Papel da experimentação no ensino de ciencias

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Artigo que trata das possibilidades de enriquecimento das aulas na educação básica através da experimentação.

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Experimentação e Ensino de Ciências N° 10, NOVEMBRO 1999

PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA

É de conhecimento dos profes-sores de ciências o fato de aexperimentação despertar um

forte interesse entre alunos de diversosníveis de escolarização. Em seus de-poimentos, os alunos tam-bém costumam atribuir àexperimentação um carátermotivador, lúdico, essen-cialmente vinculado aossentidos. Por outro lado,não é incomum ouvir deprofessores a afirmativa deque a experimentaçãoaumenta a capacidade deaprendizado, pois funciona como meiode envolver o aluno nos temas empauta.

Nossa proposta aqui é discutir o pa-pel da experimentação nos processosde elaboração do pensamento cientí-fico, elevando-a à categoria de pro-cesso de natureza social, técnica ecognitiva. Queremos identificar as ca-racterísticas mais fundamentais do

no ensino de ciênciasMarcelo Giordan

pensamento científico, apoiando-nosnos estudos de alguns filósofos daciência, sem a pretensão de defenderuma idéia de evolução para a experi-mentação e seu posicionamento den-

tro das ciênciasnaturais ou hu-manas, mas ape-nas apontar osprincipais apoiosda teoria do co-nhecimento quesustentam essadiscussão. Porfim, discutimos

as implicações da teoria de modelosmentais para a experimentação e suarelevância para o ensino de ciências,utilizando o conceito de simulação.

Primórdios do racionalismo:a observação natural

Há mais de 2 300 anos, Aristótelesdefendia a experiência quando afirma-va que “quem possua a noção sem a

experiência, e conheça o universalignorando o particular nele contido,enganar-se-á muitas vezes no trata-mento” (Aristóteles, 1979). Naqueletempo, já se reconhecia o caráter par-ticular da experiência, sua natureza fac-tual como elemento imprescindível pa-ra se atingir um conhecimento uni-versal. Ter a noção sem a experiênciaresgata, em certa medida, a temáticade se discutir as causas sem se tomarcontato com os fenômenos empíricos,o que significa ignorar o particular ecorrer o risco de formular explicaçõesequivocadas.

O pensamento aristotélico marcoupresença por toda a Idade Média entreaqueles que se propunham exercitar oentendimento sobre os fenômenos danatureza. Esse exercício desenvolvia-seprincipalmente num plano além daconcretude do mundo físico, estabe-lecido como estava na lógica, umpoderoso instrumento de pensamentojá conhecido dos gregos. O acesso aoplano dos fenômenos ocorria atravésdos sentidos elementares do ser huma-no, que orientavam seu pensamento pormeio de uma relação natural com ofenômeno particular. Na ausência deinstrumentos inanimados de medição,a observação — numa dimensãoempírica — era o principal mediadorentre o sujeito e o fenômeno. Aliada àlógica — numa dimensão teórica —, aobservação natural sustentou na suabase empírica a metafísica no exercíciode compreensão da natureza.

Passados 23 séculos e guardadasas particularidades do contexto a quese aplica a fala de Aristóteles, notamosque muitas propostas de ensino deciências ainda desafiam a contribuiçãodos empiristas para a elaboração doconhecimento, ignorando a experi-mentação ainda como uma espécie de

A presente seção inclui estudos e investigações sobre problemas noensino de química, com explicitação dos fundamentos teóricos eprocedimentos metodológicos adotados na análise de resultado.Este artigo discute o papel da experimentação na construção doconhecimento científico e sua relevância no processo de ensino-aprendizagem, pautando-se em contribuições filosóficas,epistemológicas e psicológicas.

conhecimento científico, ensino de ciências, experimentação, simulação

...entendo que nossa linguagem ordinária está repleta de teorias; que aobservação sempre é observação à luz das teorias, e que é somente oprejuízo indutivista que leva as pessoas a pensar que poderia existir umalinguagem fenomênica, livre das teorias e diferente de uma ‘linguagemteórica’... (K.R. Popper, em Lógica da investigação científica, p. 61, notaadicionada em 1968.)

