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A CORPORAÇÃO a busca patológica por lucro e poder Joel Bakan Tradução: Camila Werner

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A CORPORAÇÃOa busca patológica por lucro e poder

Joel Bakan

Tradução: Camila Werner

Sumário

Introdução 1Capítulo 1 – A ascensão da corporação ao domínio 5Capítulo 2 – Negócios como sempre 33Capítulo 3 – A máquina externalizadora 71Capítulo 4 – Democracia Ltda. 102Capítulo 5 – Corporações ilimitadas 133Capítulo 6 – Acerto de contas 168Notas 205Bibliografia 253Agradecimentos 270

Introdução

Quando as tevês exibiram insistentemente imagens de executivos humilhados e algemados, analistas, políticos e líderes empresariais foram rápidos em afirmar que indivíduos ganan-ciosos e corruptos, e não o sistema como um todo, eram os cul-pados pela desgraça em Wall Street. “Estamos falando apenas de algumas maçãs podres ou há algo de errado com o sistema?”, Sam Donaldson perguntou ao ex-presidente da bolsa de valores de Nova York, Richard Grasso, no programa This Week do canal norte-americano ABC. “Bem, Sam”, Grasso explicou, “tivemos algumas falências de grande porte e temos que extirpar as pessoas ruins, as práticas erradas; isso sem dúvida, seja um, sejam quinze, e isso em comparação com mais de dez mil empresas de capital aberto — mas uma, Sam, apenas uma WorldCom ou uma En-ron já é demais”. Apesar dessas afirmações, hoje os cidadãos — e também muitos líderes empresariais — estão preocupados com o fato de que os defeitos do sistema corporativo podem ser muito mais profundos do que alguns tremores em Wall Street possam indicar. Essas preocupações são o foco deste livro.

A premissa principal é de que a corporação é uma ins-tituição — uma estrutura única e um conjunto de ordens que

direcionam as ações das pessoas dentro dela. Ela também é uma instituição legal, cuja existência e capacidade de funcio-nar dependem da lei. O objetivo legalmente definido de uma corporação é a defesa, impiedosa e sem exceções, de seus in-teresses, não importando as conseqüências que causem aos outros. Assim, defendo que a corporação é uma instituição patológica, perigosa detentora de um grande poder que ela exerce sobre as pessoas e a sociedade. Isso suscita uma série de questões, as quais abordo nos capítulos a seguir. Como as corporações se tornaram o que são hoje (Capítulo 1)? Qual é a natureza e quais são as implicações de sua personalidade patológica (capítulos 2 e 3) e de seu poder sobre a sociedade (capítulos 4 e 5)? E o que deveria e pode ser feito para dimi-nuir seu potencial de causar danos (Capítulo 6)? Essas são as perguntas centrais deste livro. Ao revelar os imperativos ins-titucionais comuns a todas as corporações e suas implicações para a sociedade, espero fornecer um elo crucial que falta às tentativas de compreensão e de atitude das pessoas sobre uma das questões mais urgentes de nosso tempo.

Peter Drucker, talvez o mais importante teórico de admi-nistração do mundo, foi um dos primeiros a analisar a corporação como uma instituição em Concept of the Corporation, obra pioneira de 1946. Foi Drucker quem considerou significativo o fato de todas as corporações terem a mesma organização institucional e o mesmo objetivo. Para a maioria de nós, no entanto, os detalhes diários da vida corporativa tendem a obscurecer a perspectiva maior. Assim como o CEO da Pfizer, Hank McKinnell, temos “grandes dificuldades em pensar nas corporações como uma instituição”. Pelo contrário, nós as entendemos mais em termos de como uma se diferencia da outra — transnacionais versus locais, de alta tecnologia versus indústria de base, progressivas versus tradicionais, modernas versus conservadoras, estáveis versus

arriscadas, famosas versus desconhecidas, boas versus más — e nos esquecemos do fato de que todas as corporações, pelo me-nos todas as de capital aberto ao investimento público, têm em comum a mesma estrutura institucional; e é por isso que tanto faz falar em corporação ou em corporações. Como o acadêmico da Escola de Administração de Harvard Joe Badaracco ressaltou quando lhe fizeram a simples pergunta: “O que é uma corpo-ração?”: “É engraçado que depois de tantos anos lecionando na escola de administração ninguém tenha me perguntado tão pontualmente como defino uma corporação”.1

A proposta deste livro é explorar o que uma corporação é de fato como instituição. Obviamente as instituições são com-postas por pessoas, e muito do que vem a seguir é baseado em entrevistas originais com participantes do mundo corporativo, analistas e críticos que ressaltam seus perigos e propõem solu-ções.2 Tanto no estilo quanto no tom do livro, tentei evitar jar-gões acadêmicos e técnicos desnecessários. Meu objetivo foi tor-ná-lo acessível tanto ao leigo quanto ao especialista na área, sem comprometer sua fundamentação em pesquisas rigorosas e em meu conhecimento e minhas observações como professor e pes-quisador de Direito. No livro, uso a palavra “corporação” para descrever a ampla corporação anglo-americana de capital aberto ao investimento público, em oposição às pequenas corporações, às pequenas ou grandes instituições sem fins lucrativos e às em-presas privadas. No que diz respeito às corporações anglo-ame-ricanas, as maiores e mais poderosas estão nos Estados Unidos, e a globalização da economia expandiu sua influência muito além das fronteiras nacionais. Elementos do modelo anglo-americano influenciam cada vez mais as corporações em outros países, so-bretudo na Europa e no Japão.3 Por essas razões, as análises e os argumentos apresentados neste livro têm importantes aplicações para o restante do mundo.

Capítulo 1

A ascensão da corporação ao domínio

Durante os últimos 150 anos, a corporação saiu de uma relativa obscuridade para se tornar a instituição econômica predominante no mundo. Hoje em dia, as corporações gover-nam nossa vida. Determinam o que comemos, a que assistimos, o que vestimos, onde trabalhamos e o que fazemos. Estamos inevitavelmente cercados por sua cultura, iconografia e ideolo-gia. E, como a Igreja ou a monarquia em outros tempos, elas se apresentam como infalíveis e onipotentes, glorificando a si mesmas com seus edifícios imponentes e sua ostentação bem planejada. Cada vez mais, as corporações ditam as decisões de seus supostos supervisores no governo e controlam setores da sociedade assim que se instalam dentro da esfera pública. A extraordinária ascensão das corporações ao domínio é um dos eventos mais marcantes da história moderna, não apenas por causa das origens desfavoráveis da instituição.

