meio ambiente” para a preservação da vida, pois

é essa que está em jogo, o que levou alguém a dizer com propriedade que o

crime contra o meio ambiente deve estar hierarquicamente acima do crime

de homicídio. As pessoas jurídicas contemporâneas, como é constatável por

todos, em nosso país e fora, são responsáveis pelas agressões mais graves

ao meio ambiente e à vida.

3. Este trabalho atendeu, mesmo que de modo muito breve, às idéias

de Winfried Hassemer que muito perspicazmente analisou a nova

criminalidade, aduzindo a necessidade de criação de um novo ramo do

direito, como meio para solucionar o conflito entre os que acolhem ou não a

idéia da responsabilidade penal objetiva, que segundo ele poderia se chamar

de “direito de intervenção”. Resta, porém, problemático saber se a proposta

de Hassemer configura um direito penal propriamente dito ou

administrativo. Se for essa segunda espécie, não se teria em conseqüência

uma responsabilidade penal. Pode-se também entender como um direito

penal em sentido lato. De qualquer modo, mais do que solucionar o conflito

entre opiniões acadêmicas, esse novo direito prestaria atenção imediata aos

riscos possíveis, antecipando-se, mas do que punindo ou remediando. Com

110

efeito, a repressão chega às vezes tarde demais, não impedindo as

catástrofes ambientais nem restaurando o que em definitivo se perdeu.

4. A tese da responsabilidade penal objetiva da pessoa jurídica deve,

pois, ser defendida com ênfase, como alternativa de proteção ao meio

ambiente, ainda que se sacrifiquem alguns princípios e dogmas do direito

penal clássico. É inaceitável que danos de repercussão espantosa, no tempo

e no espaço, com efeitos extremamente prejudiciais ao meio ambiente,

sejam atribuídos tão-só às pessoas físicas, sabidamente a parte mais fraca,

na maioria das vezes, na tomada de decisão e execução das medidas anti-

ambientais.

5. Essa desproporção entre a pessoa jurídica e a pessoa física,

entretanto, não descarta a importância da co-autoria entre essas instâncias

de ação no que se refere ao cometimento do crime ambiental. A execução

delit iva feita pela pessoa física atende a uma vontade social do ente

coletivo, que, almejando o lucro, usa seu dirigente, funcionário etc, como

instrumento para alcançá-lo. Impossível seria o cometimento de um crime

contra o meio ambiente praticado exclusivamente pela pessoa jurídica,

devido a sua natureza constitutiva, necessitando sempre da colaboração da

pessoa física, que, agiria, segundo expressa previsão legal , em seu interesse

ou benefício. Defendemos a necessidade de alteração do artigo 3º da lei

9.605/98, suprimindo do texto legal a expressão “no interesse ou benefício

da sua entidade”. Assim, uma vez alterado tal dispositivo, agindo o

111

funcionário no interesse ou benefício da empresa ou não, esta responderia

pela prática do crime ambiental. A necessidade de alteração do dispositivo

tem duas justificativas fundamentais: respeita-se o princípio constitucional

da legalidade; e dá-se uma maior efetividade a lei dos crimes ambientais.

6. Não se há de tomar como absoluta a idéia defendida por alguns

acerca da necessidade do dolo específico por parte da pessoa física no

momento em que pratica um crime ambiental no interesse ou benefício da

empresa. Sendo a responsabilidade penal da pessoa jurídica de ordem

objetiva, a simples prática nociva ao meio ambiente, intencional ou não, e

em seu benefício ou não, sujeitaria aquela às sanções penais pertinentes. É

necessário um maior rigor em face da pessoa jurídica, em razão da maior

fragilidade do meio ambiente. Não defendemos aqui a possibilidade de ser

aplicada a mesma responsabilidade objetiva à pessoa física. Para ela a lei

penal em vigor é clara e precisa no tocante à responsabilidade penal

subjetiva. Mas, aplicar ao ente moral a mesma regra empregada com o

sujeito natural é dar pouca, ou nenhuma, efetividade a proteção ao meio

ambiente.

7. Em contrapartida, é oportuno defender a tese da sanção penal

aplicada à pessoa jurídica como meio inibitório para a prática delitiva. É,

data venia , risível o argumento utilizado pelos que não defendem a

responsabil idade penal da pessoa jurídica de que ela não ficaria intimidada

com a futura sanção penal, ou que contra ela seria impossível aplicar a pena

112

privativa de l iberdade, tendo em vista tratar-se de uma mera ficção jurídica.

Em parte concordamos com o argumento, ao menos no tocante a

impossibilidade de aplicar ao ente coletivo a pena privativa de liberdade.

Entretanto, o argumento que a pessoa jurídica não se intimidaria com uma

eventual condenação penal não nos parece correta. Há um efeito nocivo à

empresa que é condenada pela prática de crime ambiental. O produto

produzido por ela, fatalmente, sofrerá forte rejeição pelos consumidores,

que a cada dia tornam-se mais conscientes da importância de um meio

ambiente ecologicamente equilibrado. Essa rejeição poderia ensejar na

pessoa jurídica um prejuízo não suportável por ela, causando-lhe até mesmo

sua extinção. A afl ição sofrida pelo ente moral , oriunda de uma eventual

condenação penal, é econômica.

