22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

download 22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

of 5

Transcript of 22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

  • 8/19/2019 22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

    1/5

    RUA DE MÃO ÚNICA: O ESCRITOR ATUANTE E OTEXTO-CIDADE

    Maurício dos Santos Gomes

     Orientadora: Profª Drª Claudia Luiza Caimi

    RESUMOEste trabalho busca refletir sobre  Rua de Mão Única, de Walter Benjamin, enquanto tentativa deapreender um impasse: o do escritor frente à “escrita da cidade”, que se impõe com a formação dametrópole moderna, conforme a tese de Willi Bolle (em Fisiognomia da Metrópole Moderna).Preocupado com as possibilidades de atuação do escritor num contexto de alienação alarmante, Benjaminestuda as transformações da recepção de textos, causadas pela experiência coletiva urbana. Constituída,como nos diz Bolle, como “uma imensa constelação de textos” (outdoors, tabuletas, anúncios, folhetos,

    manchetes, luminosos, etc), a metrópole não apenas impõe a distração e a aproximação acrítica comomodo de leitura, mas propõe uma forma de escrita, relativizando, num certo sentido, o valor da culturaliterária, baseada no livro. Se a ação do escritor torna-se determinante, os meios de atuação ligados àcultura do livro parecem inadequadas diante das experiências urbanas, disso surge o impasse apontado em Rua de Mão Única. Nesse confronto, Benjamin propõe a utilização e subversão das novas formas,tomando a cidade como espaço textual no qual o escritor engajado precisa atuar.  Rua de Mão Única seestabelece, pois, como um microcosmo, onde a cidade-texto está formal e tematicamante representada.

    PALAVRAS-CHAVE: escrita da cidade, metrópole, crítica.

    RESUMÉCet article analysera Rua de Mão Única, de Walter Benjamin, comme une tentative de saisir un impasse:celui de l’écrivant en face de l“écriture de la métropole”, que s’impose avec la formation de la métropole

    moderne, selon la thèse de Willi Bolle (dans Fisiognomia da Metrópole Moderna). Préoccupé avec les possibilités d’action de l’écrivant dans un contexte d’aliénation alarmante, Benjamin étudie lestransformations de la reception des textes, causées par les expériences colitives urbaines. Constituée,selon Bolle, d“une immense constelation de textes” (outdoors, enseignes, publicités, manchettes,lumineux, etc), la métropole impose la distraction et la proximité acritique comme manières de lecture, en proposant une forme d’écriture, qui, dans un sens, relativise la valeur de la culture littéraire, fondée sur lelivre. Si l’action de l’écrivant devient fondamentale, les moyens d’action liés à la culture du livresemblent inadéquats en face des expériences urbaines: celui est l’impasse abordé par Rua de Mão Única.Comme solution à ce problème, Benjamin propose l’utilisation et la subversion de l“écriture de lamétropole”, en prenant la métropole comme texte dans lequel l’écrivant engagé a besoin d’actuer. Rua de Mão Única s’établi comme un microcosme, où la métropole-texte est représentée avec ses formes et sestematiques.

    MOTS-CLÉS: écriture de la métropole, métropole, critique.

    Composto por 60 fragmentos aforísticos, tratando cada um de assuntos variados,

     Rua de Mão Única, escrito por Walter Benjamin ao longo da década de 20, é um

    conjunto de imagens, cenários e objetos urbanos, textualmente apresentados de forma

    tão atribulada quanto a vivência cotidiana que deles faz o habitante da metrópole. O

    aparente caos do texto benjaminiano será abordado; no entanto, a partir da leitura

     Graduando em letras pela UFRGS. E-mail: [email protected]

  • 8/19/2019 22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

    2/5

     proposta por Willi Bolle (em Fisiognomia da Metrópole Moderna: representação da

    história em Walter Benjamin), de maneira a buscar uma unidade e coerência aos

    fragmentos, a lê-los enquando apreensão, e tentativa de solução, de um impasse: o do

    escritor diante da escrita da cidade.

