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Caderno Educacao Popular Saude

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  • II Caderno de Educaoem sade

    II Caderno de educao

    em sade

    A democracia , como o saber, uma conquista de todos. Toda a separao entre os que sabem e os que no

    sabem, do mesmo modo que a separao entre as elites e o povo, apenas fruto de circunstncias histricas

    que podem e devem ser transformadas.- Paulo Freuire -

    MINISTRIO DA SADE

    1 edio1 reimpresso

    Braslia DF2014

    Biblioteca Virtual em Sade do Ministrio da Sadewww.saude.gov.br/bvs

    MIN

    ISTRIO D

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    9 7 8 8 5 3 3 4 2 1 1 9 6

    ISBN 978-85-334-2119-6

  • II Caderno de Educao

    em sade

    Braslia DF2014

    Ministrio da SadeSecretaria de Gesto Estratgica e Participativa

    Departamento de Apoio Gesto Estratgica e Participativa

  • 2014 Ministrio da Sade.Todos os direitos reservados. A coleo institucional do Ministrio da Sade pode ser acessada, na ntegra, na Biblioteca Virtual em Sade do Ministrio da Sade: . O contedo desta e de outras obras da Editora do Ministrio da Sade pode ser acessado na pgina: .

    Esta obra disponibilizada nos termos da Licena Creative Commons Atribuio No Comercial Sem Derivaes 4.0 Internacional. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte.

    Tiragem: 1 edio 2014 10.000 exemplares

    Elaborao, distribuio e informaes:MINISTRIO DA SADE Esplanada dos Ministrios - Ministrio da SadeBloco G Edifcio Sede - 2 andar - Sala 207CEP: 70058-900 Braslia/DFTel.: (61) 3315-3616/3326Fax: (61) 3322-8377E-mail: [email protected]: @sgep_ms

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE SADE COLETIVAGT de Educao Popular em Sade

    Coordenao editorial:Julio Alberto Wong UmMaria Rocineide Ferreira da SilvaOsvaldo Peralta BonettiRenata PekelmanTheresa Cristina de Albuquerque Siqueira

    Produo editorial:Aic culturas

    Projeto grfico e editorao: Bernardo VazPinturas: Gildsio JardimReviso de textos: Luis Eduardo SouzaFicha catalogrfica: Gustavo Saldanha

    Colaborao:Bernardo Amaral VazCarla Moura Pereira LimaEymard Mouro VasconcelosHelena Maria S. Leal DavidJos Ivo dos Santos PedrosaMaria Waldenez OliveiraPedro Jos Carneiro CruzSimone Leite BatistaVanderleia Laodete PulgaVera Joana BornsteinVera Lcia de Azevedo Dantas

    Normalizao: Amanda Soares CGDI/EditoraMS

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Ficha CatalogrficaBrasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa. II Caderno de educao popular em sade / Ministrio da Sade, Secretaria de Gesto Estratgica e Parti-cipativa. Departamento de Apoio Gesto Participativa. Braslia : Ministrio da Sade, 2014. 224 p. : il.

    ISBN 978-85-334-2119-6

    1. Educao popular em sade. 2. Promoo da Sade. I. Ttulo.

    CDU 614 Catalogao na fonte Coordenao-Geral de Documentao e Informao Editora MS OS 2014/0109

    Ttulos para indexao:Em ingls: Texts in popular health education Em espanhol: Cuaderno de educacin popular en salud

  • A democracia , como o saber, uma conquista de todos. Toda a separao entre os que sabem e os que no sabem, do mesmo modo que a separao entre as elites e o povo, apenas fruto de circunstncias histricas que podem e devem ser transformadas.

    Paulo Freuire

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  • Apresentao2013. Ano de desafio. De construo. De materializao da Poltica Nacional de Educao Popular em Sade no SUS ............................... 9

    Construindo caminhosA Educao Popular em Sade na Gesto Participativa do SUS: construindo uma poltica ....................................................................................................................... 16Osvaldo Peralta Bonetti, Reginaldo Alves das Chagas, Theresa C. A. Siqueira ANEPS: caminhos na construo do indito vivel na gesto participativa do SUS ......................... 25Jos Ivo dos Santos Pedrosa, Maria Ceclia Tavares Leite, Simone Maria Leite Batista, Vera Lcia de A. Dantas

    Nossas fontesAo Victor, depois de dois setembros .................................................................................................... 32Julio Alberto Wang UnIntroduo ........................................................................................................................................... 34Eymard Mouro VasconcelosA crise da interpretao nossa: procurando entender a fala das classes subalternas ......................... 35Victor Vincent VallaLeituras de artigo de Fiori, com a inteno de despertar outras leituras ........................................... 49Maria Waldenez de Oliveira e Petronilha Beatriz Gonalves e SilvaConscientizao e educao ................................................................................................................. 55Ernani Maria FioriCrculos de Cultura: problematizao da realidade e protagonismo popular .................................... 73Vera Lcia Dantas e Angela Maria Bessa Linhare

    II Caderno de EducaoSumrio

  • Dilogo com a experinciaDialogismo e arte na gesto em sade: a perspectiva popular nas cirandas da vida em fortaleza ....... 81Vera Lcia de A.. Dantas e Angela Maria Bessa LinharesDialogando com a experincia das Cirandas da Vida em Fortaleza-CE: novas reflexes ............... 103Jos Ivo dos Santos PedrosaConstruindo zonas de indeterminao .............................................................................................. 109Dnis Roberto da Silva Petuco

    Pequena enciclopdia de fazeresConstruo coletiva em educao popular: oficinas de culinria teraputica .................................... 119Nara Vera GuimaresA Educao Popular em Sade como referencial para as nossas prticas na sade .......................... 123Vanderlia Daron

    Reflexes e vivnciasEducao popular na formao do agente comunitrio de sade ..................................................... 151Vera Joana Bornstein, Mrcia Raposo Lopes, Helena Maria S. Leal DavidDilogo com prticas populares de sade na formao profissional ................................................. 157Maria Waldenez de Oliveira, Aida Victoria Garcia Montrone, Aline Guerra Aquilante, Fbio Gonalves PintoFormao profissional e educao popular a partir de uma experincia curricular em graduao em enfermagem .......................................................................................... 165Helena Maria S. Leal David, Sonia Acioli

    em sade

  • Outras palavrasAprendendo - e ajudando - a olhar o mar: das muitas sades, culturas e artes na educao popular ................................................................... 179Julio Alberto Wong-UnDe cenopoesia e dialogicidade: da reinveno da linguagem ao reinvento do humano ................... 191Ray LimaO cotidiano de Dona Chica na luta contra a tuberculose e a possibilidade de aprender com ludicidade ................................................................................... 194Josenildo F. Nascimento, Mayana A.. Dantas, Ana Paula Brilhante, Ma. Rocineide F. da Silva, Ma. Vilma N. de LimaCha(mam)l cultural: poesia gauchesca ........................................................................................... 196Maria Helena Zanella

    Entre sementes e razesExtenso popular de fitoterapia: realidade em Sergipe ...................................................................... 199Simone Ma. Leite, Karen E. F. Bezerra, Maria Ceclia T. Leite, Tulani C. S. Santos, Vitor Arajo Neto.Dilogo com os cuidadores sobre prticas de cuidados populares ..................................................... 205Suely CorraReceitas de sucos ............................................................................................................................... 208Glaudy Celma Sousa Santana, Josefa de Lourdes S. Pacheco, Marta Maria Fontes Pacheco

    Prmio Victor VallaUma ao de reconhecimento e fortalecimento da EPS no SUS .................................................... 216Esdras Daniel dos Santos Pereira, Osvaldo Peralta Bonetti, Julio Alberto Wong Un

    Sugestes de leitura ....................................................................................................... 219Eymard Mouro Vasconcellos

  • ... Afagar a terraConhecer os desejos da terraCio da terra, a propcia estaoE fecundar o cho[Milton Nascimento e Chico Buarque]

    Nas palavras em poesia de Milton Nascimento e Chico Buarque momento de fecundar o cho, de fazer o movimento na terra, misturando sabores e cores, saberes e prticas, culturas e vi-vncias. Como diz Clarice Lispector ... meu enleio vem de que um tapete feito de tantos fios que no posso me resignar a seguir um fio s; meu enredamento vem de que uma histria feita de muitas histrias (NOLASCO, 2001). Complementaria com o bvio, uma histria escrita por muita gente, demasiadamente humana!

    Assim o caminhar da Educao Popular em Sade, constitu-do por um conjunto de prticas e saberes populares e tradicionais que, segundo a Poltica Nacional de Educao Popular em Sade (PNEP-SUS), apresentam-se como um caminho capaz de contri-buir com metodologias, tecnologias e saberes para a constituio de novos sentidos e prticas no mbito do SUS (BRASIL, 2013).

    A institucionalizao da Educao Popular em Sade, na ges-to federal do SUS, comea a ser gestada ainda no primeiro ano do Governo Lula, em 2003. Naquela poca, foi vinculada Secretaria da Gesto da Educao e do Trabalho em Sade, e, em 2005, foi incorporada Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa (SGEP), fortalecendo sua dimenso estratgica para a promoo da democracia e da participao social na construo do SUS. Na SGEP, desde 2009, foi institudo um espao de dilogo, articu-lao e formulao compartilhada entre o Ministrio da Sade e coletivos e movimentos populares. Trata-se do Comit Nacional

    Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa do Ministrio da Sade

    Apresentao2013. Ano de desafio. De construo. De materializao da Poltica Nacional de Educao Popular em Sade no SUS

  • Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    de Educao Popular em Sade que se dedicou a formulao da PNEP-SUS e atualmente est comprometido com as estratgias para sua implementao.

    Falar sobre democracia e participao social pressupe o ato de compartilhamento do poder, troca e construo compartilhada de sa-beres, estabelecimento de relaes solidrias entre gestores, trabalha-dores e usurios do SUS tendo como objetivo sua efetivao. Fazer do SUS uma realidade vivida e no s assegurada em lei, requer o prota-gonismo de sujeitos dotados da capacidade de compreender o mundo e a si mesmos e de atuarem sobre ele, com autonomia e conscincia.

    Paulo Freire, em atos de compartilhamento, afirma que a conscientizao um compromisso histrico, implicando o enga-jamento de homens que assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo (FREIRE, 1980).

    com essa perspectiva que a Educao Popular em Sade vem sendo construda. De 2003 at os dias atuais, ganhou espaos dos mais diversos, instalando-se no dia a dia dos servios, nos processos de for-mao, na gesto cotidiana do SUS, fortalecendo-se em muitos movi-mentos sociais populares, nas ruas e nas praas, no campo e na cidade, constituindo-se como uma prxis em construo.

    2013, ano da institucionalizao da Poltica Nacional de Educao Popular em Sade no SUS, fato que, alm de representar mais uma conquista, espelha o desafio de ampliao do seu exerccio junto aos gestores e trabalhadores da sade e a sociedade como um todo.

