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5/9/2018 1OrganismoSocialMattelart-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/1-organismo-social-mattelart 1/8 o ORGANISMO SOCIAL In: Historia das Teorias da Comunica9ao. Periodo de invencao dos sistemas tecnicos basicos da comunicacao e do principio do livre comercio, 0 seculo XIX viu nascer nocoes fundadoras de uma visao da comunicacao como fator de integracao das socie- dades humanas. Centrada de inicio na questao das redes fisicas, e projetada no micleo da ideologia do progresso, a nocao de comunicacao englobou, no fi- nal do seculo XIX, a gestae das multidoes humanas. o pensamento da sociedade como organismo, como conjunto de orgaos desincumbindo-se de funcoes de- terminadas, inspira as primeiras concepcoes de uma "ciencia da comunicacao". Armand e Michele Mattelart. Sao Paulo: Loyola, 1999. 1. A descoberta das trocas e dos fluxos A divisiio do trabalho A "divisao do trabalho" representa urn primeiro passo te6rico. :It preciso rem on tar ao final do seculo XVIII para encontrar em Adam Smith (1723-1790) a

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o ORGANISMO SOCIALIn:

Historia das Teorias da Comunica9ao.Periodo de invencao dos sistemas tecnicos basicos

da comunicacao e do principio do livre comercio, 0

seculo XIX viu nascer nocoes fundadoras de uma visaoda comunicacao como fator de integracao das socie-

dades humanas. Centrada de inicio na questao das

redes fisicas, e projetada no micleo da ideologia do

progresso, a nocao de comunicacao englobou, no fi-

nal do seculo XIX, a gestae das multidoes humanas.

o pensamento da sociedade como organismo, como

conjunto de orgaos desincumbindo-se de funcoes de-

terminadas, inspira as primeiras concepcoes de uma

"ciencia da comunicacao".

Armand e Michele Mattelart.

Sao Paulo: Loyola, 1999.

1. A descoberta das trocas e dos fluxos

A divisiio do trabalho

A "divisao do trabalho" representa urn primeiro

passo te6rico. : I t preciso rem ontar ao final do seculo

XVIII para encontrar em Adam Smith (1723-1790) a

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14 Hist6ria das teorias da comunicat;ao o organismo social 15

primeira formulacao cientifica, A comunicacao contri-

bui para a organizacao do trabalho coletivo no interior

da fabrica e na estruturacao dos espacos economicos,

Na cosmopolis comercial do laissez-faire, a divisao do

trabalho e as meios de comunicacao (vias fluviais,

maritimas e terrestres) rimam com opulencia e cresci-

menta. A Inglaterra ja efetuou sua "revolucao da circu-

laeao", que comeca a integrar-se naturalmente a nova

paisagem da revolucao industrial em andamento.

Em contrapartida, na mesma epoca, a Franca con-

tinua em busca da unificacao de seu espaco comercial

interior. Nesse reino fundamentalmente agricola, 0 dis-

curso sabre as virtudes dos sistemas de comunicacao e

diretamente proporcional ao estado das carencias. 0

afastamento entre a realidade e urna teorizacao volun-tarista sabre a domesticaeao do movimento caracteri-

zara por muito tempo as visoes francesas da comunica-

~ao como vetor do progresso e realizacao da razao,

Francois Quesnay (1694-1774) e a escola dos fisiocratas

invent ores da maxima "laissez faire, laissez passer":

que 0 liberalismo retomara na segunda metade do se-

culo XIX, sao sua primeira expressao, Fieis ao postu-

lado das Luzes, segundo 0 qual a comercio tern urn

poder criador, proclamam a necessidade, para a despo-

ta esclarecido do reino agricola, de liberar os fluxos de

bens emao-de-obra e de sustentar urna politica de cons-

trucao e conservacao das vias de comunicacao, toman-

do a China como exemplo.

Quesnay mostra-se atento ao conjunto de circui-

tos do mundo economico, que ele procura apreender

como "sistema", "unidade". Inspirando-se em seus

conhecimentos sabre a duplacirculacao do sangue,

esse medico imagina uma representacao grafica da

circulaeao das riquezas em urn Tableau economique

(1758). Dessa figura geometrica em ziguezague, na

qual se entrecruzam e justapoem linhas que indicam

o comercio entre a terra e as homens, por urn lado, e

entre as tres classes que compoem a sociedade, por

outro, obtem-se uma visao macrosc6pica de urna eco-

nomia de "fluxos". A Revolucao de 1789 libera esses

fluxos ao tomar urna serie de medidas, como a ado-

~ao do sistema metrico, destinadas a acelerar a uni-

ficacao do territ6rio nacional. 0 primeiro sistema de

comunicacao a distancia, a telegrafo 6ptico de Claude

Chappe, e inaugurado em 1793 para fins militares.