Muito antes da escandalosa falência da Enron, a cor-poração, uma instituição recém-nascida, estava mergulhada

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em corrupção e fraude. Durante o final do século XVII e o começo do século XVIII, corretores de ações conhecidos como “intermediários” rondavam os cafés de má reputação da Exchange Alley londrina, um labirinto de vielas entre a Lombard Street, a Cornhill e a Birchin Lane, à procura de crédulos investidores para quem pudessem vender cotas de companhias fantasmas. Tais companhias prosperaram por pouco tempo, alimentadas pela especulação, e logo entra-ram em falência. Entre 1690 e 1695, 93 dessas companhias estavam em funcionamento. Em 1698, sobravam apenas 23. Em 1696, os membros do comércio inglês informaram que a forma corporativa tinha sido “completamente pervertida” pela venda de ações a “homens ignorantes, seduzidos pela re-putação inventada e divulgada com habilidade, dada a pros-peridade das ações”.1 Apesar de se mostrarem chocados, os membros provavelmente não estavam surpresos.

Homens de negócios e políticos suspeitaram da corpo-ração desde seu surgimento no final do século XVI. Diferente da forma predominante de sociedade, na qual um grupo rela-tivamente pequeno de homens, unidos por lealdade pessoal e confiança mútua, juntava seus recursos para montar negócios em que eram proprietários e administradores, a corporação separou a propriedade da administração — um grupo de pes-soas, diretores e gerentes, administrava a empresa, enquanto outro grupo, os acionistas, era proprietário. Muitos acredita-vam que esse modelo único era uma receita para a corrupção e o escândalo. Em A Riqueza das Nações, Adam Smith alertou que, pelo fato de os administradores não serem confiáveis para lidar “com o dinheiro dos outros” quando os negócios fossem organizados como corporações, o resultado inevitável seria “negligência e esbanjamento”. De fato, quando ele es-

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creveu essas palavras em 1776, a corporação estava proibida na Inglaterra havia mais de cinqüenta anos. Em 1720, o Par-lamento inglês, farto da epidemia de travessuras que infestava a Exchange Alley, baniu a corporação (com algumas exce-ções). O ato foi motivado pela conhecida falência da South Sea Company.

Criada em 1710 para fazer comércio com as colônias es-panholas da América do Sul, inclusive de escravos, a South Sea Company foi uma arapuca desde o começo. Seus diretores, al-guns deles figuras importantes do mundo político, sabiam muito pouco sobre a América do Sul, tinham uma remota ligação com o continente (parece que um deles tinha um primo que morava em Buenos Aires) e deviam saber que o rei da Espanha se recu-saria a garantir-lhes os direitos necessários para fazer negócios em suas colônias sul-americanas. Como um diretor reconheceu, “a menos que os espanhóis estejam privados de bom senso... te-nham abandonado seu próprio comércio, jogado fora a única coisa de valor que lhes restou no mundo e, em resumo, estejam empenhados em sua própria ruína”, eles nunca abririam mão da exclusividade de negociar em suas próprias colônias. Ainda assim os diretores da South Sea Company prometeram “lucros fabulosos” e montanhas de ouro e prata a seus potenciais investi-dores em troca de produtos de exportação ingleses banais, como queijo de Cheshire, cera para lacre e picles.2

Os investidores acotovelavam-se para comprar ações da companhia, que cresceram extraordinariamente, seis vezes em um ano, e logo despencaram quando os acionistas, percebendo que a companhia não tinha valor algum, entraram em pânico e venderam suas ações. Em 1720 — ano em que uma grande praga atingiu a Europa, a ansiedade pública “era alimentada”, segundo um historiador, “pelo medo supersticioso de que ela

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(a praga) fora enviada como punição pelo materialismo hu-mano”3 — a South Sea Company faliu. Perderam-se fortunas, vidas foram arruinadas, um dos diretores da companhia, John Blunt, foi morto com um tiro por um acionista enfurecido, mul-tidões lotaram Westminster e o rei antecipou seu descanso na casa de campo para controlar a crise.4 Os diretores da South Sea Company foram convocados pelo Parlamento, onde foram multados e alguns deles presos pela “notória fraude e quebra de confiança”.5 Apesar de um parlamentar ter exigido que fossem colocados em sacos junto com cobras e moedas e afogados, em sua maioria eles foram poupados de punições mais pesadas.6 Para a corporação em si, o Parlamento aprovou em 1720 o Bubble Act, lei que tornou crime a criação de uma companhia “que se atrever a ser uma entidade corporativa” e a emissão de “ações transferíveis sem autorização legal”.

Hoje em dia, na esteira de escândalos corporativos pa-recidos e tão abomináveis quanto a fraude da South Sea, o ba-nimento da forma corporativa por um governo é impensável. Mesmo as reformas modestas — como uma lei exigindo que as companhias listem em seus relatórios financeiros as opções de ações de seus funcionários como despesa, o que poderia evitar as declarações financeiras enganosamente tentadoras que abas-teceram os recentes escândalos7 — parecem improváveis por um governo federal norte-americano que, na época dos escândalos, falhou em ajustar suas retumbantes palavras a ações igualmen-te fortes. Apesar da Sarbanes-Oxley Act, lei aprovada em 2002 para aliviar alguns dos problemas mais barulhentos da gover-nança corporativa e da contabilidade, prover soluções bem-vin-das, pelo menos no papel,8 a reação do governo federal para os escândalos corporativos em geral tem sido no mínimo lenta e tímida. O que se revela pela comparação dessa reação com as

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medidas rápidas e draconianas do Parlamento inglês de 1720 é o fato de que, durante os últimos trezentos anos, as corporações acumularam grande poder ao passo que a habilidade do gover-no em controlá-las enfraqueceu. Instituição recém-nascida que pôde ser banida com o golpe de uma caneta legislativa em 1720, a corporação hoje domina a sociedade e o governo.

