A Reforma Humanitária Das Nações Unidas Um Mecanismo Rumo a Eficácia Da Assistência...

download A Reforma Humanitária Das Nações Unidas Um Mecanismo Rumo a Eficácia Da Assistência Humanitária. Caso Do Haiti Felícia Matos Dias

of 119

Transcript of A Reforma Humanitária Das Nações Unidas Um Mecanismo Rumo a Eficácia Da Assistência...

  • Felcia Isabel Matos Dias

    UM

    inho|2013

    Julho de 2013

    A R

    efo

    rm

    a H

    um

    an

    it

    ria

    da

    s N

    a

    es U

    nid

    as:

    Um

    Me

    ca

    nis

    mo

    Ru

    mo

    E

    fic

    cia

    da

    Aju

    da

    Hu

    ma

    nit

    ria

    ? C

    aso

    do

    Ha

    iti.

    Universidade do Minho

    Escola de Economia e Gesto

    A Reforma Humanitria das Naes

    Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia

    da Ajuda Humanitria? Caso do Haiti.

    Felcia

    Isabel M

    ato

    s D

    ias

  • Dissertao de Mestrado

    Mestrado em Relaes Internacionais

    Trabalho realizado sob a orientao da

    Professora Doutora Alena Vysotskaya Guedes Vieira

    e co-orientao da

    Professora Doutora Laura Cristina Ferreira-Pereira

    Felcia Isabel Matos Dias

    Julho de 2013

    Universidade do Minho

    Escola de Economia e Gesto

    A Reforma Humanitria das Naes

    Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia

    da Ajuda Humanitria? Caso do Haiti.

  • AUTORIZADA A REPRODUO INTEGRAL DESTA DISSERTAO APENAS PARA EFEITOS

    DE INVESTIGAO, MEDIANTE DECLARAO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE

    COMPROMETE;

    Universidade do Minho, ___/___/______

    Assinatura: ________________________________________________

  • I

    Agradecimentos

    A gratido reconhecida quando a demonstramos no apenas quando expressamos.

    Desejo poder continuar a demonstrar gratido e agradecimento s pessoas aqui

    mencionadas.

    De Braga a Genebra, Madrid, Lisboa e luanda infindvel o nmero de pessoas que,

    das mais variadas formas, contriburam para que este longo percurso de aprendizagem

    culmina-se na publicao desta dissertao.

    Sou grata a Professora Alena por marcar o meu percurso por ser uma das melhores

    decises acadmicas que tomei. Depois de expresso pessoalmente quero que fique

    publicamente registado o profissionalismo, incansvel dedicao, caracter humano e

    compreenso. Agradeo por me incitar ao pensamento crtico, me conceder liberdade de

    expresso e por acreditar investindo em mim muito do seu j ocupado tempo.

    Gratido apenas um entre os milhares de sentimentos que tenho em relao minha

    famlia, que a nica pertena eterna na vida. Especialmente ao pap e a mam por me

    moldarem de forma a acreditar que os sonhos so as conquistas fruto da persistncia e

    trabalho.

    Agradeo a Professora Laura pelo profissionalismo, exigncia e disponibilidade ao

    acreditar neste projeto, assim como os seus conselhos e sugestes.

    Obrigada ao Telmo, Tiaguinho e a Mnica pelo contributo e amizade. Tambm devo

    agradecer ao meu fiel grupo de amigos de sempre para sempre, porque a amizade a

    fonte de bom nimo. A Andreia que me salvou na batalha tecnolgica de ltima hora.

    Aos entrevistados que demonstraram disponibilidade e foram um grande contributo.

    Muito obrigada.

    Estou em dvida com as pessoas que marcaram o meu percurso na ONU, pois atravs do

    seu grande exemplo me ensinaram a verdadeira definio de lder e me mostraram como

    um Homem pode mudar o mundo.

    E num corao grato reside, tambm, a expectativa de futuros frutos advindos deste

    projeto.

  • II

  • III .

    Resumo

    Hoje vivemos em tempos em que muitos se questionam sobre a assistncia

    humanitria prestada. A atual conjuntura internacional caracterizada por um nmero

    crescente e insatisfeito de necessidades humanitrias que consequentemente conduzem

    a comunidade internacional a estimuladora pergunta: a ajuda humanitria eficaz?

    Em 2005 a Reforma Humanitria (RH) da Organizao da Naes Unidas (ONU)

    materializou uma das maiores ambies da ajuda humanitria (AH) ou seja a busca pela

    eficcia. O aprimoramento dos mecanismos existentes consistia em trs pilares:

    'abordagem de cluster', 'financiamento humanitrio "e" liderana". Sendo que estes trs

    pilares esto alicerados num elemento transversal, denominado por "estabelecimento

    de parcerias.

    A HR no trouxe um salto qualitativo em termos de eficcia da AH. Vrios

    autores e decisores polticos apontam insuficincias da AH, no entanto no fornecem

    solues finais. Esta dissertao pretende contribuir para o atual debate acadmico sobre

    o tema, apresentando o que consideramos ser um elemento crucial para atingir a eficcia

    da AH, isto , a coordenao humanitria entre ONU e as organizaes no-

    governamentais (ONG). Como forma a alcanar este objetivo, o presente estudo explora

    os conceitos de AH, de eficcia e analisa o RH partindo de uma perspetiva analtica

    particular, que significa, explorar at que ponto a RH tem sido fundamental no na

    perspetiva da eficcia fundamentada na coordenao humanitria.

    A abordagem terica desenvolvida aplicada ao estudo do Haiti concentrada na

    ao humanitria, durante e depois da grande catstrofe do sculo XX, o terramoto de

    2010 considerando as dificuldades e conquistas da RH. A assistncia humanitria

    prestada e as circunstncias vividas neste Estado frgil, confrontou a comunidade

    internacional com o dilema, por um lado da ineficcia e por outro, da constante

    necessidade de ajuda internacional.

    Com base na anlise das evidncias empricas, verificamos que a eficcia

    emerge do discurso poltico como um conceito vazio, o qual colmatamos defendendo a

    nossa perspetiva da eficcia como sendo o fim da AH, a qual est intimamente ligada

    coordenao humanitria.

    Palavras-chave: assistncia humanitria, ajuda humanitria, eficcia, Organizao das

    Naes Unidas (ONU), Organizaes no-governamentais (ONG)

  • IV

  • V .

    Abstract

    We currently live in the times when everyone is wondering about the

    humanitarian aid. Our international environment is featured by the increasing and

    unsatisfied humanitarian needs that consequently lead the international community to

    one of the most heartening questions: is the humanitarian aid effective?

    The 2005 United Nations (UN) Humanitarian Reform (HR) embodied the

    greatest ambition of humanitarian aid, namely the pursuit of its effectiveness. The

    enhancement of the existing mechanisms consisted of three pillars: cluster approach,

    humanitarian funding and humanitarian coordinators. These three pillars are well

    grounded in yet another cross-cutting pillar, called establishment of partnerships.

    The HR has not brought a qualitative leap forward in terms of aid effectiveness.

    Several authors and policy-makers still point out shortcomings of humanitarian aid, but

    they also dont provide any final solutions. This study aims to contribute to the ongoing

    academic debate on the subject by presenting what we consider to be a crucial element

    to achieve aid effectiveness, namely the humanitarian coordination between UN and

    Non-Governmental Organizations (NGO). To achieve this objective, the present study

    explores the concepts of humanitarian aid and effectiveness and analyses the HR from

    the particular analytical perspective, namely by exploring to what extent the HR has

    been instrumental to the effort of continuously pursuing a vision of effectiveness

    founded on humanitarian coordination.

    The developed theoretical approach is applied to a case of humanitarian aid

    given in Haiti during and after the major disaster of this century, the 2010 earthquake,

    taking into account the hardships and achievements of the HR. The condition of a

    fragile state and the provided humanitarian assistance resulted in a dilemma faced by

    the international community in Haiti, namely the one of ineffectiveness on the one hand

    and constant need international aid on the other hand.

    Based on the analysis of the empirical evidence, we found an emptiness in the

    concept of effectiveness widely present on the political discourse of humanitarian aid,

    which we filled arguing our perspective of effectiveness as the end of AH that is

    closely connected with the humanitarian coordination.

    Key words: humanitarian aid, effectiveness, United Nations (UN), humanitarian reform,

    Non-govermental organizations (NGO).

  • VI

  • VII A Reforma Humanitria das Naes Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia da Ajuda

    Humanitria? Caso do Haiti.

    Glossrio

    AH Ajuda humanitria

    AMI Assistncia Mdica Internacional

    CE Comisso Europeia

    CS Conselho de Segurana

    ECHO (European Community Humanitarian Office) - Servio Humanitrio da

    Comunidade Europeia

    ECHOs GNA (Global Needs Assessment) - Avaliao das Necessidades

    Humanitrias Globais

    ERF (Emergency Response Fund) - Fundo de Resposta s Emergncias

    ERC (Emergency Relief Coordinator) Coordenador de Ajuda de Emergncia

    FTS (Finantial Tracking Service ) Sistema de Controlo de Financiamento

    FAO (Food and Agriculture Organization) Organizao das Naes Unidas para a

    Agricultura e Alimentao

    IASC (Interagency Standing Comittee) - Comit Permanente inter-agncias.

    ICRC (International Committee of Red Cross) Comit Internacional da Cruz

    Vermelha

    ICVA - (International Council of Voluntary Agencies) - Conselho Internacional de

    Agncias Voluntrias

    IDA (International Development Association) Associao de Desenvolvimento

    Internacional

    IFRC (International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies) - Federao

    Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho)

    IOM (Internatioal Organization for Migration) Organizao Internacional para as

    migraes.

