1317901602Se Eu Fechar Os Olhos Agora

24
Edney Silvestre Se eu fechar os olhos agora Se eu fechar os olhos agora***.indd 5 26 ago 2011 12:49

description

se fechar

Transcript of 1317901602Se Eu Fechar Os Olhos Agora

  • Edney Silvestre

    Se eu fechar os olhos agora

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 5 26 ago 2011 12:49

  • Os mortos no ficam onde esto enterrados.

    John Berger, Aqui Nos Encontramos

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 7 26 ago 2011 12:49

  • 9Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos cabelos louros dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nos clios negros, nas plpebras, na face, no pescoo, nos braos, na blusa branca rasgada e nos botes que no tinham sido arrancados, no suti cortado ao meio, no seio direito, na ponta do bico do seio direito.

    Eu nunca tinha sentido aquele cheiro pungente antes, aquele cheiro que ficaria para sempre misturado ao cheiro das outras mulheres, das que conheci na intimidade, que invadiria o cheiro de outras mulheres e que para sempre me levaria de volta a ela. Aquela mistura de perfume doce, carne cortada, suor, sangue e o mais prximo que consegui perceber, at hoje sal. Como se sente quando prximo do mar. Como quando adere pele. No os gros do sal mas a poeira invisvel e olorosa do sal em dias hmidos.

    Mas eu tambm no conhecia o mar, naquela poca, eu nunca tinha sentido o cheiro nem visto o mar, ento aquele odor do corpo sobre a lama, nu, eu nunca tinha visto uma mulher nua nem sentira o cheiro de uma mulher nua assim to prxima, quer dizer, no que ela estivesse completamente nua, mas o seio com aquele bico grande e Ascoxas estavam abertas, a saia levantada, e eu vi os pelos pretos intrincados no alto delas, das coxas, onde as coxas longas se encontravam,

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 9 26 ago 2011 12:49

  • 10

    Edney Silvestre

    e dali exalava, no, no dali, dela toda, aquele odor de corpo de mulher misturado ao sangue e eu acho que tinha se cagado, acho que tinha se borrado, como hoje eu sei que nos acontece a todos, na hora que a vida abandona nosso corpo e ele todo se relaxa, e o esfncter se abre e Essa tambm era uma palavra que eu nunca tinha ouvido.

    Nem lido. Esfncter. Eutinha doze anos e palavras como essa no eram ditas na minha casa. Agente no conhecia palavras assim.

    Ela, ali, morta. Nua. Quase nua.Eu sabia que ela estava morta. Ns dois sabamos. Apele estava

    fria, a pele do brao, que foi a primeira que a gente tocou. Ado rosto, to Plida. Era isso, assim, plida? Era. Estava. Com a boca aberta. Entreaberta. Como se tivesse comeado a sorrir. Osdentes grandes, alvssimos, apenas uma parte deles, brilhando entre os lbios grossos Inchados? Tinham batido nela? Orosto tinha outras marcas? Tinha. Mas era nos lbios que o sangue Acho que eu toquei os lbios dela. No sei. Sei: toquei. Macios. Vermelhos. Desangue. Desangue ou de batom? Desangue e de batom. E de lama. Deve ter respingado, na hora que ela caiu. Ou bateu o rosto, entre o capim e o barro? Quando o salto do sapato se prendeu na lama, se quebrou e ela meio que voou sobre o barro e o capim molhado, um ltimo voo, cheio de espanto e tristeza, foi assim? Umvoo. Silencioso. Interminvel. Ali, talvez, ela tenha entendido que a fuga acabara. E, talvez se debatendo, talvez se entregando, registara a derradeira viso do cu azul e a aragem fresca do outono, o grito de um pssaro e o hlito do assassino, enquanto a lmina penetrava repetidamente em sua carne.

    Nem ele nem eu saberamos dizer depois quantas punhaladas foram. Apele, dilacerada em tantos lugares, me lembrou as chagas do Cristo da nave central da catedral, os braos abertos na cruz tal como estavam os dela na lama, sob o cu sem nuvens daquela manh de abril.

    Mesmo aqui, hoje, mesmo nesta cidade estrangeira onde vivo de tempos em tempos, mesmo hoje, s vezes, quando estou distrado, quando saio do metro, ou quando viro uma esquina formada por prdios harmoniosos que fazem o mundo parecer organizado e lgico,

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 10 26 ago 2011 12:49

  • 11

    Se eu fechar os olhos agora

    ou saio de um caf onde comprei cigarros, desavisado, colocando as moedas no bolso do palet e buscando o isqueiro, eu sinto no rosto aquele mesmo vento frio que soprou de repente naquele mesmo dia de abril, s vezes, nem sempre, s vezes, o mesmo vento frio que pareceu soprar naquele dia morno, balouando, levemente, de um lado para o outro, suavemente, o capim alto que havia em volta do lago onde a gente foi se refugiar naquela manh, longe dos adultos, como tnhamos feito durante todo o vero.