Como ela se tornou tão poderosa?O talento da corporação como forma de negócio e a ra-

zão de seu notável crescimento ao longo dos três últimos sécu-los foi, e é, sua capacidade de combinar o capital, e portanto o poder econômico, de um ilimitado número de pessoas. As sociedades anônimas surgiram no século XVI quando ficou claro que as sociedades limitadas, restritas a captar dinheiro de poucas pessoas que podiam administrar um negócio jun-tas, eram inadequadas para financiar os novos, porém poucos empreendimentos de grande escala da nascente industrializa-ção. Em 1564, a Company of the Mines Royal foi criada como uma sociedade anônima, financiada por 24 ações vendidas por 1.200 libras cada; em 1565, a Company of Mineral and Bat-tery Works aumentou seu capital oferecendo opção de compra para 36 ações emitidas anteriormente. A New River Company foi fundada como sociedade anônima em 1606 para transpor-tar água doce até Londres, entre outros diversos serviços.9 Em 1688, quinze sociedades anônimas estavam em funcionamen-to na Inglaterra, apesar de nenhuma ter mais do que algumas centenas de membros. As corporações começaram a proliferar durante o final do século XVII, e o total de investimentos em sociedades anônimas dobrou à medida que essa forma de ne-gócio passou a ser uma forma popular de financiar os empre-en-dimentos coloniais. A sociedade limitada ainda era a forma de organização comercial predominante, mas pouco a pouco a corporação ganharia posições até finalmente ultrapassá-la.

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Em 1712, Thomas Newcomen inventou uma máquina a vapor para bombear água de uma mina de carvão e involun-tariamente deu início à revolução industrial. Durante o século seguinte, a energia a vapor impulsionou o desenvolvimento da indústria de grande escala na Inglaterra e nos Estados Unidos, expandindo sua área de atuação para minas, tecelagens (e os comércios associados de alvejantes, morim estampado, tingi-mento e calandragem), moinhos, cervejarias e destilarias.10 As corporações multiplicaram-se no momento em que esses novos empreendimentos de grande escala exigiram mais capital in-vestido do que a sociedade limitada podia levantar. Na Amé-rica do Norte pós-revolução, entre os anos de 1781 e 1790, o número de corporações cresceu dez vezes, de 33 para 328.11

Também na Inglaterra, com a revogação do Bubble Act em 1825 e a corporação novamente legalizada, o número de corporações cresceu de modo extraordinário e as transações es-cusas e fraudes voltaram a ser comuns no mundo dos negócios. Sociedades anônimas logo se tornaram “a moda do século”, como observou na época o escritor Sir Walter Scott, e como tais se tornaram objeto de sátira. Em tom de ironia, Scott disse que, como acionista de uma corporação, um investidor poderia fazer dinheiro gastando-o (na verdade, ele comparou a corpo-ração a uma máquina que pode se alimentar do próprio lixo):

Essa pessoa [um investidor] compra seu pão de sua pró-pria panificadora, seu leite e seu queijo de sua própria fábrica de laticínios... bebe uma garrafa de vinho a mais para o benefício da Companhia Geral de Importação de Vinho, da qual ele mesmo é membro. Cada ato, que em outra situação poderia ser considerado mera extra-vagância, para tal pessoa... é fruto da prudência. Mesmo que o preço do artigo consumido seja extravagante e a

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qualidade, medíocre, a pessoa, que de certa maneira é seu próprio cliente, é obrigada a isso em benefício pró-prio. Imagine se a sociedade anônima Companhia dos Empreendedores resolver se juntar à faculdade de me-dicina... sob o nome de Companhia da Morte e do Mé-dico, o acionista deverá assegurar a seus herdeiros uma generosa porção de seu leito de morte e das despesas fu-nerárias.12

No entanto, ao mesmo tempo que Scott a satirizava, a corporação estava pronta para começar sua ascensão rumo ao domínio sobre a economia e a sociedade. E faria isso com a ajuda de uma nova máquina a vapor: a locomotiva.13

Os barões das ferrovias norte-americanas do século XIX, considerados celebridades por alguns e vilões por outros, foram os verdadeiros criadores da era da moderna corpora-ção. Como as ferrovias eram empreendimentos monumentais e exigiam enormes quantias de investimento de capital — para assentar os trilhos, fabricar a frota e operar e manter os siste-mas — rapidamente a indústria começou a confiar na forma corporativa para financiar suas operações. Nos Estados Uni-dos, a construção de ferrovias teve seu ápice nos anos 1850 e também após a Guerra Civil, com mais de 150 mil quilômetros de trilhos instalados entre 1865 e 1885. Conforme a atividade crescia, o número de corporações também aumentava.14 Na Inglaterra não foi diferente. Entre 1825 e 1849, a quantidade de capital levantado pelas ferrovias, a maioria por meio de so-ciedades anônimas, aumentou de 200 mil para 230 milhões de libras, mais de mil vezes.15

“Um dos subprodutos mais importantes da introdução e expansão do sistema ferroviário” foi seu papel de “estimular o desenvolvimento de um mercado nacional para as apólices das

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companhias”, observou M. C. Reed em Railways and the Growth of the Capital Market.16 As ferrovias, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, exigiam mais investimento de capital do que poderia ser oferecido pelo círculo relativamente pequeno de homens ricos que havia investido nas corporações no come-ço do século XIX nesses países. Por volta da metade do século, com ações de ferrovias inundando o mercado dos dois países, as pessoas da classe média começaram, pela primeira vez, a in-vestir em cotas corporativas. Como o The Economist afirmou na época, “agora todo mundo entrou no mercado [...] caixeiros, pobres aprendizes de comerciantes, criados desempregados e quem está falido — todos entraram nas fileiras do grande inte-resse monetário”.17

No entanto, restava uma barreira para a ampla partici-pação pública no mercado de ações: não importava o quanto, muito ou pouco, uma pessoa investisse numa companhia, ele ou ela era pessoalmente responsável, sem restrições, pelas dívidas da companhia. As casas dos investidores, suas economias e outros ativos pessoais poderiam ser reclamados pelos credores se a com-panhia falisse, o que significava que a pessoa estava arriscada à ruína financeira pelo simples fato de ser dona das ações de uma companhia. Ser acionista não seria uma opção atraente para o público em geral enquanto esse risco não fosse eliminado, o que logo aconteceu. Na metade do século XIX, as lideranças em-presariais e políticas defenderam amplamente a mudança para que a lei passasse a limitar a responsabilidade dos acionistas ao valor que tivessem investido na companhia. Se uma pessoa comprasse 100 libras em cotas, ele ou ela não seria responsável por nada além disso, não importando o que acontecesse com a companhia. Defensores da “responsabilidade limitada”, como o conceito ficou conhecido, o defendiam como sendo necessário

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para atrair os investidores da classe média para o mercado de ações. “A responsabilidade limitada permitirá àqueles de pos-ses módicas que tomem parte em investimentos junto com seus vizinhos ricos”, afirmou o Select Committee on Partnerships (Inglaterra) em 1851, e isso, por sua vez, significaria “que seu amor-próprio [seria] assegurado, sua inteligência encorajada e um motivo a mais seria oferecido para manter a ordem e o res-peito pelas leis de propriedade”.18