Essas são as idéias que nos parecem fulcrais no tema que discutimos

ao longo das páginas anteriores. Cremos ser adequado afirmar que toda a

controvérsia no meio jurídico brasileiro a respeito, sinaliza o estágio de

acomodação necessária a uma mudança tão profunda na concepção do

direito penal. Não seria exagerado propor a analogia de um abalo sísmico, a

provocar intranqüilidade no meio jurídico quanto ao modo de pensar as

relações entre o direito e o fato social, a idéia mesma de pessoa jurídica, a

idéia de responsabilidade penal de um ente coletivo e, finalmente, a idéia

primordial da pena, consistente em retribuição, dando lugar à idéia de

prevenção, quanto ao bem jurídico do meio ambiente.

Não será supérfluo, para finalizar, afirmar a possibilidade de pesquisa

e de mais reflexão na matéria. Ela é complexa, envolve problemas de

113

interpretação e segurança jurídicas, revolvimento dos próprios fundamentos

filosóficos que têm sustentado a ciência e a arte do Direito. Cremos que

esse não é um valor absoluto, que tenha de permanecer prisioneiro de suas

nobres e veneráveis tradições. Como expressão de cultura, ele faz parte da

vida, da história da sociedade, é um dos mais importantes, se não o mais

importante, mecanismo de tutela dos bens humanos e, agora, nos tempos

atuais , convidado a ampliar suas tarefas no sentido de proteger também a

natureza, o planeta, nossa casa.

114

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130

ANEXO

JULGADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA

(rt tp://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudência)

RECURSO ESPECIAL Nº 622.724 - SC (2004.0012318-8) RELATOR : MINISTRO FELIX FISCHER RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA RECORRIDO : AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA EMENTA PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Na dogmática penal a responsabilidade se fundamenta em ações atribuídas às pessoas físicas. Dessarte a prática de uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal à pessoas jurídicas, frise-se carecedoras de capacidade de ação, bem como de culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um injusto penal . (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte). Recurso desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e José Arnaldo da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 18 de novembro de 2004 (data do julgamento). MINISTRO FELIX FISCHER Relator RECURSO ESPECIAL Nº 622.724 - SC (2004.0012318-8) RELATÓRIO

131

EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Trata-se de recurso especial interposto, com fulcro no art. 105, inciso III, alínea a, da Lex Fundamentalis , pelo Parquet em face de v. acórdão prolatado pela c. Segunda Câmara Criminal do e. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina em que se argumenta violação ao art. 3º da Lei nº 9.605.98 e ao art . 43, inciso III, do Código de Processo Penal. Diz o relatório do increpado acórdão: "Na comarca de Videira, Valmor Luiz Grison e Auto Posto de Lavagem Vale do Vinho Ltda, foram denunciados como incursos nas sanções dos art. 54, § 2°, V e do art . 60, ambos da Lei n. 9.605.98. A denúncia foi recebida apenas com relação à pessoa física, tendo o Magistrado afastado a pessoa jurídica por considerar inviável a sua responsabilização penal. Irresignado, o representante do Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito, alegando, em síntese, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é permitida por força de dispositivo constitucional (art . 225, § 3°) e texto expresso de lei (art. 3° da Lei n. 9.605.98). Sem contra-razões e com o regular juízo de sustentação da decisão recorrida, os autos ascenderam a esta Corte, onde foi oferecido parecer pela Procuradoria-Geral de Justiça, opinando pelo conhecimento e provimento do recurso" (fls . 105.106). Tem-se na ementa: "PENAL E PROCESSUAL PENAL - DENÚNCIA - REJEIÇÃO - CRIME AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA - INVIABILIDADE - VEDAÇÃO À RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA - PRINCÍPIO DO SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST - RESPONSABILIDADE QUE SE CINGE ÀS ESFERAS CIVIL E ADMINISTRATIVA - PRECEDENTE DESTA CÂMARA - RECURSO DESPROVIDO" (fl. 105). Daí o presente apelo nobre em que o Parquet argumenta violação ao art . 3º da Lei nº 9.605.98 e ao art. 43, inciso III, do Código de Processo Penal, sustentando, em síntese, que "in casu, a peça inicial da ação penal não poderia ter sido rejei tada, já que, contrário ao entendimento esposado no v. Acórdão recorrido, a pessoa jurídica de direito privado pode ser penalmente responsabil izada pela prática de crimes ambientais, conforme estabelecem a Constituição Federal e a Lei Federal nº 9.605.98, sendo, assim, parte legít ima para figurar no pólo passivo da presente ação penal" (fl. 135). Contra-razões não apresentadas. Admitido o recurso, subiram os autos a esta Corte. A douta Subprocuradoria-Geral da República se manifestou pelo provimento do presente recurso. É o relatório. RECURSO ESPECIAL Nº 622.724 - SC (2004.0012318-8)