Aliada à lógica — numadimensão teórica —, a

observação naturalsustentou na sua baseempírica a metafísica

no exercício decompreensão da

natureza

O papel da

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observação natural, como um doseixos estruturadores das práticas esco-lares. A elaboração do conhecimentocientífico apresenta-se dependente deuma abordagem experimental, nãotanto pelos temas de seu objeto deestudo, os fenômenos naturais, masfundamentalmente porque a orga-nização desse conhecimento ocorrepreferencialmente nos entremeios dainvestigação. Tomar a experimentaçãocomo parte de um processo pleno deinvestigacão é uma necessidade, re-conhecida entre aqueles que pensame fazem o ensino de ciências, pois aformação do pensamento e das atitu-des do sujeito deve se dar preferen-cialmente nos entremeios de ativida-des investigativas.

Contribuições positivistas: aexperimentação como um fimem si mesma

A experimentação ocupou um pa-pel essencial na consolidação dasciências naturais a partir do século XVII,na medida em que as leis formuladasdeveriam passar pelo crivo das situa-ções empíricas propostas, dentro deuma lógica seqüencial de formulaçãode hipóteses e verificação deconsistência. Ocorreu naquele períodouma ruptura com as práticas de inves-tigação vigentes, que consideravamainda uma estreita relação da naturezae do homem com o divino, e que esta-vam fortemente impregnadas pelosenso comum. A experimentação ocu-pou um lugar privilegiado na pro-posição de uma metodologia científica,que se pautava pela racionalização deprocedimentos, tendo assimiladoformas de pensamento características,como a indução e adedução.

Estabelecido umproblema, o cientistaocupa-se em efetuaralguns experimentosque o levem a fazerobservações cuida-dosas, coletar dados,registrá-los e divulgá-los entre outros mem-bros de sua comuni-dade, numa tentativa de refinar asexplicações para os fenômenos subja-centes ao problema em estudo. O

acúmulo de observações e dados, am-bos derivados do estágio de experi-mentação, permite a formulação deenunciados mais genéricos que po-dem adquirir a força de leis ou teorias,dependendo do grau de abrangênciado problema em estudo e do númerode experimentos concordantes. Esseprocesso de formular enunciados ge-rais à custa de observações e coletade dados sobre o particular, contextua-lizado no experimento, é conhecidocomo indução. O método descrito porFrancis Bacon fundamenta a chamadaciência indutivista, que em suas pala-vras se resume a:

Só há e só pode haver duasvias para a investigação e paraa descoberta da verdade. Umaque consiste em saltar das sen-sações e das coisas particularesaos axiomas mais gerais e, aseguir, em se descobrirem osaxiomas intermediários a partirdesses princípios e de sua ina-movível verdade. E outra, querecolhe os axiomas dos dadosdos sentidos e particulares,ascendendo contínua e gradual-mente até alcançar, em últimolugar, os princípios de máximageneralidade. Esse é o verdadei-ro caminho, porém ainda nãoinstaurado. (BACON, 1989, p. 16.)

Um exemplo simples de aplicaçãodo método indutivo em situações deensino pode ser analisado numaatividade de laboratório na qual sepede para vários alunos registraremindependentemente a temperatura deebulição da água. Supondo que essesalunos façam seus experimentos numa

cidade litorânea e quetodos eles tenhamregistrado a tempera-tura de ebulição em100 °C, pode-se levá-los à conclusão, pelométodo indutivo ba-seado no acúmulo deevidências experimen-tais, que a tempera-tura de ebulição daágua é 100 °C. No

pensamento indutivista, não há lugarpara a contradição, ou seja, as evidên-cias empíricas devem todas concordar

com os enunciados genéricos.Ainda preocupado em formular

uma metodologia científica precisa,René Descartes impôs à experimen-tação um novo papel, diverso do pro-posto por seu contemporâneo Bacon.Descartes considerava que o processodedutivo —reconhecer a influênciacausal de pelo menos um enunciadogeral sobre um evento particular —ganharia mais força na medida em queo percurso entre o enunciado geral eo evento particular fosse preenchidopor eventos experimentais:

Percebi (...), no que concerneàs experiências, que estas sãotanto mais necessárias quantomais adiantado se está em co-nhecimentos. (...) Primeiramen-te, tentei descobrir, em geral, osprincípios ou causas primitivasde tudo o que é ou que podeser no mundo .(...) Depois, exa-minei quais eram os primeiros emais comuns efeitos que po-diam ser deduzidos de tais cau-sas. (...) Após isso, quis desceràs mais particulares.