    OCHA (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs) Escritrio das Naes

    Unidas para a Coordenao de Assuntos Humanitrios

    ODA (Official Development Assistance) Ajuda Oficial para o Desenvolvimento

    OECD DAC (Organisation for Economic Co-operation and Development,

    Development Co-operation Directorate) Organizao para a Cooperao Econmica e

    Desenvolvimento, Diretrio de Cooperao para Desenvolvimento

    OHCHR (Office of High Comissioner of Human Rights) Alto-Comissariado das

    Naes Unidas para os Direitos do Homem)

  • VIII Glossrio

    OI Organizaes Internacionais

    ONG Organizaes No Governamentais

    ONU Organizao das Naes Unidas

    ODM (Millennium Development Goals) Objetivos de Desenvolvimento do Milnio

    UNDP (United Nations Development Programme) - Programa das Naes unidas para

    o Desenvolvimento)

    UNFPA (United Nations Population Found) Fundo da Populao das Naes Unidas

    RAF (Rapid Action Fund) Fundo de ao rpida

    SMART (Standardized Monitoring and Assessment of Relief and Transitions)

    Monotorizao e Avaliao Normalizada de Socorro e Transies

    PIB Produto Interno Bruto

    RH Reforma Humanitria

    SRHR IDPs (Special Rapporteur on Human Rights of Internaly Displaced People)

    Relator Especial dos diretos humanos de deslocados internos

    UE Unio Europeia

    UNICEF (United Nations Childrens Found) Fundo Das Naes Unidas para a

    Infncia

    GHA (Global Humanitarian Assistance) Assistncia Humanitria Global

    GHP (Global Humanitarian Plataform) Plataforma Humanitria Global

    HCF (Humanitarian Common Fund) - Fundo Humanitrio Comum

    HLF (High Level Forum) Frum de Alto Nvel

    ILO (International Labor Organization) Organizao Mundial do Trabalho

    IOM (International Organization for Migration) Organizao Internacional para as

    Migraes

    WHO (World Health Organization) Organizao Mundial da Sade

    WFP (World Food Program) Programa Alimentar Mundial

  • xi A Reforma Humanitria das Naes Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia da Ajuda

    Humanitria? Caso do Haiti.

    ndice

    AGRADECIMENTOS .............................................................................................................I

    RESUMO .............................................................................................................................. III

    ABSTRACT ........................................................................................................................... V

    GLOSSRIO ....................................................................................................................... VII

    NDICE ................................................................................................................................. XI

    NDICE DE FIGURAS:...................................................................................................... XIII

    INTRODUO....................................................................................................................... 1

    CAPITULO I DESMISTIFICANDO A AJUDA HUMANITRIA NOES

    INTRODUTRIAS ................................................................................................................ 9

    1.1. A EFICCIA E A AJUDA HUMANITRIA: UMA PRIMEIRA APROXIMAO AOS CONCEITOS

    OPERACIONAIS ........................................................................................................................ 10

    1.2. AJUDA HUMANITRIA NO CONTEXTO DA POLTICA INTERNACIONAL ATUAL .................. 12

    1.3. AJUDA HUMANITRIA MAIS EFICAZ: A RESPOSTADA DA COMUNIDADE INTERNACIONAL

    EM ANLISE (2003 A 2012)

    .16

    A) A CONCEO INSTITUCIONAL DE EFICCIA ....................................................................... 17

    B) A INSTITUCIONALIZAO DO COMPROMISSO INTERNACIONAL E A ACUMULAO DA

    EXPERINCIA........................................................................................................................... 18

    1.4. PERSPETIVAS SOBRE A EFICCIA NA AJUDA HUMANITRIA ........................................... 21

    1.5. ABORDAGEM DA EFICCIA COMO RESULTADO DA COORDENAO INTRA-HUMANITRIA 24

    CAPTULO II REFORMA HUMANITRIA ................................................................... 27

    2.1. OS ANTECEDENTES INSTITUCIONAIS REFORMA HUMANITRIA ....................................... 28

    2. 2. REFORMA HUMANITRIA: CONSTRUO DE UM SISTEMA MAIS FORTE E MAIS PREVISVEL

    DA RESPOSTA HUMANITRIA EM ANLISE ............................................................................... 30

    A) ABORDAGEM CLUSTER ...................................................................................................... 31

    B) FINANCIAMENTO HUMANITRIO....................................................................................... 36

    C) LIDERANA HUMANITRIA .............................................................................................. 40

    D) ESTABELECIMENTO DE PARCERIAS ................................................................................... 43

    2.4. ABORDAGEM DA COORDENAO INTRA-HUMANITRIA, NO MBITO DA REFORMA

    HUMANITRIA ......................................................................................................................... 46

    2.4.1. ATORES PARTICIPANTES NA COORDENAO INTRA-HUMANITRIA ................................ 48

    2.4.2. CLASSIFICAO DA COORDENAO INTRA-HUMANITRIA ............................................. 50

  • xii ndice

    2.4.3. NVEIS DE COORDENAO INTRA-HUMANITRIA ........................................................... 51

    2.4.4. AS LACUNAS DA COORDENAO INTRA-HUMANITRIA: DESAFIOS PERSISTENTES .......... 52

    CAPITULO III A AO HUMANITRIA NO HAITI: A BUSCA DE UMA

    REEDIFICAO ................................................................................................................. 57

    3.1. HAITI: UM CONTEXTO HISTRICO CARACTERIZADO POR POBREZA EXTREMA ..................... 59

    3.2. O TERRAMOTO DE 12 DE JANEIRO DE 2010 E AS SUAS IMPLICAES .................................. 62

    3.3. A AO HUMANITRIA NO HAITI ...................................................................................... 64

    3.2.1. AFLUNCIA DESMEDIDA DE VOLUNTRIOS .................................................................... 65

    3.2.2. A INTERVENO DAS ORGANIZAES INTERNACIONAIS NO HAITI.................................. 66

    3.4. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................... 82

    CONCLUSO: ..................................................................................................................... 87

    BIBLIOGRAFIA ............................................................... ERROR! BOOKMARK NOT DEFINED.

  • xiii A Reforma Humanitria das Naes Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia da Ajuda

    Humanitria? Caso do Haiti.

    ndice de figuras:

    Tabelas:

    Tabela 1: Escala de nveis de compromisso na coordenao intra-humanitria adaptada

    s organizaes humanitrias ...................................................................................... 51

    Tabela 2: Histrico de desastres naturais no Haiti ........................................................ 60

    Tabela 3: Sistema cluster no Haiti ............................................................................... 67

    Tabela 4: Identificao de lacunas na coordenao intra-humanitria no Haiti (janeiro-

    maro, 2010) ............................................................................................................... 76

    Tabela 5: Identificao de lacunas na coordenao intra-humanitria no Haiti (abril

    2010 - dezembro 2011) ............................................................................................... 82

    Grficos:

    Grfico 1 Fluxos da ajuda humanitria ........................................................................ 13

    Grfico 2 A Reforma da ajuda humanitria ................................................................. 31

    Grfico 3: Esquematizao da abordagem cluster ........................................................ 32

    Grfico 4: Circuito de Fundo Humanitrios Comuns em milhes de dlares................ 39

    Imagens:

    Imagem 1: Bandeira do Haiti ...................................................................................... 59

  • xii

  • 1 A Reforma Humanitria das Naes Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia da Ajuda

    Humanitria? Caso do Haiti.

    Introduo

    O presente estudo explora a temtica da ajuda humanitria (AH), 1

    no contexto

    de emergncia, tendo por base a atuao da Organizao das Naes Unidas (ONU),

    que tem passado por mudanas estruturais na ltima dcada. Historicamente, a AH,

    prossegue o objetivo de salvar vidas, aliviar o sofrimento e manter a dignidade humana,

    mas agora em circunstncias distintas. No contexto atual, as sociedades confrontam-se

    com, inter alia, emergncias complexas, alterao da natureza dos conflitos, o

    incremento exponencial de atores humanitrios e o aumento de desastres naturais

    relacionado, em parte, com as alteraes climticas.

    A AH clssica, de tipo paliativo, v-se obrigada a reformar-se face a inmeros

    desafios suscitados pela nova conjuntura internacional. Pese embora, se verifique um

    aumento de recursos e uma proliferao de atores da AH internacional - i.e., governos,

    Organizaes Internacionais (OI), agncias da ONU, Organizaes No

    Governamentais (ONG), tanto locais como internacionais, o discurso humanitrio

    denuncia dificuldades e convoca mecanismos mais eficazes.

    Em resposta ao novo clima internacional, que envolve uma pluralidade de atores,

    a ONU assume particular protagonismo pela experincia prtica que acumulou na rea

    da AH.2 A referncia a este ator-chave no presente estudo, remete para as agncias

    humanitrias da ONU (e.g. UNICEF) e os organismos de coordenao entre agncias,

    designadamente, o Office for the Coordination of Humanitarian Affairs3 (OCHA

    Escritrio das Naes Unidas para a Coordenao de Assuntos Humanitrios) e o Inter-

    agency Standing Comittee (IASC Comit Permanente de Interagncias). Esta seleo

    resulta de um interesse intelectual aliado a uma experincia prtica que a autora desta

    investigao obteve no quadro da ONU, na rea da AH.

    Os desafios e as dificuldades hodiernos da AH convocam a necessidade de

    compreender as razes subjacentes aos seus mltiplos insucessos. No quadro do

    discurso humanitrio, esses insucessos so correntemente atribudos eficcia ou a falta

    dela. Trata-se de um conceito, explorado em detalhe nesta dissertao, cuja relevncia

    1 O conceito de AH nesta tese equivale igualmente a assistncia humanitria e ao humanitria.

    2 Toda problemtica resultante da primazia das decises da ONU no campo da AH sobre a vontade do Estado recetor esta fora do

    mbito da presente investigao. 3 Neste contexto, destaca-se o lema oficial da OCHA, nomeadamente Coordenao salva vidas, o que contribui para a relevncia

    do tema e conceito de coordenao intra-humanitria escolhido como enfoque deste trabalho.

  • 2 Introduo

    se tornou ainda mais pronunciada face a nova conjuntura internacional de crise

    econmica e assimetria entre o aumento de recursos e necessidades humanitrias.

    Esta priorizao da eficcia fica patente nas reunies, estudos e conferncias que

    culminaram na aclamada reforma humanitria (RH), instituda em 2005. Liderada pelo,

    ento Coordenador para Emergncias Humanitrias da ONU, Jan Egeland4, a RH um

    processo que visa tornar a AH mais coesa, forte e previsvel, assentando em trs pilares,

    a saber: a abordagem cluster, financiamento humanitrio e os coordenadores

    humanitrios. A estes trs novos pilares associou-se o estabelecimento de parcerias

    enquanto elemento transversal. A RH nascida no seio da ONU foi concebida para ter

    um impacto global, isto para pautar a ao de todos os atores humanitrios. De entre

    estes atores humanitrios, as ONG, tais como AMI (Assistncia Mdica Internacional),

    Save the Children e a Cruz Vermelha tm assumido um papel preponderante na AH, tal

    como evidencia o reconhecimento e a responsabilidade que lhes tem sido atribuda no

    mbito de projetos liderados pela ONU. Nesses projetos as ONG, independentemente da

    sua dimenso, grau de independncia e nvel de compromisso, tm participado no

    processo de coordenao dentro e fora do universo da ONU.

