6000 KM PELAAMÉRICA PROFUNDA

Após a cobertura do primeiro debate presidencialentre Barack Obama e Mitt Romney, em Denver,no CoLorado, o Expresso- infiL.trou-se na América "

profunda, uma pradaria de milhares de quilómetros,-povoada por pequenas comunidades protestantesque trabalham de sol a sol etom a bíblia debaixo -=

do braçoí avessas a Barack pbarna, "o Presidentesocialista ej3uçulmane£~ vf*? ¦•-. '¦'-'KEPQRfttÉEMDERtCARDCfctíSURENÇÚ., •"

"cáfiEkÉS^QNOENTÊ NOS-eáÃDOS UNlpds ¦ i~

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As portas e janelas das casas estão todas en-

costadas e os relvados invariavelmente apa-rados ao nível do passeio, repletos de brin-

quedos e barbecues abandonados. Defronte,os carros têm as portas destrancadas e as

chaves na ignição.É um sábado de manhã e as lojas conti-

nuam! echadas. Até o posto de polícia perma-nece deserto. Na Bethesda €huích, a igreja

mais-próxima, também não há sinal de vidaAèfceção é um rafeiro de pelo curto e casta-

nho que, a julgai peia cauda frenética e géujl-

<Jo agudo, lambem desesperava porvpr al-

guém; Ó vento forte, o frio deractíar e os pjt.-mejrosilocòs de neve do ànp^Jfícultajrti*buscas' em Hendersõn; uma'peqÚBna £e"apar

finais do século XVI, oriundos da Alemanha,

fugindo das perseguições levadas a cabo por

grupos cristãos maioritários.

Muitas dessas famílias vivem ainda hoje

nas mesmas regiões onde os seus antepassa-dos se instalaram, perpetuando a mesma for-

ma de vida. Os mais conservadores, porexemplo, recusam o automóvel e usam as ve-lhas carroças que servem também para traba-

lhar a terra Os homens não cortam a barba e

as mulheres caminham cabisbaixas, só po-dendo fitar os olhos do marido, pai ou irmão.

Mas há os mais liberais, com quem é pos-

sível, pelo menos, uma breve troca de pala-

vras. Um deles, Jonathan Vost, acabou de che-

gar do casamento que desertificou a cidade e

acompanha-nos até à casa mais antiga de

Henderson. "Aqui falarão consigo", explica,

despedindo-se de seguida.

OBAMA, O ANTICRISTOLá dentro, Lee e Levan Thiessen aceitam con-

versar, mas à distância, visto que estão senta-

dos a almoçar e a mesa de refeições é local

exclusivo para crentes. Porta-vozes da cida-

de, falam dos antepassados, da história da co-

munidade e do que os preocupa, numa altu-

ra em que os americanos se preparam parair a votos, nas presidenciais de 6 de novem-

bro. "A nossa vida corre muito bem. Aquinão há problema, o pior é em Washington...",diz Lee. Levan sorri e acusa: "Querem tirar-

-nos a nossa religião".Dois dias antes, a 3 de outubro, o Expres-

so cobrira o primeiro debate televisivo entre

os candidatos Barack Obama e Mitt Rom-

ney, em Denver, no estado vizinho do Colora-

do. Assuntos religiosos nunca foram discuti-

dos, nem ali nem em qualquer outro momen-to de campanha, por isso procurámos um es-

clarecimento sobre aquela alegada persegui-

ção. "Temos hoje um Presidente que está

preocupado em retirar Deus da nossa consti-

tuição. Suspeito que ele seja o anticristo", afir-

ma Levan.

Ambos acreditam que o líder americano

é muçulmano e a prova disso mesmo é, segun-do Levan, a decisão de Obama de acabar com

o Dia Nacional da Oração, uma efeméride cria-

da em finais do século XVTII e que, ao contrá-

rio do que o casal afirma, ainda se celebra to-

dos os anos, na primeira quinta-feira de maio.

Contrariada pela revelação, Levan sorve a últi-

ma colher de sopa e pede-nos para sair.