Desse trecho retirado da sexta parte— “Que coisas são requeridas paraavançar na pesquisa da natureza” —do livro Discurso do método, percebe-se que há uma inversão na propostade Descartes (1980) para o fazer ciên-cia, comparando-se com aquela feitapor Bacon, pois não é mais o acúmulode evidências particulares que forta-lece o enunciado geral, a lei, a teoria.

Partindo-se de um enunciado geral,como “a temperatura de ebulição doslíquidos é função da pressão ambien-te” e tendo como fato que ao nível domar a água ferve a 100 °C e numa certacidade serrana a 96,5 °C, podemos for-mular a hipótese de que a temperaturade ebulição da água em uma panelade pressão será maior que 100 °C. Co-mo o enunciado apela para a variaçãoda temperatura em função da pressãoe os dados revelam que essa taxa épositiva (maior pressão, maior tempe-ratura), deduzimos que em um sistemasemi-aberto como a panela de pressãoa pressão ambiente será maior e,portanto, também será maior a tem-peratura de ebulição. Qual é o papelda experimentação aqui? Confirmar

O acúmulo deobservações e dados,ambos derivados do

estágio deexperimentação,

permite a formulaçãode enunciados mais

genéricos que podemadquirir a força de leis

ou teorias

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nossa hipótese, uma espécie de carim-bo atestando a força do enunciadogeral.

Cumpre destacar a característicade controle que a experimentação pas-sa a exercer com a transformação dopensamento científico. Esse controle,exercido sobre as variáveis inerentesao fenômeno em estudo, subsidia aprática empírica de adotar a precisãoda medida da variável como critériomais adequado de julgamento dofenômeno, que durante o advento dafase racionalista da ciência passa aocupar o lugar da prática aristotélicade privilegiar os sentidos na aborda-gem do fenômeno. O empírico avançapara a compreensão do fenômeno àmedida que abstrai os sentidos e seapóia em medidas instrumentais maisprecisas, passíveis de reproduçãoextemporânea. O ataque à filosofiaaristotélica no século XVII é comple-tado por Galileu, que atribui à experi-mentação um papel central no fazerciência, o de legitimadora1.

Esses três pensadores são consi-derados fundadores da ciência moder-na, fundamentalmente por terem com-batido o pensamento aristotélico, noqual a experiência tinha base na obser-vação natural, mas também por teremcontribuído para a estruturação do queficou conhecido como método cientí-fico, pelo qual a experiência é planifi-cada com base num estratagemaracional. Suas idéias fundamentais fo-ram retomadas por Augusto Comte(1983, p.8) em seu Curso de filosofiapositiva:

“...indicarei a data do grandemovimento impresso ao espíritohumano (...), pela ação combi-nada dos preceitos de Bacon,das concepções de Descartese das descobertas de Galileu,como o momento em que oespírito da filosofia positivacomeçou a pronunciar-se nomundo.”

As idéias positivistas influenciarame ainda influenciam práticas pedagó-gicas na área de ensino de ciências,sustentadas pela aplicação do métodocientífico. Saber selecionar e hierar-quizar variáveis segundo critérios depertinência para a compreensão dos

fenômenos, controlar e prever seusefeitos sobre os eventos experimentais,encadear logicamente seqüências dedados extraídos de experimentos sãoconsideradas, na visão positivista,competências de extremo valor para aeducação científica do aluno. A expe-rimentação exerce a função não só deinstrumento para o desenvolvimentodessas competências, mas tambémde veículo legitimador do conhe-cimento científico, na medida em queos dados extraídos dos experimentosconstituíam a palavra final sobre oentendimento do fenômeno em causa.Parece ter sido o desenvolvimento des-sas competências o principal objetivoda experimentação no ensino de ciên-cias, e de química em particular, até ofinal da década de 60, quando osprogramas de educação científicarecebiam uma forte influência dopensamento lógico-positivista ecomportamentalista. Tratava-se deaplicar as etapas su-postas do métodocientífico nas salas deaula, confiando que aaprendizagem ocor-reria pela transmissãodessas etapas aoaluno, que indutiva-mente assimilaria oconhecimento subja-cente.