    Tal como a evidncia emprica demonstra, a RH no trouxe consigo um salto

    qualitativo na eficcia da AH. Este estudo tem por objetivo aferir a eficcia da RH

    assente na estrutura trptica acima enunciada, tendo por base o nvel de coordenao

    intra-humanitria alcanado entre as ONU e as ONG no terreno, avaliando-se,

    igualmente, o seu impacto com base no estudo de caso especfico.

    Nesta perspetiva a hiptese de trabalho deve ser formulada nos seguintes moldes:

    no contexto da RH da ONU, a coordenao intra-humanitria entre essa organizao e

    as ONG um fator determinante para a eficcia da AH prestada no terreno.

    Neste estudo adota-se o conceito de coordenao intra-humanitria como forma

    a ultrapassar a falta de objetividade inerente noo de eficcia, que recorrentemente

    invocada como objetivo maior da RH, mas que permanece uma incgnita em termos de

    conceptualizao no quadro da ONU. A definio geral de coordenao intra-

    humanitria adotada neste estudo inclui um conjunto de atividades e estratgias entre

    ONU e ONG5 que pretendem evitar a duplicao de esforos criando um mecanismo

    nico de resposta. Identificam-se como elementos-caracterizadores da coordenao

    4 Na data desempenhava as funes de subsecretrio-geral para assuntos humanitrios e coordenao da ajuda de emergncia.

    5 Relativamente ao enfoque temtico da investigao, esta dissertao exclui a coordenao intra-humanitria entre a ONU e as

    demais organizaes com perfil de segurana, bem como organizaes e agncias estatais (como por, exemplo, Cames-Instituto de

    Cooperao e da Lngua, no caso de Portugal).

  • 3 A Reforma Humanitria das Naes Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia da Ajuda

    Humanitria? Caso do Haiti.

    intra-humanitria a organizao, a coeso, a informao estratgica, a harmonizao de

    aes controle, a gesto de responsabilidade e a interdependncia. Em termos do

    alcance da coordenao intra-humanitria entre a ONU e ONG, o presente estudo incide

    sobre a coordenao intra-humanitria operacional (diria), em detrimento da

    coordenao intra-humanitria estratgica (a longo prazo) e ttica (a mdio prazo). Para

    efeitos de aferio dessa coordenao intra-humanitria, o presente estudo estriba-se

    numa ferramenta de anlise, a saber, na escala de nveis de compromisso na

    coordenao adaptada s organizaes humanitrias, proposta por Guy Peters (1998).

    Esta ferramenta de anlise complementada pelos parmetros de avaliao

    desenvolvidos por Tomassini e Wassenove, designadamente, escassez de recursos,

    custo, branding, desafios operacionais, doadores e imprevisibilidade (2009).

    Em resultado da combinao destas ferramentas analticas aplicadas AH prestada no

    contexto do terramoto do Haiti em 2010, confirmaremos a hiptese de trabalho acima

    anunciada.

    A 12 de janeiro de 2010, no Haiti ocorreu a maior catstrofe do sc. XXI: um

    terramoto de magnitude 7.0, na escala de Richter. Com este desastre, a comunidade

    internacional assistiu maior ao de AH de sempre, com imenso impacto num cenrio

    urbano. O caso do Haiti permite no s estudar as questes de resposta s emergncias,

    como tambm a atuao da AH em circunstncias especialmente difceis. O Haiti, para

    alm de propenso a catstrofes naturais, correntemente caracterizado como, Estado

    frgil, corrupto, e politicamente instvel (com 32 golpes de Estado, em 200 anos).

    Ainda hoje, o Haiti no desfruta de um governo fortemente estruturado.

    O Haiti dispe de um historial de receo da AH tanto anterior como posterior

    RH. No entanto, especialmente importante examinar circunstncias da AH que

    ocorrem aps o terramoto de 2010, por esta ao da AH ser considerada a maior de

    sempre (Stumpenhorst, et al., 2011), trazendo consigo a destruio de infra-estruturas

    governamentais e uma desgovernada e excessiva presena das ONG. Por isso, este

    estudo de caso tem o potencial de produzir uma inovadora contribuio acadmica.

    Dito isto, importante referir que o estudo de caso de Haiti apresenta desafios,

    como seja o nmero reduzido de estudos acadmicos e cientficos sobre a AH neste pas,

    tambm ele uma consequncia de se tratar de um evento recente. Por outro lado, a

    predominncia bibliogrfica de relatrios oficiais produzidos pelos atores humanitrios

    patenteia a ausncia de transparncia de dados. Este facto tem a ver com a constante

    procura de visibilidade e projeo por parte dos atores humanitrios que financiam e/ou

  • 4 Introduo

    so responsveis por esses relatrios e que, por sua vez so dependentes da ajuda dos

    doadores. Neste sentido, as entrevistas e o estgio realizado na ONU pela autora

    constituem uma mais-valia para este estudo.

    O intervalo temporal deste estudo tem incio em 2005, ano em que foi instituda

    a RH, e termina em 2011, pouco mais de um ano aps o terramoto do Haiti.

    A metodologia utilizada ao longo da presente investigao coaduna-se com os

    objetivos traados para a mesma. Esta pesquisa fortemente marcada por uma

    abordagem qualitativa que engloba a observao documental que, por sua vez, se

    ramifica em fontes primrias e fontes secundrias. Como fontes primrias, utilizamos

    um nmero expressivo de documentos oficiais da ONU e ONG que nos permite, por

    induo, interpretar a realidade. Ademais, refira-se os dados reunidos pela autora, no

    quadro da assistncia a conferncias e de entrevistas que revelaram experincias

    contadas, na primeira pessoa, relativamente AH, em geral, e no Haiti, em particular.

    Com uma contribuio dual, as entrevistas exploratrias permitiram numa fase inicial

    determinar fontes, metodologia e foco de estudo, e numa fase mais avanada permitiram

    o acesso a informaes que no estavam disponveis em fontes documentais. No

    processo de cruzamento das fontes de informao procurou-se validar os dados e

    expurgar contradies ou erros factuais. Quanto s fontes secundrias, utilizamos

    artigos cientficos, dissertaes, livros e captulos de livros. A abordagem qualitativa foi

    complementada com uma abordagem quantitativa, assente em dados estatsticos

    relativos ao financiamento e oramento humanitrios, com incidncia, na ltima dcada.

    Complementarmente, o estudo de caso, o terramoto no Haiti em 2010 apresenta-

    se como instrumento de aplicao dos preceitos tericos abordados ao longo da

    investigao. De entre os esquemas de estudo de caso apresentados por Quivy e

    Campenhoudt (1998), adotmos o esquema causal que encara um fenmeno (neste caso

    eficcia da RH/AH) como sendo, em parte, resultado do impacto de outros fenmenos

    logicamente anteriores. Assim, o estudo de caso resultado de uma combinao entre

    uma narrativa detalhada e uma explanao analtica (George & Bennett, 2005).

    Os temas e conceitos chave deste estudo foram discutidos por outros autores,

    mas de forma distinta da abordagem desta dissertao. Ademais, relativamente AH

    so questionados os dilemas humanitrios (Vaux, 2007), tanto em tempo de guerra

    como de paz (Kent, 2003). Autores exploram os interesses polticos adjacentes AH

    (MacFarlane & Weiss, 2000) e o ponto de equilbrio entre as respostas humanitrias

    neutras e as politizadas, nas emergncias complexas (Macrae & Nicholas, 2000). Apesar

  • 5 A Reforma Humanitria das Naes Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia da Ajuda

    Humanitria? Caso do Haiti.

    da escassez das contribuies relativas AH possvel encontrar alguns estudos

    anteriores relativos AH, orientados para estudos de caso especficos, que denunciam

    deficincias da atuao global desta. Ainda antes da RH, foram realizados trabalhos

    sobre a AH no contexto do tsunami no Oceano ndico (JIU/REP/2006/5, 2006). Depois

    da RH, foram aprendidas importantes lies da AH no contexto do tsunami na sia que

    atingiu a ndia (Kilby, 2007) e a Indonsia (Rgnier, 2008), ambos Estados propensos a

    catstrofes naturais. Entretanto, estes estudos representam uma parcela muito pequena

    da literatura existente, que ainda no foi sistematizada. A reviso da literatura primria

    permite-nos constatar que a abordagem dada AH , maioritariamente, condicionada

    pelos interesses do autor e no uma investigao objetiva que responda a perguntas

    analticas. Como resultado, na sua maioria, a bibliografia sobre o impacto da AH

    compe-se por relatrios meramente descritivos, que no apresentam solues

    conclusivas, nem tm por base uma abordagem cientfica.

    Contributos relativos eficcia na RH, so apresentados em relatrios das

    agncias da ONU e em trabalhos de alguns investigadores (Eberwein, 2009), onde a sua

    referncia se limita questo da eficcia da RH, no contexto da concretizao dos

    Objetivos de Desenvolvimento do Milnio (ODM) (Collier & Dollar, 2000). De modo

    similar, os contributos relativos a eficcia na AH so referentes atuao da AH em

    setores especficos, como por exemplo, a sade (Fielding, et al., 2006), relativos a

    outras questes particulares como a responsabilizao dos doadores (Kenny, 2006).

    Adicionalmente, o conceito da eficcia na AH est implicitamente includo nas

    contribuies relativas questo da policentralidade da AH internacional

    (StephensonJr. & Schnitzer, 2009). A questo da eficcia isoladamente referida em

    relatrios oficiais de principais atores humanitrios, como seja Overseas Development

    Institute (ODI Instituto de Desenvolvimento Externo) e Global Humanitarian

    Assistance (GHA Assistncia Humanitria Global).

    Relativamente coordenao, as contribuies acadmicas circunscrevem-se aos

    pilares da RH, no de forma explcita (Wong, 2012) (Charles & Lauras, 2011).

    Analisando o estado da arte, denota-se que os conceitos centrais desta tese,

    nomeadamente, a RH, eficcia e coordenao so apresentados isoladamente. Por

    exemplo, os contributos de Stephenson Jr. & Schnitzer (2009), ou Fielding et al. (2006),

    no discutem a questo da eficcia, nem se debruam sobre a RH. Por sua vez, os

    escassos contributos sobre a RH so, na sua maior parte, descritivos limitando-se a

    enumerar os seus principais elementos, sem que se apresente uma investigao apoiada

  • 6 Introduo

    numa abordagem analtica sobre a importncia dos atores que a compem, mas tambm

    no estabelecem o objetivo de desenvolver uma investigao apoiada numa abordagem

    analtica (Sommers, 2000).