    Para entendermos a elaboração de tal impasse, e a partinência de sua reflexão, é

     preciso que, antes, tenhamos em mente o contexto no qual Benjamin concebeu Rua de

     Mão Única, a República de Weimar (1919–1933). Período assolado pelo caos do pós-

    guerra, a República de Weimar foi marcada pelo estreitamento de relações entre a

    literatura e a política. À crise –economicamente representada pela inflação galopante e

     politicamente pelo avanço do fascismo- somaram-se um forte espírito partidário e

    interesses vanguardistas, criando o desejo, por parte de escritores e críticos, em agir

    sobre o público a partir da conjunção entre engajamento político e experimentação

    estética. Nesse quadro, de crise social e reivindicação artísitica, ocorre um forte

    movimento de politização da intelectualidade, sendo o papel e a responsabilidade do

    escritor objetos constantes de debate. A necessidade de atuação do escritor implica uma

    outra questão fundamental: a reflexão sobre as condições de produção e recepção

    literárias diante da sociedade massificada e midiática, que coloca em dúvida a eficácia

    das formas tradicionais de escrita. Em outras palavras, o contexto da República de

    Weimar impõe um problema básico: o escritor tem responsabilidades no combate à

    alienação massificada, mas a forma tradicional de escrita parece estar em descompasso

    com a forma moderna de leitura. É preciso atuar, mas como?  Rua de Mão Única,

    segundo nos parece, coloca-se exatamente diante desse problema.

    Qual é, pois, a forma moderna de leitura e qual sua origem? Benjamin pensa as

    condições de produção e de atuação do escritor historicizando a metrópole enquanto

    espaço textual, revelador das tensões modernas, que altera o locus da escrita. Conforme

    nos propõe  Rua de Mão Única, com o desenvolvimento da imprensa e, porconsequência, da publicidade, a escrita abandona pouco a pouco a calmaria solitária do

    livro para se instalar também no barulho coletivo das ruas e da multidão, a escrita

    escorre pelas avenidas de modo que:

    antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhosum tão denso turbilhão de letras cambientes, coloridas, conflitantes, que aschances de sua penetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas.(BENJAMIN, 2010: 25)

  • 8/19/2019 22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

    3/5

    O espaço urbano moderno, coberto de escrita, faz da cidade um texto, impondo

    ao leitor as regras perceptivas que lhe são típicas: a experiência do choque, a distração e

    a fragmentação. Além disso, a publicidade, que domina o espaço público moderno,

    serve como arauto da mercadoria e, portanto, potencializa a condição alienada de um

    tempo mítico1, propõe uma leitura que não busca o “conhecer”, mas o “possuir”. Rua de

     Mão Única mimetiza esse cenário dominado pelo que estamos chamando de escrita da

    cidade, contra o qual o escritor precisa se colocar:

    trata-se de uma representação da metrópole moderna, assim como ela seergue diariamente diante de seus habitantes: uma imensa aglomeração detextos: placas de trânsito, outdoors, sinais, letreiros, tabuletas, informações,anúncios, cartazes, folhetos, manchetes, luminosos – uma gigantescaconstelação de escrita. (BOLLE, 1994: 274)

    Refletindo sobre o modo como o habitante da metrópole se relaciona com a

    escrita, Benjamin coloca-se diante do texto-cidade compreendendo-o de duas maneiras:

    como forma a ser aprendida e subvertida, a fim de melhor atuar no cambate literário, e

    como medium-de-reflexão2 para as tensões modernas. Vejamos, por meio de trechos da

    obra, ambas as posições. No primeiro fragmento selecionado, temos:

    Guarda-livros juramentadoAgora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro de seu

    fim.[...] A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo ondelevava existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelosreclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Essa é arigorosa escola de sua nova forma. [...] Antes está chegando o momento emque quantidade vira em qualidade e a escritura, que avança sempre mais profundamente dentro do domínio gráfico de sua nova, excêntricafiguralidade, tomará posse, de uma só vez, de seu teor adequado”(BENJAMIN, 2010, p.25-26)

     No fragmento “guarda-livros juramentado”, Benjamin praticamente define o

    eixo central de seu texto. A mudança de “local da escrita” a coloca no jogo do caos

    econômico, no ambiente conturbado da rua. Esse novo local, longe de ser combatido,representa a escola de uma nova forma – fragmentada e gráfica- sob a qual, segundo

