a navegação do Rio Amazonas e a formação do estado brasileiro

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    VITOR MARCOS GREGRIO

    UMA FACE DE JANO: A navegao do rio Amazonas e a formao

    do Estado brasileiro (1838-1867)

    So Paulo 2008

  • 1

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    UMA FACE DE JANO: A navegao do rio Amazonas e a formao

    do Estado brasileiro (1838-1867)

    Vitor Marcos Gregrio

    Orientadora: Miriam Dolhnikoff

    [email protected]

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria Social para obteno do

    ttulo de Mestre

    So Paulo 2008

  • 2

    RESUMO

    A questo da livre navegao nas principais bacias hidrogrficas sul-

    americanas - Amazonas e Prata - constituiu ponto capital da poltica externa

    dos pases da Amrica do Sul em meados do sculo XIX. Seu desenrolar,

    assim, adquiriu importncia para a constituio dos novos Estados da regio,

    na medida em que influa em questes vitais para a sobrevivncia destes,

    como o acesso a regies do seu prprio territrio e o comrcio internacional.

    No Brasil isto no foi diferente, e a questo da navegao a vapor na

    bacia amaznica constituiu-se em um elemento fundamental para o processo

    de construo do seu Estado nacional. Neste sentido, tornou-se necessria a

    adoo de polticas que visassem fazer frente ao risco de perda da soberania

    sobre a regio amaznica, supostamente ameaada pelo imperialismo das

    potncias europias e Estados Unidos, e a inserir a regio da melhor forma

    possvel no sistema econmico e poltico brasileiro e no contexto das trocas

    comerciais internacionais.

    Esta pesquisa objetiva analisar as discusses que se deram em torno de

    tais polticas, principalmente no parlamento brasileiro. Desta forma, possvel

    vislumbrar qual foi a margem de autonomia em poltica externa deste nascente

    Estado, obrigado deste cedo a se confrontar com as maiores potncias da

    poca na busca de um tnue equilbrio do qual dependia sua sobrevivncia.

    Palavras chave: rio Amazonas, navegao a vapor, Brasil, imprio, parlamento, Cmara dos Deputados, Senado, Par, comrcio

  • 3

    ABSTRACT

    The question of free navigation of the two main south american

    hidrographic bays Amazonas and Prata constitutes a central theme of

    foreign policy for the continents countries in the mid 19th century. Its

    unraveling was important on the establishment of the regions new states, to the

    extent that it influenced in their own existence in such vital question as the

    acess to distant places of their own territories and foreign trade.

    This was not different in Brazil. The question of steam navigation in the

    Amazonic bay constituted itself into a fundamental question on the process of

    building the brazilian national state. In this course, it become necessary to

    adopt political measures that animed at the protection of the sovereignty over

    the amazonic region, supposedly threatenned by the United States and other

    european imperialist states. Also, policies that would insert the region into

    Brazils political and economic systems, as well as into the international trade

    context.

    This research aims at analising the discussions regarding such policies,

    especially the ones that took place in the brazilian parliament. This way we can

    have a glimpse at how much autonomy this newly formed state had in its

    foreign affairs. Very early ir saw itself forced to face some of the great potencies

    of the time in order to maintain a delicate balance of power in which depended

    its survival.

    Keywords: rio Amazonas, navegao a vapor, Brasil, imprio, parlamento, Cmara dos Deputados, Senado, Par, comrcio

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    A pesquisa histrica, por definio, uma atividade solitria, que requer

    horas de isolamento absoluto para que possa ser realizada a contento. Esta

    no foi diferente. Entretanto, foram vrias as pessoas e instituies que

    tornaram este trabalho vivel e muito mais agradvel, as quais enumero a

    seguir, ainda que sob o risco de injustamente esquecer algum.

    Primeiramente agradeo instituio do ensino pblico, responsvel por

    minha formao desde a mais tenra idade, e a todos que se esforam e lutam,

    s duras penas, por sua qualidade e para que as prximas geraes tenham a

    oportunidade de continuar contando com ela.

    Agradeo ainda FAPESP, que financiou esta pesquisa que, de outra

    forma, no teria sido possvel concluir.

    Miriam Dolhnikoff agradeo a orientao cuidadosa e sua presena

    sempre constante. Ao seu trabalho e a nossas conversas sempre instrutivas e

    agradveis devo muito do meu amadurecimento intelectual e pessoal. Seu

    apoio foi fundamental para que esta pesquisa fosse concluda.

    A Wilma Peres Costa e Gabriela Nunes Ferreira agradeo a orientao

    dada quando da defesa da qualificao desta dissertao. Suas observaes

    foram de fundamental importncia para a concluso deste trabalho.

    Ao profissionalismo do pessoal responsvel pelo setor de consulta do IEB-

    USP agradeo por muitos dos documentos e livros aqui citados.

    Aos funcionrios da Biblioteca e Arquivo Pblico do Estado do Par,

    especialmente Gorete, agradeo a prestatividade e eficincia com que me

    disponibilizaram uma rica documentao que, de outra forma, no seria

    possvel obter. O mesmo posso afirmar quanto aos profissionais encarregados

    do setor de pesquisa do Arquivo da Assemblia Legislativa do Estado de So

  • 5

    Paulo, responsveis por documentos e livros de fundamental importncia para

    a realizao deste trabalho.

    Aos amigos do Cebrap agradeo a recepo acolhedora e os vrios

    momentos agradveis que passamos juntos.

    Ao amigo Hernan Sez sou muito grato pelos debates verdadeiramente

    enriquecedores, pela pacincia em ler vrias vezes os manuscritos deste

    trabalho e pela companhia e apoio em todos os momentos desta pesquisa.

    Seus comentrios e crticas foram de um inestimvel valor.

    Aos amigos Thiago de Souza e Susan Ienne da Silva agradeo a amizade

    fiel e sincera que sempre me devotaram, ainda que nos ltimos tempos nossa

    convivncia tenha se tornado menos constante. Ainda que estejamos mais

    distantes, seu apoio incondicional algo tangvel demais para ser esquecido

    neste momento.

    minha famlia devo uma formao moral irretocvel e agradeo aos

    imensos esforos realizados para que, um dia, eu chegasse a este momento.

    Seu afeto e compreenso foram a base indispensvel para que eu pudesse

    alcanar este objetivo pessoal.

    Cristina, esposa, amiga, companheira, cmplice inseparvel, agradeo a

    compreenso e pacincia infinitas para suportar meus longos perodos de

    isolamento em um escritrio de portas fechadas. Agradeo, tambm, pelo seu

    sorriso sempre franco nos momentos em que a porta se abria. Seu

    companheirismo incondicional foi sempre um porto seguro no qual encontrei

    abrigo mesmo durante as piores tempestades.

    A todos aqueles que contriburam para a realizao deste trabalho, e que

    pelas limitaes de minha memria no esto aqui presentes, meus mais

    sinceros agradecimentos, acompanhados dos mais sentidos pedidos de

    desculpas.

  • 6

    SUMRIO

    Introduo 10

    PARTE I: Projetos para a Amaznia 18

    Captulo 1: As discusses parlamentares de 1840 e 1841 20

    1.1. Os debates na Cmara dos Deputados 21

    1.2. Os debates no Senado 32

    Captulo 2: Os debates de 1853 no parlamento 61

    2.1. Navegar para desenvolver 63

    2.2. A Amaznia e o mundo 88

    2.3. As disputas entre os poderes Executivo e Legislativo 102

    2.4. As discusses no Senado 112

    2.5. A reunio do Conselho de Estado de 1854 120

    Captulo 3: A reforma contratual de 1857 134

    3.1. Os debates parlamentares em torno da reforma contratual 134

    3.2. A colonizao como estratgia de desenvolvimento da regio

    amaznica 156

    Captulo 4: As discusses pela abertura no parlamento (1864) 170

  • 7

    4.1. O ministro Bellegarde e as negociaes pela abertura do rio

    Amazonas 171

    4.2. As discusses sobre a abertura na Cmara dos Deputados 174

    4.2.1. Subvencionar ou no? O choque de projetos 177

    4.2.2. Desenvolvimento regional versus integridade territorial:

    temores de invaso estrangeira na Amaznia 192

    4.2.3. Impor condies versus negociar tratados: como podero

    navegar o Amazonas? 211

    Captulo 5: Medidas do Poder Executivo na dcada de 1860 239

    PARTE II: Esforos provinciais para navegar o Amazonas 251

    Captulo 1: O governo do Gro-Par e a navegao do rio Amazonas 253

    1.1. Antes da criao da provncia do Amazonas (1828-1850) 253

    1.2. Auxlios do governo central 270

    1.3. Aps a criao da provncia do Amazonas (1850-1867) 281

    1.3.1. Criao da provncia do Amazonas 281

    1.3.2. Esforos do governo provincial para navegar o Amazonas 295

    Captulo 2: As negociaes para navegao do Araguaia/Tocantins 313

    2.1. Interpretaes da historiografia brasileira sobre o regime poltico

    do Imprio 313

    2.2. Estratgias para navegar o Araguaia/Tocantins 317

  • 8

    Concluso 326

    Fontes 330

    Bibliografia 332

  • 9

    A meus pais, que me mostraram o caminho a seguir;

    E a Cristina, que aceitou segui-lo comigo.

  • 10

    INTRODUO

    A questo da navegao a vapor no rio Amazonas tem aparecido na

    historiografia como um debate entre doutrinas. De um lado estariam os

    defensores de uma postura conservadora com relao questo, afirmando

    que o grande rio no poderia ser aberto s demais naes sob risco de perda

    da soberania brasileira sobre a regio norte, e que, portanto, deveria continuar

    fechado, disponvel apenas ao nascente empreendedorismo nacional a quem

    caberia promover a sua riqueza e desenvolvimento. De outro lado, estariam os

    defensores de uma postura mais liberal, favorvel abertura da navegao a

    todos os pases como uma estratgia eficiente para fugir s limitaes do

    capital brasileiro e promover o progresso da Amaznia de uma forma mais

    rpida e completa.

    A evoluo dos debates em torno da questo pode, de fato, ser estudado

    sob este prisma. No entanto, no foi ainda analisado em toda a sua amplitude o

    processo poltico de tomada de decises no Brasil em relao ao tema, de

    modo a tom-lo como elemento importante no processo de construo do

    Estado nacional. Isto faz com que, ainda que parcialmente correta, a

    interpretao acima anunciada carea de maior aprofundamento, o que a

    impede de levar em considerao as variaes argumentativas ao longo de

    quase trinta anos de debates. Desta forma, fica parecendo que durante todo o

    perodo em que o tema esteve em pauta os problemas a serem resolvidos

    foram sempre os mesmos, bem como as solues apresentadas e as medidas

    tomadas para atingi-las de uma forma mais eficiente. Esta anlise no peca

    apenas pela inexatido. Equivoca-se tambm ao isolar a temtica da

    navegao a vapor no rio Amazonas do contexto mais amplo, de formao de

    um Estado nacional que, embora enfraquecido, tinha de lidar com questes

    que poderiam, a qualquer momento, provocar sua fragmentao ou mesmo sua

    extino.

