a navegação do Rio Amazonas e a formação do estado brasileiro
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
VITOR MARCOS GREGRIO
UMA FACE DE JANO: A navegao do rio Amazonas e a formao
do Estado brasileiro (1838-1867)
So Paulo 2008
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA
UMA FACE DE JANO: A navegao do rio Amazonas e a formao
do Estado brasileiro (1838-1867)
Vitor Marcos Gregrio
Orientadora: Miriam Dolhnikoff
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria Social para obteno do
ttulo de Mestre
So Paulo 2008
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2
RESUMO
A questo da livre navegao nas principais bacias hidrogrficas sul-
americanas - Amazonas e Prata - constituiu ponto capital da poltica externa
dos pases da Amrica do Sul em meados do sculo XIX. Seu desenrolar,
assim, adquiriu importncia para a constituio dos novos Estados da regio,
na medida em que influa em questes vitais para a sobrevivncia destes,
como o acesso a regies do seu prprio territrio e o comrcio internacional.
No Brasil isto no foi diferente, e a questo da navegao a vapor na
bacia amaznica constituiu-se em um elemento fundamental para o processo
de construo do seu Estado nacional. Neste sentido, tornou-se necessria a
adoo de polticas que visassem fazer frente ao risco de perda da soberania
sobre a regio amaznica, supostamente ameaada pelo imperialismo das
potncias europias e Estados Unidos, e a inserir a regio da melhor forma
possvel no sistema econmico e poltico brasileiro e no contexto das trocas
comerciais internacionais.
Esta pesquisa objetiva analisar as discusses que se deram em torno de
tais polticas, principalmente no parlamento brasileiro. Desta forma, possvel
vislumbrar qual foi a margem de autonomia em poltica externa deste nascente
Estado, obrigado deste cedo a se confrontar com as maiores potncias da
poca na busca de um tnue equilbrio do qual dependia sua sobrevivncia.
Palavras chave: rio Amazonas, navegao a vapor, Brasil, imprio, parlamento, Cmara dos Deputados, Senado, Par, comrcio
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3
ABSTRACT
The question of free navigation of the two main south american
hidrographic bays Amazonas and Prata constitutes a central theme of
foreign policy for the continents countries in the mid 19th century. Its
unraveling was important on the establishment of the regions new states, to the
extent that it influenced in their own existence in such vital question as the
acess to distant places of their own territories and foreign trade.
This was not different in Brazil. The question of steam navigation in the
Amazonic bay constituted itself into a fundamental question on the process of
building the brazilian national state. In this course, it become necessary to
adopt political measures that animed at the protection of the sovereignty over
the amazonic region, supposedly threatenned by the United States and other
european imperialist states. Also, policies that would insert the region into
Brazils political and economic systems, as well as into the international trade
context.
This research aims at analising the discussions regarding such policies,
especially the ones that took place in the brazilian parliament. This way we can
have a glimpse at how much autonomy this newly formed state had in its
foreign affairs. Very early ir saw itself forced to face some of the great potencies
of the time in order to maintain a delicate balance of power in which depended
its survival.
Keywords: rio Amazonas, navegao a vapor, Brasil, imprio, parlamento, Cmara dos Deputados, Senado, Par, comrcio
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AGRADECIMENTOS
A pesquisa histrica, por definio, uma atividade solitria, que requer
horas de isolamento absoluto para que possa ser realizada a contento. Esta
no foi diferente. Entretanto, foram vrias as pessoas e instituies que
tornaram este trabalho vivel e muito mais agradvel, as quais enumero a
seguir, ainda que sob o risco de injustamente esquecer algum.
Primeiramente agradeo instituio do ensino pblico, responsvel por
minha formao desde a mais tenra idade, e a todos que se esforam e lutam,
s duras penas, por sua qualidade e para que as prximas geraes tenham a
oportunidade de continuar contando com ela.
Agradeo ainda FAPESP, que financiou esta pesquisa que, de outra
forma, no teria sido possvel concluir.
Miriam Dolhnikoff agradeo a orientao cuidadosa e sua presena
sempre constante. Ao seu trabalho e a nossas conversas sempre instrutivas e
agradveis devo muito do meu amadurecimento intelectual e pessoal. Seu
apoio foi fundamental para que esta pesquisa fosse concluda.
A Wilma Peres Costa e Gabriela Nunes Ferreira agradeo a orientao
dada quando da defesa da qualificao desta dissertao. Suas observaes
foram de fundamental importncia para a concluso deste trabalho.
Ao profissionalismo do pessoal responsvel pelo setor de consulta do IEB-
USP agradeo por muitos dos documentos e livros aqui citados.
Aos funcionrios da Biblioteca e Arquivo Pblico do Estado do Par,
especialmente Gorete, agradeo a prestatividade e eficincia com que me
disponibilizaram uma rica documentao que, de outra forma, no seria
possvel obter. O mesmo posso afirmar quanto aos profissionais encarregados
do setor de pesquisa do Arquivo da Assemblia Legislativa do Estado de So
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Paulo, responsveis por documentos e livros de fundamental importncia para
a realizao deste trabalho.
Aos amigos do Cebrap agradeo a recepo acolhedora e os vrios
momentos agradveis que passamos juntos.
Ao amigo Hernan Sez sou muito grato pelos debates verdadeiramente
enriquecedores, pela pacincia em ler vrias vezes os manuscritos deste
trabalho e pela companhia e apoio em todos os momentos desta pesquisa.
Seus comentrios e crticas foram de um inestimvel valor.
Aos amigos Thiago de Souza e Susan Ienne da Silva agradeo a amizade
fiel e sincera que sempre me devotaram, ainda que nos ltimos tempos nossa
convivncia tenha se tornado menos constante. Ainda que estejamos mais
distantes, seu apoio incondicional algo tangvel demais para ser esquecido
neste momento.
minha famlia devo uma formao moral irretocvel e agradeo aos
imensos esforos realizados para que, um dia, eu chegasse a este momento.
Seu afeto e compreenso foram a base indispensvel para que eu pudesse
alcanar este objetivo pessoal.
Cristina, esposa, amiga, companheira, cmplice inseparvel, agradeo a
compreenso e pacincia infinitas para suportar meus longos perodos de
isolamento em um escritrio de portas fechadas. Agradeo, tambm, pelo seu
sorriso sempre franco nos momentos em que a porta se abria. Seu
companheirismo incondicional foi sempre um porto seguro no qual encontrei
abrigo mesmo durante as piores tempestades.
A todos aqueles que contriburam para a realizao deste trabalho, e que
pelas limitaes de minha memria no esto aqui presentes, meus mais
sinceros agradecimentos, acompanhados dos mais sentidos pedidos de
desculpas.
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SUMRIO
Introduo 10
PARTE I: Projetos para a Amaznia 18
Captulo 1: As discusses parlamentares de 1840 e 1841 20
1.1. Os debates na Cmara dos Deputados 21
1.2. Os debates no Senado 32
Captulo 2: Os debates de 1853 no parlamento 61
2.1. Navegar para desenvolver 63
2.2. A Amaznia e o mundo 88
2.3. As disputas entre os poderes Executivo e Legislativo 102
2.4. As discusses no Senado 112
2.5. A reunio do Conselho de Estado de 1854 120
Captulo 3: A reforma contratual de 1857 134
3.1. Os debates parlamentares em torno da reforma contratual 134
3.2. A colonizao como estratgia de desenvolvimento da regio
amaznica 156
Captulo 4: As discusses pela abertura no parlamento (1864) 170
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7
4.1. O ministro Bellegarde e as negociaes pela abertura do rio
Amazonas 171
4.2. As discusses sobre a abertura na Cmara dos Deputados 174
4.2.1. Subvencionar ou no? O choque de projetos 177
4.2.2. Desenvolvimento regional versus integridade territorial:
temores de invaso estrangeira na Amaznia 192
4.2.3. Impor condies versus negociar tratados: como podero
navegar o Amazonas? 211
Captulo 5: Medidas do Poder Executivo na dcada de 1860 239
PARTE II: Esforos provinciais para navegar o Amazonas 251
Captulo 1: O governo do Gro-Par e a navegao do rio Amazonas 253
1.1. Antes da criao da provncia do Amazonas (1828-1850) 253
1.2. Auxlios do governo central 270
1.3. Aps a criao da provncia do Amazonas (1850-1867) 281
1.3.1. Criao da provncia do Amazonas 281
1.3.2. Esforos do governo provincial para navegar o Amazonas 295
Captulo 2: As negociaes para navegao do Araguaia/Tocantins 313
2.1. Interpretaes da historiografia brasileira sobre o regime poltico
do Imprio 313
2.2. Estratgias para navegar o Araguaia/Tocantins 317
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8
Concluso 326
Fontes 330
Bibliografia 332
-
9
A meus pais, que me mostraram o caminho a seguir;
E a Cristina, que aceitou segui-lo comigo.
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10
INTRODUO
A questo da navegao a vapor no rio Amazonas tem aparecido na
historiografia como um debate entre doutrinas. De um lado estariam os
defensores de uma postura conservadora com relao questo, afirmando
que o grande rio no poderia ser aberto s demais naes sob risco de perda
da soberania brasileira sobre a regio norte, e que, portanto, deveria continuar
fechado, disponvel apenas ao nascente empreendedorismo nacional a quem
caberia promover a sua riqueza e desenvolvimento. De outro lado, estariam os
defensores de uma postura mais liberal, favorvel abertura da navegao a
todos os pases como uma estratgia eficiente para fugir s limitaes do
capital brasileiro e promover o progresso da Amaznia de uma forma mais
rpida e completa.
A evoluo dos debates em torno da questo pode, de fato, ser estudado
sob este prisma. No entanto, no foi ainda analisado em toda a sua amplitude o
processo poltico de tomada de decises no Brasil em relao ao tema, de
modo a tom-lo como elemento importante no processo de construo do
Estado nacional. Isto faz com que, ainda que parcialmente correta, a
interpretao acima anunciada carea de maior aprofundamento, o que a
impede de levar em considerao as variaes argumentativas ao longo de
quase trinta anos de debates. Desta forma, fica parecendo que durante todo o
perodo em que o tema esteve em pauta os problemas a serem resolvidos
foram sempre os mesmos, bem como as solues apresentadas e as medidas
tomadas para atingi-las de uma forma mais eficiente. Esta anlise no peca
apenas pela inexatido. Equivoca-se tambm ao isolar a temtica da
navegao a vapor no rio Amazonas do contexto mais amplo, de formao de
um Estado nacional que, embora enfraquecido, tinha de lidar com questes
que poderiam, a qualquer momento, provocar sua fragmentao ou mesmo sua
extino.