À parte a polêmicasobre o processo de evolução dopensamento científico, podemos iden-tificar, ainda no pensamento de Comte,os prejuízos que a transposição cega,irrefletida, do método científico e o pa-pel atribuído à experimentação nessetratamento reservam às práticas daeducação científica. Comte, ao despre-zar a teologia e a metafísica, refuta oexercício da busca das causas gera-doras dos fenômenos, por acreditarque somente a experimentação podeoferecer a medida de força para asexplicações positivas. Priorizando ana-lisar com exatidão as circunstâncias daprodução de explicações positivas,Comte adota o rigor empírico comofundamento da prática científica e pro-põe vincular essas explicações, me-diante relações normais de sucessãoe similitude (Comte, 1983, p. 7). Paraos afeitos à cotidianidade da ciência

normal, tal proposta pode ser defen-sável, principalmente porque se sus-tentam no pragmatismo ingênuo dosacertos e desprezam o erro comoestágio inerente do fazer ciência. Paraa educação científica, a tese positivistacarece de fundamentação científica,por desconsiderar que para o aprendiza ciência é uma representação domundo, entre outras tantas, que serevelam de maneira espontânea oudirigida por uma práxis cultural distintadaquela legitimada pela comunidadecientífica2.

A partir da década de 60, os pro-gramas de educação científica passa-ram a ser influenciados por uma culturade pesquisa nessa área (Schnetzler eAragão, 1995; Krasilchik, 1987),recebendo influência da psicologiacognitiva e da epistemologia estrutu-ralista, entre outras áreas do conheci-mento. As atividades de ensinodeixaram de ser encaradas como

transposições diretasdo trabalho de cien-tistas e o desenvol-vimento cognitivo doser humano foi to-mado como um parâ-metro essencial paraa proposição deestratégias de ensi-no. Nesses termos,os estágios de evo-lução do pensamen-

to e as idéias prévias do indivíduoarquitetadas num ambiente sociocul-tural e histórico foram tomados comoelementos fundamentadores da apren-dizagem (Mortimer e Carvalho, 1996).A linearidade do método científico dematriz lógico-positivista foi desafiadae assim os elementos organizadoresdo método foram reavaliados e seuslugares redefinidos.

Tendo por base a influência dosprogramas de pesquisa da educaçãoem ciências desenvolvidos a partir dadécada de 60, passaremos a analisaro papel que cabe à experimentação noensino de ciências na escola básica.

Dimensões psicológica esociológica daexperimentação

Em seu livro Formação do espíritocientífico, Gaston Bachelard aponta os

O empírico avançapara a compreensão

do fenômeno à medidaque abstrai os

sentidos e se apóia emmedidas instrumentais

mais precisas,passíveis dereprodução

extemporânea

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obstáculos que se apresentam aosujeito (o autor fala do espírito) quandoem contato com o conhecimento cien-tífico, seja por meio de fenômenos, sejano exercício da compreensão. Ao pro-por que a primeira experiência exigenteé a experiência que ‘falha’ (itálico easpas do autor), Bachelard destaca opapel do erro no progresso da ciência,tanto por se exigir umprocesso de freagemdo estímulo, o queacalmaria os impul-sos do sensível, comotambém por impulsio-nar o cientista à pre-cisão discursiva e so-cial, subsidiando odesenvolvimento detécnicas e teorias(Bachelard, 1996, p.295-297).

Uma experiência imune a falhasmimetiza a adesão do pensamento dosujeito sensibilizado ao que supõe sera causa explicativa do fenômeno, emlugar de promover uma reflexão racio-nalizada. O erro em um experimentoplanta o inesperado em vista de umatrama explicativa fortemente arraigadano bem-estar assentado na previsibili-dade, abrindo oportunidades para odesequilíbrio afetivo frente ao novo.Rompe-se com a linearidade da suces-são “fenômeno corretamente observa-do/medido ⇒ interpretação inequí-voca”, verdadeiro obstrutor do pensa-mento reflexivo e incentivador dasexplicações imediatas. A chamadapsicanálise do erro visa dosar o graude satisfação íntima do sujeito, subs-trato indispensável para manter o alunoengajado em processos investigativos.Numa dimensão psicológica, a expe-rimentação, quando aberta às possi-bilidades de erro e acerto, mantém oaluno comprometido com sua apren-dizagem, pois ele a reconhece comoestratégia para resolução de uma pro-blemática da qual ele toma parte dire-tamente, formulando-a inclusive.