  • 11

    As anlises consagradas acerca das questes relativas bacia platina j

    garantiram sua insero neste processo, atribuindo-lhe a importncia devida

    em seu desenrolar. O mesmo, entretanto, ainda no foi feito com relao

    bacia amaznica, no menos central para a formao do Estado brasileiro. De

    fato, a liberdade de navegao, tanto na bacia amaznica como na platina,

    constitui ponto de vital importncia para a compreenso da histria poltica da

    Amrica do Sul em meados do sculo XIX, na medida em que engloba

    questes fundamentais para a constituio dos diversos novos Estados recm

    sados do regime colonial, tais como a das comunicaes com reas mais

    afastadas de seus territrios, e a possibilidade de incremento do comrcio

    internacional.

    No caso brasileiro, que o foco desta pesquisa, a questo atinge maior

    complexidade devido ao fato de, na qualidade de grande defensor da liberdade

    de navegao nos rios da bacia do Prata, como forma de garantir as

    comunicaes com provncias distantes e o acesso aos mercados da regio

    platina, o Imprio adotava uma poltica de clausura completa da bacia

    amaznica, justificada pelo temor da perda da posse daquela regio para

    outros pases mais poderosos e imperialistas, como Inglaterra, Frana e,

    principalmente, Estados Unidos. A soluo deste problema no era simples,

    assim como no o era o processo decisrio que levaria ao seu desfecho,

    imerso que estava em um contexto extremamente complexo e potencialmente

    explosivo.

    Este processo decisrio o objeto desta pesquisa. Atravs da anlise dos

    debates ocorridos em ambas as casas parlamentares, bem como de sua

    relao com as medidas tomadas pelo Poder Executivo central e pelo governo

    provincial, pretendo verificar a real importncia da questo amaznica para a

    formao do Estado nacional brasileiro, bem como analisar a organizao

    institucional do Imprio atravs dos indcios apresentados pela documentao.

    Para atingir estes objetivos preciso que se tome em considerao,

    primeiramente, que a discusso em torno do tema da liberdade de navegao

    fluvial no exclusividade brasileira, mas est inserida em um contexto mais

  • 12

    amplo de formulao de princpios concernentes ao direito internacional. Neste

    sentido, importante ter em mente que a formulao destes princpios tambm

    envolve um processo decisrio, do qual os polticos imperiais, invariavelmente,

    precisavam ter um aprofundado conhecimento.

    Durante a poca colonial ficava exclusivamente a cargo do pas detentor

    das margens dos rios decidir sobre sua navegao. Neste sentido, uma vez

    garantida a Portugal a posse sobre as duas margens do rio Amazonas atravs

    do tratado de Madri, assinado com a Espanha em 1750, ficou facultado quele

    Imprio o direito de manter fechada a sua navegao valendo-se das

    prerrogativas garantidas pelo sistema colonial. Durante este perodo, portanto,

    as discusses sobre o Amazonas no se davam sobre o direito de navegar ou

    no suas guas, mas sim sobre a posse do seu curso, disputado por Espanha

    e Portugal e cedido ao ltimo em uma mesa de negociaes sem que,

    entretanto, coubesse ao primeiro a posse de sua nascente, localizada na rica

    colnia do Peru.

    Segundo Sabia de Medeiros, os princpios que regulavam a navegao

    de rios internacionais comearam a mudar em 1792, durante a Revoluo

    Francesa1. Neste momento, passou a ser aceita a idia segundo a qual todos

    os ribeirinhos teriam direito a navegar nas guas dos rios comuns a eles. Neste

    sentido, quando em 1798 os mesmos franceses propuseram a livre navegao

    de alguns rios europeus durante o Congresso de Rastadt, no lograram

    alcanar qualquer xito em sua proposta.

    A liberdade de navegao de rios internacionais s passou a ser

    seriamente cogitada no Congresso de Viena de 1815, quando graas a uma

    proposta francesa o rio Reno foi aberto navegao de todos os pases. Foi o

    primeiro caso em que esta medida foi tomada, tendo servido de argumento,

    durante algum tempo, queles que defendiam que a abertura do rio Amazonas

    fosse decretada tendo-se por base este exemplo. Segundo o documento

    assinado pelas potncias europias, a liberdade de navegao seria admitida

    apenas sob a condio de que fosse aproveitada por navios mercantes, ficando 1 Fernando Sabia de Medeiros, A liberdade de navegao do Amazonas (relaes entre o Imprio e os Estados Unidos da Amrica), Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1938, pp. 13-20

  • 13

    estipulado que as taxas de trnsito, devidas pelos barcos que navegassem no

    rio, no poderiam ser aumentadas sem o concurso de todos os pases

    ribeirinhos. Desta forma, buscava-se evitar que a criao de altos impostos

    servisse de obstculo ao direito de livre navegao.

    Outra medida de teor semelhante s seria adotada em 1839, quando o

    Tratado de Londres instituiu a liberdade de navegao no rio Escalda, sem que

    os Pases Baixos, contudo, abrissem mo do direito de cobrar as taxas que

    julgassem necessrias dos barcos que navegassem no trecho do rio

    pertencente ao seu territrio. Em 1856, pelo Tratado de Paris, assinado logo

    aps o auge das presses internacionais pela abertura do Amazonas, adotou-

    se a liberdade de navegao para o chamado trecho martimo do rio Danbio,

    sem qualquer distino de direitos entre os pases ribeirinhos e os no

    ribeirinhos. Segundo este tratado, seria criada uma comisso europia

    encarregada de cuidar das obras tendentes a melhorar a navegao do rio e de

    regular a forma pela qual se daria esta navegao. A jurisdio desta comisso

    foi ampliada para outros trechos do Danbio em tratados internacionais

    assinados em 1865, 1878 e 1883, tornando predominante o princpio segundo

    o qual a livre navegao do rio deveria ser gerida por todos os pases

    europeus, com iguais direitos, e organizados em uma comisso que, se no

    era permanente, deveria ao menos durar por muito tempo.

    Em 1885 a Conferncia de Berlim garantiu uma liberdade de navegao

    ainda mais ampla para os rios africanos Congo e Nger. Segundo o documento

    assinado pelas potncias europias, alm da partilha do continente ficava

    acertado que mesmo em tempos de guerra as naes beligerantes poderiam

    navegar em ambos os rios com fins comerciais. No caso do Congo, at mesmo

    navios de guerra poderiam navegar em suas guas em tempos de guerra.

    Novas ampliaes do princpio de liberdade fluvial seriam realizadas no

    Tratado de Versalhes de 1919, quando foram completamente

    internacionalizados todos os rios que corriam pelo territrio alemo, e na

    Conveno de Barcelona de 1921, que ampliou as determinaes de Versalhes

  • 14

    para todos os rios internacionais, mantendo, porm, sob estrita jurisdio dos

    pases ribeirinhos o direito de realizar navegaes de cabotagem.

    Percebe-se, portanto, que ainda que o princpio de liberdade fluvial dos

    rios internacionais estivesse ganhando cada vez mais fora em meados do

    sculo XIX, quando os debates sobre a questo se desenrolaram no Brasil, ele

    ainda estava longe de se tornar dominante no direito internacional. At 1856

    apenas os rios Reno e Escalda estavam abertos a todos os pases, fato que

    seria citado nos debates parlamentares como uma razo poderosa para manter

    a navegao do rio Amazonas restrita apenas aos ribeirinhos. Afinal, se nem as

    maiores potncias do mundo haviam ainda adotado completamente este

    princpio, porque o Imprio deveria faz-lo? Neste sentido, longe de ser

    encarada como uma imposio externa ao governo imperial, a abertura da

    navegao do rio Amazonas deve ser analisada como uma medida formulada

    em mbito interno, como resultado de um processo decisrio ocorrido dentro

    da administrao imperial e sujeita, portanto, a todas as vicissitudes inerentes

    organizao institucional do regime poltico vigente no Brasil em meados do

    sculo XIX.

    Desta forma, configura-se uma situao na qual as polticas seguidas com

    relao regio amaznica, ao mesmo tempo em que so influenciadas pela

    organizao poltica do Imprio, tornam-se fundamentais para a sua

    manuteno e posterior fortalecimento. Assim, surge a necessidade de levar

    em conta este elemento, para que se torne possvel uma melhor compreenso

    do impacto da questo da navegao amaznica para o processo de formao

    do Estado nacional brasileiro.

    Com relao organizao institucional do regime imperial, esta pesquisa

    partiu de duas premissas fundamentais. Contrariando as interpretaes

    consagradas na historiografia brasileira, considerou, primeiramente, que as

    polticas adotadas pelo governo central foram formuladas seguindo a lgica de

    um regime representativo. O que significa dizer que o parlamento foi um

    espao efetivo de formulao das polticas nacionais por representantes eleitos

    que, de um lado, estavam atentos aos interesses de seus representados

  • 15

    (aqueles que influam no processo eleitoral) e, de outro, se viam na

    contingncia de atuar de acordo com o que consideravam ser o interesse

    nacional2.

    A segunda premissa que fundamentou esta pesquisa foi a de que a

    organizao institucional do regime imperial, alm de ser representativa,

    constitua-se tambm em um arranjo de tipo federativo. Esta teoria formulada

    por Miriam Dolhnikoff vai contra as interpretaes historiogrficas segundo as

    quais o regime imperial brasileiro era pautado por um extremo centralismo,

    onde as polticas eram formuladas exclusivamente no mbito do governo

    central sem levar em conta as demandas das administraes provinciais.

    Segundo a autora ocorria exatamente o contrrio. Seria da negociao intensa

    com as elites regionais que o governo central retirava a legitimidade e a

    capacidade de manter unidos a um nico centro provncias to dspares quanto

    as que compunham o imprio brasileiro3.