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EMENTA PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Na dogmática penal a responsabilidade se fundamenta em ações atribuídas às pessoas físicas. Dessarte a prática de uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal à pessoas jurídicas, frise-se carecedoras de capacidade de ação, bem como de culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um injusto penal . (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte). Recurso desprovido. VOTO O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Busca-se no presente recurso especial seja reconhecida a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica. Diz a exordial acusatória: "O Órgão do Ministério Público deste Juízo, no uso de suas atribuições legais e com fundamento no Termo Circunstanciado n° 079.01.003564-6, oferece DENÚNCIA contra: AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA., pessoa jurídica de direito privado, at ividade de abastecimento e lavação de veículos, cadastrada sob CNPJ n° 03.636.414.0001-08, localizada na Rua Veneriano dos Passos, 388, Bairro Centro, Videira.SC; VALMOR LUIZ GRISON, brasileiro, solteiro, autônomo, nascido em 28.02.1979, com 23 anos de idade, natural de Machadinho.RS, filho de Demétrio Antonio Grison e Dileta Maria Grison, residente na Rua Tangará s.n°, Bairro Panazzolo, Videira.SC, pela prática dos seguintes atos delituosos: No dia 29 de maio de 2001, por volta das 15h10min, os policiais militares integrantes do 12° Pelotão de Polícia de Proteção Ambiental de Canoinhas.SC, comandados pelo 3° Sargento PM Ivan Veiga, efetuaram fiscalização em vários estabelecimentos localizados neste município e comarca. Assim, nesta data, constataram que no Auto Posto de Lavagem Vale do Vinho Ltda., de propriedade do denunciado VALMOR LUIZ GRISON, localizado na Rua Veneriano dos Passos, 388, Bairro Centro, nesta cidade, havia o funcionamento de atividade potencialmente poluidora nas rampas de lavação de estabelecimento, conforme comprova o Laudo Pericial de fls. 18.20. Desta forma, se verificou que no local da vistoria havia três rampas de lavação, das quais duas estavam desativadas, possuindo tubos que as ligavam ao curso de água, por onde eram lançados resíduos provenientes da lavação de veículos, e apenas uma em funcionamento, localizada a 30 m do recurso hídrico, sendo que a destinação final dos resíduos dela proveniente (graxas, óleo, lodo, areia e produtos químicos), seguiam diretamente através de sistema de tratamento de resíduos não autorizado pelo órgão competente, para dentro do curso de

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água. Com esta conduta, VALMOR LUIZ GRISON causou poluição em níveis tais que poderiam resultar em danos à saúde humana, por lançamento de resíduos, em desacordo com as exigências estabelecidas em lei . Além disso, fazia funcionar estabelecimento potencialmente poluidor, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes e contrariando as normas legais e regulamentos pertinentes. Sobreleva ressaltar que a pessoa jurídica de direito privado AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA. deve ser responsabilizada penalmente por tais atos, já que a infração ambiental foi cometida por decisão de seu representante legal e contratual , no interesse e benefício de sua entidade, conforme dispõe o artigo 3° caput da Lei n° 9.605.98. Assim agindo, os denunciados AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA e VALMOR LUIZ GRISON infringiram o disposto nos artigos 54, parágrafo 2°, inciso V e 60, ambos da Lei n° 9.605.98, na forma do artigo 70 do Código Penal, razão pela qual se oferece a presente denúncia, que se requer seja recebida e, uma vez comprovada, após todos os trâmites processuais pertinentes, inclusive com a ouvida das testemunhas adiante arroladas, requer o Ministério Público a condenação destes denunciados" (fls. 15.17). No punctum saliens tem-se no voto condutor do increpado acórdão: "Trata-se de recurso em sentido estrito interposto contra o despacho que rejei tou a denúncia ofertada contra a empresa Auto Posto de Lavagem Vale do Vinho Ltda., com fundamento no art igo 43, III, do CPP. A denúncia encontra amparo no art . 3° e parágrafo único da Lei n. 9.605.98, que menciona: “Art. 3°. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.“Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”. O referido art igo deve ser analisado juntamente com o que preceitua a Constituição Federal em seu art. 225, § 3°: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Este dispositivo consti tucional gerou grande polêmica tendo em vista o princípio societas delínquere non potest, adotado pelo Brasil. O artigo 3° da Lei n. 9.605.98, ao declarar que as pessoas jurídicas respondem penalmente, quer aplicar o que dispõe o artigo 225, § 3°, da Carta Magna. Resta saber se o constituinte, por meio do referido dispositivo, objetivava alcançar esta finalidade. Não nos parece que a responsabilidade penal da pessoa jurídica tenha lugar no ordenamento jurídico pátrio. Neste sentido a doutrina de Luiz Regis Prado: “[.. .] o legislador de 1998, de forma simplista, nada mais fez do que

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enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la completamente. Isso significa não ser ela passível de aplicação concreta e imediata, pois faltam-lhe instrumentos hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato. Não há como, em termos lógico-jurídicos, romper princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade de pessoa natural, sem fornecer, em contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores de um subsistema ou microssistema de responsabilidade penal, restri to e especial, inclusive com regras processuais próprias” (Crimes contra o Ambiente. São Paulo: RT, 1998, p. 21-2). É sabido que o meio ambiente necessita cada vez mais de proteção, exigindo normas eficazes. Mas para que se alcance a desejada eficácia será necessário que ocorra a responsabilização criminal da pessoa jurídica? E se assim for, qual seria a medida de sua culpabilidade? Selma Pereira Santana, Promotora da Justiça Militar da Bahia, em matéria escrita para a revista Consulex sobre o tema elucida: “Quase a totalidade da doutrina nacional compreende, ainda, que somente o ser humano tem capacidade de realizar condutas. E, por força deste princípio fundamental, arrematam que os tipos penais não passam de meras descrições abstratas das mesmas, valoradas pelo legislador, concluindo-se ser inconciliável a existência de delito sem a conduta, sendo reclamada para esta, sempre, a voluntariedade” (in Revista Consulex, de 30.04.98, ano II, n. 16, pp. 44.46). Sobre a matéria, consolidado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “RHC – Penal – Processual Penal – Pessoa Jurídica – Sócio Responsabilidade Penal – Denúncia – Requisitos – A responsabilidade penal é pessoal . Imprescindível a responsabil idade subjetiva. Repelida a responsabil idade objetiva” (RHC 2.882.MS, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro). Mais recentemente, aquele Tribunal Superior reafirmou seu posicionamento: “Desprovida de vontade real, nos casos de crimes em que figure como sujeito ativo da conduta típica, a responsabilidade penal somente pode ser atribuída ao HOMEM, pessoa física, que, como órgão da pessoa jurídica, a presentifique na ação qualificada como criminosa ou concorra para a sua prática” (HC 15.051.SP, Min. Hamilton Carvalhido). Prevalece, portanto, o entendimento segundo o qual a pessoa jurídica não é penalmente responsável, mas somente civil e administrativamente. Mesmo os tribunais que admitem a aplicação das medidas dos arts. 21 e 22 da Lei n. 9.605.98 àquelas, como sanção penal pelos atos deli tuosos praticados pelos seus sócios, são firmes no sentido de que a pessoa jurídica não pode ser parte em um processo penal condenatório. Neste sentido, é da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “A ordem jurídica brasileira continua fiel ao brocardo societas delinquere non potest. A pessoa jurídica não tem os atributos físicos que possibil itam vivenciar condições exclusivamente humanas, como querer e pensar, não podendo ter