A divisao do trabalho e a modelo de fluxos mate-

riais alimentarao especialmente a escola da economia

classica inglesa, as analises de John Stuart Mill (1806-

-1873) em particular, que prefigurarao " U r n modela

cibernetico dos fluxos materiais com os fluxos feedback

do dinheiro como informacao" [Beniger, 1992]. 0 con-

ceito de divisao do trabalho estimula igualmente as

reflexoes de Charles Babbage (1792-1871) sabre a "di-

visao do trabalho mental", que a levam a elaborar seus

projetos de mecanizacao das operacoes da inteligencia,

a "maquina de diferenca" e a "maquina analitica" ,

ancestrais das grandes calculadoras eletr6nicas que pre-

cederam a inveneao do computador.

A rede e a totalidade orgiinica

Outro conceito-chave e 0 de rede. Claude Henri de

Saint-Simon (1760-1825) renova a leitura do social a

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16 Historic das teorias da comu.nic aciio o organism a social 17

partir da metafora do ser vivo . . I t 0 advento do pen-

samento do "organisrno-rede" [Musso, 1990J. A "f i-

siologia social" de Saint-Simon pretende ser urna

ciencia da reorganizacao social, administrando a pas-

sagem do "governo dos homens" a "adrnirristr acao

das coisas". A sociedade e concebida como sistemaorganico, justaposicao ou tecer de redes, mas tam-

bern como "sistema industrial", gerado por e como

industria. Em estreita Iilacao ao pensamento dos

engenheiros e obras publ icas de entao, ele concede

urn lugar estrategico a adrniriistracao do sistema das

vias de comun icacao e ao estabelecimento de um

sistema de cred ito. Do mesmo modo que a imagem

do sangue em rel acao ao coracao humano, a circu-

Iacao do dinheiro da a sociedade-industria uma vidauni tar ia.

o sansimoriismo simboliza 0 espirito de ernpree n-

dimerito cla segunda meta de do seculo XIX.

cia epoca, sua Iilosofia do progrvsso inf'l uenci

os panfletos de Eugene Sue e SUdS

ci li.acao pacifica des antagoriismos socials

quanta as narrativas de aritecipacao dos mundos

tecnicos de Julio Verne.

Nessa segunda vertente do seculo, Herbert Spencer

(1820-1903), engenheiro Ierroviario convertido a filoso-

fia, promove 0 avanco da reflexao sobre a comunicacao

como sistema organico. Sua "fisiologia social" ~ em

germe em urn escrito de 1852, sete anos antes da publi-

cacao da obra principal de Darwin sobre a Origem das

especies, formalizada a partir de 1870 ~ leva ao extre-

mo a hip6tese da continuidade entre a ordem bio16gica

e a ordem social. Divisao fisio16gica do trabalho e pro-

gresso do organismo caminham lado a lado. Do homo-

geneo ao heterogeneo, do simples ao complexo, da con-

centracao a diferenciacao, a sociedade industrial encar-

na a "sociedade organica". Uma sociedade-organismo

cada vez mais coerente e integrada, onde as funcoes sao

cada vez rna is definidas, e as partes cada vez mais

interdependentes. Nesse sistema total, a comunicacao e

componente basico dos dois "aparelhos organicos", 0

distribuidor e 0regulador. A imagem do sistema vascular,

o primeiro (estradas, canais e ferrovias) assegura 0

encaminhamento da substancia nutritiva. 0 segundo

assegura 0 equivalente da funcao do sistema nervoso.

Torna possivel a gestae das relacoes complexas entre

um centro dominante e sua periferia . . I t 0 papel das

informacoes (imprensa, peticoes, pesquisas) e do con-

junto dos meios de cornunicacao pelos quais 0 centro

pode "propagar sua influencia" (correio, telegrafo, agen-

cias noticiosas). Os informes sao comparados a descar-

gas nervosas que comunicam um movimento de urn

habitante de uma cidade ao de outra.