    Do topo do morro, quando se chegava, seu contorno irregular mal podia ser vislumbrado l em baixo, rodeado pelos bambuzais altos, onde dezenas de maritacas barulhentas tinham seus ninhos. Asmaritacas e os bambuzais que ele recordaria depois, tantas vezes, nas longas cartas melanclicas que me escreveria.

    No sei como o lago era na realidade. Nunca mais voltei l, desde aquele abril. S tenho a imagem da minha memria. Que o recorda assim: azulssimo, translcido, coruscante a multiplicar os raios do sol que parecia brilhar sempre naqueles dias daqueles tempos.

    Era uma tera feira. Acho que era uma tera feira. Poderia olhar no calendrio e ter certeza. No quero. Prefiro a certeza da minha lembrana, que me diz ter sido uma tera.

    Tera feira, 12 de abril de 1961.No rdio, cedo, um locutor anunciara: um homem tinha ido ao

    espao. Oprimeiro homem no espao. Umrusso.Chamava se Iuri Gagrin.Ele disse que a Terra era azul e eu pensei, ns dois pensmos, ele

    e eu, a gente conversou na estrada sobre isso, pedalando sem pressa nossas bicicletas, escapando da punio na escola porque nos pegaram com uma revista em quadrinhos de sacanagem, a gente conversou como sempre conversava tudo: ento isso que a gente pode ser, pode ser tambm, um homem voando no espao sideral.

    Aos doze anos, quando qualquer fantasia faz sentido, o voo do major Iuri Alexeyevich Gagrin a bordo da Vostok, uma esfera metlica de dois metros e meio de dimetro, com janelas pouco maiores que um livro, abria, literalmente, o cu para ns.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 11 26 ago 2011 12:49

  • 12

    Edney Silvestre

    Astronauta: outra palavra que eu ainda no conhecia.Astronauta, tambm. Eupoderia me tornar um astronauta. Tudo

    era possvel para quem ainda estava em dvida entre se tornar engenheiro ou caubi, jogador de futebol ou sertanista, aviador, piloto de provas, comerciante, escafandrista, arquelogo ou Tarzan.

    Tarzan tinha sido meu personagem favorito at ento, eu era bom nas brincadeiras com cip, mas tanto a selva africana do lorde Greystoke quanto Oklahoma, onde eu achava que ficava o faroeste de mocinhos e bandidos, comeavam a desbotar o encanto, sem que eu soubesse porqu. Eutambm gostava da ideia de ser um gnio da cincia e inventar remdios que poderiam curar as piores doenas, talvez uma vacina to poderosa que acabasse com todas as doenas. Ou era ele que queria ser cientista. Umde ns achava que poderia se tornar presidente do Brasil e acabar com a seca e a fome no Nordeste. Acho que era ele. Ns dois tnhamos, entre tantas ambies que nos pareciam perfeitamente possveis, a de um dia viver no Rio de Janeiro.

    Braslia tinha sido inaugurada h menos de um ano, mas aquele de ns que virasse presidente levaria a capital de volta ao Rio. Ns tnhamos doze anos. Era um outro pas, aquele. Era um outro mundo, aquele.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 12 26 ago 2011 12:49

  • 13

    1

    As grandes montanhase reas em sombras

    O lago, finalmente.Saram da estrada asfaltada para a trilha sinuosa de terra e saibro.

    Pararam de pedalar. Asbicicletas deslizaram com um rudo surdo at a cerca de arame farpado ao p do morro, onde desmontaram. Oslivros e cadernos foram tirados dos bagageiros e abrigados sob uma touceira. Cada um levantou o arame para ajudar a passagem do outro.

    A bicicleta do menino moreno, enferrujada e com mossas, tinha apenas o para lama dianteiro. Fora do pai, quando ainda era tecelo, e do irmo, antes que a trocasse por uma nova. Na do outro menino, comprido, claro e mais magro, a marca inglesa ainda era ntida no eixo central, doze anos depois de cruzar o Atlntico, importada com outros milhares de produtos europeus no cmbio favorvel ao dinheiro brasileiro do ps guerra.

    Empurrando as atravessaram a plantao de mangueiras, os pneus deixando sua impresso na terra molhada pela chuva da noite anterior. Ogaroto magro, preocupado em no respingar barro nas calas de brim azul marinho, enrolou as at os joelhos. Omoreno no se deu ao trabalho. Ningum notaria. Oemblema da escola pblica despregavase do bolso da camisa encardida. Ambos haviam retirado a gravata preta, de n pronto e presa ao colarinho por gancho de plstico, a parte do uniforme que os dois detestavam. S a do menino comprido fora dobrada com cuidado antes de ser guardada no bolso da cala.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 13 26 ago 2011 12:49

  • 14

    Edney Silvestre

    Passaram por dentro da trilha estreita no bambuzal, sob a algazarra das maritacas que sobrevoavam acima deles.

    Falavam sobre assuntos que dois meninos de doze anos falavam, naqueles tempos: coisas terrivelmente importantes sobre si mesmos e sobre o mundo que ainda no entendiam, mas sobre o qual acreditavam ter ideias precisas, que dali a pouco esqueceriam, porque lhes viriam outras, fabulosas como os sonhos que acalentavam. Avida adulta lhes parecia distante, cordial e luminosa e no o mundo brutal onde seriam lanados naquela manh.

    beira do lago deitaram as bicicletas sobre a relva, um com cuidado, o outro displicentemente, deixando a tombar para o lado.