O segundo argumento de Bache-lard em favor do ‘experimento exigente’é igualmente aplicável às situações deaprendizagem: a busca de uma preci-são discursiva e social. Poderíamosnos ater às questões dos instrumentosde observação/medição do fenômeno,

mas estaríamos nesse caso fadadosa permanecer em discussões tecnicis-tas sobre a medida experimental.Importa, neste momento, desvelar anoção de representação do conheci-mento para os processos de aprendi-zagem. Em primeiro plano, sendo aciência uma construção humana, de-ve-se reconhecer que no fazer ciência

se desenvolve um pro-cesso de represen-tação da realidade emque predominam acor-dos simbólicos e lin-güísticos num exercí-cio continuado de dis-cursos mentais, ínti-mos ao sujeito, ediscursos sociais,propriedade do coleti-vo. A falha do experi-mento alimenta esse

exercício, por mobilizar os esforços dogrupo no sentido de corrigir as obser-vações/medições; por desencadearuma sucessão de diálogos de naturezaconflituosa entre o sujeito e o outro ecom seus modelos mentais, e por colo-car em dúvida a veracidade do modelorepresentativo da realidade. A decor-rência possível desse movimento é umnovo acordo para se ter acesso e pararepresentar o fenômeno, que altera oquadro dialógico do sujeito com arealidade.

O que se buscacom o ‘experimentoexigente’, e aqui oprofessor ocupa lugarestratégico, é umacordo na direção doque é cientificamenteaceito e portanto dia-logável com a comu-nidade científica. Es-se exercício social deprecisão discursivanão foi priorizado pe-las propostas de ensino de ciênciasquando se tentou aplicar o método daredescoberta, acreditando-se que oacesso ao fenômeno e a seus instru-mentos de observação/medição cum-priria os objetivos do ensino, meramen-te reprodutórios da ‘realidade positiva’.Ao se incentivar os alunos a expor suasidéias acerca do fenômeno, que estãono plano da subjetividade, desenca-

deia-se um processo pautado na inter-subjetividade do coletivo, cujo aprimo-ramento fundamenta o conhecimentoobjetivo. O processo de objetivação doconhecimento, por ser uma necessi-dade social, deve ser um eixo centralda prática educativa e aqui a experi-mentação desempenha um papel defórum para o desenvolvimento dessaprática.

Mais recentemente, o tema apren-dizagem colaborativa vem sendoamplamente debatido na literatura deensino de ciências (Nurrenbern eRobinson, 1997), a partir do que pode-mos depreender que é necessário criaroportunidades não somente para arealização de experimentos em equipe,mas também para a colaboração en-tre equipes. A formação de um espíritocolaborativo de equipe pressupõe umacontextualização socialmente signi-ficativa para a aprendizagem, do pontode vista tanto da problematização (te-mas socialmente relevantes) como daorganização do conhecimento cientí-fico (temas epistemologicamente signi-ficativos). Novamente, ao professor éatribuído o papel de líder e organizadordo coletivo, arbitrando os conflitosnaturalmente decorrentes da aproxi-mação entre as problematizaçõessocialmente relevantes e os conteúdosdo currículo de ciências. Estratégiasnegociadas em torno de temáticas

ambientais podem vira contentar ambas ascolunas reivindicató-rias, que atuam tantoem sala de aula, comonos bancos acadêmi-cos.