Dessa Iilosofia da industr ial izacao seus discipu-

los retem uma idei a operat6ria para acelerar 0 ad-

vento do que charnam "era posit.iva": a funcao orga-

nizadora da producao das redes artificiais. de cornu-

nicacao-transporte ("redes materials") e de Iinancas

("redes espirituais"). Eles 'criam Iinhas de estradas

de ferro, socicdades bancar ias e cornpa nh ias mariti-

mas. Sao mestres-de-obras das grandes exposicoes

universais.

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18 Hist6ria das teorias da comunicat;aoo organismo social 19

A hist6ria como desenvolvimento

Outra nocao fundadora de uma analise dos siste-

mas de comunicaeao e a de desenvolvimento. Spencer

criou a sociologia positivista em sua versao inglesa.

Algumas decadas antes dele, em seu COUTS de philo-

sophie positive, elaborado entre 1830e 1842,AugusteComte (1798-1857), antigo discipulo de Saint-Simon,

formulou as primicias de uma ciencia positiva das

sociedades humanas, sem no entanto dar atencao es-

pecial aos orgaos e aparelhos de comunicacao. Dife-

rentemente de Spencer, que combinara a biologia e a

ffsica da energia e das forcas, Comte se contenta com

a biologia, ainda que batize seu projeto sociol6gico

de "fisica social", "verdadeira ciencia do desenvolvi-

mento social". Conjuga 0 conceito de divisao do tra-balho com as nocoes de desenvolvimento, crescimen-

to, aperfeicoamento, homogeneidade, diferenciacao e

heterogeneidade, que toma diretamente de empres-

timo, alias como Spencer, a embriologia, teoria do

desenvolvimento do ser vivo. A sociedade, organismo

coletivo, obedece a uma lei fisiol6gica de desenvolvi-

mento progressivo.

A hist6ria e concebida como a sucessao de tres

estados ou eras: teol6gico ou ficticio, metaffsico ou

abstrato, e finalmente positivo ou cientffico. Este

Ultimo caracteriza a sociedade industrial, era da rea-

~idade, doutil, da organizacao, da ciencia e dodeclinio

das formas nao-cientificas do conhecimento, mesmo

que essa evolucao esteja longe de ser sincr6nica se-

gundo as disciplinas.

Essa concepcao biografica da hist6ria - hist6ria

necessaria, articulada em etapas, sem desvios nem

retornos, sem regressao, comandada por uma ideia de

progresso linear - espelha-se na concepcao elabora-

da na segunda metade do seculo XIX pela etnologia

e pela economia politica.0

darwinismo social trans-forma essa ordem de sucessao cronol6gica em escala

na ordem moral, quando nao na ordem de racas. De

modo geral, muitos encontraram nesse tipo de

periodizacao a argumentacao que fixa para os chama-

dos povos primitivos, os povos-criancas, entao sob

necessaria tutela, urn horizonte para seu desenvolvi-

mento futuro, uma trajet6ria para seu acesso a idade

adulta; somente a passagem pelos estagios em que

transitaram as nacoes que se dizem civilizadas ga-

rante uma evolucao bem-sucedida.

Dessa representacao do desenvolvimento das so-

ciedades humanas como "hist6ria em pedacos", se-

gundo a expressao do historiador Fernand Braudel,

emanam as primeiras formulacoes das teorias difu-

sionistas: 0 progresso s6 pode atingir a periferia por

meio da irradiacao pelos valores do centro. Essas

teorias puderam ser testadas no choque das culturas

na era dos imperios (1875-1914) e encontraram seus

principais artifices entre os etnologos e ge6grafos.

Serao revitalizadas ap6s a Segunda Guerra Mundial

pela sociologia da modernizacao e sua concepcao de

"desenvolvimento", na qual as midias ocupam papel

estrategico (ver capitulo II, 2).

No fim do seculo XIX, 0 modelo de biologizacao

do social se transformou em senso comum para ca-

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20 Hist6ria das teorias da comunicat;cio o organismo social 21

racterizar os sistemas de comunicacao como agentes

de desenvolvimento e civilizacao [Mattelart, 1994].