    O menino de pele mais escura livrou se das roupas em poucos movimentos, jogou as sobre a bicicleta, chutou os sapatos para os lados, enquanto o menino plido abria os botes da camisa e a despia, desafivelava o cinto, descia as calas. Tirava cada pea e a dobrava. Ainda guardava as meias enroladas dentro dos sapatos quando ocolega correu de cuecas para a gua, gil, desafiando o a alcan lo echamando o de molengo, a molengo, a molengo, antes de mergulhar, sem elegncia, mas com vigor.

    O menino mais claro foi at aos arbustos onde escondiam a cmara de ar de pneu usada como boia. Apertou a. Ainda estava cheia. Levou a at a beira da gua, lanou a. Juntou as mos, abaixou a cabea e entrou, quase sem fazer rudo.

    Na gua, morna como o dia, nadaram um tempo.Depois o menino magro deitou se na boia, braos e pernas aber

    tos, deixando se flutuar. Ouvia os rudos do amigo que mergulhava, emergia, mergulhava de novo, tornava a vir tona, nadava mais um tanto e novamente mergulhava e novamente emergia, veloz, a cada vez falando alto e gritando frases ou fazendo perguntas que ele, de incio, respondeu. Depois, embalado pelas guas clidas, foi se envolvendo nos prprios pensamentos, distraindo se no meio deles. Asvozes esons exteriores foram se apagando.

    Sumiram.Boiava no silncio.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 14 26 ago 2011 12:49

  • 15

    Se eu fechar os olhos agora

    Tudo o que via era o azul acima.Mas o astronauta russo no tinha dito o contrrio?

    Eu vejo a Terra. Ela maravilhosa. Ela azul.

    Como assim, azul?, o menino magro se perguntou. ATerra, e no o cu? Por causa dos oceanos? Dos mares? Continentes no so azuis. Montanhas so pretas, matas so verdes, desertos so brancos, no so? assim que vemos aqui de baixo. E nos mapas. Emtodos os mapas. Como o astronauta pode ter visto um planeta azul, se os prdios de concreto, as pontes, os viadutos, tudo tem cor cinza? E as estradas de terra vermelha e de terra marrom? E as estradas asfaltadas? Mas ele viu isso tudo l de cima. Redes ferrovirias, portos, avenidas, pistas de pouso, cidades, a Amaznia, a Sibria, o Polo Norte, a Austrlia, a Monglia, o Himalaia e o Saara, tudo. Ele viu. Orusso, o astronauta, viu isso c em baixo, hoje de manh, como nenhum homem viu antes dele. E disse: azul. ATerra azul. Ento o que a gente aprendeu at agora nas aulas de Geografia est errado. Como estavam errados os mapas antes de Colombo. Naquele tempo diziam que a Terra era plana e terminava em um abismo, no diziam? Oque mais aprendemos hoje que daqui a quinhentos anos vai fazer as pessoas rirem de ns? Todos os planetas e lugares que a gente conhece vo parecer pouca coisa, como aconteceu com o mundo depois que Pedro lvares Cabral chegou ao Brasil? Ele usou os mapas dos navegadores fencios que estiveram aqui muito antes de 1500. E se estiver acontecendo a mesma coisa hoje em dia? E se existem segredos que os cientistas sabem e ns nem desconfiamos? Que os governos escondem de ns como os mapas que os navegantes portugueses escondiam dos inimigos? Pode ser que os russos tenham os mapas verdadeiros do cu. E os americanos? Ser que os americanos tm os mapas verdadeiros do cu?

    Vejo claramente as grandes montanhase reas em sombras

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 15 26 ago 2011 12:49

  • 16

    Edney Silvestre

    Se o astronauta russo girou em torno da Terra em uma hora e quarenta e oito minutos, como disseram no rdio, o garoto conjeturou, ele viu o dia e a noite, tudo ao mesmo tempo.

    as florestas, as ilhas e os litorais.Eu vejo o sol, as nuvens

    Se o Japo est vinte e quatro horas na frente da gente, do outro lado da Terra, onde j amanh, ento o russo passou pelo futuro e voltou ao passado. Mas isso no possvel. No pode. Ou pode. Como pode? Seeu for ao futuro posso me encontrar comigo do jeito que eu sou hoje? Omenino plido se perguntou. Ou como eu era hoje? Eu, de hoje, de agora, sendo como sou neste momento, poderei ver como eu serei? Oque eu serei?

    e as sombras que a luz projeta sobrea minha querida e distante Terra.