    O exerccio da PNEP-SUS no est descolado do cotidiano da organizao da gesto e da ateno. Muito pelo contrrio, ideia--fora potente para a promoo de atos que contribuam para a ga-rantia da integralidade, ampliando e diversificando as prticas em sade por incorporar os modos populares e tradicionais do cuidado, alm de fortalecer a ateno bsica como ordenadora das redes re-gionalizadas de ateno sade.

    ferramenta estratgica por apoiar os processos de reduo das desigualdades regionais e das iniqidades sociais, alm de for-talecer as construes em prol das diversidades culturais e das pos-sibilidades de estar e ser no mundo. Potencializa a ampliao da participao social e da gesto compartilhada, extremamente ne-cessria nas relaes entre os gestores e destes com os trabalhadores

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  • e usurios do SUS. orientadora no processo de qualificao da formao e fixao dos profissionais de sade.

    A PNEP-SUS em tempos de regionalizao, segundo Decreto No. 7508, qualifica e confere maior potencialidade aos processos construtivos de enfrentamento dos desafios hoje colocados para o SUS (BRASIL, 2011).

    Nada mais oportuno o fato do Ministrio da Sade, por meio de sua Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa, que conta com a Coordenao Geral de Apoio Educao Popular e Mobilizao Social, estar publicando o II Caderno de Educao Popular em Sa-de como expresso viva do seu compromisso em dialogar sobre novas formas e caminhos de fazer, pensar e sentir a sade.

    O II Caderno de Educao Popular em Sade est constitu-do por nove sees, denominadas trilhas: Construindo Caminhos; Nossas Fontes; Pequena Enciclopdia de Fazeres; Outras Palavras; Dilogo com a Experincia; Reflexes e Vivncias; Entre Sementes e Razes e Indicaes de Leituras. So trilhas instigantes que pro-porcionaro ao leitor e aos fazedores e pensadores do SUS novos aprendizados.

    Ao se debruar sobre o II Caderno de Educao Popular em Sade, voc certamente se sentir inspirado por palavras que se fa-zem ou se fizeram em atos e, somente por terem sido vividas so palavras demasiadamente humanas! Por isso, nosso sentimento ao publicar o II Caderno de Educao Popular em Sade o de Antnio Ccero em seu poema Guardar:

    Guardar uma coisa no escond-la ou tranc-la.Em cofre no se guarda coisa alguma.Em cofre perde-se a coisa vista.Guardar uma coisa olh-la, fit-la, mir-la por admir-la, isto , ilumin-la ou ser por ela iluminado.Guardar uma coisa vigi-la, isto , fazer viglia por ela, isto , velar por ela, isto , estar acordado por ela, isto , estar por ela ou ser por ela ... (CCERO, 2013)

    A todos uma tima leitura. Melhor dizendo, uma boa vivncia!

    Apresentao

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  • Referncias BRASIL. Ministrio da Sade. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.761,

    de 19 de novembro de 2013. Institui a Poltica Nacional de Educao Popular em Sade no mbito do Sistema nico de Sade (PNEPS-SUS). Disponvel em: . Acesso em: 16 out 2013.

    ______. Presidncia da Repblica. Decreto n. 7.508, de 28 de Junho de 2011. Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organizao do Sistema nico de Sade - SUS, o planejamento da sade, a assistncia sade e a articulao interfederativa, e d outras providncias. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 1 out. 2013.

    CCERO, Antnio. Guardar. Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2013.

    FREIRE, P. Conscientizao: teoria e prtica da libertao: uma introduo ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. So Paulo: Moraes, 1980. 102 p.

    NASCIMENTO, M.; HOLLANDA, C. B. Cio da Terra. 1976. Disponvel em: . Acesso em: 3 jul. 2008.

    NOLASCO, Edgar Czar. Clarice Lespector: nas entrelinhas da escritura. So Paulo: Annablume, 2001. 270p.

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

  • Construindo caminhos

  • A Educao Popular em Sade na GestoParticipativa do SUS: construindo uma poltica

    Osvaldo Peralta BonettiTcnico Especializado da Sec. de Gesto Estratgia e Participativa / Ministrio da Sade.

    Reginaldo Alves das ChagasCoordenador de Educao Po-pular em Sade e Mobilizao Social da SGEP/MS (2011/12).

    Theresa C. A. SiqueiraConsultora Tcnica da Coord. Geral de Apoio Educao Po-pular em Sade e Mobilizao Social da SGEP/MS (2011/12).

    A publicao do II Caderno de Educao Popular em Sade acontece em um momento especial da caminhada da EPS. Neste ano de 2013, o Ministrio da Sade, por meio da Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa (SGEP), concentra esforos para a implementao da Poltica Nacional de Educao Popular em Sade no SUS (PNEP-SUS) pactuada em maio na Comisso In-tergestores Tripartite.

    A Educao Popular em Sade (EPS), enquanto campo te-rico-metodolgico e prtica social, tem apresentado desafios po-ltica pblica de sade para o avano da democracia participativa, afirmando o Sistema nico de Sade (SUS) como garantidor do acesso s aes de sade e essencialmente constitudo por valores promotores de relaes mais humanizadas.

    Ao analisar o percurso histrico da EPS impossvel no me-morarmos que muitos caminhos foram percorridos por intelectuais orgnicos na rea da sade, como Paulo Freire e Victor Valla, bem como pelos movimentos sociais populares que fazem parte da tra-jetria de conquista que nos proporciona a vivncia deste momento atual de formulao de uma Poltica de EPS no mbito do SUS.

    Refletirmos sobre a PNEP-SUS nos provoca a importncia de resgatarmos o processo de institucionalizao da EPS na gesto fe-deral. O ano de 2003 destaca-se como aquele em que inaugurou essa aproximao, quando ocorre a conquista do Governo Lula e a Rede de Educao Popular em Sade apresenta uma carta de intenes ao chamado grupo de transio do governo que estava estruturando a nova proposta poltica do MS. Acolhida a proposta, a EPS esteve ar-ticulada inicialmente Poltica de Educao Permanente para o SUS, coordenada pela Secretaria de Gesto da Educao e do Trabalho em Sade (SGETS), tendo papel de contribuir com a qualificao da par-ticipao popular e com a formao para o trabalho em sade. Nesse

    (...) devo usar toda possibilidade que tenha para no apenas falar de minha utopia, mas participar de prticas com ela coerentes.

    (Paulo Freire)

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    Construindo caminhos

    perodo constitui-se a ANEPS como um inovador espao de interlocuo e construo compartilhada entre a gesto e os atores que se movimentam, historicamente, no campo da EPS.

    A insero da EPS na Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa, ocorrida em 2005, promove mudanas significativas no campo institucional, fortalecendo sua identidade com a democratizao do Siste-ma de Sade por meio da participao e do controle social. Concomitante a este fato, a SGEP encontrava-se em reformulao es-trutural e iniciava-se o processo de formu-lao da ParticipaSUS (Poltica de Gesto Participativa do SUS).

    A vivncia nos mostra hoje, que a in-sero da EPS neste contexto, comparti-lhando seu referencial terico-metodolgi-co e aproximando suas prticas, contribuiu em muito para a construo e formulao da ParticipaSUS, adensando este campo e promovendo um certo alargamento do conceito de participao e controle social, trazendo cena saberes e prticas ainda in-visveis nos espaos oficialmente institudos de participao popular no SUS.

    Na SGEP, foi instituda a Coordenao Geral de Apoio Educao Popular e Mobilizao Social, integrando o Departamento de Gesto Participativa, responsvel tambm por fomentar polticas de promoo da equidade em sade1 e apoio ao controle social por meio dos Conselhos e das Conferncias de Sade.

    1 Poltica Nacional de Sade Integral da Populao Negra, Poltica Nacional de Sade Integral da Populao LGBT (Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), Poltica Nacional de Sade Integral das Populaes do Campo e da Floresta.

    Como referido anteriormente, na atu-alidade o MS encontra-se comprometi-do com a formulao e implementao da PNEP-SUS, que tem sido construda de forma participativa e apresenta como um de seus canais de dilogo o Comit Nacional de Educao Popular em Sade (CNEPS)2. Desde 2009, sensibilizada pela demanda de qualificar a interlocuo com os coletivos e movimentos de EPS, bem como pela de fortalecer o apoio e a visibilidade das pr-ticas e movimentos de EPS no contexto do SUS para o desenvolvimento de uma ges-to participativa de fato, a SGEP instituiu o CNEPS. Este Comit rene um coletivo de 28 membros titulares e seus respectivos suplentes, sendo essas representaes da so-ciedade civil, 13 movimentos populares e 2 movimentos representativos dos gestores, como tambm, 9 representaes de rea de governo, ligadas s reas tcnicas do MS e instituies ligadas ao SUS. Reunies peri-dicas com o conjunto das representaes que o compem tm sido realizadas a fim de discutir e construir estratgias de forta-lecimento da EPS, as quais esto articuladas

    2 Representaes da Sociedade Civil no CNEPS: Articulao Nacional de Educao Popular e Sade (ANEPS); Rede de Educao Popular e Sade (REDEPOP); Articulao Nacional de Extenso Popular (ANEPOP); Grupo de Trabalho de Educao Popular em Sade da ABRASCO; Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); Movimento Popular de Sade (MOPS); Movimento de Reintegrao das Pessoas Atingidas pela Hansenase (MORHAN); Movimento de Mulheres Camponesas (MMC); Rede Nacional de Religies Afro-brasileiras e Sade; Central de Movimentos Populares (CMP); Confederao Nacional dos Agentes Comunitrios de Sade; Rede Nacional de Parteiras Tradicionais.

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    ao seu objetivo primeiro que o de apoiar e sistematizar o processo de formulao e implantao da PNEP-SUS.

    Para cumprir com este objetivo, em 2010 foram realizados seis Encontros Regionais de EPS promovidos pelo MS em parceria com os movimentos sociais populares integrantes do CNEPS. Nestes Encontros ficou explci-ta a necessidade de reinventar a participao no SUS, considerar o jeito de ser brasileiro, de promover um Sistema de Sade cada vez mais humanizado e identificado cultural-mente com a populao que o constri e o acessa cotidianamente.

    Entende-se que a EPS apresenta-se com potencialidade, no apenas como referencial terico/metodolgico para a construo de polticas, haja vista as ex-perincias reais em governos do campo da esquerda, como tambm, campo de prti-ca social com amplo poder de agregao, alicerado em princpios ticos e culturais compromissados com o popular.

