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Nmero: 32/2005 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE GEOCINCIAS PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
VITOR PIRES VENCOVSKY
Sistema Ferrovirio e o uso do territrio brasileiro. Uma anlise do movimento de produtos agrcolas.
Dissertao apresentada ao Instituto de Geocincias como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo CAMPINAS - SO PAULO
Janeiro 2006
ii
by Vitor Pires Vencovsky, 2005
Catalogao na Publicao elaborada pela Biblioteca
do Instituto de Geocincias/UNICAMP
Vencovsky, Vitor Pires V552s Sistema ferrovirio e o uso do territrio brasileiro: uma anlise do
movimento de produtos agrcolas / Vitor Pires Vencovsky.-- Campinas,SP.: [s.n.], 2006.
Orientador: Ricardo Abid Castillo
Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geocincias.
1. Ferrovias. 2. Transporte ferrovirio. 3. Territrio nacional -
Brasil. 4. Soja.. I. Castillo, Ricardo Abid. II. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geocincias. III. Ttulo.
Ttulo em ingls: Railroad system and the use of the Brazilian territory: An analysis of the transport of agricultural products. Keywords: - Railroads; - Transport systems; - Brazilian territory; - Soybean. rea de concentrao: Anlise Ambiental e Dinmica Territorial Titulao: Mestre em Geografia Banca examinadora: - Ricardo Abid Castillo; - Regina Clia Bega dos Santos; - Samuel Ribeiro Giordano. Data da defesa: 27/01/2006
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE GEOCINCIAS PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
AUTOR: VITOR PIRES VENCOVSKY ORIENTADOR: Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo Aprovada em: _____/_____/_____ EXAMINADORES:
Prof. Dr. Ricardo Abid Castillo _______________________- Presidente Profa. Dra. Regina Clia Bega dos Santos _______________________
Prof. Dr. Samuel Ribeiro Giordano _______________________
Campinas, 27 de janeiro de 2006.
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minha esposa Neiva e meus filhos Leonardo e Eduardo
v
Agradecimentos Gostaria de agradecer ao meu professor e orientador Ricardo Castillo pelos dois anos de
muita ajuda e dedicao que me permitiram construir uma viso mais crtica da sociedade.
Agradeo tambm aos professores Ricardo Mendes Antas Jr., Walter Belik, Jos Graziano
da Silva, Carlos Antnio Brando pelas discusses enriquecedoras em sala de aula e s
professoras Adriana Maria Bernardes da Silva e Maria Laura Silveira pelas orientaes no meu
exame de qualificao.
Um muito obrigado tambm a todos os funcionrios do IG, em especial Valdirene e
Edinalva que estiveram sempre prontas a ajudar.
Agradeo aos colegas da ps-graduao da geografia Mrcio Toledo, Samuel Frederico,
Fabiano, Fabola, Clayton, Murilo, Mrio, Joseane, Mnica, Hebert, e da economia Pedro, Elmer,
Tatiane, Cristina, Clber, Andria, rica, Tomaz e Francisca.
Agradeo tambm aos profissionais das bibliotecas do Instituto de Geocincias, Instituto
de Economia e IFCH da Unicamp, Instituto de Economia da Esalq-USP, UFRJ e IBGE.
Agradeo os profissionais do Ministrio dos Transportes, do Ministrio da Agricultura,
Pecuria e Abastecimento, do DNIT, da ANTT da ANTF que me receberam durante o meu
trabalho de campo realizado em Braslia.
Um agradecimento muito especial aos meus pais Roland e Maria Olvia que, como
professores, sempre me apoiaram nos estudos e na busca da perfeio.