    O russo disse. O astronauta russo. Omajor Iuri Gagrin, de vinte e sete anos. No rdio disseram que ele disse. Pode ser mentira. Osrussos mentem para conquistar o mundo, o padre Toms sempre avisa, em toda aula de Latim ele avisa: os comunistas mentem. Mas o professor Lamarca diz que so os americanos que mentem, o garoto lembrou se. Porque eles querem as riquezas do nosso solo, nosso ouro, nosso petrleo, nossas areias monazticas

    Ento Paulo veio por baixo dgua, nadando o mais silenciosamente que conseguia, aproximou se de Eduardo, de quem agora via o corpo por baixo, e fez a brincadeira que sabia seu amigo detestava: virou a boia e puxou lhe a cueca para o meio das pernas.

    Eduardo afundou, engoliu um pouco de gua, subiu tossindo.Paulo nadou para a margem, rapidamente, rindo, fazendo sons

    que imitavam os berros dos ndios vitoriosos sobre os caras plidas invasores nos filmes de faroeste vistos em matins de domingo no Cine Theatro Universo, enquanto Eduardo se recompunha,

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 16 26 ago 2011 12:49

  • 17

    Se eu fechar os olhos agora

    resmungava alguma coisa e nadava, em grandes braadas, tentando alcan lo.

    Paulo saiu da gua, ainda rindo, correu alguns metros, parou.Aguardou.O amigo furioso se aproximava.Chegou perto.Paulo riu de novo, feliz. Aquela era a sua brincadeira favorita.

    Sabia que era mais veloz e mais hbil que Eduardo, conhecia melhor as manhas dos dribles, ser mais baixo at favorecia, quando gingava para a direita ou para a esquerda, abaixava o tronco e passava sob os braos abertos de Eduardo, como fazia agora.

    Desconcertado, capaz apenas de movimentos diretos, Eduardo continuou a perseguio, os ps descalos por vezes escorregando no capim molhado e na lama, enquanto o amigo disparava, sem nunca perder o equilbrio.

    Foi ento que Paulo caiu, ao tropear em alguma coisa.Era um corpo.Uma mulher, loura, de braos e pernas abertos, suja de sangue e

    lama.O seio esquerdo tinha sido cortado fora.

    e

    O buraco entre as pedras e as formigas pretas que saam dali cleres e ordenadas eram tudo o que Eduardo conseguia ver, de frente parede spera para onde os policiais o tinham empurrado. Afileira subia em direo abertura gradeada, muito acima da cabea dele, atravs da qual entravam ondas do calor da tarde e vagos raros sons da rua: as rodas de uma carroa e os cascos ferrados da mula sobre os paraleleppedos, as vozes de duas mulheres a passar na calada do outro lado, um gemido longnquo, indistinto, de uma criana chorando, talvez de algum detento no subsolo da delegacia.

    Os trs policiais fediam. Ele suava. Quis acreditar que no fosse de medo.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 17 26 ago 2011 12:49

  • 18

    Edney Silvestre

    Eu vi primeiro repetiu. Mas eu que tropecei no corpo Paulo explicou, mais uma vez. Estavam de costas um para o outro, Paulo tambm de p, de cara

    para a parede do lado oposto. Ospoliciais se alternavam, refazendo as mesmas perguntas.

    Por que estavam com ela? Como ela foi l com vocs? Quem chamou ela? A gente no conhece ela, eu j disse! Moo, nem o Paulo nem eu sabemos quem ela . Claro que sabem. De quem o canivete? Quantos furos vocs fizeram nela? Como levaram ela para l?Um deles riu. Eduardo achou que cochichavam. Eu j falei, o Eduardo falou, a gente no conhece ela. No conhecia. Nunca vi. Nunca vimos. Nunca. Quantos furos? Como no conhecem ela? Quantos furos voc fez com seu canivete? O canivete no do Eduardo, meu. Quantos furos? O canivete meu, mas a gente nunca fez nada nela, a gente nem

    conhece ela, nunca, nada. Todo mundo conhece ela, moleque. No sou moleque! Cala a boca! S responde o que eu pergunto, moleque! No sou moleque! E no tenho nada que ficar respondendo

    nada! Quer levar porrada, moleque? Calma, moo! Calma, Paulo. Fomos ao lago nadar, s isso, moo. Quantos furos? Fala, moleque! No sei. Agente no quis olhar.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 18 26 ago 2011 12:49

  • 19

    Se eu fechar os olhos agora

    No contmos. Nem eu nem o Paulo contmos. Canivete no faz furo assim. Foi faca. Como sabe, moleque? Jenfiou a faca em algum? No sou moleque! No fiz nada. S tropecei na morta. Como sabiam que estava morta? Vocs mataram. Por que furaram ela tantas vezes? Quando eu tropecei ela j estava morta! Nem tocmos nela, moo. Encontrmos e eu disse ao Paulo que

    era melhor a gente vir aqui na delegacia para contar que ns encontrmos. Ocorpo.