    Perante o estado de arte acima retratado, o presente estudo reveste-se de

    singularidade por abordar a temtica da RH e da eficcia da AH, raramente estudada at

    agora, conjugando-a com uma abordagem analtica que se desenvolve a partir do

    conceito da coordenao intra-humanitria. Um outro contributo produzido por esta

    dissertao resulta da experincia da autora no quadro da ONU, mais concretamente da

    realizao de um estgio de tempo integral entre 1 setembro de 2011 a 29 de fevereiro

    de 2012 (6 meses), na Joint Inspection Unit of United Nation (JIU), localizada no UN

    Office of Geneva.6

    A JIU, criada em 1966 (A/2150 (XXI)), o nico rgo

    independente de superviso externa com mandato de executar avaliaes, inspees e

    investigaes a todo o sistema da ONU.

    Como assistente de investigao, a autora, teve uma participao direta e ativa

    na elaborao de dois relatrios. O primeiro, intitulado Financiamento nas Operaes

    Humanitrias no Sistema das Naes Unidas, concedeu-lhe uma vasta introduo ao

    tema da AH, mais focalizada no seu financiamento. Sob a direo do Inspetor da JIU,

    Tadanori Inomata, integrou uma equipa j com dois anos de trabalho nesta temtica,

    onde desenvolveu tarefas de recolha e anlise de dados e pesquisa intensiva sobre fluxos

    humanitrios. O segundo relatrio, realizado j numa fase final do estgio a convite do

    Chairman, o Inspetor Mohamed Mounir Zahran, intitula-se Avaliao da UN-

    Oceans 7 , Esta segunda experincia permitiu aprofundar competncias ao nvel da

    recolha e seleo e anlise documental.

    Este perodo de estgio permitiu ainda contactar com vrios membros da ONU e

    agentes humanitrios com experincia direta no Haiti, como sejam agentes da

    International Labor Organization (ILO Organizao Internacional do Trabalho); e

    abriu portas para participar em reunies, conferncias, discusses que permitiram o

    acesso privilegiado a informao que foi incorporada nesta dissertao - ainda que se

    mantendo o compromisso de confidencialidade assumida nos termos de referncia do

    estgio.

    Tendo em vista a prossecuo dos objetivos a que se props esta dissertao est

    dividida em quatro captulos, para alm da introduo e concluso.

    6 Sendo este estgio integrado no programa Erasmus Placement.

    7 Uma organizao da ONU responsvel por todos os assuntos que dizem respeito aos oceanos, ou seja abrange um grande leque de

    problemticas, como a segurana, problemas ambientais, disputas territoriais.

  • 7 A Reforma Humanitria das Naes Unidas: Um Mecanismo Rumo Eficcia da Ajuda

    Humanitria? Caso do Haiti.

    O primeiro captulo discute o conceito de AH e oferece um conjunto de noes

    introdutrias sobre esta matria. Alm disso, este captulo explora o conceito de eficcia,

    partindo da constatao da sua relevncia na literatura especializada e no discurso

    humanitrio para progressivamente apresentar uma definio defendida de eficcia,

    assente na noo de coordenao intra-humanitria, que central para a confirmao da

    hiptese de trabalho.

    O segundo captulo explora os antecedentes impulsionadores da RH, tendo por

    base a anlise de documentos determinantes na construo desta reforma. Aqui

    caracterizada a RH na sua composio e objetivos, lanando-se assim os alicerces para a

    avaliao da eficcia da AH. neste mesmo captulo que introduzido e discutido o

    conceito de coordenao intra-humanitria luz dos contributos tericos de Guy Peters

    (1998) e Tomassini e Wassenhove (2009).

    O terceiro e ltimo captulo tem por objetivo transposio dos elementos

    conceptuais e tericos para o plano prtico, atravs do recurso ao estudo de caso, i.e.,

    prestao da AH no contexto do terramoto do Haiti em 2010. Este captulo culmina com

    a subdiviso de um caso singular em duas partes, atravs de uma avaliao sequencial

    de acontecimentos (George e Bennett 2005, 166) que permite a aplicao dos

    parmetros avaliativos da coordenao intra-humanitria e a subsequente concluso

    sobre a eficcia da AH prestada no contexto do terramoto haitiano.

    Na concluso, tendo por base os contributos tericos e o caso haitiano,

    ultrapassamos a falta de objetividade do conceito de eficcia no discurso humanitrio,

    identificando a coordenao intra-humanitria como fator determinante de uma AH

    eficaz. Nestes termos, a coordenao intra-humanitria apresentada como a resposta

    ao debate sobre a prestao de uma AH eficaz.

  • 8

  • 9 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    Capitulo I

    Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    Com o crescimento das necessidades da AH, em resultado do aumento de

    conflitos armados e insuficiente resposta por parte dos pases em desenvolvimento aos

    desastres naturais, os recursos disponveis para a AH so insuficientes. Nesta lgica, a

    eficcia da AH, torna-se um conceito central, atual e frequentemente presente nos

    discursos humanitrios tanto no mbito acadmico como de policy-making.

    Em 2005, mais de 100 doadores internacionais conjuntamente com os pases

    desenvolvidos, assumiram o compromisso de tornarem a AH mais eficaz. Na

    Declarao de Paris,8 determinado que () as reformas organizacionais, parecem

    cada vez mais ligadas agenda da eficaz na ajuda internacional (OECD, 2008, p. 5).

    Na prtica, a RH da ONU, que alvo de estudo, tem como elemento central do seu

    discurso a eficcia. Com isto, torna-se essencial perceber: O que significa eficcia?

    Como esta definida? Quem a define? este um princpio absoluto?

    Na ausncia de consenso e perante a ambiguidade do conceito da eficcia,

    neste captulo, ser abordada uma definio, que se apoia nos contributos da

    comunidade acadmica alicerada nas cincias quantitativas.

    A preponderncia deste conceito, eficcia, para a investigao em causa

    adicionalmente justificada com as novas realidades vividas pela comunidade

    internacional, que se v obrigada a estabelecer uma AH eficaz como prioridade,

    coordenando e consertando esforos produzindo, eventualmente, aes e declaraes

    como as acima citadas. Neste sentido, assistimos nos ltimos anos a uma maturao da

    noo de eficcia, devido sua importncia nas iniciativas da ONU, entre as quais

    destacamos a Cimeira do Milnio e a referida Declarao de Paris. Apesar da utilizao

    frequente e relevncia do conceito nem na comunidade acadmica, nem na de policy-

    makers da ONU, existe um consenso. Como resultado, as definies divergem

    consoante a perspetiva sobre a eficcia. Por essa razo debatemo-nos, ainda, com um

    vasto conjunto de definies.

    No presente trabalho a ausncia de consenso na definio de eficcia apresenta-se

    como um desafio. Para ultrapass-lo, o trabalho presta especial ateno aos parmetros

    especficos deste conceito central.

    8 Frum de Alto Nvel, Declarao de Paris sobre a eficcia da Ajuda ao Desenvolvimento, OECD, 2 Maro 2005.

  • 10 1.2 Ajuda humanitria no contexto da poltica internacional atual

    1.1. A eficcia e a ajuda humanitria: uma primeira aproximao aos conceitos

    operacionais

    A AH definida por um conjunto de aes desenhadas com o intuito de salvar

    vidas, aliviar sofrimento, manter e proteger a dignidade humana em situaes de

    catstrofe, sejam estas naturais ou provocadas pelo homem (i.e., conflitos armados). A

    AH resulta de um compromisso assumido pela comunidade internacional de atuar em

    situaes de emergncia, perspetivando uma atuao a curto prazo, governada pelos

    princpios de humanidade, neutralidade, imparcialidade e independncia.

    Os desafios e dificuldades hodiernos da AH no se restringem ao da ONU.

    Mesmo que a ONU possua um particular protagonismo nesta rea, o seu papel

    fundamental como ator humanitrio tem-se alastrado a vrias organizaes, como sejam

    as OI e as ONG. Estas ltimas detm capacidade de atuar mundialmente, priorizando a

    AH eficaz nos seus discursos e medidas de ao concretas, como protocolos,

    conferncias, resolues e misses.

    Os atores humanitrios confrontam-se com desafios significativos e complexos,

    numa era de mudana global em um mundo cada vez mais interdependente, que nos

    confronta com uma crescente desigualdade social e econmica (High-Level-Panel, 2006,

    p. 1). Os desafios da nova conjuntura internacional so caracterizados por um variado

    conjunto de fatores e dinmicas. Entre estes destaca-se, o incremento de ocorrncias de

    desastres naturais com um impacto crescentemente e devastador aos quais, muitos dos

    Estados hospedeiros, no tm capacidade de responder; bem como os conflitos armados

    denominados como novas guerras 9 que deixam de ser financiados e/ou

    impulsionadas apenas pelos Estados (como no caso das guerras clssicas) e passam a

    abranger, tambm, organizaes e grupos cuja atividade representa crime organizado

    e/ou terrorista. Estes grupos representam novos atores com interesses distintos, que

    desafiam as regras da poltica internacional, provocando no s um drstico aumento

    dos conflitos como tambm um aumento das necessidades da AH (Caldo 2006). Mais

    recentemente, surgiu um novo fator importante, a crise econmica e financeira, que tem

    embargado a disponibilidade de recursos para uma resposta eficaz s crescentes

    necessidades humanitrias (Taylor, et al., 2012, pp. 23-25). Estes desafios tm impacto

    9Este um conceito introduzido no debate acadmico por Mary Kaldor. Esta acadmica afirmou, em 2009, numa entrevista que o

    referido conceito tem como objetivo chamar a ateno da comunidade internacional para um novo paradigma dos conflitos

    contemporneos (2009).

  • 11 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    direto na AH, confrontando a comunidade internacional com o dilema de uma resposta

    adequada.