Em 1897, 0 aleman Friedrich Ratzel (1844-1904)

lanca as bases da geografia politica ou geopolitica,

ciencia do espaco e de seu controle. "0 Estado e urn

organismo ancorado no solo", e essa ciencia toma porobjeto 0 estudo das relacoes organicas que 0 Estado

mantem com 0 territ6rio. Redes e circuitos, troca,

interacao, mobilidade sao express6es da energia vi-

tal; redes e circuitos "vitalizam" 0 territ6rio. Nessa

reflexao sobre a dimensao espacial da potencia, 0

espaco volta a ser 0 espaco vital.

dio", equivalente ao centro de gravidade no corpo, a

partir do qual podem ser avaliadas as patologias, as

crises e os desequilfbrios da ordem social. Quetelet

elabora nao s6 tabelas de mortalidade como tambem

"tabelas de criminalidade", das quais procura extrair

urn indice de "tendencia ao crime" de acordo com 0

sexo, a idade, 0 clima, a condicaosocial, para obter

as leis de uma ordem moral pretensamente paralela a

ordem fisica.

2. A qestao das multldoes

Quetelet e 0 homem da institucionalizacao do

calculo de probabilidades. Anunciado pela "geome-

tria do acaso" de Pascal, 0 calculo de probabilidades

convida a urn novo modo de governo dos homens: a

"sociedade de seguros" [Ewald, 1986]. A tecnologia

do risco e a razao probabilitaria, ja presentes na gestaedos seguros privados aplicados a mortalidade, aos

riscos maritimes ou aos incendios, transferem-se no

campo politico e tornam-se ferramenta de gestae dos

individuos tornados emmassa. Aolongo desse trajeto

do direito civil ao direito social, em direcao a solida-

riedade e a interdependencia calculadas, emerge 0

principio do Estado-providencia, que socializa as

responsabilidades e reduz todos os problemas sociais

a quest6es de risco. A nocao de solidariedade foge ao

discurso voluntarista da caridade e da fraternidade,

para encampar a linguagem da necessaria interde-

pendencia biol6gica das celulas. Funda a seguranca

de urn individuo que se sente parte de urn todo, liga-

do que esta por urn contrato (e portanto por uma

divida) desde seu nascimento, assim como funda a

irrterdependencia das nacoes. A nocao biom6rfica de

A estatistica moral e 0 hom em medic

Qual a natureza da nova sociedade anunciada pela

irrupcao das multid6es na cidade? Em torno dessa

questao se forma, nas duas ultimas decadas do seculo

XIX, a problematica da "sociedade de massa" e dos

meios de difusao de massa, seus corolarios,

A massa apresenta-se como ameaca real ou po-

tencial para a sociedade como urn todo, e esse risco

justifica a instalacao de urn dispositivo de controle

estatistico dos fluxos [udiciarios e demograf'icos

[Desrosieres, 1993).

o astronomo ematematico belga AdolpheQuetelet(1796-1874) fundar a, por volta de 1835, essa nova

ciencia da mensuracao social batizada de "fisica so-

cial", ciencia cuja unidade basica e 0 "homem me-

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22 Hist6ria das teorias da comunica~ao o organismo social 23

interdependencia prepara por sua vez a ideia de uma

comunicacao necessaria.

Cerca de meio seculo ap6s 0 projeto de calculo

das patologias sociais por Quetelet, surgem as cien-

cias criminais da mensuracao humana. Nomenclatu-

ras e indices servem aos [ufzes, policiais e medicoslegistas para codificar e cumprir sua missao higienis-

ta de vigilancia e normatizacao das classes suposta-

mente perigosas. Antropometria de Bertillon, biome-

tria e eugenia de Galton e antropologia criminal de

Lombroso contribuem para a identificacao do indivi-

duo, para 0 estabelecimento de "perfis".

Se a tipologia dos leitores faz uma primeira apa-

rieao na gestae da midia, desde a criacao das revistas

femininas na penultima decada do seculo XIX nos

Estados Unidos, completando-se sob 0 fordismo dos

anos 20, sera preciso esperar a decada de 30 para ver

a razao probabilitaria exprimir-se na racionalizacao

da comunicacao de massa (ver capitulo II, 2).