    E eu te disse que era melhor a gente no se meter com a polcia! Ns voltmos l com vocs, no voltmos? Para mostrar. Ns

    s encontrmos ela. S isso. Eu te falei que a polcia no ia acreditar na gente, Eduardo! No acreditamos porque mentira. Oque vocs fizeram com ela? Nada! Ela j estava fria quando eu tropecei. Est mentindo, moleque. Paulo e eu fomos ao lago porque o professor de Geografia nos

    expulsou da sala de aula. Mandou a gente para falar com o diretor. Quem levantou a saia dela? Voc ou voc?Estou com fome, Paulo se deu conta. Estou com fome, estou

    com sede, quero mijar, ainda no almocei, no comi nada, s aquele pedao de po com caf, por que eles me botaram e ao Eduardo nesta sala abafada, por que continuam perguntando para a gente isso tudo de matar a mulher, por que, para qu? No esto vendo que no tinha como a gente matar ela? Com meu canivete no tinha como matar ela. No levantei a saia dela, a saia dela j estava subida at na cintura, ou estava rasgada, quem sabe no, no estava rasgada, ou estava, eu no levantei, Eduardo tambm no levantou, esse que est gritando no meu ouvido cospe toda vez que fala, sujeito porco, deve ser aquele primeiro com quem a gente falou, o que tem uma crie no dente da

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 19 26 ago 2011 12:49

  • 20

    Edney Silvestre

    frente, o que empurrou a gente para a sala nos fundos da delegacia, quando a gente chegou para contar sobre o corpo que a gente encontrou. Ele tinha mau hlito, dava para sentir de longe. Ou era o outro que tinha. Minha barriga est roncando, que horas so?

    Foi voc, moleque? A gente nem tocou nela. S tropecei. Quando estava correndo. Fomos ao lago porque o professor nos expulsou. E no poda

    mos voltar para casa. A gente no podia chegar em casa antes da hora do fim das aulas. Expulsou os dois? . Estavam fazendo o qu? Nada de mais, moo. A gente estava vendo uma revista. Durante a aula. Qual revista? O professor tomou. Mandou a gente ir falar com o diretor. Que revista era? De sacanagem1, eu aposto que esses moleques estavam com

    alguma revista de sacanagem. Vocs estavam fazendo sacanagem? Meia? Umcom o outro? No! Agente estava nadando! Mas o diretor no estava no gabinete dele e ns achmos que

    era melhor irmos embora. A gente achou melhor fugir. Vocs queriam fazer sacanagem com ela. A gente nem viu ela! Agente nem conhece ela! Eu nunca tinha visto, juro. Nem o Paulo. Est mentindo, moleque. Todo mundo conhece essa mulher. Ns, no. A gente nem nunca viu ela antes, j disse!

    1 Pornogrfica. (N. do E.)

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 20 26 ago 2011 12:49

  • 21

    Se eu fechar os olhos agora

    Todo mundo conhece essa mulher. Conhecia. No conheo, no, senhor. Claro que conhece. Essa mulher era uma puta. Puta? A morta era puta? Puta. Vagabunda. Vocs sabiam. Ns no sabamos, moo. Nunca fui ao lugar delas. Nem o

    Paulo. Opai dele vai, o irmo tambm vai. Ele nunca. Ns, nunca. Ela era puta da zona? Quem faz pergunta aqui sou eu, moleque. Oque vocs queriam

    com ela? Queriam obrigar ela a fazer sacanagem. Ela recusou. Vocs atacaram ela. Com o canivete. Levaram at revista de sacanagem. Cad a revista? O professor de Geografia tomou. Oprofessor Lemos tomou.

    Pode perguntar a ele. Vocs limparam o canivete na meia dela. Almina est limpa e

    a meia manchada de sangue. No senhor. Ns fomos de bicicleta ao lago. S isso. Nadar. A o Paulo virou a boia e puxou a minha cueca, e eu sa cor

    rendo atrs dele e Os dois nus? No meio do mato? Ento tinha mesmo sacanagem entre vocs. No, no! Era uma brincadeira! Brincadeira de sacanagem. No! J mandmos chamar seu pai. E o seu tambm. Ah, meu pai, no! Calma, Paulo. Euconto para ele que no temos culpa de nada.

    Que ns que procurmos a polcia. Que a mulher loura j estava morta quando voc tropeou nela.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 21 26 ago 2011 12:49

  • 22

    Edney Silvestre

    Como sabiam que estava morta? Ela j estava dura! O sangue j estava duro! Coagulado, Paulo. Ento vocs mexeram no corpo. Brincaram com o corpo. No! Mexemos de leve. S um pouco. Para ver se estava viva. Mas no estava. Nem podia. Furada daquele jeito! Furos de canivete. Doseu canivete. No foi meu canivete! Aquilo buraco de faca! Eusei que

    buraco de faca. Sabe? Como que sabe? Meu pai aougueiro. No precisava chamar ele. Est com medo? O que foi que voc fez? Conta, pode contar. No estou com medo. Voc de menor, no vai acontecer nada com voc. No precisava de chamar ele A minha me tambm vir aqui? Chamaram minha me, tambm? Vocs esto sempre indo naquele lugar, l no lago? Fazem o qu quando esto juntos? Nadam sem roupa? Ficam juntos sem roupa? Onde esconderam a revista de sacanagem? A gente no fez nada de mal. S fugiu da escola, s isso. No tem vergonha, moleque? Sua me est l fora, chorando. a minha me. Ado Paulo j morreu. Pior. Tanto sacrifcio para dar educao aos filhos e vocs ficam

    por a, vagabundeando. Mas foi o professor Lemos que nos expulsou da sala! Porque vocs estavam com uma revista de sacanagem. Me deixa falar com a minha me, moo. Para ela no ficar

    preocupada.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 22 26 ago 2011 12:49