    O maior e mais atual desafio da AH, assenta na falta de capacidade de atingir os

    resultados mximos, com uma quantidade de recursos cada vez mais limitados. Ao

    contrrio de simplesmente atirar dinheiro para pases em desenvolvimento, h uma

    crescente preocupao de criar um sistema de AH que permita um desenvolvimento

    sustentvel e crescimento econmico num ambiente de confiana entre os intervenientes

    (doadores e recetores). Com o objetivo de potencializar os recursos disponveis da AH,

    a eficcia assume um lugar mais preeminente no discurso humanitrio. Alm disto, na

    ltima dcada foi tomado um conjunto de iniciativas, de vrias dimenses e escopo que

    refletem a ambio dos atores humanitrios potencializarem os resultados com escassos

    recursos, dos quais exemplificamos:10

    Objetivos de Desenvolvimento do Milnio (2000)

    (ODM Millennium Development Goals), Declarao de Paris (Paris Declaration)

    (Paris Declaration 2005), mais recentemente, a Global Partnership for Effective

    Developement Co-operation em Buzan (2011) (Parceria para o Desenvolvimento de

    uma Cooperao Eficaz), e ainda vrias iniciativas da UE (Unio Europeia)

    (Vysotskaya Guedes Vieira e Lange 2012).11

    A eficcia da AH apresenta-se neste estudo como conceito central, que exige ser

    definido. Em primeiro lugar, importante referir, que o termo eficcia nesta

    dissertao corresponde ao termo aid effectiveness utilizado nos discursos oficiais,

    produzidos em ingls. A traduo deste ltimo termo para portugus corresponde

    eficcia. Nos dicionrios de lngua portuguesa, eficcia definida como qualidade

    daquilo que eficaz (Guedes, 1996), e a capacidade de cumprir os objetivos

    pretendidos; eficincia; fora de produzir determinados efeitos (Dicionrio da Lngua

    Portuguesa, 581, 2009). Eficaz definido como algo que tem fora para produzir

    alguma coisa (Guedes, 1996), enquanto que a eficincia definida como fora ou

    virtude de produzir o efeito pretendido; poder de efetuar; eficcia. (Dicionrio da

    Lngua Portuguesa, 581, 2009). Tendo por base este enquadramento, observamos que os

    conceitos de eficcia e eficincia esto, por vezes, inter-relacionados ou mesmo

    equiparados no seu uso, conduzindo a uma tendencial fuso semntica dos conceitos.

    Uma vez que este estudo da AH se debrua sobre os seus recursos financeiros e

    econmicos, consideremos ainda o contributo das abordagens econmicas, que

    10

    O contributo destas iniciativas e respetivos documentos explorado mais frente neste Captulo. 11

    O novo sistema institucional da EU ps-Lisboa tambm visto como promissor para o aumento da eficcia da AH da EU.

  • 12 1.2 Ajuda humanitria no contexto da poltica internacional atual

    apresentam o conceito de eficcia e eficincia de uma outra forma. A definio de

    eficincia diz respeito s condies de utilizao de fatores numa determinada ao,

    enquanto a eficcia evidncia os fins e o grau de satisfao que medido pela

    consecuo dos objetivos pretendidos (Dicionrio de Cincias Econmicas, 1997).

    Apresentada a distino de eficcia e eficincia, como definido por um lado nos

    dicionrios e enciclopdias e por outro lado nas abordagens econmicas, justificaremos

    a definio construda e adotada neste estudo. Em primeiro lugar, aceite o conceito de

    eficcia resultante de uma traduo literal da palavra ingls effectiveness. Em segundo

    lugar, aceitamos uma distino entre o conceito de eficcia e de eficincia (contudo de

    forma divergente apresentada nas abordagens econmicas). Uma vez que o estudo

    desenvolvido se focaliza na avaliao dos recursos utilizados, sendo estes humanos,

    tecnolgicos ou monetrios, empenhados na aspirao de alcanar melhores resultados

    exequveis, a eficcia da AH incide sobre os meios e no sobre os fins per se. A eficcia

    na AH consiste numa utilizao de meios e recursos humanitrios, cada vez mais

    reduzidos, de forma a potencializar o mximo resultado da AH.

    1.2. Ajuda humanitria no contexto da poltica internacional atual

    A diminuio dos recursos disponveis para a AH, causados pelo aumento dos

    complexos desastres naturais e as referidas novas guerras, fomentam o paradigma da

    eficcia. Este paradigma conduz os atores humanitrios a equacionarem a criao de

    novos quadros estratgicos da AH, na procura do ponto de equilbrio econmico, i.e.,

    coadunando as doaes com as necessidades humanitrias. Desta forma, a diminuio

    de recursos necessrios para fazer face s crescentes necessidades demonstra a

    relevncia da eficcia no discurso humanitrio.

    Os dados proporcionados pela base de dados Financial Tracking Service (FTS

    Servio de Acompanhamento Financeiro),12

    apresentados no grfico I, referem-se a

    2003 a 2012, e facultam um conjunto de dados quantitativos. Estes dados demonstram a

    atual escassez de recursos na AH, e fundamentam a centralidade do conceito da eficcia

    na AH atual. No grfico I, esto representadas, em azul, as necessidades humanitrias

    que resultam dos flash appeals13 (apelos flash) e dos consolidated appeals14 (apelos

    12

    Servio coordenado pelo OCHA (2011). 13

    Uma ferramenta da estruturao de uma resposta coordenada em situaes de emergncia humanitria sbitas. acionada pelo

    coordenador humanitrio da ONU, em consulta com a equipe pas IASC e subscrita pelo Emergency Reflief Coordinator (ERC Coordenador de Socorro de Emergncia) e do IASC. O governo do pas afetado tambm consultado. (em

    (http://www.globalhumanitarianassistance.org/data-guides/concepts-definitions, consultado a 3 de maro de 2012)

  • 13 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    consolidados) bem como, em vermelho, as doaes/fundos humanitrios definidos pelo

    Humanitarian Common Found (HCF - Fundo Humanitrio Comum). Este ltimo, por

    sua vez, composto pelo Emergency Response Found15

    (ERF - Fundo de Resposta

    Emergente) e Central Emergency Response Found16

    (CERF - Fundo Central de

    Resposta Emergente). Destaca-se a diferena entre os recursos doados e o

    financiamento prestado, que est representado no grfico I, em percentagem das

    necessidades humanitrias satisfeitas.

    Grfico 1 Fluxos da ajuda humanitria (em milhes de dlares)

    Fonte: FTS, Finaniamento atravs dos apelos flash e os apelos consolidados (2003-2012). www.http://fts.unocha.org17

    O grfico 1 permite-nos inferir trs concluses relevantes para a situao da AH

    atual. Em primeiro lugar, verificamos que h um aumento do financiamento, ainda que

    com oscilaes, de $2.1m em 2010, $1.7m em 2011, e finalmente, $0.3m em 2012. Em

    segundo lugar, verificamos que tambm houve um aumento das necessidades

    humanitrias at 2010, vindo a aproximar-se em 2011 e 2012 aos valores de 2003. Em

    terceiro lugar, depreendemos que apesar de existir um incremento da AH, que desde

    2008 excede os $5.1m, contraposta anterior mdia de $3.5m (entre 2003 e 2007), este

    aumento da AH relativo. Isto significa que o crescimento de ambos os indicadores

    14

    Uma ferramenta para a estruturao de uma resposta humanitria coordenada para emergncias complexas e/ou principal do

    processo da apelos consolidado da ONU/OCHA (PAC). (em http://www.globalhumanitarianassistance.org/data-guides/concepts-

    definitions consultado a 3 de maro de 2012) 15

    Como posteriormente apresentado no Captulo II, estes fundos de emergncia operam em pases especficos. Dirigido pela ONU,

    eles so projetados para desembolsar os fundos rapidamente para uma srie de atores em resposta necessidade urgente e repentina

    (em http://www.globalhumanitarianassistance.org/data-guides/concepts-definitions consultado a 3 de maro 2012). 16

    Como ser desenvolvido no Captulo II, este um instrumento humanitrio criado pela ONU que recebe contribuies voluntrias

    e utilizado para respostas humanitrias de forma mais oportuna e confivel (What is CERF? 2007). 17

    Os dados de 2012 representam apenas informao recolhida at dia 3 de Setembro.

    0 2 4 6 8 10 12

    2003200420052006200720082009201020112012

    Financiamento Necessidades

    35 %

    64 %

    65 %

    72 % 71 %

    64 % 67 %

    67 %

    72%

    76 %

  • 14 1.2 Ajuda humanitria no contexto da poltica internacional atual

    (financiamento e necessidades) no paralelo. Como resultado, a satisfao das

    necessidades varia entre 76% e 72% entre 2003 a 2008.18

    As trs concluses apresentadas, que resultam da anlise quantitativa dos fluxos

    humanitrios, resultam em parte das circunstncias vividas pela comunidade

    internacional. O aumento do financiamento na AH deve-se, em grande parte, a um

    substancial aumento de doadores, que na ltima dcada quase duplicou. Este aumento

    do nmero de doadores, impulsionado pela ascenso das economias emergentes que,

    em parte, transpem a sua posio de recetores da AH dos pases ocidentais para se

    tornarem tambm doadores. Destacamos neste grupo a China, Coreia do Sul, ndia,

    Brasil, Arbia Saudita e Venezuela.

    Uma outra razo para o aumento do nmero de doadores so as contribuies

    privadas que tm atingido valores sem precedentes (sendo que em 2010 corresponderam

    a 57%, tal como comprovado pelo relatrio apresentado pelo GHA (2011)). Entre os

    fatores impulsionadores do aumento das contribuies privadas, destaca-se o fcil

    acesso informao, trabalho voluntrio e qualquer outra forma da participao na AH

    internacional (Tomassini e Wassenhove 2009, 4). Os fundos privados assumem tal

    relevncia que as vezes, -lhes conferida, em concorrncia com s grandes

    organizaes humanitrias, a capacidade de substituir a AH, incluindo a AH prestada

    pela prpria ONU (Stoianova 2012).

    Tambm se verifica uma proliferao dos atores humanitrios, nomeadamente

    das ONG, sejam elas nacionais ou internacionais, religiosas, civis ou governamentais.

    Muitas destas organizaes caracterizam-se pela boa vontade, mas tambm por escassos

    recursos e experincia humanitria. Com uma voz negativa critica-se, na comunidade e

    policy-makers, a inexperincia dos novos atores, que resulta em projetos inacabados ou

    mal geridos em suma, ineficazes. Muitas das ONG trabalham de forma independente

    e no apresentam qualquer disposio de cumprir as mesmas regras das OI. Esta posio

    das ONG leva, eventualmente, a uma ausncia de coordenao intra-humanitria e, no

    mnimo, duplificao dos esforos. Neste contexto, nem o aumento sem precedentes das

    contribuies privadas, dos doadores e das prprias ONG parece satisfazer as

    necessidades da AH.

    O aumento das necessidades humanitrias vai de encontro aos argumentos j

    apresentados nesta dissertao, que nos alertam para um novo panorama vivido pela

    comunidade internacional, que caracterizado por um incremento de catstrofes

    18

    Constatamos que existe uma tendncia inversa de 2009 a 2012, em que diminui dos 71% para 35%.

