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Um homem de fibra: Francisco J. Frantz & outras memóriasGuido Ernani Kuhn

Copyright © Editora Gazeta Santa Cruz, 2007

CapaSandro Ceroni

Imagens da capaArquivo Gazeta Grupo de Comunicações

EditoraçãoSandro Ceroni

RevisãoRomar Rudolfo Beling

Romeu Inácio Neumann

Todos os direitos reservados:

Editora Gazeta Santa CruzCNPJ 04.439.157/0001-79

Empresa integrante da Gazeta Grupo de Comunicações

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K96h Kuhn, Guido Ernani Um homem de fibra : Francisco J. Frantz & outras memórias / Guido Ernani Kuhn. - Santa Cruz do Sul : Gazeta Santa Cruz, 2007

1. Frantz, Francisco José - Biografia. 2. Jornalistas - Biografia. I. Título.

CDD : 920 CDU : 929Frantz

Bibliotecária: Edi Focking CRB- 10/1997

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K96h Kuhn, Guido Ernani Um homem de fibra : Francisco J. Frantz & outras memórias / Guido Ernani Kuhn. - Santa Cruz do Sul : Gazeta Santa Cruz, 2007

1. Frantz, Francisco José - Biografia. 2. Jornalistas - Biografia. I. Título.

CDD : 920 CDU : 929Frantz

Bibliotecária: Edi Focking CRB- 10/1997

Prefácio

Mergulhar no passado e reconstituir a história sempre é fasci-nante e, ao mesmo tempo, perigoso. Fascinante, porque é como devol-ver a vida a acontecimentos e personagens do passado, presentificar o passado; perigoso, porque é trazer de volta à vida um mundo que era do seu jeito, sob medida para a época.

A história não é apenas seqüência de fatos, mas complexo mun-do de emoções e sonhos, de inquietações e desafios, componentes de que se fazem todos os dias do ser humano, com a diferença de época. O passado, de certa forma, se protege com senhas a que poucos têm acesso, caminho mágico para aprendiz de feiticeiro. Na verdade, só se compreende a vida, olhando para trás, mas é preciso vivê-la, olhando para frente.

Creio que este tenha sido o desejo, quando foi confiado ao Gui-do Ernani Kuhn a tarefa de contar a história do Schloka Frantz e, em conseqüência, da própria Gazeta, porque ele foi e será sempre alma e coração deste empreendimento de comunicação, que orgulha Santa Cruz do Sul e a imprensa gaúcha.

A missão foi confiada a uma pena brilhante, inteligência privi-legiada e jornalista da melhor estirpe, que teve o privilégio de conviver com o protagonista da história deste livro e, portanto, pôde brindar-nos com informações e fatos que estavam recolhidos ao arquivo da me-mória de suas mais caras lembranças.

O autor arma, en passant, todo um cenário para facilitar a com-preensão de fatos e desdobramentos das circunstâncias do momento, recheando o relato com flashes de jornalismo dinâmico, que facilitam a compreensão do leitor.

Schloka Frantz foi personagem que marcou época. Conheci-o pelas páginas da Gazeta, com seu texto inconfundível, estilo às vezes sarcástico, sem meias-palavras, mas sempre muito leal e, especialmen-te, amável nos contatos pessoais. Um grande coração que, por isso, se fragilizou, por conta das vicissitudes da vida e decepção de pessoas que perseguiam benefícios pessoais, mesmo comprometendo os mais sagra-

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dos princípios da existência humana. O livro é para ser lido de uma assentada: no passado mais dis-

tante, brilhante para compreender o entorno do tempo de antanho, em que Santa Cruz não tinha rua calçada, mas possuía líderes visionários; fascinante no tempo mais próximo, já contemporâneo da gente, res-suscitando cá e lá acontecimentos adormecidos na prateleira do tempo e na memória vaga e imprecisa, ressurgindo com todo o vigor como o escravo que recebe a alforria.

Guido vai fundo na pesquisa, na riqueza de detalhes, fidelíssi-mo à verdade na descrição dos fatos, sem concessões a quem-quer-que-seja, mas, sobretudo, brindando-nos com texto saboroso de que todos tínhamos saudade do Canto de Página.

Acima de tudo isso, presta – a Gazeta e ele – em nome de todos nós, candente homenagem à figura ímpar de Francisco J. Frantz – o famoso Schloka Frantz – pelo legado de vida que, juntamente com o apoio de amigos e companheiros leais, deixou para Santa Cruz do Sul as bases da empresa jornalística, que é hoje a respeitada Gazeta Grupo de Comunicações.

A Gazeta é e será sempre sinônimo do seu fundador. Além do empreendimento em si, deixou o que talvez seja o mais precioso patri-mônio da Gazeta: princípios e valores, mapa e bússola da organização, que continua visionária, arrojada e inspirada no exemplo do timoneiro, que deixou legado imperecível.

Poder conhecer a trajetória desse homem intrépido e íntegro – que ousou devolver condecoração em defesa dos princípios de vida e das crenças do seu Jornal – é privilégio de todos nós e serve de exemplo para retemperar as gerações do presente e do porvir.

O que se faz na vida ecoa na eternidade, com a certeza de que – lembrando pensamento antológico de Borges: “cada geração escreve o seu poema, canta o seu canto, com uma diferença: a voz”.

OSVINO TOILLIER - Professor e cronista

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Sumário 1. Na velha rua Catalã 72. Nos tempos do Musterreiter 113. Livros de reza e almanaques 134. Jornal na língua do povo 145. Tempestade e bonança 176. Outra guerra e o progresso 217. Terremoto em Santa Cruz 248. O último suspiro do Kolonie 279. O inimigo invisível 2810. Patriotas, apesar de tudo 3211. Mágoas do último redator 3712. A questão religiosa 3913. Rivais pelo mesmo Deus 4314. Salvando o nome da cidade 4815. Bola ao centro, zero a zero 5116. A história, por ele próprio 5417. A longa burocracia 5618. Até Deus era nazista 5719. O grande mal-entendido 6020. O limão em limonada 6521. Crescendo e amadurecendo 6922. O sonho do jornal diário 7123. O matutino independente 7324. Entrando na história 7525. A Fenaf e a explosão do fumo 7926. O capital internacional 81

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27. Jornal para ler no bonde 83 28. Na redação e na oficina 8529. Entre cafés e convescotes 8730. Os artigos de fundo 8931. O modelo que deu certo 9132. Alles teuto-gaúcho, tchê! 9333. “Deus me livre dos amigos...” 9934. O grande desabafo 10135. Ameaçando fechar o jornal 10436. A traição do fogo amigo 10737. O dito pelo não dito 10838. Os colonos de Santa Cruz 11039. Noite de São Bartolomeu 11240. Moral em concordata 11441. Dedos sujos na almofada 11642. A fúria do facultativo 12043. A volta do alemão-batata 12344. Historiadores da colônia 12545. Livros, livros a mancheias 12746. Preparando a sucessão 12947. Off-set, a grande cartada 13248. A pré-história da Rádio 13449. Foi embora de repente 13750.Uma luz que não se apaga 140

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1. Na velha Rua Catalã

Três casas e uma rua. Este foi o cenário em que Francisco José Frantz

surgiu para a vida, há precisos 90 anos, em 23 de março de 1917. Foi também nesta pequena geografia que construiu a sua obra e ganhou um lugar na história. Foi ali a trincheira onde travou as batalhas de uma trajetória mais ou menos longa no tempo, mas muito estreita no mapa. No meio de tudo, andou avidamente ao redor da terra, viajou por li-vros e continentes, durante 64 anos de peregrinação, sendo proclama-do como uma das inteligências mais respeitadas da cidade. Trazendo o mundo na cabeça, e no peito uma vitalidade invulgar, seu eixo de ação não saiu, porém, daquela linha de artilharia na velha rua Catalã, uma das primeiras vias traçadas pelo capitão-tenente Francisco Cândido de Castro Menezes, lá por 1854, quando desenhou a futura povoação de São João de Santa Cruz. Rua que depois se chamaria General Câmara, e já era Ramiro Barcelos quando a nossa história começou.

Foi ali, na esquina da então rua da República, hoje Marechal Floria-no, que o patriarca Jorge Frantz plantou raízes e concluiu, em 1914, o sobrado da família, ainda hoje uma das mais significativas relíquias da nossa arquitetura histórica, preparando o berço para o pequeno Fran-cisco. Dali, Jorge irradiou marcante atuação como homem público, constituinte municipal em 1892, presidente do Conselho em 1895, Vice-Intendente em 1897, Fundador da União Colonial em 1903 e presidente da Caixa Cooperativa Santa-Cruzense de 1912 a 1922, além de vários outros cargos. No ano seguinte, ao partir deste mundo, ali já tinha, ao lado de Dona Maria, criado e encaminhado para a vida o seu punhado de rebentos, entre eles um menino de seis anos incompletos, chamado Francisco.

Neto de Augusto Raffler, um dos primeiros imigrantes chegados à colônia, em 1849, e carregando o nome do imperador austríaco recém-finado, o pequeno Francisco José saiu do sobrado do pai nos anos 20, com sua mochila escolar e muita sede de aprender. Caminhou não mais que 100 metros para o norte e encontrou o Colégio São Luís, onde estudou e se tornou perito contador, nos anos 30. Depois, já adulto, da mesma casa paterna ele desceu 100 metros pela primitiva rua Ca-talã, já então Ramiro Barcelos, no rumo do poente, ao encontro dos

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companheiros, com os quais fundou o jornal Gazeta de Santa Cruz, em janeiro de 1945. Finalmente, nos anos 50, desceu mais um bocado, até a quadra seguinte, sempre na direção do sol, como a perseguir obstina-damente o astro-rei, esse símbolo da luz e do saber. E encontrou, afinal, sua terceira e definitiva casa, para transformar o jornal em Gazeta do Sul e desencadear o grande sonho do diário regional. Ao morrer, seu corpo foi para o jazigo da família, mas seu nome e sua memória andaram mais 200 metros Ramiro abaixo, ganhando morada final na casa que foi a estação do trem durante 60 anos, e renasceu como Centro de Cultura Jornalista Francisco J. Frantz.

Minha intenção inicial era de escrever apenas sobre o jornalista Francisco J. Frantz – o Schloka Frantz – e o período de convivência com ele na Gazeta do Sul, entre 1965 e 1981. Quando comecei a me debruçar sobre a tarefa, percebi que o trabalho ficaria parcial e muito limitado. Minha história começa, por isso, bem mais atrás, quase no tempo da rua Catalã. Assim, é possível situar melhor o emérito Diretor dentro do contexto maior e avaliar a importância de sua figura, seja pelas bandeiras e valores que defendeu, seja também pelo que ele e seu jornal representaram na cronologia do desenvolvimento humano, na transição do passado para o futuro, ao longo da desafiante história do chamado quarto poder em Santa Cruz do Sul. Abordo, por isso, não apenas os anos de convívio, num importante período da história, mas também a trajetória da imprensa local desde o tempo mais remoto do seu surgimento, em 1887, com A Cruzada. Naquela primeira fase, ga-nha destaque especial o velho Kolonie, com seu meio século de vida e sua desafiadora proposta de editar um jornal em alemão, que não era a língua nacional, mas a mais falada, entendida por praticamente toda a população. A saga deste heróico projeto passou por dois golpes bem amargos, por causa da proibição da língua, elemento básico da sua co-municação, tão essencial à sobrevivência quanto o ar para respirar.

De ré engatada, recuei pela história até o século 19, antes mesmo da queda do Império. Mergulhar nesse passado me trouxe um prazer especial. As pesquisas me levaram não só a aprofundar o conhecimento que já tinha da nossa cronologia, mas também à descoberta de episó-dios hoje pouco conhecidos, com a interpretação que deles se pode fazer à luz das informações disponíveis sobre a vida e a cultura dos

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antepassados, especialmente a partir da criação do município de Santa Cruz, em 1878.

É lógico que a parte principal deste trabalho gira em torno do jor-nal Gazeta do Sul, hoje já ultrapassando os 60 anos de história, na sua fase ainda pertencente aos “tempos heróicos”, quando a tecnologia da comunicação ainda era muito rudimentar em relação aos recursos hoje disponíveis. Eram os tempos da tipografia artesanal, da máquina de escrever, da linotipo e da impressão rotoplana, recursos manuais e me-cânicos bem limitados, mas que eram a modernidade da época, usada com garra e tenacidade. Eram tempos em que a sociedade civil não ti-nha a organização que tem hoje, muitas vezes sequer havia democracia, liberdade e poder de mobilização. Tempos em que o jornal era caudal quase exclusivo das angústias e necessidades da população, e todos iam a ele para pedir, quase nunca para oferecer.

Inserido em sua época, o jornalista Francisco J. Frantz, usando como arma o seu jornal e como munição o seu próprio ânimo, foi conselheiro habitual de autoridades e se postou, sempre diligente, na primeira linha do desenvolvimento local e regional. Do convívio com este guerreiro da ética e da moral, trago para a vida uma lista bem grande de ensina-mentos, junto com uma bagagem de vários episódios interessantes, pi-torescos e ricos em conteúdo histórico e formativo. Também trazendo as suas fraquezas humanas, comuns a todas as pessoas, ele mesmo não se considerava nem melhor nem pior do que ninguém, embora sempre deixasse claro que sua espinha não era dobrável. É preciso reconhecer que ele era único, pelo estilo próprio, pela combatividade, pela reação explosiva a certos fatos e atitudes, pelos valores que defendia, pela for-ma como colocava o jornal a serviço do interesse comum, sem nunca abrir mão de tomar ele próprio as mais importantes decisões, e pelo respeito que devotava a todas as pessoas, sem distinção, mas muito es-pecialmente aos mais humildes. Ele era, ao mesmo tempo, pai e mestre. Era manso, mas era leão.

Como condimento quase essencial à compreensão de muitos episó-dios, abordamos também a difícil convivência entre as duas igrejas cris-tãs, que por longas décadas segmentavam a comunidade em metades opostas e concorrentes, como também as restrições culturais promovi-das por vários governos contra a germanidade, questões que agiram di-retamente sobre o desempenho dos jornais de cada época, dificultando

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muitas vezes a sua missão.Pode-se dizer, tranqüilamente, que Santa Cruz do Sul tem todos os

motivos para se orgulhar da sua imprensa, embora não se possa opinar sobre muitos veículos que tiveram vida curta. Mas os dois principais jornais, o Kolonie e a Gazeta do Sul, cada um a seu tempo e nas suas circunstâncias, honraram sobremodo o jornalismo durante todo esse tempo. Com grandes limitações técnicas, esses jornais faziam das tripas coração para cumprir a difícil e muitas vezes incompreendida missão de defender a causa maior da comunidade, sem nunca sucumbir a interes-ses menores, apesar de freqüentes e fortes pressões.

Este trabalho não pretende ser uma biografia de corpo inteiro. Tam-bém não é simplesmente a história contada, mas subjetiva e interpreta-da, à luz da própria vivência de 42 anos no âmago desse quarto poder, com olhos atentos para o espelho retrovisor. Assim é, também, uma ho-menagem a todos aqueles que, como Francisco J. Frantz, combateram e ainda combatem este bom combate, com grandeza e dignidade.

Esta obra, embora apoiada pelo incentivo de amigos, saiu princi-palmente da memória e dos arquivos pessoais, das pilhas de papéis que tenho ao redor da mesa de trabalho, misturando jornais, documentos, recortes e alguns livros, alfarrábios que venho recolhendo ao longo da vida. Mas o trabalho inteiro só se tornou possível graças à acolhida na Gazeta do Sul – onde permanece um pedaço grande da minha alma – pelos diretores André Luís Jungblut, Romeu Inácio Neumann e Pau-lo Roberto Treib, além do editor Romar Beling com sua equipe e outros colegas da casa – e também por longas e agradáveis conversas com o amigo e incentivador Roberto Steinhaus, colecionador de histórias e garimpeiro de memórias no Arquivo Histórico do Colégio Mauá, a quem são devidos muitos dos registros mais remotos sobre a história da imprensa local.

É preciso reconhecer, ainda, a generosidade do prefaciador, o pro-fessor e escritor Osvino Toillier, iluminado cronista da vida e contumaz incentivador dos meus humildes passos literários, com quem estudei um pouco sobre as buscas da vida, nossas sabedorias e loucuras, nossos sonhos e ideais, nossas paixões e utopias mais irresistíveis. Com tais presenças, fica sobremodo valorizado o trabalho que ora apresento.

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2. Nos tempos do Musterreiter Antes das três casas da rua Ramiro Barcelos, uma longa história se

passou. E é dela que nos ocuparemos por primeiro. Corria o ano de 1887. Tinham-se passado 37 anos desde que os primeiros 12 imigran-tes alemães chegaram à Colônia de Santa Cruz, no dia 19 de dezembro de 1849. E mal se completava uma década desde que, a 31 de março de 1877, fora criado o Município, através da Lei nº 1079, sancionada pelo Vice-Presidente da Província, João Dias de Castro, elevando à categoria de vila a freguesia de São João de Santa Cruz e fixando os limites da nova comuna. Mas o Município só seria oficialmente formado a partir da instalação da primeira Câmara Municipal, 18 meses depois, no dia 28 de setembro de 1878, na esquina das ruas São Pedro e Taquarembó, atuais Marechal Floriano e 28 de Setembro.

A população da colônia de Santa Cruz já se aproximava das 15 mil almas, das quais pouco mais de mil viviam na sede. A grande e esmagadora maioria era de imigrantes e seus descendentes de primeira e de segunda geração, que conheciam apenas a língua alemã. Os sinos das igrejas e a troca de cartas eram primitivos meios de informação existentes. O rádio e a televisão só viriam no século seguinte. Para o intercâmbio das famílias com parentes e conhecidos distantes, havia um serviço de correios ainda muito precário e demorado. A opção das visitas pessoais estava muito prejudicada pela rusticidade dos meios – cavalos, burros e carroças – e das vias de comunicação, cujas distâncias eram medidas não por quilômetros, mas por horas de montaria. A in-formação cultural, moral e até religiosa vinha do professor, que morava na comunidade e supria a ausência dos padres e pastores, cujas visitas eram mais esporádicas. Do mundo, muitos colonos quase só obtinham informações orais junto aos comerciantes do lugar, que eram também seus conselheiros para negócios e em cujas vendas comercializavam seus produtos e compravam o pouco de suprimentos que não produziam na propriedade. E donde os comerciantes tinham as notícias? Em geral, do caixeiro-viajante, o Musterreiter, que percorria as colônias em lom-bo de mula, com seus mostruários para vender mercadorias e dando as notícias de graça. No dizer de Arthur Blasio Rambo, ele era “o elo de ligação em toda a rede de comércio [...] e o portador da cultura, de notícias, de correspondência...” Ele pontificou principalmente entre

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1870 e 1910, e sua importância foi tão grande que acabou retratado em 1913 no livro Riograndenser Musterreiter, editado por César Reinhardt, em Porto Alegre. Bem antes disso, circulou até um calendário chamado Musterreiter’s neuer historischer Kalender. Sua importância foi, ainda, muito bem retratada nestas descrições:

“Imaginemos pequena vila do interior, no final do século passado (19). Ve-mos a igrejinha, algumas casas ladeando a estrada barrenta e a venda, que muitas vezes também é salão e estalagem, venda onde se compra desde o botão ao arado, e onde à noite os homens se reúnem em carteio amigável, diante de uma garrafa de cerveja. Se a igreja e a escola eram o centro espiritual da colônia, a venda, co-piada da tradição lusa, era o centro mundano. Lá na curva da estrada, um homem aparece. Chapéu de aba larga, poncho, bombachas, botas e esporas, e na guaiaca larga, em volta da cintura, a garrucha e o facão. Um gaúcho, por certo, um gaúcho de cabelos loiros e de fala alemã, montado em uma mula. É dia de festa a chegada do viajante, pois traz com ele, além do mostruário dos enormes alforjes, as últi-mas novidades da capital. Corre livre a cerveja, por conta do visitante, e com isso amolece o coração do vendeiro, preparando o caminho para um bom pedido. A conversa entra noite adentro, abrangendo a economia e a política. Palavras sérias alternam com risos francos. No outro dia, pedidos anotados e cobrança feita, o Musterreiter segue o seu caminho, deixando para trás novos amigos, notícias que correm pela colônia, alguma nova anedota para as rodadas noturnas e, às vezes, a saudade de alguma garota. Era notícia, era banco, era correio o Musterreiter de então, e era, acima de tudo, elo de ligação entre a capital e a colônia, um elemen-to de integração” (TEMPEL, Friedrich, em Sesquicentenário da Imigração Alemã (1824-1974) – Álbum Oficial, Editora Edel Ltda., Porto Alegre).

“Logo, o caixeiro-viajante se transformaria num elo entre culturas. Falava ale-mão, mas vestia-se rigorosamente como os gaúchos, com chapéu de aba larga, lenço no pescoço, camisa branca ou de riscado, colete, bombacha larga, além de botas, espora, pala ou poncho. Por ter acesso à cidade e por saber das coisas, o cai-xeiro-viajante era muito conceituado, sendo esperado com ansiedade e festejado por onde passava. Além de difundirem as novidades da indústria e de prestarem serviços indispensáveis na reposição do vestuário e de utilidades domésticas, os caixeiros-viajantes eram, no século 19 e começo do século 20, uma espécie de mensageiros informais dos fatos do país e do mundo. Num tempo em que os jornais atingiam uma parcela diminuta – e urbana – da população e quando o telégrafo ainda não havia cruzado as solidões do interior gaúcho e brasileiro, as notícias caminhavam no ritmo dos burros dos caixeiros-viajantes” (MÜLLER, Telmo Lauro – Imigração Alemã – EST Edições, Porto Alegre).

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3. Livros de reza e almanaques Além da precária comunicação dos caixeiros-viajantes, a maioria da

população não tinha, como material de leitura, mais que os livros de reza, impressos aqui ou vindos da Alemanha, usados nas suas orações diárias e nos ofícios religiosos, além dos chamados Kalender, calendários editados em língua alemã, que eram anuários de considerável volume, com informações úteis para as famílias no seu dia-a-dia. Os jornais já existiam, alguns também em língua alemã. Mas o acesso a eles era mui-to restrito, pois eram editados em cidades distantes, quase só na Capital da Província. Algumas famílias recebiam regularmente publicações da Alemanha, que corriam de mão em mão, às vezes com distribuição gratuita. Todos queriam saber o que acontecia na pátria mãe, ainda tão próxima no tempo e onde ainda tinham parentes ou conhecidos.

Mesmo com todas essas dificuldades, o hábito da leitura era bem enraizado. Os descendentes de alemães eram, em sua maioria, suficien-temente letrados para ler em sua língua. Considerando as dificuldades da época e o quase isolamento em que viviam, o índice era muito bom, ainda mais que as famílias eram numerosas e tinham muitos filhos pe-quenos, ainda não alfabetizados, além da inexistência de escolas em lugares mais afastados do interior. Em praticamente todas as casas havia alguém que soubesse ler. Mesmo nas localidades não atingidas por jor-nais, e até nas linhas mais recônditas, os Kalender faziam sucesso, não só no século 19, mas também pelo século 20 afora.

“Todo colono, mesmo que more na picada mais afastada, na mata vir-

gem, embora nunca leia um livro, talvez nem assine um jornal em compa-nhia com um outro, por hábito que lhe vem de longe, compra um alma-naque, a fim de se manter a par do calendário de festas, das fases da lua e outros tantos assuntos” (AMSTAD, Pe. Theodor – Cem Anos de Germani-dade no Rio Grande do Sul, 1924).

“...sempre foram muito apreciados pela população de origem teuta, particularmente na zona rural, os almanaques leigos, um gênero que pos-sui longa tradição e que se caracteriza por sua preocupação em informar e instruir, divertindo e distraindo. Há exatamente 100 anos, (Carlos) Koseritz lançava seu Koseritz Deutscher Volkskalender für Brasilien, uma publicação combativa, empenhada em despertar o leitor para os últimos avanços da ciência e das artes, bem como para as novas condições de existência que se impunham ao imigrante. Por não concordar com essa

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orientação, Rotermund, em 1881, lançou o Kalender für die Deutschen in Brasilien, no qual defende o ponto de vista evangélico” (KOCH, Walter - Sesquicentenário da Imigração Alemã – (1824/1974) – Álbum Oficial, Editora Edel Ltda., Porto Alegre).

Esses calendários tinham uma grande utilidade em cada casa, pelas orientações técnicas, culturais, cívicas, morais e religiosas que transmi-tiam. Eram o meio de contato com o mundo. Mas, com periodicidade apenas anual, não podiam atender a todas as aspirações e necessidades das famílias, tão distanciadas entre si e da civilização. O município de Santa Cruz era relativamente novo, mas tinha uma inegável vocação econômica e um grande patrimônio cultural e moral a ser preservado, propagado e desenvolvido.

Nisso deve ter pensado José Rodolpho Taborda, quando se animou a lançar, no dia 25 de março de 1887, o jornal A Cruzada, primeiro periódico com circulação local na vila de São João de Santa Cruz. A única coisa que talvez tenha escapado à sua avaliação, ou para a qual não tenha dado a devida importância, foi a questão da língua. Como sugerem o sobrenome do editor e o nome do jornal, ele era escrito em português, língua que apenas os funcionários públicos e uma pequena minoria da população podiam entender. Apresentou-se como “órgão dos interesses de Santa Cruz”, mas resistiu por apenas dez números, pois era um jornal só ao alcance de uma pequena elite. Daí para cá, por mais de 50 anos, inúmeras e freqüentes tentativas de jornais na língua nacional fracassaram uma a uma no Município. Esta realidade só foi modificada depois dos estragos feitos pela campanha nacionalista do Estado Novo, culminando com a Segunda Guerra Mundial, ao final da qual surgiu, em 1945, a Gazeta de Santa Cruz, atual Gazeta do Sul, primeiro jornal em língua portuguesa que sobreviveu, mesmo assim ainda se obrigando a manter, por vários anos, na década de 50, um suplemento em língua alemã.

4. Jornal na língua do povo A experiência de A Cruzada não foi de todo vã, pois deixou uma

chama ardendo no sentimento comum. Havia uma população cultu-ralmente preparada para ter um jornal local. Por isso, não demorou

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muito e um outro grupo de pessoas, mais consistente e representativo, e também mais identificado com a cultura marcadamente germânica da comunidade, percebeu o elementar detalhe de que um jornal deveria ser editado na mesma língua falada pelo povo.

Proclamada a república, a 15 de novembro de 1889, o imperador Dom Pedro II partiu para o degredo com sentimento de grande triste-za, levando consigo o punhado de terra brasileira que o acompanharia até o túmulo. Deodoro da Fonseca, o líder do golpe, estava no poder, come-çando um período conturbado e instável na política nacional, que pas-saria por turbulências e culminaria com a Revolução Federalista (1893-1895). O município de Santa Cruz era administrado por uma comissão provisória e tinha, pelo censo oficial de 1890, uma população de 15.572 habitantes, dos quais só 1.148 moravam na sede, onde os analfabetos eram apenas 33%, contra 74% no Rio Grande do Sul. O interior e as comunas vizinhas de Rio Pardo (município-mãe) e Venâncio Aires (o antigo Faxinal do Tamanco, depois vila de São Sebastião Mártir, que se emanciparia em abril de 1891), além da Vila Germânia (que em 1925 se tornaria o município de Candelária) também tinham um grande poten-cial para absorver um jornal em alemão, língua conhecida tanto pela po-pulação urbana quanto por praticamente todos os colonos, imigrantes ou descendentes deles, alfabetizados nesse idioma em suas comunidades.

Em novembro de 1890, um grupo de pioneiros santa-cruzenses ex-pediu uma carta circular, difundida por toda a região, propondo-se a lançar um jornal em língua alemã. Dizia esta mensagem, escrita em alemão: “Já somos suficientemente numerosos para manter um jornal próprio, redigido e impresso entre nós, desde que todos participem”. O rol desses empreendedores era integrado por nomes de peso, como Carlos Trein Filho, Abrahão Tatsch, Guilherme J. Eichenberg, Adão Jost, Bernhard Krische, Arthur Hermsdorf, Henrique Schütz, Henri-que Kessler e Philippe Heuser. A assembléia de constituição da socieda-de por ações foi realizada no dia 4 de novembro, no Clube União.

A aludida circular, que tinha a ambição de atingir de modo geral os amigos das colônias alemãs do Rio Grade do Sul (an die Freunde der deutschen Kolonien von Rio Grande do Sul), foi um longo e circuns-tanciado ideário de princípios e objetivos do novo jornal, dentro da conhecida máxima Einigkeit macht stark (a união faz a força). E seguia a explanação:

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“Já floresce entre nós todo um leque de jornais alemães que, entre-tanto, não nos servem, pois que uns, voltados aos interesses da alta polí-tica, não têm tempo para as pequenas necessidades dos colonos; outros misturam política e religião, provocando os ânimos dos seus leitores. [...] Assim, pretendemos criar um novo jornal, que trabalhe apenas por vocês. Chamamo-lo Kolonie (Colônia), para que já no nome reconheçam seus propósitos, um periódico que não tem outra ambição senão o desenvol-vimento da colônia. [...] Isento e independente, sem preferências partidá-rias, a fim de que possa, livre e abertamente, lembrar o governo de nossa situação e exigências. Vamos dedicar-nos apenas à política das colônias (Koloniepolitik). [...] Divulgaremos também os principais acontecimentos que movimentam a vida do Estado e do País... e, na medida do possível, as novidades da Alemanha e dos demais reinos da Europa... Finalmente, a literatura não deve faltar: em cada edição, publicaremos um conto, ca-pítulo de algum romance ou algo semelhante. [...] Nosso jornal tentará tornar-se amigo de todos os colonos alemães do Rio Grande do Sul. Em primeira linha, porém, procuraremos os moradores do município de San-ta Cruz e seus vizinhos... Mas o auxílio de vocês deve ser duplo: primeiro, que leiam o jornal; segundo, que escrevam à redação, comunicando aqui-lo que acontece”. Tendo Arthur Hermsdorf como redator e a tipografia Stutzer &

Hermsdorf como editora, o primeiro número experimental de Kolo-nie circulou a 1º de janeiro de 1891, com periodicidade semanal, às quintas-feiras. A importância da língua alemã se fez sentir desde logo. Em novembro do mesmo ano, o redator do jornal oficiou à comissão provisória, que governava Santa Cruz desde a proclamação da repúbli-ca, sugerindo a conveniência de serem publicados os atos de governo no idioma alemão, visto que a maior parte dos leitores não entendia o português. A junta concordou e agradeceu a advertência do reda-tor. Em maio de 1893, o jornal já se tornava bissemanal, circulando às quartas-feiras e aos sábados. A novidade foi tão bem absorvida que rapidamente muitos leitores passaram a se comunicar com parentes e amigos distantes através do jornal, cujos correspondentes se multi-plicavam pelo interior, a maioria deles professores, e também diversos pastores protestantes, devido à maior ligação do jornal com a Igreja Evangélica. Apesar disso, desde o princípio, o Kolonie nunca abriu mão do seu objetivo maior de servir a todos, incluindo o de incentivar a paz ecumênica entre as igrejas, como já ficara claro na apresentação que precedeu a circulação do primeiro número.

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5. Tempestade e bonança Como sempre e em qualquer lugar, coisa muito fácil é lançar um

jornal. Difícil mesmo é mantê-lo ao longo dos anos. Kolonie não fugiu à regra. Nos primeiros tempos, apesar do campo fértil, nem tudo foram rosas. A república, proclamada em 1889, ficara mal resolvida, gerando instabilidade e desembocando na Revolução Federalista, a revolução das degolas, que os historiadores apontam como o mais sangrento de todos os conflitos já havidos no Brasil, e cujos confrontos se estendiam para dentro das fronteiras de Santa Cruz. O jornal tinha que testemu-nhar esses episódios, registrá-los para a história, com a máxima fideli-dade, apesar de eventuais riscos daí decorrentes.

Quando irrompeu o conflito, a 2 de fevereiro de 1893, nove dias depois da posse de Júlio de Castilhos como Presidente do Estado, a situação política de Santa Cruz era de extrema beligerância, com ata-ques públicos mútuos, pelas páginas do Kolonie, entre os dois grandes líderes, o recém-nomeado intendente republicano João Leite Pereira da Cunha, um forasteiro, e o federalista Carlos Trein Filho, legítimo filho da terra. O povo acompanhava tudo com muito interesse, mas preferia não se envolver, voltando-se para a sua vida normal, o seu trabalho e a sua cultura. O jornal inclusive contribuiu para isso, publicando um ar-tigo para lembrar a legalidade e afirmar que as proclamações dos chefes revolucionários Silva Tavares e Gumercindo Saraiva não encontraram eco em Santa Cruz, recomendando, por isso, paz e tranqüilidade, para que todos pudessem trabalhar. Só o que incomodava eram as constan-tes requisições de cavalos pelas autoridades, para exercer a vigilância.

Ao longo da revolução, que durou dois anos e meio, os ataques e saques havidos em Santa Cruz tiveram como principal causa não pro-priamente as ações dos federalistas, ou maragatos (Waldkatzen, gatos do mato), mas a inabilidade do intendente local, João Leite Pereira da Cunha. A Intendência mantinha um grupo de “voluntários”, requisita-dos para defender a vila contra os federalistas revoltosos, que atacavam fortemente a região do Alto Taquari, onde aconteceram muitos saques e degolas, e poderiam voltar-se também contra Santa Cruz. Os “voluntá-rios” dessa Guarda Municipal, conhecidos como “Os Patriotas”, eram, na maior parte, jovens recrutados no interior, especialmente na região

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do Herval de São João. Eles queriam voltar para suas casas e, impedidos pelo intendente, resolveram desertar. Em represália, Pereira da Cunha proibiu o comércio dos serranos, que vinham a Santa Cruz trocar erva-mate e outros produtos por mantimentos e roupas. Foi quando eles se associaram a um famoso bandoleiro das Quatro Léguas, conhecido como Zeca Ferreira, que era vinculado ao movimento federalista. Ata-caram Santa Cruz no dia 10 de fevereiro de 1894, com uma tropa de 600 a 700 homens, tendo como alvo a Intendência Municipal. Mas o intendente e sua equipe já tinham dado o fora. Então arrombaram o cofre, levaram o que continha e viraram tudo de cabeça para o ar. Entre mortos e feridos, houve três fuzilamentos no portão do cemitério. Com o Município acéfalo, alguns líderes da vila se reuniram, decidindo sua neutralidade e criando uma força armada para cumprir esse objetivo. Graças ao jornal Kolonie, temos assim toda a história contada, em mí-nimos detalhes, não só durante esse período da Revolução Federalista, mas nos 50 anos que se passaram entre 1891 e 1941.

Depois da tempestade, viria a bonança. A revolução terminou em agosto de 1895. Aos poucos, o céu voltou a ficar azul e o sol a brilhar. Um horizonte promissor se descortinou para a comuna de Santa Cruz. No dia 3 de junho de 1897, o município recebeu a honrosa visita do presidente da Província, Júlio Prates de Castilhos, que teve lançada a sua candidatura à presidência da república, em banquete realizado no Clube União. Essa hábil bajulação no grande caudilho pode ter ajuda-do a desencadear o período de vacas gordas, que azeitaria o desenvol-vimento de Santa Cruz, principalmente na primeira década do século 20, por sinal a única, ao longo dos 50 anos do Kolonie, que transcorreu em plena paz. Nesse longo período de anos dourados, o progresso não parou mais de chegar.

Nesta visita de Castilhos a Santa Cruz, a pompa foi tão grande que, sendo o Kolonie editado em alemão, circulou a edição especial e única de um jornal em língua portuguesa, denominado A Homenagem, e foi apresentado um hino com dez estrofes, especialmente composto em sua honra. Outra missão de Júlio de Castilhos em Santa Cruz, naquela ocasião, foi procurar aproximação, sem sucesso, com o líder oposicio-nista Carlos Trein Filho, conforme escreveria mais tarde o jornalista Francisco J. Frantz:

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“Afirmam os que melhor conhecem a história de Santa Cruz que uma das razões da visita do Presidente do Estado foi, também, procurar um en-tendimento com Carlos Trein Filho, prestigioso líder federalista de então, mas nada conseguiu, pois Trein mostrou-se irredutível nos seus pontos de vista. Aliás, poucos anos após, Carlos Trein Filho, quando à noite regressava da Loja Lessing, rumo a sua residência, à rua Marechal Floriano (então Rua da República), que ficava em prédio demolido para dar lugar ao Edifício Dona Paula, no passeio público defronte ao prédio da Justiça do Trabalho, foi barbaramente espancado por beleguins do situacionismo local, fato que teve enorme repercussão no Estado. Borges de Medeiros determinou sigi-losa sindicância por oficial da Brigada Militar reformado, de sua confian-ça e aqui desconhecido, e, uma vez elucidadas todas as circunstâncias do atentado, ordenou a queda da chefia de polícia local e a prisão dos covardes assaltantes” (FRANTZ, Francisco J., Gazeta do Sul, 17/abr/1971). Ranços políticos à parte, havia ainda em Santa Cruz um apoio

muito grande ao Partido Republicano de Júlio de Castilhos, que era um explícito defensor da imigração européia, da forma como ela vinha acontecendo, embora mais tarde viesse a combatê-la, por temer sua in-gerência na política. Além de espontânea, ela trazia um novo modelo de economia, em que as famílias se apegavam ao seu pedaço de chão, sobre ele produzindo o próprio sustento. A respeito deste assunto, a história registra o seguinte depoimento do então presidente da Província, em mensagem enviada na mesma época ao governo central:

“Repetem-se os pedidos dos colonos europeus aqui domiciliados para ser

facilitada a vinda de famílias de seus parentes e patrícios. Isto parece constituir um bom auspício, porque importa encaminhar e desenvolver a imigração denominada espontânea, única a que sou doutrinariamente adeso. O colono aqui se transforma logo em pequeno proprietário agrícola, sente de imediato bem-estar em sua modesta propriedade, adquire condições de fixidez normal, radica-se afetuosamente ao solo hospitaleiro que lhe dá o pão para a família e a prosperidade doméstica... adapta-se facilmente aos nossos hábitos” (CASTI-LHOS, Júlio Prates de, apud Paulo Annes Gonçalves, Correio do Povo, 1960; e KUHN, Guido Ernani, Gazeta do Sul, 18/mai/1974).

Os sonhos da comunidade, acalentados principalmente a partir da autonomia municipal, em 1878, começaram a ser realizados. Entre 1897 e 1900, com o intendente Jorge Henrique Eichenberg, a ponte de ferro do Bom Jesus, construída por volta de 1870, foi recuperada; outra ponte de estrutura metálica foi edificada em Rio Pardinho; uma terceira, de pedra, foi feita em Pinheiral; e na sede, o edifício da Cadeia

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e do Quartel da Guarda Municipal.Mas foi na primeira década do século 20 que aconteceu o período

de maior progresso. João Bittencourt de Menezes, antigo secretário da Intendência, que virou cronista dos anais santa-cruzenses e historiador, assinalou que a administração do intendente Adalberto Pita Pinheiro (1900-1904) foi “aquela que impulsionou decisivamente o progresso de Santa Cruz, especialmente da sede do município, tanto material, como sob o ponto de vista social e mesmo intelectual”. E mencionou tanto as obras por ele realizadas quanto as que projetou, e que foram concluídas por seu sucessor, Galvão Costa (1904-1908). Entre os sinais de progresso tivemos, no início da década, o prado da Várzea (1900), a chegada do cinema (1902) e a fundação da Caixa Cooperativa de Santa Cruz (1904), que mais tarde se transformaria no Banco Agrícola Mercantil, atualmente Unibanco. Em abril de 1905, a primeira linha telefônica ligava a Intendência de Santa Cruz à Subintendência distrital de Vila Teresa (Vera Cruz); e dia 19 de novembro, com a presença ilus-tre do Presidente do Estado, Antonio Augusto Borges de Medeiros, e com o aplauso de quatro mil pessoas (mais que a população da sede do Município), a inauguração do ramal ferroviário e a elevação da vila de Santa Cruz à categoria de cidade, culminando com um baile de gala no salão nobre da Intendência. Depois, vieram a luz elétrica (1906), a rede telefônica urbana (1907), o Hospital Santa Cruz (1908) e a hidráulica municipal na Gruta (1908). O primeiro automóvel, montado em Santa Cruz com motor importado, circulou em 1911.

O nobre gesto de Borges, aparentemente espontâneo, de dar a San-ta Cruz o status de cidade, devido ao grau de desenvolvimento da vila, resultou posteriormente na troca do nome da rua Major Pantaleão Tel-les para Borges de Medeiros.

No meio disso tudo, o Kolonie passou por várias mudanças. Em setembro de 1901, o jornal foi adquirido pelos pastores Friederich Kla-sing e Wilhelm Kull, com Adolfo Lamberts assumindo a parte comer-cial e Guilherme Kuhn a impressão. Em 1905, a redação foi assumida por José Ernesto Riedl, que ali permaneceu até o final dos anos 30. E em outubro de 1907, finalmente surgiu a firma Lamberts & Riedl, assumindo o jornal com os dois sócios que já atuavam no empreendi-mento, o primeiro alemão e o segundo austríaco, assim permanecendo até o fechamento definitivo, em 1941.

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No mesmo embalo do surto desenvolvimentista, o final do século 19 e a primeira década do século 20 foi o período da história em que o maior número de jornais surgiu em Santa Cruz. Conforme Menezes, entre 1897 e 1910, uma dezena de novos periódicos foi apresentada ao público, quatro em alemão e seis em português. Os de língua alemã costumavam durar mais tempo, mas todos já tinham desaparecido em 1911. Entre eles, havia órgãos do Partido Republicano (três), comuni-tários, noticiosos, humorísticos e literários. Ele ainda relaciona algumas publicações de edição única, como três poliantéias comemorativas a eventos (só uma delas em português, em homenagem a Júlio de Casti-lhos, por ocasião de sua visita, em 1897, como já mencionamos) e seis folhas de carnaval, todas em alemão, algumas delas intituladas Nar-renzeitung (jornal de tolices). Dessa abundante safra de periódicos, só sobreviveu o Kolonie, que, sozinho no mercado, passou a ser trissema-nal em janeiro de 1911, circulando às segundas, quartas e sextas-feiras, assim afirmando-se cada vez mais.

6. Outra guerra e o progresso A Primeira Guerra Mundial começou em meados de 1914, mas o

Brasil ficou neutro por mais de três anos. Só no dia 26 de outubro de 1917 entrou no conflito contra a Alemanha, por causa do torpedea-mento de navios no canal da Mancha e na costa francesa. Decretando estado de sítio, o presidente Venceslau Brás se lançou numa campanha nacionalista, daí resultando muitas restrições internas, entre elas a cen-sura e a proibição da língua alemã em todo o território nacional. A 29 de outubro de 1917, três dias depois de o Brasil entrar na guerra, circulava também a última edição dessa primeira fase do Kolonie. Apa-gara-se a chama, mas a brasa continuava viva para voltar a arder tão logo se superasse aquela adversidade. Mas, antes que a guerra chegasse ao Brasil, e até mesmo depois, Santa Cruz não perdeu o seu ritmo de crescimento social e econômico, o que fez as instituições financeiras voltarem os seus olhos para o Município. O Banco Pelotense chegou em 1916, o Banco da Província e o Banco Nacional do Comércio em 1917, e logo também foram fundadas a União Comercial e Industrial, que desembocou na atual Associação Comercial e Industrial de Santa Cruz do Sul, e a Caixa União Popular (1919).

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Mesmo durante as restrições à língua, a cidade não ficaria sem jor-nal. No dia 15 de fevereiro de 1918, a editora do Kolonie realizou a façanha de lançar a Gazeta de Santa Cruz, em língua portuguesa e com periodicidade semanal, como órgão do Partido Republicano, o mes-mo do presidente Venceslau Brás, do presidente do estado Borges de Medeiros e do próprio intendente Gaspar Bartholomay. O primeiro número estampava na capa a foto de página inteira de Borges de Me-deiros. Como se vê, o jornal se apresentou não apenas em outra língua, mas também profundamente modificado na sua essência, com a roupa-gem do governo nas três esferas. Mesmo assim, não adiantou: teve que suportar a tesoura do Delegado de Polícia, chegando a sair com espaços em branco, onde apenas constava “censura”. Logo depois, em maio, Ary Guimarães do Prado lançava Luneta. Mas nenhum periódico em português havia dado certo em Santa Cruz, e ainda não seria desta vez. Terminada a guerra, em novembro de 1918, a Gazeta ainda resistiu até junho do ano seguinte, quando capitulou, após 16 meses de meteórica existência. Luneta só durou sete meses e meio, até o Natal de 1918, mas Ary G. do Prado voltaria ao cenário nos anos 40, como colaborador da Gazeta de Santa Cruz, com a coluna Retalhos... de passado, onde relatou preciosas páginas da história local.

Fora de circulação por menos de dois anos, o velho Kolonie ressur-giu altaneiro no dia 19 de setembro de 1919, tendo mais uma vez pela frente um longo período de prosperidade. Santa Cruz ganhou novo im-pulso. A economia fumageira entrava em fase crescente, com a chegada da Companhia Brasileira de Fumo em Folha, a Souza Cruz (1918), in-troduzindo o fumo de estufa e a produção integrada. Logo depois, em 1919, surgiu a fábrica da Cia. de Fumos Santa Cruz, com capital local. O quadro se completou com uma série de outras empresas menores, das quais algumas já existiam, outras foram sendo criadas.