Agradeo tambm aos meus irmos Cludia, Norberto, Ceclia e Ronaldo, meus cunhados
e cunhadas Paulo, Newton, Marcela, Amanda e Janete, minha sogra Elvira, meus sobrinhos
Pedro, Lucas, Thiago, Andr, Karen, Raquel, Matheus e Rafael, primos e primas, tios e tias.
vi
O intelectual a classe que est
permanentemente criticando, de alto a
baixo, a sociedade (Milton Santos).
vii
NDICE
NDICE DE FIGURAS X NDICE DE FOTOS X NDICE DE GRFICOS X NDICE DE QUADROS X NDICE DE MAPAS XI NDICE DE TABELAS XI NDICE DE ANEXOS XII SIGLAS E ABREVIATURAS XIV RESUMO XVI ABSTRACT XVII INTRODUO 1 1. A FERROVIA COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESPAO GEOGRFICO 5
A Primeira Revoluo Chandleriana e a nova concepo espao-temporal da sociedade 6
Ferrovias: densidades tcnicas e normativas 9
Competitividade regional e fluidez territorial 12
2. ABORDAGEM DIACRNICA DAS FERROVIAS NO BRASIL: UMA PROPOSTA DE
PERIODIZAO 14
O territrio como componente da periodizao 15
Momento 1 Desenvolvimento e criao das ferrovias 17
viii
Momento 2 Estatizao e readequao das ferrovias 22
Momento 3 Desestatizao e recuperao das ferrovias 26
O papel das ferrovias no processo de integrao do territrio brasileiro 27
Sistema ferrovirio nacional ou integraes regionais? 28
Planos de desenvolvimento do Brasil 29
3. ABORDAGEM SINCRNICA DAS FERROVIAS NO BRASIL: UMA ANLISE DA
SITUAO ATUAL 37
Situao atual dos modais de transporte no territrio brasileiro 38
A matriz de transportes de cargas no Brasil 41
Comparao entre os modais de transporte (ferrovia, hidrovia, rodovia) 43
Caractersticas operacionais 43
Topologia dos modais no territrio nacional 49
Investimentos realizados 52
ndices de desempenho dos modais 55
Concessionrias do setor ferrovirio 56
O processo de privatizao do setor ferrovirio 57
O modelo de contrato de concesso 66
As concessionrias 69
Os investimentos realizados 74
Projetos de melhoria e expanso 79
4. O TRANSPORTE FERROVIRIO DE PRODUTOS AGRCOLAS NO BRASIL 88
A importncia das ferrovias no escoamento de produtos agrcolas 89
As regies produtoras 92
Caracterizao dos novos fronts agrcolas 93
A localizao da produo de alguns produtos agrcolas no Brasil 99
Os corredores de escoamento de produtos agrcolas 102
Caracterizao dos corredores de escoamento 103
Quantidades de produtos agrcolas transportados 106
ix
O transporte de produtos agrcolas 107
O transporte ferrovirio de produtos agrcolas 107 CONCLUSES 111 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 115
BIBLIOGRAFIA 120 STIOS CONSULTADOS 124 ANEXOS 125
x
NDICE DE FIGURAS Figura 3.1 Comparao entre os modais segundo a forma Tradicional 44
Figura 3.2 Comparao entre os modais segundo a forma Geogrfica 46
Figura 3.3 Diagrama comparativo entre os modais ferrovirio e rodovirio 47
Figura 3.4 Diagrama do modal hidrovirio 48
Figura 3.5 Relao entre estado e concessionrias 67
NDICE DE FOTOS
Foto 3.1 Interferncias entre ferrovias e reas urbanas 76
Foto 3.2 Vages da Bunge fabricados pela Amsted Maxion e operados pela ALL 85
Foto 4.1 Produo de soja nos novos fronts agrcolas 96
NDICE DE GRFICOS Grfico 1.1 Desenvolvimento dos meios de transportes 10
Grfico 3.1 - Densidade de rodovias e ferrovias por UF 40
Grfico 3.2 Evoluo dos investimentos do governo em transportes - perodo 1995-2004 53
Grfico 3.3 Distribuio regional dos investimentos realizados pelo governo brasileiro