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consciência da ilici tude ou dirigir sua vontade para o resultado lesivo” (ACrim n. 70005157896, de Encantado, rel. Des. Gaspar Marques Batista). Citado por Ataides Kist, o eminente Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em análise ao artigo 225, § 3°, da Constituição Federal assevera: “[.. .] meramente declaratório, nada admitindo-se acerca da esfera penal, enaltecendo aspectos de ordem administrativas, quais sejam pagamento de multa ou mesmo o cancelamento de autorização para o exercício da atividade profissional. Assim também, a sanção penal está vinculada à responsabil idade pessoal e hoje, dela é inseparável. A Consti tuição Brasileira, portanto, não afirmou a responsabilidade penal da pessoa jurídica, na esteira das congêneres contemporâneas” (Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: Editora de Direito, 1999, p. 60). E continua o autor, citando Tourinho Filho, em comentário ao artigo 3° da Lei n. 9.605.98: “[.. .] se a infração for cometida por um empregado, ou se o ato infracional for fruto de ordem de um funcionário graduado, à revelia do representante legal, a pessoa jurídica estará a salvo de ser penalmente punida. Aí está a prova maior de que o próprio legislador não concebe a possibilidade de uma pessoa jurídica ser sujeito passivo da pretensão punit iva. A própria lei reconhece que elas sozinhas não podem delinqüir. Se não podem, por que falar-se da sua responsabilidade penal? Na dicção do art . 3° da Lei n. 9.605, de 12-2-1998, vale repetir , a pessoa jurídica só será penalmente responsabilizada se a infração for cometida por decisão do seu representante... no interesse ou benefício da sua entidade. Mas, nesse caso, a responsabilidade é do seu representante legal ou contratual. . . A lei Ambiental, como segmento do Direito Penal, destoa deste, pelo antagonismo que representa e traduz, e por isso mesmo nem pode falar em segmento [.. . ]“ (op. cit. , p.78). Disto conclui-se que a responsabilidade da pessoa jurídica depende da manifestação de vontade de seus representantes (pessoas físicas). Portanto, a estes aplica-se a norma penal, e àquelas as sanções civis e administrat ivas. Trazemos, a respeito, o entendimento de Paulo de Bessa Antunes, membro do Ministério Público Federal e um dos maiores estudiosos da área de Direito Ambiental: “Veja-se que a condenação criminal de uma empresa, certamente, implica a imposição indireta de penas a diferentes pessoas naturais e jurídicas que não aquela condenada judicialmente. Não se desconhece que a condenação criminal de uma sociedade anônima, provavelmente, terá reflexo na cotação de suas ações em bolsa, acarretando penas econômicas – desvalorização de capital – para simples ti tulares de ações preferenciais (sem direito a voto), ou qualquer poder de decisão sobre as atividades da empresa. Igualmente, a pena produzirá reflexos junto ao quadro de empregados que serão estigmatizados como funcionários de uma empresa condenada. Tais repercussões serão capazes de afrontar o princípio constitucional da pessoalidade da pena?[...] “Parece-me que a responsabilização penal pessoal dos dirigentes que se tenham valido da empresa para a prática de crimes é a melhor solução. Quanto às empresas, em si , a sua punição, em meu