Na longa gestão do intendente Gaspar Bartholomay (1916-1925), comemorou-se festivamente o centenário da Independência do Brasil (1922), com o lançamento de um monumento comemorativo, que se-ria construído à frente da Intendência Municipal, na praça Marechal Floriano (atual praça da Bandeira), e que seria inaugurado dois anos depois, a 7 de dezembro de 1924, quando também se deu a passagem de governo para o intendente Felippe Jacobus Filho. No dia anterior, fora lançado o novo semanário O Gaúcho, em língua portuguesa, mas

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que só completaria nove edições, em dois meses de circulação. Com Bartholomay, foram realizadas, também, outras importantes obras para o progresso do Município. Com o advento da indústria do fumo, cresceu muito a produção e se tornaram necessárias as estradas para o transporte da safra. É o jornalista Sérgio Dillenburg que dá a dimensão do que representaram os dois mandatos de Bartholomay à frente do Município:

“A maior obra que realizou foi, indiscutivelmente, a travessia a seco da

estrada que liga os municípios de Santa Cruz do Sul e Vera Cruz, antiga-mente Vila Teresa. Esta obra, ao tempo, marcou acirrada controvérsia, e mesmo muitos de seus amigos a olhavam com pessimismo. Dispondo de meios financeiros limitados e recursos técnicos ainda menores, atirou-se o então Intendente com firme vontade de vencer as dificuldades. De picare-ta e carrinho de mão, e utilizando-se da tração animal, conseguiu aterrar o local, que ainda hoje serve de via de acesso ao vizinho município.

Dizem que, quanto mais a chuva carregava parte do aterro e as águas invadiam a construção, maiores eram a satisfação e as críticas dos adver-sários. Decidido a não se deixar abater, conseguiu da Viação Férrea, por empréstimo, pedações de trilhos e rodas velhas, e com eles construiu uma improvisada via férrea, por onde trafegavam inúmeras vagonetes, tracio-nadas por mulas. Ao terminar a estrada, entremeada por pontes, o Daer viria a completá-la na outra margem do rio Pardinho.

No entanto, muitas outras obras menores mereceram a atenção de Gaspar Bartholomay. Entre elas conta-se o desvio do Cerro da Batata, na estrada que liga a Monte Alverne, e como sempre, concluída com os limi-tados recursos de que dispunha. Também a ligação entre os distritos de Si-nimbu e Sete Léguas, através da Cava Funda, foi construída inicialmente para servir as carroças que ligavam aquelas duas localidades, e sendo utili-zada atualmente para tráfego de veículos automotores. Outra iniciativa de não menor importância foi a ligação dos distritos de Sinimbu e Herveiras, pela linha Cerro Branco, na qual foram contornados os altos e íngremes penhascos. A construção dos desvios das linhas Andrade Neves, na ligação com Boa Vista e Schwerin, e a da Picada Velha, que liga Santa Cruz do Sul a Venâncio Aires e Monte Alverne (atual Acesso Grasel), pelos meios primitivos que foram empregados e as dificuldades encontradas, por si só o consagraria como ótimo empreendedor.

Um dos monumentos mais admiráveis do Estado, e que nem todos se apercebem, é o Monumento à Independência do Brasil, erigido defron-te do prédio da Prefeitura Municipal, cuja pedra fundamental ocorreu a 7 de setembro de 1922 e foi inaugurado a 7 de dezembro de 1924. Aliás, as comemorações cívicas sempre mereceram as melhores atenções de Gaspar Bartholomay, quando eram ornamentadas e iluminadas feericamente as ruas da cidade, para comemorar os festejos. Além das sessões cívicas, eram realizadas Batalhas de Flores e queima de fogos

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de artifício.Foi ainda no seu tempo que se criaram os distritos de Sinimbu e

Trombudo, foram aumentadas as capacidades da Usina Elétrica e da Hi-dráulica, voltando a satisfazer a população por muitos anos. Como home-nagem a Gaspar Bartholomay, foi dado o seu nome à estrada que liga ao município de Vera Cruz. É uma homenagem à figura do político probo e ao administrador que soube conduzir os destinos do município com justiça, abnegação e civismo” (DILLENBURG, Sérgio Roberto, Gazeta do Sul, 15/11/1969). Em 1924 também se comemorou o centenário da chegada dos pri-

meiros imigrantes alemães à Feitoria Velha (São Leopoldo), fato regis-trado na capa do Kolonie com uma matéria especial narrando a saga dessa colonização, numa edição de apenas seis páginas. Já no centenário da Independência, em setembro de 1922, o jornal fizera circular a maior edição de sua história, 38 páginas com grande quantidade de matérias enaltecendo a pátria. Nas edições seguintes, ainda houve ampla cober-tura dos festejos. Vê-se que, mesmo editado em alemão, ele se inseria numa comunidade plenamente integrada à pátria brasileira. O civismo e o patriotismo dos santa-cruzenses ficou evidenciado nas festividades, quando grande massa popular compareceu à inauguração da Avenida e da Praça da Independência, como também ao lançamento do projeto do monumento. Não só o prédio da Intendência estava engalanado, mas todo o trajeto da rua da República (atual Marechal Floriano) foi enfeitado com arcos e inscrições em louvor à pátria. Houve três dias de festejos, com competições esportivas, batalhas de flores e fogos de artifício, além de cinema ao ar livre para toda a população. Como se vê, foi uma festança altamente patriótica, que também se estendeu ao mais longínquo interior, e que não deixou nenhuma dúvida sobre o civismo e a brasilidade da população, quase toda ela de origem germânica.

7. Terremoto em Santa Cruz As décadas de 20 e 30 foram, também, um período de muita tur-

bulência política interna, no Estado e no País. Primeiro, a Revolução de 1923. Em novembro de 1922, o republicano (chimango) Borges de Medeiros fora reeleito para o seu quinto mandato na presidência do Estado, mas a Aliança Liberal de Assis Brasil (maragato) não aceitou a derrota, alegando fraude. As escaramuças desenvolveram-se mais nas

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regiões do Planalto e da Campanha, estendendo-se por todo o ano de 1923, e acabando em acordo de paz mediado pelo governo federal, no castelo de Pedras Altas, refúgio de Assis Brasil no interior de Pinheiro Machado. Não haveria mais reeleição do presidente do Estado, nem dos intendentes municipais, e o vice também passaria a ser eleito, isto fazia parte do acordo.

Conforme o folclore político que chegou até os nossos dias, é prová-vel que Assis Brasil tenha tido razão em sua suspeita de fraude eleitoral contra Borges. Ainda não havia Justiça Eleitoral, e o processo era con-trolado pelo poder executivo, através de uma comissão do congresso es-tadual. O Rio Grande do Sul era o único estado em que havia reeleição, pela força hegemônica do Partido Republicano, que governava desde a proclamação da república, primeiro com Júlio de Castilhos e depois com Borges de Medeiros, este já com 20 anos de poder. Para se reeleger mais uma vez, precisava obter dois terços dos votos, e tinha suas estra-tégias para isso. O jornalista Francisco J. Frantz, que era um apaixo-nado pela História, contava que, naquela eleição de 1922, a comissão eleitoral levou o resultado oficial ao velho Borges, para comunicar-lhe que não tinha alcançado os votos suficientes, mas ele teria se adiantado para proclamar mais um triunfo eleitoral: “Sei que vocês estão trazendo a notícia de mais uma grande vitória. Então, vamos festejar e brindar!” – teria dito, assim induzindo aqueles companheiros a recuar e refazer as contas. Simulando uma recontagem, teriam anulado votos nas duas chapas, de modo a fechar uma soma final verossímil e, naturalmente, favorável.

Seguiram-se, com pequenos lapsos de tempo entre um e outro, o Movimento Tenentista de São Paulo, em 1924; a Coluna Prestes, de 1924 a 1927; a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas assumindo através de um golpe militar; a Revolução Constitucionalista de 1932, a Intentona Comunista de 1935, o Estado Novo em 1937, a Revolta Integralista de 1938 e, finalmente, em 1941, a entrada do Brasil na Se-gunda Guerra Mundial, com o endurecimento do projeto nacionalista, que surpreendeu a ordeira população local e esmagou não só a germani-dade, mas também as demais culturas européias em nosso meio.

A maioria desses eventos não afetou a pacata comunidade de Santa Cruz. Desde 1929, o Kolonie convivia com outro jornal em alemão, o Volksstimme, um trissemanário de orientação católica, dirigido por

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Ottmar J. Kussler, redigido por Bernhard Linn, irmão do padre jesuíta Ottomar Linn, e editado pela Empresa Graphica Santacruzense Ltda., como órgão de interesse geral e porta-voz do Partido Libertador. Em 1930, pousou pela primeira vez no município um avião comercial da Varig, modernidade que já não existe mais.

Apesar do clima conturbado no Brasil, a Alemanha ganhava cada vez mais espaço na imprensa local, para divulgação do seu grande surto de desenvolvimento, empreendido pelo III Reich de Adolf Hitler, a partir de 1933. Havia boas relações comerciais entre o Brasil e a Ale-manha, e o próprio Vargas tinha afinidades com o Führer alemão. As coincidências entre ambos iam bem além do período de apogeu de seus governos e da forma inusitada que, mais tarde, escolheriam para sair da vida, o suicídio, com diferença cronológica de nove anos. As relações comerciais entre os dois países cresciam espantosamente, dobrando seus números em cinco anos. Em 1938, um quarto das importações brasileiras vinha do país de Hitler, enquanto um quinto das exportações também se dirigia para lá. Era natural que tal realidade fosse vista como alvissareira pela comunidade germânica aqui radicada, e a imprensa teuto-brasileira registrava o fato com o devido entusiasmo.

O Estado Novo, implantado a 10 de novembro de 1937, começou a produzir seus efeitos devastadores a partir de 18 de abril do ano seguinte, quando o decreto-lei presidencial nº 383 impôs sérias restrições a culturas estrangeiras, o que afetou a imprensa, as igrejas, as sociedades de canto e até as de damas e esportivas em geral, onde o alemão era praticamente a única língua utilizada e as bandeiras traziam inscrições nessa língua. Era um terremoto abalando Santa Cruz. Acelerava-se a corrida da mais dolorosa opressão cultural da história local, que atingiria o clímax com a entrada do Brasil na Guerra, em agosto de 1941, quando Vargas sucumbiu à pressão dos Estados Unidos, cedendo-lhes uma base militar em Natal e recebendo, em troca, a Usina Siderúrgica de Volta Redonda. Os dois jornais locais, que já vinham apresentando edições bilíngües, ficaram inviabilizados. Ainda tentaram, em último desespero, voltar apenas em português, com os nomes de Jornal de Santa Cruz e A Voz do Povo, mas foi esforço inútil. A mão de ferro do delegado de polícia François Nehmé tanto pressionou e censurou que não teve jeito. Parou tudo, e a cidade ficaria sem jornal até o dia 26 de janeiro de 1945, pouco antes do final da Guerra, quando surgiu a Gazeta de Santa Cruz, que em 1957 mudaria o nome para Gazeta do Sul.

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8. O último suspiro do Kolonie No dia 29 de agosto de 1941 saía a última edição do Kolonie, em

alemão. Ali, sob o título Der Leser und seine Zeitung (O leitor e o seu jornal), o redator publicou um artigo deixando transparecer a mágoa diante da medida, “única no mundo”, tomada pelo governo brasileiro, de proibir publicações em línguas estrangeiras. Expôs, também, prejuí-zos que, a seu ver, o próprio País teria, mas deixou clara a disposição de continuar, esperando a fidelidade dos leitores. Traduzido para o portu-guês, é o seguinte o texto de despedida ali publicado:

“Este é o último número de nossa folha, em que se aplica a língua

alemã. Sabem os nossos leitores que, por ordem do Governo Federal, não podem ser publicados no Brasil jornais e revistas em línguas estrangeiras, de 31 de agosto em diante.

Com essa medida – de resto única no mundo inteiro – finda-se a existência secular da imprensa teuto-brasileira, a mais antiga e também a mais numerosa imprensa em língua estrangeira que se publicou no Brasil, embora a imigração germânica não prevalecesse pelo número. Prevaleceu, porém, pelo grau de cultura dos seus componentes, fato este que explica a preponderância das folhas teuto-brasileiras entre os periódicos em línguas estrangeiras.

Ao terminarmos esta primeira fase da nossa existência, podemos dizer – sem falsa vaidade – que temos bem cumprido a nossa missão. Fomos intermediários entre o Brasil e não somente os países de língua alemã, mas ainda aquela parte da Europa não germânica, onde a língua de Goethe é largamente compreendida e lida, da mesma maneira de guias e conselhei-ros a tantos imigrantes de outra língua, mas mais ou menos familiarizados com o alemão, holandeses e flamengos, noruegueses, dinamarqueses e su-íços, finlandeses e estonianos, letões e lituanos, russos e ucranianos, pola-cos, tchecos e eslovacos, húngaros e romenos, sérvios, croatas e búlgaros.

Se a adaptação ao novo ambiente – político, econômico, social, cul-tural e físico – se lhes tornava mais fácil; se comerciantes e industriais do lado de cá e do lado de lá podiam iniciar e manter relações vantajosas; se os representantes diplomáticos e consulares estrangeiros tinham a possibi-lidade de prestarem aos respectivos governos informações valiosas acerca do Brasil, mesmo sem conhecer a língua do País; se na Europa se difun-diam noções exatas sobre o nosso povo, a nossa vida, a nossa cultura e a nossa economia, o mérito de tudo isso cabe, em grande parte, ao dedicado e secular esforço das folhas teuto-brasileiras.

Com o findar da primeira fase da nossa existência, finda, sem dúvida, também aquela parte da nossa missão que diz respeito à nossa ação de intermediários entre o Brasil e a Europa Central, Setentrional e Oriental.

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Pois embora a língua portuguesa, hoje em dia, não seja mais o “tombo do pensamento humano”, do que falou o grande historiador lusitano Alexan-dre Herculano, ela continua ainda longe de ser tão conhecida que possa substituir, como meio de propaganda, a língua alemã. Portanto, o que futuramente publicaremos só excepcionalmente será lido fora do País.

Restam-nos, no futuro, somente duas das nossas antigas tarefas: em primeiro lugar, continuar a servir de guias e conselheiros aos imigrantes; em segundo lugar, contribuir para o melhor conhecimento de assuntos europeus no Brasil. Sobre o segundo ponto não precisamos falar, pois esta tarefa não carece de explicações: ela se explica por si mesma.

[...] Nestes últimos tempos, ouve-se dizer, com alguma freqüência, que, com a supressão da língua, a imprensa teuto-brasileira perderia a sua razão de ser e que, nesse caso, seria mais vantajoso substituir-se a leitura da folha tradicional pela de um dos jornais que sempre se publicaram em vernáculo.

Nada mais errôneo! A nossa folha continuará a ser a sua, embora dela desapareça a língua alemã. Só nós estamos em condições de cuidar dos seus interesses e necessidades, porque só nós os conhecemos. Só nós po-demos informá-los acerca do movimento das suas associações recreativas e esportivas, porque só nós o acompanhamos, como membros das mesmas. Só nós dispomos de correspondentes no seu distrito, que nos põem ao corrente de tudo o que se passa nos seus círculos: nascimentos, noivados, casamentos, aniversários, bodas de prata, falecimentos, etc.

E quem poderá dar notícias tão completas e tão exatas acerca dos acontecimentos na Europa quanto nós, que sempre nos temos especiali-zado neste serviço e que sabemos discernir entre a verdade e as mentiras duma propaganda vil e odiosa? Quem, finalmente, cultivará a transmissão dos grandes valores de ciências e artes e de técnica produzidos na Europa Central, e que são tão importantes e indispensáveis para o nosso progresso brasileiro, senão nós, que levamos sobre quase todas as demais folhas a vantagem não somente de conhecermos o idioma, mas também de termos a boa vontade de informar a respeito, que, como se sabe, nem sempre é encontrada!

Por todos estes motivos, temos o direito de confiar na lealdade dos nossos leitores, que não cometerão a felonia de desprezar e abandonar a folha que durante tantos anos se dedicou ao serviço deles!” (BRANDEN-BURGER, Clemente – Kolonie, 29/ago/1941).

9. O inimigo invisível Uma semana depois, dia 5 de setembro de 1941, em plena Semana

da Pátria, os assinantes do Kolonie receberam o seu exemplar em portu-guês, com o cabeçalho trocado para Jornal de Santa Cruz. Ao contrário de 1918, desta vez os editores assumiram a continuidade, reagindo com inconformidade à medida do regime Vargas, que baniu a única língua

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conhecida por milhares de brasileiros.Mas a fúria xenofóbica parece ter sido bem maior de parte dos esca-

lões executivos do regime, que se excediam e depois bajulavam o chefe. É o caso do tirânico interventor federal no Estado, general Osvaldo Cor-deiro de Farias, um famoso Deutschfresser, como ficaram conhecidos os perseguidores da cultura germânica. Junto com seu chefe de polícia, o te-nente-coronel Aurélio da Silva Py, ele promoveu perseguição implacável à germanidade como valor étnico e cultural do Rio Grande do Sul.

A instituição policial era a fiel executora das ações para manter a ordem e garantir o respeito às leis. É por isso que, também no âmbito local, apareceu com destaque a figura do delegado de polícia François Nehmé, que fez publicar um aviso draconiano à população, no dia 17 de setembro de 1942, com severíssimas restrições à liberdade, como a de proibir a venda de rádios a estrangeiros, tirando-lhes também o direito de ir e vir livremente, além de mandar prender a quem fosse encontrado a falar alemão em qualquer local, “em desacordo com a legislação em vigor”. Recolheu, também, grande quantidade de objetos de alemães e descendentes, mesmo que não dissessem respeito à cultura e aos costumes que queria combater, alguns dos quais ficaram esque-cidos na Delegacia de Polícia por muito tempo, tendo sido devolvidos aos seus donos vários anos depois do fim da guerra, pelo novo delegado José Henrique Mariante. Segundo registros existentes, em 1941 Nehmé comandou a invasão ao jornal Kolonie, em cujas instalações houve um verdadeiro quebra-quebra, logo depois de um grande comício realizado na frente da Prefeitura, liderado pelo interventor federal no Município, Dario de Azevedo Barbosa.

O jornalista Francisco J. Frantz, que viveu aquela situação como secretário da Associação do Comércio, Indústria e Agricultura, também daria, mais tarde, um depoimento contundente a respeito dessa tirania despropositada:

“... Boa parte da população, pacata e ordeira (às vezes até demais), mas

acima de tudo brasileira, andou de cócoras, intimidada pela atuação de uns caraduras safados, que procuraram dividir a comunidade em duas partes. A parte maior, constituída de descendentes de alemães e italianos, para eles todos quintas-colunas” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 13/mar/1971).

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De 1933 a 1942, foi Chefe de Polícia do Distrito Federal o mato-grossense Filinto Strubling Müller, getulista de carteirinha desde 1930, quando Vargas assumiu o poder pela força, depois de perder a eleição. A ele estava atrelada toda a organização policial do Estado Novo. Mais tarde, ainda seria senador por quatro mandatos, e morreria em 1973, num desastre aéreo em Paris. Sobre a sua própria atuação no Estado Novo, ele daria, um ano antes de morrer, o seguinte depoimento, reco-nhecendo os excessos das suas polícias:

“Houve casos de torturas. Que posso fazer? Dizer que cumpria ordens

superiores? Não. Isso é deslealdade. Dizer que foram arbitrariedades dos subordinados? Também não. Seria covardia. Eu fico com a responsabili-dade, não a atiro para cima nem para baixo. Quando casos concretos che-garam ao meu conhecimento, puni sem alarde. Eu não era guarda. Estava lá em cima. Não podia ver tudo. Sei que a polícia não é santa. E nenhuma polícia o é. Nunca vi nem autorizei essas violências. O essencial é que tenho minha consciência tranqüila” (MÜLLER, Filinto, revista Veja, nº 186, 29/mar/1972, página 26). Deixou a impressão de que a repressão mais violenta estava mesmo

por conta das autoridades estaduais. O general Osvaldo Cordeiro de Farias parecia ter a clara visão de que o cidadão alemão, ou dessa ori-gem, era potencialmente propenso a ser também nazista. Não se pode negar que havia simpatizantes do partido no Estado, e até no município de Santa Cruz, mas mais por conta do progresso alemão nos anos 30, bem antes da guerra. Não encontramos nenhum registro significativo de alguma articulação que tivesse ameaçado as instituições nacionais. Mesmo assim, o fantasma do nazismo parecia tirar o sono das autori-dades. Sobre esse “inimigo invisível”, o próprio interventor federal no Estado diria:

“A vigilância pública conhece-lhe os passos, as intenções e os objeti-

vos, mesmo aqueles que o monstro entende de maior sigilo. (...) Estamos prevenidos contra a técnica e os métodos de confusão adotados pelo na-zismo. No Rio Grande, a víbora não mais levantará a cabeça. Estamos seguros de tudo. Auxiliados pelo interesse popular, não nos alarmamos e nem nos atemorizamos com os boatos” (FARIAS, Gen. Osvaldo Cordeiro de, Correio do Povo, 7/jan/1942, página 5). Na mesma linha estava o furioso chefe de polícia Aurélio Py, que

comandava diretamente os agentes executores da política de nacionali-

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zação. Ele invocava o conhecimento e o beneplácito de Vargas para as suas ações, o que não combina com a versão do próprio presidente, que veremos mais adiante. Mas, para não se complicar muito, ele mandava atenuar a repressão às pessoas de melhor condição social, atacando com maior violência justamente os mais humildes. A sua visão antigermânica não deixava dúvida:

“Quando se tratar de pessoas, que pela sua condição social deva se presumir que a sua detenção repercutirá fortemente no meio social local, igualmente as autoridades policiais devem, antes de qualquer procedi-mento, comunicar-se com a Chefia, a fim de receberem instruções” (PY, Aurélio da Silva, Circular 6, reservada, Porto Alegre, 9/fev/1942).

“Quando o Governo do Estado resolveu investir definitiva e seriamente

contra o mais perigoso extremismo de direita – o Nazismo – certamente o fez com o conhecimento e beneplácito do Supremo Magistrado da Na-ção. (Aurélio Py) acrescenta que sempre recebera o apoio e incentivo do presidente, além da orientação e participação direta de Cordeiro de Farias. Dentro da instituição policial, contava com a colaboração de todos os seus funcionários, conseguindo penetrar ‘na trama urdida pelo Partido Nacional Socialista Alemão, cortando-lhe as asas até onde pôde atingir nossa tesoura’. Segundo ele, ‘o céptico ou o displicente, nesta hora, é inconscientemente um traidor em estado potencial” (Correio do Povo, 16/abr/1942, página 5). Não se pode, todavia, afirmar com segurança que tenha partido pes-

soalmente do presidente essa odiosa opressão contra a história teuto-bra-sileira e sua cultura, embora fosse dele o projeto nacionalista e ele a tivesse tolerado. Em 1950, durante a campanha eleitoral que culminaria com sua volta à presidência, nos braços do povo, Getúlio esteve pessoalmente em Santa Cruz do Sul para “o maior comício da história política da nossa terra”, como escreveu a Gazeta de Santa Cruz em sua edição de 26 de setembro. Foi na praça da Prefeitura, reunindo seis mil pessoas, não ape-nas de simpatizantes, mas também integrantes de outras greis partidárias. Em seu discurso – antes de ser aclamado por seus correligionários com a tradicional saudação Viva Getúlio! – Vargas teve que se justificar, e aí acusou Cordeiro de Farias e seus agentes como responsáveis pelos fatos registrados no Rio Grande do Sul durante o regime do Estado Novo:

“Relembro, agora, aquelas folhas, que hoje guardais amarelentas num

de vossos lares. Sabeis como me desagradou e como reagi, quando na Chefia do Governo do País, contra aqueles que, em meu nome e à minha revelia, praticaram atos de violência e de arbítrio, com base em prejuízos

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étnicos. O senador Ernesto Dornelles, por determinação minha, assumiu então a Interventoria do Estado e fez logo cessar a descabida orientação, impondo o respeito e o acatamento que vosso valor cívico estava a exigir. Quando vos argüirem qualquer desses atos de arbítrio, perguntai se os seus autores estão hoje ao meu lado. Por índole de caráter e formação cultural, procuro sempre estabelecer um clima de ordem e de segurança, e foi nessa pacífica atmosfera que mantive o meu governo, no Estado e na República, a todos garantindo ambiente de respeito e tranqüilidade, propício ao trabalho e à produção” (VARGAS, Getúlio Dornelles, Diário de Notícias, Porto Alegre, 23/set/1950, página 2). Como se vê, ele reconhecia os excessos praticados em seu nome, e

se desculpava deles. Mas é preciso considerar, também, que estava em campanha eleitoral, pedindo votos. É interessante que, com o seu regi-me, Vargas contrariou a tese, largamente propagada, e inscrita até hoje à entrada do Palácio Farroupilha, em Porto Alegre, de que “a pior demo-cracia é sempre preferível à melhor ditadura”. Conhecido e reconhecido como ditador, foi guindado à mais elevada das honras e apareceu, ainda em vida, em placas de centenas ou milhares de praças públicas e avenidas por todo o País, e seu retrato era exibido compulsoriamente nas escolas e outros locais públicos. Até em Santa Cruz, onde seu regime fez enormes estragos, a praça principal da cidade deixou de ser 15 de Novembro para transformar-se em Getúlio Vargas, como está até hoje, ostentando até um monumento com o teor da sua famosa carta-testamento.

10. Patriotas, apesar de tudo Ouvindo depoimentos ou pesquisando episódios da época, colhe-

se a clara sensação de que o terremoto foi mesmo arrasador. A polícia gaúcha, comandada por Aurélio da Silva Py, tinha uma revista chamada Vida Policial, que foi uma espécie de órgão oficial das ordens e orien-tações emanadas da cúpula. Ali havia espaço editorial para tudo o que se quisesse dizer contra o povo, a língua e a cultura teuto-brasileira, do que vamos dar apenas dois exemplos do que ali se publicou:

“Não necessitamos da cultura dos dolicocéfalos nazistas (...). Nada

queremos aprender daqueles cuja atitude é um permanente ultraje à ci-vilização: não julgamos, portanto, necessário conhecer a sua língua, cuja permanência em nossos programas de ensino não pudemos tolerar” (RA-BELLO, Eraldo, revista Vida Policial, maio de 1942).

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O historiador Walter Spalding, apesar do nome, foi mais longe. Invocando as origens dos povos, fez suas as palavras de Catão – Delenda Cartago! – para bradar com sua pena respeitada: Delenda Germania! Eis o que escreveu, na mesma revista:

“O povo alemão, entretanto, com o advento de Bismark e sua famosa

Kultur, [regressou] à barbárie absoluta. [...] Saídos de um paganismo que tinha a força por lema e o ódio por base, os antigos germanos, com o advento do cristianismo, foram, a pouco e pouco e com grandes dificul-dades, abandonando seus sentimentos primitivos, de guerras, conquistas e luxúria, ingressando, finalmente, no grêmio da civilização [...] Sempre estiveram com a cega obediência a seus deuses guerreiros. São de origem germânica cerca de 80% das palavras do dicionário bélico [...] Urge, para a tranqüilidade dos povos civilizados, não mais se permitir as imigrações germânicas e japonesas, porque foram e serão verdadeiros cancros incu-ráveis nos seios das democracias [...] Fica, agora, o mundo democrático num dilema tremendo: ou destrói impiedosamente toda a clã germânica, ou a enjaula sistematicamente, conservando-a sob o mais rigoroso contro-le [...]” (SPALDING, Walter, revista Vida Policial, jul/1943). As portarias policiais nas cidades de colonização alemã costumavam

seguir a mesma cartilha. Tudo se fazia para apagar a marca da cultura germana. Em Santa Cruz do Sul, como também na maioria das loca-lidades de colonização teuta, os topônimos alemães foram substituí-dos às centenas por denominações nacionais, lembrando personagens e fatos históricos brasileiros, ou então nomes simplesmente traduzidos para o português. Algumas dessas traduções foram desastradas, como Knoblauch (ou Knopploch) por Linha Botão, ou Rosental por Linha Pri-mavera. Lugares como Linha Schwerin, Lindenau, Fingerhut, Neu Pom-mern e Rettungspikad viraram patrióticas linhas Andrade Neves, Quinze de Novembro, Sete de Setembro, General Osório e João Alves.

Mesmo com todo esse cerco, sucedendo ao Kolonie, o Jornal de San-ta Cruz publicou, em seu primeiro número, corajosamente, um artigo do redator Willy Hansen, com profunda análise sobre a história dos imigrantes alemães e seus descendentes, enaltecendo os seus inúmeros exemplos de patriotismo e brasilidade ao longo do tempo. Este artigo, intitulado A nossa história nos pampas, é do seguinte teor:

“Para ter uma impressão ao menos generalizada sobre a colonização

teuta no nosso Estado, que se apresenta hoje com quase 600 mil almas, é indispensável passar os olhos, embora ligeiramente, sobre sua história,

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que é, ao mesmo tempo, a história do próprio Rio Grande do Sul, cheia de lutas, de sacrifícios, de lances épicos e de um progresso dinâmico e real, que traçou pelo sangue e pelo trabalho a unificação de todos os seus filhos.

No dia 18 de julho de 1824, recebeu Porto Alegre, entre expressões patrióticas e de curiosidade, os primeiros imigrantes teutos. No dia 25 de julho do mesmo ano, chegaram os mesmos no “Passo” do município de São Leopoldo, recebendo aquela cidade, no dia 22 de setembro, oficial-mente, a distinção de Colônia Alemã.

Não negando suas tradições de Mars, já no dia 20 de fevereiro de 1927 tomaram os voluntários alemães de São Leopoldo parte saliente na batalha do Passo do Rosário, na guerra do Uruguai. Na mesma Guerra dos Farrapos (1835-1845) encontram-se muitos outros de acordo com suas idéias e princípios, nos dois campos opostos em luta. Em 1851, na campanha dignificadora contra o ditador Rosas, destaca-se entre as forças brasileiras a legião alemã denominada “Os Brummer”, salientando-se esse corpo de combatentes voluntários, principalmente em 1852, no comba-te vitorioso de Monte Caceres. Na guerra contra o Paraguai, de 1865 a 1870, estão os filhos dos descendentes da velha e orgulhosa Germânia de novo no front, cumprindo com o dever patriótico.

No dia 6 de junho de 1867, efetuou-se, com toda pompa militar, a entrega solene da bandeira glorificada da bateria alemã, na catedral de Porto Alegre, visitando no mesmo ano Dom Pedro II a próspera colônia de São Leopoldo.

Nos anos de 1873-1874, teve lugar a célebre revolta dos Muckers, no Ferrabraz. Em 1874, foi fundada a primeira fábrica de tecidos no Brasil, de propriedade de Rheinganz & Cia. Em 1881-1882, realizou-se a pri-meira Exposição dos Teutos, em Porto Alegre. Em 1887, correu o primei-ro abaixo-assinado em favor das liberdades religiosas, obtendo 7.900 assi-naturas. Em 1890, foi fundada a instituição beneficente de Pela-Bethania. Em 1895, a Liga Ginástica; em 1896, a Liga dos Cantores; em 1898, realizou-se o primeiro Congresso dos Católicos Teutos na Harmonia; no mesmo ano, criou-se a Sociedade dos Professores Evangélicos e, em 1912, a União Popular do Rio Grande do Sul.

O Centenário da Imigração ultrapassou todas as perspectivas, compa-recendo o Dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros, com seus secretários de Estado. Nessa ocasião proferiu Sua Exª dois discursos memoráveis, que ainda hoje estão na memória de todos.

No dia 2 de outubro de 1927, foi inaugurado o Hospital Alemão de Porto Alegre. Em 1929, visitou o Dr. Getúlio Vargas as exposições de São Leopoldo e São João de Montenegro, organizando-se no mesmo ano a Liga das Uniões Coloniais Riograndenses. Em 1930, houve uma expo-sição agrícola em Nova Württemberg. Em 1934, a esplêndida Exposição do Trabalho Alemão em São Leopoldo e a decretação do feriado estadual, intitulado o Dia do Colono, pelo então interventor federal Dr. José An-tônio Flores da Cunha.

Estudando a rápida difusão da colônia teuta no Estado do Rio Gran-

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de do Sul, verifica-se que a colônia de São Leopoldo foi fundada em 1824, a de São João das Missões em 1825, a de Torres/Três Forquilhas em 1826, a de Mundo Novo em 1847, a de Santa Cruz em 1849, a de Conventos em 1853, a do Forromeco em 1855, a de Estrela em 1856, a de Maratá em 1857, a de Santo Ângelo, no município de Cachoeira, em 1857, a de São Lourenço em 1858, a de Nova Petrópolis em 1858, a de Nova Würt-temberg em 1899, a de Serro Azul em 1903 e a de Erechim em 1908.

Nos dias 13 e 14 de agosto deste ano visitou Sua Exª o Coronel Os-valdo Cordeiro de Farias, benemérito Interventor Federal, Montenegro e Maratá, tendo magnífica impressão” (HANSEN, Willy, Jornal de Santa Cruz, 5/set/1941). Esta sucinta resenha histórica da colonização alemã e de suas ações

dentro da comunidade gaúcha tinha o objetivo de mostrar o quanto a germanidade se integrou e participou da vida do Rio Grande do Sul, desde a chegada dos primeiros imigrantes, em 1824. Tinham signifi-cação especial as menções a Getúlio Vargas, ao interventor federal Os-valdo Cordeiro de Farias, este muito conhecido como perseguidor dos alemães e seus descendentes, como já se viu anteriormente, e também Flores da Cunha, amigo íntimo e um dos principais apoiadores de Var-gas. Mas o texto de Willy Hansen, provavelmente difundido em todas as regiões onde havia imprensa teuto-brasileira obrigada a encerrar suas publicações, vai mais longe, entrando no mérito do assunto e demons-trando como as comunidades germânicas eram vistas com preconceito e como elas de fato agiam do ponto de vista de cidadania e plena inte-gração à pátria brasileira. Eis a parte final do artigo:

“A lenda, há meses propalada, de que os prefeitos de origem alemã

não possuem espírito de brasilidade, encontrou, felizmente, devido ao espírito de justiça do ilustre Major Manoel Louzada e da ação sensata do preclaro estadista rio-grandense, a repulsa merecida.

Antes de mais nada, deviam ter dito estes falsos apóstolos de um na-cionalismo sui generis o que entendem por espírito de brasilidade, para demonstrarem que não o confundem com sentimentos outros que não sejam os da dignidade na prática dos atos individuais ou públicos.

Se é exato que o homem, para ser digno e merecer o respeito dos seus concidadãos, deve ser, antes de tudo, um patriota, não é menos exato que o bom nome da Pátria exige que cada um dos seus filhos trilhe o cami-nho da honra na prática das suas ações. Não terá espírito de brasilidade o indivíduo que move os seus passos por motivos raciais ou interesses subalternos.

E, se é verdade que encontramos, ainda hoje, e principalmente cida-dãos de idade avançada na colônia, que não manejam a língua vernácula

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com precisão, a culpa não é deles, porém das administrações anteriores que acharam na marcha da assimilação natural dos nossos homens e da nossa gente o melhor caminho da nacionalização, caminho este que, se bem que pouco dispendioso para os cofres públicos, bastante prejudicial era para os valorosos pioneiros da colônia, que foram sempre os primeiros e os últimos vitimados por esse doloroso status quo.

A história empolgada, a vida diária, o progresso sucessivo e o desen-volvimento extraordinário das colônias teutas nos Pampas, nas suas múl-tiplas formas de atividade, em prol da coletividade brasileira, provam elo-qüentemente, pelos pequenos fatos citados, o nunca desmentido espírito nacionalista de seus homens, o seu amor ao torrão natal e sua dedicação sublime e insuperável à pátria brasileira” (idem, ibidem). A bem da verdade, deve-se dizer que o Estado Novo não foi nada

original com o seu sentimento nacionalista. Vargas, e principalmente os seus prepostos, apenas seguiram um ranço que já grassava desde um passado mais distante. A aversão aos imigrantes era amplamente propa-gada por setores da sociedade nacional, inclusive através da imprensa. Já por volta de 1910, ou pouco depois, voltando de uma visita ao Rio Grande do Sul, a escritora carioca Júlia Lopes de Almeida publicou, num diário do Rio de Janeiro, uma crônica intitulada “Escolas e li-vros”, afirmando que era preciso “dar a luz da instrução ao povo”. E argumentou:

“Num país em que, além da ignorância crassa do maior número de

seus filhos, a colonização estrangeira tende a aumentar cada vez mais, alastrando-se por todo o interior, é indispensável que aumente também o número de escolas e que elas sejam logo fundadas de um modo definitivo. Pelo amor mesmo da nossa nacionalidade, precisamos defender a nossa língua da invasão das outras e torná-la querida pelos estrangeiros que se vêm estabelecer entre nós. Alguns, como o alemão, por exemplo, em vez de procurar por todos os meios e modos falar português e ensiná-lo aos seus filhos, como seria natural pelas necessidades da sua vida em nosso meio, aferram-se ao seu idioma e o impõem à família, segregando-a da co-munidade brasileira” (apud MENEZES, João Bittencourt de, Município de Santa Cruz – Apontamentos Coligidos, 1914). O próprio Menezes, na mesma obra, parecendo aceitar de certa

forma a tese da escritora citada, ressalvou a histórica preocupação dos governantes locais com a questão da educação, citando freqüentes re-gistros nos anais da Câmara sobre a necessidade de escolas públicas para o interior. Na sua avaliação, “pena foi que as contingências do tempo,

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e pesa-nos dizê-lo – a criminosa indiferença dos governos provinciais – não permitissem que estes viessem ao encontro dos esforços das ad-ministrações do Município. Estas souberam cumprir com o seu dever e, se nem sempre conseguiram o seu elevado objetivo, quem, ainda hoje, lhes lançaria a primeira pedra?”

Não se poderia mesmo exigir que as comunidades germânicas do interior, que só falavam alemão, mantivessem suas escolas particulares em língua portuguesa. Segregada não por vontade, mas por falta de alternativa, a germanidade sofrera aqui um grande choque cultural, do qual a barreira da língua era apenas uma faceta. Mas era suficiente-mente numerosa para ter vida própria nos seus guetos e subsistir com seu idioma, sem com isso ameaçar a integridade da pátria brasileira. Em 1888, a população gaúcha não chegava a 400 mil habitantes, dos quais mais de 50 mil eram germânicos. Desde o início da imigração, já haviam chegado pelo menos 160 mil alemães à Província. Naquele mesmo ano, o governo provincial fez um grande esforço para criar aulas públicas, mas, por falta de professores, teve que editar a lei n° 1682, de 13 de janeiro, permitindo que até nestas escolas pudessem lecionar mestres estrangeiros, nas suas línguas de origem, mas ganhando salários inferiores aos nacionais. Então, não se pode simplesmente acusar os ale-mães de terem se aferrado ao seu idioma e se segregado da comunidade brasileira, como afirmou apressadamente a escritora antes mencionada. Na verdade, os imigrantes e descendentes se apegaram às próprias raízes por instinto natural, como ocorre com qualquer povo, e por absolu-ta necessidade de sobrevivência, já que lhes faltaram instrumentos de aproximação com os compatriotas de língua portuguesa.

11. Mágoas do último redator Ainda sobre o fim do Kolonie e a vida efêmera do Jornal de Santa

Cruz (que durou apenas 46 dias) os arquivos da Gazeta do Sul registram um depoimento candente do seu último redator, Edgar Riedl, que era filho e sucessor de José Ernesto Riedl. Em entrevista com ele, realizada em maio de 1977, o jornal escreveu:

“Ele não se sente bem quando fala do jornal onde cresceu, teve a

sua formação e pelo qual, mais tarde, foi o principal responsável. Não se lembra mais das datas, até porque fez questão de esquecê-las. É um capí-

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tulo que agora já longe vai em sua existência. Tantos outros fatos vieram depois. Não quis mais guardar em casa o arquivo. Assim, doou-o todo ao Museu do Colégio Mauá... Edgar Riedl, jornalista registrado na ARI (Associação Riograndense de Imprensa), matrícula 715, carteira 717, de 11/09/39, está com a palavra:

- O jornal Kolonie durou exatamente 50 anos. Fundado por Herms-dorf, passou para Klasing & Kull, indo finalmente acabar nas mãos de Lamberts & Riedl. Iniciei-me desde pequeno. Voltava das aulas no Mauá e ajudava meu pai na oficina. Fazíamos de tudo. Redigimos em alemão, porque o nosso homem do interior não entendia o português. As tiragens variavam. Quando terminamos, tínhamos seis mil. Um colono fazia a assinatura e, no mínimo, seis vizinhos liam com ele. Atingimos todo o município de Santa Cruz e a região do Vale do Rio Pardo, povoada por descendentes germânicos. Saía três vezes por semana, segundas, quartas e sextas. O número de páginas variava, mas geralmente eram oito. Havia textos também em português. Tínhamos como correspondentes os nossos professores do interior. Na cidade, a maioria dos artigos era escrita por meu pai. Trazíamos sempre alguma leitura amena, um conto, o capítulo de algum livro, e já naquela época abordávamos assuntos que ainda hoje não perdem em atualidade. Lembro-me perfeitamente de quando ata-cávamos o problema do reflorestamento, do desmatamento feito para a secagem do fumo. Os colonos quase se rebentavam de rir: “Esse pessoal da cidade não sabe nada. Onde já se viu plantar mato?” A par disso, tra-zíamos noticiário de todo o mundo (SCHERER, Ivo, Gazeta do Sul, 28/mai/1977). Mais adiante, na mesma reportagem, Edgar Riedl conta os proble-

mas sofridos durante a Segunda Guerra, quando o Kolonie, depois de tentar sobreviver em português, foi obrigado a cerrar definitivamente as suas portas, por causa da censura implacável:

“Já no fim da I Grande Guerra, fôramos proibidos de circular. Quan-

do a interdição se levantou, retornamos logo ao alemão. Era uma neces-sidade imperiosa. Se queríamos leitores, tínhamos que escrever na língua que eles falavam. Entretanto, isto não foi nada em relação àquilo que se sucederia quando Getúlio estava no poder e rebentou a Guerra de 39 a 45. Exigiram que o redator responsável fosse jornalista registrado. Uma confusão sem tamanho. Toda hora tivemos que prestar contas do mesmo serviço, atrasando sempre as edições. Meu pai adoeceu. Único filho ho-mem da família, passei uma trabalheira para conseguir a minha filiação à ARI (Associação Riograndense de Imprensa) e os registros do próprio jornal. Quando mesmo fiquei doente, o arquivo particular que mantinha foi devorado pelo fogo (Alles in Deutsch, alles ins Feuer). Pouco ou nada sobrou. A perseguição era geral. O delegado novo, não recordo mais o nome, incentivado pelos inimigos dos teuto-brasileiros, não nos dava tré-guas. Às vezes, colocava um policial na porta da tipografia e não permitia

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que o nosso trissemanário fosse à rua. Faziam o diabo, a gente não era nem dono do próprio nariz. Chamavam e seguravam-me na Delegacia a qualquer hora do dia. Servia, então, de intérprete aos alemães arrebanha-dos ao falarem a sua língua. Atrasava sobremodo as edições. Os assinantes reclamavam, não recebiam o jornal em dia. Os artigos eram censurados. O delegado os lia antes que fossem publicados. Assim, apareciam espaços em branco, temas que, à última hora, fôramos obrigados a cortar. En-tão, o delegado não estava. Horas e horas a fio esperávamos por ele. Um transtorno medonho Os nervos em pandarecos. Não resisti mais. Desisti, e Santa Cruz ficou sem jornal. Se volvermos hoje os olhos ao passado, acharemos impossível que aquilo tudo tenha acontecido, porém, naquele tempo era duro. Depois, convidaram-me para participar de outro empre-endimento jornalístico, porque era o único profissional na cidade. Mas não quis mais saber de nada. A profissão é ingrata, ontem como hoje” (idem, ibidem).

12. A questão religiosa Mesmo passados mais de três séculos da Reforma Protestante, ainda

não haviam cicatrizado de todo as feridas do cisma luterano de 1517. De tradição hegemônica, o catolicismo se impunha através de seus lí-deres religiosos, especialmente os padres jesuítas, que eram ouvidos, respeitados e de certa forma até temidos por seu rebanho. Eram eles que, do alto dos seus púlpitos, não só impunham o comportamento dos fiéis em relação à Igreja, inclusive impedindo os casamentos mistos, mas também dispunham sobre a proibição de bailes e festas nas noites de sábado, por causa da missa dominical, e até como deveriam ser os trajes das moças e mulheres: comprimento até o tornozelo, mangas até o punho e gola hermética, sem qualquer decote.

Os católicos ainda consideravam os seguidores de Lutero como dissidentes desgarrados da verdadeira igreja, e os protestantes, embora menos enfáticos, mantinham claros os motivos justificáveis da separa-ção. Mesmo assim, como parceiros na aventura da imigração, católicos e protestantes tinham espírito cristão e em geral toleravam o convívio. No Brasil Império, entretanto, o catolicismo era a religião oficial do Estado, e aos protestantes só restava a alternativa de se adaptarem às condições oficiais de desigualdade. Quando os imigrantes chegaram aqui, eles encontraram a proibição de construir torres nas igrejas não católicas. Até na distribuição dos lotes houve uma segregação, embora aparentemente consensual, porque assim uns e outros poderiam me-

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lhor organizar-se em comunidades, em torno de suas igrejas e escolas, sem muita interpenetração. Em Santa Cruz, quando foi criado o Cemi-tério Municipal, cada credo ganhou o seu lado para enterrar os mortos. Era uma situação aceita tacitamente pelas duas partes, incorporada à cultura e aos costumes.