    Dentre os princpios da EPS, podemos de-stacar a defesa intransigente da democracia em contraposio ao autoritarismo ainda comum em nossa jovem democracia; a articulao entre os saberes populares e os cientficos pro-movendo o resgate de saberes invisibilizados no caminho de um projeto popular de sade onde haja o sentido do pertencimento pop-ular ao SUS; a aposta na solidariedade e na amorosidade entre os indivduos como for-ma de conquista de uma nova ordem social; a valorizao da cultura popular como fonte de identidade; a concepo de que a leitura da realidade o primeiro passo para qualquer processo educativo emancipatrio que vise contribuir para a conquista da cidadania.

    Ao observarmos sua capilaridade nos ltimos anos, no podemos deixar de men-cionar as inmeras experincias que vem sendo desenvolvidas nos servios de sade pelos trabalhadores do SUS que, por vezes de forma silenciosa em relao institucio-nalidade, sem apoio das instituies, tem buscado uma nova forma de fazer sade, mais participativa, promovendo a autonomia e a transformao da cultura vigente, assim como as experincias realizadas pelos movi-mentos sociais populares em suas atividades educativas ou de mobilizao. Um dado que entendemos ter relao a este processo hist-rico da EPS e valide a afirmativa anterior, o nmero expressivo de trabalhos apresenta-dos em congressos da rea da sade referen-ciados na EPS nos ltimos anos, trazendo a dimenso da contribuio que este campo tem possibilitado para a transformao das prticas de sade. Para citar um exemplo, destacamos o ABRASCO de 2010 que con-tou como eixo temtico Educao Popular e Movimentos Sociais, que teve o segundo maior numero de inscries do congresso.

    O nmero de iniciativas inovadoras re-ferenciadas na EPS, fomentadas ou sendo reconhecidas em muitas gestes estaduais e municipais tem aumentado significativa-mente. Como exemplos de experincias que merecem ser divulgadas, citamos as experi-ncias relacionadas ao Departamento de En-demias da ENSP/FIOCRUZ, a exemplo da Ouvidoria Coletiva promovida em parceria com a Secretaria Municipal de Sade de Ita-bora; do projeto MobilizaSUS, coordenado pelo Departamento de Educao Permanen-te da Secretaria Estadual de Sade da Bahia, que tem promovido uma grande mobilizao

    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

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    Construindo caminhos

    por meio de processos educativos envolven-do atores do SUS de forma descentralizada no Estado. O Espao Ekob ligado ao proje-to Cirandas da Vida da Secretaria de Sade de Fortaleza tem trazido a contribuio das prticas populares de cuidado para o interior do sistema, valorizando o saber popular nos servios de sade.

    Na regio Norte, ressalta-se a mobiliza-o e articulao do Movimento pela Revi-talizao dos Saberes e Prticas Populares/Tradicionais de Sade em Parintins/AM. A implementao de Comits de Enfrentamento da Dengue em alguns estados de-monstra a importncia do referencial das pr-ticas de cuidado e da arte e cultura na pro-moo da sade; pro-jetos de promotores da fitoterapia popular articulados com uni-versidades, secretarias estaduais e municipais e movimentos sociais popula-res como os que acontecem em Aracaju/SE, Vacaria/RS, Marlia/SP, entre outros.

    Iniciativas desenvolvidas nas universi-dades tm sido fortalecidas, como Especia-lizaes em Educao Popular em Sade, as aes relacionadas Extenso Popular, como as experincias de Alagoas, Sergipe, Paraba com seus diversos projetos de ex-tenso. Espera-se que as iniciativas de arti-culao entre ensino, servio e comunidade relacionadas educao popular em sade sejam potencializadas pelo Programa Na-

    cional de Reorientao da Formao Pro-fissional em Sade (Pr-Sade) articulado ao Programa de Educao pelo Trabalho para a Sade (PET-Sade) que em seu edi-tal de n 24, publicado em 15 de dezembro de 2011, que aponta a educao popular em sade como uma das aes a serem traba-lhadas buscando incorporar o conceito do trabalho em rede na sade integralidade da ateno e continuidade dos cuidados.

    Um espao que tem contribudo em muito neste processo, j identificado como

    uma marca do campo so as Ten-das de EPS, costumeiramen-

    te chamadas de Tendas Paulo Freire. A partir de

    seu precursor e fonte inspiradora, o Espa-o Che no Frum Social Mundial de 2005, dezenas de ten-das j foram realizadas

    em eventos significa-tivos do setor sade3.

    Dentre suas caracters-ticas, a dialogicidade entre

    prticas e saberes acadmicos e populares e a superao de situaes-

    -limite na sade empregando metodologias participativas e problematizadoras, a arte e cultura e a construo compartilhada entre os atores dos coletivos de EPS, desde sua formulao. Tais aes promovem assim a visibilidade das aes e prticas de EPS e sua articulao, criando um espao acolhedor e colorido identificado cultura popular. Por 3 Congresso da ABRASCO, Rede Unida, CONASEMS, o Brasileiro de Enfermagem, de Medicina de Sade e Comunidade entre outros.

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    meio da articulao com parceiros locais tem inaugurado um novo jeito na realizao dos eventos da rea da sade, promovendo o en-trelaamento entre a teoria e a prtica, tra-zendo para a cena atores historicamente in-visibilizados neste contexto de produo do conhecimento e articulao poltica, como militantes e cuidadores populares.

    Na 14 Conferncia Nacional de Sade (CNS) o Espao Paulo Freire destacou-se como um dos ambientes da Conferncia mais propcio liberdade de expresso e construo de conhecimentos em sade a partir da integrao dos diversos saberes, da promoo da cultura popular e principal-mente um lugar onde delegadas, delegados e a comunidade em geral puderam partilhar experincias e discutir temas relevantes para a garantia do direito sade e o desenvolvi-mento participativo do SUS. A realizao desta Tenda durante a 14 CNS, no mo-mento em que foras do controle social e dos movimentos populares esto engajadas pela instituio da Poltica Nacional de Educao Popular em Sade, foi de significativa im-portncia para a popularizao do debate e visibilidade das prticas de EPS no SUS.

    Destaca-se no relatrio final da 14 CNS, na diretriz relacionada gesto participativa e controle social sobre o estado: ampliar e con-solidar o modelo democrtico de governo do SUS, a deliberao da necessidade de imple-mentao da Poltica Nacional de Educao Popular, com a criao de comisses estaduais (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE SADE, 2012).

    De modo geral, podemos afirmar que o desafio atual a institucionalizao das prticas e dos princpios da EPS no SUS, ou seja, publicizar a EPS a fim de contribuir com melhoraria da qualidade de vida das pessoas, seja pela agregao de valores cul-turais, pela incorporao de prticas e sa-beres que esto na sociedade e nos movi-mentos populares. Institucionalidade assim entendida como o Estado reconhecer e le-gitimar valores da sociedade que historica-mente foram marginalizados.

    Com o intuito de estimular este pro-cesso, a SGEP-MS publicou a Portaria N 2.979 de dezembro de 2011 que repassa

    arquiv

    o ANE

    PS

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    Construindo caminhos

    aspectos, como contribuir com os segmentos que atuam na perspectiva da defesa da equi-dade, fomentando o sentido de pertenci-mento entre seus atores, intensificando identidades no s entre aqueles de cada um destes (LGBT, negros, campo e floresta, em situao de rua, ciganos), como no seu conjunto, sendo que h similitudes entre os condicionantes de suas situaes de iniqui-dade, processo esse fundamental tambm, na articulao da defesa do projeto coletivo de sade, elementar ao SUS.

    O estmulo descentralizao de Comits de Educao Popular em Sade apresenta-se como a estratgia para capilarizar as aes de EPS junto s gestes estaduais, na medida em que promove a institucionalizao de espao de interlocuo entre atores dos movimentos sociais popu-lares e as reas de gesto do SUS. Assim, a PNEP-SUS se apresenta como referencial poltico pedaggico para a formulao e im-plementao de aes de EPS nas demais esferas de gesto, mas fundamentalmente, por meio destes espaos espera-se promover a construo compartilhada e identificada a

    recursos federais s gestes estaduais para implementao da ParticipaSUS, esta-belecendo como uma das metas a imple-mentao de Comits de Educao Pop-ular em Sade e Promoo da Equidade em Sade (BRASIL, 2011a). Aliada a um conjunto de estratgias de sensibilizao e mobilizao, como seminrios, proces-sos formativos, disponibilizao de ma-teriais pedaggicos; espera-se que seja desencadeada junto s gestes estaduais a necessria descentralizao e capilarizao da Educao Popular em Sade no SUS.

    O fato de esta Portaria fomentar a ar-ticulao entre a EPS e a promoo da equi-dade nos provoca a refletir sobre a identidade existente entre suas intencionalidades. Se compreendermos que a EPS nasce do com-prometimento com as classes populares e da contrariedade com as desigualdades exis-tentes em relao aos direitos sociais no Pas, perceberemos que esta relao intrnseca e, portanto, possui potencialidade de articu-lao entre as aes das polticas que as pro-movem. O referencial da EPS no contexto da promoo da equidade tem significativos

    arquiv

    o ANE

    PS

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    cada realidade estadual, que perpassa tanto a prpria poltica de sade, as caractersticas locais do SUS, como tambm a conjuntu-ra e organizao poltica da sociedade civil. Neste contexto, a configurao dos Comits de EPS no possuem uma estrutura ou com-posio padro e sim, devem ser recriadas em cada localidade conforme a articulao e mo-bilizao de atores que se movem no campo da educao popular em sade. O desenho implementado no nvel nacional poder sim, servir de subsidio na formulao destes es-paos no momento em que aponta reas de governo com identidade tcnica e poltica com as aes de EPS e destaca movimentos sociais populares que tem acumulado uma qualificada compreenso no caminho com-plexo da institucionalizao da EPS.

    Na anlise das potencialidades da PNEP-SUS, uma dimenso significativa a articulao das prticas populares de cuida-do aos servios de sade, pois estas atuam muito prximas dos princpios que temos buscado efetivar no SUS, como a human-izao, solidariedade e a integralidade, com-preendendo estas no s como forma de cura, mas, fundamentalmente, como con-tribuidoras para a conquista de um projeto de sociedade engajado com esses valores.

    A incorporao da EPS pelo SUS nos traz a dimenso do potencial apresentado pelo trabalho em rede, o qual poder ser fortalecido enquanto referencial nas polti-cas de sade, visando maior capilaridade, efetividade e democratizao das mes-mas. Para tanto, ser fundamental a com-preenso de que a EPS no apenas mais um contedo acadmico e sim uma prti-ca social que apresenta uma produo con-

    sistente no campo terico, mas que somente apreendida e realizada de fato, quando vinculada ao compromisso com o SUS en-quanto projeto de sociedade e vivenciada na prtica.