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11
As anlises consagradas acerca das questes relativas bacia platina j
garantiram sua insero neste processo, atribuindo-lhe a importncia devida
em seu desenrolar. O mesmo, entretanto, ainda no foi feito com relao
bacia amaznica, no menos central para a formao do Estado brasileiro. De
fato, a liberdade de navegao, tanto na bacia amaznica como na platina,
constitui ponto de vital importncia para a compreenso da histria poltica da
Amrica do Sul em meados do sculo XIX, na medida em que engloba
questes fundamentais para a constituio dos diversos novos Estados recm
sados do regime colonial, tais como a das comunicaes com reas mais
afastadas de seus territrios, e a possibilidade de incremento do comrcio
internacional.
No caso brasileiro, que o foco desta pesquisa, a questo atinge maior
complexidade devido ao fato de, na qualidade de grande defensor da liberdade
de navegao nos rios da bacia do Prata, como forma de garantir as
comunicaes com provncias distantes e o acesso aos mercados da regio
platina, o Imprio adotava uma poltica de clausura completa da bacia
amaznica, justificada pelo temor da perda da posse daquela regio para
outros pases mais poderosos e imperialistas, como Inglaterra, Frana e,
principalmente, Estados Unidos. A soluo deste problema no era simples,
assim como no o era o processo decisrio que levaria ao seu desfecho,
imerso que estava em um contexto extremamente complexo e potencialmente
explosivo.
Este processo decisrio o objeto desta pesquisa. Atravs da anlise dos
debates ocorridos em ambas as casas parlamentares, bem como de sua
relao com as medidas tomadas pelo Poder Executivo central e pelo governo
provincial, pretendo verificar a real importncia da questo amaznica para a
formao do Estado nacional brasileiro, bem como analisar a organizao
institucional do Imprio atravs dos indcios apresentados pela documentao.
Para atingir estes objetivos preciso que se tome em considerao,
primeiramente, que a discusso em torno do tema da liberdade de navegao
fluvial no exclusividade brasileira, mas est inserida em um contexto mais
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amplo de formulao de princpios concernentes ao direito internacional. Neste
sentido, importante ter em mente que a formulao destes princpios tambm
envolve um processo decisrio, do qual os polticos imperiais, invariavelmente,
precisavam ter um aprofundado conhecimento.
Durante a poca colonial ficava exclusivamente a cargo do pas detentor
das margens dos rios decidir sobre sua navegao. Neste sentido, uma vez
garantida a Portugal a posse sobre as duas margens do rio Amazonas atravs
do tratado de Madri, assinado com a Espanha em 1750, ficou facultado quele
Imprio o direito de manter fechada a sua navegao valendo-se das
prerrogativas garantidas pelo sistema colonial. Durante este perodo, portanto,
as discusses sobre o Amazonas no se davam sobre o direito de navegar ou
no suas guas, mas sim sobre a posse do seu curso, disputado por Espanha
e Portugal e cedido ao ltimo em uma mesa de negociaes sem que,
entretanto, coubesse ao primeiro a posse de sua nascente, localizada na rica
colnia do Peru.
Segundo Sabia de Medeiros, os princpios que regulavam a navegao
de rios internacionais comearam a mudar em 1792, durante a Revoluo
Francesa1. Neste momento, passou a ser aceita a idia segundo a qual todos
os ribeirinhos teriam direito a navegar nas guas dos rios comuns a eles. Neste
sentido, quando em 1798 os mesmos franceses propuseram a livre navegao
de alguns rios europeus durante o Congresso de Rastadt, no lograram
alcanar qualquer xito em sua proposta.
A liberdade de navegao de rios internacionais s passou a ser
seriamente cogitada no Congresso de Viena de 1815, quando graas a uma
proposta francesa o rio Reno foi aberto navegao de todos os pases. Foi o
primeiro caso em que esta medida foi tomada, tendo servido de argumento,
durante algum tempo, queles que defendiam que a abertura do rio Amazonas
fosse decretada tendo-se por base este exemplo. Segundo o documento
assinado pelas potncias europias, a liberdade de navegao seria admitida
apenas sob a condio de que fosse aproveitada por navios mercantes, ficando 1 Fernando Sabia de Medeiros, A liberdade de navegao do Amazonas (relaes entre o Imprio e os Estados Unidos da Amrica), Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1938, pp. 13-20
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13
estipulado que as taxas de trnsito, devidas pelos barcos que navegassem no
rio, no poderiam ser aumentadas sem o concurso de todos os pases
ribeirinhos. Desta forma, buscava-se evitar que a criao de altos impostos
servisse de obstculo ao direito de livre navegao.
Outra medida de teor semelhante s seria adotada em 1839, quando o
Tratado de Londres instituiu a liberdade de navegao no rio Escalda, sem que
os Pases Baixos, contudo, abrissem mo do direito de cobrar as taxas que
julgassem necessrias dos barcos que navegassem no trecho do rio
pertencente ao seu territrio. Em 1856, pelo Tratado de Paris, assinado logo
aps o auge das presses internacionais pela abertura do Amazonas, adotou-
se a liberdade de navegao para o chamado trecho martimo do rio Danbio,
sem qualquer distino de direitos entre os pases ribeirinhos e os no
ribeirinhos. Segundo este tratado, seria criada uma comisso europia
encarregada de cuidar das obras tendentes a melhorar a navegao do rio e de
regular a forma pela qual se daria esta navegao. A jurisdio desta comisso
foi ampliada para outros trechos do Danbio em tratados internacionais
assinados em 1865, 1878 e 1883, tornando predominante o princpio segundo
o qual a livre navegao do rio deveria ser gerida por todos os pases
europeus, com iguais direitos, e organizados em uma comisso que, se no
era permanente, deveria ao menos durar por muito tempo.
Em 1885 a Conferncia de Berlim garantiu uma liberdade de navegao
ainda mais ampla para os rios africanos Congo e Nger. Segundo o documento
assinado pelas potncias europias, alm da partilha do continente ficava
acertado que mesmo em tempos de guerra as naes beligerantes poderiam
navegar em ambos os rios com fins comerciais. No caso do Congo, at mesmo
navios de guerra poderiam navegar em suas guas em tempos de guerra.
Novas ampliaes do princpio de liberdade fluvial seriam realizadas no
Tratado de Versalhes de 1919, quando foram completamente
internacionalizados todos os rios que corriam pelo territrio alemo, e na
Conveno de Barcelona de 1921, que ampliou as determinaes de Versalhes
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14
para todos os rios internacionais, mantendo, porm, sob estrita jurisdio dos
pases ribeirinhos o direito de realizar navegaes de cabotagem.
Percebe-se, portanto, que ainda que o princpio de liberdade fluvial dos
rios internacionais estivesse ganhando cada vez mais fora em meados do
sculo XIX, quando os debates sobre a questo se desenrolaram no Brasil, ele
ainda estava longe de se tornar dominante no direito internacional. At 1856
apenas os rios Reno e Escalda estavam abertos a todos os pases, fato que
seria citado nos debates parlamentares como uma razo poderosa para manter
a navegao do rio Amazonas restrita apenas aos ribeirinhos. Afinal, se nem as
maiores potncias do mundo haviam ainda adotado completamente este
princpio, porque o Imprio deveria faz-lo? Neste sentido, longe de ser
encarada como uma imposio externa ao governo imperial, a abertura da
navegao do rio Amazonas deve ser analisada como uma medida formulada
em mbito interno, como resultado de um processo decisrio ocorrido dentro
da administrao imperial e sujeita, portanto, a todas as vicissitudes inerentes
organizao institucional do regime poltico vigente no Brasil em meados do
sculo XIX.
Desta forma, configura-se uma situao na qual as polticas seguidas com
relao regio amaznica, ao mesmo tempo em que so influenciadas pela
organizao poltica do Imprio, tornam-se fundamentais para a sua
manuteno e posterior fortalecimento. Assim, surge a necessidade de levar
em conta este elemento, para que se torne possvel uma melhor compreenso
do impacto da questo da navegao amaznica para o processo de formao
do Estado nacional brasileiro.
Com relao organizao institucional do regime imperial, esta pesquisa
partiu de duas premissas fundamentais. Contrariando as interpretaes
consagradas na historiografia brasileira, considerou, primeiramente, que as
polticas adotadas pelo governo central foram formuladas seguindo a lgica de
um regime representativo. O que significa dizer que o parlamento foi um
espao efetivo de formulao das polticas nacionais por representantes eleitos
que, de um lado, estavam atentos aos interesses de seus representados
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15
(aqueles que influam no processo eleitoral) e, de outro, se viam na
contingncia de atuar de acordo com o que consideravam ser o interesse
nacional2.
A segunda premissa que fundamentou esta pesquisa foi a de que a
organizao institucional do regime imperial, alm de ser representativa,
constitua-se tambm em um arranjo de tipo federativo. Esta teoria formulada
por Miriam Dolhnikoff vai contra as interpretaes historiogrficas segundo as
quais o regime imperial brasileiro era pautado por um extremo centralismo,
onde as polticas eram formuladas exclusivamente no mbito do governo
central sem levar em conta as demandas das administraes provinciais.
Segundo a autora ocorria exatamente o contrrio. Seria da negociao intensa
com as elites regionais que o governo central retirava a legitimidade e a
capacidade de manter unidos a um nico centro provncias to dspares quanto
as que compunham o imprio brasileiro3.