    Para verificar a validade destas duas premissas, e da hiptese central

    desta pesquisa, segundo a qual a questo da navegao a vapor no rio

    Amazonas teve importncia fundamental para o processo de construo do

    Estado nacional, tendo sido seu processo decisrio fortemente influenciado

    pelos debates ocorridos na arena parlamentar, optei por dividir este trabalho

    em duas partes. Na primeira so analisados os debates entre os diferentes

    projetos para o desenvolvimento da regio amaznica. Nestes debates,

    ocorridos no perodo entre 1840 e 1866, tanto no parlamento quanto no Poder

    Executivo, foram levantadas vrias questes sobre o tema, oferecendo a

    dimenso exata da importncia que ele teve para a formao institucional do

    pas. Como cada debate ocorrido em diferentes momentos privilegiou questes

    diferentes, e apresentou argumentos diferentes para os temas que estavam

    sendo retomados, foi feita a opo por dividir a primeira parte em captulos

    especficos para cada momento do processo decisrio. Assim, o primeiro

    2 Ver sobre o tema: Miriam Dolhnikoff, Francisleide Maia, Hernan Enrique L. Saez, Pedro Sales, Vitor Marcos Gregrio - "A reviso da historiografia poltica: representao poltica no Imprio", in: Adrian Lavalle (org) - O Horizonte Da Poltica: Questes emergentes e agendas de pesquisa, So Paulo, Cosac & Naify (no prelo). 3 Miriam Dolhnikoff, O pacto imperial origens do federalismo no Brasil, So Paulo, Globo, 2005, pp. 285-299

  • 16

    captulo contempla as discusses parlamentares ocorridas em 1840 e 1841, na

    cmara e no Senado, acerca do primeiro projeto apresentado por brasileiros

    para a navegao a vapor do rio Amazonas. Da concluso deste debate

    emergem indcios importantes da relao entre os poderes Executivo e

    Legislativo, e do ideal de desenvolvimento que os polticos do momento

    possuam a respeito da regio amaznica.

    O segundo captulo trata dos debates ocorridos em 1853, na cmara e no

    Senado, acerca do contrato de navegao assinado entre o governo central e

    Irineu Evangelista de Souza para a criao de uma companhia com o objetivo

    de introduzir a navegao a vapor no rio Amazonas. Diferentemente do que

    ocorrera treze anos antes, o contrato foi assinado antes de ser apresentado ao

    parlamento, o que gerou acalorados debates e atritos entre os poderes

    Executivo e Legislativo. Como resultado, o contrato precisou ser reformado,

    para que pudesse atender s deliberaes do parlamento, e o Poder Executivo

    precisou recuar do que foi encarado pelos deputados e senadores como uma

    invaso de jurisdio. Neste momento as presses internacionais pela abertura

    do rio faziam-se mais fortes, e a reunio do Conselho de Estado, convocada

    em 1854, oferece indcios importantes sobre os sentimentos que a questo

    estava despertando no interior do governo imperial.

    No captulo 3, so analisados os debates acerca da reforma contratual de

    1857, requisitada tanto por Irineu Evangelista de Souza quanto pelo governo

    imperial. Neste momento, percebe-se que o contrato reformado em 1854

    apresentava obrigaes pesadas demais Companhia de Navegao do

    Amazonas, encarregada de, alm de navegar o grande rio, fundar colnias de

    povoamento em suas margens. O Poder Legislativo no hesitou ento em

    rever suas posies acerca da atividade de navegao, expostas nos debates

    de 1853, e em oferecer ao Poder Executivo a mais ampla autonomia para

    reformar o contrato nos termos que lhe parecessem mais convenientes.

    No quarto captulo chego aos debates parlamentares acerca da abertura

    do rio Amazonas a todos os pases, ocorridos em 1864. Ser visto como os

    antigos temores acerca do risco de perda da soberania brasileira na regio

  • 17

    eram j minoritrios no parlamento, ainda que no estivessem completamente

    abandonados. Como resultado, o parlamento demonstrou que a maioria das

    opinies era favorvel abertura sem, contudo, adotar uma postura definitiva

    sobre a questo, uma vez que os debates foram indefinidamente adiados no

    Senado em 1864.

    No quinto captulo, so analisadas as medidas adotadas pelo Poder

    Executivo para o desenvolvimento da regio norte na dcada de 1860, e como

    ele manobrou para decretar a abertura em dezembro de 1866 sem que o Poder

    Legislativo tivesse adotado uma postura oficial sobre o tema, e minimizando

    os riscos de ser acusado por invaso de jurisdio como ocorrera treze anos

    antes. A reunio do Conselho de Estado convocada quatro dias antes do

    decreto foi importante nesse processo, pois ofereceu Coroa o ltimo indcio

    de que ela precisava para concluir que no havia srias oposies medida

    que estava prestes a adotar.

    Na segunda parte, analiso os esforos que o governo provincial do Gro-

    Par realizou com o objetivo de instituir, com meios prprios, a navegao a

    vapor na regio amaznica. Para isto, a divido em dois captulos. No primeiro,

    so analisados os reiterados esforos do governo paraense para instituir a

    navegao a vapor no rio Amazonas e em outros, por vezes com o auxlio do

    governo central. O objetivo avaliar at que ponto o governo provincial possua

    autonomia para realizar estes projetos, de modo a acrescentar novos dados na

    discusso acerca da segunda premissa deste trabalho.

    No segundo captulo, analiso uma breve passagem das tentativas de

    navegao dos rios Araguaia e Tocantins, intimamente relacionados bacia

    amaznica por representarem um meio de ligao entre esta regio e as

    provncias de Gois e Mato Grosso. Ainda que no seja um caso de medidas

    adotadas com relao ao rio Amazonas, de fundamental importncia para o

    entendimento das relaes existentes entre os governos provinciais e o central

    em meados do sculo XIX.

  • 18

    PARTE I

    Projetos para a Amaznia

    No mbito do processo de formao e consolidao do Estado nacional

    brasileiro, a questo da navegao do rio Amazonas possui uma importncia

    fundamental. Isto decorre do fato de agregar em si uma srie de problemas,

    como a definio territorial do Imprio, a relao deste com outros Estados

    no s vizinhos, mas tambm potncias mais ou menos distantes o

    desenvolvimento e incorporao da regio amaznica ao conjunto do pas,

    entre outros. Estes fatores, agregados, tinham tal importncia que a questo

    acabou adquirindo posio destacada nas discusses acerca dos projetos

    nacionais a serem implantados.

    No desenvolvimento dos debates acerca deste assunto surgiram vrios

    e por vezes opostos projetos de como esta atividade deveria ser realizada e

    quais polticas deveriam ser adotadas para levar o progresso regio norte do

    imprio. A defesa destes projetos e as reaes que eles geraram dizem muito

    acerca do processo de constituio poltico-institucional do Estado brasileiro,

    na medida em que representam diferentes formas de insero dessa rea no

    conjunto nacional. Neste sentido, discutir sobre quem deveria instituir a

    navegao a vapor no Amazonas, se esta atividade deveria ou no ser liberada

    para todos os pases, ou sobre quais polticas deveriam ser adotadas para

    povoar a regio e civilizar os indgenas significava mais do que defender

    posturas partidrias ou pessoais, ainda que estes elementos no estivessem,

    certamente, ausentes dos clculos realizados. Significava debater sobre o

    processo de construo de um Estado unificado e de seu territrio, ainda

    instveis o suficiente para correrem o risco de verem prematuramente

    fracassados os esforos para sua formao.

    Nos prximos captulos ser visto como estes projetos surgiram e foram

    defendidos ao longo das quatro dcadas em que a questo amaznica

  • 19

    provocou maiores preocupaes. O objetivo ser analisar as mudanas e as

    permanncias das idias apresentadas, para que seja possvel vislumbrar o

    desenvolvimento dos debates, nos poderes Legislativo e Executivo, no perodo

    compreendido por esta pesquisa. A relao por vezes conflituosa entre estas

    duas instncias do poder tambm ser analisada, na medida em que vier

    tona nas discusses referentes ao objeto principal. Desta forma, ser possvel

    ter uma idia mais precisa da importncia que a regio amaznica possua

    para os encarregados do processo de construo nacional e dos esforos que

    estes fizeram para legar para a posteridade um pas unificado e coeso, do

    Prata ao Amazonas.

  • 20

    Captulo 1 - As discusses parlamentares de 1840 e 1841

    No ano de 1840, iniciaram-se os debates parlamentares a respeito de

    uma proposta vinda de Belm, na qual alguns empresrios se propunham a

    navegar com barcos a vapor os rios Amazonas, Tocantins, Solimes, Negro e

    todos os seus afluentes, mediante a concesso de alguns favores por parte do

    governo central. Este fato ganha maior importncia por ter sido a primeira

    tentativa, aps a malograda formao da companhia de vapores de Nova York

    exclusivamente para o desenvolvimento desta atividade, em 1826, - quando

    enfrentou forte oposio no somente do parlamento como do governo

    brasileiros4 - de estabelecimento da navegao a vapor no norte do pas com

    capitas particulares. Foi, ainda, o primeiro projeto apresentado exclusivamente

    por empresrios nacionais, uma vez que o nico estrangeiro do grupo Diogo

    Sturz havia recebido a cidadania brasileira pouco tempo antes da proposta.

    Outro elemento que contribui para a relevncia destas discusses o fato

    de elas terem ocorrido em tons completamente diferentes na Cmara dos

    Deputados e no Senado, demonstrando a grande autonomia de ambas as

    casas na tomada das decises que lhes competiam. Os deputados gerais

    prontamente reconheceram o projeto como de grande utilidade para o

    desenvolvimento no somente da regio amaznica, mas de todo o pas,

    enquanto para os senadores nem mesmo este reconhecimento foi consensual.

    Como resultado, houve uma aprovao extremamente rpida e pacfica na

    cmara, com a presena apenas de alguns debates acerca de questes

    pontuais e uma franca minoria de parlamentares contrrios ao texto, enquanto

    4 Sabia de Medeiros relata que A 14 de maro de 1826, o presidente da companhia dos paquetes de Nova York, da firma Le Roy, Bayard & Co. que constitura uma companhia intitulada Amazon Steam Navigation Company, anunciava ao ministro brasileiro em Washington, Silvestre Rebello, que ia despachar para o Par o navio a vapor Amazon, comandado pelo capito Clark, afilhado do juiz Thompson da Corte Suprema dos Estados Unidos, acompanhado de dois auxiliares, um deles Hefferman que falava correntemente o espanhol. Uma vez enviado este navio, que obteve permisso para descarregar no porto de Belm e s ento navegar nas guas do Amazonas, pretendeu seguir rio acima carregado, o que contrariava a poltica de fechamento do rio. Como conseqncia do ocorrido, a companhia requereu do governo imperial uma indenizao pelos prejuzos sofridos com a empreitada, o que lhe foi concedida somente em 1845, muitos anos aps ter ido falncia. Fernando Sabia de Medeiros, A liberdade de navegao do Amazonas (relaes entre o Imprio e os Estados Unidos da Amrica), Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1938, pp. 36-37

  • 21

    no Senado as discusses revestiram-se de um carter muito mais conflituoso,

    que acabaria provocando a suspenso do projeto ainda em primeira discusso.