O fim do conflito de classes por meio da cooptação de trabalhadores para o sistema capitalista, um objetivo que o comitê só mencionou mais tarde e de forma muito sutil, foi oferecido como justificativa política para a responsabilidade limitada, junto com a justificativa econômica de expansão do conjunto de potenciais investidores. Um artigo do Edimburgh Journal de 1853 dizia:

O trabalhador não entende a posição do capitalista. A solução é dar a ele a oportunidade de uma experiência prática [...] Os trabalhadores, uma vez aptos a atuar como os proprietários do capital associado, logo vão des-cobrir que toda a sua visão sobre a relação entre capital e trabalho passou por uma radical transformação. Eles vão aprender quanta ansiedade e trabalho árduo custam para manter uma firma, mesmo que pequena, em uma ordem aceitável [...] as classes média e operária vão ge-rar muitos bens materiais e sociais no exercício do prin-cípio da sociedade anônima.19

Mas a responsabilidade limitada tinha seus opositores. Nos dois lados do Atlântico, críticos opuseram-se a ela por moti-vos morais. Como ela permitiria que os investidores escapassem ilesos dos erros de suas companhias, os críticos acreditavam que

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isso minaria a responsabilidade moral pessoal, um valor que tinha governado o mundo comercial por séculos. Com a insti-tuição da responsabilidade limitada, os investidores poderiam levianamente não se preocupar com a sorte de suas compa-nhias, tal como Mr. Goldbury, um investidor fictício, explicou na afiada sátira musical de Gilbert e Sullivan, Utopia Ltd:

Embora seja Rothschild, em plena capacidade, Como Companhia você é de chorar, Mas o liquidante diz: “Não se preocupe, não precisa pagar”,E aí outra Companhia Amanhã você vai começar!

As pessoas preocupavam-se com o fato de que a respon-sabilidade limitada iria, como disse um parlamentar em dis-curso contra sua adoção na Inglaterra, ferir “o primeiro e mais natural princípio da legislação comercial [...] em que cada ho-mem é obrigado a pagar as dívidas que contraiu, enquanto pu-der fazê-lo” e isso iria “permitir que as pessoas se envolvessem em negócios com uma limitada chance de perda, mas com uma ilimitada chance de ganho”, encorajando assim “um sistema de especulação agressiva e imprudente”.20

Apesar de tais objeções, a responsabilidade limitada foi introduzida na lei das corporações, na Inglaterra em 1856, e nos Estados Unidos ao longo do final do século XIX (ainda que em momentos diferentes em diferentes estados). Com a re-moção do risco do investimento em ações, pelo menos em ter-mos de quanto dinheiro os investidores poderiam ser forçados a perder, o caminho estava aberto para a participação pública no mercado de ações e para os investidores diversificarem seus títulos. Ainda assim, as corporações de capital aberto ao in-vestimento público eram um tanto raras nos Estados Unidos

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até o final do século XIX. Fora da indústria ferroviária, havia uma tendência de as principais companhias serem empresas familiares, e se existissem cotas, elas eram comercializadas pes-soalmente, não no mercado de ações. Nos primeiros anos do século XX, no entanto, grandes corporações de capital aberto ao investimento público começaram a se tornar lugar-comum no cenário econômico.21

Em apenas duas décadas, começando nos anos 1890, a corporação passou por uma transformação revolucionária. Tudo começou quando os estados norte-americanos de Nova Jersey e Delaware (“o primeiro estado a ser conhecido como o lar das corporações,” de acordo com o secretário de Estado para corporações da época22) empenharam-se em atrair negó-cios corporativos valiosos para suas jurisdições desfazendo-se de restrições nada populares que constavam de suas leis para corporações. Entre outras coisas, eles:

• Revogaram as leis que exigiam que negócios fossem incorporados apenas por motivos restritos, que perma-necessem apenas por um tempo limitado e que operas-sem apenas em determinados lugares.

• Amenizaram substancialmente o controle sobre fusões e aquisições.

• Aboliram a regra de que uma companhia não podia ter ações de outra companhia.

Outros estados, sem querer sair perdendo na corrida pe-los negócios incorporados, logo fizeram revisões semelhantes em suas leis. As mudanças impulsionaram uma enxurrada de incorporações, pois as empresas buscavam novas liberdades e poderes que a incorporação poderia lhes garantir. Logo, no en-tanto, com o fim das restrições mais significativas sobre fusões

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e aquisições, um grande número de pequenas e médias cor-porações foi rapidamente absorvido por um pequeno número de gigantescas corporações — 1.800 corporações tornaram-se 157 entre os anos de 1898 e 1904.23 Em menos de uma década, a economia norte-americana deixou de ser uma economia em que as empresas de um ou poucos proprietários competiam li-vremente entre si para ser dominada por um número pequeno de corporações, cada uma de propriedade de muitos acionistas. A era do capitalismo corporativo tinha começado.

“Cada pedra no caminho é a cova do pequeno acionis-ta”, afirmou Newton Booth, um conhecido antimonopolista e reformista das ferrovias, em 1873, quando governador da Califórnia. A mensagem era clara: nas grandes corporações, os acionistas tinham pouco, ou nenhum, poder e controle. No começo do século XX, as corporações eram comumente a combinação de milhares, às vezes centenas de milhares, de anônimos acionistas espalhados. Sem poderem influenciar as decisões administrativas como indivíduos, pois seu poder era muito diluído, eles também estavam muito dispersos para agir coletivamente. A conseqüente perda de poder e controle por parte dos acionistas das grandes corporações virou lucro para os administradores. Em 1913, um comitê do congresso lide-rado pelo congressista Arsène Pujo e criado para investigar o “monopólio do dinheiro”, informou:

Nenhuma das testemunhas convocadas conseguiu citar um caso na história do país em que os acionistas tiveram sucesso em destituir a administração de uma grande cor-poração, e parece que os acionistas também não obtive-ram sucesso até o momento em assegurar a investigação da administração de uma corporação para garantir que

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ela esteja sendo bem administrada e de maneira honesta [...] [Em] todas as grandes corporações com acionistas numerosos e muito dispersos [...] a administração é pra-ticamente autoperpetuada e capaz, por meio do poder do patronato, da indiferença dos acionistas e de outras influências, de controlar a maioria do capital.24