Para verificar a validade destas duas premissas, e da hiptese central
desta pesquisa, segundo a qual a questo da navegao a vapor no rio
Amazonas teve importncia fundamental para o processo de construo do
Estado nacional, tendo sido seu processo decisrio fortemente influenciado
pelos debates ocorridos na arena parlamentar, optei por dividir este trabalho
em duas partes. Na primeira so analisados os debates entre os diferentes
projetos para o desenvolvimento da regio amaznica. Nestes debates,
ocorridos no perodo entre 1840 e 1866, tanto no parlamento quanto no Poder
Executivo, foram levantadas vrias questes sobre o tema, oferecendo a
dimenso exata da importncia que ele teve para a formao institucional do
pas. Como cada debate ocorrido em diferentes momentos privilegiou questes
diferentes, e apresentou argumentos diferentes para os temas que estavam
sendo retomados, foi feita a opo por dividir a primeira parte em captulos
especficos para cada momento do processo decisrio. Assim, o primeiro
2 Ver sobre o tema: Miriam Dolhnikoff, Francisleide Maia, Hernan Enrique L. Saez, Pedro Sales, Vitor Marcos Gregrio - "A reviso da historiografia poltica: representao poltica no Imprio", in: Adrian Lavalle (org) - O Horizonte Da Poltica: Questes emergentes e agendas de pesquisa, So Paulo, Cosac & Naify (no prelo). 3 Miriam Dolhnikoff, O pacto imperial origens do federalismo no Brasil, So Paulo, Globo, 2005, pp. 285-299
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captulo contempla as discusses parlamentares ocorridas em 1840 e 1841, na
cmara e no Senado, acerca do primeiro projeto apresentado por brasileiros
para a navegao a vapor do rio Amazonas. Da concluso deste debate
emergem indcios importantes da relao entre os poderes Executivo e
Legislativo, e do ideal de desenvolvimento que os polticos do momento
possuam a respeito da regio amaznica.
O segundo captulo trata dos debates ocorridos em 1853, na cmara e no
Senado, acerca do contrato de navegao assinado entre o governo central e
Irineu Evangelista de Souza para a criao de uma companhia com o objetivo
de introduzir a navegao a vapor no rio Amazonas. Diferentemente do que
ocorrera treze anos antes, o contrato foi assinado antes de ser apresentado ao
parlamento, o que gerou acalorados debates e atritos entre os poderes
Executivo e Legislativo. Como resultado, o contrato precisou ser reformado,
para que pudesse atender s deliberaes do parlamento, e o Poder Executivo
precisou recuar do que foi encarado pelos deputados e senadores como uma
invaso de jurisdio. Neste momento as presses internacionais pela abertura
do rio faziam-se mais fortes, e a reunio do Conselho de Estado, convocada
em 1854, oferece indcios importantes sobre os sentimentos que a questo
estava despertando no interior do governo imperial.
No captulo 3, so analisados os debates acerca da reforma contratual de
1857, requisitada tanto por Irineu Evangelista de Souza quanto pelo governo
imperial. Neste momento, percebe-se que o contrato reformado em 1854
apresentava obrigaes pesadas demais Companhia de Navegao do
Amazonas, encarregada de, alm de navegar o grande rio, fundar colnias de
povoamento em suas margens. O Poder Legislativo no hesitou ento em
rever suas posies acerca da atividade de navegao, expostas nos debates
de 1853, e em oferecer ao Poder Executivo a mais ampla autonomia para
reformar o contrato nos termos que lhe parecessem mais convenientes.
No quarto captulo chego aos debates parlamentares acerca da abertura
do rio Amazonas a todos os pases, ocorridos em 1864. Ser visto como os
antigos temores acerca do risco de perda da soberania brasileira na regio
-
17
eram j minoritrios no parlamento, ainda que no estivessem completamente
abandonados. Como resultado, o parlamento demonstrou que a maioria das
opinies era favorvel abertura sem, contudo, adotar uma postura definitiva
sobre a questo, uma vez que os debates foram indefinidamente adiados no
Senado em 1864.
No quinto captulo, so analisadas as medidas adotadas pelo Poder
Executivo para o desenvolvimento da regio norte na dcada de 1860, e como
ele manobrou para decretar a abertura em dezembro de 1866 sem que o Poder
Legislativo tivesse adotado uma postura oficial sobre o tema, e minimizando
os riscos de ser acusado por invaso de jurisdio como ocorrera treze anos
antes. A reunio do Conselho de Estado convocada quatro dias antes do
decreto foi importante nesse processo, pois ofereceu Coroa o ltimo indcio
de que ela precisava para concluir que no havia srias oposies medida
que estava prestes a adotar.
Na segunda parte, analiso os esforos que o governo provincial do Gro-
Par realizou com o objetivo de instituir, com meios prprios, a navegao a
vapor na regio amaznica. Para isto, a divido em dois captulos. No primeiro,
so analisados os reiterados esforos do governo paraense para instituir a
navegao a vapor no rio Amazonas e em outros, por vezes com o auxlio do
governo central. O objetivo avaliar at que ponto o governo provincial possua
autonomia para realizar estes projetos, de modo a acrescentar novos dados na
discusso acerca da segunda premissa deste trabalho.
No segundo captulo, analiso uma breve passagem das tentativas de
navegao dos rios Araguaia e Tocantins, intimamente relacionados bacia
amaznica por representarem um meio de ligao entre esta regio e as
provncias de Gois e Mato Grosso. Ainda que no seja um caso de medidas
adotadas com relao ao rio Amazonas, de fundamental importncia para o
entendimento das relaes existentes entre os governos provinciais e o central
em meados do sculo XIX.
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PARTE I
Projetos para a Amaznia
No mbito do processo de formao e consolidao do Estado nacional
brasileiro, a questo da navegao do rio Amazonas possui uma importncia
fundamental. Isto decorre do fato de agregar em si uma srie de problemas,
como a definio territorial do Imprio, a relao deste com outros Estados
no s vizinhos, mas tambm potncias mais ou menos distantes o
desenvolvimento e incorporao da regio amaznica ao conjunto do pas,
entre outros. Estes fatores, agregados, tinham tal importncia que a questo
acabou adquirindo posio destacada nas discusses acerca dos projetos
nacionais a serem implantados.
No desenvolvimento dos debates acerca deste assunto surgiram vrios
e por vezes opostos projetos de como esta atividade deveria ser realizada e
quais polticas deveriam ser adotadas para levar o progresso regio norte do
imprio. A defesa destes projetos e as reaes que eles geraram dizem muito
acerca do processo de constituio poltico-institucional do Estado brasileiro,
na medida em que representam diferentes formas de insero dessa rea no
conjunto nacional. Neste sentido, discutir sobre quem deveria instituir a
navegao a vapor no Amazonas, se esta atividade deveria ou no ser liberada
para todos os pases, ou sobre quais polticas deveriam ser adotadas para
povoar a regio e civilizar os indgenas significava mais do que defender
posturas partidrias ou pessoais, ainda que estes elementos no estivessem,
certamente, ausentes dos clculos realizados. Significava debater sobre o
processo de construo de um Estado unificado e de seu territrio, ainda
instveis o suficiente para correrem o risco de verem prematuramente
fracassados os esforos para sua formao.
Nos prximos captulos ser visto como estes projetos surgiram e foram
defendidos ao longo das quatro dcadas em que a questo amaznica
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19
provocou maiores preocupaes. O objetivo ser analisar as mudanas e as
permanncias das idias apresentadas, para que seja possvel vislumbrar o
desenvolvimento dos debates, nos poderes Legislativo e Executivo, no perodo
compreendido por esta pesquisa. A relao por vezes conflituosa entre estas
duas instncias do poder tambm ser analisada, na medida em que vier
tona nas discusses referentes ao objeto principal. Desta forma, ser possvel
ter uma idia mais precisa da importncia que a regio amaznica possua
para os encarregados do processo de construo nacional e dos esforos que
estes fizeram para legar para a posteridade um pas unificado e coeso, do
Prata ao Amazonas.
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Captulo 1 - As discusses parlamentares de 1840 e 1841
No ano de 1840, iniciaram-se os debates parlamentares a respeito de
uma proposta vinda de Belm, na qual alguns empresrios se propunham a
navegar com barcos a vapor os rios Amazonas, Tocantins, Solimes, Negro e
todos os seus afluentes, mediante a concesso de alguns favores por parte do
governo central. Este fato ganha maior importncia por ter sido a primeira
tentativa, aps a malograda formao da companhia de vapores de Nova York
exclusivamente para o desenvolvimento desta atividade, em 1826, - quando
enfrentou forte oposio no somente do parlamento como do governo
brasileiros4 - de estabelecimento da navegao a vapor no norte do pas com
capitas particulares. Foi, ainda, o primeiro projeto apresentado exclusivamente
por empresrios nacionais, uma vez que o nico estrangeiro do grupo Diogo
Sturz havia recebido a cidadania brasileira pouco tempo antes da proposta.
Outro elemento que contribui para a relevncia destas discusses o fato
de elas terem ocorrido em tons completamente diferentes na Cmara dos
Deputados e no Senado, demonstrando a grande autonomia de ambas as
casas na tomada das decises que lhes competiam. Os deputados gerais
prontamente reconheceram o projeto como de grande utilidade para o
desenvolvimento no somente da regio amaznica, mas de todo o pas,
enquanto para os senadores nem mesmo este reconhecimento foi consensual.
Como resultado, houve uma aprovao extremamente rpida e pacfica na
cmara, com a presena apenas de alguns debates acerca de questes
pontuais e uma franca minoria de parlamentares contrrios ao texto, enquanto
4 Sabia de Medeiros relata que A 14 de maro de 1826, o presidente da companhia dos paquetes de Nova York, da firma Le Roy, Bayard & Co. que constitura uma companhia intitulada Amazon Steam Navigation Company, anunciava ao ministro brasileiro em Washington, Silvestre Rebello, que ia despachar para o Par o navio a vapor Amazon, comandado pelo capito Clark, afilhado do juiz Thompson da Corte Suprema dos Estados Unidos, acompanhado de dois auxiliares, um deles Hefferman que falava correntemente o espanhol. Uma vez enviado este navio, que obteve permisso para descarregar no porto de Belm e s ento navegar nas guas do Amazonas, pretendeu seguir rio acima carregado, o que contrariava a poltica de fechamento do rio. Como conseqncia do ocorrido, a companhia requereu do governo imperial uma indenizao pelos prejuzos sofridos com a empreitada, o que lhe foi concedida somente em 1845, muitos anos aps ter ido falncia. Fernando Sabia de Medeiros, A liberdade de navegao do Amazonas (relaes entre o Imprio e os Estados Unidos da Amrica), Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1938, pp. 36-37
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no Senado as discusses revestiram-se de um carter muito mais conflituoso,
que acabaria provocando a suspenso do projeto ainda em primeira discusso.