    Foi com vistas a esta diferenciao entre as duas casas que o projeto de

    1840 foi analisado. Por demonstrar a independncia de opinies entre elas,

    pode contribuir para a compreenso da participao deste poder no processo

    de constituio do Estado nacional. Pode, tambm, ajudar a entender um

    pouco o processo decisrio parlamentar, ao oferecer elementos interessantes

    para a compreenso do papel reservado s duas casas no processo de

    discusso dos diversos projetos apresentados. E possui posio destacada no

    estudo da questo da navegao a vapor na regio amaznica, por representar

    a primeira tentativa seriamente considerada pelo poder central de

    estabelecimento desta atividade com a utilizao de capitais particulares.

    1.1. Os debates na Cmara dos Deputados

    Na sesso de 2 de junho de 1840 era lida na Cmara dos Deputados o

    parecer da comisso de comrcio, agricultura, indstria e artes acerca do

    requerimento apresentado por Joaquim Antnio Pinheiro, Nuno Nery de

    Carvalho e Joo Diogo Sturz para navegao dos rios Amazonas, Tocantins,

    Solimes, Negro e seus afluentes. Para a comisso,

    bvias e incalculveis so as vantagens que receber o pas, da realizao de semelhante empresa, pois no s animar ela o comrcio e lavoura da mais frtil provncia do imprio, criando assim novas riquezas e capitais, mas difundir ao mesmo tempo, por povos incultos, o salutar benefcio da civilizao.5

    Progresso econmico e civilizao dos ndios eram, portanto, as bases do

    parecer favorvel da comisso ao projeto de navegao apresentado.

    5 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 2 de junho de 1840, p. 567

  • 22

    Pelo projeto, os empresrios comprometiam-se a introduzir linhas

    regulares de vapor nos rios acima mencionados, mediante a concesso pelo

    governo central de um privilgio de exclusividade vlido por quarenta anos.

    Alm do privilgio, ficava concedido companhia que seria criada para a

    realizao da empresa todas as minas de carvo ou qualquer outro mineral que

    ela viesse a descobrir em sua regio de atuao nos primeiros dez anos de

    atividade, alm de dez sesmarias de terras devolutas de uma lgua quadrada

    cada uma, com a condio de que estas fossem utilizadas para a criao de

    colnias habitadas por europeus. Nos primeiros trs anos de contrato, cada

    sesmaria deveria ser ocupada por, pelo menos, vinte colonos, e ao final de sete

    anos, cada lote de terra deveria estar ocupado por no mnimo oitenta pessoas,

    ou vinte casais. Finalmente, o projeto previa que todos os barcos, mquinas e

    demais utenslios, alm do carvo, que fossem importados pela companhia

    estariam isentos de qualquer imposto pelo prazo de dez anos. Uma vez

    comprovado, entretanto, que esta vantagem tivesse sido utilizada de forma

    fraudulenta, ficariam os empresrios sujeitos perda do privilgio de

    exclusividade e pena de devoluo do triplo do valor do objeto

    contrabandeado.

    Como obrigao, a companhia teria de apresentar, ao final do segundo

    ano de vigncia do contrato, ao menos dois vapores em Belm para incio das

    atividades, devendo este nmero ser acrescido de mais um vapor ao final do

    quarto ano, e mais um a cada quatro anos, at o final do privilgio. A partir do

    quinto ano de contrato os navios da companhia teriam a obrigao de tocar ao

    menos trs vezes por ano em cada um dos principais portos dos rios

    compreendidos na rea de concesso, devendo este nmero de viagens ser

    aumentado para seis vezes a partir do sexto ano de contrato, dez a partir do

    dcimo ano, e vinte a partir do dcimo quinto ano. Todas as localidades em

    que os navios no tocassem o mnimo de vezes previstos no contrato por ano,

    ficariam excludas do privilgio de exclusividade. Caberia aos navios da

    companhia, ainda, o transporte de cargas, pessoal, mantimentos e tropas para

    as regies compreendidas pelo contrato, sem o pagamento de qualquer

    quantia para o governo. Os gneros transportados excluam, entretanto, a

  • 23

    plvora, material de difcil manejo pela sua alta periculosidade. Toda a carga

    remetida pelo governo no poderia exceder a vinte e cinco arrobas por viagem.

    Deveriam ser transportados, ainda, at trs pessoas por viagem munidos de

    autorizao do presidente da provncia e, a partir do quinto ano de contrato at

    duzentos soldados por ano, em uma quantia no maior a vinte e cinco por

    viagem.

    O prazo para o estabelecimento das linhas de vapores era de dezoito

    meses a partir da assinatura do contrato. Aps esse perodo o privilgio

    perderia completamente sua validade, a menos que os empresrios

    depositassem uma quantia de dez contos de ris em aplices do governo, o

    que lhes garantiria um prazo adicional de um ano para o incio dos servios dos

    primeiros vapores. Findo este prazo sem que o servio tivesse sido iniciado, o

    privilgio seria definitivamente cancelado e o valor depositado passaria a

    pertencer ao tesouro nacional.

    Uma vez introduzidas as linhas, entretanto, os empresrios continuavam

    com a obrigao de depositar dez contos de ris em aplices do governo

    periodicamente. O primeiro depsito deveria ser realizado quando da

    apresentao dos primeiros vapores para o servio; a partir de ento, a

    companhia ficava obrigada a depositar mais dez contos de ris a cada cinco

    anos durante a o perodo de vigncia do privilgio, devendo os pagamentos

    cessarem quando chegasse ao fim o perodo contratado ou quando os

    empresrios renunciassem exclusividade na navegao. Neste momento,

    todo o dinheiro depositado pela companhia seria restitudo, acrescido dos juros

    referentes ao perodo em que ficariam em poder do governo, e o contrato

    assinado seria considerado nulo.6

    Percebe-se com este projeto de contrato que os empresrios procuraram

    cercar-se de todas as garantias possveis para minimizar os riscos de prejuzo

    com a atividade. Isto se explica pelo fato de que ningum ainda havia

    introduzido a navegao a vapor na regio amaznica, e de que existia o forte

    temor de que uma rea to grande e despovoada poderia no trazer os

    6 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 2 de junho de 1840, pp. 567-568

  • 24

    resultados esperados com a adoo desta medida. Esta idia baseava-se no

    argumento segundo o qual o comrcio teria condies de florescer apenas

    depois de certo perodo, no qual a navegao regular incentivaria populaes

    inteiras a migrar para as reas beneficiadas pela sua existncia.

    Na Cmara dos Deputados o projeto foi relativamente bem aceito.

    Discutido a partir da sesso de 27 de julho de 1840, teve cada um de seus

    artigos analisados individualmente, sem que, na maioria deles, qualquer

    oposio fosse levantada pelos deputados. Assim, na mesma sesso, foi

    aprovado sem qualquer discusso o primeiro artigo, justamente o que concedia

    o privilgio de exclusividade de quarenta anos para os empresrios iniciarem a

    navegao a vapor nos rios Amazonas, Solimes, Tocantins, Negro e todos os

    seus afluentes. Apenas o deputado por Minas Gerais, Francisco de Paula

    Cndido7, afirmou que no teria problema algum em votar a favor da

    concesso, desde que ela trouxesse vantagens para o pas.8 Neste momento,

    portanto, a concesso de um privilgio de exclusividade para esta atividade

    parecia no representar um problema essencial para os deputados, bem

    diferentemente do que ocorreria no Senado dali a alguns meses, e na prpria

    cmara dali a treze anos, quando nenhuma vantagem possvel parecia

    convencer os debatedores da convenincia da aprovao de um privilgio

    desta natureza.

    Logo em seguida entrou em discusso o segundo artigo do projeto, que

    acabou se tornando o mais polmico:

    Artigo 2:- Assim os barcos, como as mquinas, utenslios, instrumentos e carvo de pedra, importados para o servio da companhia, sero livres de quaisquer direitos de importao por espao de 10 anos; mas logo que se prove por sentena que houve abuso desta concesso, ficar sujeita a mesma companhia,

    7 Francisco de Paula Cndido (1805-1864) nasceu em Minas Gerais e se formou mdico e bacharel em Cincias. Exerceu o cargo de deputado geral por sua provncia natal em quatro legislaturas, entre os anos de 1838 e 1856. 8 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 370

  • 25

    alm do perdimento (sic) do privilgio, a pagar fazenda pblica o triplo do valor do objeto fraudado.9

    No deixa de ser ilustrativo o fato de que o artigo que foi alvo das maiores

    crticas na cmara foi o relativo a concesso de iseno de impostos sobre a

    importao dos artigos necessrios atividade da companhia. A maior fonte de

    receita para o governo central eram justamente os impostos cobrados das

    atividades de importao e exportao de mercadorias, e isentar quaisquer

    produtos da cobrana destes direitos poderia, portanto, trazer conseqncias

    para o tesouro nacional.10

    E foi exatamente neste sentido que caminhou a maior parte do debate

    sobre o segundo artigo do projeto. O primeiro a falar sobre ele foi o deputado

    Paula Cndido, apenas para observar que a iseno da cobrana de impostos

    sobre a importao do carvo em pedra j havia sido concedida por lei,

    tornando-se, portanto, desnecessria sua meno no projeto em discusso.

    Imediatamente obteve a resposta do deputado pela Bahia, Jos Ferreira

    Souto11, que lembrou que a iseno havia sido garantida na lei do oramento,

    de carter transitrio s teria validade no ano correspondente, e que portanto

    deveria ser garantido que, mesmo perdida a validade da lei em questo, a

    iseno continuasse valendo para a companhia a ser criada.12

    Logo aps essas primeiras observaes formaram-se, nitidamente, grupos

    de deputados com posies diferenciadas no tocante no s ao segundo

    artigo, mas a todo o projeto. Neste sentido, o deputado por Pernambuco,

    Venncio Henriques de Rezende13 foi um dos maiores crticos no apenas da

    iseno da cobrana de impostos dos produtos a serem importados pela

    9 Idem. 10 Miriam Dolhnikoff, O Pacto imperial origens do federalismo no Brasil, So Paulo, Globo, 2005, pp. 156-171 11 Jos Ferreira Souto (? 1864) nasceu na Bahia e dedicou-se magistratura. Foi deputado geral por sua provncia natal entre 1838 e 1856, e por Sergipe entre janeiro e fevereiro de 1864. Foi, ainda, presidente da provncia de Sergipe entre os anos de 1846 e 1847. 12 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 370 13 Venncio Henriques de Rezende (? 1866) nasceu em Pernambuco e dedicou-se ao sacerdcio. Foi o deputado por Pernambuco na Assemblia Constituinte de 1823 e, posteriormente, foi eleito para representar sua provncia natal em diversas legislaturas entre 1830 e 1852. Entre 1843 e 1844 chegou a representar a provncia de Minas Gerais, como suplente.