Quando, em 1854, o tenente da Armada Francisco Cândido de Castro Menezes concluiu a medição da futura povoação, definindo o traçado do que é hoje o miolo central de Santa Cruz do Sul, foi logo iniciada a distribuição dos lotes. Aí parece ter havido um cuidado para que os católicos se situassem mais ao sul e os protestantes ao norte, separados por uma linha divisória no sentido leste-oeste, coincidindo com a atual rua Júlio de Castilhos, bem no meio do tabuleiro de 16 quadras inicialmente desenhado.

Ao sul desta linha, foi demarcada e construída a igreja católica (1861), no ponto mais elevado da povoação, como convinha e como já determinara a lei de orçamento provincial nº 234, de 9/12/1851, desti-nando quatro contos de réis “para a fundação de uma capela na colônia de Santa Cruz, que será edificada no lugar mais asado”, obra para a qual foi aberta concorrência pública pelo mesmo governo, em 1855. Ergue-ram-se, também ao sul, os colégios São Luís (1871) e Sagrado Coração de Jesus (1874), o Cemitério Católico e, mais tarde, também o Hospi-tal Santa Cruz (1908). Ao redor deles e de uma praça à frente da igreja (praça de São Pedro, hoje Getúlio Vargas), se agrupou a maioria da po-pulação católica. E também foi ali que Guilherme Lewis, empreiteiro da primeira igreja católica, tinha construído para si o primeiro prédio da povoação, uma casa de madeira, na esquina das atuais ruas Marechal Floriano e Ramiro Barcelos (hoje Banco Santander). A Aliança Cató-lica, depois desmembrada e transformada em Aliança Santa Cruz, era um braço social pertencente à igreja, uma espécie de salão paroquial, por isso foi localizada no mesmo quarteirão da igreja matriz.

A mesma coisa aconteceu com os protestantes, ao norte, em torno da sua igreja (1867) e do Colégio Sinodal (1870), a primeira construída na esquina das atuais ruas Ten. Cel. Brito e Borges de Medeiros (hoje Unibanco), e o colégio uma quadra para leste, mas ambos à frente de outra praça, atual praça da Bandeira, que não estava prevista no pri-meiro projeto de Castro Menezes, mas que parece ter sido trocada pela quadra projetada como praça de Santa Teresa, situada na metade cató-

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lica, defronte às atuais instalações do Grupo Gazeta, entre as ruas Ten. Cel. Brito, Ramiro Barcelos, Venâncio Aires e Júlio de Castilhos. Nessa metade norte também se fixou a maçonaria, sociedade secreta proscrita pela Igreja Católica e cujos integrantes, em razão disso, eram todos pro-testantes. Foi ali, também, que o luterano Carlos Trein fez construir a primeira casa de material da povoação, no local em que está atualmente o Edifício Dona Paula. Ainda no setor protestante, surgiram o Clube União e a Sociedade Ginástica, assim como a sede do jornal Kolonie e a própria Intendência Municipal, cuja construção aconteceu a partir de 1886, mostrando que o poder temporal também ficou mais vinculado aos protestantes.

Na igreja católica, o poder real era exercido pelos padres, com sua mão de ferro, fazendo prevalecer sempre o espiritual sobre o mundano. As próprias normas católicas, com deveres mais severos impostos aos fiéis, autorizavam o clero a exercer essa autoridade. Isto se prolongou através de décadas, pelo menos enquanto os jesuítas permaneciam na cidade. Nas missas, os padres negavam a comunhão aos que julgassem indignos. Do alto dos seus púlpitos, faziam censuras públicas, meten-do-se até na vida pessoal dos fiéis, e diziam em quem deveriam votar nas eleições. Eu mesmo, quando votei pela primeira vez para deputado, em 1962, aos 18 anos, segui à risca a orientação da hierarquia eclesi-ástica, botando na urna as cédulas de Adolpho Puggina para deputado estadual e Carlos de Brito Velho para federal. Se alguém desse bom-dia ou boa-tarde a um sacerdote, corria o risco de uma descompostura pública, porque ao padre todos tinham que dizer “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, sem pestanejar nem discutir.

Já nos anos 50, uma vez um jesuíta rasgou um cartaz do filme Os Amantes, exposto na frente da Farmácia Evers, cujo dono também era o proprietário do cinema Apolo. No cartaz aparecia despida a atriz Hedy Lamarr, mergulhando discretamente nas águas de um rio. A história, contada pelo jornalista Sérgio Dillenburg (O Eco, set/1993), ganhou grande repercussão na época e chegou a dividir a cidade. O resultado dessa severidade foi que a parte católica, ao sul, cresceu mais do pon-to de vista vegetativo, porque a multiplicação do rebanho era outro mandamento seguido à risca. Mas os pulmões sociais, econômicos e políticos da cidade foram sendo estabelecidos na metade protestante, ao norte, tendência que se manteve durante muito tempo como carac-

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terística urbana.Como aos protestantes era vedado construir torres em suas igrejas,

registros existentes dão conta de que, lá nas origens, as duas comuni-dades se uniram para juntas comprarem um sino, que seria instalado na igreja católica, para que a cidade pudesse tomar conhecimento não só dos toques da manhã, do meio-dia e do final da tarde, mas princi-palmente dos avisos sobre o falecimento de pessoas de uma e de outra comunidade, já que a freguesia não tinha qualquer outro meio de co-municação. Mas a parceria não prosperou, tendo sido logo desfeita, por interferência da hierarquia católica.

Na expectativa de que o controle do governo imperial não agiria contra uma decisão da comunidade, os protestantes decidiram, então, colocar uma torre em sua igreja, que foi inaugurada em 1878. Segundo o pesquisador Armindo Müller, “até prova em contrário, devemos acei-tar que este foi o primeiro templo protestante, em todo o território na-cional, a possuir uma torre”. E no ano seguinte, já colocavam também um conjunto de sinos, e estava resolvido o problema da comunicação, especialmente das participações de falecimento.

Em 1880, a Câmara indeferiu um pedido da Comunidade Católica para a concessão de uma parte da praça de São Pedro (atual Getúlio Vargas), onde se pretendia construir uma nova matriz. A igreja antiga, já muito pequena, foi, então, duplicada em seu comprimento, para o que a mesma Câmara nomeou uma comissão encarregada de aplicar uma verba de loteria, concedida pelo governo da Província. Vinte anos mais tarde, a igreja foi novamente ampliada, desta vez para as laterais.

Em 1899, enquanto os protestantes falavam pela primeira vez na necessidade de ter um templo maior, os católicos, já com quatro sinos novos instalados, faziam uma coleta para aquisição de um relógio que, do alto da torre, pudesse dar as horas a toda a população. Mas não foram arrecadados os quatro contos necessários. A coleta foi, então, estendida também aos protestantes, já que todos se beneficiariam, e o valor foi alcançado, inaugurando-se o relógio em 1900. Os evangélicos esperariam ainda mais de duas décadas até que, em 1922, começou a construção da atual igreja, em novo local. O maior templo evangélico do País ficou pronto em pouco mais de dois anos, e foi inaugurado no dia 30 de novembro de 1924.

Já em 1925, os católicos também aprovaram um projeto para sua

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nova igreja, que deveria ser construída atrás da antiga. Por decisão do arcebispo Dom João Becker, projetou-se uma obra relativamente mo-desta, já que a arquidiocese de Porto Alegre, à qual pertencia a paró-quia local, na mesma época fazia a campanha para erguer a sua nova catedral, esperando arrecadar dinheiro também na florescente comuna de Santa Cruz. Mas, depois de muita discussão, e até como resposta à bela obra dos protestantes, acabaram surgindo outras propostas, e tudo foi modificado, em favor de um projeto mais ambicioso. Segundo al-guns testemunhos, os padres jesuítas, inconformados com as objeções do arcebispo, teriam levado o assunto ao superior geral da Companhia de Jesus, em Roma. O “Papa Negro”, como era conhecido, tinha quase tanto poder quanto o Papa Pio XI, e a comunidade de Santa Cruz aca-bou conseguindo autorização para executar o mais arrojado dos proje-tos apresentados, do arquiteto austríaco Simão Gramlich, construindo aquela que seria a maior igreja do Estado e a maior em estilo gótico da América Latina. A obra teve sua pedra angular lançada em 1929, mas só seria inaugurada, ainda inconclusa, no Natal de 1939, já sob o im-pério do Estado Novo. Por isso, foi uma missa silenciosa, sem clima de festa, até com certa desolação.

13. Rivais pelo mesmo Deus Viu-se como se alternavam os esforços das duas comunidades reli-

giosas da cidade, com o combustível de uma determinação quase he-róica, combinada com um velado sectarismo, onde cada um dava o seu máximo pela própria causa. É a isso que se deve, em grande parte, a concretização desses magníficos monumentos de fé, plantados sobre alicerces bem firmes dentro da terra, mas apontando suas agudas torres para o céu infinito. Lendo a história, e principalmente ouvindo os que a interpretam, isso parecia ter um jeito de competição, de rivalidade, como é hoje na política e no futebol.

E tinha mesmo. A intolerância religiosa, embora em geral disfarça-da, era um fato. O preconceito não vinha necessariamente da alma das pessoas, mas da cultura da época, muitas vezes por estímulo emanados da cúpula. Conforme o historiador Leandro Telles, o primeiro capelão católico de Santa Cruz, o padre alemão Johann Meinolph Traube, que chegou em 1857, “recebeu uma admoestação do Presidente da Pro-

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víncia, por injuriar os protestantes”, e por isso acabou durando apenas nove meses na colônia. Ainda segundo o mesmo autor, afora este fato isolado, “nos primeiros anos não surgiram questões religiosas em Santa Cruz. Pelo contrário, havia um ecumenismo invulgar na época entre os colonos das duas confissões, chegando a ponto de muitos deles habita-rem sob o mesmo teto. (...) A intolerância surgiria na colônia, segundo (Hardy) Martin, quando apareceram na mesma os titulares de ambas as confissões, padres e pastores”.

O jornal Kolonie, desde a sua fundação, tinha fortes ligações evan-gélicas, e seu instrumento de trabalho era a língua alemã. É possível, en-tão, imaginar o estrago que o regime lhe fez, e que só poderia levá-lo ao fim. Pouco depois, já durante os estertores da guerra, a Gazeta de Santa Cruz (mais tarde Gazeta do Sul) surgiu de uma sociedade de integran-tes católicos. Mas é justo e importante dizer que ambos os periódicos, Kolonie e Gazeta, cada um em seu tempo, se esforçavam sempre para manter posição de neutralidade diante das questões religiosas. Com-prometido com tal filosofia, o jornal às vezes passava trabalho para, como algodão entre cristais, contemporizar situações delicadas, amor-tecer ânimos exaltados e por vezes até atitudes sorrateiras, resistindo às pressões dos que, muitas vezes, só queriam puxar a brasa para o próprio assado. As polêmicas eram freqüentes, e quando desembocavam no jor-nal, era quase sempre através de apedidos. E é natural que, procurando apagar incêndios, a imprensa tenha sofrido incompreensões por parte de alguns, como ainda veremos mais adiante.

Esta realidade só começou a mudar na segunda metade do século 20, com o pontificado do papa João XXIII (1958-1963) e a posse de Dom Alberto Etges como primeiro bispo da nova diocese de Santa Cruz do Sul (1959). A Igreja Católica realizou o Concílio Ecumênico Vaticano II, abrindo o diálogo com as demais religiões, especialmente as cristãs. Começaram muitas pessoas a se livrar das viseiras. Olhando para o lado, viram que ali havia gente caminhando na mesma direção, adorando o mesmo Deus e buscando essencialmente os mesmos objetivos.

Hoje, conquistada a harmonia religiosa, o que é muito bom, por outro lado também não se imagina mais ser possível uma e outra co-munidade reunir força de mobilização capaz de repetir obras como as duas igrejas da cidade. A consciência religiosa do passado, e que hoje não existe mais, resultou em muitas igrejas monumentais construídas

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através dos tempos, inclusive em pequenas e médias comunidades in-terioranas. Sinal dos tempos, certamente, Deus indo para o segundo plano, em nome da sobrevivência e do progresso material.

Por observações feitas, e como já foi dito, podemos concluir que os protestantes, e com eles também os maçons, foram os que mais so-freram com o nacionalismo do Estado Novo e da Segunda Guerra. Com tudo escrito e falado em alemão, e com menor prestígio junto às autoridades brasileiras, eles se mantiveram muito mais ligados e depen-dentes da velha tradição cultural da pátria-mãe. Nas suas comunidades, o alemão era a única língua. Já entre os católicos, os cultos e missas já eram bilíngües, pela presença de brasileiros de outras etnias, além do latim como língua oficial da liturgia.

Justiça se faça, entretanto, aos padres e pastores. Aqueles talvez mais do que estes, desempenharam um papel fundamental no desenvolvi-mento das colônias, desde as origens até pelo menos a metade do sé-culo 20. Muitos deles vieram da Alemanha, e assim comunicaram-se sem qualquer dificuldade com os colonos, que não tinham nenhuma ajuda oficial, porque do governo só recebiam as contas dos impostos. Durante muito tempo, eram os religiosos praticamente as únicas pes-soas que tinham algum preparo intelectual, o que nem os professores costumavam ter. Logo após a emancipação, em 1878, a Câmara Mu-nicipal já se preocupava com isso, mandando dizer ao inspetor geral da Instrução Pública que muitas escolas “não merecem o nome de escola, visto que aos professores mesmo falta o necessário grau de instrução”. E o historiador J. Bittencourt de Menezes lembra que, na mesma época, “decorrido o período de duas gerações, continuou inalterável o descaso dos poderes públicos no tocante a este importantíssimo assunto, e se-remos forçados a convir que (...) é culpa imperdoável dos governantes do regime decaído”. Em outras palavras, isto significa que muitas co-munidades tinham que se virar praticamente sozinhas para conseguir professores. Enquanto estes professores práticos tinham a vantagem de falar alemão, os do governo muitas vezes não sabiam esta língua e sua presença se tornava inócua. Já na primeira sessão ordinária, em outubro de 1878, a Câmara deliberou pela remoção de um professor que só fala-va português porque os alunos, não o entendendo, acabaram não indo à escola. Foi assim que, no meio de um despreparo generalizado, padres e pastores se tornaram importantes conselheiros para as comunidades

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também no campo mundano, seja em questões econômicas, seja em orientações técnicas e de organização social, para a construção do bem-estar material da população.

Eram padres católicos muitos dos mais destacados condutores da germanidade no Rio Grande do Sul, inclusive comandando a fundação de novas colônias. O padre Theodor Amstad foi a grande figura do cooperativismo, os padres Balduino Rambo e João Sehnem são auto-res de importantes livros na área da ciência e da técnica. Cada vigário era um orientador na sua paróquia. Na região de Santa Cruz, o padre Emílio Backes, já nos anos 50, ao tempo em que era vigário de Trom-budo (atual Vale do Sol), junto com seu paroquiano Harry Werner e outros líderes, foi um grande incentivador do movimento que resultou na fundação da Associação dos Plantadores de Fumo em Folha, atual Associação dos Fumicultores do Brasil – Afubra. Poucos anos depois, o projeto de emancipação da Vila Teresa só ganhou o apoio sólido da população depois que o cônego José Maria Kroetz aderiu ao movimen-to, daí surgindo o município de Vera Cruz. Logo em seguida, foi o também pároco de Vera Cruz, padre Albano Berwanger, que se tornou conhecido como Sojabohnenpater (Padre do Feijão-Soja), por sua efeti-va atuação junto aos agricultores, depois que a soja foi trazida à região como alternativa de produção agrícola diversificada.

Bem antes disso, já os padres, especialmente os jesuítas, se encarre-gavam de organizar novas colônias nas regiões ocidentais de Santa Ca-tarina e do Paraná. Foi o jesuíta João Evangelista Rick quem articulou e criou a colônia de Porto Novo, atual Itapiranga, no extremo oeste de Santa Catarina. O contrato foi elaborado sob orientação do advogado João Bittencourt de Menezes e assinado no dia 28 de janeiro de 1926, na sede da Caixa União Popular de Santa Cruz. A escritura de compra dos primeiros 200 lotes, cada um com 24,8 hectares, aconteceu em novembro do mesmo ano, como contou uma testemunha presencial do fato, o santa-cruzense João Guilherme Werlang, em publicação da Gazeta do Sul em 15 de novembro de 1969. Segundo consta, ali só podia adquirir um lote aquele agricultor que fosse católico e conheces-se a língua alemã. Tal condição de homogeneidade religiosa e cultural garantiria às novas comunidades maior harmonia e melhores condições de desenvolvimento. Muitos santa-cruzenses acabaram emigrando para lá, expandindo as fronteiras germânicas no Brasil.

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As igrejas também tinham nas colônias de imigração européia, especialmente alemãs e italianas, o grande celeiro de vocações para o seu pastoreio de almas. Inúmeros seminários se espalharam por todas as regiões, lotados principalmente de filhos de agricultores. A lista do episcopado gaúcho no século 20 está cheia deles. Tivemos, pelo Rio Grande afora, figuras como Dom João Becker, Dom Vicente Scherer, Dom Antonio Reis, Dom Edmundo Kunz, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Alberto Etges, Dom Cláudio Colling, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Cláudio Hummes e outros. Os dois últimos até foram muito lembra-dos como candidatos de peso nas eleições papais de 1978 e 2005. Nas colônias italianas, acontecia a mesma coisa.

Diversos sacerdotes e religiosos se tornaram conhecidos, especial-mente nas colônias, como recrutadores de vocações. Eles chegavam nas comunidades, em geral pilotando um jipe com tração nas quatro rodas, penetravam pelas mais recônditas bibocas, ganhavam espaço nas escolas e celebravam missas nas capelas, oferecendo santinhos às crianças que manifestassem interesse pelo sacerdócio ou pela vida religiosa. Por volta dos anos 50, os irmãos maristas tinham o Bruder Ulrich, os francisca-nos o Frei Vitor Mallmann, os jesuítas o Pater Darupp, enquanto os seculares faziam seu trabalho através dos próprios párocos. Chegava a haver até uma certa disputa entre eles em torno dos meninos de boa formação familiar e cristã.

Muitos desses garotos, saindo para os seminários aos 11 anos de idade, não tinham muita segurança vocacional. Por isso, grande nú-mero deles interrompia a caminhada, voltando ao mundo secular com estudo e capacitação humanística para assumir funções de professor e outras que exigissem aptidões morais e intelectuais. O jornal Gazeta do Sul, a exemplo de inúmeros outros periódicos do interior, teve em sua redação muitos ex-seminaristas, principalmente até a década de 70, quando ainda eram raros os cursos de jornalismo, e era possível obter o registro profissional sob algumas condições. Mário Assmann, Lúcio Mi-chels, Guido Ernani Kuhn, Benno Bernardo Kist, Elstor Werle, Romeu Neumann, Norberto Nardi, Irineu Gapinski, Álvaro Bourscheidt e Ivo Scherer (este último evangélico) são exemplos de jovens que saíram dos seminários para a redação. Também a Rádio Gazeta, fundada em 1980, ganhou reforços da mesma fonte, como Ruy Alberto Kaercher e Pedro Carlos Thessing.

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14. Salvando o nome da cidade No início da década de 40, pela primeira vez em 50 anos, a impren-

sa de Santa Cruz estava totalmente zerada. Durante mais de três anos, o município e a região ficaram sem qualquer meio de comunicação impressa. Com o Kolonie definitivamente sepultado, desaparecera tam-bém o caudal que repercutia os anseios da comunidade. Havia umas poucas instituições organizadas, das quais a mais visível e representativa era a Associação do Comércio, Indústria e Agricultura, que tinha 3.200 sócios, reunindo praticamente todos os agentes econômicos do Muni-cípio, na cidade e no interior, e por isso seus dirigentes se mantinham atentos ao que acontecia e ao que poderia acontecer. Sabiam todos que as autoridades viam Santa Cruz como um refúgio de nazistas. É verda-de que, na década de 30, ao tempo em que Getúlio ainda era amigo e parceiro comercial de Hitler, o partido do Führer tivera no Municí-pio um pequeno grupo de simpatizantes. Mas fora ainda nos anos 30, bem antes das loucuras da guerra, que tantos problemas trouxeram às comunidades teuto-brasileiras, entre elas de modo muito particular o município de Santa Cruz do Sul.

Na ausência repentina de um jornal, após o desaparecimento do Ko-lonie, a Associação do Comércio, Indústria e Agricultura desempenhou muito bem o seu papel de defender os interesses da população. Naquele período, quando Francisco J. Frantz era secretário geral da entidade, o governo municipal estava entregue a um forasteiro, o policial aposenta-do Dario de Azevedo Barbosa, interventor nomeado pelo Governo para zelar pelos interesses do Estado Novo. E o Delegado de Polícia François Nehmé emanava leis e as fazia cumprir com truculência. Chegou a criar um Imposto de Guerra, extorquindo dos colonos, pessoas humildes e menos esclarecidas, importâncias que variavam entre 30, 60 e 90 mil réis. Como os agricultores também estavam amparados pela Associa-ção, esta resolveu agir junto à Secretaria de Segurança do Estado, que encontrou o dinheiro do tal imposto depositado em conta particular do Delegado, em Porto Alegre, e ele teve que devolver cada centavo.

Em 1944, por causa de um decreto-lei do governo Vargas para eli-minar a duplicidade de nomes, quase Santa Cruz teve sua denominação alterada para Itororó, Petituba ou Andrade Neves. Itororó é um nome de origem tupi, que significa “pequena cachoeira”, e é também como

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se chama o arroio em cuja margem se travou importante batalha na Guerra do Paraguai. Petituba, também de origem indígena, quer dizer “muito tabaco”, e o nome, mais tarde, acabou atribuído a uma escola estadual da cidade. E Andrade Neves, o Barão do Triunfo, é um ilustre filho de Rio Pardo e herói da mesma Guerra do Paraguai, ferido de morte na batalha de Lomas Valentinas.

Esta mudança de nome, que seria feita por indicação do Município ao Instituto de Geografia e História, só não aconteceu por uma gaucha-da engendrada pelo secretário geral da Associação do Comércio, Indús-tria e Agricultura de Santa Cruz, Francisco J. Frantz, e pelo advogado Arthur Germano Fett, pai de uma menina que viria a tornar-se a es-critora Lya Luft. Ambos eram amigos fraternos e cumpriram, a quatro mãos, a missão de salvar o nome de Santa Cruz, o que o próprio Frantz contou em detalhes, mais de 30 anos depois, logo após o falecimento de Fett. Escreveu ele:

“Por ocasião de um coquetel da Brigada Militar, no Corinthians, foi

a última vez que falei com o dr. Arthur Germano Fett, cuja morte senti como se fosse a de um irmão mais velho. Ainda não tivéramos a oportuni-dade de nos falar após o seu regresso da viagem à Europa e Oriente Médio. A praxe, num coquetel, é circular e cumprimentar os amigos e conheci-dos. Pois, naquela noite, ficamos os dois parados num canto, bebericando dois Drurys com soda, quando me contou passagens de sua viagem. [...] Depois disso, e dando gostosas risadas, relembrou uma passagem talvez pouco conhecida da história de Santa Cruz, quando ambos atrapalhamos o projeto do prefeito Dario de Azevedo Barbosa, durante o Estado Novo, que, à toute force, quis mudar o nome de Santa Cruz” (FRANTZ, Fran-cisco J. – Gazeta do Sul, 24/abr/1976). Na seqüência, escreveu ainda meia dúzia de parágrafos para divagar

sobre a figura e as qualidades de Dario Barbosa, alinhando algumas características e méritos desse prefeito solteirão, como o início do calça-mento das ruas da cidade e a ação enérgica “em defesa dos bens móveis e imóveis dos nossos concidadãos, quando um Juiz de Direito jovem e impetuoso, muito estudioso dos seus livros de Direito, mas detentor de escassa cultura geral, mais o Promotor Público, mais o Fiscal de Vendas e Consignações lideraram a turba quando, com a notícia do afunda-mento dos nossos navios, em 1942, foi aqui ensaiado um quebra-que-bra geral”. Logo a seguir, falou longamente sobre a quase mudança de nome da cidade:

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“Naquela ocasião, o Estado Novo baixou um decreto-lei eliminando a

duplicidade de nomes de municípios e cidades no País. No caso de haver duas cidades com o mesmo nome, este permanecia com a cidade mais antiga, e as demais que entrassem em entendimentos com o Instituto de Geografia e História (hoje Instituto de Geografia e Estatística), sugerindo outro nome. Havia em Goiás, Espírito Santo e Bahia cidades mais antigas com o nome de Santa Cruz.

O Dr. Fett tinha um amigo e colega de turma, Dr. Álvaro Batista de Magalhães, muito culto, intelectual brilhante e poliglota. Entre as diversas línguas que falava fluentemente, incluía-se o guarani, que aprendera numa temporada de estudos na Universidade de Asunción. Acho que até foi au-tor de vários dicionários editados pela Globo. Exercia, naquela ocasião, as funções de Diretor Geral do Departamento das Prefeituras Municipais, repartição que coordenava e fiscalizava os assuntos dos municípios.

Nesse encontro casual, o Dr. Magalhães alertou ao Dr. Fett que um grupo de funcionários de relativo baixo nível de instrução (nomeados por pistolão) estavam convencidos de que na cidade e no interior do muni-cípio de Santa Cruz estava-se tramando contra a integridade da Pátria, através de entidades nazistas, e a organização de regimentos de atiradores e ulanos, bem armados e bem municiados.

Contou ainda o Dr. Magalhães ao Dr. Fett que mencionados auxi-liares estavam querendo convencer o prefeito Dario Barbosa que Santa Cruz merecia uma lição que a arrastaria ao ridículo eterno. Na alteração do nome de Santa Cruz, o Prefeito deveria sugerir um nome guarani, que significasse aquilo que a civilização se habituou a designar pelos mais variados vocábulos, como sejam, banheiro, patente, privada, sanitário, water closed, lugar que o índio, no seu restrito vocabulário, denominou de forma mais prosaica.

O autor destas poucas (!!!) e mal traçadas, naqueles saudosos tempos, exercia as funções de secretário geral da Associação do Comércio, Indús-tria e Agricultura de Santa Cruz , com 3.200 associados. Com a suspensão do Congresso, das Assembléias Legislativas e das Câmaras Municipais, a extinção do habeas corpus, o baixo nível moral da Polícia e o fechamento do último jornal, a Associação passou a ser o estuário de todas as queixas, tanto dos moradores da cidade como dos campos.

Recebi a supramencionada informação do Dr. Fett, mas ponderei na ocasião de que tinha certeza que o prefeito Dario jamais submeteria Santa Cruz ao vexame que lhe fora sugerido pelos “patriotas” da DPM. Procurei o Prefeito no seu gabinete e perguntei-lhe a respeito do assunto. Afirmou que efetivamente desejava mudar o nome da cidade, e que os nomes que entravam em cogitação eram Itororó, Andrade Neves e Pe-tituba (pety=fumo; tiba ou tuba=muito). Faria uma pesquisa de opinião entre seus amigos e depois daria a sua decisão. Ponderei, com todo o respeito, que o assunto teria solução mais fácil se adicionássemos a iden-tificação “do Sul” ao nome do Município. Carrancudo, afirmou que o nome Santa Cruz estava muito ligado ao nazismo, à Alemanha de Hitler. Contestei que o nome Santa Cruz era nome tradicional, desde a fundação

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da colônia, em 1849. Lembrava, sim, o Santo Lenho, ou o segundo nome do nosso País, pouco depois da descoberta por Cabral. Nada adiantaram minhas ponderações. Lealmente o informei que usaríamos de todos os recursos lícitos à nossa disposição para fazer prevalecer o nosso ponto de vista, que era também o de todos os diretores da Associação.

Procurei o Dr. Fett que, naquela hora, se encontrava no Fórum. E lá mesmo, dirigido ao então Major Osman Plaisant, Diretor do Departa-mento de Geografia e História, o finado Diretor da nossa Faculdade de Direito redigiu o telegrama, expondo o ponto de vista da comunidade sob o aspecto da tradição e do bom conceito dos produtos de Santa Cruz no mercado interno e externo. Tudo isto no estilo escorreito, preciso, sinteti-zado do bacharel em Direito brilhante, culto e experimentado.

Não sei se devido ao telegrama bem redigido, ao prestígio da Liga de Defesa Nacional ou dos 3.200 associados da Associação do Comércio, Indústria e Agricultura de Santa Cruz, a verdade é que, poucos dias de-pois, assinado pelo Diretor do IBGH, Major Osman Plaisant, recebemos telegrama informando que aquilo que pleiteávamos fora aprovado por unanimidade em reunião do Conselho.

Santa Cruz passou a ser Santa Cruz do Sul. O Prefeito ficou muito ressentido com aquilo que considerou uma intromissão indébita de es-tranhos em assuntos da administração municipal. Mas, depois de alguns meses, digeriu a pílula.

Homenageando um companheiro com o qual, durante mais de 25 anos, tive a ventura de privar semanalmente, por ocasião de jantares do Rotary, e de cuja amizade sempre me orgulhei e continuarei me orgulhan-do, desejo realçar-lhe a faceta de jamais se ter omitido nos momentos de-cisivos e difíceis para a comunidade. E, por temperamento, entrava firme, rijo, sem calcular as conseqüências. Não tendo nascido aqui, o dr. Fett fez por sua terra de adoção o que a maioria dos aqui nascidos não conseguiria fazer por ela, mesmo se vivesse 500 anos” (idem, ibidem).

15. Bola ao centro, zero a zero Em janeiro de 1945, já se sentia que a Guerra estava perdendo o

fôlego, e a ditadura do Estado Novo também. Aí foi lançado um novo jornal, a Gazeta de Santa Cruz, editada pela Editora Santa Cruz Ltda., em língua portuguesa, atendendo a uma ansiedade da população e pre-enchendo um grande vácuo numa comunidade que tinha o vício da leitura e não se dava bem sem o seu jornal. Francisco J. Frantz ainda era um jovem, prestes a completar 28 anos. Seus parceiros da nova emprei-tada eram Leopoldo Morsch, Willy Carlos Froehlich, Arthur Carlos Kliemann, Rolph Bartholomay, Erny Ludwig, Bruno Agnes e Ricar-do Scherer. O grupo, que surgiu no Rotary Clube e na Associação do

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Comércio, Indústria e Agricultura, era predominantemente católico, ao contrário do Kolonie, que fora fundado por evangélicos e maçons, em 1891, coincidentemente também no mês de janeiro. O jornal fun-cionava numa sala anexa à Associação, no atual endereço do Sicredi, a poucos passos da gráfica que o imprimia, situada nos fundos.

Aliás, embora de origens diferentes e em tempos diferentes, Kolonie e Gazeta tiveram muitas afinidades. A filosofia e a linha editorial do novo e do antigo jornal eram muito semelhantes, apenas a língua era outra. Na primeira edição da Gazeta de Santa Cruz, foi publicado o se-guinte editorial de apresentação, sem título, para explicar os principais objetivos do novo periódico:

“Após o transcurso de quase um lustro, ressurge com a Gazeta de San-

ta Cruz um órgão de imprensa que vem ao encontro dos mais justos e acalentados anseios do povo deste Município.

De inadiável necessidade, como decorrência do desenvolvimento, progresso e lugar preponderante que ocupa o município de Santa Cruz, hoje Santa Cruz do Sul, no concerto das demais comunas do Estado, impunha-se, inobstante todos os tropeços, dificuldades e obstáculos que invariavelmente se antepõem a tais empreendimentos, o aparecimento de um órgão informativo, com a finalidade de propugnar, por todos os meios, pelo progresso e desenvolvimento deste recanto da nossa Pátria.

Contrariando o ceticismo de muitos, surge, agora, a Gazeta de Santa Cruz, modesta em seu formato e nas suas aspirações, mas impregnados os seus responsáveis da melhor boa vontade, com o objetivo de contribuírem na consecução dos problemas que afligem este município. É o produto do idealismo de uma plêiade de brasileiros aqui residentes, uns desde o nas-cimento e outros radicados há vários anos, todos, entretanto, irmanados e possuídos dos mesmos sentimentos e desejos de labutar pelo engrandeci-mento desta terra, dentro do Rio Grande, para a grandeza do Brasil.

Ferir, na medida do possível, todos os problemas – que dizem res-peito à vida do município e do seu povo, numa colaboração constante, harmoniosa e profícua com todas as autoridades e em estreita união com o comércio, indústria, agricultura e classes liberais – eis os objetivos pri-mordiais do órgão que hoje se apresenta, imbuído dos mais nobres e sãos intuitos de bem servir à sua terra e à sua gente.

E, não trepidando embrenhar-se na senda tão sutil quão árdua do jornalismo, precisamente nesta hora de tão graves apreensões em que se debate a acrisolada humanidade e em que a nossa Pátria se vê assoberbada pelos mais graves problemas de sua vida histórica, contribuindo com nos-sa parcela, dentro das diretrizes traçadas pelo eminente homem público que dirige os destinos da Nação, e que em 37 lançou as bases de um Brasil Novo, é porque desejamos formar ao lado daqueles que objetivam a con-cretização dos ideais que devem e precisam ser a preocupação constante

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de todos os brasileiros: um Brasil politicamente unido, economicamente forte e universalmente acatado.

Assim como incontestável tornou-se a constante biológica da insepa-rabilidade do homem e do meio, com o aparecimento da imprensa, de logo, evidenciou-se a indiscutível inseparabilidade desta entre o homem e a coletividade, como meio de ligação e divulgação.

Eis por que não mais era possível contemporizar-se a iniciativa de dar a Santa Cruz do Sul um órgão, através do qual pudesse o seu povo, desde o centro de sua urbs até o mais recôndito da vasta área que forma o seu próspero município, servir-se de suas páginas para uma aproximação afetiva, como conduto informativo, dando a conhecer os produtos de sua faina, mormente em se tratando de uma zona colonial de grandes possi-bilidades, de uma cidade possuidora de um vasto parque industrial e de vida comercial intensa.

Os reclamos para o aparecimento de um jornal partiam de todos, e não se fizeram em vão.

Transposto o período de organização, vencidos os naturais obstáculos, nos quais o fator tempo teve preponderante influência, aparece, enfim, a Gazeta de Santa Cruz, disposta a cumprir o programa assentado pelos seus idealizadores.

Hoje, já quase no fim da tremenda carnificina que sacode o Mundo todo; amanhã na Paz, depostas as armas que já ceifaram milhões de vi-das.

Hoje colaborando nos problemas decorrentes da mobilização da guerra, na qual nos encontramos ativamente empenhados, para desagravo das afrontas sofridas, e amanhã contribuindo na realização satisfatória dos múltiplos problemas nacionais, no setor que nos for proporcionado.

Cumpriremos a nossa missão e os nossos objetivos, sejam quais forem os obstáculos e, para tanto, contamos com o bom acolhimento, auxílio e compreensão do povo de Santa Cruz do Sul, ao qual incitamos à união em torno do ideal comum: batalhar pelo engrandecimento do Brasil” (Gazeta de Santa Cruz, 26/jan/1945). Sabia-se que o terreno era fértil. Quando deixou de circular, o Kolo-

nie tinha tiragem de seis mil exemplares. A dúvida era se o interesse por um jornal em língua portuguesa seria o mesmo. A tiragem inicial da Gazeta foi menor, até porque no interior, onde morava a maioria da po-pulação, o português era uma língua quase desconhecida. O município de Santa Cruz, que se tornara Santa Cruz do Sul no dia 1º de janeiro de 1945, tinha então 55 mil habitantes, dos quais apenas 12 mil moravam na cidade. Havia 357 fábricas e 278 casas comerciais.

Como se pôde ver no editorial de apresentação, a Gazeta teve um gesto de boa vontade em relação a Getúlio Vargas e seu regime. O res-peito ao governo era levado muito a sério, fosse quem fosse o governan-

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te, isso fazia parte da cultura do povo germânico. Quanto ao governo municipal, ele tinha à frente Dario de Azevedo Barbosa, interventor nomeado pelo regime, que no mesmo ano, com a queda de Vargas, se-ria sucedido por Willy Carlos Froehlich, justamente um dos sócios do jornal. Aliás, após a reformulação partidária acontecida nesse ano, parte do grupo fundador da Gazeta ligou-se ao Partido Social Democrático (PSD) de Froehlich. Logo depois, um outro sócio, Bruno Agnes, tam-bém assumia como prefeito substituto. Este, por sua vez, foi sucedido por um irmão do diretor do jornal, o prefeito eleito Alfredo José Klie-mann (1948-1952). Com isso, ficou a Gazeta marcada como jornal do PSD. E aí surgiria, em 1954, como contraponto, A Voz do Progresso, intitulando-se órgão do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

16. A história, por ele próprio Só em janeiro de 1975, quando a Gazeta festejou 30 anos de cir-

culação, Francisco J. Frantz, o sócio que assumira a direção em 1950, para pilotar a nau durante mais de 36 anos, viria a escrever em síntese os detalhes da história que as edições iniciais não registraram: como se constituiu a sociedade e como o jornal foi lançado. Eis o que ele publi-cou, para resgatar esta história:

“Tem acontecido com freqüência que alunos dos educandários locais,

entre as tarefas que lhes atribuem seus mestres, recebessem também a de pesquisar a respeito da vida do jornal local. É nas ocasiões em que atende-mos os jovens estudantes, e só em tais oportunidades, que nos lembramos da lacuna. Jamais foi feito um relato histórico, mesmo resumido, da Ga-zeta do Sul. Como muitas outras, as cousas ficaram na intenção. E dizem que os caminhos para o inferno estão cheios de boas intenções.

Nenhuma oportunidade melhor do que agora se nos oferece para o breve relato da história da empresa jornalística, quando estamos à véspera de 30 anos de edição do jornal. No dia 26 de janeiro deste ano, comemo-ramos 30 anos de existência, pois o jornal circulou, pela primeira vez, no dia 26 de janeiro de 1945.

A estruturação da empresa, porém, teve início dois anos antes. Em Santa Cruz, desde 1891, circulara o jornal Kolonie, excelente trissemanário, de grande conceito na região. Com a entrada do Brasil na guerra, o jornal, editado em língua alemã, deixou de circular e, sob a responsabilidade do ad-vogado dr. Oscar de Holanda Cavalcanti, pernambucano, membro da Aca-demia Rio-grandense de Letras e inteligente profissional, circularam alguns números do Jornal de Santa Cruz. Depois, Santa Cruz ficou sem jornal.

O assunto preocupou ao nosso amigo Bruno Agnes e a outros santa-

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cruzenses. No Rotary, um pequeno grupo discutiu a possibilidade de fazer um semanário de pequeno formato. Bruno ficou encarregado de entrar em contato com alguns não rotarianos, que talvez se entusiasmassem com tal iniciativa. Falou com seus velhos amigos da Soteca, o Willy Froehli-ch, Leopoldo Morsch e comigo. Estudamos o assunto, inclusive na parte gráfica, valendo-nos da vizinhança e amizade com o sr. Aloísio N. Rech, gráfico de comprovada tarimba.

De todos os estudos e demarches resultou a constituição de duas em-presas: a Editora Santa Cruz Ltda., que iria editar o jornal; a firma Aloísio Rech & Cia. Ltda., que iria compor, paginar e imprimir o jornal, median-te o pagamento de determinada importância, por número editado.

Motivados por Bruno Agnes, passaram a integrar a empresa os seus companheiros rotarianos dr. Arthur C. Kliemann, bel. Rolph H. Bartho-lomay e o sr. Erny F. Ludwig, então gerente do Banco da Província local. De parte da Soteca, entraram os seus sócios econ. Willy Carlos Froehlich, econ. Leopoldo Morsch e Francisco J. Frantz. Associou-se ainda à empre-sa o sr. Ricardo Scherer, que freqüentava os escritórios da Soteca e da As-sociação, onde recebeu todo o nosso apoio desinteressado na fundação das empresas Indústria de Laticínios e Cervejaria Polar. Diga-se de passagem que tais empresas receberam muito apoio coletivo, baseado na cooperação de pessoas interessadas no bem comum (Allgemeine Wohl), e é mesmo uma pena que Santa Cruz depois as perdesse de forma tão melancólica...

Com a admissão de Willy, Leopoldo e Francisco, o sr. Aloísio Rech passou a ter a metade do capital da firma Aloísio Rech & Cia. Ltda., fican-do o restante dividido entre os três novos sócios, em partes iguais, como também eram iguais as partes dos sócios da Editora Santa Cruz Ltda.

Com o reforço de capital, o sr. Aloísio Rech comprou, em Santana do Livramento, alguns cavaletes de tipos e uma impressora Koenig & Bauer, que durante muitos anos imprimira o jornal do Gen. José Antonio Flores da Cunha, inclusive quando este era intendente de sua cidade natal.

Conforme pesquisa que em certa ocasião fizemos junto à fábrica Ko-enig & Bauer AG, em Würzburg, Alemanha, a valente máquina, que du-rante muitos anos ainda imprimiu a Gazeta de Santa Cruz, veio para o Brasil importada pela firma H. Laemmert & Irmão, Rio de Janeiro, editores por muitos anos do Almanaque Laemmert, de fama e circulação nacional.

A importação da máquina se efetivou em 1847, quando imperador do Brasil Dom Pedro II, ou seja, apenas 39 anos após a abertura dos por-tos brasileiros ao comércio internacional, por Dom João VI.

Mas, mesmo que tenha desempenhado papel importante na vida e desenvolvimento da Gazeta de Santa Cruz, primeiro título deste jornal, não estamos aqui para falar em impressora, mas sim para fazer um relato sucinto do que foram os 30 anos do jornal. E isto prometemos para a próxima edição, se Deus quiser” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 18/jan/1975).

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17. A longa burocracia O relato do Diretor Frantz, para comemorar o 30º aniversário do

jornal, efetivamente continuou na edição seguinte, três dias depois. Ali ele descreveu a longa luta contra a burocracia oficial, repetindo muitas das dificuldades que tinham abatido o velho Kolonie, até finalmente sair a primeira edição, a 26 de janeiro de 1945:

“O registro, então obrigatório, no Departamento de Imprensa e Pro-

paganda (DIP) levou quase dois anos e a Gazeta de Santa Cruz, ao invés de circular em 1943 ou 1944, só pôde ser editada em princípios de 1945. Para diretor, havíamos escolhido o dr. Arthur Carlos Kliemann, médico de ilibado conceito, diretor do Hospital Santa Cruz, idealista, e que, nos muitos anos que já clinicava em Santa Cruz, havia dado provas, sob as mais diversas formas, de seu interesse pela comunidade, exercendo a pre-sidência ou integrando doutra forma as diretorias de entidades beneficen-tes, culturais e desportivas. O seu nome no cabeçalho do jornal diria, de saída, aos comunícipes da seriedade do empreendimento.

Diga-se de passagem que o DIP, nos dois anos em que lutamos pelo registro do jornal, tendo mesmo um representante permanente no Rio tratando do assunto, fez as exigências mais absurdas, dentro da conhecida filosofia de “criar dificuldades para vender facilidades”. Parece que no DIP havia quem se alimentasse com certidões de registro de nascimento, pois só do dr. Kliemann o referido documento foi exigido por quatro vezes.

Foi o primeiro redator do jornal o bel Rolph Harry Bartholomay (dr. Oly), também escolhido por unanimidade. Culto, idealista, despreendido das coisas do dinheiro e ligado por laços de amizade a todos os sócios, ao dr. Oly tocou a grande responsabilidade de dar-lhe a orientação redatorial firme, segura e honesta, que tem sido um dos característicos da Gazeta. Nenhum dos sócios possuía a mínima experiência de fazer jornalismo. Animava-os apenas o ideal de dar um jornal a Santa Cruz.

O jornal estava para sair. Tudo pronto para circular em 17 de janeiro, quando, à última hora, nos veio mais uma exigência. O jornal não circu-laria sem o registro do redator na Associação Riograndense de Imprensa (ARI). Era dia de avião. O Junkers F-13 de cinco passageiros da Varig fazia duas vezes por semana a linha Cruz Alta-Santa Cruz-Porto Alegre. A pressa justificava a despesa extra e lá seguiu o dr. Oly, acompanhado dos melhores votos de seus companheiros.

Dizem as velhas “crônicas verbais” do jornal que nosso redator, antes de embarcar, já no aeroporto, soprara aos ouvidos do falecido comandan-te Ruhl: “Eu não sou muito bom de avião (aliás, nunca tinha voado), por isso peço o favor de evitar os pinotes e as folhas-secas e, por gentileza, voe o mais baixo possível”.

Uma vez em Porto Alegre, conseguiu ser proposto, aceito, inscrito e receber a carteira da ARI. Tudo isso em menos de quatro horas, graças à

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interferência do dr. Hilton Caldas, seu contemporâneo de Faculdade de Direito e diretor da ARI. E foi assim que o jornal pôde circular no dia 26 de janeiro de 1945.