    Aes de EPS podero vir a contribuir com a promoo da sade e a qualificao da educao em sade tradicionalmente realiza-da, fortalecendo vnculos emancipatrios para que o cidado tenha cada vez mais autono-mia de deciso em como se cuidar e mais am-plamente no seu jeito de andar a vida. Vale destacar que na perspectiva de fortalecer a mudana no modelo de ateno centrado na doena, muito significativa a aproximao dos servios de APS s prticas populares de cuidado, pois estas carregam uma viso de mundo e de sade que se aproxima dos princpios que cotidianamente temos nos es-forado para implementar, como a integrali-dade, a humanizao e o acolhimento.

    Dentre estes processos, destaca-se o desenvolvimento de espaos de encontro mediados pelo dilogo, abertos para uma nova cultura participativa que acolhe e legitima a contribuio do saber popular ao lado do saber tcnico cientfico, os quais podero contribuir tambm para o desejado reencantamento popular pelo SUS.

    No conjunto das estratgias desen-cadeadas pela Coordenao de Apoio Mobilizao Social e Educao Popular em Sade para fortalecer o processo de imple-mentao da Poltica Nacional de Educao Popular em Sade, destaca-se a visibilidade s prticas populares de cuidado, destacando-se a importncia dos terreiros, das parteiras, ben-zedeiras, das plantas medicinais, entre outras; a busca da intersetorialidade, compartilhando

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    Construindo caminhos

    o referencial da EPS com as demais polticas pblicas; a insero da EPS como referencial do processo poltico metodolgico da for-mao dos Agentes Comunitrios de Sade e Agentes de Controle de Endemias; e a po-tencializao dos demais processos formativos articulados ao SUS. A articulao entre arte e cultura e a sade um referencial significativo na EPS, dentre as mltiplas iniciativas nas quais envolvida, destaca-se o movimento de reconhecimento e articulao que a SGEP/MS est inaugurando com a populao do Circo a fim de buscar a correo das iniqui-dades a que as populaes circenses esto ex-postas e potencializar o Circo como espao de promoo da sade.

    O Prmio Victor Valla de Educao Popular em Sade congrega muitas das in-tencionalidades elencadas e proporcionou o acesso a uma grande diversidade de ex-perincias, grande parte destas autnomas, sendo desenvolvidas no interior dos servios e por coletivos e movimentos populares. O acesso s mais de 160 experincias partic-ipantes do Prmio evidenciou a necessi-dade de investirmos enquanto poltica de sade no apoio pedaggico aos atores que desenvolvem estas prticas de promoo e educao em sade. Neste sentido a SGEP/MS encontra-se em fase de planejamento de um processo formativo envolvendo os protagonistas destas experincias e possibil-itando a troca de experincias e o acesso ao referencial da educao popular em sade.

    Essas iniciativas congregam-se ao marco poltico do atual governo de desenvolvimen-to de um Projeto de Erradicao da Pobreza no Pas. No setor sade, um avano significa-tivo a publicao do Decreto n 7.508/2011

    de regulamentao da Lei 8.080, que legitima a Ateno Primria como porta de entrada do Sistema entre outros avanos organizativos (BRASIL, 2011b). Compreende-se que os avanos no modelo organizativo do SUS so-mente geraro o impacto desejado se houver o fortalecimento concomitante dos dispositi-vos democratizadores da participao popular na poltica de sade, dentre os quais a EPS merece evidncia.

    Democratizao a palavra chave tan-to para garantirmos o acesso a todos como para a conquista de um sistema acolhedor, este ltimo talvez mais complexo de ser con-quistado, pois, para garantir acolhimento necessrio algo mais - o sentido de perten-cimento apontado por Paulo Freire. Nesse sentido, a EPS tem apontado princpios que podem contribuir s prticas de sade nes-sa busca, como a problematizao da reali-dade vivenciada pelas populaes enquanto elemento bsico dos processos educativos e de planejamento no enfrentamento dos de-terminantes sociais da sade; a valorizao do saber popular como forma de construir-mos relaes e vnculos mais efetivos, alm do desafio de resgatarmos e articularmos as prticas populares de cuidado aos servios de sade; a construo compartilhada do conhecimento; e a amorosidade, elemento intrnseco da humanizao do sistema, que implica o reconhecimento do outro em sua totalidade e diversidade.

    Para que a EPS seja transformada em uma poltica do SUS temos de compreender que esta dever contemplar a todos aqueles que esto implicados com a poltica de sade, ou seja, trabalhadores, gestores, docentes, educadores, estudantes e usurios. Ainda

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    comum a viso de que a educao popular somente realizada a uma parcela da popu-lao mais desfavorecida e este deve ser um ponto a ser trabalhado na poltica, ampliar a viso sobre o que realmente a EPS, a quem serve e em quais espaos propcia sua contribuio.

    Quando entendemos que a busca da transformao social perpassa as relaes humanas, as formas de apropriao do conhecimento e de outros bens, torna-se mais compreensvel que a EPS pode acon-tecer tanto no espao da gesto, dos servios de sade, de formao em sade e dos movi-mentos populares onde foi concebida e vem sendo realizada.

    Com a PNEP-SUS, espera-se articular o referencial da educao popular em sade aos processos de gesto, formao, controle social e cuidado em sade, buscando for-talecer a gesto participativa, contri buir com a formao em sade em seus vrios espaos de ao - profissional, tcnica, bem como for-talecer os processos j existentes no campo dos movimentos populares, inteno esta, que se traduz no apenas em apoio financeiro, mas em relaes mais prximas entre governos e estes movimentos na construo de projetos coletivos para a qualificao do SUS.

    O momento atual demonstra grande fertilidade nas formulaes e realizaes do campo da EPS na poltica pblica de sade, porm, a conquista da Poltica Nacional de Educao Popular em Sade perpassa um movimento que vai alm de sua pactuao e instituio no marco regulatrio do SUS. A PNEP-SUS somente alcanar os impactos e transformaes desejadas, se cada ator do SUS sentir-se parte e protagonizar este processo de implementao. O convite est posto. Espera-mos que, cada vez mais, esta poltica construa sentidos coletivos em sua materialidade.

    Referncias

    BRASIL. Ministrio da Sade; CONSELHO NACIONAL DE SADE. Relatrio Final da 14 Conferncia Nacional de Sade: todos usam o SUS: SUS na seguridade social: poltica pblica, patrimnio do povo brasileiro. Braslia: Ministrio da Sade, 2012. Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2013.

    ______. Ministrio da Sade. Portaria n. 2.979, de 15 de dezembro de 2011. Dispe sobre a transferncia de recursos aos Estados e ao Distrito Federal para a qualificao da gesto no Sistema nico de Sade (SUS), especialmente para implementao e fortalecimento da Poltica Nacional de Gesto Estratgica e Participativa do Sistema nico de Sade (ParticipaSUS), com foco na promoo da equidade em sade, e para a implementao e fortalecimento das Comisses Intergestores Regionais (CIR) e do Sistema de Planejamento do SUS. 2011a. Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2013.

    ______. Presidncia da Repblica. Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organizao do Sistema nico de Sade - SUS, o planejamento da sade, a assistncia sade e a articulao interfederativa, e d outras providncias. 2011b. Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2013.

  • ANEPS: caminhos na construo do indito vivel na gesto participativa do SUS

    Jos Ivo dos Santos Pedrosa Mdico, Doutor em Sade Coletiva. Professor Associado da Universidade Federal do Piau.

    Maria Ceclia Tavares Leite Assistente Social, Doutora em Ser-vio Social. Professora do DSS/UFS e ANEPS - Sergipe.

    Simone Maria Leite BatistaEnfermeira, especilaizao em Sa-de Pbiica. Movimento Popular de Sade do Estado de Sergipe e ANEPS.

    Vera Lcia de A. Dantas Mdica, mestre em Sade Pbli-ca- UECE, doutora em educao UFC e coordenadora pedaggica do Sistema Municipal de Sade Escola da SMS Fortaleza. ANEPS.

    A sade coletiva no contexto das democracias contemporneas e particularmente no Brasil tem como um de seus desafios a constituio de dilogos entre o espao governamental (institudo) e os movimentos sociais na formulao e implementao das polticas pblicas. Vrias estratgias e dispositivos vem sendo pensados e includos nesse percurso na perspectiva de que o controle social dessas polticas se efetive e, neste sentido, algumas dessas iniciativas apontam para o fortalecimento da democracia participativa.

    Uma dessas estratgias foi criao de um espao de dilogo entre os movimentos e prticas de educao popular em sade, es-paos formativos e gestes do SUS, que surge a partir de 2003, como uma Articulao Nacional de Movimentos e Prticas de Educao Popular em Sade ANEPS. Trata-se de uma experincia nova que tem por objetivo uma relao diferenciada com o Estado capaz de fortalecer a sociedade civil do ponto de vista popular e, ao longo de um processo histrico e social mais amplo, fazer com que os interesses do Estado sejam coincidentes com os da sociedade. A ANEPS tem buscado, em seu percurso, construir caminhos e tri-lhas que desencadeiem processos de reconhecimento e constituio de sujeitos, mobilizando entidades, movimentos e prticas de edu-cao popular. Desse modo, vem se construindo uma dinmica que possa romper com formatos verticais e hierarquizados de organiza-o, que historicamente tem caracterizado as estratgias hegemni-cas de participao institudas no mbito das polticas pblicas em nosso pas, que, de maneira geral, ainda se encontram pautadas nos princpios e formas de organizao da democracia representativa.

    Neste sentido a ANEPS, como um espao de articulao, bus-ca constituir uma ao em rede na qual vrios movimentos que

    Essa ciranda no minha sEla de todos nsEla de todos ns

    (Lia de Itamarac )

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    dialogam, se articulam como possibilidade de fortalecimento da organizao popular, aproximao de bandeiras de luta de cada segmento, formao poltica e de interlocu-o propositiva com os espaos institudos, mantendo suas identidades. Resgata assim, o sentido de projeto coletivo de sade como idealizado na reforma sanitria.

    Um dos propsitos originais da ANEPS tem sido o de articular e apoiar os movimentos e prticas de educao popu-lar e sade a fim de qualificar suas prticas, desenvolver processos formativos e reflexi-vos a partir da prxis e construir referncias para a formulao de polticas pblicas.

    Diante dos desafios que se apresentavam, os passos iniciais revelaram a complexidade desse caminhar considerando as distncias e diversidades na compreenso do que efeti-vamente se constituem prticas de educao popular em sade e quem so seus atores.

    Como encontr-los, promover encon-tros dialgicos? Como compartilhar saberes e construir caminhos de organizao rompen-do com institudo eram questionamentos

    animadores dos primeiros encontros que foram se delineando por vrios estados do Brasil. Configurou-se uma cartografia mltipla e diversa, na qual foram se incluin-do atores da esfera institucional (estudantes e professores universitrios, trabalhadores e gestores da Sade), dos movimentos sociais populares e atores no necessariamente li-gados a movimentos, mas sujeitos de pr-ticas populares de cuidado como parteiras, benzedeiras, educadores, entre outros.