Foi com vistas a esta diferenciao entre as duas casas que o projeto de
1840 foi analisado. Por demonstrar a independncia de opinies entre elas,
pode contribuir para a compreenso da participao deste poder no processo
de constituio do Estado nacional. Pode, tambm, ajudar a entender um
pouco o processo decisrio parlamentar, ao oferecer elementos interessantes
para a compreenso do papel reservado s duas casas no processo de
discusso dos diversos projetos apresentados. E possui posio destacada no
estudo da questo da navegao a vapor na regio amaznica, por representar
a primeira tentativa seriamente considerada pelo poder central de
estabelecimento desta atividade com a utilizao de capitais particulares.
1.1. Os debates na Cmara dos Deputados
Na sesso de 2 de junho de 1840 era lida na Cmara dos Deputados o
parecer da comisso de comrcio, agricultura, indstria e artes acerca do
requerimento apresentado por Joaquim Antnio Pinheiro, Nuno Nery de
Carvalho e Joo Diogo Sturz para navegao dos rios Amazonas, Tocantins,
Solimes, Negro e seus afluentes. Para a comisso,
bvias e incalculveis so as vantagens que receber o pas, da realizao de semelhante empresa, pois no s animar ela o comrcio e lavoura da mais frtil provncia do imprio, criando assim novas riquezas e capitais, mas difundir ao mesmo tempo, por povos incultos, o salutar benefcio da civilizao.5
Progresso econmico e civilizao dos ndios eram, portanto, as bases do
parecer favorvel da comisso ao projeto de navegao apresentado.
5 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 2 de junho de 1840, p. 567
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Pelo projeto, os empresrios comprometiam-se a introduzir linhas
regulares de vapor nos rios acima mencionados, mediante a concesso pelo
governo central de um privilgio de exclusividade vlido por quarenta anos.
Alm do privilgio, ficava concedido companhia que seria criada para a
realizao da empresa todas as minas de carvo ou qualquer outro mineral que
ela viesse a descobrir em sua regio de atuao nos primeiros dez anos de
atividade, alm de dez sesmarias de terras devolutas de uma lgua quadrada
cada uma, com a condio de que estas fossem utilizadas para a criao de
colnias habitadas por europeus. Nos primeiros trs anos de contrato, cada
sesmaria deveria ser ocupada por, pelo menos, vinte colonos, e ao final de sete
anos, cada lote de terra deveria estar ocupado por no mnimo oitenta pessoas,
ou vinte casais. Finalmente, o projeto previa que todos os barcos, mquinas e
demais utenslios, alm do carvo, que fossem importados pela companhia
estariam isentos de qualquer imposto pelo prazo de dez anos. Uma vez
comprovado, entretanto, que esta vantagem tivesse sido utilizada de forma
fraudulenta, ficariam os empresrios sujeitos perda do privilgio de
exclusividade e pena de devoluo do triplo do valor do objeto
contrabandeado.
Como obrigao, a companhia teria de apresentar, ao final do segundo
ano de vigncia do contrato, ao menos dois vapores em Belm para incio das
atividades, devendo este nmero ser acrescido de mais um vapor ao final do
quarto ano, e mais um a cada quatro anos, at o final do privilgio. A partir do
quinto ano de contrato os navios da companhia teriam a obrigao de tocar ao
menos trs vezes por ano em cada um dos principais portos dos rios
compreendidos na rea de concesso, devendo este nmero de viagens ser
aumentado para seis vezes a partir do sexto ano de contrato, dez a partir do
dcimo ano, e vinte a partir do dcimo quinto ano. Todas as localidades em
que os navios no tocassem o mnimo de vezes previstos no contrato por ano,
ficariam excludas do privilgio de exclusividade. Caberia aos navios da
companhia, ainda, o transporte de cargas, pessoal, mantimentos e tropas para
as regies compreendidas pelo contrato, sem o pagamento de qualquer
quantia para o governo. Os gneros transportados excluam, entretanto, a
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plvora, material de difcil manejo pela sua alta periculosidade. Toda a carga
remetida pelo governo no poderia exceder a vinte e cinco arrobas por viagem.
Deveriam ser transportados, ainda, at trs pessoas por viagem munidos de
autorizao do presidente da provncia e, a partir do quinto ano de contrato at
duzentos soldados por ano, em uma quantia no maior a vinte e cinco por
viagem.
O prazo para o estabelecimento das linhas de vapores era de dezoito
meses a partir da assinatura do contrato. Aps esse perodo o privilgio
perderia completamente sua validade, a menos que os empresrios
depositassem uma quantia de dez contos de ris em aplices do governo, o
que lhes garantiria um prazo adicional de um ano para o incio dos servios dos
primeiros vapores. Findo este prazo sem que o servio tivesse sido iniciado, o
privilgio seria definitivamente cancelado e o valor depositado passaria a
pertencer ao tesouro nacional.
Uma vez introduzidas as linhas, entretanto, os empresrios continuavam
com a obrigao de depositar dez contos de ris em aplices do governo
periodicamente. O primeiro depsito deveria ser realizado quando da
apresentao dos primeiros vapores para o servio; a partir de ento, a
companhia ficava obrigada a depositar mais dez contos de ris a cada cinco
anos durante a o perodo de vigncia do privilgio, devendo os pagamentos
cessarem quando chegasse ao fim o perodo contratado ou quando os
empresrios renunciassem exclusividade na navegao. Neste momento,
todo o dinheiro depositado pela companhia seria restitudo, acrescido dos juros
referentes ao perodo em que ficariam em poder do governo, e o contrato
assinado seria considerado nulo.6
Percebe-se com este projeto de contrato que os empresrios procuraram
cercar-se de todas as garantias possveis para minimizar os riscos de prejuzo
com a atividade. Isto se explica pelo fato de que ningum ainda havia
introduzido a navegao a vapor na regio amaznica, e de que existia o forte
temor de que uma rea to grande e despovoada poderia no trazer os
6 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 2 de junho de 1840, pp. 567-568
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resultados esperados com a adoo desta medida. Esta idia baseava-se no
argumento segundo o qual o comrcio teria condies de florescer apenas
depois de certo perodo, no qual a navegao regular incentivaria populaes
inteiras a migrar para as reas beneficiadas pela sua existncia.
Na Cmara dos Deputados o projeto foi relativamente bem aceito.
Discutido a partir da sesso de 27 de julho de 1840, teve cada um de seus
artigos analisados individualmente, sem que, na maioria deles, qualquer
oposio fosse levantada pelos deputados. Assim, na mesma sesso, foi
aprovado sem qualquer discusso o primeiro artigo, justamente o que concedia
o privilgio de exclusividade de quarenta anos para os empresrios iniciarem a
navegao a vapor nos rios Amazonas, Solimes, Tocantins, Negro e todos os
seus afluentes. Apenas o deputado por Minas Gerais, Francisco de Paula
Cndido7, afirmou que no teria problema algum em votar a favor da
concesso, desde que ela trouxesse vantagens para o pas.8 Neste momento,
portanto, a concesso de um privilgio de exclusividade para esta atividade
parecia no representar um problema essencial para os deputados, bem
diferentemente do que ocorreria no Senado dali a alguns meses, e na prpria
cmara dali a treze anos, quando nenhuma vantagem possvel parecia
convencer os debatedores da convenincia da aprovao de um privilgio
desta natureza.
Logo em seguida entrou em discusso o segundo artigo do projeto, que
acabou se tornando o mais polmico:
Artigo 2:- Assim os barcos, como as mquinas, utenslios, instrumentos e carvo de pedra, importados para o servio da companhia, sero livres de quaisquer direitos de importao por espao de 10 anos; mas logo que se prove por sentena que houve abuso desta concesso, ficar sujeita a mesma companhia,
7 Francisco de Paula Cndido (1805-1864) nasceu em Minas Gerais e se formou mdico e bacharel em Cincias. Exerceu o cargo de deputado geral por sua provncia natal em quatro legislaturas, entre os anos de 1838 e 1856. 8 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 370
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alm do perdimento (sic) do privilgio, a pagar fazenda pblica o triplo do valor do objeto fraudado.9
No deixa de ser ilustrativo o fato de que o artigo que foi alvo das maiores
crticas na cmara foi o relativo a concesso de iseno de impostos sobre a
importao dos artigos necessrios atividade da companhia. A maior fonte de
receita para o governo central eram justamente os impostos cobrados das
atividades de importao e exportao de mercadorias, e isentar quaisquer
produtos da cobrana destes direitos poderia, portanto, trazer conseqncias
para o tesouro nacional.10
E foi exatamente neste sentido que caminhou a maior parte do debate
sobre o segundo artigo do projeto. O primeiro a falar sobre ele foi o deputado
Paula Cndido, apenas para observar que a iseno da cobrana de impostos
sobre a importao do carvo em pedra j havia sido concedida por lei,
tornando-se, portanto, desnecessria sua meno no projeto em discusso.
Imediatamente obteve a resposta do deputado pela Bahia, Jos Ferreira
Souto11, que lembrou que a iseno havia sido garantida na lei do oramento,
de carter transitrio s teria validade no ano correspondente, e que portanto
deveria ser garantido que, mesmo perdida a validade da lei em questo, a
iseno continuasse valendo para a companhia a ser criada.12
Logo aps essas primeiras observaes formaram-se, nitidamente, grupos
de deputados com posies diferenciadas no tocante no s ao segundo
artigo, mas a todo o projeto. Neste sentido, o deputado por Pernambuco,
Venncio Henriques de Rezende13 foi um dos maiores crticos no apenas da
iseno da cobrana de impostos dos produtos a serem importados pela
9 Idem. 10 Miriam Dolhnikoff, O Pacto imperial origens do federalismo no Brasil, So Paulo, Globo, 2005, pp. 156-171 11 Jos Ferreira Souto (? 1864) nasceu na Bahia e dedicou-se magistratura. Foi deputado geral por sua provncia natal entre 1838 e 1856, e por Sergipe entre janeiro e fevereiro de 1864. Foi, ainda, presidente da provncia de Sergipe entre os anos de 1846 e 1847. 12 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 370 13 Venncio Henriques de Rezende (? 1866) nasceu em Pernambuco e dedicou-se ao sacerdcio. Foi o deputado por Pernambuco na Assemblia Constituinte de 1823 e, posteriormente, foi eleito para representar sua provncia natal em diversas legislaturas entre 1830 e 1852. Entre 1843 e 1844 chegou a representar a provncia de Minas Gerais, como suplente.