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entendimento deve remanescer na esfera administrativa, ainda que, eventualmente, possam ser aplicadas sanções pelo próprio Poder Judiciário” (Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1999, p. 412-3). Em síntese, a admissão da responsabil idade penal da pessoa jurídica – prevista em lei no ordenamento jurídico pátrio, conforme dicção do art. 3° da Lei de Crimes Ambientais – surge de uma interpretação deturpada do art. 225, § 3°, da CF. Este não permite, em absoluto, que se responsabilize penalmente uma pessoa jurídica, o que se pode confirmar com uma nada complexa interpretação sistemática dos dispositivos penais da Lei Maior – além de jogar fora séculos e mais séculos de civilização e de evolução da ciência penal – que culminaram com a proscrição da responsabilização penal objetiva, ou seja, aquela imputada sem a possibilidade de aferição da culpabilidade do sujeito que infringe à norma penal incriminadora –, tampouco apresenta qualquer util idade prática ou alguém seria capaz de sustentar que uma multa pecuniária, a suspensão das atividades ou fechamento de estabelecimento, aplicados no juízo penal, são substancialmente diferentes destas mesmas medidas quando aplicadas na esfera administrativa? Comentando a respeito do tema, assim se posicionou Miguel Reale Júnior: “Mais relevante, contudo, é a interpretação sistemática do texto constitucional, que conduz de forma precisa à inadmissibilidade da responsabilidade da pessoa jurídica. “Falta à pessoa jurídica capacidade criminal. Se a ação delituosa se realiza com o agente realizando uma opção valorativa no sentido do descumprimento de um valor cuja positividade a lei penal impõe, se é uma decisão em que existe um querer, e um querer valorativo, vê-se que a pessoa jurídica não tem essa capacidade do querer dotado dessa postura axiológica negativa. A Constituição estabelece que a pena não passará da pessoa do condenado (inc. XLV do art. 5.°), e o inciso seguinte diz que a lei individualizará a pena. A individualização da pena é feita com base na culpabilidade. A culpabilidade significa o quanto de reprovação, de censurabilidade merece a conduta, sendo absolutamente incongruente com admissão da pessoa jurídica como agente de delitos. Portanto, há uma incapacidade penal da pessoa jurídica, que a anál ise sistemática do texto constitucional torna evidente. [. . . ] “Questões graves surgem, ao se pretender estabelecer a punição da pessoa jurídica, que se afigura, a nosso ver, como absolutamente desnecessária, bastando a punição desta pela via administrativa” (in Luiz Régis Prado (coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: RT, 2001, p. 138-9). Este signatário já teve a oportunidade de expressar igual entendimento em acórdão pioneiro nesta Corte, proferido por ocasião do julgamento do Recurso criminal n. 00.004656-6, da comarca de Descanso, ocorrido em 12 de setembro de 2000. Isto posto, mantém-se a decisão que rejeitou a denúncia oferecida contra a pessoa jurídica, reservando a esta a aplicação das sanções civis e administrat ivas cabíveis" (106.111). Com efeito, na dogmática penal a responsabilidade se

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fundamenta em ações atribuídas às pessoas fís icas. Dessarte a prática de uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal à pessoas jurídicas, frise-se carecedoras de capacidade de ação, bem como de culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um injusto penal. Nesse sentido os seguintes precedentes desta Corte: "HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E SONEGAÇÃO FISCAL. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. PRINCÍPIO NULLUM CRIMEN SINE CULPA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Desprovida de vontade real , nos casos de crimes em que figure como sujei to ativo da conduta típica, a responsabilidade penal somente pode ser atribuída ao HOMEM, pessoa física, que, como órgão da pessoa jurídica, a presentifique na ação qualificada como criminosa ou concorra para a sua prática. 2. Em sendo fundamento para a determinação ou a definição dos destinatários da acusação, não, a prova da prática ou da participação da ou na ação criminosa, mas apenas a posição dos pacientes na pessoa jurídica, faz-se definitiva a ofensa ao estatuto da validade da denúncia (Código de Processo Penal, art igo 41), consistente na ausência da obrigatória descrição da conduta de autor ou de partícipe dos imputados. 3. Denúncia inepta, à luz dos seus próprios fundamentos. 4. Habeas corpus concedido para trancamento da ação penal" (HC 15051.SP, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 13.08.2001). "RHC - PENAL - PROCESSUAL PENAL - PESSOA JURÍDICA - SÓCIO - RESPONSABILIDADE PENAL - DENUNCIA - REQUISITOS – A RESPONSABILIDADE PENAL É PESSOAL. IMPRESCINDÍVEL A RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. REPELIDA A RESPONSABILIDADE OBJETIVA. TAIS PRINCÍPIOS SÃO VALIDOS TAMBÉM QUANDO A CONDUTA É PRATICADA POR SÓCIOS DE PESSOA JURÍDICA. NÃO RESPONDEM CRIMINALMENTE, PORÉM, PELO SÓ FATO DE SEREM INTEGRANTES DA ENTIDADE. INDISPENSÁVEL O SÓCIO PARTICIPAR DO FATO DELITUOSO. CASO CONTRARIO, TER-SE-A, ODIOSA RESPONSABILIDADE POR FATO DE TERCEIRO. SER SÓCIO NÃO É CRIME. A DENUNCIA, POR ISSO, DEVE IMPUTAR CONDUTA DE CADA SÓCIO, DE MODO A QUE O COMPORTAMENTO SEJA IDENTIFICADO, ENSEJANDO POSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO DO DIREITO PLENO DE DEFESA" (RHC 2882.MS, 6ª Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU de 13.09.93). E, também do Pretório Excelso: "EMENTAS: 1. AÇÃO PENAL. Denúncia. Deficiência. Omissão dos comportamentos típicos que teriam concretizado a participação dos réus nos fatos criminosos descritos. Sacrifício do contraditório e da ampla defesa. Ofensa a garantias constitucionais do devido processo legal (due process of law). Nulidade absoluta e insanável. Superveniência da sentença condenatória. Irrelevância. Preclusão temporal inocorrente. Conhecimento da argüição em HC. Aplicação do art . 5º , incs. LIV e LV, da CF. Votos vencidos. A denúncia que, eivada de narração deficiente ou insuficiente, dificulte ou impeça o pleno exercício dos poderes da defesa, é causa de nulidade absoluta e insanável do processo e