    Os desenhos dos encontros foram di-versos e algumas tecnologias foram inven-tadas e nomeadas como, por exemplo, as Farinhadas do Cear, encontros onde um movimento recebia os atores de outros es-paos para que pudesse saborear sua expe-rincia, seu jeito de acolher, suas formas de fazer e dela extrair aprendizados.

    Nesse processo outros arranjos surgi-ram e se constituram em momentos de aprendizagem e se tornaram espaos re-veladores da possibilidade de uma forma de produzir encontros diversos, plurais e multiculturais. Assim, um exemplo disso, tem sido as experincias das Tendas Paulo Freire, que construdas nos principais En-contros e Congressos de Sade onde a integrao de experincias diversas de di-versos estados, promove a discusso, tm problematizado temas que apesar de inte-grarem o cotidiano das pessoas no fazem parte da agenda poltica da sade como a

    fundamental diminuir a distncia entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prtica.. Paulo Freire

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    Construindo caminhos

    importncia das prticas populares de cui-dado como um jeito singular e amoroso de produzir sade possibilita o compartilha-mento de vivncia distinto e a construo de propostas de ao.

    Foram tambm nessa perspectiva que, desde 2003, foram construdos os diversos encontros estaduais e os 03 encontros nacio-nais (Braslia, em 2003; Aracaju, em 2006 e Goinia, em 2010). Nessa caminhada se foi chegando aos espaos institudos: na gesto, especialmente alguns setores do Ministrio da Sade; nos servios incluindo prticas; nas universidades, apresentando jeitos dife-rentes de organizar e produzir conhecimen-tos. Nesse jeito diferente de fazer foram sendo realizadas formaes em dilogo com a academia (Ekob, - UECE, Fitoterapia - UFS, Caf Com Idias - UFG, Sade no Mercado UFS) e ao mesmo tempo crian-do teias entre estados e regies, tais como a articulao, dilogos e aes compartilhadas existentes entre os educadores populares do Cear, Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Sul e do Piau.

    Em todas essas iniciativas tem-se bus-cado contribuir com a formao dos atores que a constituem, incorporando os sujeitos em suas potncias, estimulando e apostando na capacidade de produzir reflexes acerca das prprias experincias. Assim que os movimentos do Cear, Sergipe e Alagoas tem se juntado de forma solidria e muitas vezes sem recursos institucionais, para pro-ver a formao em prticas de cuidado; que atores do Sul passaram a contribuir com a sistematizao de experincias do Nordeste,

    em um movimento que vai aprendendo a produzir ns para o fortalecimento dessa rede de articulaes.

    Nesses caminhos, a produo de sen-tidos tem ocorrido tambm atravs da ar-ticulao e constituio de fruns perma-nentes de educao popular nos estados, como espao de escuta das necessidades, de formao de atores sociais para a gesto das polticas pblicas, de organizao, de comu-nicao entre os movimentos e de mobiliza-o popular. Um processo por vezes tenso de dilogo desses movimentos e sujeitos que buscam encontrar efetivos espaos de interlocuo com o jeito institucionalizado de fazer e produzir sade (Ministrio da Sade, Secretarias Estaduais e Municipais de Sade, Universidades) sem perder suas identidades e autonomia.

    Nesse percurso, a ANEPS ao mesmo tempo em que referencia as prticas popu-lares de cuidado, de organizao e culturais, no perde de vista as lutas por um proje-to popular de sociedade, articulando-se a outras redes e organizaes que caminham nessa perspectiva como a Rede de Educao Popular em Sade, a ANEPOP e o GT de educao popular em sade da ABRASCO, a Rede de Educao Cidad - RECID, en-tre outros coletivos de educao popular em sade que caminham no sentido do fortale-cimento das lutas polticas.

    A criao do Comit Nacional de Educao Popular e Sade - CNEPS - repre-senta uma conquista dessa caminhada e aponta para possibilidades de fazer poltica participa-tiva para alm da democracia representativa.

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    Todo este processo desencadeou a formula-o da proposta do CNEPS, como mais uma estratgia que tem como objetivo a ampliao e o fortalecimento da luta pelo direito sa-de, da luta em defesa do SUS, por meio da participao popular, atravs dos j institu-dos espaos de participao popular nas pol-ticas pblicas e apostando em novas e criati-vas formas de participao da populao.

    Apesar dos avanos na caminhada tri-lhada pelos atores dos movimentos e prti-cas que fazem a ANEPS, muitas situaes--limite precisam ser superadas. Uma delas diz respeito prpria for-ma de organizao de um espao como esse. Vrios foram os formatos j ex-perimentados e parece--nos que essa ainda uma situao-limite que conti-nua a desafiar a capacidade inventivo-criativa dos su-jeitos dessa articulao que seguem maturando suas reflexes, seja na compreenso do sentido poltico pedaggico da Educao Popular e de como ele se materializa na experincia, na percepo dos sujeitos sobre o que expe-rincia e como essa reflexo pode transfor-mar sua realidade.

    A importncia de produzir essas refle-xes com base na experincia desses sujei-tos levou construo de uma proposta de formao envolvendo os outros coletivos nacionais de educao popular a que nos referimos anteriormente, na qual a sistema-tizao das experincias constitudas pelos

    que a vivenciam ser um marco fundamen-tal. Colocando em cena uma dimenso im-portante da educao popular: a autorali-dade dos sujeitos na escrita da sua prpria histria de luta e resistncia. Olhar para sua realidade e contextualiz-la criticamente, percebendo-se sujeito da construo de um projeto popular de sociedade so uma das perspectivas desse percurso formativo em gestao.

    Frente a um contexto histrico no qual o processo de aproximao dos movimentos sociais e populares com o institudo, tem, via

    de regra, resultado na total ou parcial descaracteriza-o das suas propostas e na perda das identidades des-ses sujeitos e movimentos, o momento atual propi-cia uma discusso sobre a importncia da participa-o popular na sade e na implementao do SUS, suscitando a necessidade

    de refletir sobre a caminhada da ANEPS no Brasil como uma estratgia de fortaleci-mento da educao popular em sade, mo-vimento poltico e campo em constituio, olhando para trs dimenses: a ampliao dos espaos de interlocuo entre a gesto do SUS e os movimentos sociais populares; a capacidade de mobilizar a populao pelo direito sade e pela equidade; e como es-tratgia pedaggica constituinte de sujeitos crticos e propositivos com potencialidade para formulao e deliberao de projetos polticos.

    Olhar para sua realidade e contextualiz-la criticamente,

    percebendo-se sujeito da construo de um projeto

    popular de sociedade so uma das perspectivas desse percurso

    formativo em gestao.

  • Nossas fontes

  • 1.Depois do tempo dos torrentes e das cachoeiras se faz difcil empreender a feitura artes dos poemas.A vida pega outros riachos e ficamos presos ao automtico cotidiano. Quem deraPercorrer pelas tardes as ruas do Catete e parar nos bares e bancas, lhe procurando com esperana.

    Mas voc, Victor, j anda em outras caminhadas, outras conversas de pastor de ovelhas, risadasBoas em outras companhias, em outros planos, em outras lutas transcendentes.No tem tempo para nostalgias.

    Talvez, por necessidade ou por novas alegrias, voc esteja comeando a esquecer essa sua estrada conosco.

    Ns, os que lembramos, No podemos nos dar esse luxo. Porque

    voc semeou tanta e tanta coisa... que a gente pega sementeAt sem perceberE se faz homem da terra, campons de ideias novas, e vira Ser Fecundo de sonhos possveis.

    2.Passaram-se j dois setembros e meses mais. O mundo mudou pouco. Pouco tambm fizemos nsOs seus amigos e aprendizes. Porque, vamos conveniar, essa sua lista que ficou pendente enorme.Mas enormes tambm so as esperanas, as impacincias, as viabilidades inditas, as nossas criaesEm todo o pas e em todos os espaos.Em especial, veja bem o novo que surge no olhar dos meninos, das faculdades, dos servios, dos encontros... Tanta coisa extraordinriaE ns to poucos para olhar, cuidar, fortalecer, e etcteras.

    Ao Victor, depois de dois Setembros.

  • 3.Complicando a conversa:Sempre Caos, a ninfa arredia e brincalhona, vai nos impondo seu jogo de esconde-esconde, e nsSimples seres alados rastejantes, vamos costurando palavras, argumentos, estudos,Evidncias talvez, para lhe seguir intuitivos nesse seu ritmo e jeito singulares de budista irnico.Sementes difceis e desafiadoras as suas, heim Valla?

    4.A memria flor delicada. Cobra beijos e adubos. Cobra afagos para no morrer. Porque sabemos que boas linhagens so perseguidas, apagadas ou transformadas em pacote industrial sem fruta original. AssimCom seu trabalho, sua fala pausada, e os culos grossos para ver melhor o mundoSuas maldades e suas belezas, seus visveis gritantes, os ocultos nas falas simples, os invisveis nos espritos.

    5.Vou indo que o tempo apressa. Levo rpido o seu olhar por trs das lentes grossas, a barba mal feita, a cadeiraMalvada que o apressava. E voc abraando minha filha e rindo com ela, perguntando: quer colo?Eu de corao rachado e voc rindo e rindo desde sua distncia. Eu me despedindo e voc gozando da minha caraQual adeus? Vai virar jardineiro e nem sabe. E na mo deixou um monte dessas sementes rarasPara cultivar, ampliar, torcer, retorcer, reinventar e se refazer mais e mais.Julio Wong.

    Rio de Janeiro, 01 de Maio de 2012. O luar por cima da chuva. O branco de galxia me abraando.

    Julio Alberto Wong Un

  • O fortalecimento do SUS e principalmente a ampliao da Estratgia Sade da Famlia tm possibilitado que um grande nmero de profissionais de sade passe a atuar muito prximo da realidade das classes populares. Assim, um crescente nmero de profissionais vem sendo despertado para repensar suas prticas assistenciais para torn-`las mais integradas aos in-teresses e cultura da populao. Mas isto no fcil. No basta querer se integrar. preciso saber faz-lo. O mundo popular marcado por valores, interesses e modos de organizar o pensamento e a rotina de vida muito diferente daqueles que orientam a classe mdia, ambiente cultural de ori-gem de grande parte dos profissionais de sade. O poder do doutor e das instituies inibe a fala autntica das pessoas mais fragilizadas, dificultando o dilogo. Por isto, tem sido usual encontrar profissionais frustrados e at rancorosos com as possibilidades desta integrao. Alguns chegam a dizer: esta populao no merece meu empenho de tornar as prticas assisten-ciais mais humanizadas, criativas e participativas.

    Educao popular em sade no apenas a valorizao da construo de solues para os problemas de sade de forma dialogada e compartilha-da. uma arte e um saber complexo, acumulados por mais de 50 anos, para esta difcil tarefa. Victor Valla (1937-2009) foi um dos grandes intelectuais que nos ajudou a avanar neste sentido.