  • 15 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    naturais bem como novos desafios assinalados pelas, j referidas novas guerras

    (Kaldor 2006). Em confirmao deste facto, no grfico 1 sobressaem os valores das

    necessidades de 2003 e 2010, perodo que caracterizado primeiramente pela

    interveno no Iraque e o Tsunami na Indonsia e, mais tarde, em 2010, pelo terramoto

    no Haiti e as cheias no Paquisto. Alm disto, a anlise dos dados no grfico 1 permite

    confirmar a tese sobre a irregularidade no financiamento disponvel para a AH: os

    doadores, atores humanitrios e comunidade civil contribuem para o financiamento da

    AH movidos essencialmente pelas reprodues chocantes da realidade. Essas imagens

    dramticas e emotivas (Olsen, Carstensen e Hyen 2003, 112) invadem as casas dos

    potenciais doadores privados atravs dos meios de comunicao, produzindo uma

    resposta reativa da comunidade internacional face s necessidades emergentes

    noticiadas, que denominada como CNN Effect19

    . Este fenmeno confere aos media, e

    com mais pujana a televiso, a capacidade de influenciar a tomada de decises, que se

    traduz, na AH, em um aumento do financiamento humanitrio (Olsen, Carstensen e

    Hyen 2003).

    Finalmente, como ltima observao relativa anlise do grfico 1, verifica-se

    que o incremento do financiamento humanitrio no acompanha o aumento das

    necessidades humanitrias e ultimamente, no as consegue satisfazer. nesta perspetiva

    que se constri a afirmao, frequentemente referida, sobre a diminuio de

    contribuies humanitrias, quando na prtica existe o aumento das contribuies, que

    entretanto no corresponde s necessidades da AH. Prev-se que esta discrepncia

    tender a aumentar dada a crise econmica que tem tido um impacto global. As

    organizaes humanitrias, com preocupao, alertam para a necessidade de os

    doadores fortalecerem o seu apoio, suplicando que estes mantenham ou aumentem a sua

    participao (UNICEF 2010).

    Neste contexto o conceito de eficcia na AH no s assume cada vez mais

    relevncia como conquista um estatuto de prioridade no discurso humanitrio (Carbone

    2008).

    19

    Ressaltamos que o nvel de projeo da emergncia no assenta to s na cobertura feita pelos media. Poderiam ser apontados

    outros fatores como o interesse poltico, no caso dos Estados, assim como a fora e presena de ONGs e outras organizaes

    internacionais presentes no terreno.

  • 16 1.3. Ajuda humanitria mas eficaz a resposta da comunidade internacional em anlise (2003 a 2012)

    1.3. Ajuda humanitria mais eficaz: a respostada da comunidade internacional em

    anlise (2003 a 2012)

    A AH est concebida com o intuito de salvar vidas, aliviar sofrimento e manter a

    dignidade humana durante e no rescaldo das emergncias (Global Humanitarian

    Action), sendo esta distribuda de forma igualitria e com intuito de erradicar a pobreza.

    A analisada divergncia entre o financiamento e as necessidades da AH faz com que a

    eficcia seja introduzida como tema central, no sistema humanitrio da ONU enquanto

    ator predominante na AH. Nesta sequncia, o objetivo principal da RH tambm a

    eficcia da AH.

    Como referido, o conceito de eficcia no se restringe a uma organizao, ou a

    uma corrente terica dos estudos da AH, tendo uma presena crescente nos discursos e

    polticas humanitrias, como o caso da Declarao de Paris 2005, todos os Fruns de

    Alto Nvel, nomeadamente o de Roma (2002), o de Accra (2008) e o de Busan (2011).

    O discurso direcionado para a AH eficaz comeou a ser formalizado em 2000,20

    na Cimeira do Milnio das Naes Unidas (A/RES/55/2). Esta ambiciosa declarao

    reuniu, desde os principais atores econmicos mundiais aos pases mais pobres,

    formando um conjunto de 189 naes e 23 OI, tendo como objetivo reduzir a pobreza

    extrema (A/56/326). O documento final vincula os participantes a alcanar, at 2015, os

    objetivos traados, nomeadamente, o combate pobreza e fome, reivindicao da

    educao universal, promoo da sade infantil e a sade materna, promoo do

    combate ao HIV, sustentabilidade universal e a igualdade de gnero; estimulando, ao

    mesmo tempo, a parceria global para o desenvolvimento. Esta iniciativa abriu um

    caminho de evoluo na AH internacional sem precedentes. A ONU tem direcionado

    com sucesso, mesmo que no sempre reconhecido (Kluger 2004), todos os esforos

    nesta batalha rumo conquista de um mundo mais pacfico, prspero, justo e igualitrio

    como determinado a 26 de junho de 1945, na Carta das Naes Unidas.

    A Cimeira do Milnio da ONU de 2000, onde foram determinadas as chaves

    mestras dos objetivos caracterizadores de uma AH mais eficaz, assinalou o comeo de

    uma longa saga de medidas tomadas pela comunidade internacional no sentido de

    20

    Faz-se referncia a uma formalizao, pois a maioria das metas traadas no so novas. J nos anos 90 haviam sido referidas entre

    vrias conferncias globais, assim como poderiam ser apreendidas a partir do corpo de normas e leis internacionais. No entanto,

    mesmo que j anteriormente desenvolvidas e adotadas, apontada na Resoluo da Assembleia Geral, A/56/326, no ponto 7, que o

    rumo ao sucesso depende da vontade poltica dos Estados de concretizarem e implementarem os seus objetivos. este elemento que

    distingue esta iniciativa de qualquer outra.

  • 17 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    atingir este objetivo. Numa melhor esquematizao das iniciativas caracterizadoras da

    AH mais eficaz conduzida pela RH da ONU, como a conhecemos hoje, subdividimos

    este longo processo de mudana em duas etapas. A primeira etapa inicia-se em 2000,

    com a referida Cimeira do Milnio da ONU, e termina em 2005, sendo esta assinalada

    como uma etapa experimental e avaliativa, que neste trabalho ser denominada como

    conceo institucional da eficcia. A segunda etapa inicia-se em 2005 e prolonga-se

    at a data atual, sendo considerada uma etapa de ao, que denominada como

    institucionalizao do compromisso internacional e a acumulao de experincia.

    A) A conceo institucional de eficcia

    Esta primeira fase caracterizada como sendo o perodo de tempo em que

    tomado um conjunto de iniciativas internacionais que contribuem para um

    amadurecimento dos ODM procurando determinar as aes necessrias para que estes

    objetivos sejam alcanados. Oficialmente, a 6 de setembro de 2001, surge um

    documento oficial resultante de uma reunio da Assembleia Geral (A/56/326). Este

    documento vem dar seguimento aos ODM e explorar de que forma os compromissos a

    assumidos sero cumpridos. A priori, neste documento, a predisposio dos Estados

    para corajosamente tomarem decises difceis que conduziro a profundas reformas nas

    suas polticas, incluindo uma utilizao eficaz dos recursos, identificada como

    elemento chave. Esta medida tambm definida em sequncia do pensamento que

    nenhuma das metas traadas ser alcanada sem os recursos adicionais que advm dos

    Estados industrializados e da sua generosidade:

    O que necessrio, portanto, no mais estudos tcnicos de viabilidade.

    Em vez disso, os Estados precisam demonstrar a vontade poltica de

    cumprir os compromissos j assumidos e de executar estratgias que j

    funcionaram.21

    (A/56/326 p.7)

    Depreendemos que a eficcia da AH tem como precondio a vontade poltica

    dos Estados, que devem aprovisionar os seus recursos de forma a satisfazer as

    necessidades humanitrias. Neste sentido significativo que os atores humanitrios

    invistam ativamente na delimitao dos seus esforos.

    Em 2002, entre 18 a 22 de maro, em Monterrey no Mxico, para alm das

    consideraes abordadas anteriormente, tomada em conta a dimenso crtica da

    pobreza e o impacto desta para a paz. Destaca-se o facto que a AH, com bases histricas

    desde a Guerra Fria quando os EUA prestam assistncia destruda Europa, carece de

    21

    Traduo livre da autora.

  • 18 1.3. Ajuda humanitria mas eficaz a resposta da comunidade internacional em anlise (2003 a 2012)

    mudana. Afirmado pelo prprio George W. Bush na sua declarao em sequncia desta

    mesma conferncia:

    () o sucesso da ajuda ao desenvolvimento foi medido apenas pelos recursos gastos, e no pelos resultados alcanados. No entanto, despejar dinheiro em um status quo que pouco faz para ajudar os pobres, e pode realmente retardar o progresso da reforma. Temos de aceitar uma maior,

    mais difcil e mais promissora responsabilidade. Os pases desenvolvidos tm o dever no apenas de compartilhar a sua riqueza, mas tambm de

    estimular as fontes que produzem a riqueza: a liberdade econmica,

    liberdade poltica, o Estado de direito e os direitos humanos. 22

    (Bush 2002)

    Assimilamos que este apelo transcende o pedido de maior nmero de doaes,

    enquanto indica que qualquer quantidade de recursos insuficiente se no aliada s

    medidas efetivas de financiamento ao desenvolvimento do pas recetor. Tal como

    invocado na declarao de Lus Amado, Ministro dos Negcios Estrangeiros portugus,

    estas medidas efetivas esto vinculadas aos ODM, j assumidas pelos pases

    participantes (Amado 2002), que desta forma circunscrevem os mecanismos de ao e o

    seu compromisso.

    B) A institucionalizao do compromisso internacional e a acumulao da

    experincia

    Na segunda fase cresce a convico da comunidade internacional, que no

    importante a quantidade de ajuda e recursos despendidos, mas a forma como estes so

    distribudos e utilizados. Identificados os elementos chave para o desenvolvimento

    atravs das ODM, invocada a necessidade de assumir a eficcia na AH como

    prioridade. nesta segunda etapa, que os Estados superam a maior causa de insucesso

    no caminho rumo igualdade e eliminao da pobreza, que a ausncia da

    manifestao da vontade poltica dos Estados e do compromisso destes. Assim

    fundamentamos esta fase, como sendo a fase que ultrapassa a institucionalizao dos

    objetivos de aes humanitrias e de desenvolvimento, e que estabelece parmetros de

    ao prticos que comprometem os participantes.