Os acionistas, por todos os motivos práticos, tinham desaparecido das corporações das quais eram proprietários. Com o desaparecimento dos acionistas de fato, pessoas reais, das corporações, a lei tinha que achar alguém, alguma outra pessoa, para assumir os direitos legais e as obrigações que as empresas precisavam para operar na economia. Essa “pes-soa” acabou sendo a própria corporação. Já em 1793, um estudioso esboçou a lógica da personificação da corporação quando a definiu como

um conjunto de vários indivíduos unidos em uma en-tidade, sob uma denominação especial, que tem uma perpétua sucessão de forma artificial e estão revestidos, por orientação da lei, da capacidade de agir, em vários aspectos, como um indivíduo, em particular de tomar e garantir propriedade, de contratar compromissos e de processar e ser processado, de desfrutar privilégios e imu-nidades em comum.25

No caso das sociedades limitadas, outro estudioso apon-

tou em 1825 que “a lei olha para os indivíduos”; no caso das corporações, por outro lado, “ela vê apenas a criatura dos do-cumentos, a instituição corporativa, e ignora os indivíduos”.26

No final do século XIX, por meio de uma estranha al-quimia legal, os tribunais transformaram a corporação em uma

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“pessoa”, com identidade própria, separada das pessoas de car-ne e osso que eram seus proprietários e administradores e ga-nhou poderes, assim como uma pessoa real, de fazer negócios em seu nome, adquirir títulos, empregar trabalhadores, pagar impostos e ir ao tribunal para garantir seus direitos e defender suas ações. A pessoa da corporação tomou o lugar, pelo menos na lei, das pessoas reais que eram proprietárias das corporações. Agora vista como uma entidade, “nem imaginária ou ficcional, mas real, não artificial, mas natural”, como foi descrita por um professor de Direito em 1911, a corporação foi reconcebida como um ser livre e independente.27 Era o fim da centenária “teoria do privilégio”, que concebeu as corporações como instrumentos da política governamental e como dependentes das instituições governamentais para serem criadas e poderem funcionar. Junto com a teoria do privilégio acabaram também todas as razões para sobrecarregar as corporações com pesadas restrições. A lógica era a de que, por terem sido concebidas como entidades naturais análogas aos seres humanos, as corporações deveriam ser criadas como indivíduos livres, uma lógica que impulsionou as iniciativas em Nova Jersey e Delaware, assim como a decisão de 1886 da Suprema Corte que dizia que, por serem “pessoas”, as corporações deveriam ser protegidas pelos direitos garan-tidos pela Décima Quarta Emenda de “um processo legal” e “igual proteção das leis”, direitos originalmente incluídos na Constituição para proteger escravos libertos.28

Com o crescimento do tamanho e do poder das corpo-rações, também cresceu a necessidade de minimizar o medo das pessoas. A corporação sofreu sua primeira grande crise com o crescimento dos movimentos de fusão no começo do século XX, quando, pela primeira vez, os norte-americanos perceberam que as corporações, agora enormes bestas, amea-çavam suas instituições sociais e seus governos. As corporações

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não eram apenas vistas por muitos como leviatãs desalmados — insensíveis, impessoais e amorais. De repente, elas estavam vulneráveis ao descontentamento popular e à divergência orga-nizada (particularmente do crescente movimento trabalhista), quando os clamores por mais regulação por parte do governo e até mesmo seu desmantelamento tornaram-se cada vez mais comuns. Líderes empresariais e relações públicas logo percebe-ram que os novos poderes e privilégios da instituição exigiam novas estratégias de relações públicas.

Em 1908, a AT&T, uma das maiores corporações da épo-ca e controladora da Bell System, tinha o monopólio dos servi-ços de telefonia nos Estados Unidos e lançou uma campanha publicitária, a primeira do gênero, cujo objetivo era convencer um público cético a gostar da companhia e aceitá-la. Mais ou menos da mesma maneira que a lei transformou a corporação em uma “pessoa” para compensar o desaparecimento das pes-soas reais que a constituíam, a campanha da AT&T atribuiu à companhia valores humanos no esforço de diminuir as suspei-tas sobre sua entidade desalmada e desumana. “A grandeza”, disse com preocupação um vice-presidente da empresa, acabou eliminando da companhia “a compreensão humana, a solida-riedade humana, os contatos humanos e as relações humanas naturais”. Ela convenceu “a população em geral [que] a cor-poração é uma coisa”. Outro executivo da AT&T acreditava que era necessário “fazer as pessoas compreenderem e amarem a companhia. Não apenas depender dela conscientemente — apenas enxergá-la como uma necessidade —, não apenas con-tar com ela — mas amá-la — e ter uma afeição verdadeira por ela”. Entre 1908 e o final dos anos 1930, a AT&T autoprocla-mou-se “amiga e vizinha” e procurou atribuir a si mesma uma feição humana utilizando pessoas da própria empresa nas cam-panhas. Empregados, sobretudo telefonistas e funcionários que

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faziam a manutenção dos cabos, apareciam com freqüência nos anúncios da companhia, assim como acionistas. Um anúncio de revista intitulado “Nossos acionistas” mostra uma mulher, talvez uma viúva, examinando seus títulos da AT&T enquanto seus dois filhos observam-na; outro proclama a AT&T como “uma nova democracia privada de serviço público” que é “de propriedade direta das pessoas — não controlada por um, mas controlada por todos”.29

Outras grandes corporações logo seguiram o caminho da AT&T. A General Motors, por exemplo, usou propagandas que, nas palavras da agência responsável, visavam “persona-lizar a instituição chamando-a de família”. “A palavra ‘corpo-ração’ é fria, impessoal e objeto de mal-entendidos e de falta de confiança”, ressaltou Alfred Swayne, o executivo da GM responsável pela propaganda institucional na época, mas “‘Fa-mília’ é pessoal, humano, amigável. Essa é a nossa visão da General Motors — um grande lar agradável”.30

No final da Primeira Guerra Mundial, algumas das prin-cipais empresas norte-americanas, entre elas General Electric, Eastman Kodak, National Cash Register, Standard Oil, U.S. Rubber e Goodyear Tire & Rubber Company, ocupavam-se em criar a imagem de benevolentes e socialmente responsá-veis. O “Novo Capitalismo”, termo utilizado para descrever a tendência, amenizava a imagem das corporações com pro-messas de boa cidadania corporativa e melhores salários e condições de trabalho. Enquanto os cidadãos exigiam que o governo colocasse rédeas no poder corporativo e a militância trabalhista aumentava com o retorno dos veteranos da Primei-ra Guerra Mundial que haviam arriscado a vida como solda-dos e insistiam em um tratamento melhor como trabalhadores, os defensores do Novo Capitalismo tentavam mostrar que as