    Norte-americano, Victor chegou ao Brasil em 1964 e logo ficou cho-cado com a intensa pobreza de grande parte da populao. Este choque mudou sua vida, que passou a ser dedicada busca de caminhos de supe-rao. Apesar de ser um pesquisador de grande prestgio acadmico, nunca deixou de buscar formas de convvio prximo com a vida e as lutas das clas-ses populares. Com um p no ambiente de discusso acadmica dos intelec-tuais da sade pblica e outro p bem fincado no mundo popular, percebia como que a maioria das lideranas e dos profissionais mais progressistas do setor sade no compreendia bem os comportamentos e o modo de pensar da maioria da populao.

    Grande parte de seu esforo de pesquisa foi no sentido de destrinchar as incompreenses mais importantes, buscando encontrar explicaes que pudessem ajudar os profissionais, que atuam na assistncia, a superarem os entraves para um trabalho compartilhado. Para ele, ns, profissionais da sade, que no estamos compreendendo bem o que chamamos de resis-tncia ou falta de interesse e motivao da populao.

    Introduo

    Eymard Mouro VasconcelosMdico envolvido com sade co-munitria desde 1974. Professor do Departamento de Promoo da Sade da Universidade Federal da Paraba e membro da Rede de Educao Popular e Sade.

  • A crise da interpretao nossa:procurando entender a fala das classes subalternas

    Victor Vincent Valla

    As grandes mudanas que tm ocorridas nos ltimos anos - a queda do Muro de Berlin e subsequente fim do socialismo real, a vitoriosa onda neoliberal e o processo de globalizao que se ins-taura hoje no mundo - exerceram um papel profundo no nosso modo de pensar a educao popular e o trabalho comunitrio. Pos-sivelmente, um dos temas que mais sofreu questionamento como resultado destas mudanas diz respeito s formas atravs das quais as sociedades transformam-se. Enquanto a revoluo ou a rebelio em grande escala, na realidade, sempre foi uma exceo e no a regra, as mudanas ocasionadas pelas foras progressistas tm mais a ver com resistncias sutis e pequenos levantes. Embora menos dramticas, servem para minar a legitimidade poltica de siste-mas diferentes de explorao, e ao mesmo tempo, tendem a indi-car melhor o sistema de crenas das classes subalternas do que os confrontos diretos (SERULNIKOV, 1994). E neste sentido, talvez a grande guinada, a principal mudana de tica com relao aos trabalhos que so desenvolvidos com as classes subalternas se refere a compreenso que se tem de como pessoas dessas classes pensam e percebem o mundo.

    Depois de vrios esforos para melhor compreender este cam-po de ideias (VALLA, 1992; VALLA, 1993), duas questes tm ficado mais claras para mim. A primeira que nossa dificuldade de compreender o que os membros das chamadas classes subalternas esto nos dizendo est relacionado mais com nossa postura do que com questes tcnicas como, por exemplo, lingusticas1. 1 A categoria de subalterno certamente mais intensa e mais expressiva que a simples categoria de trabalhador. O legado da tradio gramsciana, que nos vem por meio dessa noo, prefi gura a diversidade das situaes de subalternidade, e sua riqueza histrica, cultural e poltica. Induz-nos a entender a diversifi cao de concepes, motivos, pontos-de vista, esperanas, no interior das diferentes classes e grupos subalternos (MARTINS, 1989, p. 98).

    Graduou-se em Educao, doutor em Histria pela USP e ps gradu-ao em Sade Coletiva. Foi um dos criadores do Centro de Estudos da Populao da Leopoldina (Cepel), criado entre 1987 e 1988, conside-rado, segundo ele, um brilhante mo-mento de fuso da vida acadmica com as aspiraes populares, e onde passou a ter contato mais prximo com as comunidades. Participou ativamente do Grupo de Trabalho Educao Popular da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pes-quisa em Educao (ANPEd), du-rante duas dcadas, marcando forte-mente o seu modo de funcionamen-to e a sua identidade.

    Texto originalmente publicado em 19 96 na Revista de Educao e

    Realidade, 2:17 7/90.

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    Falo de postura, referindo-me nossa difi-culdade em aceitar que as pessoas humildes, pobres, moradoras da periferia so capazes de produzir conhecimento, so capazes de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade, e dessa forma, fazer uma inter-pretao que contribui para a avaliao que ns fazemos da mesma sociedade.

    A segunda que parte da nossa com-preenso do que est sendo dito decorre da nossa capacidade de entender quem est fa-lando. Com isso, quero dizer que dentro das classes subalternas h uma diversidade de grupos (MARTINS, 1989), e a compreen-so deste fato passa pela compreenso das suas razes culturais, seu local de moradia e a relao que se mantm com os grupos que acumulam capital2.

    Na realidade, essa discusso - que certamente no nova no campo de edu-cao popular - trata das nossas dificulda-des em interpretar as classes subalternas, 2 O Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Sade Pblica, Fundao Oswaldo Cruz, desenvolve uma discusso semelhante, embora de origem diferente. Professores Paulo Chagastelles Sabroza, Luciano M. de Toledo e Carlos H. Osanai prope a utilizao do termo grupos sociais em vez de classes sociais ou classes trabalhadoras, por exemplo. A argumentao que vm utilizando de que uma epidemia de dengue, por exemplo, numa cidade como a do Rio de janeiro, pode atingir uma favela, enquanto outra no, embora as duas favelas sejam compostas de classes trabalhadoras. A diferena seria na maneira em que seus moradores ocupam o espao e a maneira em que a gua seja distribuda. Assim, embora todos os moradores sejam de favelas, representam grupos sociais diferentes. Para evitar a repetio do termo classes subalternas, estarei utilizando o termo populaocomo palavra substitutiva.

    e que a crise de interpretao nossa (MARTINS, 1989), assim como tambm o nosso enfoque da idia de iniciativa. Falo de iniciativa porque penso que na re-lao profissional/populao, muitos de ns trabalhamos com a perspectiva de que a iniciativa parte da nossa tradio, e que a populao falha neste aspecto, fazendo com que seja vista como passiva e aptica3.

    Se sou referncia, como chegarao saber do outro?

    Ao relatar as relaes de profissionais/mediadores com a populao, uma contri-buio importante parece ser a de citar o mximo possvel a fala dela, pois tal proce-dimento permite que outros tenham a pos-sibilidade de interpretar o que est sendo dito. A prpria forma de relatar uma ex-perincia indica a concepo de mundo de quem faz o relato. Neste sentido, possvel afirmar que os profissionais e a populao no vivem a mesma experincia da mesma maneira. A forma de trabalho dos profissio-nais (no partido poltico, na associao de moradores, na igreja) pode no estar levan-do isso em conta, principalmente porque o

    3 Ao colocar em discusso a questo da viso dos dominantes sobre as favelas, procuramos demonstrar que embutido no interior desse ponto h um outro aspecto metodolgico: quem coloca o problema da favela, seja acadmico ou administrativo, so os prprios construtores das favelas. Neste sentido, os muitos programas propostos pelas autoridades no so, na realidade, propostas, mas respostas s aes dos populares. Com isso, pretendemos ressaltar a atividade onde tradicionalmente so vistas a passividade e a ociosidade (VALLA, 1986, p. 27).

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    Nossas fontes

    projeto que se desenvolve provavelmente anterior ao contato com a populao.

    O exemplo que ilustra este ponto o trabalho que o profissional de sade pblica desenvolve com a populao moradora das favelas e bairros perifricos. Toda proposta dos sanitaristas pressupe a previso como categoria principal, pois a prpria ideia de preveno implica num olhar para o futuro. Mas, poderia ser levantada como hiptese de que estes setores da populao condu-zem suas vidas com a categoria principal de proviso. Com isso se quer dizer que a lembrana da fome e das dificuldades de sobrevivncia enfrentadas no passado, faz com que o olhar principal seja voltado para o passado e preocupado em prover o dia de hoje. Uma ideia de acumulao, portanto. Neste sentido a proposta da previso esta-ria em conflito direto com a da proviso4.

    comum a populao delegar-nos autoridade para tomar a iniciativa em tra-balhos desenvolvidos em conjunto (Con-selhos Municipais e Distritais de Sade, zonais de partidos polticos, por exemplo), pois tal atitude coincide com a nossa per-cepo de que essa mesma populao tem pouca autonomia para tomar a iniciativa.

    4 As primeiras idias so da Professora Marlene Schiroma Goldenstein, palestrante, III Encontro Estadual de Educao e Sade, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, dezembro, 1992. O exemplo onde so utilizadas as categorias proviso e proviso da antroploga Lygia Segala, que empregou os termos no seminrio A construo desigual do conhecimento, realizado no Dep. de Endemias Samuel Pessoa, junho, 1992.

    provvel que dentro da concepo de que os saberes dos profissionais e da popu-lao so iguais, esteja implcita a ideia de que o saber popular mimetiza o dos profis-sionais. Se a referncia para o saber o profissional, tal postura dificulta a che-gada ao saber do outro. Os saberes da po-pulao so elaborados sobre a experincia concreta, a partir das suas vivncias, que so vividas de uma forma distinta daquela vivi-da pelo profissional. Ns oferecemos nosso saber por que pensamos que o da popula-o insuficiente, e por esta razo, inferior, quando, na realidade, apenas diferente.

    O que que percebona fala do outro?

    Num debate sobre o fracasso escolar na escola pblica do primeiro grau, uma das participantes desenvolveu um raciocnio extraordinariamente simples, mas esclarece-dor. Trabalhou com o seguinte pressuposto: embora o professor tenha um livro didtico ou notas como referncia, faz, na realidade, uma seleo da matria que oferecer aos alunos. A seleo que faz provavelmente de-ve-se a um domnio maior sobre a matria, ou, quem sabe, a uma afinidade com algu-mas ideias a ser oferecidas. Mas o importan-te o reconhecimento de que o professor faz uma seleo da matria, oferecendo alguns pontos e deixando outros de lado.

    Os alunos, por sua vez, tambm fazem uma seleo. A ateno exigida pelo profes-sor no suficiente para fazer com que tudo seja assimilado pelos alunos. Justamente de-vido a sua histria de vida, alguns pontos so

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    vistos com mais ateno do que outros, fa-zendo com que sejam retidos e os outros no.

    na hora da avaliao disse a expositora que comeam os problemas, pois uma prtica comum no pedir que seja relatado pelos alunos nem o que o pro-fessor exps, nem o que o aluno percebeu, mas sim, qualquer aspecto do contedo que estava no livro5.

    Na realidade, a avaliao teria que ser sobre aquilo que o aluno percebeu na fala do professor, pois isso que foi retido pelo aluno. tambm assim que se processa a fala do profissional com a populao e vice

    versa. De acordo com a formao de cada um, a sua histria de vida e as suas vivn-cias de cada dia, uma leitura do outro feita, no necessariamente de tudo que o outro fala, mas daquilo que chama mais ateno, daquilo que mais interessa5.