Gazeta de Santa Cruz, eis o primeiro título, circulava todas as sextas-feiras, em pequeno formato – 48x32cm. Aos drs. Kliemann e Bartholo-may podemos atribuir grande parcela no êxito do empreendimento.

O dr. Kliemann, médico de grande clientela, nos anos em que res-pondeu pela direção do jornal, nos visitou três ou quatro vezes para bater um papo amistoso, com o indefectível cigarro na mão. Depositava grande confiança nos seus companheiros e sócios, pois estava ciente de que qual-quer bomba manipulada no jornal estaria nas suas mãos. Com muito pul-so e grande coragem, durante anos conscientemente assumiu esse risco.

Ao dr. Rolph coube, por mais de ano, a tarefa de estruturar a redação e traçar a conduta que hoje lhe assegura o conceito que o veículo desfruta na região. Graças à filosofia adotada e ao início auspicioso, podemos hoje afirmar, de fronte erguida, que, em 30 anos, o jornal não curvou jamais a cerviz à prepotência ou interesses inconfessáveis; em 30 anos, o jornal não foi compelido, uma vez sequer, a retratar-se ou retificar uma notícia; em 30 anos, o jornal não teve uma única questão trabalhista; em 30 anos, em nossas oficinas não tivemos um único acidente do trabalho ou caso de moléstia profissional.

Acreditamos muito que, quanto aos três últimos itens, a sorte nos tenha favorecido. Por outro lado, tais dados possibilitam ajuizar a respeito das normas que têm orientado o jornal, desde a fundação, em todos os seus setores” (FRANTZ, Francisco J., Gazeta do Sul, 21/jan/1975)

18. Até Deus era nazista... Bem modesta no início, a Gazeta era feita praticamente só por ama-

dores e colaboradores, como se viu no depoimento de Frantz. Quase na mesma época, como reflexo da guerra e da campanha nacionalista, instalou-se em Santa Cruz uma unidade do Exército, presumivelmente para vigiar mais de perto essa população germânica com seus supostos quintas-colunas, à semelhança do que já tinha acontecido em 1917, por ocasião da Primeira Guerra Mundial, quando se abrigou na cida-de, transitoriamente, o 24º Batalhão de Infantaria. Desta vez, era o 3º Batalhão do 7º Regimento de Infantaria, recebido de braços abertos pela comunidade, entre cujos oficiais havia sempre os intelectuais, que escreviam artigos para serem publicados, o que se tornaria muito co-mum ao longo de várias décadas. O fato contribuiu até mesmo para estreitar as relações do Exército com o jornal e a comunidade. “Nosso Regimento” era o tratamento carinhoso que a cidade passou a dar à

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unidade militar, em razão desse bom relacionamento, puxado pelo jor-nal, e especialmente pelo jornalista Francisco J. Frantz.

Mas nem sempre as relações eram tão cordiais. Houve, ao longo dos anos, alguns atritos do jornal na área militar. O principal deles foi o que culminaria, em 1971, com a devolução de uma comenda que o Exérci-to concedera ao diretor Frantz, episódio que será detalhado mais adian-te. A primeira dessas histórias aconteceu bem no início, quando Rolph H. Bartholomay ainda era o redator, cargo que hoje corresponderia ao de editor. As paradas da Semana da Pátria eram sempre muito festivas e cheias de fervor cívico, tanto de parte da população, que assistia e aplaudia, quanto da mocidade estudantil, que marchava garbosamente. Naquele ano, o desfile fora prejudicado pelo mau tempo. Novo na cida-de e sem conhecer a tradição de patriotismo da comunidade germânica de Santa Cruz, um tenente, que era noivo da filha do comandante, quis publicar um artigo intitulado “Em Santa Cruz, até Deus é nazista”. O redator se negou a publicar a matéria e respondeu ao oficial que ele estava ofendendo os santa-cruzenses, que eram tão patriotas quanto qualquer outro povo. Além da desfeita de não ter o artigo publicado, o oficial ainda acabou levando uma descompostura do futuro sogro, que era o seu comandante.

Francisco J. Frantz era perito contador, formado no Colégio São Luís. Nada parecia indicar nele uma vocação para humanidades, muito menos jornalismo. Ex-funcionário da Souza Cruz, tinha-se associado a Willy Carlos Froehlich e ao cunhado Leopoldo Morsch no escritório contábil conhecido como Soteca, já mencionado anteriormente, anexo ao qual também funcionavam uma carteira de seguros e a sede da As-sociação do Comércio, Indústria e Agricultura, da qual era secretário geral. Foi ali que nasceu o jornal, e foi ali a sua sede nos primeiros tempos.

Desde logo, o perito contador começou a exercitar o seu talento, revelando grande vocação para o jornalismo. Passou a ter ao seu lado outros cultores do bom texto, entre eles Mário A. Assmann, que per-maneceria até o início dos anos 60. Como sócio do empreendimento, Frantz se encaminhava para assumir a direção do jornal, o que aconte-ceu efetivamente em janeiro de 1950. Mas antes, ainda como redator, ele já pontificava com sua garra e sua liderança.

Na segunda metade dos anos 40, terminada a Guerra e tendo vol-

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tado a circular um jornal, após um jejum de vários anos com o fecha-mento do Kolonie, Santa Cruz do Sul começou a caminhar de novo na direção de um projeto de desenvolvimento. O calçamento das primei-ras quadras de rua no centro da cidade já tinha acontecido durante a Guerra, com o prefeito Dario Barbosa, um carioca que estranhou a falta de pavimentação de ruas na sede municipal. Em 1946, removendo as cinzas da guerra, o mundo descobriu que tinha sido montado o pri-meiro computador, pesando 30 toneladas. E em Santa Cruz, enquanto se fundava a Rádio Santa Cruz, se construía também a nova hidráuli-ca da Pedreira. No ano seguinte, enquanto o cooperativismo rural se revitalizava com o surgimento da Cooperativa Agrícola Pe. Theodoro Amstad, a safra de fumo começava a encalhar e nuvens de gafanhotos varriam as lavouras de cereais. Em 1948, inaugurava-se a linha telefô-nica entre Santa Cruz e Porto Alegre, resultado de uma campanha lan-çada pelo jornal, dois anos antes. E no ano seguinte, iniciava-se outra grande campanha, pela construção de uma ponte sobre o rio Taquari, em Mariante.

No dia 19 de dezembro de 1949, festejava-se o centenário de che-gada dos primeiros imigrantes alemães, com inauguração de um mo-numento em sua homenagem, na Linha Santa Cruz. Para o grande festejo, o Município recebeu a visita do governador Walter Jobim. Na mesma ocasião, foi também lançado o projeto para construção de um Parque do Centenário, para abrigar um complexo de lazer no atual parque da Oktoberfest. O projeto, entretanto, não foi executado, e já no ano seguinte surgiu a proposta que acabou destinando a área para a Feira Nacional do Fumo, que passou a ser planejada. Esta área – que no início tinha cerca de 41 hectares, mas com o tempo ficou reduzida a aproximadamente 14 hectares – foi doada pelo governo da Província ao município, em julho de 1904, para que ali se construísse a estação fer-roviária. Mas isso não se concretizou, sob alegação de que o aclive mui-to acentuado dificultaria a saída dos trens. No local funcionou o prado, e depois duas canchas retas para corridas de cavalos. Em 1917, durante a Primeira Guerra, ali se alojou um Batalhão do Exército, incluindo o tiro de guerra. Funcionou também um campo de futebol, sobrando espaço para pastagem de animais, mediante aluguel pago à Prefeitura. Em 1935, com o prefeito Oscar Jost, foi ali inaugurada a Usina Elétrica do Município, e com ela uma piscina retangular, que servia à usina e,

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ao mesmo tempo, era usada pela população, nos finais de semana, para banhos, aulas de natação e saltos ornamentais.

Para marcar o centenário da colonização, a Gazeta de Santa Cruz circulou com a maior edição de sua ainda curta história de cinco anos. Foram 56 páginas em tamanho padrão, correspondendo a 112 páginas no formato atual de tablóide.

19. O grande mal-entendido Nos seus primeiros cinco anos, a Gazeta mediu as possibilidades e

projetou um futuro cujo êxito dependeria do grau de apoio que encon-traria na comunidade. A maior dificuldade era a ruptura com a língua alemã, profundamente enraizada na vida das pessoas e abruptamente ceifada do quotidiano da cidade. Outra foi a necessidade de forjar um jeito novo de fazer jornal e testar cada passo de sua eficiência perante os leitores, no que foi de grande utilidade o modelo bem-sucedido do ex-tinto Kolonie. Foi, ainda, uma fase bastante amadora da imprensa, onde havia o trabalho de redação, mas grande parte do espaço editorial era de colaborações enviadas por leitores e entidades que queriam suas ati-vidades divulgadas. Essas pessoas assinavam suas matérias, às vezes com pseudônimos ou apenas as iniciais, enquanto os redatores do jornal não assinavam. Era neste modelo, com a redação transformada em escola, que cada jornal de interior formava os seus profissionais, e foi também desta forma que Francisco J. Frantz teve o seu aprendizado, moldando o perfil de jornalista atilado e combativo que o consagraria mais tar-de como diretor e editorialista. Mas nenhuma caminhada difícil se faz sem contratempos e incompreensões, que são até partes importantes do aprendizado.

Vocacionado para o jornalismo e preparando-se para assumir de-finitivamente a direção da Gazeta, ele usava sua facilidade de relacio-namento para cultivar um intercâmbio que, com a precariedade dos meios de comunicação, ainda não existia muito entre os confrades da imprensa do interior. Sempre que passava por alguma outra cidade, e havendo tempo, ele não dispensava uma visita ao jornal local. Foi o que aconteceu em Garibaldi, no final de janeiro de 1949. Lá funcionava o semanário católico Correio Riograndense, editado pelos Padres Capuchi-nhos, e para lá foi o editor Frantz fazer uma cortesia ao frei, na redação

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do jornal. Foi uma longa conversa entre os dois, abordando assuntos do interesse comum e também as coisas de cada uma das duas cidades e de cada um dos dois jornais.

No relato que fez sobre Santa Cruz, Schloka Frantz mencionou a circunstância, absolutamente verdadeira, já abordada anteriormente, de que, até o início da Segunda Guerra, os maçons e protestantes, além de terem o jornal Kolonie, também predominavam na política. Mas, por sua maior vinculação à cultura germânica, eles foram atingidos mais fortemente pelas restrições do Estado Novo, ficando por isso seriamen-te enfraquecidos. E a partir de 1945, com a queda do regime, o mesmo grupo católico que fundou a Gazeta também assumiu o poder político, através do Partido Social Democrático (PSD).

Como jornal vinculado à Igreja Católica, o Correio Riograndense tinha assinantes por todo o Estado, e também em Santa Cruz do Sul. Do longo relato de Frantz sobre a realidade de Santa Cruz, pensando estar escrevendo apenas para os seus leitores católicos, o frei pinçou o que lhe interessava, redigiu um texto pintado com suas cores preferidas, publicando a seguinte nota, sob o título Visita:

“Recebemos a visita do nosso colega sr. Francisco José Frantz, redator

da Gazeta de Santa Cruz do Sul, jornal bissemanal com grande aceitação em toda aquela zona. Tivemos a oportunidade de entrevistar o sr. Frantz, porque andávamos ansiosos por conhecer esta cidade gaúcha que vem sempre mais se impondo pela atitude desassombrada de seus filhos. De início, declarou-nos o católico redator da Gazeta:

- Santa Cruz é uma cidade onde até poucos anos dominava inteira-mente a maçonaria. O Colégio Sinodal (protestante), muito antigo, edu-cava a população como bem podemos imaginar. Felizmente, os irmãos maristas abriram um ginásio otimamente instalado, levando vantagens do Sinodal sob todos os pontos de vista. Depois, veio a Guerra, e com isto o Sinodal passou, por causa da sua direção, por bocados críticos. Tudo reverteu em benefício do Ginásio São Luís dos Irmãos Maristas. O jornal que existia antes, também devido a sua orientação, foi fechado. Aproveitando a vazada, fundamos a Gazeta. De formas que hoje, quem domina em Santa Cruz somos nós, os católicos, e isso amplamente. Todas as autoridades são católicas. Graças a Deus, Santa Cruz vai de vento em popa – concluiu o nosso entrevistado. Mais um exemplo do que valem os colégios católicos” (Correio Riograndense, Garibaldi, 2/fev/1949).

Com um amigo escrevendo essas coisas, não era necessário ter ini-

migos. Uma nota dessas dava aos protestantes e aos maçons todos os

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motivos para reagir, ainda mais que, em alguns setores da hierarquia ca-tólica, eram relativamente comuns essas jactâncias de ares superiores e hegemônicos. Mas, na prática da Gazeta e de seu redator, não cabia esse tipo de posição. Ali, como já fora antes no Kolonie, nunca haviam tido guarida tais sectarismos, que só serviriam para dividir a comunidade. Ao contrário, o jornal procurava sempre exercer a missão de bombeiro, o papel de algodão entre os cristais da divergência, seja religiosa, seja política ou esportiva.

Por isso, a nota era uma grosseira meia-verdade e tinha chance nula de ser verdadeira, por várias razões. Era de origem evangélica a própria esposa de Frantz, como eram protestantes e maçons alguns dos seus mais fraternos amigos, como os advogados Arthur Germano Fett e Rol-ph Bartholomay. O primeiro era o próprio diretor do Colégio Mauá (ex-Sinodal), além de protestante e ativo membro da maçonaria, da qual seria, alguns anos mais tarde, Venerável Mestre. Com ele, Francis-co Frantz realizara, a quatro mãos, no final de 1944, a façanha de salvar o nome de Santa Cruz, contra a pretensão do então prefeito Dario Bar-bosa de mudar a denominação do Município através de um canetaço, fato já relatado anteriormente. Quanto a Rolph Bartholomay, além de irmão de Fett na maçonaria, era também, junto com Frantz, um dos sócios fundadores e primeiro redator da própria Gazeta.

Podia-se ver que o reverendo redator do Correio Riograndense, entre ingênuo e deslumbrado, forjado numa comunidade de origem italiana, onde todos eram católicos e não havia maçons, estava mesmo dirigindo o seu triunfalismo às ovelhas do próprio rebanho, sem sequer pensar que poderia ser lido por uma comunidade de pessoas não engajadas no seu credo. Mas o estrago estava feito. Em Santa Cruz, o jornal, depois de recebido pelos assinantes católicos, caiu também em outras mãos, e aí não faltou um versejador melindrado, disposto a montar uma sátira em alemão e espalhá-la pela cidade. A panfletagem era uma prática usual naquela época de escassos meios de comunicação, bastante usada também para difundir mensagens anônimas.

Este panfleto, intitulado Schlokas Osterei in Garibaldi, nunca teve sua autoria comprovada, mas era atribuído a um conhecido versejador local, protestante, maçom e concorrente da carteira de seguros da Sote-ca de Frantz. Os versos do panfleto estavam assim compostos:

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“Es ging Garibaldis frommer Kaplan,Nachdem er bereits viel Gutes getan,In stiller Betrachtung der schönen NaturEinst sorgenlos durch Gottes Flur.Und als er kam an den Waldfuss,Traf er Freund Frantz aus Santa Cruz. - Wünsch guten Morgen, Herr Kaplan,Komm eben aus meiner Heimatstadt an,Da ich hier fremd, mein guter Pater,Such’ ich grad Sie als meinen Berater. - Bin sehr bewegt, mein frommer Sohn,Mein Weg führt mich zur Redaktion,Wo kämpfen wir, schon manches Jahr,Für unseren Glauben, recht und wahr. Dort angenommen, beim Gläschen Wein,So ganz intim, nur noch zu zwein,Fragt Pater hin, und Frantz sagt her,Wie’s passt dem klugen Redakteur.Und siehe unserem FränzeleinStellt Hochmut wieder mal das Bein.Er räuspert sich, nimmt Pose an: - In Santa Cruz bin ich der Mann,Ha, ha, mein lieber Pater wisstEs heut bei uns ganz anders ist,Freimaurer, die regierten lang,Vorm Protestant ist uns nicht bang,Die Zeitung die auch heidnisch warHält’s Maul geschlossen, schon lange Jahr,Die Schule, die sich nennt MauáHat nur den Namen, ist nicht mehr da,Dort wurden auch ja nur Heiden erzogen,Bei Gott, mein Pater, es ist nicht gelogen.Wir haben dort im guten Verein,Potz-Blitz, schmeckt der rote Wein!Ich an der Spitze die Sache geschmissenUnd allen Einfluss an uns gerissen,Gazeta, Soteca, Associação ComercialIst alles Katholisch, da staunen Sie mal,An allen öffentlichen Stellen,Haben nur noch wir Katholiken zu bestellen.Ja, Gott sei Dank, den Fortschritt ohne Wanken.In Santa Cruz, nur den unseren wir danken.

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Der Pater überzeugt der schönen GeschichtenTat wortgetreu die Sache berichten,Und dann am zweiten Februar,Garibaldis Zeitung das Ei gebar. Moral:Was sagt man nun zu solchen Sachen?Soll man da weinen, soll man lachen?Zum Mandachuva ist der nicht gewachsen,Den solche Männer machen niemals solche Faxen.Wir haben ja alle unseren Sparren,Aber sagen tun es nur die Narren,Und bist zum Hochmut du geneigt,Vergesse nie, der Weise schweigt!” Traduzindo:

“Um certo capelão devoto, de Garibaldi, depois de praticar boas obras, em tranqüila meditação sobre a bela natureza, andava despreocupado pelo caminho de Deus. E, quando se aproximou da mata, encontrou o amigo Frantz, de Santa Cruz.

- Desejo bom dia, senhor capelão. Venho de minha cidade e, como sou estranho aqui, meu bom padre, vejo no senhor um conselheiro.

- Estou impressionado, meu piedoso filho, estou indo para a redação, onde lutamos, já há alguns anos, pela nossa fé, justa e verdadeira.

Lá chegados, durante um copinho de vinho, com toda intimidade, somente a dois, o padre pergunta daqui, e o Frantz responde dali, como convém ao culto redator. E veja só, de novo se ergue altiva a perna do nosso Chiquinho. Ele se agita e toma pose:

- Em Santa Cruz, eu sou o tal. Ha, ha, meu caro padre, saiba que hoje lá está tudo diferente. Os maçons mandaram por muito tempo, os protestantes não tememos. O jornal, que também era pagão, já se calou faz anos. A escola, chamada Mauá, só tem o nome, não existe mais. Lá só se educavam pagãos. Por Deus, meu padre, não é mentira. Nós temos lá a boa sociedade. Nossa, como é bom este vinho tinto! Comigo no alto, nós assumimos toda influência. Gazeta, Soteca, Associação Comercial, ima-gina, tudo é católico. Na função pública, só nós católicos ainda falamos. Sim, graças a Deus, temos o progresso a nosso crédito.

O padre se convence das belas histórias e resolve publicar fielmente o assunto. E então, no dia 2 de fevereiro, o jornal de Garibaldi pôs o ovo.

Moral: O que dizer sobre tais coisas? Devemos chorar, ou devemos rir? Para mandachuva ele não nasceu, essas pessoas não cometem tais as-neiras. É verdade, todos nós temos as nossas fraquezas, mas só os tolos falam essas coisas. E quem tiver tendência para a altivez, não esqueça nunca: o sábio cala!”

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Ao tomar conhecimento da matéria do Correio Riograndense sobre a sua visita, e do panfleto de réplica que se seguiu, bastante tempo depois, no dia 13 de março, Frantz mandou uma carta àquele jornal, reclaman-do que a nota fora distorcida e as opiniões ali contidas nada tinham a ver com o que dissera. Além disso, a visita fora apenas uma conversa de amigos, e não uma entrevista, como fora publicado. Quatro dias depois, a 17 de março, o redator do Correio enviava sua resposta de retratação, desculpando-se porque nada tinha anotado, fizera a matéria dias depois da conversa e pretendia apenas mostrar aos seus leitores católicos a importância das boas escolas católicas. Na retratação, o frei reconheceu que fora um “piedoso” blefe, justificado pela causa maior:

“Ilmo. Sr. Francisco José Frantz, DD. redator da Gazeta de Santa Cruz do Sul. Acabo de receber sua carta do dia 13 de março do corrente, em a qual V. S. declara estar muito amargurado por causa do que tenho escrito no Correio Riograndense, na edição de 2 de fevereiro pp. Diz V. S. que a notícia publicada foi pessimamente recebida em Santa Cruz do Sul. E que o que foi escrito não corresponde à conversa amistosamente manti-da aqui. Devo declarar-lhe, em primeiro lugar, que fiquei muito pesaroso em saber do acontecido. A minha intenção jamais foi de colocar mal a quem quer que seja, muito menos um amigo e confrade. Em segundo lugar, saiba V. S. que é muito forte e profunda a simpatia que nutro por esta progressista e ordeira cidade, para me prestar ao inglório trabalho de cavar inimizades, intrigas, divisões e seja lá o que for. Logo, o que escrevi não deve ser entendido sob este prisma. Além disso, não duvido que tenha incorrido em incorreções e inverdades, porquanto a notícia foi redigida dias depois da nossa conversa. Escrevendo para católicos, procurei frisar o bem que fazem os colégios católicos para os católicos”. A carta ainda continuava numa segunda folha, cuja cópia não foi

possível resgatar, e por isso também não temos o nome do signatário. Mas a parte inicial já mostra com bastante clareza que o piedoso redator estava mesmo pedindo desculpas e se retratando.

20. O limão em limonada Frantz, então ainda um jovem de 31 anos, sempre evitou comentar

este episódio, que na época o constrangeu e abalou bastante. Achou que o melhor a fazer de um limão era transformá-lo em limonada. Sentindo o anonimato como coisa feia e covarde, nunca cansou de recomendar aos seus redatores que dessem sempre às “colaborações” anônimas, que

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freqüentemente chegavam à redação, o destino merecido da cesta do lixo, tratando-as como se não existissem. E uma segunda advertência, tão grave quanto a anterior, era a de que as matérias publicadas es-tivessem sempre de acordo com a verdade, fiéis às fontes e aos fatos, para que não se cometessem injustiças e jamais houvesse necessidade de retratação. De aproveitável, aquele panfleto sem origem até que tinha alguma coisa, o seu verso final, dizendo que “o sábio cala”. O sábio calou, mas colheu o ensinamento de que um dissabor, até mesmo uma injustiça, sempre pode ter proveito como lição de vida.

Menos de um ano depois, em janeiro de 1950, Frantz assumia de-finitivamente a direção do jornal, podendo tratar com mais autonomia de certos temas cruciais, em que só tocava com luvas de pelica. Um de-les era justamente a questão religiosa. A preocupação era evitar o apro-fundamento da vala que ainda dividia católicos e protestantes, e donde seguidamente emanavam odores de intolerância, como também acon-tecia muitas vezes no futebol e na política. Era uma discórdia que não deveria interessar a ninguém, pois representava uma divisão irracional da própria cidade. Ao contrário, diante dessa linha divisória, escavada pela história entre as duas igrejas, e sempre de novo instigada por alguns que pareciam sentir prazer nisso, Frantz e a Gazeta preferiam a postura do bom senso, de construir pontes de aproximação para transpor as diferenças. Aproximação que só começou a acontecer de forma mais efetiva uma década depois, quando a Igreja Católica, a partir do Con-cílio Vaticano II, abriu finalmente a guarda, dando o sinal verde para o diálogo ecumênico, no pontificado de João XXIII e no episcopado de Dom Alberto Etges, primeiro bispo da Diocese de Santa Cruz do Sul. Ali também começou a denominação protestante a ser eufemisticamen-te substituída por evangélico.

Antes, a areia era movediça, e o melhor que o jornal tinha a fazer era evitar tudo o que pudesse causar choque. Mas este cuidado, e até com uma certa intransigência nos critérios de isenção e eqüidistância, nem sempre foi bem entendido. Algumas incompreensões foram-se acumu-lando, de um e de outro lado, e ficaram atravessadas na garganta do jornalista, para serem despejadas de uma vez, muito mais tarde, num grande desabafo, já no início dos anos 70. Havia católicos querendo que o jornal ficasse a serviço da sua religião, havia protestantes insa-tisfeitos com a circunstância de ser a direção católica, e havia também

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líderes de ambos os lados incomodados porque o diretor do jornal era integrante do Rotary Clube, tido como uma “seita” que fazia uma certa concorrência às igrejas. Estava ele quase como o caramujo entre o mar e o rochedo.

Apesar de suas atitudes conciliadoras, Frantz era também um ho-mem afeito a polêmicas. Mas costumava escolher bem, preferindo as brigas em defesa de princípios e do interesse comum, projetando sem-pre o futuro, que tão bem sabia vislumbrar. Suas divergências eram contra interesses poderosos ou escusos, por isso encontrava respaldo na opinião pública. Nesta circunstância, a independência do jornal era condição indispensável. Independência religiosa e independência polí-tica, principalmente. Mas também independência econômica, que lhe era assegurada por uma rentável carteira de seguros e por uma criteriosa aplicação de reservas em títulos e ações na bolsa de valores.

Ao assumir a direção, Frantz herdou também um jornal estreita-mente vinculado ao Partido Social Democrático (PSD), ao qual perten-ciam vários dos seus fundadores. Antes que isso pudesse se modificar, na esteira da comoção que se seguiu ao suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, já no mês seguinte a cidade assistiu à fundação do jornal A Voz do Progresso, apresentado como órgão do Partido Traba-lhista Brasileiro (PTB) de Getúlio. Este partido não era muito forte em Santa Cruz, mas, diante das circunstâncias, ganhou fôlego para ocupar espaço e até mesmo eleger um prefeito, Arthur Walter Kaempf, que governou de 1955 a 1959. O regime de Vargas tinha deixado nódoas, pelo combate sem trégua à cultura germânica, durante o Estado Novo e a Segunda Guerra. Mesmo assim, seu nome permaneceu na principal praça da cidade e seu retrato se multiplicava por escolas e outros locais públicos. O jornal do PTB não completaria cinco anos, encerrando suas atividades em outubro de 1958. Ao seu diretor, o advogado Arno W. Schmidt, atribuía-se a afirmação, feita em 1945, de que, se soubesse em qual veia lhe corria o sangue alemão, arrancá-la-ia do corpo. Não parece verossímil, mas ouvimos de uma testemunha viva que o fato re-almente aconteceu, em praça pública, dizendo tê-lo escutado com seus próprios ouvidos.

Mas o diretor do jornal do PTB não era um caso isolado de negação da própria origem. Antes, refletia um sentimento real, uma atitude de muitos descendentes germânicos. Com sua cultura de respeito e reve-

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rência às leis e aos governantes do País, eles acabaram sucumbindo à lavagem cultural. Integraram-se às culturas nativas, o que é bom, mas botaram uma pedra sobre o próprio passado, o que não é bom. Sobre isto, até há o registro de um episódio em que o Delegado de Polícia François Nehmé, notório caçador de quintas-colunas durante a Segun-da Guerra, fizera publicar um aviso para que parassem de ser encami-nhadas a ele as denúncias anônimas contra os que não respeitavam as suas determinações, que se multiplicavam na delegacia, muitas delas sabidamente provenientes de pessoas que tinham a mesma origem ger-mânica da esmagadora maioria da população.

É preciso, porém, reconhecer isso como decorrência natural da po-sição brasileira na guerra, contrária à Alemanha nazista. Quando aca-bou o conflito, em 1945, a cidade foi tomada por uma grande festa, não apenas comemorando a paz, mas também festejando a vitória dos aliados. No meio da praça central, ergueu-se uma grande fogueira, tra-zendo no alto um boneco vestido com o uniforme da Gestapo, a polícia secreta de Hitler. Ao redor do fogo, para guardar a ordem, postava-se a tropa da unidade local do Exército, que estrategicamente viera instalar-se em Santa Cruz durante a guerra, tendo sido recebida com honras pela comunidade.

É claro que não caberia, naquela circunstância, lamentar a derrota alemã. Mas muitas pessoas não conseguiram separar o nazismo do pró-prio passado, culpando-se de certa forma pelos horrores perpetrados em nome do estado alemão. Acabaram, assim, relegando suas próprias raízes, negando até mesmo os valores, os costumes e os ensinamentos de sua cultura. Muitos não perceberam que não há culpa em ser germâ-nico só porque o Führer fez aquilo, assim como também não há culpa em ser judeu só porque judeus fizeram aquilo com Jesus Cristo.

Resulta disso, de certa forma, que a geração atual dos descendentes de alemães está mais nos CTGs do que nos centros de sua própria cul-tura, quando poderiam estar nos dois, para melhorar a qualidade dessa integração étnica e cultural. Há, é verdade, esforços de minorias areja-das de teuto-brasileiros que, mesmo usando pilchas nos CTGs, também envergam com orgulho seus trajes típicos e cultuam o próprio passado nos centros germânicos, e até parece que estão conseguindo resgatar aos poucos o espaço da sua cultura, ajudados por alavancas como a Okto-berfest, as pesquisas históricas e os cursos de língua alemã.

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Longe de qualquer preconceito, a Gazeta procurou, desde o início, abrigar a diversidade étnica em suas páginas. Assim, estendeu a mão a todos, mas especialmente ao povo germânico, jogado à orfandade, embora ainda amplamente majoritário no Município. Lançou e man-teve por vários anos, na década de 50, um suplemento em alemão, língua com a qual estavam mais familiarizados os habitantes antigos, que eram os principais cultores do hábito da leitura, desde os tempos do velho Kolonie.

21. Crescendo e amadurecendo

Durante os anos 50, registraram-se importantes avanços na economia do Brasil. A agricultura evoluiu, os “anos dourados” do período JK trouxe-ram a indústria automobilística em São Paulo e a nova capital no Planalto Central. O asfalto chegou a Santa Cruz em 1952, ligando a sede ao distrito de Vila Teresa, mas ainda não ao mundo. A Festa Nacional do Fumo ga-nhou o seu primeiro estatuto, em 1954, e no ano seguinte era fundada a Associação dos Plantadores de Fumo em Folha, atual Afubra. O problema da energia foi resolvido com a chegada da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica), em 1956. Dois anos depois, era inaugurada a ponte de Mariante, sobre o rio Taquari, e o Brasil seria campeão mundial de futebol pela primeira vez. E no final da década, em 1959, ocorreriam dois fatos locais inusitados: a emancipação do 2º distrito, tornando-se o município de Vera Cruz, e a criação da Diocese de Santa Cruz do Sul, com a posse do bispo Dom Alberto Etges e, com ele, uma mudança profunda nas relações de interlocução entre as igrejas cristãs.

Nessa década, o ritmo de crescimento esteve, também, constante-mente presente na vida da Gazeta, que foi se consolidando passo a pas-so. Em 1951, o jornal adquiriu a sua primeira linotipo, seguida de ou-tras duas. Em 1953, passou a ser trissemanal. Em 1957, trocando para o atual endereço e inaugurando a nova impressora Goss Cox-O-Type, circulou quatro vezes por semana, logo depois cinco vezes, mudou de nome, transformou-se em sociedade anônima e assumiu a condição de jornal regional, passando também a veicular noticiário nacional e internacional. Abrindo esta nova fase, no dia 3 de janeiro de 1957, com o nome do cabeçalho alterado para Gazeta do Sul, o jornal publicou a seguinte comunicação:

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“Comunicamos aos nossos prezados acionistas, assinantes, clientes, leitores e amigos em geral que, com o número de hoje, é apresentada ao público do Rio Grande do Sul a Gazeta do Sul. Sucessora da Gaze-ta de Santa Cruz, órgão lançado em 26 de janeiro de 1945 para defesa dos interesses locais, não se apresenta como uma voz nova no jornalismo rio-grandense, mas apenas serve para projetar para o âmbito regional e estadual uma folha que há muito já lograra o título de porta-voz de fato das aspirações da rica região central do nosso Estado e que agora, através do nome, oficializa essa sua tarefa de luta em prol dos interesses de uma coletividade, os quais transcendem os limites da comuna que lhe serve de foro jurídico. Gazeta do Sul ampliará o número de edições de sua anteces-sora, devendo passar a circular quatro vezes por semana – terças, quartas, quintas-feiras e sábados – numa fase de transição para cinco edições se-manais, que será a periodicidade que precederá o futuro diário regional. Esperamos, confiantes, que as mesmas atenções dispensadas à Gazeta de Santa Cruz continue merecendo-as no futuro o órgão que hoje estréia a sua nova denominação. A Direção”.

Essa experiência da troca de endereço e do jornal quase-diário foi, mais tarde, contada pelo próprio Frantz, em dois dos seus artigos de fundo. O primeiro deles lembrou a aquisição, em 1956, de um pré-dio de moradia na mesma rua em que funcionava o jornal, cem me-tros mais abaixo, para abrigar os grandes planos de expansão, a partir de 1957. Este prédio teve cuidadosamente mantida a sua fachada e a sua arquitetura original. Só os acréscimos posteriores ganharam feições mais modernas. Sobre este imóvel, ele escreveria, mais tarde:

“Se não nos enganamos, foi construído em 1912, para o sr. Luiz Rech,

industrial no ramo do café. Custou seis contos de réis. Foi seu construtor o sr. Augusto von Kossel, de nobre estirpe germânica e originário de Me-cklenburg-Schwerin. Na ocasião, o construtor von Kossel, que trabalhava auxiliado pelos filhos Hermann (Menna) e Carlos von Kossel, edificou prédio igual ao nosso, pelos mesmos seis contos de réis, para o dr. Gui-lherme Hildebrand, à rua Venâncio Aires. A nossa rua, a Ramiro Barcelos, já tinha este nome, pois a sua denominação inicial, e que perdurou por todo o tempo do Império, era Rua Catalã, como uma homenagem à ba-talha de Catalán. Esta teve lugar em 1817, no Uruguai, quando o general Xavier Curado e o Marquês de Alegrete, tendo entre suas forças o legen-dário Regimento de Dragões de Rio Pardo, bateram a tropa castelhana. Uma curiosidade: um descendente do general Curado, Major Herbert Curado, serviu no 8° B. I. Mtz, não faz muitos anos.

No dito prédio residiu, durante o seu período governamental, o pre-feito José Wohlgemuth Koelzer. Radicado em Vera Cruz (então Vila Te-resa) e não tendo casa em Santa Cruz, passou a ocupar uma peça na resi-dência de sua irmã, a viúva Luiz Rech. Na referida peça, por diversas vezes

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recebeu os emissários de Borges de Medeiros, Raul Pilla e Batista Luzardo, da Frente Única (PRR+PL), na conspiração contra o Governo Central e apoio à Revolução Constitucionalista, irrompida em São Paulo em 1932. O movimento no Rio Grande do Sul foi reprimido pelo Interventor Fe-deral Flores da Cunha, e terminou se limitando a uma demonstração de brio e destemor dos supramencionados líderes gaúchos em Cerro Alegre, Piratini, quando tirotearam com forças legais várias vezes mais fortes, e só se entregaram depois de queimado o último cartucho. Para sermos completos, esclarecemos que no Rio Grande, na ocasião, também deram a solidariedade a São Paulo e se revoltaram o Cel. Cândido Carneiro Júnior, conhecido por “General Candoca”, em Soledade, e o Del. Marcial Terra, em Tupanciretã” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 6/set/1975).

22. O sonho do jornal diário Em novo endereço e com novos equipamentos, a Gazeta pretendia,

como já foi dito, partir para concretizar o sonho do jornal diário. As duas impressoras Koenig & Bauer tinham sido substituídas pela roto-plana mais moderna, Goss Cox-O-Type. Para composição, já havia três linotipos. Mas, em 1959, o sonho seria adiado e o jornal voltaria à condição de trissemanário, em razão dos altos custos do papel, que era importado e tinha preço em dólar, e por isso provocava crises cíclicas para os jornais brasileiros.

O próprio Diretor Frantz contou, em outro artigo, as dificuldades enfrentadas:

“Tudo isso, e mais a obrigação de construir, pois não se instala impres-

sora de jornal em prédio alugado, fez com que ficássemos endividados até o pescoço, com um violento esquema de compromissos por três anos, pois as máquinas nos foram financiadas em 36 prestações mensais. Aí, bolamos esse negócio de assinatura por dez anos, o que foi muito bom para os leitores e para o nosso jornal, pois continuamos a atender pontualmente os nossos compro-missos. No nosso entusiasmo, aqui na Gazeta, fomos mais longe: tentamos o jornal diário em Santa Cruz do Sul. Depois de exaustivamente consultados os técnicos de vários jornais, adquirimos o mais sofisticado aparelhamento radiotelegráfico para a época, importado da Philips, da Holanda.

O jornalista Cid Pinheiro Cabral, muito conhecido dos leitores da Folha da Tarde, tinha, como bico, a representação de duas agências de notícias: a France Press (noticiário internacional) e Telepress (noticiário do País). Contratamos os dois serviços. Contratamos um rádio-telegrafista. O primeiro, vindo de Porto Alegre, fracassou. O segundo, um mocinho filho de Ramiz Galvão, dedicado e eficiente profissional, aprovou e tra-balhou aqui toda a fase do jornal “diário”, e logo depois fez um teste, foi

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aprovado e passou a trabalhar na Varig.Treinamos um redator para o noticiário nacional e internacional, que

chegava numa espécie de código, com suas abreviações, ausência completa de pontuação e falta de vocábulos. Acontecia muitas vezes que a manchete principal coincidia com a do Correio do Povo. Circulávamos cinco vezes por semana e já estávamos nos preparando para circular também aos domingos, quando o demonstrativo de lucros e perdas nos deu o sinal vermelho, nos deu o alerta. Estávamos com um déficit violento, pois as despesas haviam aumentado em 50% e a receita apenas em 10%, mais ou menos. Reduzi-mos o número de edições e conseguimos reduzir o déficit verificado.

O sofisticado aparelho rádio-telegráfico, testemunha visual da tenta-tiva infrutífera de darmos um jornal diário à comunidade e à região, re-solvemos doar à Ascra (Associação Santa-Cruzense de Rádio-Amadores), que sempre prestou excelentes serviços a Santa Cruz nos casos de faleci-mentos” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 14/dez/1976).

Mais adiante, ainda no mesmo artigo, ele deixou claro que o projeto do jornal diário não tinha sido abandonado, senão que apenas adiado. Ele tinha nisso uma idéia fixa, a ser retomada tão logo houvesse condi-ções para isso. Depois de várias outras considerações, ele escreveu:

“É por tais e outras razões que, tão logo a nossa tiragem atingir de-

terminado número de exemplares, as nossas edições tiverem um lastro do número de páginas de anúncios econômicos, de uma ou duas colunas, e logo que melhorar o padrão de vida dos agricultores e operários mais um pouco, pensaremos em dar um diário a Santa Cruz do Sul. É um progra-ma para o futuro, rotativa moderna, teletipos, telex e telefotos, sempre dentro da preocupação de acompanhar o que há de mais moderno em matéria de imprensa no país. Tudo a seu tempo, na devida ordem e com os pés firmes no chão. Então, sim, poderemos novamente, em igualdade de condições com o Jornal do Brasil, Estado de São Paulo e Correio do Povo, dar as principais notícias nacionais e internacionais” (idem, ibidem). Como se vê, ele só não previu o extraordinário desenvolvimento da

informática. Pensava, ainda, em teletipos, telex e telefotos. Mas prog-nosticou com absoluta clareza de visão o desenvolvimento tecnológico que daria à sua Gazeta a oportunidade de oferecer aos leitores, não apenas as notícias do Município e da Região, mas também as do País e do mundo, em igualdade de condições com os grandes jornais. Ele não viveu para isso, porque partiu muito cedo, aos 64 anos de idade. Mas deixou a luz e o caminho, por onde tudo se faria quando a cidade crescesse e pudesse dar suporte ao projeto.

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23. O matutino independente Mesmo com tais dificuldades, a década de 50 foi um período de

amadurecimento, de consolidação da dimensão real do jornal na co-munidade, cuja capacidade de absorção ficava aquém das grandes am-bições do jornalista. Para isso, alguns fatores contribuíram. É preciso lembrar, em primeiro lugar, que havia um jornal concorrente, A Voz do Progresso, de menor poder de competição, mas sempre um concorrente, capaz de motivar e alimentar brios. Outro aspecto foi o gradual rom-pimento do cordão umbilical que prendia a Gazeta a um partido po-lítico, o que, sem desdouro para esse partido, não se mostrou positivo para um jornal sinceramente interessado em ser a voz da comunidade inteira. Servir a facções, fossem políticas, fossem quaisquer outras, não levaria ao melhor futuro. Mas essa ruptura aconteceu gradualmente e com naturalidade, sem maiores traumas nas relações com os demais sócios. Mais adiante, já na década de 60, Frantz completaria a compra de parcelas de outros acionistas, de modo a ter o domínio sobre mais de 50% das ações da sociedade. E o slogan de “matutino independente” pôde vigorar plenamente.

É claro que o problema do jornal com a política nunca foram os só-cios que militavam no PSD, que sabiam separar as coisas, mas aqueles outros que, nada tendo a oferecer, só queriam usufruir o jornal como arauto e paladino do partido e dos seus interesses pessoais.

A primeira metade dos anos 60 caracterizou-se por episódios de grande impacto, tanto no País como em Santa Cruz do Sul. Tivemos, em 1960, a fenomenal eleição de Jânio Quadros para a presidência, e sua surpreendente renúncia no sétimo mês. Seguiram-se, ainda em 1961, a campanha da Legalidade, liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola, e a implantação do sistema parlamentar de governo, como condição para a posse do vice João Goulart na presidência. Mas um plebiscito restabeleceu o presidencialismo em janeiro de 1963, pre-cipitando a intervenção militar no ano seguinte. E, no meio de tudo, a boa notícia foi a conquista do bicampeonato mundial na Copa do Chile, em 1962. Enquanto isso, em Santa Cruz do Sul a política tam-bém efervescia, culminando em 1963 com o assassinato do deputado estadual Euclydes Kliemann (PSD), no estúdio da Rádio Santa Cruz, por Floriano Peixoto Karan Menezes, o Marechal, vereador do PTB e

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gerente da Caixa Econômica Federal. Aconteceu, também, a criação da Associação Pró-Ensino em Santa Cruz – Apesc, em 1962, e dois anos depois surgiria a primeira faculdade, o curso de Ciências Contábeis, no Colégio São Luís, coroando uma luta árdua, que tivera sempre a presença destacada do jornal.

Foi nesse período, também, que o Diretor da Gazeta ampliou con-sideravelmente o leque das suas relações com os confrades da imprensa gaúcha. Participando da Associação Riograndense de Imprensa e do Sindicato das Empresas Proprietárias de Jornais e Revistas do Estado, ele construiu sólido relacionamento com os colegas, incluindo os prin-cipais periódicos de Porto Alegre. Gozou até mesmo da amizade pessoal do então todo-poderoso jornalista Breno Caldas, diretor da Cia. Jor-nalística Caldas Júnior, que editava o Correio do Povo, o maior e mais influente jornal do Sul do País. Tinha, também, outras relações pessoais muito importantes, como a do escritor Erico Verissimo, de quem che-gava a receber livros autografados, além de vários outros intelectuais de renome que enriqueciam as páginas da Gazeta. Entre estes estava Walter Spalding, que nos anos 60 e 70 comparecia regularmente com suas colaborações, sem qualquer ônus, e cujo apoio se tornou, graças a essa amizade, decisivo para que fosse emitido, pelo Correio Nacional, o selo do centenário de Santa Cruz do Sul, em 1978. Aí o historiador se redimiu, em parte, da posição radical assumida em 1943, contra a cultura germânica, de que já falamos anteriormente.

Mas o intercâmbio mais frutífero ocorreu com os jornais de algu-mas das mais importantes cidades do interior gaúcho, onde a troca de experiências era mais efetiva e fértil. Foi dessa aproximação que nasceu, em 1961, a Associação dos Diretores de Jornais do Interior (Adjori), de que Francisco J. Frantz foi um dos principais idealizadores, ao lado de confrades como os irmãos Paulo Sérgio e Mário Alberto Gusmão (Novo Hamburgo), Estevan Carraro (Erechim), Ulrich Löw (Ijuí), Prudêncio Rocha (Cruz Alta), Paulo Salzano Vieira da Cunha (Cachoeira do Sul), Clahyr Lobo Rocheford (Pelotas), Túlio Fontoura e Múcio de Castro (Passo Fundo). Estes dois últimos eram ferrenhos concorrentes da mes-ma cidade e, conforme escreveu Frantz, eram “inteligentes, brilhantes e experimentados profissionais”, cultivando entre si, com o maior cari-nho, “uma inimizade conhecida urbi et orbi”. Nas reuniões da Adjori, “comparecia um ou outro, nunca os dois, às vezes nenhum”. Mas essa

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briga paroquial não empanou a unidade da imprensa interiorana, que se tornou muito forte, ao vender com sucesso a idéia de que os jornais do interior, somados, eram o veículo mais poderoso e de maior circu-lação do Rio Grande do Sul, tanto que seu associativismo serviu de exemplo para os demais estados brasileiros.

