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  • O paradoxo da teoriaInterpretando Niklas Luhmann

    Hans-Georg MoellerTraduo do ingls de Patrcia da Silva Santos

    Ortodoxia paradoxal

    Uma abordagem hermenutica padro da obra de grandes tericos consiste em tentar oferecer uma explicao de suas teorias que seja to acurada, abran-gente e fiel a seus fundamentos quanto possvel. Em outras palavras, implica uma exigncia potencial de ortodoxia na exegese: ao lidar com a grande teoria, devemos tentar, ao menos no comeo, alcanar uma compreenso abrangente que seja fiel a ela.

    No entanto, uma pergunta que pode ser feita : em que medida uma teoria, especificamente uma teoria radicalmente construtivista como a de Niklas Luh-mann, presta-se a uma interpretao compreensiva prioritariamente ortodoxa? Afinal, o construtivismo de Luhmann explicitamente arquitetado sobre uma reflexo acerca de paradoxos incluindo aqueles nos quais ele prprio se fundamenta. As questes hermenuticas, que surgem a partir dessa viso como um componente central da teoria, podem conduzir a algumas reflexes luhmannianas mais amplas sobre o paradoxo da teoria.

    Niklas Luhmann foi educado no ambiente acadmico alemo e permane-ceu a ele ligado. Sua abordagem da teoria e seu modo de escrever textos foram fortemente informados e condicionados por esse fato. Com efeito, em minha opinio, no h dvida de que Luhmann compete na briga pela sucesso do trono de Hegel1, para usar a expresso de Geoffrey Winthrop-Young (2000).

    1. Luhmann (1997, p. 592) ob-

    serva que o que agora pode ser

    oferecido como a nova frmula

    universal da construo da reali-

    dade que tal frmula no existe,

    e depois acrescenta, laconica-

    mente: Hegel no tinha herdei-

    ros, como sabido. Ele afirma,

    paradoxalmente, ser o herdeiro

    de Hegel por formular uma teo-

    ria abrangente da construo da

    realidade que explica por que e

    no s diz que uma frmula

    abrangente da construo da rea-

    lidade no pode existir. Por um

    lado, ele prova, assim, o erro de

    Hegel, e, ao mesmo tempo, subs-

    titui a filosofia hegeliana com a

    sua prpria superteoria.

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 2168

    Ele visava, em suas prprias palavras, a uma superteoria (Luhmann, 1995, pp. 4-5) sob a forma de uma teoria conceitual da sociedade meticulosamen-te construda (Luhmann, 1996a, p. 200) e, como sabido, esclareceu-a quando, ao tornar-se professor na Universidade de Bielefeld, formulou seu projeto de pesquisa da seguinte forma: Tpico: uma teoria da sociedade; durao: trinta anos (Luhmann, 1997, p. 11). Que Luhmann no era apenas um terico dos sistemas, no sentido de trabalhar em uma teoria dos sistemas, mas tambm no sentido de estabelecer uma teoria na forma de um sistema, torna-se evidente em suas observaes frequentes de desdm em relao ao estado da arte da sociologia e seu fracasso em estabelecer qualquer teoria conceitual [sria] da sociedade meticulosamente construda (Luhmann, 1996a, p. 200). Ele via Marx como o ltimo candidato srio para esse posto. Como relatado por seus alunos2, quando perguntado sobre que tipo de espe-rana ele tinha em relao ao futuro de sua teoria ou ao desenvolvimento da teoria em geral, respondia que gostaria de ver outro sistema de pensamento que coincidisse, em termos de abrangncia, com o seu prprio. Nesse senti-do, o grande desapontamento de Luhmann com seu rival Jrgen Habermas consistiu em perceber que no havia tirado muito proveito da leitura dos seus textos desde que passara a ver a obra dele como uma oponente sua prpria, por conta das interminveis discusses habermasianas com adversrios sempre diferentes e da carncia de uma elaborao terica aprofundada (Luhmann, 1996a, pp. 70-71).