    5 Essas ideias sobre avaliao foram desenvolvidas pela Professora Marisa Ramos Barbieri (Departamento de Psicologia e Educao, Faculdade de Filosofi a, Cincias e Letras, USP, Ribeiro Preto) durante a mesa redonda A escola: Seus agentes e interlocutores. Seminrio sobre Cultura e sade na escola, promovido pela Fundao para o Desenvolvimento da Educao, 1992 (ALVES, 1994).

    E neste sentido, talvez a grande guinada, a principal mudana de tica com relao aos trabalhos que so desenvolvidos com as classes subalternas se refere a compreenso que se tem de como pessoas dessas classes pensam e percebem o mundo.

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    O que, frequentemente, para o profissional conformismo pode ser para a populao uma avaliao rigorosa dos limites de melhoria

    No seu livro Produo do Fracasso Escolar, Maria Helena de Souza Patto inclui um captulo sobre a fala das mes dos alu-nos fracassados (PATTO, 1991, p. 269). No foi pretenso da autora fazer uma an-lise dos discursos das mes. Mas quem se prope a isso perceber alguns eixos de contradies. A fala das mes tende a reproduzir a fala dos professores, direto-res de escolas e administradores escolares, onde um discurso aparentemente tcnico e cientfico explica porque os alunos fracas-sam e no aprendem. Mas no f im do seu prprio discurso que as mes acabam ne-gando a medicalizao e individualizao do fracasso dos seus filhos. Ou seja, a con-tradio apenas aparente, pois justamente na repetio da fala dos professores, h um momento em que elas negam o que tinham dito, comparando o desempenho destes em tarefas domsticas, no trabalho precoce ou em brincadeiras com os amigos... apontam individualmente, ainda que de forma frag-mentria, para muitas das determinaes institucionais do fracasso dos seus filhos... presses relativas compra do material es-colar... agresses fsicas e verbais contra as crianas... (PEREGRINO, 1995, p. 69).

    Certamente a ateno dada fala das mes permitiu a percepo sobre outro discurso dentro do discurso aparentemen-te repetido. Inversamente, uma postura de

    desprezo no detectaria o desdito na fala das mes. Trs falas de moradoras de favelas podem ser esclarecedoras dessa mesma di-ficuldade dos profissionais em compreender o discurso popular.

    A primeira trata de descrever a tuber-culose como uma doena hereditria, onde seu tratamento garantido pelo ar puro, descanso e boa alimentao. Apesar de o mdico insistir com os moradores de uma favela carioca de que a tuberculose causa-da por uma bactria e que h medicamen-to hoje para seu tratamento, os moradores continuavam a manter sua opinio.

    A hiptese popular no desarticula cau-sa e efeito. Associa a m qualidade de vida repetio frequente desta doena em seu extrato social. No separa a doena da dinmica social em que ela ocorre. Encara-a como fenmeno social. Entende que est na melhoria da sua qualidade de vida, a cura social para este mal (PEREGRINO, 1995).

    Uma outra moradora de favela ca-rioca declara: Quem visse o que eu j tive em Minas...minha vida t boa sim (CUNHA, 1994). Numa outra favela do Rio de Janeiro, um lder comunitrio co-menta: No tem mais problema, pois nossa favela j recebe gua duas a trs vezes por semana 6. A tendncia dos profissionais que ouvem estas falas, de entend-las como sendo conformistas, principalmente para quem tem conhecimento de causa do 6 Reunio da Comisso de gua do Complexo das Favelas da Penha, Rio de Janeiro, promovida pelo Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina (CEPEL), abril 1994.

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    que significa receber gua em sua casa duas a trs vezes por semana (VALLA, 1994).

    O que cabe destacar aqui a necessida-de de entender melhor as falas como a da moradora e as alternativas de conduo de vida, que tm como seu ponto de partida a leitura e representao de uma histria, referenciada em sua experincia de vida e que...oriente sua forma de estar no mundo (CUNHA, 1995).

    O que frequentemente para o profis-sional conformismo, falta de iniciativa e/ou apatia, para a populao uma avaliao (conjuntural e material) rigorosa dos limites da sua melhoria. O autor deste trabalho teve muito dificuldade em compreen-der o sorriso condescen-dente da liderana da fave-la quando insistiu com ele que duas ou trs vezes por semana era insuficiente e que o certo era 24 horas por dia.

    Na mesma conversa com esta lideran-a, foi colocado por mim que os moradores de favela teriam de reivindicar a presena mais sistemtica da Companhia de gua e Esgoto (CEDAE) com a devida urgn-cia, e que as Associaes de Moradores no deveriam estar administrando a gua no lugar da CEDAE. Neste momento, uti-lizei uma discusso terica desenvolvida no interior da academia sobre os impos-tos que os moradores de favelas pagam e a obrigao que o Estado tem de devolv-los na forma de servios (neste caso, atravs da

    gua). Meus argumentos foram alm: no cabe a Associao de Moradores preencher o papel de prefeitura ou governo, mas sim os moradores organizados reivindicando os seus direitos. Novamente o sorriso condes-cendente e o comentrio: Professor, se ns moradores entregssemos a responsabilida-de de distribuir gua CEDAE, iria ser o fim da nossa gua. Se as favelas tm gua, por causa das Associaes de Moradores, mesmo com todos os seus problemas. Ou seja, o raciocnio que eu utilizei, era aca-dmico, e, diga-se de passagem, correto. Em troca dos impostos pagos, quem tem de

    oferecer servios de qua-lidade o governo, e no a populao numa espcie de mutiro. A resposta da liderana inverteu a lgica: se no fosse pelo esforo dos moradores, organiza-dos nas suas associaes, no haveria gua nas fa-velas. O que ele queria

    dizer era que a CEDAE, na realidade, no tem poltica de distribuio de gua para as favelas, mas que as Associaes de Mo-radores conseguiram puxar a gua atra-vs da sua organizao, e no insistir nesta poltica significava abrir mo da gua. Ou seja, atrs da fala desta liderana, havia uma resposta terica para minha proposta teri-ca: os governos no Brasil no esto muito preocupados com os moradores de favelas na elaborao das suas polticas, e somente o esforo dos moradores que garante sua sobrevivncia.

    O que frequentemente para o profissional conformismo, falta de iniciativa e/ou apatia, para a populao uma avaliao (conjuntural e material) rigorosa

    dos limites da sua melhoria.

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    Nesse mesmo sentido, h estudiosos da questo de participao popular que entendem que embora haja profissionais preocupados com a necessidade da popula-o organizar-se e reivindicar seus direitos e servios bsicos de qualidade, na realida-de a tradio dominante no Brasil o da participao popular, isto , convite das au-toridades para que a populao tenha uma participao mais frequente. Alm disso, frequentemente as autoridades querem a participao da populao para poder so-lucionar problemas para os quais no do conta. Nesta concepo est includa a ideia de que o aceite do convite de participar se-ria uma forma dos governos se legitimarem. Justamente a descrena da populao, tal como manifestada acima pela liderana da favela, no interesse dos governos de resolver os seus problemas, faz com que sua forma de participar seja diferente do que a suposta pelo convite. E embora muitos profissionais sejam sinceros na sua inteno de colabo-rar com uma participao mais efetiva e de acordo com os interesses populares, mesmo assim a populao v estes profissionais como sendo atrelados s propostas das au-toridades em que no cr. Da sua aparente falta de interesse em participar 7.

    7 Arguio desenvolvida pelo Professor Jos Carlos Rodrigues, da Universidade Federal Fluminense, durante a defesa da dissertao A vigilncia epidemiolgica e o controle pblico em tempos de SUS: A fala dos profi ssionais e dos usurios organizados da regio da Leopoldina. Mary Jane de Oliveira Teixeira. Escola Nacional de Sade Pblica, Fundao Oswaldo Cruz, 1994.

    necessrio que o esforo de com-preender as condies e experincias de vida como tambm a ao poltica da populao seja acompanhado por uma maior clareza das suas representaes e vises de mundo. Se no, corremos o risco de procurar (e no achar) uma suposta identidade, conscincia de classe e organizao que, na realidade, uma fantasia nossa (MARTINS, 1989).

    Quantas vezes se pede para a populao se manifestar numa reunio, como prova do nosso compromisso com a democracia de classe mdia. Mas uma vez passada a fala popular, procuramos voltar ao assunto em pauta, entendendo que a fala popular foi uma interrupo necessria, mas com certe-za, sem contedo e sem valor.

    Nas escolas pblicas, h professores que detectam que a percepo de tempo dos alunos no corresponde a mesma lgica temporal inscrita na perspectiva histrica com que trabalham na sala de aula. Assim, h um significado que os alunos atribuem aos acontecimentos inaugurais (o primeiro aniversrio, o primeiro ano na escola...e aos fatos coditianos) (CUNHA, 1995). No-vamente, aparece uma contradio aguda, desta vez entre a maneira de dar ao peque-no fato o acontecimento e a historiografia marxista, que valoriza atravs do conceito de processo as mudanas macro-estrutu-rais e as conjunturas poltico-econmicos (CUNHA, 1995).

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    No nosso desejo que garante a suposta unidade das classes subalternas

    Jos de Souza Martins avalia que as muitas dificuldades que os pesquisadores, polticos militantes e profissionais encon-tram na compreenso da fala da populao tm como uma das explicaes a per-cepo do tempo. E o reconhecimen-to desta percepo temporal das classes subalternas que permite explicar em parte sua diversidade. O desconhecimento desta diversidade que faz com que a compreen-so das suas lutas e seu limites no sejam apreciados (MARTINS, 1989). No o nosso desejo, nem nosso incentivo verbal, que garante a suposta unidade das classes

    subalternas, mas, sim, a avaliao correta da maneira com que compreendem o mundo. ...a prtica de cada classe subalterna e de cada grupo subalterno, desvenda apenas um aspecto essencial do processo do capital....H coisas que um campons, que esta sen-do expropriado, pode ver, e que um operrio no v. E vice-versa (MARTINS, 1989).

    A atribuio de identidade, conscincia e organizao, bem como das relaes so-ciais, baseadas na classe operria, s demais classes subalternas produz uma forte distor-o. Quando se utiliza este tipo de avaliao para outros grupos sociais, como por exem-plo, para os camponeses, a impresso que se tem de que o processo histrico anda

    necessrio que o esforo de compreender as condies e experincias de vida como tambm a ao poltica da populao seja acompanhado por uma maior clareza das suas representaes e vises de mundo.

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    mais rpido para os demais do que para o campons. Tal viso foi o que levou Lenin a declarar durante a primeira fase da Re-voluo Russa que o real (...) no o que os camponeses pensem (...) e sim o que de-preendem das relaes econmicas da atual sociedade (LENIN, 1974). Nesta perspec-tiva, o agente ativo da Histria acaba sendo o capital e no o trabalhador. Em outros termos, a Histria esta necessariamente em conflito com a conscincia que dele tm os seus participantes (MARTINS, 1989).