o ensaio de Sighele, A masse criminosa, publica-

do em Turim em 1891, extrapola a "psicologia indi-

vidual" e se volta para a "psicologia coletiva". Sob 0

conceito de "crime da massa", Sighele acomoda to-

das as "violencias coletivas da plebe", das greves

operarias as revoltas publicas. Em toda multidao, ha

condutores e conduzidos, hipnotizadores e hipnotiza-

dos. S6 a "sugestao" explica como os segundos pas-

sam a seguir cegamente os primeiros. Pouco presen-

tes na primeira edicao de sua obra, as novas "formas

de sugestao" representadas pelos orgaos de imprensa

sao amplamente tratadas na segunda edicao, publi-

cada em 1901, na qual 0 jornalista - especialmente

o da "literatura de processos" - e retratado como

urn agitador e seus leitores como "0gesso molhado

sobre 0 qual sua mao deposita sua marca".

o contagio, a sugestao e a alucinacao - palavras

que indicam a influencia do alienista Jean-Martin

Charcot - transformam os individuos tornados na

massa em automates, em sonambulos: e em termos

muito semelhantes (a ponto de ser publicamente acu-

sado de plagio por Sighele) que Le Bon analisa 0

comportamento das multidoes em Psychologie des

Joules (1895). Se 0 sociologo italiano compreende a

revolta dos deixados-a-propria-sorte, Le Bon, em

contrapartida, contrario as ideologias igualitaristas,

condena todas as formas de 16gicascoletivas, que ele

interpreta como urn retrocesso na evolucao das socie-

dades humanas. Antes de tratar da psicologia das

massas, teorizou sobre a a psicologia dos povos, fa-

zendo do fator racial elemento determinante da hie-

A psicologia das massas

Os debates que se abrem sobre a natureza politica

de uma opiniao publica recentemente liberada dascoercoes impostas a liberdade de imprensa e reuniao

suscitam a emergencia da "psicologia das multidoes",

formulada pelo sociologo italiano Scipio Sighele

(1868-1913) e pelo medico psicopatologista frances

Gustave LeBon (1841-1931).Ambos subscrevem uma

mesma visao manipulat6ria da sociedade.

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24 Hist6ria das teorias da comunicat;:iio o organismo social 25

rarquia das civilizacoes, Sua argumentacao sobre a

"alma da massa", ser autonomo em relacao aos indi-

viduos que 0 compoem, e portanto indissociavel de

suas analises da "alma da raca", do carater impulsi-

YO, nao-racional, de todos os "povos inferiores", re-

manescente nas sociedades civilizadas por meio das"criancas e mulheres".

Em 1921, Sigmund Freud (1856-1939) contesta os

dois axiomas da psicologia das massas: a exaltacao

dos afetos e a inibicao do pensamento na massa. Ele

critica 0 que chama de "tirania da sugestao", como

explicacao "magica" da transformacao do individuo.

Para esclarecer a "essencia da alma das massas",

recorre ao conceito de libido, testado por ele no es-

tudo das psiconeuroses. "Se 0 individuo isolado na

multidao abandona sua singularidade e se deixa

sugestionar pelos outros, fa-lo porque nele existe a

necessidade de estar de acordo com eles, mais do que

em oposicao, fazendo-o pois talvez, afinal de contas,

'por amor a eles'" [Freud, 1921].

A psicologia social de Tarde esta em franca opo-

sicao com a sociologia positiva de Emile Durkheim

(1858-1917). Tarde censura-lhe 0 considerar os Ieno-

menos sociais isolados dos sujeitos conscientes que

os pensam e 0 trata-Ios de fora, como coisas exte-

riores. Explicar a natureza subjetiva das interacoes

sociais para evitar a raificacao dos fatos sociais: 0

objetivo de Tarde vai ao encontro do projeto de Georg

Simmel (1858-1918). A uma sociologia organicista

inclinada aver nas condutas individuais apenas rea-

<;6es a urn "dado", a "fatos sociais" exteriores, 0 so-

ciologo aleman contrapoe a ideia de urn social proce-

dente das trocas, das relacoes e acoes reciprocas en-

tre individuos, urn movimento intersubjetivo, uma

"rede de afiliacoes". Contrapondo-se a uma sociolo-

gia que define seu objeto a partir do "instituido" e

das "estruturas", tais como 0 Estado, a familia, as

classes, as Igrejas, as corporacoes e os grupos de in-

A esses autores, 0 magistrado Gabriel Tarde (1843-

-1904) responde que a era das massas ja pertence ao

passado, e que a sociedade esta em vias de entrar na

"era dos publicos", Ao contrario da massa, conjunto de

contagios psiquicos essencialmente produzidos por con-

tatos fisicos, 0publico ou os publicos, produto da longa

hist6ria dos meios de transporte e de difusao, "progri-

dem com a sociabilidade". S6 se pertence a uma unica

massa por vez. Pode-se fazer parte de varios publicos

ao mesmo tempo. E essa complexidade exige que se

bus quem suas consequencias sobre os destin os dos gru-

pos (partidos, parlamento, associacoes cientificas, reli-

giosas, profissionais). Nao se trata mais de lamentar a

irrupcao apocaliptica da "massa-populacho",

Gabriel Tarde permanece bastante influenciado

pela nocao de sugestao e sugestibilidade. E suas no-coes de imitacao contra-imitacao como laco social