    Diferentemente do socilogo menor de sua poca, que no se engajava na teoria, mas mirava questes sociais especficas, seja do ponto de vista poltico ou moral, seja por meio de uma anlise de dados quantitativa ou qualitativa, e diferentemente de muitos filsofos, particularmente no mundo anglo--americano, que, nas palavras de Luhmann, pedantemente, ambicionam a preciso (Luhmann, 1996b, p. 17) na tentativa de resolver uma srie de problemas mais ou menos isolados, Luhmann estava preocupado com a grande teoria, com uma explicao conceitual sistmica da sociedade e, por extenso, do mundo como um todo. Ele escreveu seus textos em um estilo apropriado para essa pretenso. No apenas no se preocupava muito com dados empricos fugazes, mas tambm, o que mais relevante, escrevia de um modo determinante e assertivo como exemplifica este simples pronuncia-mento: Es gibt Systeme (sistemas existem) (Luhmann, 1995, p. 2). No estilo de seus grandes predecessores Kant e Hegel, Luhmann escrevia sob a forma de afirmaes cientficas e proposies: ele est revelando as coisas como elas so. Esse estilo apodctico contribui para a aparncia de solidez que seu

    2. Refiro-me aqui aos relatos

    de Elena Esposito e Giancarlo

    Corsi.

    O paradoxo da teoria, 167-179

  • 169novembro 2015

    sistema terico assume. Os conceitos que ele usa a maioria deles inventados ou por ele adaptados de maneira bastante idiossincrtica no so propos-tos, explicados ou justificados em detalhes, mas postulados diretamente. Os leitores tero simplesmente de aceit-los se quiserem seguir adiante. No h introduo efetiva de Luhmann ao quadro conceptual que ele usa. Sem mais delongas, tal quadro usado como se fosse o que, deve ser sublinhado, na verdade no uma nomenclatura sistemtica tal como aquela comumente usada nas cincias sociais ou naturais. Assim como Kant ou Hegel, Luhmann inventou seu prprio aparato conceitual e depois simplesmente o apresentou como se fosse um vocabulrio cientfico existente. Por conseguinte, os textos geralmente assumem a forma de descries definidas e finais.

    As aspiraes explcitas juntamente com a forma estilstica da superteoria de Luhmann predispem seus leitores e, em especial, aqueles com formao acadmica alem a interpretar sua teoria por meio da tradicional reconstruo sistmica conceitual. Conforme mencionado, a aproximao padro obra de Luhmann consiste em apresentar uma explicao acurada da arquitetura e dos fundamentos de sua teoria e, em seguida, sobre essa base, so desenvolvidas anlises aprofundadas de alguns detalhes tericos ou assuntos especficos. Em outras palavras, a abordagem metodolgica padro da teoria de Luhmann trabalhou no sentido de estabelecer a ortodoxia por meio da exegese.

    Evidentemente, h vrios problemas ligados a esta abordagem metodolgica da exegese ortodoxa. O paradoxo bvio: a ortodoxia inclui e implica a distin-o entre ortodoxia e heterodoxia, e aquele que mais ortodoxo na interpreta-o faz todos os outros tornarem-se mais heterodoxos. Uma vez que a mesma lgica se aplica para aqueles outros que so heterodoxos que se consideram a si prprios ortodoxos , a abordagem ortodoxa pode tornar-se facilmente precipitada e conduzir, se benigna, a inimizades pessoais e profissionais, ou, caso se torne poltica ou religiosa, causar perseguies de outras pessoas.

    Aqui est apenas um exemplo muito menor e completamente benigno: na ocasio de um seminrio recente sobre Luhmann surgiu uma discusso sobre o que significa interao na teoria do socilogo. Trs luhmannianos mais ou menos ortodoxos3, que publicaram extensivamente acerca do verdadeiro significado da teoria de Luhmann, cogitaram definies muito diferentes. A discusso ficou bastante intensa por um tempo e nenhum dos trs queria recuar. Felizmente, porm, logo todos pareciam cansados do debate e, na verdade, ningum desejava realmente impor o seu ponto de vista aos outros por esse motivo, a pequena disputa dissolveu-se rpido e a reunio continuou sendo um evento agradvel. Mas isso, presumo, s foi possvel porque, no fim,

    3. Elena Esposito, Michael King

    e eu prprio.

    Hans-Georg Moeller

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 2170

    nenhum dos trs luhmannianos ortodoxos apreciava de fato mais a insistncia na ortodoxia do que a continuao amigvel da comunicao.

    Uma das principais razes para a dificuldade de chegar essncia da teoria de Luhmann que, apesar da aparncia de autoridade definitiva na leitura de textos individuais, ela na verdade mudou consideravelmente ao longo do tempo e, portanto, em ltima instncia, carece de coerncia interna o que, evidentemente, tambm o caso quando se trata da obra de outros grandes tericos, como Kant e Hegel.