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companhia, mas tambm da concesso do privilgio de exclusividade na
navegao da regio amaznica pelo perodo de quarenta anos, conforme se
depreende pela transcrio de sua fala:
Acha excessivo o privilgio de 40 anos para a navegao por vapor no Amazonas; ali tudo est feito, no h um pau a cortar, no h cachoeira que rebentar, no h torrentes a vencer, em uma palavra, pode-se dizer que ali a companhia vai achar o ouro j depurado e em obra feita. Se, pois, vista destas consideraes acha excessivo o privilegio de 40 anos, muito mais excessivo acha a iseno dos direitos de todos os utenslios e mquinas que a companhia importar pelo prazo de 10 anos.14
Em outras palavras, para o deputado o projeto previa concesses demais
por parte do governo, que no se justificariam pelo pouco trabalho que a
companhia teria de realizar para iniciar suas atividades e comear a auferir
lucro dela. Fica, entretanto, a dvida sobre o porqu de Henriques de Rezende
voltar questo do privilgio de exclusividade quando o artigo que o previa j
havia sido aprovado, poucos minutos antes, sem qualquer oposio por parte
dele ou de qualquer outro deputado, e quando a questo a ser discutida era,
teoricamente, to somente a iseno de impostos para importao das
ferramentas da companhia.
Outra preocupao para Henriques de Rezende era o risco de o governo
central realizar enormes concesses a uma companhia que, ao final das
contas, poderia se estabelecer em qualquer outro pas, tornando-se
estrangeira, e continuar controlando um comrcio imenso e vital para o imprio.
Ressurge aqui o mesmo temor que havia feito com que o parlamento no
aprovasse a formao da companhia de navegao de New York para a
realizao da navegao a vapor no Amazonas, em 1826, e que iria
permanecer ainda por algum tempo, at se desvanecer completamente pouco
antes do decreto de abertura de dezembro de 1866. A histria dos debates em
14 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 370
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torno da navegao a vapor do Amazonas , inclusive, indissocivel da histria
dos temores de perda da posse brasileira sobre a regio.
Henriques de Rezende utilizou, ainda, mais um argumento para opor-se
ao projeto em discusso. O fato de o projeto no prever limites mximos para a
navegao a vapor que poderia ser realizada pela companhia, conjugado
iseno de impostos de importao de que gozaria, poderia criar uma situao
na qual ela se veria beneficiada diante dos produtores nacionais atravs da
prtica do contrabando de produtos j cultivados no pas, configurando uma
situao de enriquecimento de estrangeiros em prejuzo dos brasileiros:
No se tendo marcado o limite alm do qual a companhia no pode navegar, receia que se v estabelecer um comrcio clandestino, de contrabando, com os nossos conterrneos de gneros semelhantes aos nossos, como cacau, acar e algodo, que a companhia por meio de colonos que vai introduzir, poder fazer cultivar. Acresce que ficando a companhia isenta dos direitos de importao de que trata o artigo 2, poder importar livremente durante o tempo do seu privilgio, engenhos de descaroar e enfardar algodo, mquinas para o fabrico do acar, engenhos de serrar madeira, etc.; do que resultar que ningum poder dar estes gneros por to baixo preo, nem competir com ela; vindo portanto o privilgio a ser uma peia para a indstria do pas para os nacionais.
(...)
No daqueles que lamentam que os estrangeiros se enriqueam no Brasil: pelo contrrio, estima e deseja que assim acontea, mas no sendo as vantagens somente para os estrangeiros, mas tambm para o pas.15
Os estrangeiros aos quais Henriques de Rezende se referia eram, na
verdade, um nico homem, o ltimo da relao de empresrios interessados
em criar a companhia para navegao da regio amaznica: Joo Diogo Sturz.
Nascido na Prssia em 1800, naturalizou-se brasileiro e exerceu intensa
atividade empresarial no pas. Autor de alguns textos sobre a introduo de
15 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372
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mquinas no Brasil e sobre a economia nacional, foi um dos scios da
Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional, nas dcadas de 1830 e 184016, e
do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, chegando a ser nomeado, por
essa poca, cnsul geral do Brasil na Prssia e comissrio do imprio na
exposio geral da indstria realizada em Londres, em 1851.17
Mesmo com esse largo currculo, que o levou a ser nomeado Cavaleiro da
Ordem da Rosa, Sturz no foi capaz de convencer todos os parlamentares de
sua capacidade de gerir a empresa que estava propondo, como ficou claro no
apenas com o discurso de Henriques de Rezende, mas, principalmente, com a
ferrenha oposio que seu projeto enfrentou no Senado. No era a primeira
vez que intentava formar companhias de navegao. Em 1832 j havia
recebido do governo um privilgio de exclusividade para empreender a
navegao a vapor do rio Doce no Esprito Santo, para o que fundou uma
companhia responsvel pela encomenda do primeiro vapor brasileiro, em
183718, e em 1840 havia ainda oferecido outra proposta para fazer o mesmo
nos principais rios do Maranho, com a qual no foi bem sucedido.19 A
oposio ao projeto baseada no argumento de que a companhia que seria
criada para a navegao do Amazonas pertenceria a um estrangeiro nada mais
do que o mesmo temor, apresentado em outros termos, de que semelhante
atividade acabasse sendo monopolizada por pessoas sem comprometimento
com a criao das condies necessrias para o desenvolvimento do imprio.
Paula Cndido tambm no aprovava o projeto em discusso. Em seu
discurso, afirmou no ser contra a criao de companhias como a que estava
em discusso, mas entendia que a facilidade com que o governo imperial e o
parlamento estavam concedendo grandes favores aos seus mentores acabava
16 Andr Luiz Alpio de Andrade, Variaes sobre um tema: a Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional e o debate sobre o fim do trfico de escravos (1845-1850), Dissertao de mestrado defendida no Instituto de Economia da Unicamp, 2002, p. 85 17 Sacramento Blake, Diccionrio Bibliographico Brazileiro, vol. 3, p. 414 18 Vera B. Alarcn Medeiros, Incompreensvel Colosso: A Amaznia no incio do Segundo Reinado (1840-1850), Tese de doutorado apresentada Faculdade de Geografia e Histria da Universidade de Barcelona, 2006, p. 54 19 Revista Trimensal de Histria e Geographia do Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 2 srie, Tomo 3, 1848, p. 360
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fazendo com que muitas empresas fossem levadas a efeito sem, contudo,
alcanarem os objetivos propostos.20
O deputado pelo Rio de Janeiro, Joaquim Francisco Vianna21 foi outro que
se ops ao projeto, por entender que as companhias at ento criadas no pas
com incentivos do governo teriam como objetivo principal apenas a
especulao financeira, e no o atendimento das necessidades nacionais. O
representante fluminense ops-se tambm ao segundo artigo, formulando em
termos claros um problema que preocuparia mesmo os deputados favorveis
formao da companhia:
Observa que estas isenes de direitos sempre so muito funestas s rendas pblicas, porque nada h mais fcil do que mandar vir grande poro de enxadas, machados, e tudo quanto se pode chamar utensis [sic], despachar no Par livre de direitos, e exportar para o Rio de Janeiro e outras provncias. Nos apuros em que estamos, com um dficit, e com as despesas que ho de crescer agora, no prudente dar lugar a contrabando acobertado com a lei. (...) Observa que quase impossvel provar o que se diz na ltima parte deste artigo, isto , se com efeito os utenslios no so para a companhia.22
O contrabando interprovincial surge, portanto, como uma das principais
preocupaes dos deputados gerais neste momento, uma vez que a
concesso da iseno da cobrana de impostos sobre as ferramentas
importadas pela companhia no Par abriria uma brecha para o comrcio
interno destes produtos, diminuindo, assim, as rendas auferidas pelas
alfndegas externas do pas. Ferreira Souto foi o nico deputado que discordou
desta idia. Para ele, no seria correto argumentar contra o artigo baseando-se
na possibilidade do cometimento de abusos por parte dos funcionrios da
20 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372 21 Joaquim Francisco Viana (1803-1864) nasceu no Rio de Janeiro e formou-se bacharel em matemtica, filosofia e Direito. Foi eleito deputado geral por sua provncia natal em quatro legislaturas entre 1834 e 1852. Em 1853 elegeu-se senador pela provncia do Piau, cargo que ocupou at a morte. Entre 1843 e 1844 foi ministro da Fazenda no gabinete conservador de Honrio Hermeto Carneiro Leo e Paulino Jos Soares de Souza, entre outros. 22 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 371
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companhia, uma vez que, se estes fossem honestos o contrabando no se
faria e a iseno representaria um bem para o pas.23 Quanto possibilidade,
apontada por Henriques de Rezende como um motivo para se opor ao artigo,
de que a companhia utilizasse o privilgio para comprar as mquinas
necessrias para o estabelecimento de uma produo barata de acar e
algodo na regio amaznica, Ferreira Souto a entendia como positiva para o
pas, e uma forte razo para, ao invs de se fazer oposio ao artigo, defend-
lo. A lgica adotada pelo deputado era a seguinte: mesmo que houvesse
abusos no uso da iseno concedida, o estabelecimento destas culturas na
regio amaznica iria provocar o aumento dos direitos coletados com a
exportao dos mesmos, uma vez que no haveria mercado consumidor
suficiente, por enquanto, nas regies includas no privilgio.24 Novamente a
argumentao girou, portanto, em torno dos impostos coletados com as
atividades comerciais internacionais do imprio, fonte importante da
arrecadao tributria.
Ferreira Souto fazia parte do grupo de deputados que participaram da
discusso defendendo o projeto, e que era mais numeroso do que o dos
deputados que o atacaram. Entretanto, dentre estes deputados favorveis ao
contrato com a companhia ele foi o nico que apoiou a iseno de impostos
para as ferramentas que ela teria de importar. Todos os demais o atacaram
como uma brecha aberta para o contrabando de produtos cuja importao
recolhia grandes receitas para o governo.