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da sentença condenatória e, como tal , não é coberta por preclusão. 2. AÇÃO PENAL. Delitos contra o sistema financeiro nacional. Crimes ditos societários. Tipos previstos nos arts. 21, § único, e 22, caput, da Lei 7.492.86. Denúncia genérica. Peça que omite a descrição de comportamentos t ípicos e sua atribuição a autor individualizado, na qualidade de administrador de empresas. Inadmissibilidade. Imputação às pessoas jurídicas. Caso de responsabilidade penal objetiva. Inépcia reconhecida. Processo anulado a part ir da denúncia, inclusive. HC concedido para esse fim. Extensão da ordem ao co-réu. Intel igência do art. 5º, incs. XLV e XLVI, da CF, dos arts . 13, 18, 20 e 26 do CP e 25 da Lei 7.492.86. Aplicação do art. 41 do CPP. Votos vencidos. No caso de crime contra o sistema financeiro nacional ou de outro dito "crime societário", é inepta a denúncia genérica, que omite descrição de comportamento típico e sua atribuição a autor individualizado, na condição de diretor ou administrador de empresa" (HC 83301.RS, 1ª Turma, Rel. Min. Cézar Peluso, DJU de 06.08.2004). Na mesma linha no plano doutrinário tem-se: "En lo relativo a la responsabilidad jurídica de la empresa como tal , deben distinguirse diversos niveles. Así, en lo relativo a la responsabilidad civil, no hay duda de que la empresa es sujeto idóneo de la misma, incluso de la responsabil idad civil derivada de delito, en los términos de los artículos 21 y 22 CP. Otro tanto sucede con la responsabilidad en el ámbito del Derecho administrativo sancionador, a pesar de que ya en este punto há comenzado a suscitarse una importante discusión. Cuando ya entramos concretamente em materia de responsabilidad penal, la doctrina ampliamente mayoritaria en España se caracteriza por adoptar dos principios aparentemente contrapuestos. Por un lado, de conformidd con la tradición continental europea, acogida también en nuestra jurisprudência y, según parece, en el Código penal, estima que las agrupaciones de personas, aun cuando gocen de personalidad jurídica, no pueden ser sujetos activos de delito. En otras palabras, acepta el principio societas delinquere non potest . Ello significa que de los delitos cometidos en el ámbito de una empresa, sólo responden penalmente las personas individuales a las que puedan imputárseles, y en la medida en que puedan imputárseles, mientras que la corporación en sí , no puede ser sometida a ninguna pena criminal. Sin embargo, por otro lado, la misma doctrina dominante en España parece apreciar la existencia de una necesidad político-criminal de sancionar directamente a las agrupaciones o colectivos de personas, es decir, a la empresa en cuanto a tal, en caso de cometerse um delito en su ámbito. Se estima, en efecto, que tales sanciones colectivas constituyen um medio imprescindible para combatir la criminalidad de empresa. La coexistencia de estas dos premisas ha producido diversos intentos, bien de hacer prevalecer una sobre otra, bien de hacerlas compatibles. En el primer sentido, puede destacarse la propuesta que parte de entender que el contenido tradicional de las categorias de la teoría del deli to, que constituye el obstáculo fundamental para considerar a lãs personas jurídicas como autores criminales, es el reflejo de una visión retributiva del delito. Ello la haría inutilizable en la actualidad, en que resulta patente la necesidad de orientar el sistema a los

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fines de prevención. A partir de tal constatación, se estima preciso proporcionar una nueva configuración a categorías como la acción o la culpabilidad, a fin de que sean suscept ibles de ser referidas a hechos de corpoaciones; a la vez, se propugna la introducción de nuevas formas de pena, que se revelen - a diferencia de la pena privativa de libertad - aptas para ser aplicadas a las empresas en sí mismas. Esta propuesta toma como punto de partida el hecho indudable de que la doctrina y la jurisprudencia tradicionales em España, al fundamentar la incapacidad de las agrupaciones de personas para ser sujetos activos de delito en sí mismas, ha recurrido básicamente a argumentos puramente dogmáticos (incluso de una dogmática de base ontológica): así, que las corporaciones, aun las dotadas de personalidad jurídica, carecen de capacidad de acción (esto es, de uma voluntariedad en sentido psicológico, o finalidad diferente a la de sus órganos), de capacidad de culpabilidad (entendida como reproche ético-social a un sujeto libre, o bien - más modernamente - como motivabilidad normal) o de capacidad de pena (de sentir los contenidos de retribución, expiación, intimidación o reeducación presentes en ésta etc. ). Así, la STS de 3 de julio de 1992, ponente Sr. Bacigalupo Zapater (Rep. La Ley n. 12.612): "En el Derecho penal español, la responsabilidad se fundamenta en acciones de personas físicas, por el contrario, se parte de la base - al menos hasta hoy - de que las personas jurídicas o los conjuntos de personas carecen, en principio, tanto de la capacidad de acción como de la capacidad de culpabilidad que requiere el Derecho penal. Ello no excluye, de todos modos, que en el derecho sancionatorio adminstrativo se acepte que personas jurídicas, sociedades etc., puedan ser objeto de sanciones, carentes de las notas propias de las sanciones penales" (Jesus-Maria Silva Sánchez in "Responsabil idade penal da pessoa jurídica - Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva: Responsabil idad penal de las empresaa y sus organos en derecho español", Ed. RT, 2001, pgs. 09.12). "En resumen: no me parece posible fundamentar, tampoco a partir de las nuevas realidades que han de ser tenidas en cuenta como objeto de la valoración jurídica, una responsabil idad penal de las personas jurídicas. La doctrina tradicional y los argumentos por ella utilizados en contra de la fundamentación de la responsabil idad penla de las personas jurídicas continúan siendo plenamente válidos. Como recientemente subraya Strantenwerth, "aqui falta todo substracto para una pena". El futuro de la dogmática jurídico-penal en cuanto a la lucha contra la criminalidad económica que se desarrolha a partir de la actividad de una empresa debe orientarse al desarrolla a partir de la actividad de una empresa debe orientarse al desarrollo de instrumentos jurídicos de responsabilidad de las personas físicas que actúan para la empresa. El Derecho penal, sin embargo, es un instrumento insuficiente para uma protección plena y eficaz del orden social . Pero esto no es nuevo porque siempre ha sido así. La intervención del Derecho penal - y en general del Derecho sancionador – há necesitado siempre ser complementada con la intervención de otros sectores del ordenamiento jurí rido. El deli to resulta de la selección de sólo una parte de los datos de hecho que se producen en un contexto de acción que es, desde luego, mucho