24. Entrando na história A Gazeta completava duas décadas de existência, consolidada como

único jornal da cidade e respeitada como legítimo porta-voz da comu-nidade municipal e regional. Estávamos em janeiro de 1965, e foi aí que essa história começou para mim. Eu tinha assumido o meu primei-ro emprego em novembro do ano anterior, um mês antes de completar a maioridade plena. Não era o meu sonho de vida, mas o que conse-gui foi uma vaga de bancário, disputada acirradamente com outros dez candidatos. Fez bem para o meu orgulho pessoal, porque era uma das profissões mais cobiçadas e valorizadas, com expediente reduzido ao turno da tarde. Dos meus pais eu ganhara de presente uma máquina de escrever, que era como se fosse um computador hoje em dia. Desde que pela primeira vez colocara um papel nessa máquina para dedilhar descomprometidas frases, ou versos próprios de uma juventude român-tica, tinha a idéia fixa de ser jornalista. Todos os domingos, o futebol do meu time interiorano virava matéria enviada à Gazeta do Sul, onde era publicada na íntegra, com todas as vírgulas.

Um dia, não tinha mais que dois meses de banco, fui procurado no balcão da agência, e o interlocutor foi logo se apresentando: “Muito prazer, eu sou Lúcio Michels”. Senti-me como se sentiria mais tarde uma criança beijada pela Xuxa, com aquela marca de batom na cara. Ele era o próprio redator da Gazeta e, para mim, um ídolo. O que me falou, então, valeu muito mais que um fortuito e distraído ósculo da rainha dos baixinhos: “Vim saber se não gostarias de trabalhar no jor-nal, já que escreves muito bem e nós precisamos de mais um redator”. Explicou que precisava, ainda, “falar com o Seu Frantz, que é o Diretor, mas ele vai concordar”. Então, havia alguém mais importante do que ele na Gazeta? Por incrível que me parecesse, havia, assim como haveria também um Roberto Marinho acima da Xuxa na Globo.

Aquele convite foi, para mim, como uma janela aberta para o gran-

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de sonho escancarado no largo horizonte. Mas demoraria ainda algum tempo para ser admitido no jornal. Como de manhã eu não tinha outra coisa a fazer, freqüentei logo a redação, mesmo sem salário, para adquirir experiência e segurar a cadeira, que ninguém mais tiraria de mim. No dia em que ali entrei pela primeira vez, estava do lado oposto da sala, de frente para mim, dedilhando uma velha máquina de escrever, um senhor sisudo e gordo, devia ter uns 60 anos, carregando sobre o nariz uns óculos de aro grosso, concentrado em sua faina de resgatar pedaços importantes do nosso passado e brigar pela salvação do ramal ferroviário Santa Cruz-Rio Pardo, ameaçado de extinção. Era o historiador Luiz Beck da Silva, conhecido como Luizinho, a quem fui apresentado.

No dia em que Francisco J. Frantz deu o sinal verde para a minha contratação, em julho de 1965, a Gazeta tinha 20 anos e realizava-se no Corinthians o julgamento do ex-vereador Marechal, pelo assassinato do deputado Kliemann. No mesmo mês, tive ainda o meu grande ba-tismo de sangue, quando uma Rural Willys capotou e bateu contra um ônibus, deixando jogados no pavimento da rua Gaspar Bartholomay os corpos de cinco dos seus seis ocupantes. Foi terrível ver e fotogra-far aquele lúgubre cenário, na cobertura daquele acidente. Mas eram os cavacos da profissão, escolhida livremente. Mais tarde, teria outras experiências semelhantes, uma delas mais dolorosa ainda. No asfalto novo da Av. Castelo Branco, indo cobrir um acidente com três mortes, ajudei o delegado Itamar Reis a identificar o corpo de um ex-colega de bancos escolares, o padre Ilfio José Theisen, então vigário da paróquia da Conceição, no bairro Bom Jesus.

Na mesma época, não só o Luizinho, mas também a Gazeta e toda a comunidade estavam envolvidos na campanha para salvar o trem, que já apitava na cidade há 60 anos, desde 1905, mas estava ameaçado de ser suspenso, porque o ramal era deficitário. E tinha que ser deficitário, porque a linha existente tinha péssima conservação e, para levar um carregamento até o porto de Rio Grande, a composição teria que passar por Santa Maria e Bagé, percorrendo uma distância três vezes maior que uma linha direta até a cidade marítima. Mas de nada adiantaram o choro e a luta da cidade e do deputado Norberto Schmidt em Brasília. Tanto a velha maria-fumaça quanto o carro-motor, que carregava pas-sageiros entre Santa Cruz e Porto Alegre, estavam condenados. Saiu em setembro daquele mesmo ano a lamentada decisão do governo federal,

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de fechar em definitivo o ramal Santa Cruz-Rio Pardo.Poucos dias antes, o Diretor ainda publicara um artigo de fundo na

Gazeta, com o título de “Santa Cruz do Sul ilhada”, já sem esperança de salvar o trem, com a agravante de uma grande enchente e de não haver estradas asfaltadas, refletindo toda a decepção pelo final dessa história de seis décadas:

“Os cinco dias de chuvas, na semana passada, foram o suficiente para

ilhar Santa Cruz do Sul do restante do Estado. E isto, não possuindo nenhum rio, como outras cidades, onde a situação lamentavelmente está assumindo características de tragédia. Demonstrou esse fato, novamen-te, o quanto são precários os meios de comunicação no Rio Grande do Sul, um Estado onde as obras do Governo Federal, pela insuficiência de verbas e conseqüente morosidade no andamento dos trabalhos, se cos-tumam transformar em “obras de Santa Engrácia”. O Estado, por sua vez, também muito pecou contra o sistema rodoviário do Rio Grande do Sul, resultando daí a ridícula percentagem de rodovias pavimentadas que possuímos.

Sem atentar para tal estado de coisas, a Rede Ferroviária Federal re-solveu, agora, extinguir o ramal Santa Cruz-Ramiz Galvão, aumentan-do ainda mais as atribulações daqueles que aqui teimam em se dedicar à produção, contribuindo destacadamente para a opulência das receitas tributárias da União e do Estado. Não queremos cogitar das razões que levaram a diretoria da Rede Ferroviária a assim proceder. Em verdade, não nos pode interessar se a decisão dos mandatários da estrada concilia ou não os seus interesses.

Não foram os santa-cruzenses que demoliram o nosso sistema fer-roviário, mas sim aqueles que, em alta percentagem, ainda continuam em postos de mando e, assim, influindo nos seus destinos. Acreditamos que as condições técnicas do ramal estejam a exigir dos responsáveis uma decisão: a extinção ou a reconstrução, atualmente bem dispendiosa. De forma alguma, no entanto, é admissível a eliminação do ramal, sem que Santa Cruz do Sul antes disso fique ligada a Porto Alegre e a Rio Pardo por rodovias pavimentadas, que ofereçam condições de trafegabilidade, mesmo nos dias de chuva.

A interrupção do tráfego, nas rodovias, causou ao parque industrial santa-cruzense prejuízos incalculáveis, que tendem a aumentar com as chuvas de ontem. A repetição desses fatos constituirá, sem dúvida alguma, um baque nas possibilidades de desenvolvimento industrial e comercial da nossa comuna” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 26/ago/1965). O transporte ferroviário encerrava, assim, a sua história entre nós,

em favor de interesses petrolíferos não discutidos e mal explicados. É verdade que a morte do trem como opção de transporte já começa-

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ra na década anterior, com o presidente Juscelino Kubitscheck, mas o golpe de misericórdia se deu mesmo no regime militar implantado em 1964. O governo optara pelo transporte rodoviário como alternativa, parecendo atender ao interesse hegemônico dos americanos, donos das fábricas de automóveis e dos trustes petrolíferos, donde sempre poderia cair uma esmola para o nosso chapéu estendido. Algum tempo depois começou, também, a ser rasgada a floresta amazônica, para abertura de uma estrada megalomaníaca. Ligaria nada a lugar nenhum, mas ga-rantiria a segurança nacional e produziria a patriótica ilusão de sobera-nia sobre as nossas fronteiras, até o último afluente do rio Negro, nos contrafortes do pico da Neblina, junto à fronteira com a Venezuela – loucura depois abandonada e até hoje não completada, embora já se passando mais de 35 anos.

Quanto ao Diretor Frantz, ele ainda era, para mim, uma figura bastante enigmática, a ser desvendada com o tempo. Não era apenas um homem alto, mas altivo, de personalidade, que chamava a atenção. Inspirava respeito, às vezes receio, quase sempre admiração. Costumava falar alto, seja para reclamar de alguma coisa, seja para falar amenida-des, seja ainda para receber e abraçar os amigos que vinham até o jornal, a quem saudava invariavelmente com o brado de sua marca: “Olááá!... Como vai o amigo? Forte e rijo?”. Quando fechava a porta de seu gabi-nete para receber uma visita pessoal, sua voz era sempre ouvida do lado de fora, sem que se precisasse encostar o ouvido na fechadura.

Aliás, ele dificilmente falava alguma coisa que não pudesse ser ouvi-da. E nem seria necessário escutá-lo pelo buraquinho, porque logo em seguida ele vinha contar tudo, compartilhando idéias e conversas com sua equipe. Seu Frantz, era assim que o chamávamos. Nosso amado diretor, diziam alguns amigos. Schloka, para os mais íntimos. Poucos o chamavam de Francisco. Para nós, ele dizia carinhosamente “meus colaboradores”. Era uma relação bem paternal da parte dele, filial do nosso lado. A distância entre nós no tempo era de exatamente uma ge-ração, mas no espaço, nenhuma. Ele tinha a idade do meu pai, ambos nascidos em março de 1917, com dez dias de diferença.

Apesar de falar alto, e muitas vezes em tom grave, ele era, acima de tudo, um homem simples, que conhecia os próprios limites e sabia respeitar todas as opiniões. “Aqui não deve prevalecer a opinião do di-retor, mas sempre o melhor argumento”, costumava dizer. Seu portu-

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guês ainda se debatia na regra ortográfica anterior à reforma de 1943. Por isso, com a maior sem-cerimônia, quando concluía os seus artigos de fundo para publicação no jornal, ele os trazia à redação, pedindo humildemente que fossem corrigidos. E os jovens redatores se sentiam prestigiados com essa confiança. Mas sua pena calava profundamente, sempre que uma grande questão lhe tirava o sono, o que ocorria com alguma freqüência.

25. A Fenaf e a explosão do fumo Os militares, que tinham assumido o poder em 1964, imprimi-

ram ao governo e à sociedade o sentimento de um novo patriotismo, submisso e triunfalista, com a ajuda de artistas e outras figuras po-pulares, com músicas como “Eu te amo, meu Brasil”, slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, e mais tarde também pela conquista da Copa do Mundo no México, em 1970, depois que o treinador João Saldanha, um notório comunista, fora substituído por Zagallo às vésperas do início do torneio, por não aceitar a interferência do presidente Médici para escalar Dario como centroavante.

O movimento que implantara o regime se autodenominava Re-volução Redentora, ou Revolução Democrática. Havia liberdade de ir e vir para os bem-comportados, mas não de pensar e de se ma-nifestar. A Gazeta recebia recados e telefonemas informando sobre assuntos proibidos, mas isso deixava de ser problema, porque o jor-nal não era diário e se limitava a coberturas locais e regionais, além de assuntos técnicos e formativos. A maioria das pessoas acreditava que o País fora salvo do comunismo e da derrocada. Eram boas as relações do jornal com o Glorioso Exército Nacional, como já fora antes de 1964. Isto valeu ao Diretor Frantz, em 1969, a outorga da Medalha do Pacificador, a mais importante condecoração militar dada a civis por serviços relevantes prestados às Forças Armadas. Não eram muitos os gaúchos que a tinham.

A segunda metade dos anos 60, primeiro com o prefeito Orlan-do Baumhardt e depois com Edmundo Hoppe, abriu uma nova fase na economia de Santa Cruz do Sul, a despeito da falta de liberdades políticas, que resultaram na impiedosa cassação do deputado federal Siegfried Heuser, e na tentativa doméstica da Câmara Municipal de

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tirar também os mandatos dos vereadores Júlio de Oliveira Vianna (Lolô) e Roberto Hartungs. Mas o ato foi logo anulado pelo juiz Al-fredo Zimmer, um magistrado que marcou sua passagem por Santa Cruz também por seu engajamento comunitário, especialmente na luta pela implantação das primeiras faculdades. Fazendo brilhante carreira, na década seguinte se aposentaria como desembargador do Tribunal de Justiça do Estado.

Na esteira da I Festa Nacional do Fumo, realizada em 1966, com visitas do presidente Castelo Branco, do presidente eleito Cos-ta e Silva e do então ainda desconhecido general Emílio Garrastazu Médici, que seria presidente menos de quatro anos depois, a região encontrou um novo caminho para a sua economia fumageira. A partir do final da década, os estrangeiros começaram a trazer os seus dólares e foram comprando, uma a uma, as tradicionais empresas de capital local.

Três novas faculdades foram criadas ainda nos anos 60 – Direito, Filosofia e Educação Física – mas elas precisavam ainda ser reconhe-cidas pelo Ministério da Educação. E um movimento mais forte se constituiu para lutar por estradas asfaltadas. A economia se robus-tecia, a cidade se orgulhava de sua grande arrecadação federal, e isso era um argumento forte e incontestável para reivindicar. A certa altura, foi proibida a divulgação dessas receitas. Além do asfalto, também faltava o telefone. A luta durou cinco anos, mas culminou em 1971, quando Santa Cruz se tornou o primeiro município do interior a ter discagem direta à distância (DDD). O telefone auto-mático, discado, já fora implantado em 1966. Ainda em 1971, com o santa-cruzense Ernesto Kurt Lux no comando do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), também se inaugurava o trecho asfaltado entre Santa Cruz e Pantano Grande, e logo o prefeito Edmundo Hoppe separou uma área de Dona Carlota para o Distrito Industrial, onde as multinacionais recém-chegadas come-çaram a se instalar.

Todas essas conquistas tinham na linha de frente a presença cons-tante do jornal, cujas manchetes, exaustivamente repetidas, em certos períodos quase só falavam nessas reivindicações. E o deputado estadu-al Silvérius Kist procurava transformar o limão em limonada, levando o jornal e mostrando suas manchetes às autoridades. Assim, a Gazeta

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do Sul foi construindo um prestígio local e regional que se firmou definitivamente, compensando em parte o predomínio político de Cachoeira do Sul, cidade com a qual se estabeleceu grande rivalidade, em sucessivas disputas, por obras e por traçados de rodovias. A van-tagem política costumava pender para a Capital do Arroz. O jogo só começaria a virar quando o cachoeirense Octavio Germano deixou de ser vice-governador e o deputado santa-cruzense Telmo Kirst assumiu a Secretaria dos Transportes, em 1983, no governo de Jair Soares.

26. O capital internacional Antes do milagre, houve muito suor e muito percalço. A vinda dos

estrangeiros, se de um lado empurrou significativamente a economia do fumo, por outro também significou a necessidade de um novo e grande re-começo. A comunidade tinha construído, ao longo de décadas, laços muito estreitos com os seus agentes econômicos e sociais. Eles estavam, ao mesmo tempo, no comando dos negócios, nas noitadas de bolão dos clubes e tam-bém nas grandes causas comunitárias. Os novos capitalistas, muitos dos quais não viviam permanentemente em Santa Cruz, precisavam ser intro-duzidos no jeito de ser da cidade. De olhos abertos para cada movimento da comunidade, o jornal não apenas sentiu esta necessidade, como ainda foi um dos principais instrumentos para que isto acontecesse.

A transição econômica, coincidindo com mais uma das periódicas cri-ses do papel, constituiu-se em um tempo de vacas magras. A Gazeta sentiu o impacto e até reduziu, por um tempo, sua periodicidade de três para duas edições semanais, sem nunca deixar de ser o mesmo jornal sólido e respeitado por todos, que não devia nada a ninguém e jamais tivera um título protestado. Ao mesmo tempo em que buscava a publicidade das no-vas e grandes indústrias, o Diretor tentava sensibilizá-las também para o seu grande papel de responsabilidade social, sentimento nada habitual nas empresas da época.

Na verdade, desde 1918 já havia na cidade uma multinacional, a Souza Cruz, antes denominada Companhia Brasileira de Fumo em Folha. Ela fora atraída por incentivos e sinalizara com uma fábrica de cigarros, que acabaria indo para Porto Alegre. Mas a grande avalanche de capital estran-geiro ocorreria apenas no início dos anos 70, quando, certa vez, o diretor Frantz escreveu:

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“Afirmei nesta seção, em artigo publicado há um ou dois meses, que concordava com o entusiasmo existente na redação, em relação às novas pos-sibilidades que se ofereciam para a comunidade com a vinda de novos es-tabelecimentos de fumo em folha. Sugeri, no entanto, a todos os que têm possibilidades para influir junto aos mesmos, para que tais empresas também participem do ônus que esta cidade carrega com a sua fama de cidade indus-trial, e que assim tornou-se pólo de atração para a mão de obra não qualifi-cada de vasta região, e chamei a atenção para as conseqüências” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 24/abr/1971).

Sem nunca esmorecer nem se conformar com os obstáculos, ele não permitiu jamais que o fumo fosse combatido em seu jornal, por-que todos dependiam dele. Demorou uma década inteira até que, em 1980, surgisse enfim o grande projeto Hortas Escolares, uma parce-ria da Souza Cruz com a Gazeta do Sul, que começou relativamente modesto, mas que foi crescendo e alcançou o envolvimento de prati-camente toda a rede escolar do sul do País. Idealizado e implantado sob a coordenação de Paulo Roberto Treib, foi o pioneiro de muitos outros projetos comunitários que se sucederam, colocando hoje o se-tor fumageiro como um dos segmentos econômicos mais efetivos nas ações de responsabilidade social e em programas voltados para o meio ambiente.

A comunidade de Santa Cruz, como também a de todo o Vale do Rio Pardo, tendo sempre cultivado um forte sentimento de bairrismo, assim também correspondeu aos investimentos industriais, adotando o tabaco como o seu grande e definitivo valor econômico, dele exi-gindo sempre o retorno social, e a ele nunca negando também a sua parcela de esforço. Isso resultou na construção da sólida cadeia pro-dutiva que, embora tendo enfrentado conflitos ao longo do tempo, é hoje uma realidade que serve como exemplo de organização, dando aos produtores um retorno seguro, seja na garantia de mercado, seja na produtividade de suas lavouras, o que não ocorre com a maioria dos demais produtos agrícolas no Brasil. O fumo, além de firmar-se como o principal item de exportação do Rio Grande do Sul, ficou também conhecido como a cultura mais adequada para a sobrevivên-cia da agricultura familiar na pequena propriedade. Eficiência que acabou inibindo, por efeito colateral, as demais atividades, assim in-duzindo a monocultura.

A vocação para a fumicultura viera dos primeiros anos da colo-

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nização, em meados do século 19. Os imigrantes foram incentivados à policultura, tendo que produzir, além dos alimentos para a subsis-tência, ainda outros produtos para serem vendidos. O próprio gover-no distribuía sementes para que os colonos, vendendo a produção, obtivessem meios para pagar suas dívidas com o tesouro provincial, e assim o projeto imigratório fosse bem-sucedido. Eles tinham que amortizar os valores da compra das suas terras, e o fumo se revelou bem mais lucrativo que o milho e o feijão.

27. Jornal para ler no bonde No final dos anos 60, embora ainda não muito adiantado em ida-

de, o diretor Frantz já estava em regime de contenção de energia, por causa dos problemas cardíacos, que o incomodavam, e das lutas apai-xonadas em que se metia, deixando-o em permanente risco de enfarte. Cada vez mais ele se recolhia a cuidar da filosofia do jornal e a fazer os seus artigos de fundo, que eram editoriais assinados por ele, deixando a parte técnica e editorial, com a confecção das edições, para a equipe de colaboradores, na qual confiava, mas de cujo trabalho nunca tirava os olhos. Se, de um lado, lhes dava autonomia e apoio, de outro também sabia cobrar. Nas vésperas de edição, ele ia à oficina para conferir as manchetes e o volume da publicidade na mesa da paginação. O pessoal do escritório e os redatores também eram os que vendiam os anúncios, porque agências de publicidade só havia na capital.

As edições trissemanais do jornal tinham seis ou oito páginas, em ta-manho grande, conhecido como standard ou padrão. Mas, ao contrário do resto do País, havia no Rio Grande do Sul uma forte tendência pelo tablóide, o jornal de formato pequeno. Só mesmo o Correio do Povo, na época o grande matutino do Estado, e uns poucos veículos mais tradicionais do interior ainda conservavam o formato padrão. Dezenas de jornais comunitários vinham surgindo em cidades médias, todos em tablóide. No centro do País, também os grandes jornais começavam a publicar cadernos encartados. No segundo semestre de 1969, depois de vencer a resistência do pessoal da oficina, que precisava implantar alterações na impressora, os dois redatores da Gazeta – Lúcio Michels e Guido Ernani Kuhn – conseguiram emplacar uma seqüência de três encartes mensais em formato tablóide, com o título Caderno GS, com

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matérias especiais mais elaboradas. O de estréia, em setembro, desta-cou a grande luta pelo asfalto na região e a inauguração do prédio da Previdência Social. O de outubro falou da “reforma agrária” do prefei-to Edmundo Hoppe, com a revolucionária técnica da recuperação de terras, e a primeira feira do livro realizada na cidade. E o de novembro comemorou os 10 anos da Diocese de Santa Cruz do Sul.

Quase uma surpresa para ele, o Diretor apalpou os cadernos com certa desconfiança, porque quebravam uma longa tradição. Aquilo pa-recia comprometer a imagem de seriedade que a Gazeta tinha construí-do ao longo dos anos. Lembravam até aqueles jornais alternativos, tam-bém conhecidos como nanicos, “imprensa marrom”, que circulavam no centro do país, muito preocupados em fazer oposição ao regime, fofoca e sensacionalismo. Como os leitores receberiam um jornal as-sim? É verdade, tinha a vantagem de ser manuseado com maior facili-dade, mas pareceria um jornal para ler no bonde, e em Santa Cruz não havia bondes, as pessoas liam em casa, confortavelmente. Jornal sério, para conservar tal imagem, principalmente numa cidade conservadora como Santa Cruz, a Gazeta tinha como padrão o formato grande do Correio do Povo. Como caderno, até que seria admissível o tablóide. Porém, transformar inteiramente o jornal dessa forma poderia ser uma temeridade, num tempo em que não havia pesquisa para avaliar isso com antecedência e com segurança.

Mas, justiça seja feita, o Diretor nunca deixou de aceitar a discussão do assunto. Mais que isso, entendeu a necessidade de evoluir e moder-nizar o jornal. Pouco mais de dois anos se passaram, e já foi implantada definitivamente, na edição de 18 de março de 1972, a mudança do formato para tablóide, numa verdadeira revolução interna em todos os setores do jornal, especialmente na oficina, onde a resistência inicial fora maior. A manchete daquela edição histórica anunciava, também, um fato da maior relevância para o Município e para o Vale do Rio Pardo: “Universidade: Prefeito garante a construção”. Era o prefeito Elemar Gruendling anunciando a grande obra de seu governo, o prédio que seria a primeira casa própria do ensino superior em Santa Cruz, na rua Cel. Oscar Jost, que originaria as Faculdades Integradas e, mais tarde, a Universidade de Santa Cruz do Sul. Surpreendentemente bem aceito pelos leitores, o jornal em tablóide foi por alguns chamado de “tablete”, e deu muito certo. A fase que se seguiu, e que coincidiu com

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o chamado tempo do milagre brasileiro, foi de grande impulso e pros-peridade para o jornal, embora no meio também tivesse surgido a pri-meira grande crise do petróleo, com todas as dificuldades econômicas daí decorrentes.

28. Na redação e na oficina Logo após a virada da década de 60 para os anos 70, eu já tinha

completado cinco anos de casa. Cheio de fogo para o trabalho, não costumava tirar férias. Começando a vida e precisando fazer um pé-de-meia, retirava as férias em dinheiro. Éramos só dois redatores e, naquele ano, resolvi sair de férias, ficando o Lúcio Michels sozinho a redigir e editar o jornal. Quando voltei, estavam chegando também à redação as matérias que o Ernany Aloísio Iser produzia para os programas espor-tivos da Rádio Santa Cruz, onde era uma espécie de faz-tudo. Fazia-o por puro prazer, sem ganhar nada, pois tínhamos uma relação muito fraterna. Havendo apenas um jornal e uma rádio na cidade, nada me-lhor do que esta parceria de mútua ajuda. Foi assim que, também, falei pela primeira vez no rádio, comentando para ele um jogo de basquete no Corinthians.

O Ernany se encaixou tão bem que logo foi admitido como funcio-nário no expediente da tarde, para assumir o esporte e a revisão do jor-nal. Na rádio, ele trabalhava pela manhã e à noite. Para o esporte ele ti-nha vocação, mas não para a revisão. Havia na rádio um rapaz que fazia a técnica, cheio de gás e de vontade, e que também tinha horário livre à tarde. Devidamente autorizado, trouxe o jovem para fazer a revisão. Era Paulo Roberto Treib, o mesmo que mais tarde se tornaria diretor industrial da Gazeta, depois de passar pela crônica policial e política.

Um dia, sabendo da chegada de um novo revisor, um homem si-sudo e circunspeto entrou na redação com um original para a edição seguinte, indo direto à mesa do rapaz: “Por favor, meu jovem, pode corrigir para mim?” O jovem não tinha a menor idéia de quem seria aquele homem. Só ficou sabendo por mim, bem mais tarde, que era o Diretor em carne e osso. Aí já tinha encontrado um monte de “erros” no original, e até ficou encabulado com isso. Ganhou uma história para contar, além de um bom início de carreira e um grande futuro no jornal. Seu Frantz era assim. Procurava desde a primeira hora esti-

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mular seus colaboradores, não só nas relações internas, mas também nos artigos que escrevia, onde não poupava palavras de incentivo aos integrantes de sua equipe.

A oficina do jornal era barulhenta, e o Diretor morava bem ao lado. O ruído das máquinas não o incomodava. O que incomodava eram gri-tarias e rádios em alto volume. Certa noite, havia um rádio na oficina, ligado em volume exagerado, mais alto que o das máquinas. Molestado pelo barulho, Frantz foi até lá, questionando os decibéis e perguntan-do sobre o dono do rádio. “É do seu Lauro”, respondeu o linotipista. Lauro Freese, mais conhecido como Laurão, era o chefe de oficina e patrimônio vivo do jornal, onde trabalhava desde a fundação. Baixan-do paternalmente a voz, falou-lhe quase ao pé do ouvido: “Seu Lauro, quem sabe o senhor leva para casa este seu rádio, assim eu posso dormir e o trabalho de vocês rende”. “Sim, senhor, seu Frantz”, respondeu Lau-rão, quase monossilábico, como era do seu hábito. O rádio foi embora, mas rapidamente chegou outro no seu lugar, só o volume ficou mais baixo. A oficina não funcionava sem rádio, para ouvir o futebol ou os românticos programas musicais do Ernany Aloísio na rádio local.

No verão, quando a cidade parava e quase nada acontecia, o jornal fechava cedo e rodava quase com o pôr-do-sol. Seu Arlindo, um crioulo retinto e simpático, de dia era jardineiro e à noite apanhava o jornal na boca da impressora, separando e contando os montinhos para cada entregador. Fumava como um condenado, guardando o cigarro e o is-queiro no bolso da camisa, à esquerda do peito. De repente, enguiçou a dobradeira e a máquina empacou. Acorreu todo mundo para ajudar. Até o Diretor, perturbado pelo silêncio repentino da impressora, se pôs de prontidão para eventual ajuda. Demorou mais que uma hora até que um pequeno jornaleiro, metendo o nariz na dobradeira, percebeu um corpo estranho, e descobriu-se que era o isqueiro do Arlindo. Seu Frantz, todo nervoso, chegou de mansinho e disse suavemente ao seu desconsolado jardineiro: “Seu Arlindo, o senhor não tem um outro bolso para guardar o isqueiro?” O filho do seu Arlindo, João Eloir da Silva, é hoje o chefe de impressão da Gazeta do Sul.

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29. Entre cafés e convescotes Era um homem fascinado pela história, pela cultura e pela educa-

ção. “A história é a mestra da vida”, ele escreveu um dia. Além de leitor curioso e voraz, tinha também uma grande paixão por música erudita. Alguns de seus amigos não acreditavam quando ele falava das madru-gadas intermináveis que passava escutando Bach, Beethoven e outros clássicos.

Nos encontros com amigos, e até com pessoas com as quais não privava, ele se assanhava com conversas de roda sobre história, litera-tura, qualquer assunto do passado ou da atualidade, onde mergulhava de cabeça, transformando-se em atração e fonte de saber para os cir-cunstantes. Em períodos de saúde mais estável, tinha prazer em ir ao Quiosque da Praça, onde, diariamente após o almoço e aos sábados pela manhã, se encontrava um grupo que costumava prognosticar eleições ou discutir o futuro do Município, do Estado, do País e da humanida-de. Ali, naturalmente, esses bravos árcades do Olimpo eram cercados pela curiosidade de pessoas que não se arriscavam a dar palpite, mas queriam apenas ouvir, aguçar os ouvidos para as mais sábias assertivas da emergente intelectualidade santa-cruzense. Naquela época, em que o cidadão comum não tinha mais que um segundo grau, às vezes ain-da incompleto, estas eram ocasiões tão raras quanto interessantes para alguém ilustrar-se e aprender humanidades. Ouvir o Diretor do jornal, que pontificava nessas rodas, além de uma aula, era um grande prazer para muitos.

O cafezinho, que costumava freqüentar, seja ali mesmo no Quios-que, seja em outros pontos conhecidos da cidade, era bem diferente dos jantares, coquetéis, comezainas, rega-bofes e outros convescotes, que também aconteciam amiúde. A estes, comparecia com freqüência e por obrigação de jornalista, quando era mais jovem e tinha ainda boa saúde, mas muito raramente depois de agravado o problema cardíaco, e só por motivos bem especiais. Também não tinha, por isso, os hábitos da bebida e do cigarro, mas nessas ocasiões, quando abria suas exceções, girando numa das mãos o modesto Drurys para molhar a palavra cul-ta, e trazendo entre os dedos da outra um desajeitado cigarro aceso, a noitada estaria ganha se houvesse na roda algum interlocutor para con-tracenar. Aí perdia a noção do horário e mergulhava profundamente no

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seu latifúndio cultural, de preferência sobre história, mas sem refugar qualquer outro tema que interessasse a algum circunstante. Só não lhe apeteciam o mexerico, a intriga, a fofoca pura e simples, coisas que também procurava isolar das páginas do jornal.

Certa vez, o advogado Paulo César de Castro, dono de um cur-so supletivo, que na época era chamado de madureza, reuniu alguns amigos para uma noite descontraída em Rio Pardo. Lá se foi o Dire-tor Frantz, com mais alguns colaboradores do jornal, para prestigiar o amigo. E ali colheu a agradável surpresa de ver presente um dos seus mais fraternos companheiros, assíduo colaborador da Gazeta, o histo-riador rio-pardense Biagio Tarantino. Gourmet dos mais respeitados na Tranqueira Invicta, por sua familiaridade com temperos e acepipes da mais requintada cozinha lusitana, o velho Biagio era fã incondicional do famoso sonho açoriano, iguaria que, também por sua luta, acabaria consagrada como símbolo culinário de Rio Pardo. Não posso esquecer como ele escrevia e discursava, quase botando a alma pela boca, em sua empírica simplicidade, para proclamar as virtudes dessa especiaria, hoje transformada em referência gastronômica da cidade.

Em animado círculo, estava presente também um jovem publicitá-rio, ex-juiz de direito, de nome Luís Coronel, o mesmo que mais tarde se tornaria famoso como poeta e compositor, e que já na época trazia consigo sólida formação humanística e respeitável bagagem de generali-dades. Em festa de poucos convivas, quase en petit comité, era inevitável que, a certa altura, esse jovem talento ficasse frente a frente com o Dire-tor da Gazeta. Apresentados pelo anfitrião, logo reconheceram o muito que tinham em comum. Cercados da curiosidade geral, os dois desem-bocaram rapidamente na história, esmiuçando epopéias da literatura universal, arrolando clássicos de várias civilizações, devassando perso-nagens míticos e folclóricos, declamando em dueto os melhores versos do Fausto de Goethe e contando façanhas do Barão de Münchhausen, num desafio cultural que polarizou a noitada. Fascinados, todos tinham gosto em ouvir aqueles dois trovadores de alto coturno, em sua quase pansofia, alternando citações da mais fina erudição. O sabiá já cantava na laranjeira quando o fôlego se esmaeceu e o pessoal, pesaroso, come-çou a bater em retirada. No dia seguinte, chegaram todos sãos e salvos à redação do jornal. Olhando para o Diretor, ousei observar:

- Seu Frantz, foi um show de cultura, uma aula de história, um

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duelo de conhecimentos, ontem à noite...- Que nada, aquilo foi um fogo federal! – respondeu, sem pestane-

jar. Apesar de sua notória extroversão, ele é que não estava mais habitu-ado às extravagâncias próprias dos mais jovens. Aquela tinha sido uma noite tão especial quanto inesquecível.

30. Os artigos de fundo Já vinha dos anos 50 um grande zelo pela vida do rio que abastecia

a cidade, e que deveria ser conservado para uma população que, nas ge-rações futuras, seria cada vez mais numerosa. Poucos, como ele, vislum-braram tão cedo o mal que se fazia, destruindo matas ciliares e abrindo lavouras até a borda dos barrancos. O cinturão verde da cidade, o rio Pardinho, com toda a questão ecológica, que o povo ainda não entendia direito, este era um dos temas prediletos em seus famosos artigos de fundo. Como privilegiado conhecedor da história, desde as primeiras origens, e da forma como as nações do primeiro mundo tratavam os seus rios e arroios, ele podia bem avaliar o que já tinha acontecido, e o que ainda aconteceria no futuro. Embora pequeno, o rio que banha Santa Cruz já fora navegado de barco e atravessado de balsa. Ele mesmo fizera isso com os amigos, na juventude, e sabia que o caudal estava em processo acelerado de poluição, assoreado pelo constante desbarranca-mento e pela erosão das terras mal manejadas, ameaçando deixar rapi-damente a cidade desabastecida de sua água potável.

A ecologia era apenas um dos temas deste notável precursor do que se fez posteriormente nesta área, e foi muita coisa, embora esteja ainda longe de ser o suficiente. Eram, também, assuntos de sua habitualidade a agricultura e a educação, geradoras do alimento para o corpo e para o espírito. A educação era entendida da forma mais ampla, principalmen-te para a mocidade, mas não apenas para ela. Os adultos, cultivando em seus usos e costumes um cotidiano cheio de vícios, constantemente re-novados e modernizados, mereciam freqüentes reparos. E aí se incluía, também, a defesa dos princípios morais no comportamento do povo. Mas ele o fazia com muito respeito, repetindo sempre que não importa quem seja o pecador, mas sim que se corrija o pecado.

Frantz era um jornalista que respeitava as autoridades, mas sabia cobrar delas. Respeitava o povo, mas também sabia colocar habilmente

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o dedo sobre as mazelas da sociedade. Sua crítica era, ao mesmo tempo, elegante e contundente. Alguns dos seus artigos de fundo marcaram época e nunca foram esquecidos pelos leitores do seu tempo, embora já se passem várias décadas desde que foram escritos. Abordava qualquer assunto, mas alguns se destacavam. Estradas, ensino superior, trânsito, economia, política e história são apenas alguns deles. Uma vez escreveu que defender o cooperativismo era como falar em corda na casa do enforcado, porque quase todas as cooperativas tinham fracassado em Santa Cruz, e as poucas que ainda sobreviviam andavam muito mal das pernas. Como motivos disso, apontava:

“O baixo nível de instrução e de cultura dos associados e a daí decor-

rente constituição do conselho fiscal sem capacidade de exercer suas atri-buições. E a intriga que muitas vezes surge, surda no início, para depois solapar as bases do administrador-gerente, tudo causado, quase sempre, pelo associado influente, absorvido pela idéia fixa de Das wäre so ein gutes Stellchen für mich (a gerência talvez fosse um empreguinho sob medida para mim)” (FRANTZ, Francisco J., Gazeta do Sul, ago/1976). Essa questão do cooperativismo parece estreitamente vinculada aos

efeitos nefastos da campanha nacionalista, que agiu principalmente du-rante a Segunda Guerra. Proibidos o alemão e seus dialetos, especial-mente a colônia ficou sem língua e sem comunicação com o mundo. Desapareceu o saudável e ilustrativo hábito de ler para se formar e in-formar, que quase todos cultivavam. Seguiram-se gerações sem leitura, vitimadas por um nefasto empobrecimento cultural, que se refletiu nas condições sociais e econômicas do povo. O alemão-batata, colono gros-so e ignorante, acabou parecendo isso mesmo, refém da irreverência de alguns e das próprias limitações. Por extensão, aos olhos de alguns pseudo-intelectuais das elites estaduais, o fato de alguém ser santa-cru-zense, ou de algum outro lugar colonizado por imigrantes europeus, já lhe valia a pecha de colono, no sentido mais pejorativo. O próprio Di-retor Frantz abordava este tema em seus artigos na Gazeta. Mas, longe de se queixar disso, o nosso Fritz respondia com trabalho, que era o que ele mais conhecia. Para plantar a sua roça, ele não precisava falar um português castiço. Se não podia ler, tinha que agarrar-se à tradição dos antepassados, aos ensinamentos auferidos no próprio tronco familiar. E assim, apesar de tudo, dava a volta por cima.

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31. O modelo que deu certo Mais que a simples questão étnica, foi nos valores culturais, no mo-

delo econômico diferenciado e no sistema de vida que estava a grande distinção entre os povos nativos e os imigrantes europeus e seus des-cendentes. Onde estavam os alemães, os italianos, os poloneses e os austríacos, ali eles pontificavam e impunham o seu modelo, visivelmen-te diferenciado. Júlio de Castilhos já tinha reconhecido isso no final do século 19, mandando dizê-lo em mensagem especial ao governo da república e declarando que esta era a única imigração que tinha o seu apoio. Além da motivação de conseguir mais através do esforço próprio e coletivo da família, o sistema fortalecia a própria unidade do núcleo familiar, onde o que era de um era de todos. Peter Kleudgen, referin-do-se especificamente a Santa Cruz do Sul, já escrevera em 1853 que “o colono é seu próprio senhor e, por ser livre de tutela, aprende a se valorizar, a conhecer sua força e a acreditar em si. Ele vive satisfeito com o seu trabalho, porque colhe êxitos e sabe que no futuro deixará para os seus filhos uma bela e grande propriedade”.

Na contramão dessa realidade, o projeto nacionalista do Estado Novo se preocupava com o “perigo alemão”, tentando apagar os sinais dessa cultura. O modelo europeu de organização social e de metodo-logia de trabalho não foi bem compreendido por alguns. Veladamente, a intolerância se estendeu e se estende através das décadas. Ainda nos anos 80, quando o professor Nelson Bender falou em fundar uma insti-tuição para resgatar a germanidade, com sua cultura, seus usos e costu-mes, seu colega e amigo Hardy Martin, que era historiador e conhecia a realidade, sugeriu que abandonasse a idéia, porque só iria se incomodar. Mas ele não desistiu, lançando, não sem grandes dificuldades, as bases do movimento que não só resultou no Centro Cultural 25 de Julho, mas se ampliou e originou, entre outras coisas, a própria Oktoberfest em lugar da Festa Nacional do Fumo.

Não se sabe ao certo quando o primeiro alemão pisou o solo do Rio Grande do Sul. Alguns registros falam que, em 1797, um certo Nicolau Becker, vindo de Hamburgo, no norte da Alemanha, aportou em Porto Alegre, após casar-se em Rio Grande com Angela Kramer, provavelmente também alemã. Em 1824, depois de chegar o primeiro grupo organizado de 43 imigrantes, foi juntar-se a eles, engrossando a

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colônia de São Leopoldo, onde abriu um curtume. Ao morrer, tinha legado ao Rio Grande uma descendência respeitável de dez filhos, 41 netos, 136 bisnetos e 14 trinetos, totalizando 201 pessoas em apenas quatro gerações de prole.

O que se sabe sobre a imigração alemã é que ela é um grande mar-co divisor na história gaúcha. Foi a partir de 1824 que o Rio Grande começou a construir a realidade de sua Metade Norte, hoje mais rica e desenvolvida. Até então, a economia da província só tinha pratica-mente o esboço do que hoje é representado pela Metade Sul. Mas os 183 anos, que desde então se passaram, representam muito mais que a mudança econômica. O começo da imigração, com a conseqüente fundação das colônias formadas por pequenas propriedades autôno-mas, trouxe os primeiros sinais de uma civilização mais igualitária, de um convívio mais tolerante entre os habitantes, em substituição ao be-licismo das conquistas e ao regime hierarquizado e escravocrata, que caracterizavam a vida na região fronteiriça, onde ainda se disputavam limites nacionais e se cultivavam ideais emancipacionistas.

Ainda como contribuição para a nossa história, vale a lembrança de um fato quase não lembrado entre nós: o de que um grupo de alemães andou pela região de Santa Cruz em dezembro de 1824, logo após o início da colonização em São Leopoldo e 25 anos antes da chegada oficial dos primeiros imigrantes para fundar a colônia de Santa Cruz, na Picada Velha. Segundo relato do professor francês Jean Roche, o governo da província, por razões políticas, tão logo chegaram os pri-meiros alemães a São Leopoldo, tratou de repovoar as antigas Missões Jesuíticas gaúchas. Enviou para aquela região distante um grupo de 67 imigrantes, considerados indesejáveis, que deixaram Porto Alegre em novembro de 1824, subindo o rio Jacuí até Rio Pardo, onde desem-barcaram a 1º de dezembro. E dia 14, “subindo a borda do planalto”, seguiram para as Missões, onde chegaram a 6 de janeiro de 1825. Isto significa, simplesmente, que, além da inexpugnável Tranqueira Invicta de Rio Pardo, município-mãe de todo o centro, oeste e noroeste do Estado, o caminho deles passou seguramente pela região de Santa Cruz, Vera Cruz, Candelária e Sobradinho, sendo provavelmente eles os pri-meiros alemães que pisaram sobre o solo do Vale do Rio Pardo.

Resgatar a história, reabilitar e até mesmo desagravar os valores da cultura dos imigrantes, depois de tanto sacrifício e incompreensão, é uma

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tarefa do nosso tempo, ou não será mais realizada. A Oktoberfest, que aos olhos de alguns pode ter jeito de grande festança para comer e beber, na verdade está possibilitando reviver as tradições interessantes e os valores que permitiram a Santa Cruz e a um pedaço tão grande do Estado este di-ferencial visível na realidade socioeconômica. Não se trata, evidentemen-te, de uma proposta de regermanização, porque hoje são todos brasileiros e patriotas. Trata-se, sim, de preservar o que deu certo e tanto acrescentou ao desenvolvimento gaúcho e brasileiro. A cultura a salvar inclui a língua, os usos e costumes, a culinária, as expressões de arte, a fé, os valores da educação, o espírito empreendedor e, fundamentalmente, o modelo de organização social e comunitária, por onde passou praticamente tudo o que de importante foi construído em Santa Cruz e que, ao longo do tem-po, foi se interpenetrando valiosamente com tradições e valores crioulos ou de outras procedências, gerando uma policromia cultural da qual o Brasil tanto se orgulha.

32. Alles teuto-gaúcho, tchê! Quando os primeiros imigrantes alemães chegaram organizada-

mente ao Estado, em 1824, logo após a proclamação da independência do Brasil, os açorianos já estavam aqui há quase um século, ocupando áreas na região litorânea e no vale do rio Jacuí. Dedicaram-se primeiro à agricultura de subsistência, passando depois a abastecer de trigo os mer-cados do Rio de Janeiro e do Uruguai. Mas as guerras de independência no Prata geraram uma crise econômica, e eles trocaram a lavoura pela pecuária, que julgavam uma atividade mais lucrativa. Essa atividade mais lucrativa, da pecuária, resultou na hoje chamada Metade Sul. E a agricultura propriamente dita, que começou na depressão central, de-pois, com as imigrações européias a partir do século 19, avançou para o norte e passou a constituir a Metade Norte.

Praticamente desde o início, estabeleceu-se uma espécie de compe-tição entre os dois eixos da economia primária. A pecuária extensiva, mais crioula e hierarquizada nas mãos dos estancieiros; e a lavoura, também com pequenas criações, baseada no minifúndio, cada vez mais ocupada pela nova imigração européia, com seu modelo familiar, onde o trabalhador era o dono, e seu olho ajudava a abundar o resultado. Cinco mil alemães tinham chegado ao Estado até 1830, quando a imi-

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gração estancou por pressão dos grandes fazendeiros, preocupados com o progresso das colônias. Eles temiam a concorrência e, por isso, que-riam os imigrantes trabalhando como peões em seus latifúndios, caren-tes de mão-de-obra.