    Um exemplo concreto das muitas mudanas incorporadas tacitamente na obra de Luhmann a definio de cdigo e de meio do sistema de ensino. Luhmann deu diferentes explicaes para ambos os conceitos em diferentes publicaes. Ele alterou sua definio de cdigo de notas boas/ruins para medivel/no medivel (vermittelbar/nicht vermittelbar), e sua definio de meio mudou da criana para o plano de carreira ou o currculo (Lebenslauf). Nos textos de Luhmann, h normalmente pouca discusso ou reflexo acerca de tais mudanas. As definies antigas simplesmente desaparecem e as novas so expressas com a mesma assertividade com que se expressavam as anteriores. Assim, embora a teoria mude em contedo ou semanticamente, sua retrica obscurece essas mudanas.

    Mudanas tericas similares ocorrem ao longo do tempo, mesmo quan-do o vocabulrio conceitual permanece o mesmo. Nos trabalhos iniciais de Luhmann, a noo de sentido (Sinn), por exemplo, geralmente definida nos termos do conceito de Husserl de horizonte e da distino potencialidade/atualidade. Nas obras posteriores, no entanto, Luhmann refere-se cada vez mais a esta noo a partir da viso, muito diferente, de Deleuze em Logique du sens. A seo sobre sentido no magnum opus A sociedade da sociedade combina, por fim, essas duas abordagens bastante dspares.

    Em outros casos, a terminologia muda, enquanto a teoria permanece bastante estvel. assim no que diz respeito substituio de Luhmann do termo interpenetrao pela noo de acoplamento estrutural. Ambas as expresses denotam a relao estreita e de dependncia mtua entre dois sistemas diferentes e operacionalmente fechados.

    A alterao mais decisiva na teoria de Luhmann, como amplamente sabido, aconteceu durante os anos de 1970, quando ele gradualmente incluiu em sua estrutura conceitual a noo, originalmente biolgica, de autopoiesis. O resultado dessa incluso aparece mais bem representado em Sistemas sociais, a primeira grande sntese de sua teoria, que foi originalmente publicada na Ale-manha em 1984. Em uma entrevista posterior, Luhmann afirma que esse livro

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  • 171novembro 2015

    foi a sua primeira publicao efetiva e que todos os trabalhos anteriores eram apenas uma srie-zero de produo de teoria (Luhmann, 2000a, p. 25). Esse veredicto no ocorre sem problemas. Naturalmente, o livro Sistemas sociais e a guinada autopoitica no surgiram do nada e, certamente, ainda se conectam com a obra anterior de Luhmann. E de certo no h uma linha divisria que indique claramente onde a obra inicial de Luhmann termina e onde sua obra tardia explicitamente a substitui ou a revisa. O julgamento radical do autor sobre a guinada autopoitica no reflete com preciso total o desenvolvimento exato do seu trabalho. Ele sugere um ponto de ruptura claro que no to evidente em seus escritos concretos.

    Talvez, ou muito provavelmente, Luhmann pretendesse que o monumen-tal A sociedade da sociedade, que foi publicado pela primeira vez em 1997, pouco antes de sua morte, fosse uma verso final e definitiva de sua teoria. Mas tambm esse livro tem suas inconsistncias internas em algumas passagens, ele parece ter sido escrito s pressas e, em outras, aparece como uma espcie de colagem aleatria de tpicos pensados por Luhmann nos anos de 1980 e 1990. Mais importante ainda, como se segue a partir de uma leitura ortodoxa da teoria luhmanniana, o livro , como todos escritos, um produto contingente de comunicao no menos que qualquer outro dos seus trabalhos. Ele depende de todos os escritos anteriores de Luhmann, do contexto sistmico comunicativo de seu tempo, e teria adquirido outra forma se, naquele momento, o autor no tivesse ficado doente e tomado conscin-cia das limitaes de tempo com que se deparava. Se, por meio de alguma interveno divina, ele tivesse sido curado e lhe fossem concedidas mais duas dcadas de sade e fora intelectual, no h dvidas de que sua teoria teria continuado a evoluir e mudar, como sempre aconteceu. Assim, mais uma vez, o leitor no se deve deixar enganar pela aparncia usual de autoridade dessa obra. Por um lado, A sociedade da sociedade certamente a verso final da teoria de Luhmann, mas, por outro, isso seguramente no faz do livro a sua nica expresso no contingente. Tambm esse livro dependeu da evoluo sistmica e um constructo improvvel de comunicao que poderia ter uma aparncia completamente diferente.