  • 23

    Se eu fechar os olhos agora

    Depois. Daqui a pouco. Depois de vocs explicarem direitinho essa histria de tirar a

    cueca e ficar juntos no lago, de tirar a calcinha dela, do canivete, tudo. Mas ns j contmos para o senhor. Para vocs trs. Ento conta de novo. Desde o comeo. Por que voc est com tanto medo do seu pai? No o meu. o do Paulo. Se fosse meu filho, eu te mostrava como que se educa um

    vagabundo. Eu no sou vagabundo.Uma quarta voz de adulto os interrompeu, abrindo a porta

    eanunciando: O pai do mulatinho chegou.

    e

    A primeira bofetada, com as costas da mo, atingiu Paulo no ouvido direito. Ele se desequilibrou, uma dor afiada entrando pelo crnio, e s no caiu porque outro tapa, desta vez com a palma da mo, acertou lhe o lado esquerdo da cabea, jogando o contra a mesa de jantar. Mal teve tempo de se desviar dela, enquanto, zonzo, via o pai se aproximar, sabendo que pretendia lhe dar mais uma, duas, quantas bofetadas conseguisse acertar, at se acalmar. Sangue ruim, dizia o homem louro espadado, sangue ruim, repetia, apertando os olhos azuis sob clios to claros que s vezes pareciam brancos, voc tem sangue ruim como o da sua me e de toda a famlia dela, moleque filho da puta.

    Paulo se manteve calado. No adiantaria dizer nada. Opai no ouviria, como nunca ouvia nada quando estava com raiva. Com raiva dele, principalmente. Como parecia estar sempre. Podia tentar dribllo, chispar pelo outro lado da mesa, sair para a rua e correr at Onde? No tinha para onde ir. Nem quem o acolhesse. Deixaria o pai mais furioso. Seria pior. Quando o pegasse, e mais cedo ou mais tarde

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 23 26 ago 2011 12:49

  • 24

    Edney Silvestre

    o pegaria, a surra deixaria marcas e dores por dias seguidos, como acontecera antes de aprender que o melhor era parar e apanhar. Parar agora porque apanharia menos.

    Paulo viu a mo grande vindo em direo ao seu rosto, antecipando a dor ardida, sabendo que mais uma vez dormiria e acordaria com aquela dor latejante, que era tambm a dor de vergonha e de tristeza provocadas pelo homem que s o chamava de moleque.

    Sentiu a manzorra atingindo o entre o nariz e a orelha. Dese quilibrou se novamente.

    Deixou se cair entre as cadeiras, de lado, girando sobre o corpo para debaixo da mesa, instintivamente puxando as pernas junto ao tronco e juntando a elas a cabea, enrolado sobre si mesmo, torcendo para a surra terminar naquele instante, mas preparado para ser puxado e levar alguns pescoes, seguidos de lambadas do cinto de couro que o pai agora tirava das calas. Mas o pai no o arrastou. Deu uma, e outra, uma terceira e uma quarta vergastada entre as cadeiras, s de raspo atingindo a cabea de Paulo. Deteve se, bateu com a fivela nos mveis algumas vezes, depois atirou o cinto sobre o filho, ordenando: sai da, moleque filho da puta, sai da.

    Paulo ps se de quatro, engatinhou para fora da proteo da mesa, levantou se e, de costas para o pai, aguardou. Seria um soco na cabea, o prximo? Outra tapona nos ouvidos?

    Ouvia sua respirao forte, entremeada aos palavres que repetia, sem se aproximar. Era um bom sinal. Quando no se movia, quase sempre parava de bater nele. Quase sempre estendia mais uma fileira de xingamentos, porm a sova poderia se encerrar nisso. Torceu para que fosse assim.

    O pai s disse: pega nessa merda desse cinto.Paulo se inclinou, pegou o cinto.Me d essa merda.Paulo lhe entregou.Voc no presta, seu moleque de merda, tem sangue ruim que

    nem eles, moleque vagabundo, tu bem o sangue deles, tu vagabundo que nem os parentes da tua me.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 24 26 ago 2011 12:49

  • 25

    Se eu fechar os olhos agora

    Paulo abaixou a cabea e, mais uma vez, sentiu uma dor funda, a mesma que sentiria tantas vezes no futuro, quando se lembrasse daqueles momentos com o pai, uma dor que sabia no vir apenas das pancadas, mas que ainda no tinha como localizar nem entender.