O levante farroupilha, que logo eclodiu, não empolgou a maioria dos alemães recém-chegados. Eles ficaram mais entre a neutralidade e a fidelidade ao governo do Império, patrocinador da imigração. Mas sofriam pressões de um e de outro lado, e muitos acabaram agindo de acordo com essas pressões. Eles não tinham enfrentado a aventura de atravessar o oceano para fazer política ou entrar em guerra, mas sim para trabalhar, dentro de um velho ditado alemão que diz Arbeit macht frei (trabalho liberta). Esta era a grande virtude que buscavam, a de merecer aquilo que fosse conseguido através do próprio esforço. O que significa a mesma coisa que os versos proclamados mais tarde pelos gaúchos, no Hino Rio-Grandense: “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

Isso não impediu, entretanto, que o historiador Décio Freitas, um getulista de carteirinha, ignorasse o detalhe desse culto ao trabalho e ao empreendedorismo como grandes valores, professados pelos imigran-tes, sejam eles tedescos ou europeus em geral. Ele chegou ao exagero de afirmar, a respeito do modelo vencedor da colonização de pequena pro-priedade no norte gaúcho, que “viceja nesta metade acentuado e visível racismo em relação aos habitantes da Metade Sul”, acrescentando que “sem a Metade Sul, os habitantes da Metade Norte se converterão em andróides culturais”, porque “a Metade Norte é, de fato, uma província cultural da Metade Sul” (Zero Hora, 1º/jul/2001, página 17). Mesmo pretendendo criticar, ele acabou fazendo o elogio de que a colonização européia, embora lenta e gradualmente, se integrou e absorveu a cultu-ra gaúcha, o que não aconteceu apenas depois do surgimento do Mo-vimento Tradicionalista, em 1947 – com Paixão Cortes, Barbosa Lessa e outros companheiros – mas estava presente desde muito cedo na his-tória, com grande colaboração também de teuto-brasileiros, como o jornalista e escritor Karl von Koseritz, do qual falaremos mais adiante.

Sem negar a realidade da diferença de modelo laboral e econômico, o historiador caxiense Mário Gardelin, comentando a obra O Linguajar do Gaúcho Brasileiro, de Dante de Laytano, lembrou, entretanto, que os casais açorianos, chegados ao Estado no século 17, trouxeram valores

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culturais e morais semelhantes aos dos europeus que chegariam um século depois:

“Quando os açorianos desembarcaram em terras gaúchas, não trouxeram

apenas suas famílias, de costumes austeros e rijos, nem apenas os alforjes cheios de trigo; com eles, vieram os conceitos que, superpondo-se e cristalizando-se ao gaúcho, deram origem à nossa mentalidade. Mentalidade essa que muito cedo se constituiu um patrimônio comum e que encontra, em nossos CTGs, um repositório de carinhosa sobrevivência” (GARDELIN, Mário. Gazeta do Sul, 18/jun/1981). Essa relativa identidade de valores e princípios constituiu-se em fa-

tor de aproximação entre os açorianos feitos gaúchos e os novos imi-grantes europeus, dos quais os alemães eram os pioneiros. Isto se deu principalmente depois de 1845, com o final da Revolução dos Farrapos, quando recomeçou com mais vigor o movimento imigratório, já sob a égide do governo da Província. Mas havia muitos e grandes obstáculos, a começar pela língua e pelo grande abismo cultural. Aos europeus que visitavam o Rio Grande do Sul, os brasileiros pareciam muito improdu-tivos. Ainda em 1908, ao passar por Porto Alegre, a artista alemã Otti Dietze ficou desapontada, e revelou isso no seguinte depoimento:

“[...] uma preguiça dessas que as pessoas se permitem no Brasil ul-

trapassa todos os limites. As mulheres ficam à janela o dia todo e olham para baixo nas ruas. Como ficam os aposentos por dentro, não posso imaginar, e como pode uma refeição chegar à mesa em suas casas simples-mente é um enigma para mim” (MOREIRA, Carlos André, Zero Hora, 24/12/2005, suplemento Cultura, sobre Os viajantes olham Porto Alegre, de Sérgio da Costra Franco e Valter Antônio Noal).

Bem antes, em 1775, quando apenas os açorianos tinham imigra-do para cá, também esteve no Rio Grande o militar alemão Johann Heinrich Böhm, a serviço da coroa portuguesa. Sobre o que observou na viagem, foi contundente ao comentar as diferenças entre as duas culturas, a dos que estavam aqui e a dos que vinham da Europa, então ainda muito esporadicamente:

“[...] o horror que se tem neste país de todo emprego [...] é tal que

o último almoxarife, para se livrar dele, estropiou-se da mão direita; um outro, temendo ser nomeado, tinha uma pessoa de confiança em Porto Alegre, que devia vir à toda brida avisá-lo, se o nomeassem, e se arranjou de sorte que pudesse antes fugir do Continente com sua família e seus

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melhores pertences portáteis, abandonando um considerável patrimônio (idem, ibidem). Mesmo assim, e certamente ignorando esses detalhes, ao longo de

mais ou menos um século, chegaram ao Rio Grande mais de 300 mil alemães, sem falar nos italianos, cujo fluxo se iniciou em 1875, e outros grupos menores. Desde o princípio, e em grande parte por iniciativa dos próprios imigrantes, começou um difícil, lento e progressivo processo de integração, apesar da grande dificuldade apontada acima. Eles não eram viajantes ocasionais, mas tinham chegado em viagem sem volta. Necessitariam de boas relações se quisessem romper o isolamento de suas comunidades. E uma das principais figuras nessa aproximação foi a do escritor e jornalista Karl von Koseritz. Entre 1855 e 1890, além de escre-ver em sua língua materna alemã, produziu também inúmeros artigos em português, para os mais diversos jornais do País, abordando temas políticos e polêmicos. Ele era redator do mais importante jornal alemão de Porto Alegre, Deutsche Zeitung (1861-1917), e sobre ele escreveu o Pe. Theodor Amstad:

“O que distinguiu Karl von Koseritz de maneira particular na sua ativi-

dade jornalística foi seu trabalho independente e incansável. Não era o reda-tor que usava a tesoura, mas a pena. É difícil compreender como, ano após ano, um único homem fosse capaz de escrever tamanha soma de artigos originais, para os mais diversos jornais, ocupar uma posição de liderança na política e, além de tudo isso, ainda atuar como um advogado muito solicita-do. [...] A sua orientação materialista influenciou, evidentemente, sua pro-dução literária, fazendo com que ela, apesar de muitos aspectos positivos, seja um fruto proibido para cristãos convictos. Para fazer justiça, é preciso dizer que Karl von Koseritz abandonou, nos últimos anos de sua vida, em grande parte, o combate ostensivo ao cristianismo” (AMSTAD, Pe. Theo-dor – Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul (1824-1924). Ainda sobre esta extraordinária figura de Koseritz, Barbosa Lessa e Pai-

xão Cortes, fundadores do movimento tradicionalista gaúcho, revelam, em suas pesquisas, mais claramente a faceta do seu esforço de integração entre as etnias. Sua influência era tamanha que despertou a desconfian-ça da chamada “ditadura positivista” de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. Quando Sílvio Romero iniciou seus estudos sobre o folclore brasileiro, conclamando o levantamento da cultura popular, foi de Ko-seritz, no longínquo Rio Grande, que recebeu a primeira e única adesão,

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com a publicação de longa série de Quadrinhas Populares Coligidas no Rio Grande do Sul, revelando a existência de número impressionante de ma-nifestações populares, muitas delas comuns às culturas crioula e germana. Ele advogava a nacionalização dos alemães, conservando a sua cultura, e especialmente a sua “religião do trabalho”.

Além da adoção do chimarrão (com a variante do mate doce), do churrasco e outros itens culinários, os descendentes germânicos foram também “gauchizados” pela forma de utilização do cavalo para o trabalho e a locomoção. A própria figura do Musterreiter (caixeiro-viajante) sinte-tiza da forma mais significativa esta integração, porque o cavaleiro falava alemão, mas trajava indumentária gaúcha. Uma série de danças germâ-nicas foi incorporada ao repertório gauchesco. O próprio acordeão, hoje um instrumento-símbolo do Rio Grande, é de origem alemã. Paixão e Barbosa também registram as semelhanças existentes entre o Kerb alemão e o fandango gaúcho, simbiose que denominaram de Fandankerb.

Os dois pesquisadores gaúchos lembram, ainda, outros aspectos do convívio das duas correntes étnicas no Rio Grande e algumas circunstân-cias que marcaram a história de sua evolução. Eles apontam que a abo-lição da escravatura minou os alicerces da aristocracia rural, provocando em todo o País uma tomada de consciência política dos fazendeiros. E mencionam o seguinte registro do sociólogo J. Fernando Carneiro:

“No Rio Grande do Sul, os estancieiros tiveram de enfrentar princi-

palmente dois perigos: a desordem proveniente do aumento populacional dentro das estâncias (índios vagos, andarengos, gaudérios, vagamundos, homens desocupados que enchiam os campos do sul) e a presença dos re-presentantes das zonas coloniais nos Conselhos políticos. Coube a um es-tancieiro culto, enérgico e cruel – Júlio de Castilhos – enfrentar o perigo da desordem, gerada no próprio seio das estâncias, e o perigo que advinha das pretensões políticas da gente colonial. Proclamada a República, a pro-víncia mais liberal do Brasil transformou-se como por encanto no Estado de governo mais autoritário do Brasil. E a ditadura positivista, representada por Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e João Francisco, conseguiu realmente defender a ordem e o regime” (CARNEIRO, J. Fernando, As Colônias Alemãs no Sul do Brasil em Face da Política Nacional, in Província de São Pedro, nº 16, Ed. Globo, Porto Alegre). Ainda segundo Paixão e Lessa, um dos primeiros atos do castilhismo

foi exatamente prender o velho Karl von Koseritz. É o poeta Múcio Tei-xeira que recorda a prisão de seu antigo professor: “Metido no infecto ca-

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labouço de uma praça de guerra, os oficiais que lhe serviam de carcereiros divertiam-se em dizer, perto das grades, de maneira que ele escutasse, que a Junta Militar o havia condenado à morte, devendo o fuzilamento dar-se dentro de poucos dias. Koseritz, que sofria de uma lesão cardíaca, além de enfraquecido pela má alimentação, morreu dentro do cárcere”.

Como se pode ver, a germanidade sofreu percalços quase permanentes, desde os primeiros tempos de sua chegada ao Rio Grande do Sul, sempre vitimada pelo mesmo fantasma que incomodava as oligarquias do poder no Brasil: o medo de que esses “estrangeiros”, embora vivendo ainda num certo isolamento, tentassem tomar conta da política e do poder, que era, na verdade, o que menos lhes interessava, embora quisessem ser brasilei-ros por inteiro. Isso se repetiu na Primeira Guerra Mundial e, com muito maior violência, durante o Estado Novo e a Segunda Guerra. Mas os fatos demonstraram que tudo não passava de fantasia. Os imigrantes não vieram para fazer política, o que também não faziam lá na Europa. Vieram para sobreviver pelo trabalho, o que não tinham conseguido lá. Eles vieram, na verdade, em busca de uma nova pátria, e queriam ajudar a construí-la. Muitos não compreenderam que a participação política é apenas uma de-corrência necessária.

É interessante notar que também em Santa Cruz, a despeito da ruptura provocada pela caça à germanidade – que, a pretexto de combater o nazis-mo, queria mesmo destruir as marcas da cultura – houve, mesmo assim, uma certa absorção rápida dos fatos. O Movimento Tradicionalista Gaú-cho havia surgido em 1947, dois anos após o final da guerra, e já em 1956 se fundava em Santa Cruz do Sul o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, o CTG Tropeiros da Amizade. Do alto do seu sobrenome germânico, o apresentador Valdomiro Schilling, com o programa Coxilha do Rio Grande, na Rádio Santa Cruz, foi o inspirador da nova entidade. E o grupo dos fundadores tinha numa ponta o advogado Rolph Bartholomay, o mesmo que, como redator da Gazeta de Santa Cruz, se negara a publicar, em 1945, um artigo afirmando que “em Santa Cruz, até Deus é nazista”.

Hoje em dia, já são mais de uma dezena os centros de tradições gaú-chas na cidade, enquanto as entidades de cultura alemã são apenas duas. A primeira delas, o Centro Cultural 25 de Julho, só surgiu em 1986, 30 anos após a fundação do primeiro CTG. Os teuto-brasileiros estão em maior número nos CTGs do que nas entidades germânicas. Mais que isso, sobrenomes alemães se multiplicam no mundo tradicionalista, seja como

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dirigentes, seja até como artistas da música gaúcha. É interessante apontar, também, que os valores éticos e morais que norteiam as entidades gaú-chas e teutas são muito semelhantes, centrados na instituição da família. Esta aproximação decorreu, em boa parte, do longo e harmonioso con-vívio entre as duas culturas na vida civil, só perturbado nas vezes em que autoridades opressoras se entrepunham, gerando intranqüilidade com seu absolutismo.

33. “Deus me livre dos amigos...” Depois desta longa digressão histórica, que julgamos oportuna, vol-

temos ao fio da nossa meada. Apesar da harmonia multicultural existen-te de parte da maioria do povo, os tempos heróicos do jornalismo local incluem também diversos capítulos que revelam a rançosa segregação cultural, existente da parte de algumas minorias, contra o principal es-teio do desenvolvimento de Santa Cruz do Sul. Uma dessas histórias, ocorrida no verão de 1971, deu-se comigo, mas a briga foi comprada pelo Diretor Frantz. Era, ainda, um tempo em que fazer jornal era jogar em todas as posições. Assim, eu era ao mesmo tempo repórter, redator, editor, agenciador de propaganda e ainda metia os dedos na graxa da paginação.

Nos meses de janeiro e fevereiro, quando a cidade praticamente pa-rava, vender anúncio era tarefa de herói. Resolvi, então, bolar uma idéia e levá-la ao cliente, que era a loja de bazar e eletrodomésticos Frederico Rech & Filhos Ltda., mais conhecida como Fritz Rech. A publicidade destacava a origem alemã da geladeira Steigleder, um bom argumento de venda numa cidade marcadamente germânica. Embora sabendo so-bre o nacionalismo renitente, que de alguma forma ainda sobrevivia, mesmo passados já 26 anos desde o final da guerra, não imaginava que a reação pudesse vir do glorioso Exército Nacional, ao qual todos de-viam continência durante o regime de exceção implantado em 1964.

Filho de Encruzilhada do Sul, o Ten. Cel. Sidney Zanon Macha-do tinha assumido transitoriamente o comando do Oitavo Batalhão, a unidade militar da cidade. O anúncio tinha sido publicado na pri-meira página. Ele não gostou e, ainda cedo da manhã, telefonou ao jornal para, sem maiores explicações, apenas dizer que a publicidade não poderia mais sair. Recebi o recado e fui ao gabinete do Diretor:

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“Seu Frantz, acho que o senhor precisa saber disso: chegou um tele-fonema do comando do Quartel, mandando suspender o anúncio do Fritz Rech”. Pediu para ver o que tinha saído. Levei o jornal, e ele leu, pausadamente:

“Este alemão imigrou há 77 anos, tornou-se gaúcho, mas não esque-

ceu sua origem! Claro que você o conhece! Chama-se Steigleder, o refri-gerador. Naturalizou-se brasileiro, sem no entanto perder a qualidade e a perfeição de acabamento que trouxe de suas origens” (Gazeta do Sul, 3/fev/1971). É claro que um texto assim tinha as suas razões, porque a população

estava habituada com os bons produtos de marcas alemãs, que cos-tumavam ser importados ao tempo em que ainda não tínhamos uma indústria nacional à altura das necessidades. Lembro que, na minha infância, apareciam em casa até réguas escolares e caixas de lápis com a inscrição Made in Germany. Com nome alemão, ninguém precisava conferir a qualidade do produto. O Diretor me olhou nos olhos: “Foi o Zanon? Mas não tem o menor cabimento. Isso é um desaforo. Por isso sempre peço que Deus me proteja dos meus amigos, porque dos inimigos eu posso cuidar mesmo!”

Homem explosivo e com problemas cardíacos, ele não hesitava em soltar os cachorros até nos melhores amigos, quando havia motivos para tal. Sua relação com todos os comandantes militares costumava ser muito fraterna. A boa imagem do Exército na comunidade tinha muito a ver com o trabalho de aproximação realizado pela Gazeta, o que va-lera ao Diretor, em 1969, a concessão da Medalha do Pacificador, por relevantes serviços prestados. A fase era muito difícil para o jornal, que, no auge da ditadura militar, tinha reduzido temporariamente sua pe-riodicidade para duas edições semanais. Aquilo não lhe desceu pela gar-ganta, onde também tinha atravessadas inúmeras outras questões ainda não resolvidas, e por isso também ainda não digeridas. Durante uma semana inteira, de 3 a 10 de fevereiro, ficou remoendo aquela situação, dormindo mal e ouvindo dois dos seus conselheiros habituais: o traves-seiro e a fiel e inseparável companheira Dona Nelly. Quase diariamente comentava aquilo que considerava um injustificado fogo amigo, que continuava atravessado em sua garganta. No sétimo dia, finalmente, chegou na redação e comunicou sua decisão bem amadurecida: “Vou devolver essa medalha, não a pedi e não preciso dela. Que façam dela o

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que bem entenderem. Vem cá, Guido, vamos fazer a carta”.Na mesa dele, papel na sua máquina de escrever Erika, fui datilo-

grafando o rascunho do que ele ditava. Ficou enorme. Depois, repeti o serviço, passando a limpo. O trabalho consumiu toda a manhã daquela quarta-feira, até sacrifiquei o almoço para terminar a carta. Deu oito fo-lhas de ofício datilografadas, cheias até o fim. No início da tarde, pediu ao gerente comercial Romeo Romminger para embrulhar o material – medalha, diploma e diversos outros distintivos – e levar tudo, junto com a carta, até o Comando do Quartel, o que foi feito rapidamente.

Não demorou muito e o jipe do Exército estacionou à porta do jornal, com o próprio comandante trazendo nas mãos o embrulho que queria devolver. Mas Frantz tinha desaparecido estrategicamente, sem dizer onde estaria, só imaginando a batata quente que o militar teria nas mãos. Durante toda a tarde, de meia em meia hora, a cena se repetiu à porta do jornal, com o jipe do Exército e seu ilustre passageiro. Já passava das 17h quando o jornalista Lúcio Michels resolveu ir à casa do Diretor, perguntando a Dona Nelly sobre o seu paradeiro. Tinha ido ao Country Clube. Para não adiar ainda mais o final da história, para lá se mandou. Já depois de encerrado o expediente, o comandante foi rece-bido na casa de Frantz, deixando sobre sua mesa de centro o embrulho com a condecoração devolvida.

34. O grande desabafo A carta, que demorou a manhã inteira para ser escrita, a quatro

mãos, era imensa. Encheria uma página de jornal, se fosse publicada. É evidente que o Diretor aproveitou a ocasião para descarregar uma série de dissabores que trazia atravessados na garganta, acumulados ao longo dos anos, deixando claro que aquele desabafo não era apenas contra o comandante, mas englobava vários outros fatos acontecidos ao longo dos 26 anos do jornal. A atitude do chefe militar fora apenas a gota d’água para entornar o caldo. Neste e nos próximos capítulos, reproduzimos a carta, bem elucidativa a respeito da figura e da perso-nalidade do Diretor, revelando também muitas das dificuldades que o jornal enfrentava. Assim começou a catilinária:

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“Santa Cruz do Sul, 10 de fevereiro de 1971. Senhor Comandante. Depois de ter pesquisado a fundo a respeito e demoradamente meditado sobre o desagradável caso do anúncio dos refrigeradores Steigleder, estou capacitado a formar juízo quanto à ocorrência e manifestar, com toda a franqueza e sinceridade, a minha opinião a respeito.

Não me aprofundei, nem aqui abordarei o mérito do assunto, se bem que recebi a informação de que o autor da redação do anúncio usou ar-gumentos que vinham e continuam sendo diariamente repetidos pelas es-tações de rádio e televisão, ou em revistas como Visão, para citar somente alguns veículos de divulgação (anúncios de whisky, vinhos, máquinas de escritório, etc., etc.). O que é permitido ou tolerado no Rio, São Paulo e Porto Alegre não vale para Santa Cruz?

Mas, o motivo da presente é a forma como V. Sª, na sua condição de Comandante, tratou do assunto. Confesso sinceramente que me causou decepção, e foi razão de profundo aborrecimento, o fato de V. Sª ter deter-minado, através de simples recado telefônico à funcionária que também atende os telefonemas, o comparecimento do responsável pelo anúncio ao quartel do I/8º R. I.

Além disso, acontece que o sr. Adalberto F. Dreher, Diretor do jornal que me substitui por ocasião das minhas periódicas crises cardíacas, ou períodos de repouso determinados pelo cardiologista, recebeu também recado para comunicar-se com V. Sª pelo telefone. Quando o sr. Dreher esperava que, de parte do Comandante, recebesse um agradecimento pela bem elaborada cobertura jornalística da visita do Exmo. Sr. Gen. Lacerda e das promoções denominadas Aciso II e III, agradecimentos estes que são de praxe quando damos cobertura a autoridades, altos dirigentes de empresa, políticos de projeção, educandários, etc., ficou surpreendido e até perplexo, ao ser interpelado, inicialmente de forma áspera, por parte de V. Sª, sr. Comandante, a respeito do dito anúncio. Nesta ocasião, o sr. Dreher informou que a direção do jornal assumia integral responsabilida-de pelo anúncio, por ter sido elaborado por um dos nossos colaboradores. V. Sª, então, deu ordem para que mencionado anúncio, da firma Frederi-co Rech & Filhos Ltda. (pago e aprovado por Steigleder), não mais fosse inserido no jornal.

Acontece que o firmatário, como fundador do jornal, que carrega esta cruz há 26 anos, proprietário de mais da metade do capital, e ainda seu diretor, conforme é público e notório, não só em Santa Cruz do Sul, mas em toda área de penetração do jornal, foi completa e brutalmente descon-siderado neste tão lamentável affaire, desconsideração que se agrava por partir do Comando do I/8º R. I., afeito, mais do que qualquer civil, às questões de hierarquia e disciplina.

Foi uma surpresa da qual, confesso, ainda não estou refeito, se consi-derarmos as excelentes relações que existem entre o Regimento e o Jornal, entre o Comando daquele e a Direção deste.

É para mim incompreensível que o firmatário, de parte de V. Sª, sr. Comandante, fosse inteiramente ignorado, como se a quinta roda da car-roça fosse, quando, por um princípio elementar de hierarquia, deveria ser

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eu a primeira, e não a última pessoa a tomar conhecimento das ordens e disposições de V. Sª em relação ao jornal.

Acontece que, assim como o Comandante do Regimento é a única pessoa autorizada a falar pela sua unidade, é ao Diretor do jornal que cabe representá-lo em todas as circunstâncias que fogem da rotina. Não se pro-cedendo assim, a entidade ou empresa vira num quintal de Mãe Joana.

E a pesquisa, que agora acabo de fazer, me positiva a informação de que já em outra oportunidade V. Sª convidou o redator da crônica policial a comparecer à sua presença e interpelá-lo a respeito de uma notícia rela-tiva a um acidente de trânsito, fato que me foi sonegado pelo redator e, repreendido agora, muito vivo e habilidoso, alegou que o fizera para não me dar aborrecimentos.

Talvez errado ou certo, sempre julguei fosse merecedor de alguma consideração de parte de V. Sª, consideração que, por exemplo, sempre me dispensaram os seus dignos antecessores, vários ilustres Generais da Ativa e da Reserva, e que ainda recentemente recebi dos dois distintos oficiais que ultimamente desempenharam as funções de S-2 da unidade, os quais, mesmo poucas semanas após a recuperação do enfarte do mio-cárdio, que quase me fez esticar as canelas, receberam, quando eu ainda na minha residência, toda a colaboração de que necessitaram no interesse de seu trabalho de interesse público. E podem, com certeza, informar esses dois distintos oficiais que sempre os recebi, quer no jornal, quer em casa, com cortesia e atenção inexcedíveis, o que, aliás, foi apenas uma questão de reciprocidade de tratamento.

Há uma hierarquia no nosso jornal, mais baseada no bom exemplo, na franqueza, numa vida particular e profissional inatacáveis, uma vida que sempre se caracterizou pela ética, pelo despreendimento e pelo fato de colocar em todas as minhas decisões um pouco do meu coração. Talvez seja esta a razão por que os empregados desta empresa me respeitam assim como um filho respeita o pai, pois sou consultado muitas vezes até em problemas particulares, inclusive por ex-empregados da empresa, que vêm consultar o firmatário deste se devem ou não comprar ou vender determi-nado imóvel ou deste ou daquela forma empregar as suas economias.

Vinte e seis anos de jornal, sem jamais sermos compelidos a uma úni-ca retificação de notícia, ao menos neste aspecto nos colocamos ao lado do Times, de Londres. Vinte e seis anos de empresa, sem uma questão trabalhista sequer, dá uma demonstração de que isto aqui é e sempre foi uma grande família. Dezenas de rapazes, de famílias das mais humildes e pobres, aqui iniciaram a sua vida como vendedores de jornal, tiveram aqui a chance de aprender uma profissão, e hoje, em Porto Alegre, a exercem com salários relativamente bons. Só no Correio do Povo, jornal que melhor paga os seus profissionais, temos seis desses rapazes que tiramos da rua, e o chefe de oficina do Jornal do Comércio é outro desses rapazes que faturam mais de Cr$ 1.000,00 mensais, e alguns já têm seu automovelzinho.

Este é o grande patrimônio da Gazeta do Sul, e vale mais que os Cr$ 700.000,00 de capital e reservas, que não produzem renda, pois o jornal, nos seus balanços, só empata, pois não tem quaisquer lucros operacionais.

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Desculpe, sr. Comandante, a prolixidade deste ofício, mas preciso desabafar, para não explodir por magoado. Vejo que o sr. Comandante, como aliás acontece com 99% dos que vivem em Santa Cruz do Sul, sabe tão pouco a respeito do nosso jornal e do seu diretor. Acontece que não sou cabotino para, publicamente, dar palmadinhas nos próprios ombros. [...]”

35. Ameaçando fechar o jornal A carta está apenas na terceira das suas oito laudas. Daqui para

frente, começam outras considerações, incluindo até mesmo a ameaça de fechar o jornal, que não era verdadeira, senão que apenas estratégica, para demonstrar o mau negócio que era, trazendo muito incômodo e nenhum lucro. Como também se pode ver, muitos outros pontos da carta são apenas ironia e força de argumento, não podendo, por isso, ser tomados ao pé da letra, mas interpretados à luz das circunstâncias e também com a leitura das entrelinhas. Aqui, ele anuncia o fechamento do jornal, mas não era este o real objetivo, tanto que nunca o tornou público, sequer o comentou com os colaboradores:

“V. Sª entra e interfere na vida do jornal num momento histórico, pois acabo finalmente de tomar a decisão de encerrar as atividades da Gazeta do Sul. Não que sua desconsideração tenha sido a causa essencial. Foi apenas a gota que entornou o caldo.

Há vários anos que dois acionistas, que possuem juntos 40% do capi-tal social da empresa, insistem para que se feche o jornal, uma vez que o mesmo não dá qualquer lucro industrial, estando na iminência de ter os prejuízos de monta que caracterizam a desvalorização de uma maquinaria que, até então tradicional e moderna, cada vez mais vem sendo substitu-ída por máquinas off-set. Na realidade, entendem estes meus sócios, por coincidência ambos meus compadres, que a comunidade santa-cruzense jamais correspondeu aos esforços desenvolvidos e sacrifícios feitos pelos fundadores e mantenedores do jornal.

Possuindo eu um pouco mais de 50% do capital social da sociedade anônima, até hoje relutei e resolvi manter a empresa, mesmo com sacrifí-cio pessoal de mais de três mil cruzeiros mensais. Talvez uma questão de teimosia ou, se assim o podemos chamar, amor ao bem público e, portan-to, à empresa que me consumiu 26 anos da minha vida, inclusive aquela fase maldita do jornal diário, quando era diretor, redator, relações públi-cas e gerente ao mesmo tempo, trabalhando 20 horas por dia, criando a coronariopatia, que me tornou maduro para posterior enfarte.

Efetivamente, a comunidade jamais correspondeu ao esforço. Quan-do da fundação, recebemos inúmeras promessas demagógicas dos clubes de serviço, do comércio, da indústria, profissionais liberais e entidades

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diversas. Foram somente palavras, pois, uma vez em funcionamento o jornal, a filosofia passou a ser “te vira, Frantz, que o problema é teu”.

Ao invés da colaboração prometida, seguidamente eram-nos criados problemas...”

A esta altura, ele atingia o pico do seu desabafo, contra figuras da política, das igrejas e até do mundo empresarial. Falou de um sacerdote que se deixou manobrar por um jovem político, que já passara por vá-rios partidos e que, como candidato a deputado, passara a freqüentar a redação do jornal para pedir a divulgação de notícias de autopromoção. Outro padre costumava trazer ao jornal textos de cunho doutrinário, a quem o Diretor sugeriu que os divulgasse do púlpito de sua igreja. E prossegue a carta: “Criei dois inimigos, e foi aí que, de repente, começou a surgir, nos meios simples da nossa gente do interior, a lenda de que o diretor do jornal de Santa Cruz era anticlerical, herege, pois, como presidente de uma seita religiosa chamada Rotary Clube, às sextas-feiras se reunia em torno de um jantar para adorar uma roda dentada”.

A campanha era atribuída a vários padres católicos do interior, com grande queda no número de assinantes do jornal naquelas regiões, onde a Igreja exercia forte influência. Também um pastor protestante, segun-do a carta, “achou de seu piedoso dever visitar todos os seus paroquia-nos para recomendar aos bons protestantes que desencomendassem a Gazeta do Sul, dirigida por um cidadão furiosamente entregue à religião papista”. Seguimos transcrevendo o longo documento:

“Mas, com todos tais esforços, despendidos por alguns clérigos das duas principais confissões religiosas, o jornal não quebrou. Perdemos al-gumas penas nessas campanhas, mas a estrutura resistiu a todos os im-pactos.

Naquela época, o clima de Santa Cruz era mais ou menos como aque-le que ainda hoje existe no norte da Irlanda (se bem que lá o fator econô-mico tenha influência decisiva). Quem acabou com todas essas fofocas foi a criação do Bispado e a posse de Dom Alberto Etges, essa figura ascética, admirável e bondosa, e a vinda de pastores evangélicos com mais preparo intelectual, que deixaram aos seus fiéis a liberdade de escolher o jornal de sua preferência. Mas, por falar em Irlanda, é muito comum, entre os irlandeses, a citação do provérbio: Dangerous is the man who read only one book, que, pelo que deduzo, é uma tradução do aforismo de S. Tomás de Aquino: Timeo hominem unius libri.

A guerra e os tempos de inflação pós-guerra, a exemplo do que acon-teceu em outros lugares, também em Santa Cruz geraram um certo nú-

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mero de novos ricos, cuja moral e cultura não acompanharam a marcha ascendente e vertiginosa dos seus bens materiais. Acham que, com o di-nheiro, conseguem tudo e ficam surpresos quando, de vez em quando, surge uma exceção para confirmar a regra.

Assim, por exemplo, anos atrás, um próspero cervejeiro local enten-deu de ficar importante, e efetivamente tornou-se muito importante. Tor-cedor do F. C. Santa Cruz, achou poder interferir no jornal, pedindo ao diretor deste que afastasse um colaborador que publicava uma secção bem feitinha, de enaltecimento do E. C. Avenida. O colaborador, que se subscrevia “Alvi-verde”, hoje já falecido, era um rapaz pobre, doente, que não fazia mal a ninguém e, conforme confessou a outro colaborador e mesmo ao firmatário deste, se realizava através do que escrevia na Gazeta. É lógico que não atendi as pretensões insistentes do cervejeiro vaidoso e prepotente, e foi assim que uma empresa, que gasta Cr$ 100.000,00 na TV e jornais de Porto Alegre, não gasta um tostão no jornal local. Os demais diretores daquela empresa são apenas fantoches.

Não faz muitos anos, um diretor da então principal fábrica de cigar-ros, num sábado à tarde, quando repousávamos de uma partida de golfe, na presença de mais três companheiros, criticando uma notícia a respeito de um competidor, de forma grosseira fez alusão a que estaríamos sujeitos a perder todos os anúncios da empresa. Não gostei da sua prepotência e sugeri que socasse os seus anúncios numa determinada parte do seu cor-po, pois não vinha ao Country Club para tratar do jornal, e muito menos para dar satisfação a quem quer que seja. Os “deixa-disso” intervieram, afirmando que o fabricante de cigarros por certo estava brincando, ao que retruquei que socasse os anúncios brincando. É natural que até hoje o jornal local consta no index da empresa.

Há poucos dias, uma terceira potência de Santa Cruz do Sul, firma poderosa, recentemente vendida a um poderosíssimo grupo estrangeiro, dos maiores do mundo, envolveu a Prefeitura e a Câmara de Vereadores, bem como alguns elementos da Comissão do Plano Diretor, visando con-seguir, a troco de banana, o fechamento da Av. Paul Harris (aquela que passa ao lado do Quartel). Explico. Queriam tomar conta da avenida, ale-gando, sem qualquer comprovação aceitável, que necessitavam de tal área para ampliar a sua empresa. Foi novamente o jornal e o seu diretor que, não contando com um único aliado, pois em tais condições todo mundo aqui se omite, conseguiram, através de discussão pessoal na Comissão do Plano Diretor, que integro, e de artigos no jornal, fazer com que não se consumasse esse atentado ao bem público, que nos traria o ridículo nacio-nal e o desprezo das gerações que nos sucederão.

Desses exemplos poderia contar dezenas, não, centenas, mostrando como o utilitarismo, o egoísmo, a mesquinhez, a pequenez moral sempre festejaram e continuam festejando os seus grandes triunfos. E quando não o conseguem, uma inimizade a mais para o jornal, que tem o seu esteio na classe média, que produziu alguns elementos que valem mais do que o seu peso em ouro [...]”.

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36. A traição do fogo amigo Na última parte da carta, mais uma vez ele colocou a sua grande

mágoa pela atitude do comandante, que considerava um disparo de fogo amigo. Suas considerações finais, longamente pensadas e argu-mentadas, não esqueceram de lembrar as incompreensões acumuladas ao longo dos anos. A quase infindável correspondência foi assim fina-lizada:

“Todo mundo pede a colaboração do jornal. Colaboração para com o

jornal, porém, são poucos os que dão. Ainda não me lembrei, nem teria disposição para fazer um levantamento, mas acredito que, de 50 pessoas que visitam o jornal, 48 vêm pedir, de uma ou de outra forma, um favor, uma ajuda, como se isto aqui fosse mantido pelos cofres públicos ou vi-vesse do ar. Agora, quando esta trincheira do bem público começa ainda a receber fogo de um flanco que considerava em mãos amigas, não vejo mais razões para insistir no meu ponto de vista, qual seja, o de manter e melhorar o jornal.

Fecharemos o jornal, o que, naturalmente, envolve algumas operações e algum tempo, pois razões de ética exigem que devemos considerar e acautelar os interesses dos leitores, que pagaram adiantadamente a assi-natura, conseguir empregos para os nossos funcionários, para não gerar-lhes problemas de subsistência, e vender as máquinas enquanto o jornal estiver em funcionamento, para evitar que, procedendo de forma diversa, caiamos nas mãos das piranhas que fazem a intermediação na venda e quererão recebê-las a troco de banana.

Veja, sr. Comandante, como às vezes as situações curiosas se criam: Sabemos que V. Sª é um bom nacionalista e, no entanto, contribuiu com a última pá de cal para que, em breve, desapareça o único jornal em lín-gua portuguesa que conseguiu sobreviver em Santa Cruz do Sul, durante muitos e muitos anos. V. Sª é um autêntico representante da classe média e, no entanto, acho que justamente essa classe é a que será mais prejudi-cada com o desaparecimento do jornal. V. Sª é a favor da Revolução e, no entanto, vai contribuir, sem querer, para que os elementos subversivos, e que não gostam do Exército, nem da Gazeta do Sul, gozem um bocado e se divirtam nos seus círculos, a respeito da situação criada.

Para fazer um jornal em Santa Cruz, com tanta gente utilitarista, principalmente nos altos círculos econômicos, é necessário que o diretor não possua a noção do ridículo, elogie e agrade invariavelmente os anun-ciantes poderosos e excelentíssimas esposas, e tenha uma coluna vertebral mais flexível do que borracha.

Ora, sr. Comandante, se quando moço não cedia jamais às pressões, não será depois de velho que vou fazê-lo, quando, através de minha apo-sentadoria e o dinheiro de três heranças que tive o bom senso de aplicar na Bolsa do Rio, em empresa que mais bonificações deu nos últimos 15

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anos (sem qualquer renda do jornal), me permitem manter dignamente a família e até periodicamente fazer uma viagem ao exterior.

Só Deus sabe com que satisfação e orgulho recebi e ostentei, até on-tem, a Medalha do Pacificador, que me foi concedida por iniciativa do I/8º Regimento de Infantaria, em memorável solenidade por ocasião da posse do ilustre Ten. Cel. Hélio Denardin, presidida pelo saudoso e ines-quecível cavalheiro Gen. Edson de Figueiredo. Tive como padrinho, a pedido dele ao Gen. Comandante da 3ª Divisão, o meu particular amigo Cel. Eurípedes Ferreira dos Santos Júnior, ao qual me une profunda ami-zade, baseada no respeito mútuo.

Acontece que, depois de desconsiderado pelo sr. Comandante do I/8º R. I., não tenho mais razões anímicas de continuar portando mencionada distinção. Tenho a impressão, pois possuo profundo o senso do ridículo das coisas, que, sem dúvida, encabularia perante os srs. Oficiais do I/8º R. I. e, o que é pior, perante os meus colaboradores, todos cientes do lamen-tável incidente, se, insensível, continuasse ostentando o distintivo relativo à Medalha do Pacificador.

Concedida por iniciativa do I/8º R. I., depois da intromissão do sr. Comandante na vida interna do jornal, demonstrando que este e o seu diretor não mais merecem a confiança e a consideração do Exército, aqui representado pelo Oitavo, acho do meu dever devolver, junto ao presente ofício, a Medalha do Pacificador, o respectivo diploma e os vários distin-tivos que recebi naquela ocasião, para que V. Sª dê aos mesmos objetos o destino previsto em lei ou regulamento.

Ao mesmo tempo, informo que, desprestigiado como diretor do jor-nal, e na iminência de fechá-lo, nesta data peço demissão dos cargos de diretor que exerço no Sindicato dos Proprietários de Jornais do Rio Gran-de do Sul, como representante da imprensa do interior, da Associação Riograndense de Imprensa, também como representante do interior, e da Associação dos Diretores de Jornais do Interior, avisando ainda à Adjori que não quero que em Santa Cruz do Sul se realize o Congresso dos Di-retores de Jornais, a que tinha direito pelo nosso jubileu de prata. Saturei, e nada mais quero com a imprensa.

Espero, dentro do menor prazo possível, estar livre de todas as ativida-des relacionadas com o crepúsculo do jornal, para gáudio da minha famí-lia, dos meus companheiros de golfe e do meu cardiologista, que recente-mente me repreendeu por ter-me envolvido pessoalmente no escandaloso caso do pretendido fechamento da Av. Paul Harris. Subscrevo-me com a mais alta consideração. (a) Francisco J. Frantz – Diretor”.

37. O dito pelo não dito A visita do oficial à casa de Frantz, devolvendo o embrulho com to-

das as peças da condecoração, já tinha servido para desfazer o rumoroso qüiproquó, que, segundo transpirou, teria envolvido até mesmo altos

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escalões do III Exército. Mas faltava a formalização por parte do co-mando da unidade militar, o registro para os arquivos. Datado de 16 de fevereiro de 1971, seis dias após o final feliz apalavrado, o Comandante fez chegar a seguinte carta ao Diretor Frantz:

“Caro amigo Francisco José Frantz. Com referência a sua carta de

10 do corrente, tendo em vista a nossa demorada e franca palestra, creio que o assunto ficou definitivamente esclarecido. Entretanto, conforme prometido, quero confirmar, por escrito, o que lhe disse naquela ocasião. Não houve, nem poderia haver, intenção minha, quer pessoalmente, quer na qualidade de Cmt substituto do I/8º R. I. em desconsiderá-lo, igno-rando voluntariamente a sua condição de diretor proprietário da Gazeta do Sul. Dirigi-me ao sr. Felippe Dreher, também diretor da Gazeta, por ser conhecedor do estado de saúde de V. Sª e por não desejar causar-lhe qual-quer preocupação que pudesse vir em prejuízo do seu tratamento e de sua recuperação. Sendo esta a verdade cristalina dos fatos, não vejo motivos para a restituição da Medalha do Pacificador, que com tanto mérito e jus-tiça lhe foi concedida, pelos excelentes serviços prestados ao Exército e a esta Unidade, mesmo antes de sua instalação aqui em Santa Cruz, fazendo parte da íntegra comissão de escolha do terreno onde se acha construído o Nosso Regimento. Deixo-a em suas mãos, onde deve ficar por direito e valor. Subscrevo-me reafirmando minha amizade e consideração. (a) Sid-ney Zanon Machado – Ten Cel, Cmt do I/8º R. I.”. Esta troca de correspondências, embora o fato tenha tido, na época,

grande repercussão local e regional, está sendo publicada pela primeira vez. Especialmente a longa carta do Diretor Frantz, alinhando uma sé-rie de fatos ocorridos ao longo da história do jornal, com os quais estava engasgado e muito magoado, deve ser entendida como um desabafo natural de quem colocava sempre o coração no cumprimento de sua missão, quase um sacerdócio, de dar um jornal à comunidade, e tantas vezes enfrentando incompreensões. Ao afirmar que “a comunidade ja-mais correspondeu”, ele de fato se referia àquela parcela das elites que muitas vezes procurava o apoio do jornal para as suas demandas priva-das ou corporativas, em geral contrárias aos interesses da coletividade.

Colocando sempre a alma no que expressava, por vezes ele superdi-mensionava os sentimentos, como poderemos constatar mais adiante, em vários de seus artigos de fundo que ficaram marcados, não só na lembrança dos antigos colaboradores, mas também de muitos leitores daquela época. Mais do que o frio significado das frases que compunha – em estilo antigo e às vezes até longo e cheio de minúcias aparente-

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mente dispensáveis, o que na época era uma virtude, pois reforçava a argumentação – seu texto era sempre claro, contundente e objetivo, sem nunca generalizar, mas sempre fino nas ironias e no significado das entrelinhas. Esses arroubos eram periódicos, e ele parecia ter a necessi-dade desses desabafos, porque era a única arma que tinha. Apesar disso, ao longo de todas essas décadas, teve menos desafetos do que os dedos de uma das mãos. Sobre essas inimizades, costumava dizer que as con-servava com o maior carinho, porque as divergências, acima de serem pessoais, envolviam valores e princípios. Eram quase sempre amigos que, no seu modo de ver, abusavam dessa amizade e não entendiam suas ponderações. Vários episódios da carta ao Comandante referem-se a essas pessoas. Mas na grande maioria dos desentendimentos, tudo se resolvia no momento seguinte, e a amizade se preservava integralmente.

38. Os colonos de Santa Cruz Ao longo dos anos, Schloka Frantz abordaria por diversas vezes esta

questão do ranço contra a comunidade germânica. Alguns anos depois do episódio com o comandante militar, no rescaldo da eleição muni-cipal de 1976, quando Arno J. Frantz se elegeu prefeito pela primeira vez, ele publicou um artigo indignado, intitulado A discriminação e os colonos de Santa Cruz:

“Aos políticos, as estatísticas das eleições locais, sem dúvida alguma, devem ter propiciado a oportunidade de colher uma mão cheia de ensi-namentos. Mas também aos que não se dedicam à estafante atividade, tão enaltecida pelo conde de Cavour, um dos principais responsáveis pela unificação da Itália, as eleições mais uma vez possibilitaram lições que devem ser aceitas por todos aqueles que não tenham a cabeça apenas para usar chapéu.

Tão denegrida por pessoas que não a conhecem bem, em certas fases de sua existência, fases que felizmente foram superadas, mas das quais de quando em quando ainda se manifestam resquícios, Santa Cruz do Sul, despreocupada, dá suas lições de superioridade e brasilidade aos que a caluniam, afirmando existirem aqui discriminações raciais e outras.

Durante a última guerra, e não foi muito boa a imagem que a impren-sa e o rádio de Porto Alegre forjaram artificialmente deste nosso querido torrão da Pátria brasileira, a partir do momento em que certo veículo de comunicação, que atualmente anda pelas caronas, noticiou, sem contesta-ção, que aqui estavam preparados 300 regimentos de atiradores e ulanos, bem armados e bem municiados, prontos a trair a sua pátria.

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E, no próprio ano em que iniciou a circulação, isto é, em 1945, o nosso jornal deixou de publicar, e o redator de então guarda nos seus ar-quivos o original, um artigo de responsabilidade de autoridade, no qual, sob o título “Em Santa Cruz até Deus é nazista”, tentou espargir lama sobre uma população pacata, trabalhadora e ordeira, exclusivamente pelo fato de ter chovido aqui no dia 7 de setembro, anulando o programado desfile cívico-militar.

*Estes pensamentos me vieram à mente, ao ler o exemplar de um men-

sário editado em Porto Alegre, no qual um jornalista afirma que o de-putado santa-cruzense Euclides Kliemann, de saudosa memória de seus companheiros políticos e não políticos, desaparecido em circunstâncias trágicas, como também acontecera anteriormente com sua esposa, não deixava de ser colono, como também tinha sido colona a sua esposa.

Mesmo defendendo a memória do deputado e penitenciando-se da fase de um jornalismo pulha, mesmo reconhecendo sua completa ino-cência na morte trágica de sua esposa, mesmo confessando publicamente que todas as calúnias assacadas contra o falecido deputado por alguns vespertinos e estações de rádio, tiveram exclusivamente a finalidade de derrotar a Frente Democrática e seu candidato Ildo Meneghetti, e a sordi-dez do lucro auferido na venda de jornais a um povo ávido de noticiário sensacionalista, mesmo nesta hora da sinceridade e arrependimento, o deputado Kliemann e esposa não deixam de ser “colonos” para o jornalista brilhante.