    Isso nos conduz a outro paradoxo: uma leitura precisa da teoria de Luh-mann, que, afinal, uma teoria da contingncia comunicativa, teria que re-conhecer que ela no se presta a uma leitura ortodoxa. At aqui, isso o que este ensaio buscou apontar. Ao mesmo tempo, necessrio sublinhar que a reconstruo da resistncia da teoria a qualquer ortodoxia ainda provm de uma abordagem hermenutica paradoxalmente ortodoxa.

    Hans-Georg Moeller

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 2172

    Para alm disso, qualquer construo de coerncia sistemtica de uma teoria opera metodologicamente por meio de sua correo, ignorando partes dela e selecionando outras, ou, como diria Luhmann, e como ns, portanto, devemos dizer de uma forma mais ortodoxa, pelo esquecimento. Luhmann sublinhou a importncia do esquecimento em seus escritos posteriores, por exemplo, em A realidade da mdia de massa. Aqui ele diz (com uma forma de sarcasmo que aparentemente escapou censura alem): Vergessen macht frei (esquecer liberta, ou torna voc livre) (Luhmann, 2000b, p. 108). Frei machen significa literalmente tornar livre e no quer dizer apenas que nos libera para construir sentido ou permitir a evoluo e novas contingncias; significa tambm, simplesmente, desalojar ou liberar o quarto. Como tal, paradoxalmente, essa uma funo central da memria, que, para Luhmann (1997, p. 579), um conceito mais social que psicolgico. Aqui, podemos conceber a memria, em um sentido mais especfico, como um conceito ao mesmo tempo hermenutico. Somente por meio do esquecimento de grande parte dos materiais que interpretamos no nosso caso, os textos de Luhmann podemos reconstruir a teoria de uma forma ortodoxa e, em se-guida, trabalhar com ela em nossos prprios escritos: Sem o esquecimento, as capacidades do sistema para outras operaes seriam bloqueadas muito rapidamente e, para formular de outra forma, no futuro, seramos capazes apenas de experimentar ou fazer a mesma coisa (Luhmann 2000b, p. 108). Cada intrprete faz selees diferentes, mas todos devem esquecer mais do que lembrar. Caso contrrio, no seriam capazes de ligar seus prprios escritos acadmicos aos escritos de Luhmann, simplesmente reproduziriam a mesma comunicao e, dessa forma, sua comunicao no seria selecionada para publicao porque no diria nada de novo.

    Obviamente, e talvez aqui esteja o mais importante, isso tambm vale para o prprio Luhmann. Ele s podia escrever novos livros ao esquecer, ao menos parcialmente, os antigos. A continuao de uma teoria s possvel com base em uma memria que opera por meio do esquecimento. E aqui vemos outra razo, ou a mesma razo, para o paradoxo da ortodoxia, mas desta vez a partir da perspectiva da construo mesma da teoria. Para desenvolver-se, uma teo-ria deve ser capaz de ignorar a si mesma. preciso lembrar aquilo que j foi observado em relao ao esquecimento: sem essa capacidade, as capacidades do sistema para outras operaes seriam bloqueadas muito rapidamente. Naturalmente, esse no o caso apenas na interpretao da teoria de Luh-mann, ou das condies da construo desta teoria; , em geral, vlido para toda comunicao que se desenvolve. Apenas podemos escrever mais textos

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    se somos capazes de esquecer a maior parte do que escrevemos anteriormente. Na verdade, s podemos continuar a viver em sanidade psicolgica, e manter a estabilidade social, com base em nossa capacidade de esquecer.

    Em resumo, pode-se notar que uma interpretao ortodoxa da teoria de Luhmann descobrir que a teoria mesma desconstri teoricamente a prpria possibilidade de ortodoxia. Mas s podemos descobrir esse paradoxo como intrpretes ortodoxos, e, mais uma vez, devo assumir esse paradoxo de maneira autolgica como constitutivo de nossas prprias interpretaes ortodoxas. Ou, nas palavras do prprio Luhmann (1997, p. 1144): O paradoxo a ortodoxia do nosso tempo.