    O pai saiu, batendo a porta.Paulo ficou sozinho na sala. Ador foi aumentando, tomando

    conta de suas pernas, seus braos, seu peito, at chegar aos olhos e ia se transformar em lgrimas quando ele mordeu o lbio inferior, com fora, cada vez com mais fora, tentando transferir uma dor para outra. Mas as lgrimas correram assim mesmo, finas, pelos cantos dos olhos, descendo pelo rosto que j comeava a inchar. Paulo correu para o banheiro, fechou a porta sem trinco torcendo para que nem o pai nem o irmo entrassem naquele momento, pegou a toalha de rosto e enfiou na boca. Assim, abafadamente, secretamente, chorou e gemeu enquanto o som de algum rdio, em alguma casa vizinha, trombeteava mais uma vez o primeiro voo que um ser humano tinha feito no espao.

    e

    Quando entrou no quarto que dividia com o irmo, Antonio se exercitava com um par de halteres diante do espelho do guarda roupa. Vestia apenas uma cueca pequena. Aossatura larga e o corpo peludo lhe davam um slido ar de adulto aos dezasseis anos. Como o pai e tantos descendentes de portugueses do Norte, herdara dos visigodos a estatura e a pele clara. Nos fartos cabelos louros alinhados com brilhantina, um topete tombava cuidadosamente sobre a testa. Abaixo das sobrancelhas grossas, os olhos escuros como os da me miravam com prazer o prprio corpo. Contava em voz alta as repeties, enquanto levantava e abaixava os pesos de ferro.

    Que histria essa de mulher morta, Neguinho? perguntou, chamando o irmo pelo apelido que sublinhava a diferena no tom da pele entre eles, sem interromper o exerccio nem tirar os olhos de si mesmo.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 25 26 ago 2011 12:49

  • 26

    Edney Silvestre

    Paulo no respondeu. Cuidando para que o irmo no percebesse os olhos ainda vermelhos, caminhou at a cama, encostada na parede ao lado do guarda roupa e, mantendo se de costas, levantou o travesseiro procura de algo. No encontrou.

    E te prenderam, Neguinho? Atarde toda?Puxou o cobertor, a colcha: tambm no estava ali. Fala, Neguinho! Oque foi que voc fez desta vez?Levantou o colcho. L, tampouco. Estava pelada, disseram. Nua. Estava, Neguinho?Abaixou se, olhou sob o estrado de madeira, levantou se, subiu

    na cama. Correu os olhos pela parte de cima do guarda roupa, no viu nada, passou a mo. Apenas poeira.

    Era muito gostosa, essa mulher do dentista. Parecia a Brigitte Bardot. Uma mistura da Brigitte Bardot com Sophia Loren.

    Paulo no sabia quem era uma ou a outra, nem estava interessado. Mas ficou surpreso com parte do que o irmo dissera.

    Mulher do dentista? No era uma puta? Mulher do dentista. Mas na delegacia disseram que era puta. Dava para todo mundo. Era uma puta. Putona. Puta rampeira,

    galinhona, marafa. Mas era casada com o dentista.Paulo desceu da cama. Viu ela pelada, Neguinho? Era gostosa mesmo, no era? Estava toda ensanguentada. Suja, cheia de lama Peitos empinados. Bunda empinada. Coxa grossa. Gostosa

    demais. Queria ter comido ela. Setivesse enfiado minha vara naquela vagabunda deixava ela gamada por mim.

    Tanto quanto dos bceps e peitorais, Antonio se orgulhava do domnio que acreditava exercer sobre toda mulher que penetrava. Desde a iniciao com uma prostituta, trs anos antes, ele e o pai iam juntos ao prostbulo que uma cafetina1 polaca mantinha numa rua prxima ao centro da cidade. No raro, dormiam l. Paulo os

    1 Dona de prostbulo. (N. do E.)

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 26 26 ago 2011 12:49

  • 27

    Se eu fechar os olhos agora

    encontrara algumas vezes saindo do Hotel Wizorek, enquanto ia para aescola.

    Cortaram mesmo os peitos dela? Estava sem calcinha?Paulo levantou o colcho de crina, olhou com ateno, empurrou

    o colcho para a parede. Tinha pentelhos louros? Boceta rosada? No quero falar disso. No sei. No vi. Loura de verdade tem boceta cor de rosa e pentelho louro. Jvi

    muita. Jcomi muita boceta de loura.Deixou o colcho cair de volta. S havia um dentista na cidade,

    um senhor franzino de cabelos ralos, que Paulo vira poucas vezes, sozinho, sempre de palet e gravata. No podia ser ele.

    O dentista velho. Ela era nova. Parecia nova. Uns vinte e quatro, vinte e cinco anos. Odentista deve ter o

    dobro. Ou mais. Ela s gostava de velho. S dava pra velho. Nunca olhou para mim.

    Pousou os halteres no soalho, encheu o peito de ar, ps se de perfil para o espelho, expirou, passou as mos pelo abdmen, acariciou os pelos alourados, virou se de frente, inspirou fundo mais uma vez, flexionou os braos. Apose confirmava: seus bceps estavam cada vez maiores. No percebeu que sorria satisfeito para si mesmo. Ergueu os halteres e passou a dobrar cada brao, alternadamente, por trs da cabea, inspirando e expirando ruidosamente, inchando agora os trceps.

    Paulo puxou, irritado, a colcha e o cobertor para os ps da cama, sem encontrar nada.