Neste sentido, o deputado paraense ngelo Custdio Correia25, mesmo
apontando para o fato de que a navegao do Amazonas no seria to simples
quanto pressupunham os opositores do contrato e que, portanto, a concesso
do privilgio de exclusividade era plenamente justificvel, concordou com o
risco de contrabando representado pela iseno dos direitos de importao das
ferramentas a serem utilizadas pela companhia:
23 Idem 24 Idem, p. 372 25 ngelo Custdio Correia (? 1856) nasceu no Par e formou-se bacharel em Direito. Foi eleito deputado geral por sua provncia natal em trs legislaturas, entre 1838 e 1854.
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Sem dvida passando o artigo como est o contrabando ser grande; a ttulo de se importar instrumentos e utenslios para a companhia, importar-se-o para especulaes mercantis.26
No mesmo sentido foram as falas de Joaquim Manuel Carneiro da
Cunha27, deputado pela Paraba, que afirmou aceitar que a iseno fosse
apenas para as mquinas recentemente descobertas28. Paula Cndido
opositor moderado do projeto - preferiu propor, como meio de dificultar o
contrabando, a necessidade de autorizao prvia do presidente do Par para
a realizao de qualquer importao, por parte da companhia, que se valesse
da iseno. Com isso imaginava criar um mecanismo pelo qual o presidente
verificaria a real necessidade dos utenslios a serem importados, impedindo,
assim, a compra de mercadorias com a finalidade de revend-las mais tarde.29
O deputado pelo Rio de Janeiro, Jos Clemente Pereira30 apenas apoiou e
reforou, em um curto discurso, os argumentos de Ferreira Souto.31 Ao final do
debate, o segundo artigo acabou sendo aprovado, mas com uma emenda que
buscava garantir que as mquinas e ferramentas contempladas pela iseno
seriam apenas as necessrias para mover os vapores da companhia.32 Com
isso, os deputados buscavam diminuir os riscos de contrabando sem, no
entanto, deixar de conceder aos empresrios um favor entendido como
importante para a realizao da navegao a vapor da regio amaznica.
Quanto ao restante do projeto, foi defendido por ngelo Custdio e
Carneiro da Cunha, alm de Ferreira Souto e Clemente Pereira sempre com os
mesmos argumentos. Para eles, a navegao do Amazonas e dos demais rios
26 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 371 27 Joaquim Manuel Carneiro da Cunha (? - ?) era proprietrio de terras, e foi eleito deputado pela provncia da Paraba para cinco legislaturas, entre os anos de 1830 e 1852. Foi tambm representante da mesma provncia na Assemblia Constituinte de 1823. 28 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372 29 Idem 30 Jos Clemente Pereira (1787-1854) nasceu em Portugal e dedicou-se magistratura. Foi conselheiro de Estado e presidente do Tribunal do Comrcio. Foi, tambm, eleito deputado geral pelo Rio de Janeiro em trs legislaturas, entre 1826 e 1841. Em 1843 elegeu-se senador pelo Par. Foi ministro da Justia, do Imprio, dos Negcios Estrangeiros, da Fazenda e da Guerra no stimo gabinete do Primeiro Reinado. No segundo gabinete do Segundo Reinado exerceu os cargos de ministro da Guerra e da Marinha. Era membro do partido Conservador. 31 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372 32 Idem, p. 373
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no seria to fcil quanto era possvel supor, devido existncia de obstculos
cuja remoo requeria a concesso dos favores concedidos. Alm disso, pela
prpria situao de runa da economia paraense (a provncia ainda enfrentava
os ltimos conflitos relativos Cabanagem) a atividade demoraria muito a dar
lucros aos empresrios, que precisariam, portanto, de garantias de que o
capital investido no se perderia. Uma vez iniciada a navegao, a regio se
desenvolveria e o imprio ganharia com isso, como j havia sido demonstrado
pelo sucesso da introduo da navegao a vapor em vrios rios da Amrica
do Norte.33
Convencida por estes argumentos, a Cmara dos Deputados aprovou,
sem nenhuma discusso, os demais onze artigos do projeto, remetendo-o
comisso de redao em 17 de agosto de 184034. Na sesso de 20 de agosto
do mesmo ano, a redao final do projeto foi lida pela mesma comisso, sendo
imediatamente aprovada.35 O texto foi, ento, submetido ao crivo do Senado.
1.2. Os debates no Senado
As discusses no Senado foram bem mais acaloradas do que as que
haviam ocorrido na cmara. Enquanto entre os deputados era quase geral o
sentimento de que o projeto trazia vantagens para o pas, ao iniciar uma
atividade fundamental para o desenvolvimento da regio amaznica, entre os
senadores havia uma grande ciso entre os que aceitavam este argumento, e
os que defendiam que o projeto, ao invs de auxiliar no desenvolvimento do
pas, serviria para atravanc-lo.
Na sesso de 22 de maio de 1841, nove meses aps a aprovao pela
Cmara dos Deputados, o senador por Minas Gerais, Nicolau Pereira de
33 Idem, p. 371-373 34 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 17 de agosto de 1840, p. 639 35 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 20 de agosto de 1840, p. 658
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Campos Vergueiro36, leu diante da assemblia o parecer que comisso de
comrcio da qual fazia parte elaborou acerca do projeto. Faziam parte da
comisso, ainda, os senadores Manoel Incio de Melo e Souza37, tambm por
Minas Gerais, e Francisco de Paula Souza e Melo38, por So Paulo. O voto lido
diante dos demais senadores era direto: segundo o parecer, o projeto no
deveria ser aprovado.
Os argumentos apresentados pela comisso eram trs. O monoplio de
quarenta anos concedido aos empresrios era longo demais, e portanto no
poderia ser aprovado, ao passo que os demais favores concedidos eram
aceitveis, desde que estendidos a todos os interessados na atividade. Alm
disso, sua concesso seria inconstitucional, uma vez que em seu artigo 179,
pargrafo 24, a constituio garantiria o livre exerccio de qualquer indstria por
quaisquer brasileiros, ficando aberta uma exceo, no pargrafo 26, em favor
dos inventores, que poderiam gozar de privilgios de exclusividade sobre suas
invenes. As mesmas disposies estariam presentes tambm em uma lei de
28 de agosto de 1830, que tambm estaria sendo descumprida pela concesso
do privilgio. Finalmente, a comisso entendia que nenhuma atividade poderia
ser desenvolvida sem a livre concorrncia e, neste sentido, longe de auxiliar no
desenvolvimento da regio amaznica, o projeto analisado representaria um
entrave a que este objetivo fosse alcanado.39
Percebe-se de sada, diferenas substanciais entre os pareceres emitidos
na cmara e no Senado. Naquele a indicao era de que o projeto fosse
36 Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859) nasceu em Portugal e doutorou-se em Direito. Foi um dos polticos mais influentes do sculo XIX, tendo sido eleito representante de So Paulo nas Cortes de Lisboa, em 1822, e na Assemblia Constituinte, em 1823. Entre 1826 e 1828 foi deputado geral, tambm por So Paulo, quando foi escolhido senador por Minas Gerais, cargo que ocupou at sua morte, em 1859. Foi membro da Regncia Provisria (1831) e ministro do Imprio e da Fazenda durante a Regncia Trina Permanente. No stimo gabinete do Segundo Reinado foi ministro do Imprio e da Justia. Era membro do partido Liberal. 37 Manoel Incio de Melo e Souza (1781-1859) nasceu em Portugal e formou-se em Direito. Exerceu os cargos de deputado geral por Minas Gerais entre 1826 e 1829 e entre 1835 e 1836, quando elegeu-se senador pela mesma provncia. Foi, ainda, presidente da provncia mineira entre 1831 e 1833. 38 Francisco de Paula Souza e Melo (1791-1851) nasceu em So Paulo e formou-se em Direito. Foi eleito representante de sua provncia natal na Assemblia Constituinte (1823), e deputado geral nas duas primeiras legislaturas do Imprio (entre 1826 e 1833). Em 1833 foi eleito senador, tambm por So Paulo, cargo que ocupou at a morte em 1851. Foi ministro do Imprio no stimo gabinete do Segundo Reinado (1847) , alm de se tornar presidente do Conselho de Ministros no nono gabinete (1848) no qual ocupou, ainda, as pastas do Imprio e da Fazenda. Era membro do partido Liberal. 39 Anais do Senado, sesso de 22 de maio de 1841, pp. 159-160
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aprovado, por representar a chance de introduzir uma empresa de grande
importncia para o pas. Neste, o projeto era rejeitado por ser anticonstitucional
e por representar um entrave ao mesmo desenvolvimento que a comisso da
Cmara dos Deputados imaginava que iria acelerar.
Iniciada a primeira discusso na sesso de 28 de maio de 1841, foi adiada
por uma questo burocrtica. Enquanto os senadores por Alagoas, Marqus de
Barbacena40 e pelo Piau, Luiz Jos de Oliveira Mendes41 j demonstravam sua
inteno de rejeitar o projeto em primeira discusso, Vergueiro lembrava da
convenincia de discuti-lo,uma vez que no se pode rejeitar um projeto da
outra cmara sem que entre em discusso, e Vasconcellos, juntamente com
Saturnino, mostravam j sua simpatia pela idia, e pediam para que o projeto
inteiro fosse impresso ainda no o tinha sido no Senado para que pudesse
ser discutido convenientemente.42 A primeira discusso a respeito de qualquer
assunto, tanto na cmara quanto no Senado, tinha por finalidade nica avaliar
a convenincia ou no do texto apresentado, tendo em vista os interesses
primordiais do pas. Neste sentido, a inclinao de alguns senadores para
rejeitar o projeto de navegao a vapor do Amazonas e dos demais rios antes
mesmo de sua impresso e, portanto, ainda durante a primeira discusso,
demonstra que, para eles, o contrato tal qual estava proposto no era passvel
de melhorias nem de correes, pois atentava contra interesses fundamentais
do imprio devendo, portanto, ser prontamente rejeitado. Postura frontalmente
contrria adotada pela maioria dos deputados gerais, e que iria ser
predominante entre o grupo de senadores contrrios medida.