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corporações podiam ser boas sem a pressão coerciva do gover-no ou dos sindicatos.31

Um líder do movimento, Paul W. Litchfield, que presidiu a Goodyear por 32 anos em meados do século XX, acredita-va que o capitalismo não sobreviveria sem que a igualdade e a cooperação entre trabalhadores e capitalistas substituíssem a separação e o conflito. Apesar de rotulado como socialista e marxista por alguns de seus companheiros de negócios da época, Litchfield tomou a dianteira com programas criados para promover saúde, bem-estar e educação dos trabalhado-res de sua empresa e suas famílias e permitir aos trabalhadores uma grande participação nas questões da companhia. Uma das conquistas da qual tinha mais orgulho era o Senado e a Câmara dos Deputados dos trabalhadores, criados a partir das instituições nacionais homônimas e que tinham jurisdição so-bre questões trabalhistas, inclusive salários. Litchfield defendia suas políticas benevolentes como necessárias ao sucesso de sua empresa: “A Goodyear tem um caráter humano e é graças a seu pleno caráter humano e a seus métodos de negócio que teve um crescimento meteórico na indústria norte-americana”.32

A responsabilidade social corporativa floresceu novamen-te nos anos 1930 quando as corporações sofreram com a opinião pública contrária a elas. Naquele tempo, muitas pessoas acredi-tavam que a ganância e a má administração corporativa haviam causado a Grande Depressão. Elas partilhavam da visão do juiz Louis Brandeis, expressa em 1933 em um julgamento da Supre-ma Corte, de que as corporações eram “Frankensteins” capazes de fazer o mal.33 Em resposta, os líderes empresariais abraçaram a idéia da responsabilidade social corporativa. Eles acreditavam que era a melhor estratégia para restaurar a fé das pessoas nas corporações e reverter sua crescente fascinação pelo governo.

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Gerard Swope, então presidente da General Electric, deu voz a um sentimento comum entre os grandes executivos quando, em 1934, disse que “a indústria organizada deveria sair na frente, reconhecendo sua responsabilidade para com seus empregados, a sociedade e os acionistas mais do que a sociedade democrática deveria agir por meio de seu governo”.34

Adolf Berle e Gardiner Means defenderam idéia similar dois anos antes em seu clássico livro The Modern Corporation and Private Property. A corporação, eles argumentavam, era “poten-cialmente (se já não de fato) a instituição predominante no mundo moderno”; seus administradores tornaram-se “prínci-pes de indústria”, suas companhias assemelham-se a um feu-do. Como elas tinham acumulado tal poder sobre a socieda-de, as corporações e os homens que as administravam agora eram obrigados a servir aos interesses da sociedade como um todo, assim como os governos, e não só aos de seus acionis-tas. “O controle das grandes corporações deveria tornar-se exclusivamente uma tecnocracia neutra”, eles escreveram, “equilibrando uma série de exigências de diferentes grupos da comunidade e atribuindo a cada um uma parte da renda como fundamento de uma política pública e não de uma co-biça particular”. Segundo Berle e Means, era provável que as corporações tivessem de adotar essa nova abordagem “para o sistema corporativo sobreviver”. O professor Edwin Dodd, outro importante estudioso da corporação na época, era mais cético sobre a idéia de as corporações se tornarem socialmen-te responsáveis, mas acreditava que elas corriam o risco de perder a legitimidade, e portanto o poder, se ao menos não aparentassem fazê-lo. “A moderna indústria de larga escala conferiu um poder enorme aos administradores de nossas principais corporações”, Dodd escreveu em 1932 no Harvard

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Law Review. “O desejo de manter os atuais poderes [os] enco-rajou a adotar e a disseminar a idéia de que são guardiões de todos os interesses afetados pelas corporações e não são meros serviçais de seus proprietários ausentes.”35

Apesar dos apelos dos líderes corporativos de que eram capazes de regular a si mesmos, em 1934 o presidente Franklin D. Roosevelt criou o New Deal, um pacote de reformas regula-doras destinado a restabelecer a saúde econômica pela restri-ção dos poderes e das liberdades das corporações, entre outras coisas. Como primeira tentativa sistemática de regulamentar as corporações e como fundação do moderno estado regulador, o New Deal foi criticado por muitos homens de negócios da época e até incitou um pequeno grupo a tramar um golpe para derru-bar a administração de Roosevelt. Apesar do fracasso do golpe (discutido em mais detalhes no Capítulo 4, assim como o pró-prio New Deal), este refletia a profunda hostilidade que muitos homens de negócios sentiam por Roosevelt. No entanto, o espí-rito do New Deal e muitas de suas normas reguladoras prevale-ceram. Durante cinqüenta anos após sua criação, atravessando a Segunda Guerra Mundial, o pós-guerra, os anos 1960 e 1970, o crescente poder das corporações foi compensado, pelo menos em parte, pela expansão crescente das regulações governamen-tais, dos sindicatos e programas sociais. Então, assim como cem anos antes as máquinas a vapor e as ferrovias junto com as novas leis e ideologias haviam criado a besta corporativa, uma nova convergência entre tecnologia, legislação e ideologia — a globalização da economia — reverteu a tendência contra o grande poder regulador das corporações e impulsionou a cor-poração a ter poder e influência sem precedentes.

Em 1973, a economia foi abalada pelo aumento do pre-ço do barril de petróleo gerado pela criação da Organização

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dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que funcionava como um cartel para controlar o suprimento mundial de pe-tróleo. O aumento do desemprego, a inflação galopante e a recessão profunda vieram logo a seguir. As políticas comerciais correntes, que, fiéis às suas raízes no New Deal, favoreciam a regulação e outros tipos de intervenção por parte do governo, sofreram ataques sistemáticos por causa de sua inabilidade em lidar com a crise. Os governos em todo o Ocidente começa-ram a adotar o neoliberalismo, que, assim como o laissez-faire do passado, pregava a liberdade econômica para indivíduos e corporações e determinava um papel limitado para o governo na economia. Quando Margaret Thatcher tornou-se primei-ra-ministra do Reino Unido em 1979 e, logo depois, Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos em 1980, estava claro que a era da economia inspirada em idéias e políticas do New Deal havia chegado ao fim. Durante as duas décadas seguintes, os governos adotariam com crescente vigor as principais po-líticas do neoliberalismo de desregulação, privatização, corte de custos e redução da inflação. No começo dos anos 1990, o neoliberalismo tinha se tornado um dogma econômico.