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más amplio. Otros datos de hecho del contexto en que surge el delito, que no pueden ni deben ser tenidos en cuenta para la valoración jurídico penal y que, por ello, deben quedar fuera Del supuesto de hecho de la pena o de la medida de seguridad del Derecho penal, pueden y deben ser objeto de valoración jurídica y configurar el supuesto de hecho de outra consecuencia jurídica independiente que debe aplicarse junto a y además de la pena, de modo que, recordando de nuevo a Hirsch, pueda alcanzarse una valoración jurídica total del caso y la aplicación de todas las formas de reacción jurídica orientadas a la protección, reafirmación y restabelecimiento del orden jurídico. En el ámbito de la criminalidad económica que se desarrolla en el contexto de la actividad de una empresa económica, el Derecho penal individual, incluido aquí el Derecho de las infracciones y sanciones administrativas, debe ser sin duda complementado con otras formas de reacción jurídica que han de tener como presupuesto la valoración de otras circunstancias de hecho del contexto del deli to. Este y no el de las sanciones en sentido estricto es el campo en el que, deben fundamentarse consecuensias jurídicas aplicables a la agrupación en cuanto realidad distinta a la de las personas físicas que actúan para ellas." (Luís Gracia Martín in "Responsabilidade penal da pessoa jurídica - Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva: La cuestion de la responsabilidad penal de las propias personas juridicas", Ed. RT, 2001, pgs. 72.73). "A lei penal brasileira dos crimes ambientais (Lei 9.605 de 12.02.1998) inova, em seu art. 3°, caput, ao dispor que "as pessoas jurídicas serão responsabil izadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade". Parágrafo único. "A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato". Intenta-se romper, assim, pela vez primeira, o clássico axioma do societas delinquere non potest. Não obstante, em rigor, diante da configuração do ordenamento jurídico brasileiro – em especial do subsistema penal - e dos princípios constitucionais penais que o regem (v.g., princípios da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima etc.) e que são reafirmados pela vigência daquele, fica extremamente difíci l não admitir a inconstitucionalidade desse artigo, exemplo claro de responsabilidade penal por fato alheio. Influenciado, de certa forma, pelo sistema anglo-americano, em que essa forma de responsabil idade é normalmente admitida, teve, contudo, o legislador pátrio, nitidamente, como fonte de inspiração o modelo francês. A previsão legal acima parece estar intimamente vinculada ao crescente e lamentável recurso à lei criminal como instrumento eficiente e simbólico. Para tanto convergem dois fatores relacionados com a noção de eficiência. De acordo com o primeiro, o Direito Penal é menos custoso, se comparado com o emprego de mecanismos jurídico-administrativos alternativos. Pelo segundo, seus efeitos sociais sobre a opinião pública são superiores, pelo menos a curto prazo, o que faz dele um instrumento adequado para obter a

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confiança da população na ordem jurídica. A idéia de um Direito Penal eficiente - eficiência social - significa que o sistema penal eleva sua eficiência prescindindo parcialmente da sujeição a seus princípios e é colocado à disposição estatal como mecanismo forte de combate à criminalidade, reduzindo ao mínimo os pressupostos da punibilidade, com last ro na chamada imperiosa necessidade. Trata-se da corrente puramente utilitarista denominada Law and Economics, ou análise econômica do Direito, que visa à "utilização de técnicas como a análise custo-benefício na elaboração das políticas jurídicas e na justificação das decisões judiciais , a decidida abertura do discurso jurídico ao tema das conseqüências econômico-sociais do Direito, ou a consideração da eficiência econômica como valor jurídico". Mas, na realidade, a conseqüência desse processo não é que o Direito Penal assim concebido esteja em condições de cumprir suas novas funções; ao contrário, está ele permanentemente acompanhado de "déficits de execução" específicos, reprovados por todos. Dessa postura, defluem uma tentativa de minimizar esses déficits com mais criminalizações ou aumento de pena e um âmbito progressivo de efeitos meramente simbólicos: dado que não podem ser esperados efeitos reais, o legislador pelo menos obtém o crédito polít ico de ter dado uma resposta célere aos medos e pertubações sociais com os severos meios criminais. Isso significa dizer que a eficiência é apenas aparente - puramente simbólica - e incidente tão-somente no âmbito psicológico-social dos sentimentos de insegurança. Ainda que adequada a escolha do paradigma, visto ser o Direito francês escri to, e pertencente ao grupo romano-germânico, não andou bem nosso legislador em sua formulação. De fato, em França, como já examinado, tomou-se o cuidado de adaptar-se de modo expresso essa espécie de responsabil idade no âmbito do sistema tradicional. A denominada Lei de Adaptação (Lei 92-1336.1992) al terou inúmeros textos legais para torná-los, coerentes com o novo Código Penal, contendo inclusive disposições de processo penal, no intuito de uma harmonização processual, particularmente necessária devido à previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Além disso, a lei francesa proclama o princípio da especialidade, vale dizer, só se torna possível deflagrar-se o processo penal contra a pessoa jurídica quando estiver tal responsabilidade prevista explicitamente no tipo legal de delito. Definem-se, assim, de modo taxativo, quais as infrações penais passíveis de serem imputadas à pessoa jurídica. Ora bem, em nosso país deu-se exatamente o oposto, visto que o legislador de 1998 (Lei 9.605), de forma simplista, nada mais fez do que enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la completamente. Isso significa não ser ela passível de aplicação concreta e imediata, pois faltam-lhe instrumentos hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato. Não há como, em termos lógico-jurídicos, quebrar princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade da pessoa natural, sem fornecer, em contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores de um subsistema ou microssistema de responsabil idade penal, restrito e especial , inclusive com regras processuais