Ihe sao vinculadas. Ainda que trate tambem do outro

motor das relacoes sociais, a invencao, essa nocao de

imitacao, colhida numa teoria social de grande ri-

queza conceitual, sera com Irequencia deformada a

seguir, isolada de seu contexto, e retida como unico

fator determinante da sociabilidade.

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26 Hist6ria das teorias da comunica~iio o organismo social 27

na qual a razao e soberana. 0

primeiro estagio - 0do socia-

lismo - sera caracterizado

por urn desenvolvimento ja-

mais visto do maquinismo,

que permi tira aos humanos

entrar na idade de ouro do

comunismo, Morris postula quesomente a mudanca previa da

base material abrira a era da

transformacao da cultura. Para

ter aces so a sociedade utopi-

ca, e te6rico da arte, poeta, pin-

tor e urn dos fundadores da

Socialist League, dispoe-se a

aceitar urn eclipse temporario

da arte, para reencontra-la em

urn mundo livre da opressao e

da corrupcao capitalistas, ondeele voltara a encontrar as fon-

tes puras e natura is da beleza.

Amaquina estara presente para

evitar a humanidade qualquer

tipo de trabalho desagradavel

epenoso.

teresses, Simmel se interessa pelos "pequenos obje-

tos" da vida coletiva no cotidiano. E ai que ele ere

discernir esse duplo processo paradoxal que caracte-

riza 0 social, feito dessas realidades complementares

e concomitantes: a "sociacao" e a "dissociaeao". A

primeira, que ele exprime pela metafora da ponte

iBriickei, corresponde a essa capacidade do indivi-

duo de associar 0 que esta separado, dissociado. A

segunda, que ele traduz pela metafora da porta (Tur),

corresponde a capacidade de separar e the permite 0

acaso a uma outra ordem de significacao [Javeau,

1986; Quere, 1988].

Atradicao durkheimiana, por muito tempo incon-

testada nos paises de lingua francesa, eclipsou ate os

anos 80 essa outra tradicao sociol6gica e sua analisedas relacoes sociais como interacoes comunicativas.

Tecnlca e utopias

o final do seculo XIX e

Iertil em discursos ut6picos. 0

imaginario de urna tecnica sal-

vadora ganha contornos mais

especfficos. 0 ge6grafo anar-quista russo Piotr Kropotkin e

o soci6logo escoces Patrick

Geddes veem nas redes eletri-

cas e suas propriedades des-

centralizadoras a promessa de

urna nova vida comunitaria, a

reconciliacao entre 0 trabalho

eo lazer, 0 trabalho manual e

Em 1888, 0 socialista da

Nova Inglaterra, Edward Bella-

my, em Looking Backward

(2000-1887), imaginou uma

sociedade em que as grandes

industrias fossem nacionaliza-

das e 0 radio, esse "telefone co-

letivo" cuja invencao ele pre-viu, posta a service da mobi-

lizacao de todos no "exercito

industrial" que conduzira a

sociedade de abundancia co-

munitaria.

Em 1872, opondo-se a

uma concepcao instrumental

e salvi fica da tecnica, 0 pen-

sador liberal Ingles Samuel

Butler publicara Erewhon,

anagrama de "No Where", 0

lugar de parte alguma, is to e,

a utopia, que apresentava 0

problema da lenta metamor-

fose das subjetividades no

contexto da ascensao da racio-

nalidade tecnica.

o trabalho intelectual, a cida-

de e 0 campo. A era neotecnica

que se seguiu a era paleo-

tecnica, mecanica e imperial,

deve significar 0 advento deuma sociedade horizontal e

transparente.

Em News from Nowhere(1891), 0 brrtanico William

Morris traca as etapas da futu-

ra sociedade da abundancia

comunista em urna natureza re-

encontrada graeas a revolucao,