em transportes 1995/2004 54
Grfico 3.4 Evoluo do PIB, PIB do agronegcio, investimentos e produo das
ferrovias e da produo de soja 78
Grfico 4.1 Produo de soja e subprodutos ao longo do ano 108
NDICE DE QUADROS Quadro 2.1 Periodizao das ferrovias no Brasil 16
Quadro 2.2 Evoluo das linhas ferrovirias - 1845 1939 21
Quadro 2.3 Planos de Viao anteriores a 1934 30
Quadro 3.1 Matriz de transporte de cargas em geral e de produtos agrcolas (%) no Brasil 43
xi
Quadro 3.2 Caractersticas dos modais de transporte 45
Quadro 3.3 Interesses dos agentes do setor ferrovirio no Brasil 60
Quadro 3.4 Principais marcos regulatrios do processo de privatizao no Brasil 61
Quadro 3.5 Resultado dos leiles da RFFSA 62
Quadro 3.6 Principais concessionrias do setor ferrovirio - caractersticas dos contratos 68
Quadro 3.7 Classificao das empresas concessionrias 2004 72
Quadro 3.8 Composio das cargas transportadas pelas ferrovias no Brasil 2003 77
Quadro 3.9 Projetos prioritrios do setor ferrovirio - PPA 2004-2007 83
Quadro 4.1 Caractersticas distintivas dos novos fronts 95
NDICE DE MAPAS Mapa 2.1 Ferrovias e o caf Momento 1 20
Mapa 3.1 Ferrovias brasileiras 2005 70
Mapa 3.2 Localizao dos projetos prioritrios do PPA 2004-2007 e obras de contorno e
interveno para o setor ferrovirio 84
Mapa 4.1 Principais rotas de escoamento da produo de soja 105
NDICE DE TABELAS Tabela 2.1 Evoluo do trfego de mercadorias1950 - 1970 - bilhes de ton.km 24
Tabela 2.2 Evoluo do rodoviarismo no Brasil - 1950-1970 25
Tabela 2.3 Desequilbrio das ferrovias no Brasil - 1965 1970 25
Tabela 2.4 Distribuio de recursos por modalidade de transportes (%) 32
Tabela 3.1 Densidade de rodovias por pases 39
Tabela 3.2 Densidade de transporte por grandes regies 41
Tabela 3.3 Principais empresas concessionrias do transporte ferrovirio 71
Tabela 3.4 Investimentos previstos no PPA 2004 2007 em infra-estrutura
(em R$ milhes) 81
Tabela 3.5 Principais objetivos dos projetos para ferrovias PPA 2004-2007 81
Tabela 4.1 Exportaes brasileiras segundo as grandes regies do IBGE 2003 91
xii
Tabela 4.2 Produo de soja e leo de soja por regio 2003 92
Tabela 4.3 Produtividade da soja por regies 2001 97
Tabela 4.4 Grau da concentrao da produo agrcola brasileira 100
Tabela 4.5 Maiores municpios produtores de soja 101
Tabela 4.6 Quantidade de soja exportada pelos principais corredores de transporte 107
Tabela 4.7 Transporte de soja no modal ferrovirio 109
Tabela 4.8 Transporte de produtos agrcolas no modal ferrovirio 110
NDICE DE ANEXOS Anexo 1 Organizao do territrio brasileiro 126
Anexo 2 Decreto n 473, de 10 de maro de 1992 127
Anexo 3 Economia brasileira I Plano Nacional de Desenvolvimento 128
Anexo 4 Investimentos previstos no I Plano Nacional de Desenvolvimento 128
Anexo 5 Economia brasileira - II Plano Nacional de Desenvolvimento 129
Anexo 6 Investimentos previstos no II Plano Nacional de Desenvolvimento 129
Anexo 7 Eixos Nacionais de Integrao e Desenvolvimento PPA 1996-1999 130
Anexo 8 Eixos Nacionais de Integrao e Desenvolvimento PPA 2000-2003 131
Anexo 9 Corredores Estratgicos de Desenvolvimento - movimentao de soja - 2005 132
Anexo 10 Caractersticas dos corredores propostos pelo Geipot 135
Anexo 11 Exportaes brasileiras - principais produtos 136
Anexo 12 Organizao das rodovias no territrio brasileiro 137