  • 26

    companhia, mas tambm da concesso do privilgio de exclusividade na

    navegao da regio amaznica pelo perodo de quarenta anos, conforme se

    depreende pela transcrio de sua fala:

    Acha excessivo o privilgio de 40 anos para a navegao por vapor no Amazonas; ali tudo est feito, no h um pau a cortar, no h cachoeira que rebentar, no h torrentes a vencer, em uma palavra, pode-se dizer que ali a companhia vai achar o ouro j depurado e em obra feita. Se, pois, vista destas consideraes acha excessivo o privilegio de 40 anos, muito mais excessivo acha a iseno dos direitos de todos os utenslios e mquinas que a companhia importar pelo prazo de 10 anos.14

    Em outras palavras, para o deputado o projeto previa concesses demais

    por parte do governo, que no se justificariam pelo pouco trabalho que a

    companhia teria de realizar para iniciar suas atividades e comear a auferir

    lucro dela. Fica, entretanto, a dvida sobre o porqu de Henriques de Rezende

    voltar questo do privilgio de exclusividade quando o artigo que o previa j

    havia sido aprovado, poucos minutos antes, sem qualquer oposio por parte

    dele ou de qualquer outro deputado, e quando a questo a ser discutida era,

    teoricamente, to somente a iseno de impostos para importao das

    ferramentas da companhia.

    Outra preocupao para Henriques de Rezende era o risco de o governo

    central realizar enormes concesses a uma companhia que, ao final das

    contas, poderia se estabelecer em qualquer outro pas, tornando-se

    estrangeira, e continuar controlando um comrcio imenso e vital para o imprio.

    Ressurge aqui o mesmo temor que havia feito com que o parlamento no

    aprovasse a formao da companhia de navegao de New York para a

    realizao da navegao a vapor no Amazonas, em 1826, e que iria

    permanecer ainda por algum tempo, at se desvanecer completamente pouco

    antes do decreto de abertura de dezembro de 1866. A histria dos debates em

    14 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 370

  • 27

    torno da navegao a vapor do Amazonas , inclusive, indissocivel da histria

    dos temores de perda da posse brasileira sobre a regio.

    Henriques de Rezende utilizou, ainda, mais um argumento para opor-se

    ao projeto em discusso. O fato de o projeto no prever limites mximos para a

    navegao a vapor que poderia ser realizada pela companhia, conjugado

    iseno de impostos de importao de que gozaria, poderia criar uma situao

    na qual ela se veria beneficiada diante dos produtores nacionais atravs da

    prtica do contrabando de produtos j cultivados no pas, configurando uma

    situao de enriquecimento de estrangeiros em prejuzo dos brasileiros:

    No se tendo marcado o limite alm do qual a companhia no pode navegar, receia que se v estabelecer um comrcio clandestino, de contrabando, com os nossos conterrneos de gneros semelhantes aos nossos, como cacau, acar e algodo, que a companhia por meio de colonos que vai introduzir, poder fazer cultivar. Acresce que ficando a companhia isenta dos direitos de importao de que trata o artigo 2, poder importar livremente durante o tempo do seu privilgio, engenhos de descaroar e enfardar algodo, mquinas para o fabrico do acar, engenhos de serrar madeira, etc.; do que resultar que ningum poder dar estes gneros por to baixo preo, nem competir com ela; vindo portanto o privilgio a ser uma peia para a indstria do pas para os nacionais.

    (...)

    No daqueles que lamentam que os estrangeiros se enriqueam no Brasil: pelo contrrio, estima e deseja que assim acontea, mas no sendo as vantagens somente para os estrangeiros, mas tambm para o pas.15

    Os estrangeiros aos quais Henriques de Rezende se referia eram, na

    verdade, um nico homem, o ltimo da relao de empresrios interessados

    em criar a companhia para navegao da regio amaznica: Joo Diogo Sturz.

    Nascido na Prssia em 1800, naturalizou-se brasileiro e exerceu intensa

    atividade empresarial no pas. Autor de alguns textos sobre a introduo de

    15 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372

  • 28

    mquinas no Brasil e sobre a economia nacional, foi um dos scios da

    Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional, nas dcadas de 1830 e 184016, e

    do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, chegando a ser nomeado, por

    essa poca, cnsul geral do Brasil na Prssia e comissrio do imprio na

    exposio geral da indstria realizada em Londres, em 1851.17

    Mesmo com esse largo currculo, que o levou a ser nomeado Cavaleiro da

    Ordem da Rosa, Sturz no foi capaz de convencer todos os parlamentares de

    sua capacidade de gerir a empresa que estava propondo, como ficou claro no

    apenas com o discurso de Henriques de Rezende, mas, principalmente, com a

    ferrenha oposio que seu projeto enfrentou no Senado. No era a primeira

    vez que intentava formar companhias de navegao. Em 1832 j havia

    recebido do governo um privilgio de exclusividade para empreender a

    navegao a vapor do rio Doce no Esprito Santo, para o que fundou uma

    companhia responsvel pela encomenda do primeiro vapor brasileiro, em

    183718, e em 1840 havia ainda oferecido outra proposta para fazer o mesmo

    nos principais rios do Maranho, com a qual no foi bem sucedido.19 A

    oposio ao projeto baseada no argumento de que a companhia que seria

    criada para a navegao do Amazonas pertenceria a um estrangeiro nada mais

    do que o mesmo temor, apresentado em outros termos, de que semelhante

    atividade acabasse sendo monopolizada por pessoas sem comprometimento

    com a criao das condies necessrias para o desenvolvimento do imprio.

    Paula Cndido tambm no aprovava o projeto em discusso. Em seu

    discurso, afirmou no ser contra a criao de companhias como a que estava

    em discusso, mas entendia que a facilidade com que o governo imperial e o

    parlamento estavam concedendo grandes favores aos seus mentores acabava

    16 Andr Luiz Alpio de Andrade, Variaes sobre um tema: a Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional e o debate sobre o fim do trfico de escravos (1845-1850), Dissertao de mestrado defendida no Instituto de Economia da Unicamp, 2002, p. 85 17 Sacramento Blake, Diccionrio Bibliographico Brazileiro, vol. 3, p. 414 18 Vera B. Alarcn Medeiros, Incompreensvel Colosso: A Amaznia no incio do Segundo Reinado (1840-1850), Tese de doutorado apresentada Faculdade de Geografia e Histria da Universidade de Barcelona, 2006, p. 54 19 Revista Trimensal de Histria e Geographia do Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 2 srie, Tomo 3, 1848, p. 360

  • 29

    fazendo com que muitas empresas fossem levadas a efeito sem, contudo,

    alcanarem os objetivos propostos.20

    O deputado pelo Rio de Janeiro, Joaquim Francisco Vianna21 foi outro que

    se ops ao projeto, por entender que as companhias at ento criadas no pas

    com incentivos do governo teriam como objetivo principal apenas a

    especulao financeira, e no o atendimento das necessidades nacionais. O

    representante fluminense ops-se tambm ao segundo artigo, formulando em

    termos claros um problema que preocuparia mesmo os deputados favorveis

    formao da companhia:

    Observa que estas isenes de direitos sempre so muito funestas s rendas pblicas, porque nada h mais fcil do que mandar vir grande poro de enxadas, machados, e tudo quanto se pode chamar utensis [sic], despachar no Par livre de direitos, e exportar para o Rio de Janeiro e outras provncias. Nos apuros em que estamos, com um dficit, e com as despesas que ho de crescer agora, no prudente dar lugar a contrabando acobertado com a lei. (...) Observa que quase impossvel provar o que se diz na ltima parte deste artigo, isto , se com efeito os utenslios no so para a companhia.22

    O contrabando interprovincial surge, portanto, como uma das principais

    preocupaes dos deputados gerais neste momento, uma vez que a

    concesso da iseno da cobrana de impostos sobre as ferramentas

    importadas pela companhia no Par abriria uma brecha para o comrcio

    interno destes produtos, diminuindo, assim, as rendas auferidas pelas

    alfndegas externas do pas. Ferreira Souto foi o nico deputado que discordou

    desta idia. Para ele, no seria correto argumentar contra o artigo baseando-se

    na possibilidade do cometimento de abusos por parte dos funcionrios da

    20 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372 21 Joaquim Francisco Viana (1803-1864) nasceu no Rio de Janeiro e formou-se bacharel em matemtica, filosofia e Direito. Foi eleito deputado geral por sua provncia natal em quatro legislaturas entre 1834 e 1852. Em 1853 elegeu-se senador pela provncia do Piau, cargo que ocupou at a morte. Entre 1843 e 1844 foi ministro da Fazenda no gabinete conservador de Honrio Hermeto Carneiro Leo e Paulino Jos Soares de Souza, entre outros. 22 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 371

  • 30

    companhia, uma vez que, se estes fossem honestos o contrabando no se

    faria e a iseno representaria um bem para o pas.23 Quanto possibilidade,

    apontada por Henriques de Rezende como um motivo para se opor ao artigo,

    de que a companhia utilizasse o privilgio para comprar as mquinas

    necessrias para o estabelecimento de uma produo barata de acar e

    algodo na regio amaznica, Ferreira Souto a entendia como positiva para o

    pas, e uma forte razo para, ao invs de se fazer oposio ao artigo, defend-

    lo. A lgica adotada pelo deputado era a seguinte: mesmo que houvesse

    abusos no uso da iseno concedida, o estabelecimento destas culturas na

    regio amaznica iria provocar o aumento dos direitos coletados com a

    exportao dos mesmos, uma vez que no haveria mercado consumidor

    suficiente, por enquanto, nas regies includas no privilgio.24 Novamente a

    argumentao girou, portanto, em torno dos impostos coletados com as

    atividades comerciais internacionais do imprio, fonte importante da

    arrecadao tributria.

    Ferreira Souto fazia parte do grupo de deputados que participaram da

    discusso defendendo o projeto, e que era mais numeroso do que o dos

    deputados que o atacaram. Entretanto, dentre estes deputados favorveis ao

    contrato com a companhia ele foi o nico que apoiou a iseno de impostos

    para as ferramentas que ela teria de importar. Todos os demais o atacaram

    como uma brecha aberta para o contrabando de produtos cuja importao

    recolhia grandes receitas para o governo.