MÓRMON E MEMBRO DE UMA SEITA

Nos arredores da cidade, num dos gigantes-

cos campos de milho que se perdem no hori-

zonte, Lee fost, 80 anos, também ele um me-

nonita, trabalha com os filhos na melhor co-

lheita de sempre.

Apesar do verão passado ter sido o mais

quente desde que há registos de temperatu-ras nos EUA, o Nebraska sobrevive graças a

um gigantesco lençol freático, batizado pela

população local "o lago". "Isto é uma terra

abençoada. Ainda me lembro de escavar à

mão redes inteiras de canais de rega. Por

aqui não há crise", diz Jost no interior do seu

enorme trator, que usa num vaivém contí-

nuo ao longo do terreno com mais de três

quilómetros de extensão.

O otimismo do agricultor relaciona-se

também com os lucros históricos. Este ano, o

preço dos cereais baterá recordes devido ao

aumento da procura externa e à alta do pre-ço dos combustíveis, visto que o Governo esti-

pulou que um terço da produção de milho

fosse, obrigatoriamente, direcionada para a

produção de etanol.

Mesmo assim, [ost sente que o pais está

no caminho errado: "Obama está a transfor-

mar-nos num pais socialista, ele defende o

controlo das nossas vidas pelo Estado. AAmérica já não é um país cristão. Hoje so-

mos neutrais. É por isso que os menonitas

nunca o apoiarão e é por isso, também, quenão nos importamos de votar num mór-

mon, essa seita...".

Lee Jost desabafa tão energicamente

que perde a noção de que entrou com a debu-

lhadora numa parcela de soja, destruindo

uma pequena área de cultivo. "A culpa é dele

(Obama). Faz-me perder a cabeça", desculpa--se o agricultor, que, desde 1956, trabalha 14

horas por dia, seis dias por semana.

Os filhos acompanham-no na rotina e até

o pequeno Lane, o neto de três anos, segue-oao fim de semana, sentado no interior da cabi-

na do trator, brincando com pequenas répli-

cas em borracha de gado bovino e cereais.

"Desde os meus antepassados que nada

nos foi oferecido. Quando aqui chegámosnão tínhamos ninguém para nos ajudar e

por isso tivemos de começar a trabalhar sem

queixumes. Quando vejo os pedintes das ci-

dades a estender a mão ao Estado, pedindo

senhas de alimentação e subsídios de desem-

prego, só me dá vontade de lhe perguntarporquê que eles não arranjam trabalho. Na

América devemos merecer o que temos e

não nos devemos habituar às esmolas".

Henderson passou ao lado da crise, ao

contrário de Maxwell, cidade vizinha onde,

até 2008, metade da população trabalhava

na Union Pacific Railways, uma empresa es-

tatal de caminhos de ferro, que despediu em

massa para sobreviver ao caos económico.

Mais uma vez o sector agrícola serviu de

amortecedor, acolhendo parte daquela mão

de obra e, desde então, a taxa de desempregobaixou de 14,2% para 6,5%. Tom Hill, porexemplo, deu trabalho a Phil Becket, o genro,e a três dos colegas que, juntos, trouxeram

novas ideias e expandiram o negócio.

Becket decidiu abrir um parque de di-versões aos fins de semana, no espaço livre

da quinta. Recorrendo à prata da casa, pôs

os porcos da criação a fazer corridas em per-cursos balizados por fardos de palha e con-

verteu as abóboras excedentárias em alvos

para as carreiras de tiro. Depois foi ao ferro-

-velho local e com peças ferrugentas cons-

truiu um Monster Truck, um camião que às

16h de todos os sábados abalroa carros anti-

gos, um espetáculo que atrai centenas de

pessoas até Maxwell, dinamizando bares e

restaurantes locais.