Anexo 13 Rodovias concessionadas - 2005 138
Anexo 14 Principais hidrovias no Brasil - 2005 139
Anexo 15 Investimentos regionais em transportes realizados pelo governo no perodo
1995/2004 (milhes de R$) 140
Anexo 16 Investimentos multiregionais - 1995-2004 141
Anexo 17 Acidentes ferrovirios 142
Anexo 18 rea plantada de gros - Brasil - mil hectares 143
Anexo 19 Produo de gros - Brasil - mil toneladas 144
Anexo 20 Exportaes agropecurias Brasil - US$ milhes, FOB 145
xiii
Anexo 21 Exportaes agropecurias - Brasil - peso lquido - mil toneladas 146
Anexo 22 Principais pases produtores de soja (mil toneladas) 147
Anexo 23 Produo e exportao de produtos agrcolas - Brasil - (mil toneladas) 148
Anexo 24 Participao nas exportaes mundiais - Brasil - (bilhes de US$) 149
Anexo 25 Grau de dependncia das exportaes - 2004 150
xiv
SIGLAS E ABREVIATURAS
Abiove - Associao Brasileira das Indstrias de leos Vegetais
ALL Amrica Latina Logstica
ANTF Associao Nacional dos Transportadores Ferrovirios
ANTT Agncia Nacional de Transportes Terrestres
ANUT - Associao Nacional dos Usurios de Transporte de Carga
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social
BTU - British Temperatura Unity, Unidade Inglesa de Temperatura
CAD Critrio de Avaliao de Desempenho
Campo - Companhia de Promoo Agrcola
CFN Companhia Ferroviria do Nordeste
CIDE - Contribuio de Interveno no Domnio Econmico
CNT Confederao Nacional dos Transportes
Conab - Companhia Nacional de Abastecimento
CSN - Companhia Siderrgica Nacional
CVDR - Companhia Vale do Rio Doce
DNIT - Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes
EFC Estrada de Ferro Carajs
EFVM Estrada de Ferro Vitria Minas
Embrapa Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecurias
FMI Fundo Monetrio Internacional
FCA Ferrovia Centro Atlntica
FDNE - Fundo de Desenvolvimento do Nordeste
Fepasa Ferrovia Paulista S.A.
Ferroban - Ferrovias Bandeirantes
Ferroeste - Estrada de Ferro Paran Oeste
Ferropar - Ferrovia Paran S.A
FTC Ferrovia Tereza Cristina
Funcef - Fundao dos Economirios Federais
Geipot - Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes
xv
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
Incra - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
Ipea - Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
Inesc - Instituto de Estudos Socioeconmicos
Mapa - Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento
MDIC - Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior
Novoeste - Ferrovia Novoeste S.A.
OMC - Organizao Mundial do Comrcio
OTM Operador de Transporte Multimodal
PAM - Produo Agrcola Municipal
PIB Produto Interno Bruto
PND - Programa Nacional de Desestatizao
PPA Plano Plurianual
PPP - Parceria Pblico-Privada
Previ - Caixa de Previdncia dos Funcionrios do Banco do Brasil
Prodecer - Programa de Cooperao Nipo-Brasileira para o desenvolvimento do Cerrado
RFFSA Rede Ferroviria Federal S.A.
Secex Secretaria de Comrcio Exterior
TEU - twenty equivalente unit, unidade equivalente a um continer de 20 ps
TKU - tonelada por quilmetro til
TU - tonelada til tracionada
xvi
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCINCIAS
PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
Sistema Ferrovirio e o uso do territrio brasileiro. Uma anlise do movimento de produtos agrcolas.