    Benjamin, a escrita tomará posse de seu teor adequado, atuando de meneira eficaz sobre

    o habitante da metrópole. Subverter a escrita da cidade, tornando-a forma de crítica, é o

    1 A mercadoria incita a posse da novidade, mas a partir de um “novo-sempre-o-mesmo”. A repetição dosatos de possuir e descartar, para possuir novamente, configura uma lógica de eterno retorno, onde o passado é descartado como antiguidade, objeto fora de moda.2   Medium-de-reflexão  era um termo usado pelos primeiros românticos alermães, e retomado por

    Benjamin, para designar a qualidade da obra de arte de proporcionar o conhecimento crítico (BOLLE,Willi.  A Metrópole com Medium-de-reflexão. In:  Leituras de Walter Benjamin. Marcio Seligmann-Silva(org). São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999).

  • 8/19/2019 22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

    4/5

     princípio geral de Rua de Mão Única, elaborado de maneira semelhante a um jornal ou

    catálogo de mercado: seus fragmentos apresentam a forma da propaganda ou da notícia

    curta para construirem posições de estranhamento em face do dado cotidiano. A

    segunda posição de Rua de Mão Única pode ser percebida no seguinte fragmento:

    Fardos: expedição e empacotamentoEu ia de manhã cedo, de automóvel, através de Marselha em direção àestação e, assim que no caminho me deparavam lugares conhecidos, depoisnovos, desconhecidos, ou outros de que eu só conseguia lembrar-meinexatamente, a cidade tornou-se em minhas mãos um livro, no qual eulançava ainda rapidamente alguns olhares, antes que ele me desaparecessedos olhos no baú do depósito por quem sabe quanto tempo. (BENJAMIN,2010, p.52)

    Mais do que subverter a escrita da cidade, Rua de Mão Única toma a metrópole

    como texto, de forma que a cidade se torne medium-de-reflexão. Benjamin coloca-se

    diante da metrópole como o estudioso diante da Escritura. A minuciosa leitura dos

    fragmentos da cidade pressupõe um mistério cifrado, que se expressa na concretude dos

    objetos urbanos e pode ser apreendido por meio da cristalização de tensões. Assim

    ocorre ao longo de todo o texto do filósofo: prédios, monumentos, objetos, ruas são

    descritos com olhar detetivesco: os vestígios são levantados na busca da solução para os

    enigmas modernos, de modo que os objetos da cidade sejam lidos de forma distanciada,

    no que têm a revelar sobre si mesmos e sobre o ambiente que configuram.Em resumo, o texto de Benjamin se estabelece estrategicamente frente ao

    impasse do escritor diante da “escrita da cidade”. A urgência em marcar sua posição no

    confronto a uma condição alienada, com novas formas de perceber que relativizam o

     patrimônio literário, impõe ao escritor a compreensão e subversão das novas formas,

    como a propaganda e outros fragmentos do “texto-cidade”, tomado como fonte de

    conhecimento da condição moderna. Retratar as tensões da metrópole a partir de sua

     própria escrita foi a saída encontrada por Benjamin para o impasse descrito. A reflexãosobre o problema é, portanto, apresentada já em forma de possível solução. Rua de Mão

    Única constitui-se como práxis de sua teoria.

    REFERÊNCIAS 

    BENJAMIN, Walter.  Rua de Mão Única. In: Obras escolhidas. Trad. R. RodriguesTorres Filho e J. C. Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2010. v. 2.

    BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em

  • 8/19/2019 22 - Rua de Mão Única - o Escritor Atuante e o Texto-cidade

    5/5

    Walter Benjamin. São Paulo: EDUSP, 2000.

    ROCHLITZ, Rainer. O Desencantamento da Arte: a filosofia de Walter Benjamin.Trad. Maria Elena Ortiz Assumpção. São Paulo: EDUSC, 2003.

    SELIGMANN-SILVA, Márcio.  Leituras de Walter Benjamin. Org. por MárcioSeligmann-Silva, São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999.