Ao final destes primeiros discursos foi submetida votao dos senadores
a deciso de imprimir ou no o projeto em discusso. Tendo a maioria decidido
40 Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta (1772-1842), marqus de Barbacena, nasceu em Minas Gerais e foi marechal do exrcito, alm de Conselheiro de Estado. Foi eleito deputado pela Bahia na Assemblia Constituinte (1823) e senador por Alagoas na primeira legislatura (1826), cargo que ocupou at 1842. Foi, ainda, ministro do Imprio no terceiro gabinete do Primeiro Reinado, cargo que ocupou novamente no quarto gabinete. Foi, ainda, ministro da Fazenda no quarto gabinete do Primeiro Reinado e no oitavo gabinete do Primeiro Reinado. 41 Luiz Jos de Oliveira Mendes (1779-1851), primeiro baro de Monte Santo, nasceu na Bahia e formou-se em Direito. Foi eleito senador pelo Piau em 1826, tendo exercido os cargos de vice-presidente do Senado entre 1841 e 1847 e de presidente do Senado entre 1847 e 1851. 42 Anais do Senado, sesso de 28 de maio de 1841, pp. 268-270
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positivamente, ficou o debate adiado at que a impresso se realizasse.43 Os
discursos sobre o assunto foram retomados apenas na sesso de 3 de junho
de 1841, com a leitura do projeto e do parecer da comisso. Imediatamente
formaram-se dois grupos de senadores. Luiz Jos de Oliveira Mendes, Nicolau
Pereira de Campos Vergueiro, o marqus de Barbacena, Francisco de Paula
Souza e Melo, Antnio Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti de
Albuquerque44, Cassiano Esperidio Melo e Matos45 e Antnio Pedro da Costa
Ferreira46 mostraram-se contrrios ao projeto, e defenderam que ele fosse
rejeitado j na primeira discusso, por no ser til aos interesses do pas. Eram
todos representantes de provncias nordestinas, exceo de Vergueiro
Minas Gerais e Souza e Melo So Paulo. J para Jos Saturnino da Costa
Pereira47, senador por Mato Grosso, Manuel Alves Branco48, senador pela
Bahia, Vasconcelos49, Francisco Carneiro de Campos50, eleito pela Bahia, e
Caetano Maria Lopes Gama51, senador pelo Rio de Janeiro, o texto em
43 Idem, p. 270 44 Antnio Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti de Albuquerque (1797-1863), visconde de Albuquerque, nasceu em Pernambuco e foi oficial do exrcito, alm de Conselheiro de Estado. Foi um dos polticos mais influentes do Imprio, tendo sido eleito deputado geral por sua provncia natal entre 1826 e 1837, e senador, tambm por Pernambuco, em 1838. No Poder Executivo, exerceu os cargos de ministro da Fazenda, Imprio, Marinha, e da Guerra em diversos gabinetes entre 1830 e 1863. Era membro do partido Liberal. 45 Cassiano Esperidio Melo e Matos (1797-1857) nasceu na Bahia e formou-se em Direito. Foi deputado geral por sua provncia natal entre 1830 e 1833, tendo sido eleito senador pela mesma provncia em 1837. 46 Antnio Pedro da Costa Ferreira (1778-1860), baro de Pindar, nasceu no Maranho e formou-se bacharel em cnones. Foi deputado geral pelo Maranho entre 1830 e 1834. Em 1837 foi eleito senador pela mesma provncia, a qual presidiu entre 1835 e 1837. 47 Jos Saturnino da Costa Pereira (1773-1852) nasceu na colnia do Sacramento e exerceu o cargo de sargento-mor de engenheiros. Foi eleito senador por Mato Grosso em 1828, tendo sido presidente da mesma. Foi, ainda, ministro da Guerra em 1837. 48 Manoel Alves Branco (1797-1855), 2 visconde de Caravelas, nasceu na Bahia e formou-se bacharel em Leis. Poltico influente do sculo XIX, foi Conselheiro de Estado e exerceu o cargo de deputado geral por sua provncia natal entre 1830 e 1833, tendo sido eleito senador pela mesma em 1837. Foi, ainda, ministro da Justia, dos Negcios Estrangeiros, do Imprio, e da Fazenda em diversos gabinetes entre 1835 e 1848, tendo sido o primeiro a presidir o Conselho de Ministros, entre1847 e 1848. Foi membro do partido Liberal. 49 Eram senadores, em 1841, Jos Teixeira da Fonseca Vasconcelos, eleito por Minas Gerais; Antnio da Cunha Vasconcelos, eleito pela Paraba; e Bernardo Pereira de Vasconcelos, senador por Minas Gerais. Como nos Anais do Senado a referncia somente a Vasconcelos, sem qualquer outro nome de acompanhamento, no foi possvel distinguir com clareza a qual destes trs senadores referem-se os discursos em questo. 50 Francisco Carneiro de Campos (? 1842) nasceu na Bahia e formou-se em Direito. Foi representante de sua provncia natal na Assemblia Constituinte de 1823 e eleito senador, ainda pela Bahia, em 1826. No Poder Executivo exerceu os cargos de ministro dos Negcios Estrangeiros em diversos gabinetes, entre 1830 e 1832. 51 Caetano Maria Lopes Gama (1795-1864), visconde de Maranguape, nasceu em Pernambuco e formou-se em Direito. Foi o representante da provncia de Alagoas na Assemblia Constituinte de 1823, deputado geral por Pernambuco entre 1826 e 1829 e por Gois entre 1830 e 1833. Em 1839 foi eleito senador pelo
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discusso trazia benefcios ao pas, e por isso deveria, ao menos, ser aprovado
neste estgio inicial dos debates.
Para Oliveira, o primeiro a discursar contra o projeto, a comisso j teria
analisado todas as suas vantagens e desvantagens antes de emitir o seu
parecer, o que dispensaria, portanto, novas discusses. A situao era clara e
dispensava maiores anlises: os empresrios estavam querendo tornar-se
senhores do Par, depois do Mato Grosso, em troca do transporte de alguns
malotes, recrutas e algumas arrobas de gneros, o que de forma alguma
justificava a concesso que se pretendia realizar. Para ele, no existiam
vantagens para o pas no projeto, mas somente para os empresrios, que
ganhariam a posse sobre uma imensa regio, valendo-se de um direito
concedido exclusivamente aos inventores no pargrafo 26 do artigo 179 da
Constituio. Entretanto os empresrios, ao contrrio do que alguns senadores
queriam demonstrar, no seriam inventores de nada, uma vez que no haviam
descoberto os rios que pretendiam navegar.52 A concluso de Oliveira,
portanto, s poderia ser uma, que ele formulou de forma enftica:
Senhores, no gastemos mais tempo com semelhante projeto; ele deve cair em primeira discusso, a fim de nos ocuparmos de coisas mais teis.53
Nicolau de Campos Vergueiro, um dos relatores da comisso de
comrcio, tambm atacou o projeto buscando demonstrar as razes pelas
quais a comisso o rejeitou. Segundo o senador, a comisso entendeu que a
melhor forma de impulsionar uma atividade vital para o pas seria favorecendo
a concorrncia entre empresrios interessados em realiz-la, e no conceder
um privilgio de exclusividade capaz de inviabilizar completamente qualquer
disputa: Rio de Janeiro. No Poder Executivo exerceu os cargos de presidente das provncias de Gois (1824-1827), Rio Grande do Sul (1829-1831) e Alagoas (1844-1845). Foi tambm ministro dos Negcios Estrangeiros, do Imprio e da Justia em diversos gabinetes entre 1839 e 1862. Exerceu, ainda, o cargo de Conselheiro de Estado. Era membro do partido Liberal. 52 Anais do Senado, sesso de 3 de junho de 1841, pp. 18 e 28 53 Idem, p. 18
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Quando se quer promover um ramo de indstria, cumpre facilitar a concorrncia e conceder favores, a fim de que aparea o maior nmero possvel de empreendedores; deve-se mesmo procurar meios para que mais de uma companhia concorra a exercer essa indstria; portanto, pareceu comisso um contra-senso que, ao mesmo tempo, se trate de desenvolver uma indstria, e se conceda semelhante privilgio a uma companhia proibindo assim que todos os mais concorram para o mesmo fim. Como pois se pode promover a navegao por vapor nesses lugares, permitindo-se somente a essa companhia exerc-la, e proibindo o mesmo a todos os mais? este um meio de tolher o desenvolvimento da indstria e no de a fazer prosperar.54
Ficava, desta forma, formulado um dos princpios centrais da teoria liberal
clssica, segundo o qual o principal motor de qualquer atividade seria a
concorrncia laissez faire sem a qual seria invivel desenvolver qualquer
tipo de atividade em qualquer lugar do mundo. A interferncia do Estado
deveria ocorrer, neste sentido, apenas para garantir que esta concorrncia se
desse nos termos mais favorveis possveis, o que, para Vergueiro, significava
oferecer vantagens e favores a todos que se dispusessem a realizar a
navegao. Como veremos adiante, essa teoria no foi unanimemente aceita
entre os senadores, o que acabou acirrando o debate.
O privilgio de exclusividade, entretanto, poderia ser aceito desde que se
referisse a alguma atividade nova no pas, ainda no introduzida por ningum,
uma vez que neste caso o empresrio em questo seria considerado o inventor
da empresa. Volta-se, neste momento, ao pargrafo 26 do artigo 179 da
Constituio, que garantia este direito. Os empresrios em questo, entretanto,
no se encaixariam nesta categoria, uma vez que a navegao a vapor j
estaria plenamente disseminada pelo pas e os rios que pretendiam navegar
eram j conhecidos. Neste sentido, alm de prejudicial ao pas, o projeto seria
inconstitucional. Alm do mais, segundo o senador as tentativas de incentivo
de empresas mediante a concesso de privilgios de exclusividade j teriam
trazido resultados to negativos para o pas que ficava difcil entender porque o 54 Idem, p. 20
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governo imperial insistia nesta estratgia. As companhias que anteriormente
receberam este privilgio tambm haviam apresentado grandes planos,
prometido grandes vantagens, mas haviam rapidamente desaparecido por
conta da m administrao, sem oferecer os resultados prometidos ao pas55:
tempo de conhecermos quanto so fantsticas estas grandes empresas. Apresenta-se planos gigantescos; mas, afinal, o resultado efmero; algumas chegam a brotar e fazer circular algum capital nos locais que se estabelecem; mas sua m organizao faz com que caduquem e deixem de produzir os resultados prometidos: os empreendedores apresentam sempre grandes planos, vantagens extraordinrias, etc., para animar os capitalistas e concorrer com seus capitais; porm depois tudo desaparece.56
A companhia que se intentava criar para realizar a navegao a vapor na
regio amaznica seria, ainda, pequena demais para realizar as obrigaes
previstas no projeto. Pelo texto em discusso, a companhia ficava obrigada a
aumentar progressivamente a quantidade mnima de vapores em atividade na
regio concedida, at chegar ao nmero de onze, j ao final do perodo de
vigncia do privilgio de exclusividade. Para Vergueiro, era bvio que essa
quantidade de barcos no seria suficiente para navegar toda a regio com a
quantidade mnima de viagens prevista no projeto. Com isso, acabaria
ocorrendo de a companhia atuar apenas nas reas mais lucrativas, nas quais a
menor quantidade possvel de obras teriam de ser realizadas, deixando todas
as demais abandonadas. Ao mesmo tempo, por ser a nica a realizar a
atividade poderia cobrar o preo que quisesse por ela, arruinando toda a
navegao amaznica. O senador afirmou que at aceitaria a concesso do
privilgio a empresrios que se propusessem a realizar todas as obras
necessrias para facilitar as comunicaes pelos rios da regio amaznica,
uma vez que estas demandariam muito tempo e dinheiro. No seria, entretanto,
este o caso da companhia em questo, que estaria interessada apenas em
55 Idem, pp. 19-22 56 Idem, pp. 21-22
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lucrar com uma atividade fcil recebendo, para isso, grandes favores e
privilgios do governo imperial.