Enquanto isso, inovações tecnológicas em transportes e comunicações aumentaram profundamente a portabilida-de e a mobilidade das corporações. Jatos maiores e mais rápi-dos e novas técnicas de embarque de contêineres (que permi-tiram a tranqüila integração do transporte marítimo às redes rodoviária e ferroviária) diminuíram os custos e aumentaram a velocidade e a eficiência do transporte. Da mesma maneira, as comunicações melhoraram com inovações como redes de telefonia a longa distância, o telex, o fax e, mais recentemente, a criação da internet. As corporações, não mais restritas a suas jurisdições originais, agora podiam correr o mundo em busca de

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lugares para a produção de bens e serviços a preços considera-velmente mais baixos. Elas podiam contratar mão-de-obra em países pobres, onde ela é mais barata e as exigências ambientais são mais brandas, e vender seus produtos em países ricos, onde as pessoas tinham dinheiro disponível e estavam preparadas para pagar preços justos por eles. Aos poucos as pesadas tarifas diminuíram desde 1948, quando o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (conhecido pela sigla inglesa Gatt) foi introduzido, permitindo que as corporações aproveitassem a recém-desco-berta mobilidade sem sofrer penalidades financeiras.

Livres de seus vínculos locais, as corporações agora po-diam ditar as políticas econômicas dos governos. Assim como explicou Clive Allan, vice-presidente da Nortel Networks, uma importante companhia canadense de alta tecnologia, as com-panhias “não devem obediência ao Canadá [...] Só porque nós [Nortel Networks] nascemos aqui não significa que ficaremos aqui [...] O lugar tem que continuar atraente para que tenha-mos interesse em ficar aqui”.36 Para continuar atraente, ou seja, para manter os investimentos dentro de suas jurisdições ou para trazer novos, agora os governos tinham que competir entre si para convencer as corporações de que eles ofereciam as melhores políticas para os negócios. Como resultado dessa disputa, os governos diminuíram as regulações — especialmen-te aquelas que protegiam os trabalhadores e o meio ambiente —, reduziram os impostos e recuaram em programas sociais, sendo muitas vezes negligentes com as conseqüências.37

Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1993, a lógica desreguladora da economia globali-zada agravou-se. Expedindo ordens para reforçar os padrões já existentes do Gatt e criar novos para barrar as medidas regulado-ras que poderiam restringir o fluxo do comércio internacional, a

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OMC tornou-se um entrave significativo à soberania das nações. Quando dez mil pessoas ocuparam as ruas de Seattle em 1999 para protestar contra o encontro dos funcionários da OMC e os representantes dos estados membros, a organização já tinha se tornado um supervisor poderoso, fechado e influenciado pelas corporações, das ordens dos governos para proteger os cidadãos e o meio ambiente dos danos corporativos.38

Quando a Enron faliu e a participação da empresa de contabilidade Arthur Andersen em seus delitos foi revelada, as pessoas exigiram uma melhor supervisão reguladora sobre as empresas de contabilidade. No entanto, poucos na época sabiam que o governo norte-americano, por ser membro da OMC, já tinha renunciado a parte de sua autoridade para resolver o problema. Levada pela crença corrente de que “re-gulações podem ser uma barreira desnecessária, e freqüente-mente involuntária, para a troca de serviços”39 e em resposta ao intenso lobby dos grupos industriais e empresas, a OMC criou, no final da década de 1990, uma série de “medidas disciplinares” para assegurar que os estados membros não regulariam a contabilidade de modo “mais restritivo ao co-mércio do que [...] o necessário para atingir um objetivo legí-timo”.40 Em 1998, os estados membros, incluindo os Estados Unidos, concordaram em ser fiéis a essas novas regras, que só entraram em vigor em 2005, e assim submeter-se a padrões impostos, e logo deliberados, por uma instituição externa e antidemocrática.41

Quando as medidas disciplinares começaram a ser cogi-tadas, os representantes norte-americanos questionaram os fun-cionários da OMC se uma lei que proibisse as empresas de con-tabilidade de trabalhar tanto como consultores quanto como auditores para uma mesma companhia os contrariaria — uma

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lei que poderia ajudar a impedir outro desastre como o Enron/Andersen e que havia sido colocada em prática recentemente como parte do Sarbanes-Oxley Act de 2002.42 A resposta final para a questão tem de aguardar uma decisão da OMC, uma vez que as medidas disciplinares estão oficialmente operantes, o que talvez tomará forma como uma decisão do tribunal em uma queixa de um estado membro contra o Sarbanes-Oxley Act. Mas, nesse meio-tempo, o fato de essa pergunta ter de ser feita demonstra o potencial impacto das medidas disciplinares na autoridade do governo para regular as empresas de con-tabilidade e por conseqüência a soberania democrática “das pessoas” sobre elas.43

A regulação da contabilidade não é a única área em que a OMC teve autoridade para restringir as escolhas polí-ticas dos governos. Em diversas ocasiões a organização exi-giu que nações, sob a ameaça de penalidades, mudassem ou revogassem leis criadas para proteger o meio ambiente, os consumidores e outros interesses públicos.44 Em um caso, por exemplo, uma lei norte-americana que bania a impor-tação de camarões de produtores que se recusassem a usar mecanismos que evitassem a captura acidental de tartarugas marinhas foi condenada por violar padrões da OMC;45 em outro caso, uma medida da União Européia que bania a produção e a importação de carne bovina de animais tra-tados com hormônios sintéticos recebeu tratamento seme-lhante.46 No entanto, a extensão total do impacto da OMC não pode ser medida apenas por suas decisões formais. Como acontece com qualquer conjunto de padrões legais, as regras da OMC exercem maior influência por meio de canais informais. Os governos devem ter autocensura de seu comportamento para assegurar-se de que estão seguindo as

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regras — como fez o estado de Maryland (EUA), quando afundou uma proposta de lei que o impediria de comprar produtos de companhias que tivessem negócios na Nigéria (enquanto o país estivesse sob uma cruel ditadura) após os avisos do Departamento de Estado norte-americano de que tal lei poderia expor os Estados Unidos a sanções da OMC. Os governos também podem usar as normas da OMC para pressionar outros países a mudar suas políticas, ameaçando com queixas na OMC caso eles se recusem a fazê-lo — as-sim como os Estados Unidos e o Canadá fizeram a União Européia recuar nas propostas de regulamentação que im-pediriam a importação de pele de animais pegos em arma-dilhas e de cosmésticos testados em animais.47