    Cad o livro que eu deixei aqui? Sei l. Viu o marido preso?Paulo virou se, surpreso. A polcia prendeu o marido? Porqu? Se entregou. Confessou que matou ela. Como no viu o den

    tista, se voc estava l?Paulo fez as contas: deixara a delegacia havia mais de duas

    horas, levado pelo pai. Passaram pelo colgio, com Eduardo e a me,

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 27 26 ago 2011 12:49

  • 28

    Edney Silvestre

    convocados para a reunio com o diretor. Aguardaram de vinte minutos a meia hora at serem recebidos e ouvirem uma longa preleo. Saram quando comeava a anoitecer. Ospostes da rua estavam acesos quando chegaram casa. Omarido da morta devia ter se apresentado nesse nterim, imaginou, enquanto ia at a cama de Antonio, quase certo de que escondera ali o objeto emprestado por Eduardo. Bastou colocar a mo por baixo do colcho para confirmar.

    Com cuidado trouxe para fora o livro em que, na capa colorida, seu heri favorito descobria, do alto de um penhasco, no profundo vale abaixo, s margens de um rio largo, azul e caudaloso, uma civilizao perdida na selva por sculos.

    Foi para sua cama, deitou se, jogou os sapatos sem olhar onde caam e abriu o exemplar desbotado de Tarzan e a cidade de ouro1 na pgina que tinha marcado com um barbante. Comeou a ler.

    Est lendo o qu, Neguinho? Livro de putaria? No gosto de ler. Nem livro de sacanagem eu gosto de ler. Perda de tempo. Meu negcio foder. Oque eu gosto mesmo de meter. Meto em boceta, meto em cu, meto na boca, meu negcio meter, enfiar minha caceta e gozar. Gozar muito. Tenho muita porra pra gozar e

    Logo Paulo estava longe dali. A dor desapareceu. No havia mais vergonha, nem tristeza. Percorria as ruas de uma cidade fabulosa escondida no jngal2 africano, pontuada por edifcios de arquitetura rebuscada e paredes de materiais preciosos que despertavam toda sorte de cobia, metrpoles desenvolvidas em meio a uma cincia avanadssima, povoadas por uma raa como no havia nenhuma outra no mundo, protegidas por guerreiros altivos, vestidos de peles e armaduras guarnecidas de esmeraldas e rubis, bravos soldados que

    1 Tarzan e a cidade de ouro, de Edgard Rice Burroughs, traduo de Azevedo Amaral; Coleo Terramarear, 1956, Companhia Editora Nacional. To rpida e to silenciosamente ele se moveu que ningum percebeu o seu intento. Gemmon lanou um grito de espanto; Erot, de alvio; enquanto Nemone se mostrava aterrorizada e alarmada. Inclinando se sobre o parapeito, a rainha viu que o leo lutava por despedaar o corpo que o esmagava de encontro s pedras soltas ou de escapar se debaixo dele.2 Corruptela do ingls jungle selva. (N. do E.)

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 28 26 ago 2011 12:49

  • 29

    Se eu fechar os olhos agora

    acabariam por se render coragem, honradez e destemor do rei das selvas.

    Quantas facadas ela levou?A voz de Antonio trouxe Paulo de volta ao quarto. No queria.

    Agarrou se a um pargrafo e decolou de volta para a terra de Onthat, onde ficavam as torres de marfim e ouro das cidades perdidas de Cathne e Athne.

    Quantas facadas? Sete? Oito? Tem gente falando em mais de vinte. Quantas foram?

    Tentou retornar cidade onde Tarzan tinha sido lanado a uma arena em que, quando soassem as trombetas, iria enfrentar um gigante fortssimo chamado Phobeg, numa luta em que o perdedor teria a garganta cortada para deleite da bela e perversa rainha Nemone.

    Quantas facadas?Tarzan desenvencilhou se das cordas que o prendiam eAntonio arrancou o livro das mos de Paulo. Quantas facadas? Me d! Me d o livro! Quantas? Quantas facadas?Paulo tentava, sem sucesso, tomar de volta o livro que o irmo

    segurava acima de sua cabea com uma das mos, enquanto com a outra o mantinha afastado.

    Me d o livro! Me d! Quantas facadas? Diz primeiro: quantas facadas? No contei. Me d o livro, Antonio! Diz: quantas? Quantas? No sei, no me lembro, no sei. Voc estava l, voc viu. Quantas? O livro, Antonio Quantas foram? Fala! Me dA lembrana do seio cortado e da vermelhido da carne exposta,

    borrada de lama e sangue, voltou a Paulo. Sentiu se muito fraco. Sentou se na cama, tonto, sem foras. Calou se. Abaixou a cabea.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 29 26 ago 2011 12:49

  • Antonio fitou o por alguns instantes, achando que era uma encenao, pronto para reagir ao salto que seguramente viria a seguir, olivro bem seguro, alto, na mo direita. Mas Paulo continuou sentado na cama, a cabea baixa escondendo o rosto. No se movia. Oirmo jogou o livro em cima dele e foi se vestir para sair.

    Se eu fechar os olhos agora***.indd 30 26 ago 2011 12:49