    Quero levantar a hiptese de que tal como Martins nos alerta para perceber como a relao do campons com o capi-tal diferente desta relao com o operrio, tambm diferente a relao do capital com o morador de favela ou bairro perifrico da grande metrpole (biscateiro, subemprega-do, empregado de servios).

    O que est implcita nessa discusso a percepo de que a forma do trabalhador exprimir sua viso de mundo e sua con-cepo de histria e da sociedade em que vive est estritamente relacionada com a maneira em que se relaciona com o capital: de uma forma dinmica, ou de uma forma indireta e oscilante.

    Esta maneira de colocar a questo temporal parece fundamental, pois nos-sa percepo de tempo se for baseada na relao do operrio com o grande capital, pode nos levar a ver o campons, ou o mo-rador da periferia, como sendo incapaz e necessitando nossa ajuda para torn-lo capaz. necessrio tomar como premissa o pensamento radical e simples das classes

    exploradas, meio e instrumento (ao invs de instrumentaliz-las), para desvendar o lado oculto das relaes sociais com os olhos deles, revelando-lhe aquilo que ele enxerga mas no v, completando, com ele, a produ-o do conhecimento crtico que nasce da revelao do subalterno como sujeito.

    O grande poder de sntese do Ant-nio Gramsci apontou para esta questo quando chamou ateno para o fato de que ...o elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende, e muito menos sente! (GRAMSCI, 1966).

    Invertendo o significado, sem deformar as palavras

    Carlo Ginzburg, na sua belssima obra, O Queijo e os Vermes, levanta uma questo que se aproxima quelas levantadas por Jos de Souza Martins. Ginsburg questiona o argumento de que as ideias de uma poca tm sua origem nas ideias das elites, as clas-ses superiores, e que sua difuso chega s classes subalternas de uma forma mecnica, sofrendo uma deteriorao e sendo defor-madas na medida em que so assimiladas pelas classes subalternas. Martins, falando do conhecimento produzido pelas classes subalternas, prope que o saber das classes populares mais do que ideologia, mais do que interpretao necessariamente de-formada e incompleta da realidade do su-balterno. neste sentido, tambm, que a cultura popular deve ser pensada como cultura, como conhecimento acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo, e

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    no como cultura barbarizada, forma deca-da da cultura hegemnica, mera e pobre ex-presso do particular (MARTINS, 1989).

    Ginsburg discute o que ele chama de circulariedade, isto , de que as influncias vo de baixo para cima e de cima para bai-xo. Com isso quer dizer que tanto as classes subalternas influenciam as ideias das elites como estas mesmas classes superiores exer-cem influencia sobre as ideias das classes subalternas (GINSBURG, 1987).

    Trabalhando com a concepo de cul-tura oral, Ginsburg cha-ma a ateno para o fato de que a leitura feita por quem recebe muito a in-fluncia de uma cultura oral (e neste caso no somente uma discusso de um moleiro italiano do s-culo XVI, mas das classes subalternas no Brasil de hoje) l como se fosse com um filtro que faz enfatizar certas passagens, enquan-to ocultava outras, exagerava o significado de uma palavra, isolando-a do contexto (GINSBURG, 1987).

    Como exemplo, o autor destaca o mo-leiro Menocchio falando em pblico que era um absurdo acreditar que Maria, me de Deus, era virgem. Mas quando foi chamado pela Inquisio a depor, citou um texto que continha cenas de um afresco onde Maria aparecia com outras virgens, no templo. As-sim, sem deformar as palavras, inverteu o significado, pois, no texto, a apario dos

    anjos isolava Maria das companheiras, con-ferindo-lhe uma aura sobrenatural. Para Menocchio o elemento decisivo era, ao contrrio, a presena das outras virgens, que lhe servia para explicar da forma mais simples o epteto atribudo tanto a Maria quanto s outras companheiras. Desse modo, um detalhe acabava se tornando o centro do discurso, alterando, assim, todo o seu sentido.

    Ginsburg aponta para a questo de que mais importante discutir como

    Menocchio leu e no tanto o que leu: de-cifrar sua estranha ma-neira de adulterar e al-terar o que l, de recriar (GINSBURG, 1987).

    Uma antroploga com grande experincia de trabalho com traba-lhadores rurais assistiu seguinte cena: dois tra-balhadores analfabetos olhando para uma cartilha

    sobre explorao dos trabalhadores no cam-po. Quando viram o patro, gordo e forte de um lado, e o trabalhador rural magro e fraco do outro, um comentou para o outro: Quem somos ns? O outro respondeu: claro que ns somos a pessoa mais forte, pois unidos ns somos fortes, e o patro fraco sozinho, diante da nossa unio 8. Isto 8 A cena relatada foi assistida pela Maria Emlia L. Pacheco, da Coordenao Nacional da Federao de rgos de Assistncia Social e Educao (FASE), Rio de Janeiro, 1994.

    (...) a cultura popular deve ser pensada como

    cultura, como conhecimento acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo, e

    no como cultura barbarizada, forma decada da cultura

    hegemnica, mera e pobre expresso do particular.

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    Nossas fontes

    lembra o comentrio do Professor Renato Janine Ribeiro, no Posfcio do livro do Ginsburg: O que Menocchio compreende mal , na verdade, o que ele compreende de outro modo (GINSBURG, 1987).

    Rompendo a ordem predeterminada do mundo por um esforo da imaginao

    possvel que um dos grandes pro-blemas para os profissionais, pesquisadores e militantes seja a forma com que as classes subalternas encaram uma vida, existncia marcada, cercada de pobreza e sofrimento. bem provvel que estes setores da populao tenham uma enorme lucidez sobre sua situao social, como no caso da liderana da favela acima. Mas clareza da sua situao social pode significar tambm clareza de que uma melhoria significativa seja uma iluso. Neste sentido, a crena em melhorias e numa soluo mais efetiva pode apenas ser um desejo, embora importante, da classe mdia comprometida. Isso signi-ficaria que a percepo da populao seria mais lcida e realista, a no ser que se con-figure uma conjuntura com indicaes de possibilidades reais de mudana que favo-rea as classes subalternas.

    Se a argumentao acima procede, ento possvel que a relao que os pro-fissionais estabelecem frequentemente com a populao, acaba sendo de uma cobrana de busca permanente de uma sobrevivncia mais racional e eficiente (EVERS, 1985). A frase to conhecida dos Tits pode estar indicando, no entanto, um outro enfoque:

    A gente no quer s comer. A gente quer prazer para aliviar a dor. Neste sentido, a construo de aparncias, que pode ser en-tendido como a construo de sonhos, no deve ser visto como uma forma apenas de escapar da realidade, mas pode estar indi-cando uma concepo mais ampla de vida.

    Prazer para aliviar a dor, ento, pode tomar vrios sentidos para a populao, dis-tintos dos sentidos que tm para a classe mdia. Certamente, um dos sentidos o de que a vida vale a pena viver, mesmo den-tro de uma perspectiva de que no se pode vislumbrar uma sada no futuro para o so-frimento e a pobreza que se atura diaria-mente. Se, de um lado, este enfoque pode ajudar a compreender por que seja possvel passar fome para comprar uma TV... o x-tase com o futebol... com o alcoolismo...os jogos de azar , de outro lado, tambm ajuda a entender porque as religies se oferecem muitas vezes como perspectivas substituti-vas (compensao no alm... os eleitos do Senhor=conscincia substitutiva de eli-te...acesso a um mundo de protetores, transferncia esttica a um outro cosmo) (EVERS, 1985).

    A cultura das classes subalternas uma tentativa de explicar esse mundo em que se vive. Se, no entanto, no d conta de expli-car tudo, (e da a razo de se recorrer m-gica), tampouco a cincia explica tudo (MARTINS, 1989). Como expresso dos vencidos at agora, a cultura popular tambm a memria da alternativa....uma exigncia, sempre postergada e longnqua, da realizao de justia (CHAU, 1990).

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    Ministrio da Sade II Caderno de Educao Popular em Sade

    Satriani oferece a idia de que a cultura po-pular, para poder se afirmar neste mundo do vencedor, utiliza a duplicidade, o duplo cdigo, ...o afirmar e o negar, o obedecer e o desobedecer (MARTINS, 1989), o ajustamento aos valores dominantes e a sua rejeio; interpretaes lcidas combi-nam-se com iluses aparentemente alie-nadas (EVERS, 1985); ...um inconfor-mismo profundo...sob a capa do fatalismo (CHAU, 1990). Um estilo de vida que se manifesta na linguagem metafrica, na te-atralizao que pe na boca do outro o que

    palavra do sujeito emudecido (MAR-TINS, 1989).

    Martins (1989) sugere que a cultura po-pular deve ser pensada como... conhecimen-to acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo...teoria imediata . Neste sentido, o aparente absurdo para o profissional tem uma lgica clara para a populao. Numa sociedade onde a concepo dominante de que cada um exclusivamente respon-svel por sua sade e dos seus filhos, mas onde tambm se aprende ainda que Deus quem decide sobre a morte das crianas, o

    A cultura das classes subalternas uma tentativa de explicar esse mundo em que se vive. Se, no entanto, no d conta de explicar tudo, (e da a razo de se recorrer mgica), tampouco a cincia explica tudo.

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    Nossas fontes

    suposto conformismo da me pode estar re-presentando uma elaborao de um conhe-cimento mais complexo. Se, por exemplo, o nascimento de um filho representa um dos bens mais preciosos, aceitar a culpa por sua morte pode ser uma experincia insuport-vel. Mas, j que Deus quer assim, a culpa que ento compartilhada com algum, no da exclusiva responsabilidade da me.

    Marilena Chau (1990) observa, no mesmo esprito, o desespero do arquiteto do bairro operrio, face ao caos espacial onde ficou a horta no lugar do jardim, pelas co-res espevitadas das fachadas, pela confuso entre calada e quintal. Como observou Jos Carlos Rodriguez, no h interesse em aceitar o convite de participar dessa forma. Assim...a destruio do planejado...seria uma forma de recus-lo .

    Finalmente, a ideia da cultura popular como memria da alternativa (MARTINS, 1989), deveria ser pensada no contexto da dificuldade que uma grande parcela das classes subalternas tem de poder agir so-mente dentro de um quadro previamente delimitado, tem sentido ento que a mu-dana s possa ser pensada em termos de milagre [ou seja, de que contm]...a possi-bilidade de uma outra realidade no interior do existente (CHAU, 1990). Isto porque ...o milagre, pedra de toque das religies populares e de estonteante simplicidade para a alma religiosa ...inaceitvel pelas teologias e apenas de fato por elas tolera-do,