Continuam, assim, com a discriminação. A população de Porto Ale-gre é inteligente, culta e educada. Os que residem no interior, ou se trans-ferem para Porto Alegre, são colonos, são burros, são ineptos e provavel-mente nem tomam o banho diário.

Acontece que aqui não há colonos, pois Santa Cruz do Sul há mais de 100 anos deixou de ser uma colônia. Existem agricultores, muitos pe-quenos proprietários rurais, que exercem uma profissão tão digna e nobre como as que mais o sejam.

*Este município, tão caluniado pelas suas supostas discriminações, teve

como mais votados os vereadores José Avelino dos Santos, pelos agricul-tores, e Nilton Garibaldi, pelos operários. Estes também deram votação expressiva ao sr. Arno João Frantz, futuro Prefeito.

Estou muito bem lembrado que, em certa ocasião, procurei no Banco Agrícola Mercantil, em Porto Alegre, o seu presidente, sr. Kurt Weisshei-mer, que trouxe para o Rio Grande do Sul os serviços da Ascar. Sabíamos do êxito da entidade similar na área mais pobre do Estado mineiro. Está-vamos às vésperas das eleições municipais. O sr. Arthur de Jesus Ferreira concordou à última hora em substituir, como candidato da Frente Demo-crática, o sr. José Augusto Mergener, também grande amigo nosso, que falecera subitamente. No gabinete da diretoria do Banco, cumprimentei os srs. Egídio Michaelsen e Emílio Otto Kaminski, pois com ambos man-tinha excelentes relações. O dr. Egídio, falecido também prematuramen-

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te, pois mercê do seu equilíbrio e tirocínio, muito de serviços ainda dele se esperava em proveito do Rio Grande e do Brasil, perguntou a este jor-nalista, e estou capacitado a reproduzir o diálogo:

- Com a morte do amigo Mergener, como ficará a Frente Democráti-ca em relação ao candidato forte do PTB, que é o Kaempf?

- Vai vencer o Ferreira, por 500 votos.- Assim lançado à última hora, e com o nome luso?- Isto não interessa. Ele é bastante conhecido, porque foi um bom

gerente de banco, educado e fino.Eu sei que o meu prognóstico se confirmou por uma diferença de

cento e poucos votos, e o dr. Egídio não esqueceu o nosso rápido bate-papo, pois posteriormente, sempre que o encontrava, dizia: “Como vai esse profeta de eleições?”, ao que invariavelmente retrucava: “Ora, dr. Egídio, de vez em quando a gente acerta uma”.

Considerando, assim, todos esses fatos alinhavados no correr do carri-nho da máquina, é de se perguntar se não é hora de parar definitivamente com essas besteiras discriminatórias, que apenas revelam falta de imagi-nação ou cousa pior? De eliminar discriminações quanto a raças, origens, atividades e outras que há muito tempo estão démodé, ou seja, fora de moda” (FRANTZ, Francisco J., Gazeta do Sul, 23/nov/1976).

39. Noite de São Bartolomeu Durante o regime militar implantado em 1964, o antigo sistema

partidário foi extinto, criando-se em seu lugar apenas dois partidos, a Arena e o MDB. Mas em Santa Cruz, como em muitas outras localida-des, os “partidos” passaram a ser de fato três: Arena-1, Arena-2 e MDB. Os mais fortes entre eles eram as duas Arenas, que nas eleições podiam somar os votos de sublegenda. Em 1972, quando se preparava a suces-são municipal, o raquítico MDB tinha apenas três dos 13 vereadores da Câmara, e a brincadeira que muito se fazia era que o partido podia reunir-se dentro de um Fusca, tão poucos eram os seus integrantes. Por isso, todas as especulações eleitorais colocavam frente a frente as chapas da Arena-1 e da Arena-2, não se dando a menor importância ao MDB.

A briga entre as duas facções da Arena era muito acirrada, desde o surgimento dos primeiros nomes para a possível formação das chapas. Durante vários meses, até depois da metade do ano, a Arena-1 definiu sua chapa com Edgar Gruendling (Xeque) e o vereador Arno J. Frantz, enquanto a Arena-2 apresentava o ex-vereador Jurgen Klemm com o vereador José Avelino dos Santos (Willy Paixão). Eram forças opostas e

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inconciliáveis, mas na eleição somariam os votos e, fatalmente, a chapa que fosse mais votada ganharia a eleição. O problema foi que a Arena-1 dominava dois terços do diretório, mas era o candidato da Arena-2 que gozava de maior simpatia perante o eleitorado, o que era muito visível, mesmo não havendo pesquisas eleitorais. Se o partido concorresse com as duas chapas, Jurgen Klemm seria o Prefeito e José Avelino dos Santos o vice, sem a menor dúvida.

O dia 24 de agosto de 1972 marcava o quarto centenário da cha-mada Noite de São Bartolomeu (1572), episódio sangrento da história francesa, em que milhares de protestantes calvinistas, conhecidos como huguenotes, foram trucidados em Paris por inspiração da rainha Cata-rina de Médicis. Na mesma noite de 24 de agosto, em 1972, seria rea-lizada em Santa Cruz do Sul a convenção da Arena para homologação das suas duas chapas, já previamente conhecidas. Pelo menos era o que todos pensavam. Mas a briga vinha sendo de foice, e tinha havido até uma séria desavença pessoal entre o vereador Arno Frantz (Arena-1) e o delegado regional de polícia Itamar de Oliveira Reis (Arena-2), na porta do Clube União. Os mais moderados admitiam ter havido apenas uma troca áspera de palavras, mas não faltou quem falasse em agressão física. Só se sabia que a briga da Arena era uma briga feia, que chegou a ser levada até ao governador do Estado para uma impossível mediação, e por causa disso poderia haver alguma surpresa na convenção. E hou-ve. Enquanto a Arena-2 apresentava a sua chapa conhecida (Klemm-Willy), a Arena-1 apresentou a candidatura de Arno Frantz como vice de Klemm, para tirar da parada a “noiva” escolhida da Arena-2, que era Willy Paixão. Mas o “noivo” Klemm não aceitou e o assunto acabou parando na Justiça, onde o juiz Adalberto Libório Barros recolocou Willy Paixão na chapa, deixando Arno Frantz sem condição sequer de concorrer a vereador.

Enquanto isso acontecia, o mirrado MDB lançou as duas chapas mais fortes que pôde: Elemar Gruendling (Maçarico) com Ruben Ka-empf e Júlio Vianna (Lolô) com Karl Budiner. Mas neles ninguém ou-saria apostar. Apreciando todo esse quadro, o jornalista Francisco J. Frantz sentiu a oportunidade para soltar mais um dos seus periódicos tijolaços editoriais. Pôs o papel na máquina e escreveu Moral em concor-data, artigo do qual falaremos nas páginas seguintes.

Oitenta dias depois, apesar de todas as evidências contrárias, as ur-

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nas revelaram a incrível vitória do grande azarão Elemar Gruendling, que pôde somar seus votos aos da outra sublegenda do MDB, enca-beçada por Júlio Vianna, fazendo uma exígua diferença de 694 votos sobre a candidatura única da Arena. Politicamente arrasado e sentindo-se traído na campanha, Jurgen Klemm logo depois se afastou da vida pública, nunca mais concorrendo a qualquer cargo e abrindo caminho para a ascensão política de Arno J. Frantz, justamente seu principal ad-versário dentro da própria trincheira, a “noiva” que lhe quiseram impor, como escreveu na época o jornalista Lúcio Michels na Gazeta. Quatro anos mais tarde, em 1976, o próprio Arno Frantz se elegeria Prefeito.

40. Moral em concordata Com este título, o Diretor Frantz publicou, no dia 30 de agosto de 1972,

mais um daqueles seus artigos inesquecíveis, recortados e guardados por mui-tos leitores, a propósito da lambança em que se transformara a convenção da Arena, e cujo epílogo seria a vexatória derrota eleitoral daquele ano. Nos primeiros parágrafos, falou da roupa suja que Santa Cruz estava indo lavar no Palácio Piratini e dos rumores segundo os quais a Gazeta do Sul não teria publicado a notícia da briga entre o delegado Itamar Reis e o vereador Arno Frantz por causa de um suposto parentesco deste último com o diretor do jornal. Ao demonstrar a ausência desse parentesco, apesar da coincidência do sobrenome, acrescentou que “o jornal tem muitos amigos, mas não tem pa-rentes”. Afirmou também a sua aversão à militância partidária, por causa de uma experiência nada alentadora que tivera no antigo PSD, partido a que ti-nha pertencido por amizade com Bruno Agnes e Willy Carlos Froehlich, seus colegas de bancos escolares e companheiros na fundação do jornal. Afirmou que “foi duro e pesado carregar a cruz pessedista, e com a última campanha política de Willy Froehlich, que por sinal era mais administrador que políti-co, enfiei a viola no saco e me recolhi a minha insignificância”.

A segunda metade do artigo, seu trecho mais contundente, faz parte de uma peça que teve imensa repercussão em Santa Cruz, e por isso vai trans-crita a seguir:

“Hoje, o jornal tem trânsito livre em todos os clãs eleitorais e suas subdivisões. Aliás, temos dado baldes de chá para todo mundo. Mas acho interessante esclarecer que jamais pedi ou recebi qualquer favor político dos dois amigos que acima citei (Bruno Agnes e Willy Carlos Froehlich),

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nem de quem quer que seja. Proclamá-lo altivamente pelo jornal, com as-sinatura e tudo, me dá uma satisfação que poucos compreendem. Dá-me o direito de sorrir tranqüilamente na cara de muita gente cínica e safada. E repito: da política só tive ônus, minhas contribuições financeiras, o tempo gasto, o meu auto estragado, os aborrecimentos e o calote da pu-blicidade, pois, por duas vezes, risquei as contas do PSD.

Com mencionada autoridade moral, pois conheço os nossos políticos, e a alguns melhor do que eles se conhecem, desejo tecer algumas conside-rações e fazer um apelo àquela parcela de elementos da nossa vida pública que, pelo pano de amostra, desconhecem a importância transcendental para o futuro de Santa Cruz do Sul da escolha de um Prefeito e de um Vice-Prefeito, principalmente agora, quando tantos problemas aí existem para desafiar a argúcia de um administrador jovem, formado, equilibrado e que precisa ter a seu lado um substituto de sua confiança.

Santa Cruz do Sul sempre gozou de excelente prestígio junto ao Go-verno do Estado. Nas últimas semanas, os políticos deram para produzir profunda erosão nesse prestígio, com as fofocas que constantemente le-vam ao Governador e lhe perturbam o trabalho produtivo. Provavelmen-te, a essa altura, no Palácio não falte quem afirme, sempre que anunciada uma comitiva de Santa Cruz: “Xi, já estão aí de novo esses chatos de Santa Cruz, com sua política de campanário, para nos atrapalhar no serviço e lavar a roupa suja, que deveriam lavar em Santa Cruz”.

Schiller, o grande poeta, com seu poder de síntese, resumiria o quadro com a palavra Stallknechtsmentalität (mentalidade de faxineiro de estreba-ria, capacho). E se os homens públicos de Santa Cruz, que até então eram recebidos na sala nobre do Palácio, possivelmente no futuro serão recebi-dos nos porões, onde são recebidos os chatos, aqueles que o Governador não tem tempo para receber, pois está envolvido em trabalhos produtivos. Aliás, o Governador Triches já tem demonstrado que prefere administrar e desenvolver o Estado a atender os politiqueiros do interior.

O povo de Santa Cruz do Sul, que tem assistido bestificado ao com-portamento de seus homens públicos (nunca generalizo, pois faria injus-tiça para alguns), está ficando desiludido, pois vê um assunto sério, como é a escolha do Prefeito, ser tratado como molecagem de fim de noitada de bolão com muita bebedeira.

Desde jovem, sempre entendi ser preferível o debate, a discussão, a tro-ca violenta de palavras do que a paz do charco, isto é, quando os políticos se unem para passar o povo para trás, e, diligente e vorazmente, cuidarem ape-nas dos seus interesses pessoais e dos de sua clientela. O que está acontecen-do em Santa Cruz não é o debate, a discussão, a troca violenta de palavras. O que vem caracterizando a política de Santa Cruz são as atitudes cínicas, a molecagem, o farisaísmo e todas as safadezas que caracterizam a política na má acepção do vocábulo. É a falta de pudor de deuses com pés de barro, metidos em alta cavalaria. É a moral em concordata. É a vergonha nacional para uma cidade que já produziu muitos homens de bem. Homens públi-cos que deixaram um nome limpo e exemplos de ética, inclusive em política partidária” (FRANTZ, Francisco J., Gazeta do Sul, 30/ago/1972).

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41. Dedos sujos na almofada Apesar de uma certa rivalidade, havia uma grande integração entre

a redação e a oficina do jornal. Toda véspera de edição, baixada a última matéria, no meio da tarde, os redatores subiam para a paginação, onde se completava o serviço, sem prévio diagrama e sem sequer controle so-bre a quantidade dos textos para a edição. Era mão na graxa, tinta preta que, na hora de tirar as provas para a revisão, manchava não apenas toda a composição de chumbo, mas também as mãos de todo mundo. O olho e o dedo do redator ajudavam a fechar as páginas. O jornal era feito a unha, no peito e na raça, por pouco mais que uma dúzia de cabe-ças e pares de mãos. Dava alguns arranca-rabos entre redação e oficina, mas o jornal nunca deixou de sair, do jeito que devia sair.

O jornalismo de opinião era uma característica puxada pelo próprio diretor, com seus artigos de fundo. Lúcio Michels, depois do Petronius com os potins sociais, tinha também o Radar; eu, o Canto de Página (de-pois acrescido do Preguinho); a Sônia Marli Kessler surgiu com a crôni-ca social do Carrossel; o Ernany Aloísio atacava no esporte com Cartas na Mesa, e logo também viria o Paulo Roberto Treib com o Cotidiano. Uma vez, em janeiro de 1973, o advogado Rolph H. Bartholomay, que em 1945 fora o primeiro redator da Gazeta, e que era mais conhecido como Dr. Óly, fez uma das suas habituais visitas à redação, cachaça da qual nunca conseguiu se desvincular. No velho cacoete, ele costumava andar pela cidade de olhos e ouvidos bem abertos, captando com o seu faro as peculiaridades que poderiam merecer abordagem. Aí, por suges-tão dele, escrevi e publiquei este comentário:

“Já que voltei ao problema do trânsito, não custa dizer mais ainda

que a poluição sonora das descargas abertas continua campeando impu-nemente pela cidade as 24 horas do dia, fato que vem revoltando muita gente. Um leitor, por exemplo – e com muita razão – lembrou que lhe parecia estranho anunciar medidas preventivas drásticas contra os canta-dores de Reis, cuja presença dura menos de duas semanas em cada fim de ano, quando providência nenhuma ainda foi tomada contra esses pertur-badores do sossego público, que não dão folga o ano inteiro” (KUHN, Guido Ernani, Gazeta do Sul, 3/jan/1973). Era uma quarta-feira. Antes das nove horas, tocou o telefone na

redação. Quando atendi, era o delegado de polícia Sylvio Pinto Gomes,

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convidando para um cafezinho. Dizia-se que ele era do Dops – aquele Departamento de Ordem Política e Social, que nos vigiava e espionava durante a ditadura militar – e eu já imaginava o que ele queria de mim. Avisei o pessoal no jornal e fui até lá, tomar o tal do cafezinho. Fiquei quase até o meio-dia com o delegado e mais o sargento que comandava a Brigada Militar, sem nos entendermos. Queria que eu me retratasse, por ter jogado a autoridade contra a opinião pública, ou vice-versa, ameaçando enquadrar-me na Lei de Imprensa. Aprendera com o mes-tre Frantz a não me dobrar, e não me dobrei. Não faria nenhuma re-tratação.

Ele queria saber a minha fonte, o leitor mencionado na publicação. Respondi que a mesma Lei de Imprensa me garantia o direito de pre-servá-la. Tentou ensinar-me que nesses casos, em vez de publicar logo no jornal, faria melhor se avisasse a autoridade policial, como muitas pessoas costumavam fazer. Entre essas pessoas, não sei por que cargas d’água, mencionou o Dr. Rolph Bartholomay, conhecido e respeitado advogado da praça. Aí não me contive, a minha fonte era justamente ele, o Dr. Óly, que tinha sido redator do jornal e sabia muito bem como tratar dessas questões. Mesmo assim, eu seria processado. Fez passar meus dez dedos na almofada de tinta preta, para as impressões do indi-ciamento. Lembrei-me da tinta preta com que me sujava na oficina do jornal, na qual colocava os dedos com muito mais gosto do que nessa almofada da truculência. Aquele indiciamento poderia se tornar um troféu para mim, ou pelo menos me dar uma boa história para contar. Soube depois que deu até um trabalho de conclusão de estágio para o meu colega Lúcio Michels, na Faculdade de Direito. Quando me libe-rou, o delegado mandou que voltasse no dia seguinte, imaginando que talvez eu viesse a concordar com a retratação. Retornando ao jornal, contei ao Diretor, e ele foi direto e categórico: “Não volta, nada. Essa intimidação é própria de tal tipo de funcionário, ele só quer mostrar sua autoridade. O cachimbo do regime deixou-lhe a boca torta”. Acertou na mosca. Não fui mais à Delegacia, e o assunto ficou esquecido, per-manecendo apenas a história para ser contada.

Tais gestos de solidariedade paternal, o Diretor sempre os tinha com os seus colaboradores. Todos nos sentíamos seguros ao seu lado, como filhos sob a proteção do pai. Na minha absoluta inexperiência, foi este o sentimento que me deu força para enfrentar a fúria do dele-

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gado naquela grotesca inquisição paroquial. Defender os seus pupilos perante o mundo exterior fazia parte dos seus princípios internos. Mas sabia cobrar com muita energia de quem pisasse na bola. Quando era cobrado na rua sobre determinadas matérias ou publicações do jornal, com muita freqüência ele usava o espaço do seu artigo de fundo para explicações sobre a filosofia do jornal. Certa vez, fez uma longa seqü-ência de comentários para abordar justamente aspectos dos bastidores e da redação.

Como editor da Gazeta, ali pela metade dos anos 70, idealizei uma página denominada Mutirão, onde o pessoal da casa podia escrever os seus artigos, trazendo fatos, emitindo opiniões e defendendo idéias. A porta estava aberta não só para os redatores, mas até para linotipistas, paginadores e impressores. Fez muito sucesso. “Há leitor para tudo”, costumava dizer o nosso amado Diretor, apenas recomendando cuida-do com o que se publicava, e nisso a responsabilidade maior era do edi-tor porque, ontem como hoje, papel aceita tudo. Naquele Mutirão via-jou, cada um a seu tempo, uma turma bem grande de passageiros. Dos que lembro, posso citar Lúcio Michels, Guido Ernani Kuhn, Ernany Aloísio Iser, Paulo Roberto Treib, Benno Bernardo Kist, Xavier Valdir Panke, Ivo Scherer, Romeu Inácio Neumann, José Augusto Borowsky, Luís Antonio Barreto, Elstor Clemente Werle, Ivo Antonio Kist, Paulo Fagundes (o Carioca), José Teobaldo Sehnem e Adão Lopes. Sobre esta página, Frantz ouvia freqüentes comentários e advertências na rua, para que tomasse cuidado com o que poderiam aprontar os seus redatores. Tanto que decidiu escrever, num dos artigos da série Coisas de Jornal:

“O jornalista Alberto André foi ontem paraninfo dos formandos da

Faculdade de Meios de Comunicação Social (Famecos) da PUC, faculda-de que já dirigiu por seis anos. Sem dúvida, o jornalista mais benquisto do sul do Brasil, na presidência da ARI (Associação Riograndense de Impren-sa) sempre procurou defender a liberdade de imprensa e de informação, a dignificação da classe e a sua profissionalização universitária. Conhece todos os jornalistas do Estado e, assim, também conhece a nossa equipe de redação, pois todos já participaram de cursos intensivos promovidos pela ARI, Adjori e Sindicato, realizados na Famecos, ministrados pelos seus mais eminentes professores de jornalismo. *

Em recente reunião da ARI, cujo Conselho Deliberativo integro, pre-sentes mais de 40 líderes da classe, o presidente Alberto André veio abra-çar-me para dizer:

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- Então, deste inteira liberdade aos teus redatores para escreverem e assinarem o que escrevem? Isto é muito bom. É um risco, mas é muito bom para eles, para o jornal e para a comunidade.

Referia-se ao Mutirão. Respondi:- É um risco calculado, prezado presidente. Não se pode tolher a cria-

tividade, e escrevendo é que se aprende. Não há dúvida que sempre há o risco de o foguete explodir na minha mão. Mas o bom nível dos nossos redatores, seu caráter e sua lealdade tornam tal possibilidade muito remo-ta” (Francisco J. Frantz, Gazeta do Sul, 18/dez/1976)”. Ele tinha um apurado senso de humor. Fazia blague e tirava sar-

ro daqueles que o advertiam sobre o que escreviam os seus redatores, como se pode ver nestes registros:

“...o jovem industrial santa-cruzense, com o qual tantas vezes tenho

tomado e continuarei tomando cafezinho às 11 horas de sábados, no Quiosque, falou:

- Seu Frantz, a Gazeta tem alardeado ser jornal apolítico, mas eu acho que o repórter Paulinho não esconde suas simpatias para com a Arena.

- Estás errado, filho. Não é só o Paulinho. Também a cronista social Sônia pende para a Arena, conforme todos sabem. É necessário não con-fundir Germano com gênero humano. Jornal apolítico com jornal que, a exemplo do Pravda (A Verdade) e todos os outros do imperialismo russo, exige a filiação de seu corpo editorial ao partido único. *

Naquele dia, fui buscar a revista Veja e, ao sair da banca, um velho amigo, industrial aposentado, também me deu sua colaboração, fazendo-o da seguinte forma:

- Francisco, tu tens que pôr um olho no teu redator-chefe. Publicou uma estatística que pode prejudicar a Arena. Ou será que tu também já aderiste ao MDB?

- Fica tranqüilo, caríssimo. Quem carregou a cruz do PSD por tantos anos, sem o mínimo de proveito pessoal e com grande prejuízo para o jornal, não mais entra em fria. E podes estar certo que o redator-chefe sabe disso.

E como o ataque é a melhor defesa, adicionei:- Confidencialmente te conto que soube em Porto Alegre, de fonte

ultra-secreta, que o Capo di tutti Capi determinou que os mafiosi se infil-trassem em ambos os partidos. Não estás, porventura, sendo um inocente útil de algum mafioso?

*No mesmo dia, tive o prazer de receber a visita do bacharel em Direi-

to, meu amigo de muitos anos e gremista doente. De início, teceu uma série de considerações altamente elogiosas em torno deste jornal do inte-rior, considerações que não podemos reproduzir aqui, pois seria o que na imprensa chamamos de “palmadinha nos próprios ombros”. Eu sabia que

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deveria haver dente de coelho em tantos elogios, e não me enganei, pois no fim, apontando o dedo para o gabinete do Guido, me alertou:

- Olho nele. Colorado doente. Isto desgosta aos gremistas, que já es-tão com as guampas azedas.

- Já notei que é colorado. Fica tranqüilo que o Ernany Aloísio e eu, como gremistas, estamos atentos. Tu não sabes o que está preparado para o Guido. De Tucumán, um amigo argentino vai me mandar uma quena, instrumento típico do altiplano argentino (Salta, Jujuy, Catamarca etc.), uma espécie de flauta de Pan, fácil de tocar, para ensaiarmos o “Até a pé nós iremos”. Deixa nós ganharmos o campeonato de 1977 e o Guido vai pagar a mula roubada. Apesar de o jornal ser imparcial, vamos até hastear a bandeira do Grêmio, com música, flauta e tudo. Tu não achas justo?

Claro que ele achou justo. *Não parece um paradoxo? Na atual sociedade de consumo, é difícil

explicar que o jornal é confecção, e não roupa sob medida, feita por al-faiate, como gostariam muitos leitores” (FRANTZ, Francisco J., Gazeta do Sul, 28/dez/1976).

42. A fúria do facultativo Ao longo dos anos, vários redatores da Gazeta, devidamente auto-

rizados pela direção, faziam bico como correspondentes de jornais de Porto Alegre. Lúcio Michels, Guido Ernani Kuhn, Ernany Aloísio e Paulo Roberto Treib (Paulinho) eram alguns deles. Esta história acon-teceu com o Paulinho, em 1976. Ele mandava as matérias para a Folha da Tarde, então vespertino de grande sucesso da Cia. Jornalística Caldas Júnior, mas resolveu largar, pelo incômodo que dava. Entrementes, saiu naquele jornal uma matéria sobre uma alegada omissão de atendimento no plantão do INPS, e um médico atingido resolveu procurar a direção da Gazeta para reclamar contra a publicação, imaginando tratar-se de notícia enviada pelo Paulinho. Mas não era, e ainda assim o doutor continuou dizendo impropérios. O médico pertencia a uma família amiga. Mesmo assim, o Diretor ficou remoendo o assunto por várias semanas, não conseguindo digerir a afoiteza, a arrogância até de alguém querer ensinar jornalismo ao jornalista, ou, como reza o velho brocar-do, ensinar o padre-nosso ao vigário. Nessa circunstância, o que menos importava era o fato de a pessoa ser ou não ser amiga. O fato de ser ami-go até dava ao jornalista mais liberdade para dizer o que precisava dizer. Colocou papel na máquina e escreveu, para a última edição anterior ao Natal, como um verdadeiro presente de Papai Noel:

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“O jovem doutor estava realmente impetuoso e agressivo. Por simpa-tizar muito com o pai, homem de fino trato, educado, inteligente e culto, dominei meus impulsos, apesar de ter estranhado o comportamento do filho, que conheci piá. Tal qual o arcanjo Miguel, esgrimindo a espada flamejante, o jovem médico ameaçou, através do Serviço Jurídico da As-sociação Médica, destruir-nos a todos, os míseros mortais que trabalham na Gazeta do Sul. Perplexo fiquei com o comportamento do jovem doutor que, arrogante como um príncipe italiano do Renascimento, presunçoso como um marquês da corte de Luís XV, insolente e grosseiro como só sabem ser os estivadores do porto de Marselha, aqui veio agredir-nos ver-balmente e tentar desmoralizar-nos dentro da nossa casa.

Quando as cousas já ameaçavam ficar pretas para ambos, com a in-tervenção do redator chefe, Guido Kuhn, foi esclarecido todo o equívoco: o jovem médico batera em porta errada, pois a notícia, acusando-se o plantão do INPS, causa de sua ira, saíra na Folha da Tarde, que, confor-me todos sabem, não está sob a nossa jurisdição. Esclareci ao furibundo facultativo que deveria reclamar e dizer os seus desaforos e desabafos na Folha da Tarde.

Reeditando a fábula do lobo e do cordeiro, e sempre manipulando verbalmente o gládio do Serviço Jurídico da Associação Médica, transfor-mado assim numa espécie de bicho-papão, o feroz visitante insistiu: “Se não foi a Gazeta que mandou a notícia à Folha da Tarde, então foi o seu redator Paulo Treib, pois já fiz a minha investigação particular e soube que o mesmo também trabalha para a Caldas Júnior”. E concluiu: “Pode dizer a ele que será destruído pela lei (diante das circunstâncias, os demais da Gazeta serão poupados). E pode dizer mais que ele é um cafajeste e está marcado na paleta pelo nosso Serviço Jurídico, que é terrível”.

Já mais aliviado e sereno por não ver destruído em minutos, pelo visitante ferrabrás, um jornal que levou 32 anos de sacrifícios de mui-tos para ser montado, pedi que não se precipitasse e não fizesse injus-tiça ao Paulinho. Ponderei que estava recordando de que o jornalista Paulo Treib, muito eficiente, correto e capaz, me dissera semanas antes que largaria o emprego na Caldas Júnior para, conforme eu lhe suge-rira, dedicar o tempo integral à Gazeta. Que, quanto aos conceitos ofensivos e ameaças em relação ao mencionado jornalista, que tivesse a hombridade de lhe dizê-los pessoalmente, por uma questão de dig-nidade e coerência de atitudes, e mesmo por uma questão de respeito para quem jamais se prestara ao papel de moleque de recados.

A seguir, o jovem doutor nos deu, ao editor Guido e a mim, uma autêntica aula de jornalismo, ensinando-nos como deveria funcionar um jornal”. O artigo está apenas na metade, mas impõe-se a descrição da cena

a que assisti, e que não foi incluída no texto. Quando lhe foi sugerido como deveria dirigir a Gazeta, Frantz ergueu-se de sua cadeira e a ofe-receu ao visitante, para que a ocupasse plenamente e dali comandasse

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o jornal, enquanto ele próprio, reciprocamente, vestiria o guarda-pó branco e assumiria o consultório do médico. Isso, naturalmente, provo-cou um novo e grande constrangimento, se é que ainda poderia haver um embaraço maior do que todo aquele imbróglio, no qual nenhum dos dois gostaria de estar metido. E segue o artigo do jornalista:

“De outro lado, quando lhe expliquei do critério adotado pelo jor-nal de preferir ficasse impune o médico omisso a expor, no pelourinho da opinião pública, um médico injustiçado pelo paciente hipocondría-co, elogiou muito essa nossa atitude, elogio que fez com que quase me babasse de gozo, orgulho e contentamento, com ímpetos de correr para casa e dizer à mulher: ‘Mãezinha, agora estou realizado na vida e posso morrer ou me aposentar tranqüilamente, pois fui elogiado pelo doutor. É a glória!’

À tarde, fui procurado pelo colaborador Paulo Treib. Ele, que de ma-nhã estivera em serviço externo, já tomara conhecimento do show através de seus colegas, que nos seus gabinetes ouviram a discussão, feita em voz alta. Confirmou o que já me avisara antes, de que largara a Caldas Júnior há mais de duas semanas, com o compromisso único e exclusivo de su-prir a empresa jornalística de Porto Alegre dos resultados das eleições na região, iminentes. A notícia publicada na Folha da Tarde, e causa de todo o qüiproquó, fora colhida diretamente pelos rapazes da Caldas Júnior, na Polícia local. E agora, José?

Durante mais de mês, estou com essa cousa toda trancada na gar-ganta. Esperei um telefonema de parte do doutor. Não que ele descesse do Olimpo para pedir desculpas a um simples plebeu. Seria exagerada pretensão. Estava mais interessado em saber se ele visitara a Folha da Tar-de. Em caso afirmativo, se ele conseguira ser recebido por um dos seus diretores. E, no caso de ter sido recebido por um dos diretores, se disse os mesmos desaforos e tolices que despejou no meu gabinete.

Estranhei que o médico não tivesse usado em relação à Folha da Tarde o direito de resposta. O direito que lhe assegura a lei de imprensa. O de esclarecer uma notícia. Pois o próprio jornalista Paulo Treib, investigando o assunto a meu pedido (e atente a comunidade para a atitude sublime de um jornalista injustiçado), informou: ‘Parece que o homem não foi culpado de nenhuma imperícia ou omissão profissional. Pura falta de co-municação com o pai da criança. Tivesse dado um bom esclarecimento à Folha da Tarde, até teria feito o seu cartaz’.

Encerrando o relato de um assunto tão desagradável, vou aproveitar para instruir uma ou outra pessoa menos bem informada a respeito deste jornal: Não se deve confundir boa vontade com fraqueza ou medo de agir. Não se deve confundir serenidade com medo. Bom humor com fal-ta de agressividade. Tolerância com tibieza. Despreendimento consciente de bens materiais com burrice” (FRANTZ, Francisco J., Gazeta do Sul, 22/dez/1976).

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43. A volta do alemão-batata Em dezembro de 1972, como prefeito eleito, mas ainda não empos-

sado, Elemar Gruendling falou pela primeira vez em realizar em Santa Cruz do Sul uma Oktoberfest, nos moldes do grande evento alemão de Munique. A 2ª Fenaf acabara de se realizar naquele ano, mas começava a ganhar força a opinião de que a cidade deveria abandonar a idéia de um evento com edições tão distanciadas entre si, a cada seis anos, em troca de uma festa que, embora de menor âmbito, fosse anual e tivesse um apelo mais popular do que o fumo. Na época, escrevi:

“Segundo está transpirando, o prefeito eleito Elemar Gruendling es-

taria inclinado a propor, ao invés da realização periódica de uma Fenaf, a promoção anual de uma Oktoberfest, dando ênfase especial ao setor de ar-tesanato. Gruendling pensa até em partir para uma exposição permanente de artesanato, o que seria uma poderosa arma para a divulgação turística do município” (KUHN, Guido Ernani – Gazeta do Sul, (6/dez/1972). A mudança de perfil do grande evento do Município parecia agradar

à opinião pública. Ao pensamento do novo Prefeito somava-se a proxi-midade dos 150 anos da imigração alemã no Estado (1974). O clima era propício para que, finalmente, três décadas depois do grande terre-moto do Estado Novo, começasse a ser feita a reconstrução da cultura detonada, da raiz destruída e da história renegada. Foi ali que começou a acontecer a quase hercúlea tarefa de resgatar a memória de um passa-do sobre o qual se tentara passar o apagador. Na reforma administra-tiva de Santa Cruz, apareceu espaço para uma Secretaria Municipal de Turismo, pasta que liderou a grande programação do sesquicentenário da imigração, envolvendo não só a cidade, mas também os distritos do interior, ao longo de todo o ano de 1974. A chama simbólica, partindo de São Leopoldo, se difundiu para todos os municípios de marca ger-mânica, penetrando até pelos confins de seu interior. Pela primeira vez, conjuntos folclóricos vindos da Alemanha apresentaram-se no Estado, e também em Santa Cruz do Sul.

É admirável que isso tenha sido possível, depois da vilania que se abate-ra sobre o alemão-batata, algumas décadas antes, e com efeito prolongado no tempo. Quis Deus que, naquele mesmo ano, assumisse a presidência da república o general Ernesto Geisel, um gaúcho de raízes teutas, em cujo

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governo o Brasil se aproximou da Alemanha e adquiriu dela as suas usinas nucleares. Assim, mesmo sem querer, o presidente Geisel arrefeceu o ímpe-to dos Deutschfresser, de modo que a germanidade, a cultura do Fritz e da Frieda, que tinha atravessado tantas gerações, mas que estava cambaleante, pudesse arriscar sua retomada na vida santa-cruzense e gaúcha.

Estruturou-se em Santa Cruz a festa anual do Mês do Município, onde as tradições, as artes e os esportes germânicos, que sobreviviam teimosamente no interior, passaram a ganhar espaço e incentivo. A se-mente não só foi colocada na terra, como também germinou e produ-ziu frutos. A história da colonização começou a ser pesquisada. Antes, a própria data de aniversário do Município, 28 de setembro, passava em brancas nuvens, embora houvesse na cidade uma rua com esse nome e uma placa no prédio onde a primeira Câmara fora instalada, em 1878. O imigrante ganhou um monumento no centro da cidade (1974) e a 3ª Festa Nacional do Fumo, realizada em 1978 para comemorar o cente-nário do Município, no governo de Arno J. Frantz, já ganhou uma forte conotação alemã, inclusive com a visita do presidente teuto-brasileiro Ernesto Geisel. Não demorou a surgir o professor Nelson Bender com sua idéia de institucionalizar o resgate do folclore germânico, crian-do a “Noite Descontraída” (Bunter Abend) e o grupo de danças Polka (1980), assim lançando também a semente do Centro Cultural 25 de Julho, que só germinaria em 1986, dois anos depois da 1ª Oktoberfest (1984), já no governo do prefeito Armando Wink.

Todos esses esforços surgiram a tempo de ajudar a resgatar uma história de fibra e de construção sólida. Mas o que talvez nunca mais se resgate é a língua como instrumento habitual e cotidiano de comunica-ção. A cultura de atacado, globalizadora, injetada principalmente pela televisão, passou a engolir uma a uma as mais caras expressões da arte e do modo de vida original do povo. Morreram tantas expressões cultu-rais em música, culinária, esporte e costumes em geral. Morreram va-lores e princípios, antes tão sólidos, conjugando o trabalho e a diversão com a fé e com o espírito comunitário. Morreu, enfim, o dia-a-dia desse modelo de vida integral, em que as pessoas não precisavam chavear as portas ao sair de casa. Mas, enfim, sobrou-nos – e isto já é um grande consolo – o esforço dos que enchem museus, arquivos e prateleiras com a saudade de tudo isso, não mais para ser usado, mas pelo menos para ser lembrado e apreciado.

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44. Historiadores da colônia Um dos segredos da boa penetração da Gazeta nas localidades do

interior era a existência de um grupo fiel de agentes e colaboradores. Uns se encarregavam de distribuir o jornal e cobrar anualmente as assinatu-ras, outros se debruçavam sobre a tarefa abnegada e gratuita de mandar notícias para serem publicadas, ajudando a escrever não só as páginas do jornal e os anais das suas comunidades, mas a própria história do muni-cípio e da região, muitas vezes com páginas reveladoras. Outro bom co-laborador foi Odécio Hasstenteufel, que levava o cinema para o interior, enchendo salões com agricultores curiosos pela sétima arte e ajudando a divulgar a Gazeta entre eles. As empresas de ônibus levavam o jornal, em troca de um exemplar de cortesia para o motorista. Quando encontrava um desses colaboradores no balcão do jornal, o diretor Frantz escancarava os braços no máximo de sua envergadura, disparando uma saudação em alto volume – “forte e rijo?”, ele costumava dizer – junto com o entusias-mado abraço e sonoras palmadas nas costas. Com eles mantinha uma relação muito sólida e tirava tempo para longas conversas sobre a situação do interior, onde morava e trabalhava um agricultor muito mais sofrido que o de hoje. Foi daí que surgiu, também, a idéia, que já atravessa dé-cadas, de fazer, a cada final de ano, uma festa de confraternização com os agentes e colaboradores do interior e da região.

Entre esses colaboradores, alguns despontavam de forma muito es-pecial, tanto que chegavam a ser visitados em suas casas, em ocasiões es-peciais. Eles mereciam, também, menção freqüente em artigos de fundo, como este, de 1976, que mostra o apreço com que o Diretor recebia a sua desinteressada colaboração e quanto a valorizava como instrumento de intercâmbio, de informação, de formação e de propagação do jornal:

*“Conforme havíamos planejado há mais de mês, sábado o Guido e eu

fizemos uma visita de surpresa ao colaborador Maurício Schuck, em Linha Capão, município de Vera Cruz, pois o apreciado cronista de fatos histó-ricos naquele dia completava 80 anos de idade. A data foi comemorada na intimidade do lar e tivemos a oportunidade de manter, por mais de hora e meia, agradável palestra com o casal, os dois filhos e a nora. O netinho não se afastava de perto do vovô aniversariante, sentado ao lado no sofá.

O nosso bom amigo Maurício Schuck, sem dúvida, é uma das pessoas que mais conhece a história de Santa Cruz do Sul antiga. Desde o início do jornal, vem desinteressadamente nos enviando as suas valiosas colaborações,

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que muito têm contribuído para despertar nos leitores o interesse pelo jor-nal e pela história desta terra.

Quando falamos na história de Santa Cruz do Sul, é evidente que in-cluímos Vera Cruz, a antiga Vila Teresa, 2º distrito do nosso município, que, desde a sua emancipação, passou a desenvolver e progredir de forma acelerada, para gáudio de seu povo e de suas lideranças. O nosso estimado amigo Maurício deu ao Guido, que pela primeira vez lá esteve, uma de-monstração incrível de sua excelente memória, ao mencionar alguns dos primeiros artigos com os quais o nosso atual editor estreou na Gazeta, há cerca de 11 anos.

*Quem nos visitou na semana anterior, acompanhado do filho, dando-nos

sempre renovado prazer, foi o professor Carlos Wagner Sobrinho, de Linha Ara-çá. A exemplo do que acontece com o sr. Maurício Schuck, o professor Wagner também já é nosso colaborador há 32 anos. Atualmente com 88 anos de idade, aos 56 ainda exercia o magistério, quando da fundação da Gazeta.

Homem inteligente, autêntico líder de sua comunidade, muito cedo re-conheceu a necessidade de que todos os seus alunos deveriam aprender bem a língua pátria. Disse-nos que a Gazeta lhe foi de grande valia nesse seu trabalho, pois se utilizou, já em 1945, do nosso jornal para desenvolver nos seus alunos o hábito da leitura, através do treinamento feito na própria escola. Hoje, está feliz e satisfeito por tê-lo feito. Apesar dos seus 88 anos de idade e sua surdez progressiva, o prof. Wagner continua a zelar para que o jornal atinja os lares de todos os assinantes no mesmo dia em que aqui é editado. Por ocasião de sua visita, conseguimos, com o venerando mestre, a promessa de nos enviar mais algumas colaborações. *

Via de regra, tenho ido a Sinimbu, essa aprazível vila às margens do pito-resco Rio Pardinho, em ocasiões festivas. A última vez nos levou a Sinimbu, ao Paulo Treib e a mim, um fato muito doloroso, qual seja a de levar à sua última morada o nosso bom e dedicado amigo e colaborador Guilherme Dorfey. Ape-sar dos anos de doença que o prenderam à cadeira de rodas, este espírito inque-brantável, muito mais forte do que o seu físico, fez com que continuasse dando a sua colaboração ao querido torrão natal até o fim de sua jornada aqui na terra. Sabe Deus com que sacrifícios continuou colaborando também com a Gazeta, até os últimos dias, divulgando os fatos de Sinimbu, suas festas, suas iniciativas, suas vitórias, suas solenidades e também os acontecimentos tristes.

As homenagens que Sinimbu prestou ao ilustre e querido filho morto, pre-sentes o Executivo Municipal e todos os integrantes do Legislativo, além de outros militantes das duas agremiações políticas e muitas pessoas que da cidade se locomoveram para Sinimbu, constituíram autêntica consagração. Com pro-fundo respeito, reverenciamos a sua memória e nos inclinamos perante esse gigante em matéria de despreendimento e solidariedade humana. *

Homens como Guilherme Dorfey, Carlos Wagner Sobrinho e Maurício Schuck são o sal da vida, sem o qual a humanidade seria insossa. Tê-los como colaboradores do jornal, por tantos anos, é um dos fatores que nos compenetra

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da tremenda responsabilidade que temos perante os leitores. Suas colaborações estão registradas e enriquecem o nosso maior patrimônio, que é a coleção com-pleta das dezenas de volumes contendo um exemplar de todas as nossas edições, desde a circulação do primeiro número, em 26 de janeiro de 1945. São os sub-sídios que um dia permitirão ser escrita a história de Santa Cruz do Sul. Tê-los como amigos, por tantos anos, nos enche a alma de um profundo e justificado orgulho. São estes os pensamentos que nos afluíram à mente neste comentário de véspera de Natal” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 24/dez/1976).

45. Livros, livros a mancheias Desde o início da Gazeta, em 1945, mas principalmente durante

os anos 70, o diretor Frantz teve um escudeiro prestativo e fiel, que nunca saiu do seu lado. Vindo de Encruzilhada do Sul, “com uma mão na frente e outra atrás”, como ele mesmo dizia, aquele menino pobre e franzino, que mal tinha 15 anos, veio tentar a sorte em Santa Cruz, uma terra completamente estranha, habitada por pessoas de uma cultura também desconhecida, muitos falando uma língua es-tranha. Para um mestiço da campanha, em plena Segunda Guerra, parecia uma escolha completamente infeliz, e inadequada a decisão de tentar a vida nesta pátria do alemão-batata, ainda em ebulição pelos contratempos do Estado Novo e da guerra. É possível que tenha chegado ao jornal por sua proximidade com a estação rodoviária, por onde provavelmente entrou na cidade.

Sem muito estudo, o jovem Paulo Fagundes começou nas funções mais humildes do jornal, como a expedição e a entrega de assinaturas. Como o trabalho não o absorvia integralmente, e como era um ga-roto ativo e metido, acabou policial civil e goleiro do Esporte Clube Avenida. Ganhou o apelido de Carioca e ficou popular como o time que defendeu. Crescendo e amadurecendo, no jornal foi linotipista, paginador, impressor, repórter policial, redator, assessor da direção e, por fim, também motorista do Diretor. Na verdade, era um fac totum, como ele mesmo se definia, com orgulho disfarçado, depois de apren-der a expressão latina com os colegas mais letrados. Nenhuma tarefa lhe era estranha, estava sempre pronto para segurar qualquer ponta. Ativo e laborioso, sua disposição para o trabalho era quase uma obsti-nação. Por isso se deu muito bem no meio da alemoada.

Com permissão do Diretor, Carioca abriu uma fábrica de carim-bos em sua própria casa, onde dona Maria se encarregava de atender

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as encomendas, enquanto ele permanecia a serviço do jornal, de dia e de noite, domingos e feriados. Mesmo depois de aposentado, con-tinuou motorista da Veraneio e fiel ao Diretor. Naquele carro, só ele punha as mãos. Era a viatura para as viagens do Diretor, seja para seu tratamento de saúde, seja para as saídas a serviço ou aos congressos, tanto na capital quanto no interior do Estado.