    Neste sentido, o deputado paraense ngelo Custdio Correia25, mesmo

    apontando para o fato de que a navegao do Amazonas no seria to simples

    quanto pressupunham os opositores do contrato e que, portanto, a concesso

    do privilgio de exclusividade era plenamente justificvel, concordou com o

    risco de contrabando representado pela iseno dos direitos de importao das

    ferramentas a serem utilizadas pela companhia:

    23 Idem 24 Idem, p. 372 25 ngelo Custdio Correia (? 1856) nasceu no Par e formou-se bacharel em Direito. Foi eleito deputado geral por sua provncia natal em trs legislaturas, entre 1838 e 1854.

  • 31

    Sem dvida passando o artigo como est o contrabando ser grande; a ttulo de se importar instrumentos e utenslios para a companhia, importar-se-o para especulaes mercantis.26

    No mesmo sentido foram as falas de Joaquim Manuel Carneiro da

    Cunha27, deputado pela Paraba, que afirmou aceitar que a iseno fosse

    apenas para as mquinas recentemente descobertas28. Paula Cndido

    opositor moderado do projeto - preferiu propor, como meio de dificultar o

    contrabando, a necessidade de autorizao prvia do presidente do Par para

    a realizao de qualquer importao, por parte da companhia, que se valesse

    da iseno. Com isso imaginava criar um mecanismo pelo qual o presidente

    verificaria a real necessidade dos utenslios a serem importados, impedindo,

    assim, a compra de mercadorias com a finalidade de revend-las mais tarde.29

    O deputado pelo Rio de Janeiro, Jos Clemente Pereira30 apenas apoiou e

    reforou, em um curto discurso, os argumentos de Ferreira Souto.31 Ao final do

    debate, o segundo artigo acabou sendo aprovado, mas com uma emenda que

    buscava garantir que as mquinas e ferramentas contempladas pela iseno

    seriam apenas as necessrias para mover os vapores da companhia.32 Com

    isso, os deputados buscavam diminuir os riscos de contrabando sem, no

    entanto, deixar de conceder aos empresrios um favor entendido como

    importante para a realizao da navegao a vapor da regio amaznica.

    Quanto ao restante do projeto, foi defendido por ngelo Custdio e

    Carneiro da Cunha, alm de Ferreira Souto e Clemente Pereira sempre com os

    mesmos argumentos. Para eles, a navegao do Amazonas e dos demais rios

    26 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 371 27 Joaquim Manuel Carneiro da Cunha (? - ?) era proprietrio de terras, e foi eleito deputado pela provncia da Paraba para cinco legislaturas, entre os anos de 1830 e 1852. Foi tambm representante da mesma provncia na Assemblia Constituinte de 1823. 28 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372 29 Idem 30 Jos Clemente Pereira (1787-1854) nasceu em Portugal e dedicou-se magistratura. Foi conselheiro de Estado e presidente do Tribunal do Comrcio. Foi, tambm, eleito deputado geral pelo Rio de Janeiro em trs legislaturas, entre 1826 e 1841. Em 1843 elegeu-se senador pelo Par. Foi ministro da Justia, do Imprio, dos Negcios Estrangeiros, da Fazenda e da Guerra no stimo gabinete do Primeiro Reinado. No segundo gabinete do Segundo Reinado exerceu os cargos de ministro da Guerra e da Marinha. Era membro do partido Conservador. 31 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 27 de julho de 1840, p. 372 32 Idem, p. 373

  • 32

    no seria to fcil quanto era possvel supor, devido existncia de obstculos

    cuja remoo requeria a concesso dos favores concedidos. Alm disso, pela

    prpria situao de runa da economia paraense (a provncia ainda enfrentava

    os ltimos conflitos relativos Cabanagem) a atividade demoraria muito a dar

    lucros aos empresrios, que precisariam, portanto, de garantias de que o

    capital investido no se perderia. Uma vez iniciada a navegao, a regio se

    desenvolveria e o imprio ganharia com isso, como j havia sido demonstrado

    pelo sucesso da introduo da navegao a vapor em vrios rios da Amrica

    do Norte.33

    Convencida por estes argumentos, a Cmara dos Deputados aprovou,

    sem nenhuma discusso, os demais onze artigos do projeto, remetendo-o

    comisso de redao em 17 de agosto de 184034. Na sesso de 20 de agosto

    do mesmo ano, a redao final do projeto foi lida pela mesma comisso, sendo

    imediatamente aprovada.35 O texto foi, ento, submetido ao crivo do Senado.

    1.2. Os debates no Senado

    As discusses no Senado foram bem mais acaloradas do que as que

    haviam ocorrido na cmara. Enquanto entre os deputados era quase geral o

    sentimento de que o projeto trazia vantagens para o pas, ao iniciar uma

    atividade fundamental para o desenvolvimento da regio amaznica, entre os

    senadores havia uma grande ciso entre os que aceitavam este argumento, e

    os que defendiam que o projeto, ao invs de auxiliar no desenvolvimento do

    pas, serviria para atravanc-lo.

    Na sesso de 22 de maio de 1841, nove meses aps a aprovao pela

    Cmara dos Deputados, o senador por Minas Gerais, Nicolau Pereira de

    33 Idem, p. 371-373 34 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 17 de agosto de 1840, p. 639 35 Anais da Cmara dos Deputados, sesso de 20 de agosto de 1840, p. 658

  • 33

    Campos Vergueiro36, leu diante da assemblia o parecer que comisso de

    comrcio da qual fazia parte elaborou acerca do projeto. Faziam parte da

    comisso, ainda, os senadores Manoel Incio de Melo e Souza37, tambm por

    Minas Gerais, e Francisco de Paula Souza e Melo38, por So Paulo. O voto lido

    diante dos demais senadores era direto: segundo o parecer, o projeto no

    deveria ser aprovado.

    Os argumentos apresentados pela comisso eram trs. O monoplio de

    quarenta anos concedido aos empresrios era longo demais, e portanto no

    poderia ser aprovado, ao passo que os demais favores concedidos eram

    aceitveis, desde que estendidos a todos os interessados na atividade. Alm

    disso, sua concesso seria inconstitucional, uma vez que em seu artigo 179,

    pargrafo 24, a constituio garantiria o livre exerccio de qualquer indstria por

    quaisquer brasileiros, ficando aberta uma exceo, no pargrafo 26, em favor

    dos inventores, que poderiam gozar de privilgios de exclusividade sobre suas

    invenes. As mesmas disposies estariam presentes tambm em uma lei de

    28 de agosto de 1830, que tambm estaria sendo descumprida pela concesso

    do privilgio. Finalmente, a comisso entendia que nenhuma atividade poderia

    ser desenvolvida sem a livre concorrncia e, neste sentido, longe de auxiliar no

    desenvolvimento da regio amaznica, o projeto analisado representaria um

    entrave a que este objetivo fosse alcanado.39

    Percebe-se de sada, diferenas substanciais entre os pareceres emitidos

    na cmara e no Senado. Naquele a indicao era de que o projeto fosse

    36 Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859) nasceu em Portugal e doutorou-se em Direito. Foi um dos polticos mais influentes do sculo XIX, tendo sido eleito representante de So Paulo nas Cortes de Lisboa, em 1822, e na Assemblia Constituinte, em 1823. Entre 1826 e 1828 foi deputado geral, tambm por So Paulo, quando foi escolhido senador por Minas Gerais, cargo que ocupou at sua morte, em 1859. Foi membro da Regncia Provisria (1831) e ministro do Imprio e da Fazenda durante a Regncia Trina Permanente. No stimo gabinete do Segundo Reinado foi ministro do Imprio e da Justia. Era membro do partido Liberal. 37 Manoel Incio de Melo e Souza (1781-1859) nasceu em Portugal e formou-se em Direito. Exerceu os cargos de deputado geral por Minas Gerais entre 1826 e 1829 e entre 1835 e 1836, quando elegeu-se senador pela mesma provncia. Foi, ainda, presidente da provncia mineira entre 1831 e 1833. 38 Francisco de Paula Souza e Melo (1791-1851) nasceu em So Paulo e formou-se em Direito. Foi eleito representante de sua provncia natal na Assemblia Constituinte (1823), e deputado geral nas duas primeiras legislaturas do Imprio (entre 1826 e 1833). Em 1833 foi eleito senador, tambm por So Paulo, cargo que ocupou at a morte em 1851. Foi ministro do Imprio no stimo gabinete do Segundo Reinado (1847) , alm de se tornar presidente do Conselho de Ministros no nono gabinete (1848) no qual ocupou, ainda, as pastas do Imprio e da Fazenda. Era membro do partido Liberal. 39 Anais do Senado, sesso de 22 de maio de 1841, pp. 159-160

  • 34

    aprovado, por representar a chance de introduzir uma empresa de grande

    importncia para o pas. Neste, o projeto era rejeitado por ser anticonstitucional

    e por representar um entrave ao mesmo desenvolvimento que a comisso da

    Cmara dos Deputados imaginava que iria acelerar.

    Iniciada a primeira discusso na sesso de 28 de maio de 1841, foi adiada

    por uma questo burocrtica. Enquanto os senadores por Alagoas, Marqus de

    Barbacena40 e pelo Piau, Luiz Jos de Oliveira Mendes41 j demonstravam sua

    inteno de rejeitar o projeto em primeira discusso, Vergueiro lembrava da

    convenincia de discuti-lo,uma vez que no se pode rejeitar um projeto da

    outra cmara sem que entre em discusso, e Vasconcellos, juntamente com

    Saturnino, mostravam j sua simpatia pela idia, e pediam para que o projeto

    inteiro fosse impresso ainda no o tinha sido no Senado para que pudesse

    ser discutido convenientemente.42 A primeira discusso a respeito de qualquer

    assunto, tanto na cmara quanto no Senado, tinha por finalidade nica avaliar

    a convenincia ou no do texto apresentado, tendo em vista os interesses

    primordiais do pas. Neste sentido, a inclinao de alguns senadores para

    rejeitar o projeto de navegao a vapor do Amazonas e dos demais rios antes

    mesmo de sua impresso e, portanto, ainda durante a primeira discusso,

    demonstra que, para eles, o contrato tal qual estava proposto no era passvel

    de melhorias nem de correes, pois atentava contra interesses fundamentais

    do imprio devendo, portanto, ser prontamente rejeitado. Postura frontalmente

    contrria adotada pela maioria dos deputados gerais, e que iria ser

    predominante entre o grupo de senadores contrrios medida.