Apresentamos co-mo exemplo o estudoda energética dastransformações quími-cas. Ao se desenca-dear a problematiza-

ção dos combustíveis como fonteimportante de energia para a huma-nidade, tem-se a oportunidade deexaminar experimentalmente desde osderivados do petróleo até os combus-tíveis obtidos da biomassa, passandopor aqueles reciclados, como o biodie-sel, obtido pela transesterificação deóleos usados em cozinhas industriais.Para que substâncias tão diversas

O que se busca com o‘experimento exigente’,

e aqui o professorocupa lugar

estratégico, é umacordo na direção doque é cientificamente

aceito e portantodialogável com a

comunidade científica

Uma experiência imunea falhas mimetiza a

adesão do pensamentodo sujeito

sensibilizado ao quesupõe ser a causa

explicativa dofenômeno, em lugar depromover uma reflexão

racionalizada

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sejam objetivamente comparadas, tor-na-se necessário estabelecer um pro-tocolo básico de comunicação entre osgrupos e mesmo entre dados/obser-vações extraídos dos experimentos. Opróprio planejamento dos experimen-tos deve guardar relações de similari-dade, e desse acordo em torno daresolução de uma problemática soci-almente relevante pode-se arquitetar oconceito de entalpia, que emerge emum contexto epistemologicamentesignificativo, pois a organização doconhecimento decorre de uma atitudecientificamente construída.

A experimentação porsimulação

Tendo exposto as dimensões psico-lógica e sociológica da experimen-tação, sugerimos agora uma terceiradimensão, a cognitiva3, baseada naconcepção de modelos mentais,conforme apresentada por Moreira(1996).

Os modelos mentais são comoanálogos estruturais da ‘realidade’ (oautor fala do mundo) que operam noplano mental do sujeito, portanto inter-no, e tentam estabelecer uma conexãoentre o fenômeno com que se tem con-tato e sua representação. Na elabora-ção de um modelo mental, destacam-se dois componentes, os elementos eas relações, que representam um esta-do de coisas específico. Os modelosmentais servem de sistemas interme-diários entre o mundo e sua represen-tação, uma espécie de filme internocujas cenas são formadas por imagensanimadas e signos, cuja concatenaçãoexpressa o estado de coisas e dialogacom a representação que o sujeitoconfere à realidade.

A experimentação deve tambémcumprir a função de alimentadora des-se processo de significação do mundo,quando se permite operá-la no planoda simulação da realidade. Nas situa-ções de simulação, desencadeia-seum jogo entre os elementos e as rela-ções, que devem manter correspon-dência com seus análogos no planodo fenômeno. É nesse palco de simu-lações que podem se formar ambien-tes estimuladores para a criação demodelos mentais pelo sujeito, que pas-sa a reconhecer nos modelos ora simu-

lados a primeira instância de represen-tação analógica da realidade. Nessassituações, o sujeito se percebe diantede uma representação da realidade,obrigando-se a formular a sua própria,que venha a se ajustar àquela emsimulação. Trata-se portanto de deter-minar à experimen-tação o novo papel deestruturadora de umarealidade simulada,etapa intermediáriaentre o fenômeno, quetambém é acessadopelo prisma da expe-rimentação, e a repre-sentação que o sujeitolhe confere.

Um exemplo práti-co pode traduzir commais propriedade es-sas idéias. Em estudosobre as concepçõesatomísticas de alunos,realizaram-se experimentos envolven-do o aquecimento de um tubo deensaio fechado por uma bexiga de bor-racha, conforme descrito no primeironúmero de Química Nova na Escola(Mortimer, 1995). Solicitou-se aos alu-nos que formulassem explicações so-bre o comportamento do sistema,quando o tubo de ensaio era aquecido.O modelo explicativo de um grupo dealunos levava em conta uma relaçãodireta entre a expansão do volume daspartículas constituintes do ar e a expan-

são do volume da bexiga de borracha,sem que se aventasse o aumento davelocidade dessas partículas (Figura1). É de se ressaltar a capacidade dosalunos de criar modelos explicativospara o fenômeno em estudo, o que ésem dúvida uma competência impor-

tante a ser cultivadaem situações de en-sino envolvendo expe-rimentação.

Numa proposta decontinuação para estaatividade, pode-sesugerir a observaçãoe manipulação deuma sistema fechado,no qual pequenas es-feras rígidas (miçan-gas de plástico)possam se movimen-tar dentro de um cilin-dro cujo volume varieem função da posição

de um êmbolo móvel. Para promovero movimento das miçangas, utiliza-seuma membrana vibratória, cuja intensi-dade de vibração seja função da ener-gia elétrica fornecida por diferentesquantidades de pilhas (Figura 2).Simula-se assim o sistema tubo deensaio-bexiga sob aquecimento.