Não surpreende que as políticas e as decisões da OMC tendam a patrocinar os interesses das corporações, dado o lugar privilegiado e a influência considerável que os grupos empresariais têm na organização. Os ministros do Comércio que representam os estados membros em geral estão “bem alinhados com os interesses comerciais e financeiros dos ministros dos países industrialmente desenvolvidos”, como ressalta Joseph Stiglitz, economista e ganhador do prêmio Nobel, e tornam-se alvos fáceis para a influência das cor-porações.48 As corporações e os grupos industriais também desfrutam estreitas relações com os burocratas e os funcioná-rios da organização. “Não queremos ser a namorada secreta da OMC, nem devemos entrar na Organização Mundial do Comércio pela entrada de serviço”, é como um membro da Câmara Internacional de Comércio, um grupo com grande influência na OMC, descreve a relação especial entre sua organização — e, podemos inferir, dos grupos industriais em geral — e a OMC.49

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Durante sua existência relativamente recente, a OMC tornou-se um entrave significativo às habilidades das nações de proteger seus cidadãos dos delitos corporativos. Em geral, a globalização da economia, da qual a OMC é apenas um dos elementos, tem aumentado a capacidade das corpora-ções de escapar da autoridade dos governos. “As corporações têm suficiente poder para ameaçar os governos”, diz William Niskanen, presidente do Cato Institute, e isso se “aplica par-ticularmente às corporações multinacionais, que serão muito menos dependentes das posições de determinados governos, e muito menos leais nesse sentido”. Como observa Ira Jackson, ex-diretor do Centro para Negócios e Administração da Facul-dade Kennedy de Administração Pública da Universidade de Harvard, as corporações e seus líderes “ocuparam o lugar de questões políticas e políticos como [...] o santo padre e as oligarquias reinantes em nosso sistema”. E, de acordo com Samir Gibara, ex-CEO da Goodyear Tire, os governos “tor-naram-se impotentes [em relação às corporações] em compa-ração ao que eram antes”.50

Agora as corporações governam a sociedade, talvez mais do que os próprios governos; ironicamente, ainda assim é seu próprio poder, muito do qual ganho por meio da globalização da economia, que as torna vulneráveis. Assim como acontece com qualquer instituição dominante, a corporação agora atrai desconfiança, medo e exigências de responsabilidade de um público cada vez maior. Os atuais líderes corporativos enten-dem, assim como seus antecessores, que é preciso esforço para reconquistar e manter a confiança do público. E eles, como seus antecessores, buscam suavizar a imagem das corporações apresentado-as como humanas, benevolentes e socialmente responsáveis. “É absolutamente fundamental que a corpora-ção dos dias de hoje tenha tantas características humanas e

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pessoais como quaisquer outras”, diz o relações-públicas Chris Komisarjevsky, CEO da Burson-Marsteller.

A corporação inteligente entende que as pessoas fazem comparações em termos humanos [...] porque é assim que as pessoas pensam, nós pensamos em termos que muitas vezes são muito, muito pessoais [...] Se você caminhar pela rua com um microfone e uma câmera e parar [pessoas] na rua [...] elas vão descrever [as corporações] em termos muito humanos.

Hoje, as corporações usam o branding para criar per-sonalidades únicas e atraentes para si mesmas. O branding vai além das estratégias criadas para simplesmente associar as corporações aos seres humanos de verdade — como nas antigas campanhas da AT&T que mostravam trabalhadores e acionistas ou no mais recente uso do endosso de personali-dades (como nas propagandas da Nike com Michael Jordan) e de mascotes corporativos (como o Ronald McDonald’s, o Tigre Tony, o homenzinho da Michelin e o Mickey Mouse). As identidades de marca das corporações são “personifica-ções” de “quem elas são e de onde vieram”, diz Clay Timon, presidente da Landor Associates, a maior e mais antiga em-presa de branding. “Magic Family” da Disney e “Invent” da Hewlett-Packard são alguns exemplos do que Timon chama de “condutores de marca”. “As corporações, como marcas [...] têm [...] alma[s]”, diz Timon, o que permite que criem “ligações intelectuais e emocionais” com os grupos dos quais dependem, como consumidores, empregados, acionistas e órgãos reguladores.51

Timon aponta os condutores de marca da Landor para a British Petroleum — “progressista, desempenho, verde, ino-vadora” — como evidências de como o ambiente corporativo e a responsabilidade social estão emergindo hoje como os temas-

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chave do branding. No entanto, ele diz, mesmo companhias que não explicitam a marca por si mesmas hoje precisam abraçar a responsabilidade social corporativa. “Por necessidade”, Timon diz, “as companhias, quer queiram, quer não, precisaram acei-tar a responsabilidade social”. E isso é em parte resultado de seu novo status de instituição dominante. Agora elas precisam mostrar que merecem ficar livres das restrições governamentais e, de fato, participar da administração da sociedade. “As corpo-rações precisam se tornar mais confiáveis”, diz Sam Gibara, su-cessor do pioneiro da responsabilidade social, P. W. Litchfield, e continua:

Tem havido uma transferência de autoridade do gover-no [...] para a corporação, e a corporação precisa assumir essa responsabilidade [...] e deve realmente se comportar como um cidadão corporativo do mundo; precisa respeitar as comunida-des em que opera e assumir a autodisciplina que, no passado, se exigia dos governos.

A partir de meados dos anos 1990, demonstrações em massa contra o poder e os excessos corporativos sacudiram ci-dades norte-americanas e européias. Os manifestantes, parte de um movimento da “sociedade civil” mais amplo, que também incluía organizações não-governamentais, grupos comunitários e sindicatos, tinham como objetivo os danos que as corporações causaram aos trabalhadores, consumidores, comunidades e ao meio ambiente. Suas preocupações eram diferentes das que se seguiram ao escândalo da Enron, em que o mais importante era a vulnerabilidade dos acionistas perante administradores corruptos. Mas os dois grupos tinham algo em comum: ambos acreditavam que a corporação tinha se tornado uma perigosa mistura de poder e irresponsabilidade. Hoje, a responsabilidade social corporativa é oferecida como resposta a essas preocupa-

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ções. Agora, mais do que apenas estratégia de marketing, ape-sar de certamente também sê-lo, ela apresenta as corporações como responsáveis perante a sociedade e desse modo se presta a legitimar seu novo papel como soberanas da sociedade.52