    Sociedade paradoxal

    Visto de uma perspectiva luhmanniana ortodoxa, a comunicao e, portanto, a sociedade, e, em particular, a sociedade moderna diferenciada funcionalmente, so construdas, em essncia, sobre paradoxos. No sistema poltico, todo o poder produzido por meio da submisso ao poder. E o poder mais alto produzido por meio da sua submisso ao poder mais baixo. Isso chamado de democracia (Idem, p. 373). No sistema acadmico ou cientfico, por exemplo, o prprio cdigo verdadeiro/falso pode, na discus-so luhmanniana a respeito dele, tornar-se tema da comunicao acadmica verdadeira ou falsa. Essa natureza paradoxal incorporada aos sistemas sociais, no entanto, no os impede de funcionar. Ao contrrio, isso o que lhes permite desenvolver-se.

    Se determinada pessoa luhmanniana ortodoxa, vai encontrar Paradoxie-entfaltungen ou o desdobramento de paradoxos para onde quer que olhe na sociedade moderna. Os paradoxos nos quais os meios generalizados de nossos sistemas funcionais esto baseados (tais como o poder na poltica, a verdade nos cdigos do sistema acadmico/cientfico e as leis no sistema do direito) no conduzem a um bloqueio de suas operaes, conforme Luhmann. Com efeito, esses paradoxos so a condio para o desenvolvimento criativo daqueles meios de comunicao e seus respectivos sistemas (Idem, pp. 373-374). Na evoluo do sistema do direito, por exemplo, primeiro uma lei est em vigor e, em seguida, no est mais, e ningum se preocupa com o fato de que o lcito ilcito e o ilcito lcito (Idem, p. 374). A sociedade no evita paradoxos, ela antes os utiliza e, como no caso mencionado do direito, no se preocupa com eles; torna-os invisveis ou os dissolve para empregar termos tcnicos luhmannianos.

    Hans-Georg Moeller

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 2174

    Como construes sociais contingentes, meios de comunicao, tais como o poder (poltico), a verdade (acadmico) e as leis (jurdico), so constitudos paradoxalmente, e isso lhes concede sua flexibilidade e produtividade, especial-mente em relao sua evoluo ou a seus desenvolvimentos no tempo. O poder considerado autoridade, mas sua reverso contnua constitui a autopoiesis da poltica. A verdade considerada durvel, mas sua modificao contnua constitui a autopoiesis do sistema acadmico. As leis so consideradas obri-gatrias, mas sua reviso contnua constitui a autopoiesis do sistema jurdico. Os paradoxos inerentes aos meios de comunicao podem ser desenvolvidos, e esse prprio desenvolvimento constitui a evoluo social.

    Conforme Luhmann, as tcnicas da sociedade moderna para tornar os paradoxos invisveis ou dissolv-los esto intimamente relacionadas com a mu-dana extensiva da observao de primeira ordem para a de segunda ordem (na terminologia de Luhmann): Uma das mais importantes formas de dissoluo dos paradoxos est ligada diferena entre a observao de primeira ordem e a de segunda ordem (Idem, ibidem). Todos os sistemas funcionais modernos operam com base na observao de segunda ordem. Luhmann explica:

    Um pesquisador observa aquilo que outros pesquisadores observam. Algum que ama

    est primeiramente interessado em descobrir se o amado tambm est apaixonado.

    Os preos oferecem a possibilidade de observar como os outros observam o mercado

    e se eles compram ou no por um determinado valor. A arte moderna s pode ser

    entendida quando se compreende como os artistas fazem uso de seus meios, o que

    significa dizer, observando o que eles fazem (Idem, ibidem).

    Em todos estes casos, aquilo que observado no o como um objeto em relao a suas prprias caractersticas (Idem, p. 375), o que seria uma forma de observao de primeira ordem. Pelo contrrio, aquilo que observado o sob uma forma de observar configurada por aqueles que podemos chamar de observadores privilegiados ou por agncias de observao (frequentemente institucionalizadas). No sistema acadmico, o processo de reviso por pares representa tal modo de observao institucionalizado e privilegiado. Na economia, as agncias de risco observam e, desse modo, constroem o valor monetrio. No mundo artstico, o discurso profissional sobre arte estabelece o prestgio de uma obra de arte ou a marca de um artista. Em termos simples, para avaliar o valor de uma publicao acadmica e, portanto, seu valor de verdade, no necessitamos l-la, mas ver onde est publicada. Para descobrir o valor monetrio de um produto financeiro, no temos de inspecion-lo, mas

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  • 175novembro 2015

    ver como ele est sendo cotado; e na arte, no podemos contar com a nossa percepo de uma obra para determinar seu valor esttico, mas devemos saber o que foi dito sobre ela.