O modelo simulado estabeleceuma série de correspondências como sistema empírico original. No planodos elementos formuladores do mode-lo destacam-se: as fontes de energia,as pilhas e a chama do bico de Bun-sen; os volumes, os conjuntos tubo deensaio/bexiga e cilindro/êmbolo móvel;as partículas, moléculas do ar e miçan-gas rígidas. No plano das relaçõesintrínsecas ao modelo, a principal cor-respondência ocorre entre o aumentodo volume do sistema cilindro/êmbolomóvel em função do aumento do nú-mero de pilhas com o aumento do vol-ume da bexiga em função do tempode aquecimento do sistema experi-mental original. De maneira mais apro-fundada, simula-se a velocidade médiadas moléculas do ar, conceito centralpara o entendimento do fenômeno.

Um segundo exemplo bastantemais freqüente é a utilização de mo-delos de estrutura molecular do tipobola–varetas, quando se propõe ensi-nar química orgânica por meio de um

Figura 1: Representação feita por alunosdo sistema tubo de ensaio/bexiga plástica,na ausência de e sob aquecimento.Fonte: Mortimer, 1995.

Os modelos mentaisservem de sistemas

intermediários entre omundo e sua represen-tação, uma espécie de

filme interno cujascenas são formadas

por imagens animadase signos, cujaconcatenação

expressa o estado decoisas e dialoga com arepresentação que o

sujeito confere àrealidade

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enfoque estereoquímico. Nesse caso,torna-se bastante mais difícil confrontaro aluno com uma realidade concreta-mente observável, já que em nívelmolecular a ciência opera com mo-delos radicalmente abstratos. Não hácomo estabelecer correspondênciasdiretas entre os modelos concretos deestrutura molecular e as propriedadesmoleculares tratadas na educaçãobásica, o que não significa que tenha-mos que abandonar prematuramenteessa proposta e nos rendermos aonomenclaturismo predominante nasestratégias de ensino dessa disciplina.Esta é exatamente a oportunidade depreparar o aluno para instalar-se noestágio que alguns têm insistido emchamar de nível formal de pensa-mento.

A manipulação de modelos bola–vareta desenvolve no aluno uma habi-lidade cognitiva muito importante paraa compreensão dos fenômenos quí-micos na dimensão microscópica, queé a espacialidade das representaçõesmoleculares. Habituados a reconheceras moléculas em representações defórmulas moleculares, como CH4, rara-mente se cria oportunidade para oaluno ter percepção tridimensional dotetraedro (Figura 3a), figura geométricaque constitui a base para a represen-tação das fórmulas estruturais dasmoléculas que contém átomos de car-bono (Figura 3b). Trata-se portanto deconferir certa concretude à represen-tação molecular necessária ao enga-jamento do indivíduo no processo detransição de um nível concreto para onível formal de pensamento.

No entanto, ao permanecer na

representação tridimensional, corre-seo risco de estagnar sua capacidade deelaborar seus próprios modelos men-tais. Deve-se subsidiar a transição doestágio de observaçãodo modelo bola–varetaconcomitante a sua fi-xação imagética namemória, para umestágio de apropriaçãodesse modelo, no qualo aluno possa alterá-loconforme a situação-problema que lhe éapresentada. Nessafase de transição, po-de-se operar comoutra modalidade desimulação, capaz deincorporar outros mo-delos representativosdas estruturas molecu-lares, a simulação computacional. Pormeio dessa modalidade, o aluno po-derá perceber que o conceito decadeia carbônica pode vir a ser repre-sentado por uma opção ‘esqueleto’(Figura 4a), na qual as ligações entreos átomos de carbono, e entre estes e

os de hidrogênio, estão representadas,ou ter a noção de preenchimento es-pacial, próximo ao conceito de nuvemeletrônica, por uma outra opção (Figu-

ra 4b), na qual as va-retas não podemmais ser percebidase as bolas passam ase sobrepor. Final-mente, a própria ca-pacidade de rotaçãoespacial do modelode estrutura molecu-lar, simulado na telado computador, por-tanto na bidimensio-nalidade, confereuma interação inusi-tada com os modelosmoleculares, ani-mando-os de acordocom as idiossincra-

sias do modelo mental do sujeito, emestágio inicial de elaboração.