O VIVEIRO DOS MUÇULMANOSUm dos espectadores habituais é Daniel Har-

der, o diretor do Bible Camp de Maranatha,uma organização que acolhe grupos de jo-

vens americanos oriundos de todo o país,

com o objetivo de lhes ensinar "os valores da

Bíblia". Harder acredita no protestantismobatista e conhece bem os vizinhos menoni-

tas, maioritários na região, "donos de quasetudo o que a vista alcança". Mas, ao contrário

deles, não tem vida desafogada e vive das

Viagem ao centroda América

A lBO é uma autoestrada transcontinental

que liga a costa atlântica à do Pacífico, entre

a zona metropolitana de Nova lorque e São

Francisco. Quatro mil seiscentos e sessenta

e seis quilómetros percorridos pelos seguin-

tes estados: New Jersey, Pensilvânla, Ohio,

Indiana, Illinois, lowa, Nebraska, Wyoming,Utah, Nevada e Califórnia É a segunda

maior autoestrada dos EUA, depois da 190,

que liga Boston a Seattle, ao longo de umadistância de 4990 quilómetros.A reportagem do Expresso percorreu, no

início do mês, cerca de 3000 quilómetrosda 180, em direção a Denver para a cober-

tura do primeiro debate televisivo entre o

Presidente americano, Barack Obama, e o

ex-governador de Massachusetts Mitt

Romney, respetivamente os candidatos

democrata e republicano às eleições presi-denciais de 6 de novembro. Curiosidade:

neste percurso pagámos 4,20 dólares de

portagem (3,2 euros), no oeste do Nebras-

ka, à saída para o Colorado, três horas

antes do destino final. O preço da gasolinarondou os 3,85 dólares (2,93 euros) por

galão, que equivale a 3,75 litros.

doações de familiares e amigos, que valori-zam a vida de missionário.

Como o dinheiro não abunda, o Maranatha

Bible Camp organiza eventos, como refúgios pa-ra casais e fins de semana em família, onde pais e

filhos afinam a pontaria nas 15 carreiras de tiro

colocadas perto de um lago, nas traseiras das ins-

talações. "São momentos que nos permitemreencontrar as nossas raízes cristãs", diz. Pergun-tamos se, para tal, é necessário pôr uma arma

nas mãos de um adolescente, mas ele explica

que é uma velha tradição e que, além disso, nun-

ca houve qualquer episódio violento.

A última novidade no acampamento é a

chegada de um grupo de miúdos somalis, cu-

jos pais vieram trabalhar para a Tyson Chic-

ken Farm, um viveiro de aves, a pouco mais de

dez quilómetros dali. "Eles são muçulmanos,mas não se importam que os filhos venham.

Sabem que estão distraídos e que não lhes ensi-

namos coisas más", explica Harder. "A religião

é a cola que une a América profunda Por aquinão há mais nada É através das igrejas que as

pessoas criam conhecimento, laços e um senti-

mento de pertença Ou se assimila esta menta-lidade ou então é melhor ir embora".

Mas então porquê a animosidade em re-

lação a Obama? O líder religioso, republica-no confesso, explica: "o facto de haver pela

primeira vez na história um Presidente ne-

gro não é um problema O problema é quan-do alguém que já é diferente por natureza

pretende também fazer coisas diferentes, co-

mo obrigar as pessoas a comprar seguros de

saúde ou nacionalizar empresas, como na

prática sucedeu no sector automóvel" — Har-

der estudou em Detroit, capital daquela in-

dústria. "Esta gente que subiu a pulso, traba-

lhando no campo, não entende isso porquenunca teve ajuda de ninguém. Para eles um

Presidente negro, com uma infância vivida

em países islâmicos e políticas excessivamen-

te à esquerda assusta-os".

Daniel Harder, 26 anos, tem a certeza de

que o isolamento destas comunidades está

na base da mentalidade ultraconservadora,

uma forma de ver o mundo que terá os dias

contados, por causa do acesso das novas ge-

rações à internet e, por via disso, às redes so-

ciais (Facebook e Twitter, maioritariamente)."Os mais novos continuarão republica-

nos, pois o ambiente rural, baseado na res-

ponsabilidade individual, molda as mentali-dades dessa forma Porém, o cada vez maior

contacto com o resto do país irá torná-los me-

nos receosos. Além disso, as comunidades

imigrantes com culturas muito diferentes,

que costumavam ficar nas grandes cidades,

começaram a chegar. Nós podemos tentar

mudá-las, convertendo-as ao cristianismo,

como é o caso dos nossos somalis. Mas, em

contrapartida, elas também irão mudar as

nossas mentalidades e a forma como olha-

mos para o mundo lá fora". ©

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