RESUMO Dissertao de Mestrado Vitor Pires Vencovsky No final do sculo XX uma srie de eventos em escala global passou a condicionar muitas das polticas pblicas e privadas e a influenciar diretamente na organizao social e espacial do territrio brasileiro. So eventos que implicam na transformao das prticas e na mudana da lgica que preside a organizao do espao. Dentre muitos eventos possvel destacar a globalizao, a internacionalizao dos mercados, a criao de novos parmetros de produtividade e o novo papel do Estado que passa, ento, a compartilhar com outros agentes as aes de ordenamento do territrio. Os agentes externos, hegemnicos, colaboram para a criao de espaos onde a solidariedade substituda pela competitividade e eficincia, criando excluso e desigualdade social. Na dcada de 1970, com a criao de regies funcionais voltadas exportao de commodities agrcolas, como os novos fronts agrcolas do Cerrado brasileiro, uma nova demanda por sistemas de transporte foi criada. As ferrovias aparecem, ento, como uma das melhores opes para atender essa demanda. Para reativar as ferrovias e aumentar sua produtividade, estas, que at ento estavam sob controle da Unio atravs das empresas RFFSA, FEPASA e CVRD, foram privatizadas e transferidas para a iniciativa privada. Estas empresas, ento, passam a influenciar diretamente na organizao do territrio brasileiro. Este trabalho pretende, ento, identificar as implicaes que as atuais polticas relacionadas reativao do sistema ferrovirio brasileiro voltado ao escoamento de produtos agrcolas podem trazer para a sociedade e o territrio. Dentre algumas concluses possvel destacar que os planos de desenvolvimento dos ltimos anos e os investimentos realizados pelos governos e pela iniciativa privada no sistema ferrovirio reforam a integrao do territrio brasileiro aos mercados internacionais, criando redes extravertidas e promovendo a fluidez territorial para apenas algumas regies, empresas e atividades econmicas. Palavras-Chave: ferrovias, modais de transporte, territrio brasileiro, soja.
xvii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE GEOCINCIAS PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
Railroad System and the use of the Brazilian territory. An analysis of the transport of agricultural products.
ABSTRACT By Vitor Pires Vencovsky At the end of the XX century a series of global events started conditioning many of the public and private politics and influencing directly the social and space organization of the Brazilian territory. These events imply in the transformation of the practices and the change of the logic that presides the organization of the space. Amongst many events it is possible to point out the globalization, the internationalization of the markets, the creation of new parameters of productivity and the new paper of the State that passes, then, to share with other agents the actions of the territorial organization. The hegemonic agents collaborate for the creation of spaces where solidarity is substituted by the competitiveness and efficiency, creating social exclusion and inequality. In the decade of 1970, with the creation of functional regions dedicated to the exportation of agriculture commodities, as the new agriculture fronts in the Brazilian Cerrado, a new demand for transport systems was created. The railroads appear, then, as one of the best options to take care of this demand. To reactivate the railroads and to increase its productivity, these, that until then were under control of the State through companies such as RFFSA, FEPASA and CVRD, had been privatized and transferred to private companies. This work intends to identify the implications that the current politics, related to the reactivation of the Brazilian railroad system used for the transport of agricultural products, can bring for the society and the organization of the territory. Amongst some conclusions it is possible to point out that the development plans of the last years and the investments carried through for the governments and the private initiative in the railroad system strengthen the integration of the Brazilian territory to the international markets, creating interior-port transport nets and promoting the territorial fluidity only to some regions, companies and economic activities. Key words: railroads, transport systems, Brazilian territory, soybean.
1
INTRODUO
No final do sculo XX o mundo se depara com uma nova realidade colocada em prtica, a
globalizao, que, segundo SANTOS (2003, p. 23), o pice do processo de internacionalizao
do mundo capitalista. Porm, essa globalizao tem gerado grandes distores econmicas e
sociais, provocando desigualdades geogrficas e fragmentao dos territrios nacionais.
Analisando as implicaes desta globalizao para o territrio brasileiro, verifica-se que
grande a produo de desigualdades scio-espaciais em termos de densidades tcnicas e tambm
normativas.