O papel da experimentação por si-mulação certamente não é o de subs-tituir a experimentação fenomenoló-gica proposta originalmente. Deve-se,em muitos casos, respeitar inclusive aordem de exposição dos grupos aosexperimentos: em primeiro lugar, o

Figura 3: Representações do átomo decarbono. a) Figura geométrica do tetraedro.b) Modelo bola–vareta da molécula demetano.

Figura 2: Esquema representativo dosistema de simulação miçanga/cilindro/êmbolo móvel.

a)

b)

a)

b)

Figura 4: Representações de cadeiascarbônicas da molécula de propano. a)Esqueleto. b) Espaço preenchido.

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Não há comoestabelecer

correspondênciasdiretas entre os

modelos concretos deestrutura molecular e

as propriedadesmoleculares tratadasna educação básica;

isso não significa quetenhamos que nos

rendermos aonomenclaturismopredominante nas

estratégias de ensinodessa disciplina

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experimento com o sistema da Figura1, depois o experimento de simulação(Figura 2). A simulação não pode tolhera necessária tarefa de criação de mo-delos mentais, já verificada na interven-ção decorrente da experimentação‘por via úmida’; deve, sim, sustentaressa prática salutarcom novas regras,mais próximas do pro-cesso de significação,inserindo um novoplano de mediaçãoentre o sujeito e oobjeto, o plano da rea-lidade simulada ou oplano da representa-ção dos modelosmentais.

Numa concepçãoidealista, a experimentação por simu-lação deve permitir ao sujeito cultivarsua imaginação em consonância comum conjunto de signos socialmentelegitimados, transitando entre a cruezada realidade objetiva e as sombras dacompreensão subjetivada. Nessesentido, a experimentação por simula-ção deve permitir ao sujeito uma novaoportunidade para representação domundo e de seus modelos mentaisrepresentativos, expondo-os ao olhar

do outro. A simulação deve ser incor-porada às práticas educacionais comouma estratégia de sugerir realizaçõesracionais (Bachelard, 1934), fazendoparte de um projeto em que as con-dições experimentais sejam condiçõesde experimentação nas quais o embri-

camento empiria–teo-ria seja permanente-mente atendido.

Consideraçõesfinais

Este artigo visoutraçar um quadro ge-ral sobre a experi-mentação e seu locusno ensino de ciências,aproveitando algumascontribuições bastan-

te difundidas na área de filosofia daciência. Procurou-se determinar as vá-rias fases do pensamento científico,ressaltando a contribuição da experi-mentação na forma de um dispositivosociotécnico inerente a esse pensa-mento. Parece-nos que a experimen-tação por simulação recupera uma im-portante discussão sobre a demar-cação entre o empírico e o teórico, oque se torna essencial num momentoem que as realidades passam a ser

reconhecidas como virtuais.Acreditamos que as simulações

computacionais podem ser orquestra-damente articuladas com atividades deensino, sendo portanto mais um instru-mento de mediação entre o sujeito, seumundo e o conhecimento científico.Para tanto, há que se experimentar eteorizar muito sobre a educação cien-tífica, com um olho no passado e outrono futuro, mas sobretudo com a cons-ciência viva no presente.

Marcelo Giordan, bacharel em química e doutorem ciências pela Unicamp, é professor da Faculdadede Educação da USP. E-mail: giordan@fe.usp.br.

Notas1. Para um aprofundamento nesse

tema, ver Losee (1979), que discute ainfluência dos três pensadores nacrítica ao aristotelismo.

2. Referimo-nos aqui à extensa pes-quisa sobre concepções alternativasdos alunos acerca do conhecimentocientífico. Para uma discussão maisaprofundada desse tema ver Garnette Hackling (1995).

3. Estamos nos referindo à área doconhecimento chamada de ciênciacognitiva, cujos alicerces se fundam nalógica simbólica, na inteligência artificale na neurociência.

A simulação deve serincorporada às

práticas educacionaiscomo uma estratégia

de sugerir realizaçõesracionais, tomando

parte de um projeto emque as condiçõesexperimentais são

condições deexperimentação

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Experimentação e Ensino de Ciências N° 10, NOVEMBRO 1999

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