    Em 2005, destacamos dois documentos, a Declarao de Paris em fevereiro e,

    meses mais tarde, de 14 a 16 de setembro, a Cimeira Mundial. Estes vinculam a vontade

    dos Estados a um compromisso real e objetivo, renovando as vontades de agir em

    conformidade com as metas traadas na Declarao do Milnio.

    22

    Traduo livre da autora.

  • 19 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    Na Declarao de Paris, destacamos com maior relevncia o facto de esta

    iniciativa originar inmeros acordos que representam milhes de dlares em

    investimento para que sejam alcanadas as ODM. As metas contidas nesta declarao

    so vistas como um impulso de um conjunto de aes determinantes rumo ao sucesso.

    Entre estas aes encontram-se vrias declaraes e conferncias analisadas abaixo.

    Com mais relevncia e apreo salientamos, primeiramente, a Declarao de

    Paris sobre a eficcia da ajuda ao desenvolvimento. O compromisso assumido por parte

    dos Estados vai alm de um mera conceo institucional da eficcia por, em primeiro

    lugar ter sido assumido um forte compromisso pelos pases signatrios.

    () empreender aes de longo alcance, monitorizveis, com vista a reformar as nossas modalidades de entrega e de gesto da ajuda, na

    perspetiva da reviso quinquenal da Declarao do Milnio e das Metas de

    Desenvolvimento do Milnio (Paris Declaration on Aid Effectiveness 2005.)

    Como a vontade sem ao no produz resultados, o insucesso da AH anterior

    Declarao de Paris assenta na falta de compromisso por parte dos Estados. Com o

    compromisso mais forte assumido neste documento, cresce a expectativa de ser

    alcanada uma AH mais eficaz. De forma objetiva e prtica, os objetivos traados neste

    documento resumem-se a cinco palavras-chave, que so: apropriao, alinhamento,

    harmonizao, gesto orientada para os resultados e responsabilidade mtua. Estes no

    so conceitos isolados da realidade da AH, mas devem tornar-se em prticos,

    especficos, e verdadeiros roteiros de atuao.

    O estudo da OECD sobre o progresso na implementao da Declarao de Paris,

    entre 2005 e 2010, declara: o progresso substancial, nas estratgias nacionais de

    desenvolvimento, mais que triplicou () resultado da elevada qualidade de

    monotorizao dos resultados de acordo com as Metas do Milnio (OECD 2011, 16).

    O mesmo documento comprova que de forma moderada os doadores tm cumprido as

    Metas, enquanto se denota ainda uma melhoria na qualidade do sistema de

    financiamento pblico, e melhoria da transparncia no financiamento (OECD 2011,

    16). Neste relatrio aplaudida a especificidade das metas e das avaliaes realizadas.

    Alis, adiantado que ao contrrio das reformas anteriores, que se mostram ambguas, a

    Declarao de Paris e o associado processo de monotorizao realizado nos Fruns de

    Alto Nvel teve um grande contributo no desenvolvimento de parcerias (OECD 2011, 3).

    Este referido processo de monotorizao e de avaliao nico, no sentido que pela

    primeira vez, resulta de uma harmonizao de vontades entre os doadores e recetores. O

    novo sistema incorpora as responsabilidades assumidas por cada participante um com o

  • 20 1.3. Ajuda humanitria mas eficaz a resposta da comunidade internacional em anlise (2003 a 2012)

    intuito de atingir os objetivos rumo ao desenvolvimento, assumidos na Declarao de

    Paris:

    1. Afirmar o princpio de soberania dos Estados; desta forma, os pases

    recipientes detm toda a responsabilidade de traar as suas prprias estratgias

    de desenvolvimento nacionais, assentando na ideia de que estes reconhecem

    quais as melhores, mais adequadas e viveis estratgias de AH, traando as

    respetivas prioridades e mecanismos de ao.23

    2. As estratgias de AH devem ser aceites e apoiadas pelos doadores, sejam

    estas organizaes ou pases, assentando na transparncia, dilogo poltico,

    programas de coordenao intra-humanitria, quadro de avaliao, reforo de

    sistemas nacionais de aprovisionamento e de capacidade de gesto das finanas

    pblicas.

    3. A determinao de objetivos e a sua aceitao deve ser resultado de uma

    harmonizao de vontades e uma agilizao de esforos, no apenas a nvel

    vertical, (i.e., doador/recetor), mas tambm a nvel horizontal (i.e., duas

    organizaes) que requer uma coordenao intra-humanitria entre os doadores.

    Esta coordenao deve possuir uma abrangncia tanto a nvel de avaliao de

    necessidades como de atuao humanitria.

    4. As polticas adotadas devem concentrar-se em resultados previamente

    determinados, para que todos os atuantes sigam a mesma estratgia de ao

    determinada por quadros de monotorizao e avaliao do desempenho.

    5. Compromisso de transparncia relativamente a todos os recursos afetos

    ao desenvolvimento.

    Com estes objetivos prticos e especficos, a AH segue mais determinada a

    alcanar a to afamada eficcia. A afirmao, consolidao prtica e avaliativa dos

    objetivos da Declarao de Paris reafirma-se nos Fruns de Alto Nvel, realizados

    posteriormente. Cada frum tem como objetivo avaliar o progresso da implementao

    dos objetivos da Declarao de Paris, constando as conquistas alcanadas e

    23

    A questo que imediatamente se coloca neste contexto se este princpio aplicvel no caso de o Estado recipiente carecer de um

    governo estvel e capaz de estabelecer uma estratgia nacional de AH. Nesta situao especfica, est contemplado, como parte do

    compromisso dos Estados doadores, estes tomarem todas as providncias necessrias para auxiliar o estabelecimento de estabilidade

    poltica.

  • 21 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    consolidando e reforando a execuo das medidas acordadas nas reas carentes e

    prioritrias.

    Entre os vrios Fruns de Alto Nvel, destacamos especialmente o 3 e o 4. Do

    3 Frum de Alto Nvel eclodiram posteriores iniciativas que contriburam para a

    consolidaro dos compromissos, desenvolvendo-os pormenorizadamente. Entre estas

    iniciativas citamos Bogot Statement (2010) que evidncia princpios de eficcia para

    cooperao Sul-Sul; Istanbul Principles (2010) que em sequncia do princpio da

    eficcia no desenvolvimento compreendem a participao da sociedade civil; e por fim,

    Dili declaration (2010), que reconhece que os maiores obstculos realizao das

    ODM so as fragilidades polticas, sociais e econmicas de um determinado pas, bem

    como a presena dos conflitos armados.

    Mais hodierno, o 4 Frum de Alto Nvel, de onde resulta a Parceria para a

    Cooperao Efetiva de Desenvolvimento de Busan, reconhece as metas alcanadas, mas

    com maior relevncia alerta para a necessidade de redobrar os esforos de AH. O

    compromisso assumido neste Frum considerado o ponto de viragem na coordenao

    intra-humanitria, que determinante para uma AH eficaz. Com a presena de ministros

    de pases desenvolvidos e em desenvolvimento, bem como das economias emergentes,

    sociedade civil, provedores da cooperao sul-Sul e a cooperao triangular,

    desenhada a estrutura de cooperao para o desenvolvimento de todos os atores

    humanitrios.

    A proliferao de iniciativas e o envolvimento dos pases e organizaes

    participantes da AH demonstra que a fase analisada na presente seo mais ativa: o

    compromisso poltico conduz a uma atuao prtica, o que por sua vez, nos aproxima

    mais do alcance dos objetivos. Na articulao de esforos rumo eficcia, iminente

    que este um percurso tortuoso e emaranhado, contudo, os atores procuram nas

    bifurcaes seguir a mesma direo conjeturando qual ser a mais curta e possvel

    direo para atingir as metas traadas em 2000.

    1.4. Perspetivas sobre a eficcia na ajuda humanitria

    A definio de eficcia na AH tem vindo a ser construda por um conjunto de

    documentos oficiais, conferncias e contributos acadmicos, dos quais se releva a

    coordenao intra-humanitria como meio determinante para alcanar a eficcia da AH.

    Dentre as definies da eficcia construdas, quer pelos atores humanitrios quer

    por acadmicos, diferenciamos duas abordagens: uma centrada diretamente nos desafios

  • 22 1.4. Perspectivas sobre a eficcia da ajuda humanitria

    da AH e outra focada numa anlise minuciosa de todas as condicionantes envolventes

    da AH. Cada uma destas abordagens subdivide-se consoante a perspetiva dos

    acadmicos e dos atores humanitrios. Sendo que a ltima, comporta a uma a perspetiva

    dos doadores e dos recipientes que so os benificirios diretos da AH, nomeadamente a

    populao e o governo. Ambas tm o mesmo objetivo, que determinar o alcance de

    uma AH eficaz.

    Os doadores so a principal fonte de financiamento de toda a AH, enquanto os

    recetores funcionam como o motor da AH. Desta forma, a eficcia na AH resultado

    da complementaridade destes dois grupos de atores. Contudo, estes definem a eficcia

    de formas distintas. Os doadores, i.e., os governos, as organizaes privadas, os civis, as

    OI e as ONG, tm o poder de controlar os recursos doados impondo os mecanismos e

    fins da utilizao dos mesmos. Idealmente a utilizao dos recursos deve ser

    determinada de acordo com as necessidades. Uma atuao que responda s necessidades

    eficazmente implica que doadores tenham uma forte e planeada presena na AH,

    investindo em projetos objetivamente delimitados. Contrariamente quando os doadores

    no tm uma presena ativa e se limitam arremessar dinheiro e recursos aos pases

    recetores, a eficcia na AH depende apenas dos pases benificirios, das suas polticas e

    investimentos. Independente do nvel de participao dos doadores, para estes a eficcia

    da AH medida consoante os resultados finais (cuja interpretao nem sempre coincide

    com a interpretao dos doadores), ou seja, a AH eficaz quando alcanados os

    objetivos propostos e ineficaz quando os objetivos no sejam alcanados.

    A perspetiva dos doadores da eficcia na AH levanta questes relativas

    responsabilidade do Estado recetor, sendo que de acordo com o documento oficial da

    ONU, E/1998/1, formalmente determinado que o Estado soberano detm a

    responsabilidade de prover todas as condies de paz e assistncia no seu pas.

    Entretanto, na incapacidade do pas responder s suas obrigaes, h possibilidade de

    AH ser prestada pela comunidade internacional, sobre a direo do pas hospedeiro.