    Em todos esses casos, para falar com Luhmann (Idem, p. 373), um obser-vador v um paradoxo desdobrado que torna a natureza paradoxal do meio invisvel ou a dissolve isso nos ajuda, ou melhor, ajuda a comunicao, a no mais se preocupar. Ao contemplar o status da reviso por pares de uma publicao, j no precisamos mais nos preocupar com a sua verdade obje-tiva. Ao contemplar o sucesso de uma obra no sistema de arte, no temos mais de nos preocupar com a sua beleza real ou seu valor artstico. Ao nos tornarmos conscientes de como um produto financeiro avaliado, no necessrio nos preocuparmos mais com o seu valor no que diz respeito s suas caractersticas prprias.

    Se pudermos traar a natureza paradoxal da sociedade um passo adiante, encontramos, como diz Luhmann o paradoxo fundamental da observao (die Grundparadoxie des Beobachtens). Esse paradoxo fundamental na base de todos os paradoxos comunicativos se manifesta no problema do ponto cego (Idem, p. 187). Cada observao opera fazendo uma distino, enquanto essa fatura de distino mesma permanece no observada (Idem, p. 186). A distin-o bsica de todo sistema de comunicao que informa o seu cdigo bsico impregna, dessa maneira, todo sistema social com um paradoxo. A distino entre verdadeiro e falso no , em si, nem verdadeira nem falsa, assim como a distino entre lcito e ilcito no , ela prpria, nem lcita nem ilcita. Dessa forma, a sociedade inerentemente paradoxal, no s no que diz respeito ao seu meio, mas tambm com respeito ao seu cdigo e ao seu ponto cego.

    Segundo Luhmann, a racionalidade de cada sistema baseia-se nesse para-doxo da observao. Ele distingue explicitamente essa noo de racionalidade dos sistemas da tradio de uma filosofia da razo, que vai desde Kant at Habermas (Idem, ibidem). A racionalidade dos sistemas uma racionalidade paradoxal, e ela mltipla e no singular. Baseia-se na criao de distines contingentes, no lugar de uma necessidade de unificao final. No h nada alm ou aqum dos paradoxos de observao fundamentais; os paradoxos fundamentais da construo social de sentido no tm nenhuma razo mais profunda. A sociedade , desde o incio, paradoxal, e ela evolui, para formular em termos freudianos, ao compensar a falta original de razo por meio do de-senvolvimento de sua fundamentao paradoxal com o propsito de torn-lo invisvel para si mesma. Luhmann afirma em sua forma apodctica habitual: Cada observao deve desenvolver seu prprio paradoxo; e isso quer dizer

    Hans-Georg Moeller

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 2176

    que deve substitu-lo por uma distino suficientemente funcional (Idem, p. 187). Toda comunicao inerentemente paradoxal, e enquanto ela funciona, de forma paradoxal, engana a si mesma sobre a sua natureza paradoxal; e talvez possamos dizer que, paradoxalmente, ela funciona apenas para ser capaz de enganar-se sobre o seu prprio absurdo. Toda comunicao e todas as cons-trues sociais, incluindo, por exemplo, a economia, a poltica, o direito e o sistema acadmico, bem como este ensaio, podem, assim, serem concebidas como compensaes para seu prprio fundamento paradoxal.

    Teoria paradoxal

    Luhmann deixa muito claro que sua teoria, como uma teoria da autocons-truo paradoxal da sociedade, ela mesma parte da sociedade que descreve. Por isso, ela deve reconhecer, de maneira autolgica, sua prpria natureza paradoxal e incluir uma reflexo sobre essa sua natureza paradoxal, por meio de uma re-entry em si mesma. Luhmann escreve:

    A teoria no pode expurgar a si mesma ao assumir simplesmente que seu tema, ou seja,

    neste caso, a sociedade, paradoxal, e, portanto, ela no pode, por assim dizer, expelir

    o paradoxo e libertar-se dele. Isto assim porque todos os conceitos que se aplicam

    para analisar seu tema (sistema, observao, ponto cego, sentido, comunicao etc.)

    tambm se aplicam a ela prpria (Idem, p. 179).