    Ao final destes primeiros discursos foi submetida votao dos senadores

    a deciso de imprimir ou no o projeto em discusso. Tendo a maioria decidido

    40 Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta (1772-1842), marqus de Barbacena, nasceu em Minas Gerais e foi marechal do exrcito, alm de Conselheiro de Estado. Foi eleito deputado pela Bahia na Assemblia Constituinte (1823) e senador por Alagoas na primeira legislatura (1826), cargo que ocupou at 1842. Foi, ainda, ministro do Imprio no terceiro gabinete do Primeiro Reinado, cargo que ocupou novamente no quarto gabinete. Foi, ainda, ministro da Fazenda no quarto gabinete do Primeiro Reinado e no oitavo gabinete do Primeiro Reinado. 41 Luiz Jos de Oliveira Mendes (1779-1851), primeiro baro de Monte Santo, nasceu na Bahia e formou-se em Direito. Foi eleito senador pelo Piau em 1826, tendo exercido os cargos de vice-presidente do Senado entre 1841 e 1847 e de presidente do Senado entre 1847 e 1851. 42 Anais do Senado, sesso de 28 de maio de 1841, pp. 268-270

  • 35

    positivamente, ficou o debate adiado at que a impresso se realizasse.43 Os

    discursos sobre o assunto foram retomados apenas na sesso de 3 de junho

    de 1841, com a leitura do projeto e do parecer da comisso. Imediatamente

    formaram-se dois grupos de senadores. Luiz Jos de Oliveira Mendes, Nicolau

    Pereira de Campos Vergueiro, o marqus de Barbacena, Francisco de Paula

    Souza e Melo, Antnio Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti de

    Albuquerque44, Cassiano Esperidio Melo e Matos45 e Antnio Pedro da Costa

    Ferreira46 mostraram-se contrrios ao projeto, e defenderam que ele fosse

    rejeitado j na primeira discusso, por no ser til aos interesses do pas. Eram

    todos representantes de provncias nordestinas, exceo de Vergueiro

    Minas Gerais e Souza e Melo So Paulo. J para Jos Saturnino da Costa

    Pereira47, senador por Mato Grosso, Manuel Alves Branco48, senador pela

    Bahia, Vasconcelos49, Francisco Carneiro de Campos50, eleito pela Bahia, e

    Caetano Maria Lopes Gama51, senador pelo Rio de Janeiro, o texto em

    43 Idem, p. 270 44 Antnio Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti de Albuquerque (1797-1863), visconde de Albuquerque, nasceu em Pernambuco e foi oficial do exrcito, alm de Conselheiro de Estado. Foi um dos polticos mais influentes do Imprio, tendo sido eleito deputado geral por sua provncia natal entre 1826 e 1837, e senador, tambm por Pernambuco, em 1838. No Poder Executivo, exerceu os cargos de ministro da Fazenda, Imprio, Marinha, e da Guerra em diversos gabinetes entre 1830 e 1863. Era membro do partido Liberal. 45 Cassiano Esperidio Melo e Matos (1797-1857) nasceu na Bahia e formou-se em Direito. Foi deputado geral por sua provncia natal entre 1830 e 1833, tendo sido eleito senador pela mesma provncia em 1837. 46 Antnio Pedro da Costa Ferreira (1778-1860), baro de Pindar, nasceu no Maranho e formou-se bacharel em cnones. Foi deputado geral pelo Maranho entre 1830 e 1834. Em 1837 foi eleito senador pela mesma provncia, a qual presidiu entre 1835 e 1837. 47 Jos Saturnino da Costa Pereira (1773-1852) nasceu na colnia do Sacramento e exerceu o cargo de sargento-mor de engenheiros. Foi eleito senador por Mato Grosso em 1828, tendo sido presidente da mesma. Foi, ainda, ministro da Guerra em 1837. 48 Manoel Alves Branco (1797-1855), 2 visconde de Caravelas, nasceu na Bahia e formou-se bacharel em Leis. Poltico influente do sculo XIX, foi Conselheiro de Estado e exerceu o cargo de deputado geral por sua provncia natal entre 1830 e 1833, tendo sido eleito senador pela mesma em 1837. Foi, ainda, ministro da Justia, dos Negcios Estrangeiros, do Imprio, e da Fazenda em diversos gabinetes entre 1835 e 1848, tendo sido o primeiro a presidir o Conselho de Ministros, entre1847 e 1848. Foi membro do partido Liberal. 49 Eram senadores, em 1841, Jos Teixeira da Fonseca Vasconcelos, eleito por Minas Gerais; Antnio da Cunha Vasconcelos, eleito pela Paraba; e Bernardo Pereira de Vasconcelos, senador por Minas Gerais. Como nos Anais do Senado a referncia somente a Vasconcelos, sem qualquer outro nome de acompanhamento, no foi possvel distinguir com clareza a qual destes trs senadores referem-se os discursos em questo. 50 Francisco Carneiro de Campos (? 1842) nasceu na Bahia e formou-se em Direito. Foi representante de sua provncia natal na Assemblia Constituinte de 1823 e eleito senador, ainda pela Bahia, em 1826. No Poder Executivo exerceu os cargos de ministro dos Negcios Estrangeiros em diversos gabinetes, entre 1830 e 1832. 51 Caetano Maria Lopes Gama (1795-1864), visconde de Maranguape, nasceu em Pernambuco e formou-se em Direito. Foi o representante da provncia de Alagoas na Assemblia Constituinte de 1823, deputado geral por Pernambuco entre 1826 e 1829 e por Gois entre 1830 e 1833. Em 1839 foi eleito senador pelo

  • 36

    discusso trazia benefcios ao pas, e por isso deveria, ao menos, ser aprovado

    neste estgio inicial dos debates.

    Para Oliveira, o primeiro a discursar contra o projeto, a comisso j teria

    analisado todas as suas vantagens e desvantagens antes de emitir o seu

    parecer, o que dispensaria, portanto, novas discusses. A situao era clara e

    dispensava maiores anlises: os empresrios estavam querendo tornar-se

    senhores do Par, depois do Mato Grosso, em troca do transporte de alguns

    malotes, recrutas e algumas arrobas de gneros, o que de forma alguma

    justificava a concesso que se pretendia realizar. Para ele, no existiam

    vantagens para o pas no projeto, mas somente para os empresrios, que

    ganhariam a posse sobre uma imensa regio, valendo-se de um direito

    concedido exclusivamente aos inventores no pargrafo 26 do artigo 179 da

    Constituio. Entretanto os empresrios, ao contrrio do que alguns senadores

    queriam demonstrar, no seriam inventores de nada, uma vez que no haviam

    descoberto os rios que pretendiam navegar.52 A concluso de Oliveira,

    portanto, s poderia ser uma, que ele formulou de forma enftica:

    Senhores, no gastemos mais tempo com semelhante projeto; ele deve cair em primeira discusso, a fim de nos ocuparmos de coisas mais teis.53

    Nicolau de Campos Vergueiro, um dos relatores da comisso de

    comrcio, tambm atacou o projeto buscando demonstrar as razes pelas

    quais a comisso o rejeitou. Segundo o senador, a comisso entendeu que a

    melhor forma de impulsionar uma atividade vital para o pas seria favorecendo

    a concorrncia entre empresrios interessados em realiz-la, e no conceder

    um privilgio de exclusividade capaz de inviabilizar completamente qualquer

    disputa: Rio de Janeiro. No Poder Executivo exerceu os cargos de presidente das provncias de Gois (1824-1827), Rio Grande do Sul (1829-1831) e Alagoas (1844-1845). Foi tambm ministro dos Negcios Estrangeiros, do Imprio e da Justia em diversos gabinetes entre 1839 e 1862. Exerceu, ainda, o cargo de Conselheiro de Estado. Era membro do partido Liberal. 52 Anais do Senado, sesso de 3 de junho de 1841, pp. 18 e 28 53 Idem, p. 18

  • 37

    Quando se quer promover um ramo de indstria, cumpre facilitar a concorrncia e conceder favores, a fim de que aparea o maior nmero possvel de empreendedores; deve-se mesmo procurar meios para que mais de uma companhia concorra a exercer essa indstria; portanto, pareceu comisso um contra-senso que, ao mesmo tempo, se trate de desenvolver uma indstria, e se conceda semelhante privilgio a uma companhia proibindo assim que todos os mais concorram para o mesmo fim. Como pois se pode promover a navegao por vapor nesses lugares, permitindo-se somente a essa companhia exerc-la, e proibindo o mesmo a todos os mais? este um meio de tolher o desenvolvimento da indstria e no de a fazer prosperar.54

    Ficava, desta forma, formulado um dos princpios centrais da teoria liberal

    clssica, segundo o qual o principal motor de qualquer atividade seria a

    concorrncia laissez faire sem a qual seria invivel desenvolver qualquer

    tipo de atividade em qualquer lugar do mundo. A interferncia do Estado

    deveria ocorrer, neste sentido, apenas para garantir que esta concorrncia se

    desse nos termos mais favorveis possveis, o que, para Vergueiro, significava

    oferecer vantagens e favores a todos que se dispusessem a realizar a

    navegao. Como veremos adiante, essa teoria no foi unanimemente aceita

    entre os senadores, o que acabou acirrando o debate.

    O privilgio de exclusividade, entretanto, poderia ser aceito desde que se

    referisse a alguma atividade nova no pas, ainda no introduzida por ningum,

    uma vez que neste caso o empresrio em questo seria considerado o inventor

    da empresa. Volta-se, neste momento, ao pargrafo 26 do artigo 179 da

    Constituio, que garantia este direito. Os empresrios em questo, entretanto,

    no se encaixariam nesta categoria, uma vez que a navegao a vapor j

    estaria plenamente disseminada pelo pas e os rios que pretendiam navegar

    eram j conhecidos. Neste sentido, alm de prejudicial ao pas, o projeto seria

    inconstitucional. Alm do mais, segundo o senador as tentativas de incentivo

    de empresas mediante a concesso de privilgios de exclusividade j teriam

    trazido resultados to negativos para o pas que ficava difcil entender porque o 54 Idem, p. 20

  • 38

    governo imperial insistia nesta estratgia. As companhias que anteriormente

    receberam este privilgio tambm haviam apresentado grandes planos,

    prometido grandes vantagens, mas haviam rapidamente desaparecido por

    conta da m administrao, sem oferecer os resultados prometidos ao pas55:

    tempo de conhecermos quanto so fantsticas estas grandes empresas. Apresenta-se planos gigantescos; mas, afinal, o resultado efmero; algumas chegam a brotar e fazer circular algum capital nos locais que se estabelecem; mas sua m organizao faz com que caduquem e deixem de produzir os resultados prometidos: os empreendedores apresentam sempre grandes planos, vantagens extraordinrias, etc., para animar os capitalistas e concorrer com seus capitais; porm depois tudo desaparece.56

    A companhia que se intentava criar para realizar a navegao a vapor na

    regio amaznica seria, ainda, pequena demais para realizar as obrigaes

    previstas no projeto. Pelo texto em discusso, a companhia ficava obrigada a

    aumentar progressivamente a quantidade mnima de vapores em atividade na

    regio concedida, at chegar ao nmero de onze, j ao final do perodo de

    vigncia do privilgio de exclusividade. Para Vergueiro, era bvio que essa

    quantidade de barcos no seria suficiente para navegar toda a regio com a

    quantidade mnima de viagens prevista no projeto. Com isso, acabaria

    ocorrendo de a companhia atuar apenas nas reas mais lucrativas, nas quais a

    menor quantidade possvel de obras teriam de ser realizadas, deixando todas

    as demais abandonadas. Ao mesmo tempo, por ser a nica a realizar a

    atividade poderia cobrar o preo que quisesse por ela, arruinando toda a

    navegao amaznica. O senador afirmou que at aceitaria a concesso do

    privilgio a empresrios que se propusessem a realizar todas as obras

    necessrias para facilitar as comunicaes pelos rios da regio amaznica,

    uma vez que estas demandariam muito tempo e dinheiro. No seria, entretanto,

    este o caso da companhia em questo, que estaria interessada apenas em

    55 Idem, pp. 19-22 56 Idem, pp. 21-22

  • 39

    lucrar com uma atividade fcil recebendo, para isso, grandes favores e

    privilgios do governo imperial.