    Dificuldades colocam-se comunidade internacional quando o Estado hospedeiro

    caracterizado por um sistema poltico precrio e no responde sua responsabilidade de

    coordenar a AH.24

    A perspetiva dos governos doadores, relativamente eficcia, est associado ao

    crescimento econmico, que por sua vez muitas vezes medido pelo PIB (Produto

    24

    A interpretao deste conceito detem alguma subjetividade, nesta dissertao definido por Estados caracterizados por um elevado nmero de populao a viver abaixo do limiar da pobreza, Estados falhados e Estados frgeis.

  • 23 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    Interno Bruto) do pas hospedeiro. O interesse dos governos doadores pelo crescimento

    econmico do pas recetor assenta na possibilidade futura de o Estado recetor representa

    um novo mercado importante de trocas comerciais bilaterais, que sero sustentadas na

    confiana gerada pela AH (Nowak-Lehmann, et al. 2009). Os economistas amestram

    que no h almoos grtis25, querendo com isto alertar que no pensamento econmico

    procura-se sempre um retorno. De um certo modo, este pensamento aplica-se AH: a

    emancipao do pas recetor influenciada pela existncia de uma continuidade das

    trocas comerciais (previamente estabelecidas), que permitem aos pases doadores

    beneficiar das novas oportunidades comerciais.26

    Criticamente denotamos a existncia de uma abordagem que advoga o PIB, ou

    outros indicadores do crescimento econmico do pas recetor, como sendo uma medida

    da eficcia da AH. Esta viso partilhada por muitos governos doadores e por alguns

    acadmicos, por exemplo Clemens, et al (2004). Concordamos com Kenny (2006), que

    afirma que no existe uma relao de causa efeito entre a AH e o crescimento

    econmico; caso contrrio, toda a AH recebida teria de ser convertida num investimento

    em reas que contribussem para o crescimento. Para alm do crescimento econmico,

    devem ser tomadas em considerao melhorias nas condies de vida, no sistema de

    sade, ensino, acesso a gua canalizada, novas tecnologias, energia eltrica e educao.

    Ao mesmo tempo, Kenny (2006) acrescenta que a AH pode conduzir os Estados

    recetores a se tornarem Estados-parasitas, que no apresentam indcios de crescimento

    econmico e padecem de uma incapacidade de satisfao das necessidades bsicas dos

    seus habitantes, configurando a necessidade permanente da AH. Para melhor

    compreender esta afirmao apresentamos a analogia de um estudante com carncias

    econmicas, considerando a sua postura perante os estudos e o financiamento destes.

    Como primeira opo, consideramos o caso de os estudos serem financiados por

    terceiros; como segunda opo, os estudos serem financiados pelo prprio aluno.

    Quando os estudos implicam um investimento, h um maior reconhecimento do valor

    25

    Este retorno no representa apenas uma expectativa de estabelecimento de relaes econmicas ma pode tambm resultar na

    imposio de valores generalizados, especialmente polticos. Apresentamos o exemplo da ONU, diferentemente do que acontece nas

    outras organizaes, como por exemplo, a UE em que se fala de intervenes humanitrias, em que enquanto uma mo satisfaz a s necessidades bsicas a outra promove uma srie valores gerais (i.e., respeito pela dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de Direito e direitos humanos) (Carbone, 2009). 26

    Paralelamente importa fazer referncia aos vnculos coloniais, que frequentemente determinam a ateno das antigas potncias

    colonizadoras para o investimento da ajuda nas suas ex-colnias, o que leva a que pases em desenvolvimento com laos coloniais

    sejam suscetveis de receber mais ajuda. No outro lado da moeda Fielding, McGillivray e Torres (2006 2) apontam que os laos

    coloniais tambm promovem trocas econmicas entre um pas desenvolvido e o seu ex-colonizador, evidncia que mostra que a

    assistncia humanitria no o nico instrumento relacionado a relaes coloniais com impacto no desenvolvimento econmico.

  • 24 1.4. Perspectivas sobre a eficcia da ajuda humanitria

    que este tem e por conseguinte, melhores resultados. Transpondo esta analogia para a

    situao em anlise, podemos perceber como no imprpria a afirmao de Kenny

    (2006), quando este acusa a AH de potencialmente provocar um declnio nos valores e

    qualidades democrticas das organizaes, promovendo a corrupo, polticas

    insustentveis, fraca performance econmica, uma reduo na participao civil

    (recebendo AH, reduzem-se contribuies de impostos, o que leva a um menor senso de

    responsabilidade), caminhando assim para as indesejveis situaes de dependncia do

    pas recetor da AH. Por sua vez, a ausncia de instituies que sejam fortes atoras

    humanitrias condiciona a eficcia da AH.

    Deveria ser referida ainda mais uma perspetiva sobre a eficcia, de acordo com

    qual, o parmetro central so os interesses prprios das organizaes participantes. A

    AH representa para as organizaes uma fonte de rendimento, um mercado de trabalho

    e um meio de subsistncia da prpria organizao o que pode constituir a razo

    principal para algumas organizaes a prolongarem a AH no terreno (Entrevista Nr 1).

    Por sua vez, o conceito de eficcia defendido nesta investigao, e apresentado

    na hiptese de investigao, assenta na coordenao intra-humanitria como

    fundamentado no seguinte subcaptulo.

    1.5. Abordagem da eficcia como resultado da coordenao intra-humanitria

    Depois da anlise da definio dada pela comunidade internacional

    problemtica da eficcia na AH, avanamos com a definio por ns defendida e

    fundamentada na hiptese de investigao que afirma: no contexto da RH da ONU, a

    coordenao intra-humanitria entre essa organizao e as ONG um fator

    determinante para a eficcia da AH prestada no terreno.

    A AH eficaz vista nesta dissertao como sendo uma AH onde exista um

    elevado grau de coordenao intra-humanitria, entre os participantes. O referido

    elevado grau de coordenao intra-humanitria por ns definido como sendo uma

    relao entre as organizaes que ultrapassa a partilha de informao e que implique

    uma poltica concertada (Vysotskaya Guedes Vieira/Lange 2012) (Peters 1998). Apesar

    de existirem contributos que incidem sobre a definio da eficcia na AH, verificamos

    lacunas quando se considera a eficcia atravs do prisma da coordenao intra-

    humanitria entre vrios atores humanitrios.

    A ausncia de concertao relativamente ao qual ser o caminho rumo a eficcia,

    conduz-nos a problemtica da duplicao de trabalho das organizaes e outros atores

  • 25 Capitulo I Desmistificando a ajuda humanitria noes introdutrias

    humanitrios, que est to manifestamente presente na AH contempornea. Entretanto,

    este argumento, no infundado ou ilgico, representa apenas uma pea de um

    complexo puzzle: O problema da coordenao intra-humanitria no se esgota na

    questo da eliminao da duplicao dos esforos. De qualquer modo, necessria uma

    autoridade que compile todos os elementos participantes como um todo, ou seja, que

    coordene todos os atores participantes da AH. Continuaremos a afirmar no decorrer

    deste trabalho que a ONU tm capacidade e poder para assumir esta posio e que esta

    representa um elemento fundamental na arquitetura da AH, apesar de (e tambm por

    causa de) todos os desafios com que a ONU se depara na AH. Primeiramente, no caso

    dos atores humanitrios, a busca pela eficcia passa por um conjunto de conferncias e

    acordos que procuram uma convergncia de ideias e aes. Transpondo estes esforos

    para a nossa perspetiva, poderemos dizer que este empenho caminha rumo

    coordenao intra-humanitria.27

    Quanto aos acadmicos, estes ao referirem os doadores e recetores, tal como

    supracitado, defendem que os objetivos so interdependentes e portanto requerem uma

    coordenao intra-humanitria entre ambos. A oferta de assistncia dos doadores

    demonstra um voto de confiana aquando os recetores assumem o compromisso de

    investir numa AH rumo ao crescimento econmico. Como resultado, este esforo exige

    um objetivo comum e requer tambm que ambas as partes se disponibilizem para

    recorrer aos meios necessrios para coordenar e atingir os objetivos, ou seja, que

    estejam preparados para uma coordenao intra-humanitria.

    Finalmente, quando se d primazia eficcia no desenvolvimento humano,

    demonstra-se a necessidade de exigir um esforo multidireccionado e uma constante

    repartio de recursos. Na organizao da AH rumo a eficcia, as reas de atuao so

    divididas por clusters, que so compostas por organizaes especializadas e capacitadas

    para potencializar o uso dos recursos disponibilizados. A existncia desta estrutura exige

    que seja superado o desafio de estabelecer uma coordenao intra-humanitria dentro e

    entre clusters.

    Verificamos na anlise das perspetivas da eficcia anteriormente apresentadas

    uma correlao com a posio assumida nesta dissertao onde a coordenao intra-

    humanitria o meio para uma AH eficaz.

    27

    Este um dos resultados que verificamos na reforma da ONU, em que se procura uma maior coordenao entre as organizaes,

    sendo estabelecidas prioridades e traados os meios pelos quais estas sero cumpridas.

  • 2.1. Os antecendentes institucionas reforma humanitria

    26

  • 27 Capitulo II Reforma humanitria

    Captulo II

    Reforma humanitria

    A nova conjuntura internacional requer uma mudana na arquitetura da AH, o

    que por sua vez exige uma adaptao por parte da comunidade internacional. Neste

    captulo estudar-se- a forma como a ONU leva a cabo a RH, que representa uma

    mudana na AH e que implica uma adaptao dos atores ao novo sistema da AH.

    Os recentes discursos humanitrios alertam para a nova realidade internacional

    que caracterizada por um conjunto dos fatores que incluem, a alterao da natureza

    dos conflitos, crescente nmero de emergncias e catstrofes naturais, incremento das

    necessidades, crescente nmero de atores internacionais, escassez de recursos e ainda

    uma crescente disparidade entre pases pobres e ricos (comummente caracterizada por

    Norte Sul). A alterao das dinmicas da poltica internacional e em especial a crise

    econmica e financeira mundial, tem repercusses devastadores em todos os pases mas

    em especial nos pases com indicadores de desenvolvimento abaixo da mdia.

    Tal como toda a comunidade internacional, a ONU afetada por esta nova

    realidade na qual se impe a necessidade de reforma como advoga Adinolfi, et al.:

    O mundo precisa de uma estrutura coerente, forte e multilateral com a ONU no centro, para enfrentar os desafios de assistncia ao desenvolvimento, a

    AH e meio ambiente em mundo globalizado. A ONU precisa de superar a

    sua fragmentao atual e se apresentar como uma. (2005)

    Com a anterior criao de um novo organismo de coordenao, IASC, o passo

    seguinte liderado por Jan Eg