Vergueiro argumentou, ainda, contra os sacrifcios que a companhia teria
de realizar para no perder o privilgio, caso no iniciasse suas atividades no
prazo estipulado:
Uma das garantias que oferece a empresa que quando, dentro do prazo marcado, no apresenta as barcas designadas, par obter mais tempo de espera far o depsito de dez contos de ris em aplices. Veja-se se semelhante disposio no causa riso! Que pena sofre a companhia por tal maneira? Nenhuma. Essas aplices, em lugar de estarem guardadas na gaveta dos empresrios, iro para o tesouro, continuando a vencer juros! Eis os grandes sacrifcios a que empresa se comprometer para obter mais tempo de espera!57
O senador considerou um absurdo uma clusula que previa um sacrifcio
por parte dos empresrios que mais se parecia com um investimento, uma vez
que o pagamento da multa pelo atraso no incio da navegao voltaria para a
companhia ao final do privilgio corrigido pelos juros vigentes no perodo em
que o dinheiro estivesse nas mos do governo. Se ficassem guardados nos
cofres de algum banco, ou fossem investidos em outras atividades, segundo o
senador, certamente estes recursos no ofereceriam tantos rendimentos aos
seus donos.
Para Vergueiro a navegao a vapor dos rios amaznicos realmente era
uma atividade muito til, que traria grandes vantagens para o pas. Seria
exatamente por esse motivo que ele afirmou ser contra a concesso de um
privilgio que se tornaria, invariavelmente, um srio obstculo ao
desenvolvimento do norte do pas, principalmente no momento em que a regio
acabava de sair de um perodo conturbado e comearia a se recuperar das
perdas sofridas com a rebelio ali ocorrida. A livre concorrncia, neste sentido,
57 Anais do Senado, sesso de 5 de junho de 1841, p. 90
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seria a nica forma de garantir que a navegao a vapor efetivamente
contribusse para o enriquecimento do pas.58
Opinio semelhante defendeu o senador Oliveira e Horta, o marqus de
Barbacena. Para ele, era importante que o projeto fosse inteiramente rejeitado,
sem nenhuma possibilidade de correo, para que ficasse clara a posio do
Senado com relao concesso de privilgios de exclusividade:
Eu acho muito conveniente que o projeto seja rejeitado in limine, e que se firme a opinio de que o Senado avesso a tais concesses. isto tanto mais necessrio, quanto se observa que a indiscrio, com que se concedem tais privilgios se vai propagando nas assemblias provinciais.59
Para Barbacena no bastava que o projeto fosse rejeitado. Ele precisaria
cair sem qualquer possibilidade de correo, inteiramente, para que esta fato
servisse de exemplo para outras instituies nomeadamente as assemblias
provinciais que estariam tornando rotineiras as concesses de privilgios de
exclusividade. Percebe-se, assim, no somente o grau de relacionamento
existente entre essas duas esferas do poder, mas tambm a influncia que as
decises tomadas em mbito central poderiam ter sobre as medidas adotadas
em mbito provincial. Com uma rejeio exemplar por parte dos senadores,
entendia Barbacena, os deputados provinciais certamente pensariam duas
vezes antes de conceder novos privilgios de exclusividade. Para ele, assim
como para Vergueiro e Oliveira, a concesso de privilgios, ao invs de
impulsionar o desenvolvimento de indstrias estratgicas, serviria apenas para
dificultar o progresso do pas.60
Para Paula Souza, outro relator da comisso de comrcio, o projeto
deveria ser rejeitado em primeira discusso porque este estgio do debate
deveria tratar apenas da sua utilidade, a qual ele entendia que absolutamente
58 Idem, pp. 88-92 59 Anais do Senado, sesso de 3 de junho de 1841, p. 22 60 Idem, pp. 22-23
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no existia. Segundo o senador, no seria vantajoso para o pas conceder um
privilgio de exclusividade de quarenta anos para uma companhia navegar
uma regio to grande quanto a Amaznia, e com tanto potencial de
desenvolvimento. Por ser central no texto em debate este dispositivo no
poderia ser modificado sem que os empresrios perdessem o interesse na
atividade, razo pela qual seria absolutamente intil levar o projeto segunda
discusso.
Paula Souza tambm via nas experincias anteriores da concesso de
privilgios uma forte razo para opor-se ao projeto. Nestes casos citados, as
companhias criadas com base em tais privilgios preocupar-se-iam apenas
com lucros imediatos e vultosos, o que fazia com que, uma vez conseguidos os
favores do governo, tratassem de vend-los a outros empresrios ou ento a
atuar prescindindo deles. Com isso, libertavam-se das obrigaes a que a
concesso as havia amarrado:
As companhias empresrias que entre ns se tm organizado, quase todas tm tido em vista um lucro imediato, e no remoto; a maior parte delas, depois de obter a concesso do privilgio, tratam de o vender, e, se alguma o no faz, prescinde dele. (...)
Ns, como muito bem notou um nobre senador, no temos, quanto a este objeto, tido as cautelas de outras naes; concedemos o privilgio, ignorando a possibilidade da companhia, e as condies com que pretende servir o pblico; de maneira que pode muito bem vir a acontecer que quem quiser gozar das barcas tenha de pagar um preo exorbitante.61
A rea concedida para a atividade dos empresrios seria muito grande,
segundo o senador. No faria sentido, para ele, colocar sob um privilgio de
exclusividade uma rea to grande quanto o norte do pas, na qual apenas
uma companhia, incapaz de atuar sobre toda a regio, teria o direito de
estabelecer linhas de vapor por quarenta anos, excluindo todas as demais
61 Idem, p. 30
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interessadas. Neste contexto nem mesmo os portos no atendidos pela
companhia contratada poderiam ser atendidos por outros empresrios, o que
certamente traria prejuzos para a populao local:
Temos ainda a considerar que o privilgio concedido por espao de quarenta anos, isto, em um pas novo, onde o progresso da indstria rpido; e basta comparar o nosso estado atual com aquele em que nos achvamos, a trinta anos, para reconhecer a verdade desta assero. Devemos, por conseqncia, esperar que, durante estes quarenta anos que se seguem, ainda mais rpido seja o desenvolvimento; entretanto, os lugares a que no puderem chegar as vantagens da empresa ficaro inibidos de gozar dos benefcios de que outros gozaro.
Assim, pois, me parece que tal empresa no vir a produzir as vantagens que se tm em vista. Primeiramente, no ela realizvel; e mesmo quando levasse certas vantagens a alguns lugares daquela provncia, viria a ser prejudicial, por isso que embaraaria o estabelecimento de quaisquer companhias que pudessem levar a efeito esses melhoramentos em outros pontos.62
Para Paula Souza no era verdadeira a afirmao segundo a qual, sem a
concesso de privilgios, seria impossvel estabelecer a navegao a vapor
nos rios amaznicos. Isso poderia ser verdadeiro na poca em que os barcos a
vapor estavam chegando ao Brasil; no momento, entretanto, esta navegao j
seria comum em vrios rios do imprio, o que permitia ao senador acreditar
que o capital privado se encarregaria de introduzi-la tambm em sua poro
norte. E mesmo que ficasse comprovado que a concesso de favores seria
indispensvel para atingir estes objetivos, eles deveriam ser oferecidos a todos
que se dispusessem a realizar a empresa, no a apenas uma companhia.
Desta forma, segundo o senador, ficaria preservada a concorrncia que, ao
final das contas, seria a responsvel pelo desenvolvimento da regio.63
A argumentao de Paula Souza ia no seguinte sentido: o fato de a regio
amaznica encontrar-se despovoada e, portanto, no possuir muitos produtos 62 Idem, p. 31 63 Idem, pp. 29-32
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a transportar acabaria servindo de justificativa para a companhia no elevar o
nmero de seus vapores para alm do mnimo contratado onze. Isso no
ocorreria, entretanto, se outras empresas estivessem empenhadas em realizar
esta atividade. Neste caso, cada empresrio faria o melhor possvel para tentar
derrotar seus adversrios, e assim mais vapores sulcariam as guas do
Amazonas, o que incentivaria uma maior colonizao de suas terras, o que, por
sua vez, aumentaria a quantidade de produtos a serem comercializados e
transportados levando, assim, ao desenvolvimento de toda a regio. Desta
forma, em conformidade com o exposto por Vergueiro, conclua Paula Souza:
A multiplicidade de tais empresas traria o desenvolvimento da navegao e colonizao, e infundiria o desejo da multiplicidade da colonizao, base de aumento de produes, e por conseqncia de progresso de navegao. Mas se isto obsta o privilgio concedido companhia, evidente que ela, bem longe de promover a navegao e colonizao, vai embaraar; o que se no compadece com os desejos que parece nutrir os nobres senadores.64
Neste sentido, a concluso do senador foi clara. No adiantaria passar o
projeto para segunda discusso, uma vez que neste estgio o privilgio
necessariamente teria de ser rejeitado. Feito isso, os empresrios
desinteressar-se-iam da empresa, uma vez que, para Paula Souza, os que
obtm privilgio no tem teno de r