    Vergueiro argumentou, ainda, contra os sacrifcios que a companhia teria

    de realizar para no perder o privilgio, caso no iniciasse suas atividades no

    prazo estipulado:

    Uma das garantias que oferece a empresa que quando, dentro do prazo marcado, no apresenta as barcas designadas, par obter mais tempo de espera far o depsito de dez contos de ris em aplices. Veja-se se semelhante disposio no causa riso! Que pena sofre a companhia por tal maneira? Nenhuma. Essas aplices, em lugar de estarem guardadas na gaveta dos empresrios, iro para o tesouro, continuando a vencer juros! Eis os grandes sacrifcios a que empresa se comprometer para obter mais tempo de espera!57

    O senador considerou um absurdo uma clusula que previa um sacrifcio

    por parte dos empresrios que mais se parecia com um investimento, uma vez

    que o pagamento da multa pelo atraso no incio da navegao voltaria para a

    companhia ao final do privilgio corrigido pelos juros vigentes no perodo em

    que o dinheiro estivesse nas mos do governo. Se ficassem guardados nos

    cofres de algum banco, ou fossem investidos em outras atividades, segundo o

    senador, certamente estes recursos no ofereceriam tantos rendimentos aos

    seus donos.

    Para Vergueiro a navegao a vapor dos rios amaznicos realmente era

    uma atividade muito til, que traria grandes vantagens para o pas. Seria

    exatamente por esse motivo que ele afirmou ser contra a concesso de um

    privilgio que se tornaria, invariavelmente, um srio obstculo ao

    desenvolvimento do norte do pas, principalmente no momento em que a regio

    acabava de sair de um perodo conturbado e comearia a se recuperar das

    perdas sofridas com a rebelio ali ocorrida. A livre concorrncia, neste sentido,

    57 Anais do Senado, sesso de 5 de junho de 1841, p. 90

  • 40

    seria a nica forma de garantir que a navegao a vapor efetivamente

    contribusse para o enriquecimento do pas.58

    Opinio semelhante defendeu o senador Oliveira e Horta, o marqus de

    Barbacena. Para ele, era importante que o projeto fosse inteiramente rejeitado,

    sem nenhuma possibilidade de correo, para que ficasse clara a posio do

    Senado com relao concesso de privilgios de exclusividade:

    Eu acho muito conveniente que o projeto seja rejeitado in limine, e que se firme a opinio de que o Senado avesso a tais concesses. isto tanto mais necessrio, quanto se observa que a indiscrio, com que se concedem tais privilgios se vai propagando nas assemblias provinciais.59

    Para Barbacena no bastava que o projeto fosse rejeitado. Ele precisaria

    cair sem qualquer possibilidade de correo, inteiramente, para que esta fato

    servisse de exemplo para outras instituies nomeadamente as assemblias

    provinciais que estariam tornando rotineiras as concesses de privilgios de

    exclusividade. Percebe-se, assim, no somente o grau de relacionamento

    existente entre essas duas esferas do poder, mas tambm a influncia que as

    decises tomadas em mbito central poderiam ter sobre as medidas adotadas

    em mbito provincial. Com uma rejeio exemplar por parte dos senadores,

    entendia Barbacena, os deputados provinciais certamente pensariam duas

    vezes antes de conceder novos privilgios de exclusividade. Para ele, assim

    como para Vergueiro e Oliveira, a concesso de privilgios, ao invs de

    impulsionar o desenvolvimento de indstrias estratgicas, serviria apenas para

    dificultar o progresso do pas.60

    Para Paula Souza, outro relator da comisso de comrcio, o projeto

    deveria ser rejeitado em primeira discusso porque este estgio do debate

    deveria tratar apenas da sua utilidade, a qual ele entendia que absolutamente

    58 Idem, pp. 88-92 59 Anais do Senado, sesso de 3 de junho de 1841, p. 22 60 Idem, pp. 22-23

  • 41

    no existia. Segundo o senador, no seria vantajoso para o pas conceder um

    privilgio de exclusividade de quarenta anos para uma companhia navegar

    uma regio to grande quanto a Amaznia, e com tanto potencial de

    desenvolvimento. Por ser central no texto em debate este dispositivo no

    poderia ser modificado sem que os empresrios perdessem o interesse na

    atividade, razo pela qual seria absolutamente intil levar o projeto segunda

    discusso.

    Paula Souza tambm via nas experincias anteriores da concesso de

    privilgios uma forte razo para opor-se ao projeto. Nestes casos citados, as

    companhias criadas com base em tais privilgios preocupar-se-iam apenas

    com lucros imediatos e vultosos, o que fazia com que, uma vez conseguidos os

    favores do governo, tratassem de vend-los a outros empresrios ou ento a

    atuar prescindindo deles. Com isso, libertavam-se das obrigaes a que a

    concesso as havia amarrado:

    As companhias empresrias que entre ns se tm organizado, quase todas tm tido em vista um lucro imediato, e no remoto; a maior parte delas, depois de obter a concesso do privilgio, tratam de o vender, e, se alguma o no faz, prescinde dele. (...)

    Ns, como muito bem notou um nobre senador, no temos, quanto a este objeto, tido as cautelas de outras naes; concedemos o privilgio, ignorando a possibilidade da companhia, e as condies com que pretende servir o pblico; de maneira que pode muito bem vir a acontecer que quem quiser gozar das barcas tenha de pagar um preo exorbitante.61

    A rea concedida para a atividade dos empresrios seria muito grande,

    segundo o senador. No faria sentido, para ele, colocar sob um privilgio de

    exclusividade uma rea to grande quanto o norte do pas, na qual apenas

    uma companhia, incapaz de atuar sobre toda a regio, teria o direito de

    estabelecer linhas de vapor por quarenta anos, excluindo todas as demais

    61 Idem, p. 30

  • 42

    interessadas. Neste contexto nem mesmo os portos no atendidos pela

    companhia contratada poderiam ser atendidos por outros empresrios, o que

    certamente traria prejuzos para a populao local:

    Temos ainda a considerar que o privilgio concedido por espao de quarenta anos, isto, em um pas novo, onde o progresso da indstria rpido; e basta comparar o nosso estado atual com aquele em que nos achvamos, a trinta anos, para reconhecer a verdade desta assero. Devemos, por conseqncia, esperar que, durante estes quarenta anos que se seguem, ainda mais rpido seja o desenvolvimento; entretanto, os lugares a que no puderem chegar as vantagens da empresa ficaro inibidos de gozar dos benefcios de que outros gozaro.

    Assim, pois, me parece que tal empresa no vir a produzir as vantagens que se tm em vista. Primeiramente, no ela realizvel; e mesmo quando levasse certas vantagens a alguns lugares daquela provncia, viria a ser prejudicial, por isso que embaraaria o estabelecimento de quaisquer companhias que pudessem levar a efeito esses melhoramentos em outros pontos.62

    Para Paula Souza no era verdadeira a afirmao segundo a qual, sem a

    concesso de privilgios, seria impossvel estabelecer a navegao a vapor

    nos rios amaznicos. Isso poderia ser verdadeiro na poca em que os barcos a

    vapor estavam chegando ao Brasil; no momento, entretanto, esta navegao j

    seria comum em vrios rios do imprio, o que permitia ao senador acreditar

    que o capital privado se encarregaria de introduzi-la tambm em sua poro

    norte. E mesmo que ficasse comprovado que a concesso de favores seria

    indispensvel para atingir estes objetivos, eles deveriam ser oferecidos a todos

    que se dispusessem a realizar a empresa, no a apenas uma companhia.

    Desta forma, segundo o senador, ficaria preservada a concorrncia que, ao

    final das contas, seria a responsvel pelo desenvolvimento da regio.63

    A argumentao de Paula Souza ia no seguinte sentido: o fato de a regio

    amaznica encontrar-se despovoada e, portanto, no possuir muitos produtos 62 Idem, p. 31 63 Idem, pp. 29-32

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    a transportar acabaria servindo de justificativa para a companhia no elevar o

    nmero de seus vapores para alm do mnimo contratado onze. Isso no

    ocorreria, entretanto, se outras empresas estivessem empenhadas em realizar

    esta atividade. Neste caso, cada empresrio faria o melhor possvel para tentar

    derrotar seus adversrios, e assim mais vapores sulcariam as guas do

    Amazonas, o que incentivaria uma maior colonizao de suas terras, o que, por

    sua vez, aumentaria a quantidade de produtos a serem comercializados e

    transportados levando, assim, ao desenvolvimento de toda a regio. Desta

    forma, em conformidade com o exposto por Vergueiro, conclua Paula Souza:

    A multiplicidade de tais empresas traria o desenvolvimento da navegao e colonizao, e infundiria o desejo da multiplicidade da colonizao, base de aumento de produes, e por conseqncia de progresso de navegao. Mas se isto obsta o privilgio concedido companhia, evidente que ela, bem longe de promover a navegao e colonizao, vai embaraar; o que se no compadece com os desejos que parece nutrir os nobres senadores.64

    Neste sentido, a concluso do senador foi clara. No adiantaria passar o

    projeto para segunda discusso, uma vez que neste estgio o privilgio

    necessariamente teria de ser rejeitado. Feito isso, os empresrios

    desinteressar-se-iam da empresa, uma vez que, para Paula Souza, os que

    obtm privilgio no tem teno de r