    Luhmann admite que o paradoxo fundamental da observao implica die paradoxe Fundierung der Gesamttheorie, ou a fundao paradoxal da teoria como um todo (Idem, p. 80). Assim como os objetos que ela analisa, a teoria de Luhmann opera por meio do desenvolvimento de seu prprio paradoxo. Os dois pargrafos finais do prefcio de A sociedade da sociedade formulam essa questo muito lucidamente:

    O conceito de um sistema que descreve a si mesmo e inclui suas prprias descries

    conduz a um terreno intratvel logicamente. Uma sociedade que descreve a si mesma

    faz isso internamente, mas como se fosse externamente. Ela observa a si mesma como

    um objeto de sua prpria cognio, mas, ao executar essa operao, esta observao

    no pode se tornar parte daquele objeto, uma vez que iria mud-lo e exigir mais uma

    observao. Ela deve deixar em aberto a questo de se observar a si prpria interna ou

    externamente. Se tentar expressar tambm isso, ela assume uma identidade paradoxal

    (Idem, p. 15).

    O paradoxo da teoria, 167-179

  • 177novembro 2015

    Aqui, Luhmann reflete novamente acerca do simples fato de que uma teoria da sociedade faz parte da sociedade que ela descreve, ou, o que d no mesmo, que uma teoria da comunicao , ela prpria, comunicao. Assim, o sujeito do conhecimento ou da observao ou seja, a teoria da sociedade e o objeto conhecido ou observado ou seja, a sociedade tornam-se meros momentos de um ciclo de retroalimentao paradoxal e entram, em termos hegelianos, como para-si e em-si em uma relao dinmica e mutuamente constituinte. Alis, esse mesmo problema est no corao da Fenomenologia do esprito de Hegel, embora Luhmann, explicitamente e de forma equivocada, tenda, por vezes, a acusar Hegel de no ter refletido sobre isso (Moeller, 2006, pp. 173-175).

    No prefcio de A sociedade da sociedade, Luhmann continua a dizer que mesmo esse livro tenta uma descrio da sociedade com pleno conhecimento desta difcil situao delineada. Quando a comunicao de uma teoria da socie-dade bem-sucedida como comunicao, ela muda a descrio de seu objeto e, portanto, do objeto que incorpora essa descrio. Para que isso fique claro desde o incio, o ttulo deste livro A sociedade da sociedade [Die Gesellschaft der Gesellschaft] (Luhmann, 1997, p. 15).

    A traduo em ingls de Die Gesellschaft der Gesellschaft como A theory of society (Uma teoria da sociedade) reflete a ambiguidade gramatical do ttulo alemo. Essa ambiguidade liga Die Gesellschaft der Gesellschaft no s aos ttulos de muitos livros de Luhmann dedicados a sistemas sociais especficos, por exemplo, Das Recht der Gesellschaft (O direito da sociedade), traduzido para o ingls como Law as a social system (Direito como um sistema social), e Die Kunst der Gesellschaft (A arte da sociedade), traduzido para o ingls como Art as a social system (Arte como um sistema social), mas tambm Fenomenologia do esprito de Hegel. Em todos esses casos, sujeito e objeto so intercambiveis. O ttulo Fenomenologia do esprito indica, ao mesmo tem-po, que esprito o objeto de uma explicao fenomenolgica, e tambm que essa explicao fenomenolgica produzida pelo prprio esprito. Da mesma forma, o ttulo O direito da sociedade indica no s uma explicao objetiva do direito como um sistema social (especfico) dentro da socieda-de, como sugere o ttulo ingls Law as a social system, mas tambm que essa prpria explicao do direito igualmente uma operao da sociedade ou da comunicao. O ttulo A theory of society (Uma teoria da sociedade) indica, ao mesmo tempo, uma explicao terica objetiva ou externa da sociedade como um todo e expressa que essa explicao terica mesma uma operao social interna realizada pela prpria sociedade.

    Hans-Georg Moeller

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 2178

    A teoria de Luhmann fundamentalmente paradoxal, no apenas porque parte do que ela descreve e, assim, muda seu objeto enquanto o descreve, mas tambm porque ela surge como uma operao social ou comunicativa fundada sobre modos paradoxais de observao. A reflexo terica e a autoconscincia de sua identidade paradoxal, no entanto, conforme vimos, no purga a teoria do paradoxo. Essa reflexo apenas mais um resultado do desdobramento do paradoxo em sua base.