Era tempo da máquina de escrever mecânica e do telefone a mani-vela, em que se precisava gritar a plenos pulmões. Não havia compu-tador, sequer máquina elétrica, tudo era na força dos dedos, sem lesão por esforço repetido, doença descoberta bem mais tarde. O barulho da redação é uma das mais saudosas lembranças que guardo. No ma-traquear das máquinas, como uma orquestra, estava o som gostoso do trabalho e da produtividade. Para pesquisar, os livros e a coleção de jornais eram as únicas alternativas. Por isso, estávamos cercados de estantes cheias de volumes. A redação e a biblioteca eram uma coisa só, com milhares de volumes, as prateleiras cobrindo todas as pare-des, só deixando livre o espaço das janelas. A Internet não aparecia nem como idéia de ficção científica, quem falasse nisso seria louco de hospício.

O Diretor era pessoalmente apaixonado por livros. Principalmen-te de história, mas também todos os livros, livros a mancheias, como diria o poeta. Nunca faltou fonte de pesquisa. Mesmo sem abrir a prateleira, muitas vezes os eflúvios dali emanados pareciam resolver as dúvidas de qualquer redator. Nenhuma incerteza poderia ser tra-duzida em erro no jornal, este era um mandamento, que num certo período até apareceu em cartaz na parede. Antes consultar, depois escrever. Por isso, os livros eram de absoluta primeira necessidade, tão importantes quanto o ar para respirar.

Durante os anos 70, por causa do agravamento de sua doença co-ronária, cada vez mais o Diretor precisava da Veraneio e do seu zeloso motorista para as visitas ao cardiologista, que respeitosamente cha-mava de Professor Rubens Maciel. Numa dessas viagens a Porto Alegre, descobriu o anúncio do fechamento de uma livraria, com liquidação do estoque a preço de pechincha. Ele foi ver, e eram dezenas de coleções, enciclopédias, obras de história e cultura geral. Mandou fazer a conta e bateu o martelo: ficaria com tudo. Com aquilo, colocaria em polvorosa as escolas de Santa Cruz e da região, fazendo concursos de redação e

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distribuindo coleções como prêmios aos três primeiros colocados. A Ve-raneio do Carioca realizou várias viagens para trazer todo aquele acervo. Caixas e mais caixas ocuparam um depósito especial, que precisou ser providenciado. Deu muito trabalho, mas as escolas abriram as portas e seus professores de português envolveram a meninada. Foi bonito de ver. Depois, ia o diretor Frantz entregar pessoalmente os prêmios aos vencedores, com fotografia publicada no jornal.

Mesmo assim, sobrou livro. No final de cada ano, pouco antes do Natal, havia a festa dos funcionários. Além dos presentes tradicionais, cada um saiu com uma ou várias caixas de livros, distribuídas por sorteio. Para quem não tinha carro para levar o prêmio, o Carioca faria o trabalho com a camioneta do jornal. Tenho até hoje a minha enciclopédia Mérito, a coleção O Mundo Pitoresco e várias outras, que aproveitei muito bem ao longo do aprendizado da vida, com elas enri-quecendo as coisas que escrevi durante todo esse tempo. Pelo exemplo do mestre, investi o que pude na minha pequena biblioteca, onde conheço cada livro, sei onde fazer cada consulta, tanto que, para as minhas pesquisas, muito raramente sou obrigado a recorrer a fontes mais modernas, como as eletrônicas. Apesar das grandes facilidades da rede mundial, que tomou conta das redações, dispensando as bi-bliotecas e outros arquivos, o livro sempre será uma fonte mais palpá-vel, concreta, visível na prateleira, e dele jamais poderei abdicar para leitura e pesquisa. Se levantasse a cabeça e não enxergasse um livro, ficaria na orfandade e certamente entraria em depressão, tomado de um grande vazio.

46. Preparando a sucessão Nos primeiros tempos, os diretores da Gazeta eram todos sócios

fundadores. O médico Arthur Kliemann, no primeiro lustro. Logo de-pois, a partir de 1950 e por longos 31 anos, Francisco J. Frantz encabe-çou o empreendimento. Mas, em algumas épocas, ele teve ao seu lado outros diretores, como o também fundador Willy Carlos Froehlich, de 1957 a 1961. Mais tarde, de 1965 a 1973, Adalberto Felippe Dreher assumiu a representação de seguros e compartilhou a direção do jornal. Mas foi a partir de 1977 que passou a tomar forma o caminho da su-cessão, uma vez que seu mal cardíaco se agravava. A primeira das suas filhas, Beatriz, tinha casado em 1976 com André Luís Jungblut, um

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jovem executivo de boa situação profissional, atuando no setor finan-ceiro, em Porto Alegre. Sondou-o sobre a hipótese de vir para a Gazeta. Não seria uma mudança fácil, e ele resistiu.

Um dia, em janeiro de 1977, o Diretor entrou na redação, onde me encontrou sozinho, e disse o que acabara de decidir: eu seria diretor se-cretário do jornal, um cargo que nem existia, mas que seria criado para mim. Mesmo que, como editor, freqüentes vezes me apresentasse como seu “braço direito”, pegou-me de surpresa com o convite, que na ver-dade não foi um convite, mas já uma decisão. Voltou ao seu gabinete, colocou papel na máquina e escreveu o que generosamente publicaria no dia seguinte, no alto da capa, junto com a minha foto:

“Desde o dia 2 deste mês, passou a exercer neste jornal as funções de

diretor secretário o jornalista Guido Ernani Kuhn. O novo diretor deste trissemanário, depois de rápida incursão em atividade bancária, já há 12 anos exerce funções na Gazeta do Sul, inicialmente como colaborador avul-so, revisor, redator, redator-chefe e, agora, como responsável pela edição do jornal. Foi o caminho natural de quem recebeu excepcional vocação para a profissão de jornalista, e sempre soube dar a esta folha toda a sua dedicação, capacidade profissional e rara inteligência, inclusive sacrificando espontane-amente horas que poderia dedicar ao lazer. Suas credenciais o habilitaram, há dois anos, a desempenhar, nesta região, as funções de Delegado Regional da Associação Riograndense de Imprensa, além de ser, há quatro anos, o presidente do Conselho Municipal do Turismo. A notícia de sua promoção causou geral regozijo entre todos os que trabalham neste jornal, principal-mente entre a seleta e homogênea equipe que constitui o corpo de redatores da Gazeta, dado o excelente relacionamento do novo Diretor com todos os que trabalham no jornal, ou com ele colaboram, graças ao seu gênio afável, caráter retilíneo e fino trato. O jornalista Guido Ernani Kuhn é casado com a professora Lurdes Müller Kuhn, ambos naturais de Santa Cruz do Sul, e está cursando a Faculdade de Direito local, onde se classificou em 2º lugar no vestibular” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 8/jan/1977). Enquanto André Jungblut não se decidia sobre a possível vinda para

o jornal, o Diretor ficava imaginando outras hipóteses para o futuro da Gazeta. Uma delas era a de criar uma fundação, a ser administrada pelos próprios funcionários, idéia que comentou várias vezes com os colabo-radores mais próximos. Mas a prioridade sempre foi o ingresso do genro para ser o braço direito na administração e assumir, em curto prazo, a su-cessão definitiva. Isto aconteceu meio ano depois, quando, com o mesmo destaque e com foto, no alto da primeira página, publicou a nomeação do novo diretor superintendente:

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“O desenvolvimento e as ampliações previstas no jornal, tanto no que

se refere ao equipamento quanto à circulação do veículo que há 33 anos defende os interesses desta região, exigiram alterações também no quadro diretivo da empresa. Assim sendo, acaba de aceder ao nosso convite o dr. André Luís Jungblut, tendo assumido em julho findo as funções de dire-tor superintendente da Gazeta do Sul. O novo diretor do jornal é bacharel em Administração de Empresas, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Depois, até 1977, ocupou, nas cidades de Porto Alegre e Maringá, importantes funções em instituições financeiras e de planejamen-to, tais como: técnico coordenador do escritório da Planisul S/A (do grupo MFM), em Maringá; gerente de administração e finanças e assessor econô-mico-financeiro da Sul Brasileiro Crédito Imobiliário S/A, gerente de pro-cessamento e financiamento de diversas empresas do grupo Iochpe. Ainda como estudante, foi monitor de Análise Microeconômica da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Em 1972 e 1973, foi professor de Intro-dução à Administração na Faculdade de Ciências Econômicas de Maringá, onde foi também orientador de estágio remunerado na área de Ciências Econômicas. O sucesso obtido em suas atividades, nas importantes institui-ções financeiras em que atuou, e o profundo conhecimento que possui dos setores financeiro e administrativo levaram-nos a convidar o dr. André Luís Jungblut para assumir as funções de diretor superintendente da Gazeta do Sul, trazendo consigo uma potencialidade capaz de contribuir decisivamen-te para a concretização dos arrojados projetos de expansão do jornal, tanto no setor qualitativo (renovação de equipamento) quanto no quantitativo (circulação cada vez mais ampla em toda a região). Suas primeiras atividades no jornal já confirmaram o acerto da escolha, eis que imediatamente absor-veu a realidade da empresa e formou um relacionamento perfeito com toda a equipe de funcionários dos diversos setores, graças à sua sensibilidade de trato e retidão de personalidade. O dr. André Luís Jungblut é santa-cruzen-se, sendo casado com a professora Beatriz Frantz Jungblut e filho do casal José e Cecília Jungblut”. (a) Francisco J. Frantz, Diretor Presidente (Gazeta do Sul, 2/ago/1977). Estava, assim, definitivamente desencadeado o processo da sucessão

do jornal, encontrando-se já em pleno andamento os procedimentos bu-rocráticos para a importação de uma nova e moderna impressora off-set, que culminaria em 1979, assim como também a concorrência do Dentel para concessão de um novo canal de rádio AM para Santa Cruz do Sul, que resultaria na fundação da Rádio Gazeta, em 1980.

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47. Off-set, o grande salto A aquisição de um equipamento novo de impressão, no sistema off-

set, era um sonho muito antigo, não só do diretor Frantz, mas de toda a equipe do jornal. A redação estava particularmente empenhada nisso, já desde os anos 60. E em março de 1971, estava delineada uma parceria com a Gráfica Minerva, uma das mais conceituadas indústrias do setor no Estado, atuando especialmente no segmento de rótulos. Ela dispo-nibilizaria a impressora para a sonhada Gazeta em off-set, trampolim necessário para o grande objetivo do jornal diário. Aí, num dos artigos de fundo, o Diretor Frantz escreveu:

“...desejo informar aos leitores, em primeira mão, que segunda-feira

última, em reunião na cidade de Porto Alegre, presente a presidência e direção técnica das Organizações Minerva, o colega sr. Adalberto Felippe Dreher e o autor destas poucas e mal traçadas, após várias negociações e estudos preliminares, que já vêm de meses, foi decidida a aquisição de moderna máquina off-set para a impressão simultânea em seis cores. A má-quina destina-se a trabalhos gráficos comerciais, mas permite a impressão de jornal. Ao contrário do que está acontecendo com as máquinas da Ga-zeta, que têm 90% de capacidade ociosa, a nova máquina terá ocupação integral, pois, além de imprimir o nosso jornal, será ocupada em trabalhos comerciais pelas Organizações Minerva. Imprime até 14 mil jornais por hora e é considerada a mais moderna máquina off-set a cores na Europa. No Brasil, até agora só existem duas do mesmo tipo: uma no Rio e outra em São Paulo. A terceira será montada em Santa Cruz. [...] Desculpem os prezados leitores que eu hoje falasse tanto em jornal e conclua com a promoção da nossa empresa (palmadinha nos próprios ombros), mas o assunto é realmente importante, pois, se Deus quiser, por ocasião da tão esperada II Fenaf, teremos o jornal mais bem impresso do Estado, a cores” (FRANTZ, Francisco J. – Gazeta do Sul, 3/abr/1971). A II Fenaf seria realizada em outubro/novembro de 1972, com

pompa e circunstância, mas, ao contrário do que esperava o Diretor, e com ele todos nós, Deus ainda não quis que a Gazeta circulasse em off-set. A Minerva deu água e afundou no mesmo ano, deixando o jornal sem o parceiro para a grande cartada, que ainda não poderia dar sozi-nho. Logo depois, em janeiro de 1973, dois ex-funcionários da gráfica falida, Élio Tschiedel e Raul Jungblut, já tinham em funcionamento uma clicheria, apoiada pela Gazeta, onde passaram a ser produzidos os clichês necessários para a publicação de fotos e outras ilustrações

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no jornal. Antes, este serviço tinha que ser feito em Porto Alegre, na Fotogravura Alvorada.

Aquela década de 70, quando aconteceu o chamado “milagre bra-sileiro”, foi especialmente importante para a imprensa interiorana do Rio Grande do Sul. Por todos os cantos, vinham despontando peque-nos jornais em off-set, impressos em máquinas planas. Isto aconteceu também em Santa Cruz do Sul, onde surgiu o Riovale, em 1976, por iniciativa de Cacildo Armando Pagel, um funcionário do Banco do Brasil que, alguns anos antes, escrevendo uma coluna universitária para a Gazeta do Sul, tivera um bom treinamento e fora picado pela mosca do jornalismo.

Os pequenos veículos tinham a vantagem de trabalhar com papel em resmas, e as impressoras eram bem acessíveis. Ao contrário, as gran-des rotativas, necessárias para os jornais maiores, representavam um investimento muito pesado para a maioria. Mas a vez deles também chegaria, e para a Gazeta foi em 1979, depois de vários anos de tratati-vas, com levantamento de custos, escolha de equipamentos e complica-das providências burocráticas de importação. Com uma edição de 120 páginas, até então a maior de sua história, em meia dúzia de cadernos, o primeiro número do novo jornal circulou no dia 28 de setembro de 1979, data em que o município de Santa Cruz do Sul comemorava 101 anos de emancipação.

Várias semanas de preparação e treinamento de pessoal culminaram com dois dias e duas noites praticamente indormidas para toda a equi-pe. Muitos eram funcionários novos, ainda não habituados ao espírito e ao clima do jornal. Além das novidades técnicas, ocorreram também importantes inovações editorias, como a crônica social do Jornal do Ike. A estafa derrubou a alguns. Quase ao mesmo tempo, tombamos eu e o Cezar Barros, artista da paginação. Socorridos pelos anjos da guarda que nos cercavam, já no clarear do dia, depois de uma noite indor-mida, fomos acomodados sobre o sofá no gabinete do Diretor, para repouso e recuperação. Foi bonito ver todo mundo pegando parelho. Desde o mais humilde colaborador até os membros da família do chefe, todos achavam uma ponta para ajudar, nem que fosse encartar cadernos. A odisséia foi muito bem-sucedida, embora alguns proble-mas de qualidade na impressão, por falta de experiência da equipe e de ajustes nos equipamentos.

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Foi um grande e penoso trabalho colocar aquela edição na rua, o que só aconteceu depois do meio-dia. O governador Amaral de Souza viria inaugurar a rotativa e a nova agência do Banco do Brasil, mas a visita foi suspensa, à última hora. Depois do meio-dia, o presidente do Banco, que era o candelariense Nestor Jost, amigo pessoal do diretor Frantz, veio acompanhado de grande número de autoridades, quando rodava o caderno de capa, já informando o cancelamento da visita do governador.

Sabiam todos que a implantação da moderna rotativa não signifi-cava o fim dos esforços e do investimento. Era, na verdade, apenas o começo. O jornal ainda estava longe da perfeição. O sistema de com-posição a linotipo tivera que ser mantido, com muitas improvisações e adaptações técnicas. A paginação passou a ser feita em tiras de textos coladas com cera sobre folhas quadriculadas, de acordo com o tamanho das páginas, e “janelas” para inserção das fotos, mediante colagem no fotolito. Troca e inversão de fotografias na hora da montagem final, por falta de experiência, era um problema comum. Os equipamentos complementares, possibilitados pelo vertiginoso surgimento de inova-ções tecnológicas, foram sendo introduzidos aos poucos. Passaram-se ainda muitos anos até que o jornal adquirisse condições para tornar-se finalmente o grande diário da região, uma busca que se prolongou por mais de três décadas, mas que se realizou. O velho timoneiro não viveu tudo o que tinha sonhado, mas viu pelo menos a rotativa acelerando a 14 mil exemplares por hora. Quando foi embora deste mundo, o sonho do diário ainda não tinha se completado, mas o caminho estava aberto e ele sabia que este futuro era irreversível. Por isso, partiu com a missão cumprida, mas só depois de participar ainda de outro grande desafio: a Rádio Gazeta.

48. A pré-história da Rádio A história da Rádio Gazeta começa, na verdade, mais de cinco anos

antes de a emissora entrar no ar, em 1980. Foi em julho de 1974, bem no auge das comemorações do Sesquicentenário da Imigração Alemã no Es-tado, quando aconteceu a morte súbita do gerente da Rádio Santa Cruz, Lotário Bartholomay. Eu presidia o Conselho Municipal de Turismo (Comtur) e o Lotário, como vice-presidente, estava escalado para fazer o

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discurso oficial nas festividades do distrito de Boa Vista. Mas ele faltou na hora, vítima de fulminante ataque cardíaco, e a festa foi substituída pe-las exéquias do amigo e companheiro. Havia em Santa Cruz apenas um jornal e uma rádio, dois veículos parceiros de luta, nunca concorrentes. Tanto que Ernany Aloísio Iser atuava nos dois, em horários alternados.

Com a morte inesperada do gerente, todos imaginavam que o dono da rádio, Frederico Arnaldo Ballvé, fosse fazer o óbvio: colocar o Ernany na gerência, ele que encarnava a emissora como seu principal radialista, sem horário para o trabalho e sem tempo sequer para tirar férias ou ter momentos de lazer. O lazer dele era a própria rádio. No horário noturno, ele apresentava um programa de grande audiência, mesclando música com versos românticos, muitos deles improvisados na hora, com muito talento, alma e sentimento. Aí eu ia conversar freqüentemente com ele no estúdio, trocar idéias no intervalo das músicas, que eram curtos. Ele apresentava no gogó, um a um, todos os anúncios locais da grade, que não eram poucos. Era o dínamo do esporte na cidade, por ele passando toda a cobertura de rádio e jornal. Suas folgas eram tão escassas e furtivas que, embora já sendo um trintão bem vivido, não lhe sobrava tempo para tirar férias, sequer para a vida afetiva. Namorar, pensar em casamento, essas coisas... Dificilmente uma namorada agüentaria o seu ritmo de tra-balho. Sua vida era a rádio e ninguém imaginava a hipótese de não ser ele o novo gerente. Era natural, por isso, que o anúncio de um outro nome para o cargo lhe trouxesse uma grande frustração, difícil de ser superada, por mais que o escolhido fosse amigo e merecesse o seu respeito.

Algumas semanas depois, lá pelo final de agosto, passei alguns dias no hospital, por causa de uma úlcera duodenal. Convalescendo em casa, já durante a Semana da Pátria, era visitado por vários colegas, entre eles Paulo Roberto Treib, uma espécie de anjo da guarda, e Ernany Aloísio, amigo próximo, irmão e confidente. Passadas já várias semanas do epi-sódio da rádio, ele continuava remoendo aquela angústia. Não queria mal a ninguém, todos eram seus amigos e ele os respeitava. O rádio era sua vida e sua obstinação, e precisava crescer profissionalmente. Disse que havia no Departamento Nacional de Telecomunicações (Den-tel) a previsão de mais um canal de rádio para Santa Cruz do Sul. Considerava a cidade madura para ter uma segunda emissora, e o investimento poderia ser encarado. Se estivesse pensando nisso como projeto, disse-lhe que seria parceiro.

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Falou com seus dois irmãos, Egon Pedro e Elpídio Jair, também fun-cionários de ponta na Rádio Santa Cruz, e ainda com o amigo Ênio Oswaldo Wolf, técnico em radiodifusão. Depois de algumas reuniões, buscado e obtido o apoio do deputado federal Norberto Schmidt, dos irmãos Iser apenas o Ernany permaneceu no grupo. Os demais temiam uma demissão por justa causa na Rádio Santa Cruz. No Dentel, em Porto Alegre, certificamo-nos de que havia realmente um canal para Santa Cruz do Sul, não havendo ainda nenhum interessado. O projeto seria muito bem fundamentado, com todas as informações sobre a pujança econô-mica do município e da região, para anexar ao requerimento que serviria para provocar a abertura da licitação.

Alguns dias depois, questionei o Ernany sobre se tínhamos mesmo café no bule para bancar o empreendimento: “Por que não convidamos o Seu Frantz para liderar o grupo, colocando o nome de Rádio Gazeta?” Dito e feito. Fomos os dois ao diretor, que fez umas poucas perguntas e bateu o martelo na mesma hora. Para entrar a rádio no ar, demoraria ain-da mais de cinco anos. Já em 1975, terminados os registros da empresa – Gazeta Comunicações Ltda., com endereço na minha casa – e concluí-do o circunstanciado arrazoado para acompanhar o requerimento, final-mente fomos ao Dentel, onde já encontramos a proposta de um outro grupo, entre cujos sócios estavam o então vereador Telmo J. Kirst e o prefeito de Sobradinho, Lademiro Dors, ambos das nossas boas relações. “Amigos, amigos, negócios à parte”, pensamos em conjunto, e fomos em frente. Penamos alguns anos, tivemos o reforço de André Luís Jungblut, que ingressou na Gazeta em 1977, e ganhamos a concessão, contra meia dúzia de concorrentes.

A Rádio Gazeta entraria no ar, em caráter definitivo, apenas em mar-ço de 1980, funcionando inicialmente no pavimento superior do Bazer Rex, bem no centro da cidade, onde atualmente funciona a loja Herval. Mas a inauguração oficial só se daria no dia 28 de maio, na presença do Ministro das Comunicações, Haroldo Corrêa de Matos, e com um discurso emocionado do diretor Francisco J. Frantz, que ali dava por con-cluído o seu último grande desafio, tendo por sócios os seus próprios colaboradores no jornal, assim coroando esses tempos heróicos, que para ele duraram 36 anos. O jornal não só estava engatilhado para o grande salto tecnológico que se seguiria, como ainda ficaria em boas mãos, com André Luís Jungblut no comando administrativo de uma equipe feita à

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imagem e semelhança do grande líder. Por outro lado, a entrada no seg-mento do rádio significava a abertura de uma alternativa de fundamental importância para o crescimento da Gazeta como grupo de comunicação, depois agregando ainda diversos outros veículos na região e expandindo suas atividades também para outras áreas da moderna comunicação.

49. Foi embora de repente A doença cardíaca era uma realidade muito palpável. O Diretor já

tinha sofrido acidente cardiovascular e convivia diuturnamente com esta angustiante lembrança. Já tinha até combinado com o cardiologis-ta Rubens Maciel que se submeteria a uma cirurgia em São Paulo. Mas acabou procrastinando a decisão, por causa dos 10% de risco que cor-ria. Talvez pudesse ter aumentado ainda mais o seu saldo de realizações, com a soma de uns bons anos de vida. Afinal, tinha apenas 64 de idade naquela segunda-feira, 15 de junho de 1981. Pela manhã, na sede da Gazeta, os que chegavam para o serviço iam lendo, no rosto dos que já estavam lá, a notícia de que ele tinha partido. E escolhera uma véspera de edição para nos deixar, obrigando todo mundo a redobrar-se, divi-dindo as horas entre a dor da grande perda e a obrigação de continuar fazendo o que ele tanto gostava.

A cidade parou naquele dia, até que seu corpo fosse dado ao des-canso, ao final da tarde, no jazigo da família, no Cemitério São João Batista. Ali, o seu novo endereço ficou na rua que leva o nome de seu pai, Jorge Frantz. Um dos momentos mais tocantes foi a leitura do pa-negírico que preparamos, e que o Ernany Aloísio apresentou, com toda a poesia da alma e a força do sentimento. À última palavra do sacerdote que presidiu a pompa fúnebre seguiu-se um longo e eloqüente silêncio, que acompanhou a todos no caminho de volta para a vida quotidiana, que precisava continuar.

A edição do dia seguinte trazia as lágrimas da perda e a herança de vida que foi lição para todos. O necrológio, estampado no alto da capa, tentava traduzir a enciclopédia dos seus grandes ensinamentos, que per-maneceria nas prateleiras da memória de cada um. Francisco J. Frantz nasceu no dia 23 de março de 1917, filho de Jorge e Maria Frantz. Perdeu o pai antes de completar seis anos de idade. Casado com Nelly Emma Schütz, teve com ela duas filhas, Beatriz e Ângela. Formou-se na

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primeira turma do curso de perito contador no Colégio São Luís, nos anos 30. Iniciou a vida profissional como funcionário da Companhia Souza Cruz. Depois, nos tempos difíceis da Segunda Guerra, teve des-tacada atuação como secretário da Associação do Comércio, Indústria e Agricultura de Santa Cruz do Sul. No dia 26 de janeiro de 1945, inte-grou o grupo dos oito fundadores da Gazeta de Santa Cruz, onde atuou desde o início e cuja direção assumiu definitivamente em janeiro de 1950. Foi, também, sócio do escritório Soteca e sustentou por muitos anos uma carteira de seguros.

Sempre atuante nos mais variados setores da comunidade, defensor incondicional dos interesses comuns, sua palavra abalizada e sábia era acatada e respeitada por todos. Foi fundador da Associação de Diretores de Jornais do Interior (Adjori), membro da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e do Sindicato das Empresas Proprietárias de Jor-nais e Revistas do Estado do Rio Grande do Sul, entidades de classe em que sua liderança e sua voz equilibrada tiveram sempre o respeito dos confrades. Durante muitos anos, atuou no Rotary Clube. Participou, por doze anos, do Conselho do Plano Diretor de Santa Cruz do Sul, ao tempo em que a cidade não possuía lei para regular o uso do solo, e sua presença era a certeza da vigilância permanente contra interesses escu-sos. Foi, ainda, fundador e diretor do Conselho Municipal de Clubes 4-S, que atuava junto à juventude rural.

Nos dias que se seguiram ao desenlace, as páginas do jornal regis-traram uma série de depoimentos espontâneos de pessoas que o conhe-ceram e reconheceram suas virtudes de homem atento ao bem comum, sempre pronto para defender as causas da comunidade. Trazemos, aqui, algumas dessas manifestações:

“Sou testemunha do tratamento que o chefe dispensava aos seus subor-

dinados, interessando-se por seus problemas pessoais (e especialmente fami-liares), como um zeloso pai de família. [...] Merece, também, um registro especial a imensa capacidade de Francisco J. Frantz de fazer amigos. Causeur de ilimitados recursos, dotado de uma verve e bonomia contagiantes, cativava a todos e somava admiradores em toda a parte, não apenas na região, mas em inúmeras andanças de turismo e negócios pelo Brasil e até no exterior. Era conhecido por sua vasta cultura geral, que impressionava profundamente os visitantes ilustres que aqui chegavam, e terminavam considerando-o uma es-pécie de embaixador da boa vontade da nossa terra e um mestre de protocolo nato, pela facilidade com que se comunicava e pela fidalguia de maneiras com que sabia receber visitantes” (Mário A. Assmann).

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“Neste mundo carente de pessoas autênticas, Francisco José Frantz foi, para mim, provavelmente, o santa-cruzense mais autêntico que co-nheci. Como sabia ensinar, não apenas com palavras, mas com exemplos! Como lhe sobravam qualidades para ser humilde com os pequenos e al-tivo com os poderosos. Quantas vezes a sua pena de jornalista protestou contra o que lhe parecia injusto. Em vida, não temeu o poder econômico nem o político, quando arbitrário. Quantas campanhas liderou em favor da comunidade. A própria permanência do nome de Santa Cruz do Sul ao nosso município, em muito, se deve a Francisco José Frantz. [...] Da história de Santa Cruz do Sul era também profundo conhecedor e meti-culoso estudioso. Certa feita, me recordo, sugeri ao amigo que reunisse as suas crônicas num livro. Ficou de pensar no assunto. Quem lembra delas por certo guarda todo o sabor que elas continham. Quando usava o tom jocoso, o fazia de maneira inimitável. Sabia dizer as coisas com o melhor sabor. [...] Companheiro habitual do cafezinho após o meio-dia, sua pre-sença no Quiosque entre os amigos era vida e alegria. Nas épocas em que veraneava no litoral, a sua ausência era notada e sentida. Quando voltava, as conversas parece que se reanimavam e tomavam novo colorido. Era o colorido da figura humana que se destacava nas virtudes de Francisco José Frantz. [...] Foi um homem de visão, mas, acima de tudo, um amigo de coração” (Paulo Jochims)

“Não tive a oportunidade de conviver profissionalmente com este ho-mem, mas lembro do seu entusiasmo em receber os novos profissionais que ingressavam na Gazeta, como se visse neles a esperança de ter seu trabalho continuado. Era um homem que gostava de conversar, discu-tir idéias, informar-se sobre as novidades técnicas que o novo sistema de impressão trazia à Gazeta do Sul. Mesmo afastado do trabalho diário do jornal, vivia atento ao que estava sendo realizado e fazia questão de cum-primentar pessoalmente aqueles cujo trabalho o entusiasmava. Foi assim quando da primeira entrevista que realizei para a Gazeta. Seu Frantz pro-curou-me na redação e, com o polegar erguido em sinal de positivo, disse apenas: “Muito bom trabalho, seu Barreto, muito bom”. Não era apenas um elogio forçado, era um sinal de estímulo de quem havia encerrado a carreira para quem iniciava há pouco. É triste admitir o desaparecimen-to de homens como Francisco J. Frantz, pois homens como ele existem poucos, e o jornalismo não vive sem eles. Porém, sem depender de super-heróis, a Gazeta do Sul continuará a missão que ele iniciou há 36 anos atrás. Afinal, o mais difícil já foi feito por este verdadeiro super-herói do jornalismo” (Luís Antonio Barreto)

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50. Uma luz que não se apaga Entre as dezenas de qualidades, todas elas de alguma forma men-

cionadas ao longo do presente trabalho, destacou-se em Schloka Frantz, muito particularmente, a sua imensa bagagem cultural, amealhada não nos bancos acadêmicos, onde só se formou perito contador, mas na atenta vivência de todos os momentos na trajetória da vida, especial-mente pelas leituras e pelas viagens, todas elas resultando em aponta-mentos de memória que lhe deram a fama de “enciclopédia ambulan-te”. Aprendi dele que a vida é a grande escola de cada um de nós. Basta que agucemos os olhos, os ouvidos, todos os sentidos e sentimentos para a realidade que diuturnamente se projeta sobre nós, e que precisa-mos absorver para conhecer e compreender o mundo.

Carregando este carimbo de verdadeiro símbolo cultural de uma época em que ainda se lutava pela criação de uma universidade em San-ta Cruz do Sul, na qual ele e seu jornal se jogaram por inteiro e foram grandes baluartes, o nome do Diretor falecido surgiu com naturalidade para ser dado à casa de cultura que se implantaria no prédio da antiga estação ferroviária, que estava sendo restaurado nos anos 80. A iniciati-va foi da vereadora Sônia Marli Kessler, mas o projeto foi assumido de forma consensual e a aprovação na Câmara Municipal foi unânime.

O Centro de Cultura Jornalista Francisco J. Frantz nasceu de um movimento pela preservação de um monumento histórico que, mais que sua importância arquitetônica, simbolizava uma época de extra-ordinário crescimento para o Município, que foram as seis décadas em que permaneceu ativo o ramal ferroviário entre Santa Cruz e Rio Par-do, festivamente inaugurado em 1905, mas tristemente sepultado seis décadas depois. Feita durante a administração do prefeito Armando Wink, a restauração culminou com a lei que lhe dava o nome do jorna-lista, sancionada em cerimônia pública no salão nobre da Prefeitura, a 7 de dezembro de 1987. A homenagem era justa e refletia não apenas o sentimento das pessoas, mas também a rica biografia do finado Diretor. Na mesma ocasião, representando a família do homenageado e na con-dição de sucessor no comando do empreendimento jornalístico, o dire-tor André Luís Jungblut interpretou o sentimento da família Gazeta:

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“De um lado, visualizamos a grandeza de reconhecer e de imortalizar a obra de Francisco José Frantz, que, ao idealizar a Gazeta do Sul, adotou para si e para a empresa uma postura obstinada e inflexível em favor da verdade, para criar condições a que esta comunidade adquirisse condições ao desenvolvimento. De outro, antevemos na iniciativa do Legislativo, avalizada pelo chefe do Executivo Municipal, a determinação de execu-tar um projeto que vem garantir a Santa Cruz do Sul um espaço para o aprimoramento da cultura e uma opção de lazer para o seu povo. Ao ser nominado como Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz, o projeto vem inspirado na força realizadora de um homem que sempre primou pelo seu dinamismo e pela capacidade de identificar os verda-deiros anseios da população. [...] Executar o projeto do Centro de Cul-tura deverá ser um desafio comunitário para resgatar um compromisso com o setor cultural do município. A restauração do prédio da antiga estação ferroviária já foi um passo importante. Agora, é preciso avançar, criar espaços, oferecer alternativas para que o potencial artístico e cultural, em perfeita harmonia com a preocupação ambiental, conforme prevê o projeto, consiga evoluir ao nível que Santa Cruz espera. [...] Dispensável é dizer da honra que sentimos neste momento, pela distinção conferida ao fundador de nossa empresa, e o fazemos com a consciência de que a homenagem nos motiva e impulsiona a seguirmos pelo caminho que ele abriu, servindo da melhor forma possível a comunidade em que atuamos. Seus ideais são nossos ideais. Seus objetivos, nossas bandeiras de luta. Que o Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz seja uma realidade ainda maior: da expressão da obra e do valor da pessoa ilustre que hoje reverenciamos e homenageamos” (Gazeta do Sul, 8/dez/1987).

Voltemos a junho de 1981. Logo depois de levarmos o nosso esti-mado diretor ao seu descanso final, no dia 15 daquele mês, a primeira coisa que me veio à cabeça, e escrevi no jornal, foi um pensamento que tinha lido e guardado: “Há homens que lutam um dia, e são bons; há outros que lutam muitos dias, e são melhores; há os que lutam anos, e são excelentes; mas há os que lutam toda a vida, e são imprescindí-veis...”

Ele era um desses homens. Não insubstituível, mas imprescindí-vel. Não há homens insubstituíveis. Estes teriam o demérito de não ter deixado exemplos frutificados. O imprescindível, ao contrário, continuará vivo no trabalho dos seguidores. Foi o que aconteceu com Schloka Frantz. O filme da sua vida continua passando na cabeça dos que estiveram ao seu lado e dos que viveram o seu tempo, produzin-do efeitos renovados sobre seus atos e sentimentos. Homem autêntico,

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mostrava-se inteiramente, não só nas suas grandes virtudes, mas até nas fraquezas humanas, com as quais convivia naturalmente, na humildade necessária, mas na altivez de quem tem valores claros e os defende com todo o vigor. Sabia exatamente a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado.

Uma das coisas mais marcantes em sua personalidade foi que, mes-mo do alto de sua gigantesca bagagem cultural e moral, sabia descer até a singeleza dos mais humildes, partilhando com eles as responsabilida-des e os méritos do que se construía de forma conjunta. Sua liderança propunha esta cumplicidade, e cada elo da corrente sempre tinha reco-nhecida e destacada a sua importância. Um bordão que repetia cons-tantemente era o de que, no jornal, a melhor idéia deveria prevalecer sempre, mesmo que contrariasse a opinião do Diretor.

Sua filosofia era clara e seus princípios inflexíveis. Em nome deles, não se importava de perder anunciantes, assinantes e até amigos. A sin-ceridade coerente lhe rendeu uns poucos desafetos, mas um grande res-peito da opinião pública, que tomava a sua palavra abalizada como um norte a ser seguido. Conseguiu realizar a meta do jornal independente, e a credibilidade alcançada foi uma conseqüência natural.

Sonhou com o jornal diário, de cobertura local, nacional e interna-cional. Até tentou fazê-lo, em 1957, mas esbarrou em condições técni-cas insuficientes e numa cidade ainda muito pequena para sustentá-lo. Mas deixou dito e escrito que isto seria irreversível, pressentindo a mo-derna comunicação de massa, que viria na velocidade do pensamento. E acertou.

Ele era um forte, mas não o seria sozinho. Era forte ao lado dos seus. Familiares e colaboradores, sua grande família. Sabia que ninguém é tão poderoso quanto todos juntos. Sempre foi assim e sempre será assim. Um dos segredos era o grande coração, que quase não cabia no peito, costumando transbordar em dezembro, quando o Natal era sempre es-pecial, com festa animada e generosa distribuição de presentes. Haven-do o que repartir, ele repartia.

As pessoas especiais são eternas, não porque sejam imortais no cor-po, mas porque suas obras permanecerão e sua luz se manterá acesa, iluminando o caminho dos que continuam andando e procurando um rumo.

Sempre que penso no mestre, fico imaginando que ele partiu muito

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cedo. Ao seu lado, teria aprendido algumas coisas a mais. Mas o essen-cial ele me passou, em 16 anos de convivência. Com idéias claras e valo-res nítidos, ensinou a alimentar o espírito, a abrir bem os olhos e os ou-vidos para o que se passa ao redor. Acima de tudo, ensinou que o papel aceita tudo, por isso é preciso cuidar do que se escreve nele. Às vezes era brigão, é verdade, mas nunca contra os pequenos. Não era apenas alma e coração do jornal. Era também, durante mais de três décadas, ícone e paradigma do jornalismo local, regional e até estadual. Deixou forte e profunda marca sobre todos os que privaram da sua proximidade.

No dia 23 de março de 2007, ele estaria completando 90 anos. Mas nos deixou muito cedo, aos 64, poucos meses antes do nascimento de sua primeira e única neta, Rafaela Frantz Jungblut, hoje também inte-grada à equipe do jornal. Depois dele, também partiu a filha Beatriz, permanecendo o genro André Luís Jungblut à testa das empresas do grupo, cujo órgão líder, a Gazeta do Sul, acaba de completar 62 anos de circulação ininterrupta, como um dos principais veículos impressos do interior do Estado. Também permanecem entre nós a viúva Nelly Emma Frantz, que por vários anos foi diretora presidente, e a filha ca-çula, Ângela Frantz, realizando carreira profissional em Porto Alegre.

Quinze mil dias depois de conhecê-lo, em 1965, e 25 anos depois de ele ter partido, em junho de 1981, vejo, cada vez mais nitidamente, como ele distribuiu muitos ensinamentos, junto com as melhores recei-tas de vida. Repetindo ainda o compositor sacro, poderia dizer, como depoimento final, que, vinda do alto da sabedoria que o caracterizava, “sua palavra era assim, não passava por mim sem deixar um sinal”.

Ele era manso, mas era um leão.

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alemães e seus descendentes durante a Segunda Guerra Mundial... – Anais do Encontro sobre Nacionalização, Guerra e Minorias, Florianópolis-SC, maio/2005

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nário de Pesquisadores da História das Comunidades Teuto-Brasileiras, Lajeado, 2 e 3/jul/1999

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Editora Edel, Porto Alegre Outras fontes Comunidade Evangélica de Santa Cruz do Sul – 100 anos (1862-

1962), caderno especial comemorativo, editado pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Comunidade de Santa Cruz do Sul

MARTIN, Hardy Elmiro – Diversos artigos avulsos publicados no

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Colégio Mauá, Santa Cruz do Sul Documentos, depoimentos e entrevistas com diversas pessoas,

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por testemunho ou transmissão oral Anexo 1Em ordem cronológica, periódicos que circularam em Santa Cruz e

já encerraram atividades:A Cruzada – Órgão dos interesses de Santa Cruz, de José Rodolpho

Taborda, lançado em 25/3/1887, editando 10 números (português).Kolonie – Órgão dos interesses de Santa Cruz, editado por Stutzer

& Hermsdorf, depois Kalsing & Kull e, finalmente, Lamberts & Riedl, de 1/1/1891 a 29/8/1948 (alemão).

Festschrift – poliantéia comemorativa dos 400 anos da descoberta da América, em 12/10/1892 (alemão).

Narren-Villa in Carneval – Folha de carnaval, edição única, 1896 (alemão).

A homenagem – dedicada ao Presidente do Estado, Júlio Prates de Castilhos, no dia de sua visita a Santa Cruz, edição única, 3/6/1897 (português).

Festzeitung – poliantéia comemorativa do jubileu de prata da Socie-dade Alemã de Tiro, edição única em 13/6/1897.

Die Neue Zeitung – de Willy Süffert e M. J. Schumann, lançado a 8 de janeiro de 1898, editando 12 números (alemão).

Anti-Griesgram – Folha de humor e piadas para o Rio Grande do Sul - Willy Süffert. Janeiro de 1898, cinco números (alemão).

Narren-Ulk – Folha de Carnaval, edição única, 1900 (alemão).Fortschritt – Órgão do Partido Republicano – 20/11/1902 a

31/12/1904 (alemão).§11 Carneval-Zeitung – Folha de Carnaval, edição única, 1903 (alemão).O Estudante – Órgão do Clube Literário Antonio Gonçalves Dias

– Willy Süffert, 15/4/1903, 4 números (português).Narren-Zeitung für das Narrenreich Villa Thereza und Umgegend

– Folha de Carnaval, edição única, 1904 (alemão).A Tesoura – Órgão do Clube Bailante Juvenil, de E. Lund –

26/6/1904, 4 números (português)A Lanterna – Periódico literário, crítico e noticioso, de João Bitten-

court de Menezes, em 10/1/1905, 11 números (português).Santacruzer Anzeige – Órgão noticioso, de W. Kuhn, de 21/1/1905

a 1908 (alemão).

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Kater Murr – Folha de Carnaval, edição única, 1905 (alemão).Carneval-Zeitung – Folha de Carnaval, edição única, 1905 (ale-

mão).O Brazil – Literário e noticioso, de Tancredo M. Gomes, 9/4/1908,

2 números (português).A União – Órgão do Partido Republicano, J. R. Moreira Gomes, de

1/1/1910 até 1911 (português).Gazeta de Santa Cruz – Órgão do Partido Republicano (substituiu

o Kolonie durante a Primeira Guerra Mundial), José Ernesto Riedl, 15/2/1918 a 27/6/1919 (português).

Luneta – Jornal literário e noticioso, Ary Guimarães do Prado, 12/5/1918 a 25/12/1918 (português).

O Gaúcho – Crítico, noticioso e literário, de 6/12/1924 a 31/1/1925, 9 números (português).

Volksstimme – Órgão de interesse geral, Porta-voz do Partido Li-bertador (jornal católico), Ottomar J. Kussler, J. J. Barros e Bernhard Linn, de 1929 a 1941 (alemão).

A Voz do Povo – da 1938 a abril de 1939 (português).Jornal de Santa Cruz – Lamberts & Ridel, de 5/9/1941 a 21/10/41,

(versão do Kolonie, em português) A Voz do Progresso – Órgão de interesse geral e porta-voz do Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB), Impressora Industrial S.A., Dr. Arno W. Schmidt, de 15/9/1954 a 12/10/1958 (português).

Revista Alto Falante, de Luís Antonio Barreto e Volter Trindade, dezembro/1980 a 1990 (português).

Plantão/O Eco – Informação, utilidade pública, opinião e debate – Eco Editora Comunicação Ltda., Guido Ernani Kuhn, de março/1993 a junho/1994 (português).

Revista Agora, de Sílvio Corrêa e Sérgio Jost, março/1995 a dezem-bro/2001 (português).

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O autor GUIDO ERNANI KUHN nasceu a 18/12/1943, em Formosa,

Santa Cruz do Sul (atualmente Vale do Sol). Filho de João Bruno Kuhn e Cecília Matilda Kuhn. Estudou na Escola Particular São João Batista (Formosa), nos seminários Sagrado Coração de Jesus (Arroio do Meio), São José (Gravataí) e Imaculada Conceição (Viamão). Cursou Filosofia e Letras, formou-se em Direito e fez pós-graduação em Teoria Geral do Direito e Pesquisa Jurídica (Santa Cruz do Sul). Lecionou Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado na Faculdade de Direito de Santa Cruz do Sul. É advogado com registro na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

Jornalista profissional, foi redator, revisor, editor, colunista e diretor secretário da Gazeta do Sul. Acionista da Gazeta do Sul S/A e sócio fundador das rádios Gazeta AM e FM.

Foi membro e presidente do Conselho Municipal do Turismo (Comtur) e Delegado Regional da Associação Riograndense de Im-prensa (ARI). Foi secretário executivo, assessor de imprensa e assessor parlamentar na Câmara Municipal de Santa Cruz do Sul e chefe de ga-binete na Assembléia Legislativa Gaúcha. Assessor de imprensa no Clu-be de Diretores Lojistas (CDL) de Santa Cruz do Sul e nas Prefeituras Municipais de Santa Cruz do Sul, Vera Cruz e Vale do Sol. Colaborou, ainda, com vários jornais do Estado e da Região e portais de jornalis-mo. Foi produtor de jornalismo e cronista na Rádio Santa Cruz. Sócio fundador, membro do Conselho Deliberativo e da Diretoria do Centro Cultural 25 de Julho, de Santa Cruz do Sul. Atualmente, dedica-se a pesquisas sobre a história de Santa Cruz do Sul e da Região, além de assinar uma crônica semanal no jornal Gazeta do Sul.

Premiado em concurso realizado pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) nos 150 anos de colonização alemã no Município, parti-cipou com dois trabalhos no livro Fragmentos de Vida, organizado pelo professor Elenor José Schneider (Edunisc, 1999).

E-mail de contato: [email protected]

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