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próprias." (Luiz Régis Prado in "Responsabilidade penal da pessoa jurídica - Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva: Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações", Ed. RT, 2001, pgs. 127.130). "Estamos ya en condiciones de efectuar un primer balance: El Derecho penal español sigue anclado en el principio tradicional según el cual sólo las personas físicas pueden cometer delitos y sólo ellas pueden ser castigadas con penas criminales en sentido estricto. Sin embargo, el CP actual incluye, junto a las penas y las medidas de seguridad, consecuencias accesorias constituidas por el comiso y por una serie de medidas aplicables a personas jurídicas y empresas. Estas medidas no son punitivas, sino meramente preventivas: tienen como finalidad el peligro que pueda suponer la persona jurídica o empresa de que se continúe la actividad delictiva de personas físicas o suas efectos. Tanto en su origen legislativo como en su sentido actual , estas medidas se hallan más próximas a las medidas de seguridad que a las penas. No presuponen que la persona jurídica o empresa haya cometido ningún deli to, por lo que no tropiezan con el obstáculo de que en la actuación de una persona jurídica o empresa faltan todas las exigencias dogmáticas derivadas del principio de culpabil idad personal. Tampoco suponen el reproche ético-social de la pena. Sin embargo, en cuanto implican afectación de derechos - como las medidas de seguridad-, deben sujetarse a los l ímites constitucionales de la intervención coactiva del Estado, como el que impone el princípio constitucional de proporcionalidad, y a los principios que rigen el proceso penal acusatorio." (.. .) Pues bien, imponer una pena a una persona jurídica o a una empresa es extender el grave reproche de la condena penal a quien no puede reprochársele el hecho como autor o partícipe culpable del mismo. Es evidente que una persona jurídica es una creación del Derecho incapaz de actuar por sí misma, carente de conciencia y de cualquier sentido de responsabil idad. Cómo podría reprocharse a una pura creación jurídica un hecho que no puede haber decidido ni realizado ni evitado? La persona jurídica necesita de alguna persona física que actúe en su nombre. Es lo que ocurre en el caso del recién nacido cuyo patrimonio administran sus padres, o del absolutamente incapaz representado por un tutor: aunque el menor y el incapaz son personas para el Derecho, tienen capacidad jurídica y, por tanto, pueden tener derechos y obligaciones, no tienen capacidad de obrar y necesitan para actuar en Derecho la intervención de sus padres o tutor. Es cierto que una persona jurídica aparece como parte en los contratos que suscribe, por ejemplo: ella es la que aparece como vendedora de un bien de su propiedad, y en este sentido se dice que el la persona jurídica la que vende dicho bien. Pero lo mismo sucede en el recién nacido o en el incapaz profundo que aparece como vendedor de uno de sus bienes, y no obstante quien verdaderamente há de efectuar los actos reales necesarios para vender son los padres o el tutor. Igualmente, cuando la persona jurídica vende tiene que hacerlo necesariamente a través de la actuación de sus administradores

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o personas apoderadas. Pues bien: del mismo modo que en el caso del padre que determina el alzamiento de los bienes del recién nacido, sería absolutamente injusto reprochar al bebé la comisión del delito, porque el niño no ha hecho nada de lo que se le pueda culpar, también cuando el administrador de una persona jurídica produce el alzamiento de bienes de ésta sería injusto reprochar a la misma la comisión del delito cuando ésta se debe únicamente a la actuación del adminstrador." (Santiago Mir Puig in "Una tercera vía en materia de responsabilidads penal de las personas jurídicas", crimenet.ugr.es). Ante o exposto, nego provimento ao recurso. É o voto CERTIDÃO DE JULGAMENTO QUINTA TURMA Número Registro: 2004.0012318-8 RESP 622724 . SC MATÉRIA CRIMINAL Números Origem: 20030149643 30149643 79010035646 PAUTA: 18.11.2004 JULGADO: 18.11.2004 Relator Exmo. Sr. Ministro FELIX FISCHER Presidenta da Sessão Exma. Sra. Ministra LAURITA VAZ Subprocurador-Geral da República Exmo. Sr. Dr. FRANCISCO XAVIER PINHEIRO FILHO Secretário Bel. LAURO ROCHA REIS AUTUAÇÃO RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA RECORRIDO : AUTO POSTO DE LAVAGEM VALE DO VINHO LTDA ASSUNTO: Penal - Leis Extravagantes - Crimes Contra o Meio Ambiente (lei 9.605.98) CERTIDÃO Certifico que a egrégia QUINTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

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"A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso, mas lhe negou provimento." Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e José Arnaldo da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator. O referido é verdade. Dou fé. Brasília, 18 de novembro de 2004. AURO ROCHA REIS Secretário