    Historicamente, essa forma de autorreflexo paradoxal conecta a teoria de Luhmann com o principal antecessor de Hegel, Spinoza, cuja tica (Axiomas ii) citada por Luhmann na epgrafe de A sociedade da sociedade: O que no pode ser concebido por outra coisa deve ser concebido por si s. Paradoxal-mente, a sociedade s pode compreender-se por meio de uma construo inter-pretativa de si mesma e, assim, nunca objetivamente, mas como a sua prpria contribuio contingente para si mesma. Uma vez que chegamos a esse tipo de conhecimento e, no entanto, desde que no dissolvamos o paradoxo e no o eliminemos, sabemos, ao menos, que chegamos a uma forma mais complexa de conhecimento (ou, para Spinoza, uma terceira forma). Enquanto essa forma foi para Spinoza e Hegel uma forma de conhecimento definida, necessria e mais elevada, para Luhmann ela estava liberando um mundo esquizofrnico de contingncia, de realidades e racionalidades simultneas mltiplas, cada uma dependendo de tcnicas de paradoxos que se desdobram.

    Referncias Bibliogrficas

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    O paradoxo da teoria, 167-179

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    Resumo

    O paradoxo da teoria: interpretando Niklas Luhmann

    O artigo discute o papel do paradoxo na teoria social de Niklas Luhmann a partir de

    uma perspectiva hermenutica autolgica: uma tentativa de interpretao ortodoxa

    da teoria de Luhmann, incluindo sua teoria do paradoxo, descobrir que esta teoria

    no se presta a uma interpretao ortodoxa. Assim, mesmo que o paradoxo da teoria

    de Luhmann s possa ser compreendido por meio de uma interpretao ortodoxa, os

    fundamentos mesmos de tal abordagem hermenutica ortodoxa so desconstrudos por

    seus prprios resultados. Com base em uma visada sobre esse paradoxo hermenutico, o

    papel fundamental do paradoxo na teoria de Luhmann pode ser apreciado. Para Luhmann,

    a autoconstruo da sociedade como um sistema complexo de funes de comunicao

    baseia-se na Paradoxieentfaltung o desenvolvimento de paradoxos , que, por sua vez, se fundamenta no paradoxo fundamental da observao (die Grundparadoxie des Beo-bachtens). Assim, a construo social no opera por meio da eliminao de paradoxos, mas por meio do uso deles.

    Palavras-chave: Paradoxo; Teoria; Interpretao; Ortodoxia; Observao; Sociedade.

    Abstract

    The paradox of the theory: interpreting Niklas Luhmann

    This paper discusses the role of the paradox in Niklas Luhmanns social theory from an

    autological hermeneutic perspective: An attempt at an orthodox interpretation of

    Luhmanns theory, including his theory of the paradox, will discover that the theory

    does not lend itself to an orthodox interpretation. Thus, while the paradox of Luhmanns

    theory can only be understood through an orthodox interpretation, the very foundations

    of such an orthodox hermeneutic approach are deconstructed by its own results. On the

    basis of an insight into this hermeneutic paradox, the foundational role of the paradox

    in Luhmanns theory can be appreciated. For Luhmann, the self-construction of society

    as a complex system of communication functions on the basis of Paradoxieentfaltung, or

    the unfolding of paradoxes, which, in turn is grounded on the foundational paradox of

    observation (die Grundparadoxie des Beobachtens). Thus, social construction operates

    not by eliminating paradoxes, but rather by making use of them.

    Keywords: Paradox; Theory; Interpretation; Orthodoxy; Observation; Society.

    Texto enviado em 19/3/2015 e

    aprovado em 24/6/2015.

    doi: http://dx.doi.org/10.1590

    /0103-2070201528.

    Hans-Georg Moeller professor

    de filosofia na Universidade de

    Macau. Seu campo de pesquisa

    est focado em filosofia chinesa

    e comparativa e em pensamento

    poltico e social. autor de The radical Luhmann, The philosophy of the Daodejing e The moral fool: a case for amorality (todos publi-cados pela Columbia University

    Press) e muitos outros livros

    e artigos acadmicos. E-mail:

    [email protected].

    Hans-Georg Moeller