No Brasil, a globalizao veio acompanhada de uma mudana no papel do Estado, que at
ento era o maior agente de mudanas. A partir dos anos 1990, com as polticas neoliberais e a
abertura dos mercados, o papel do Estado no mais o mesmo, compartilhando com outros
agentes, do mercado e da sociedade civil organizada, a responsabilidade pelas principais decises
econmicas, polticas e sociais e, portanto, pelo ordenamento territorial1.
caracterstica do momento atual o embate entre a transnacionalizao do territrio e o
Estado territorial, considerado por alguns como ultrapassado. Essas mudanas ocorridas nas
ltimas duas dcadas alteram totalmente as condies de uso, organizao e regulao do
territrio brasileiro.
Os agentes externos, as empresas transnacionais, o poder econmico internacional,
colaboram na criao de espaos onde a solidariedade substituda pela competitividade e
eficincia. Com a globalizao, os atores hegemnicos servem-se de todas as redes e se utilizam
de todos os territrios, transformando o territrio nacional num espao nacional da economia
internacional (SANTOS, 2002a, p. 244).
Nesse processo de globalizao, uma das principais mudanas ocorridas no Brasil foi a
reativao do sistema ferrovirio para atender, principalmente, ao escoamento da produo dos
novos fronts agrcolas. O sistema ferrovirio no Brasil est recebendo novamente as atenes dos
governos e das empresas nacionais e internacionais, a infra-estrutura ferroviria atual est sendo
modernizada, outras esto sendo construdas e normas e leis esto sendo institudas.
1 O ordenamento territorial pode ser entendido como um modelo de gesto do territrio utilizado para garantir um padro de desenvolvimento para o Pas, os estados e as regies. De uma maneira racionalista, polticas pblicas passam a organizar o espao de forma integrada para atender alguns objetivos, como o desenvolvimento regional, o uso do territrio e a melhora das condies de vida da populao. Diferentemente do verificado na Europa, o Brasil ainda no dispe de uma lei nacional de ordenamento do territrio (DUARTE, 2002).
2
A partir dos anos 1970, a emergncia e a consolidao de regies funcionais (SANTOS,
1994) nos novos fronts agrcolas (Cerrados), apoiados por vultosos incentivos fiscais e pela
adoo de uma nova base tecnolgica, criou uma nova demanda por fluidez territorial
(ARROYO, 2001, p. 206) atravs de novas infra-estruturas de transportes. Duas razes bsicas
substantivam essa demanda: a) a distncia dessas regies em relao aos portos exportadores e b)
as caractersticas da produo (commodities agrcolas), exigentes de uma logstica capaz de
armazenar, controlar e movimentar produtos de grande volume e baixo valor agregado. Os
modais hidrovirio e, sobretudo, ferrovirio surgem como alternativas de fluidez a uma poro do
territrio brasileiro at ento desprovida de boas condies de transporte.
As regies dos novos fronts agrcolas, que por muitos sculos estiveram quase intactas,
foram transformadas pela ao do homem. Esse uso efetivo do territrio ocorreu principalmente
atravs da adoo das polticas agrcolas do governo e do pacote tecnolgico que permitiu o
plantio em solo de baixa fertilidade. Os resultados dessas polticas so demonstrados pelas safras
recordes de soja e pela competitividade deste produto no mercado internacional. Mas, por
estarem distante dos portos e possurem baixa densidade de transportes, os novos fronts buscam
constantemente, para no dizer ferozmente, por mais fluidez atravs de novas infra-estruturas de
transportes.
A retomada dos investimentos em ferrovias, voltados principalmente para o escoamento
dos produtos agrcolas, implica em uma nova organizao e um novo uso do territrio. So
necessrias novas normas e objetos tcnicos para o funcionamento eficiente dessas regies e para
a regulao das relaes polticas, econmicas e sociais entre os diversos agentes. So justamente
essas mudanas, essas novidades, que determinam um novo perodo da histria, o incio de um
novo acontecer, de novas possibilidades e realizaes.
Tanto a privatizao do sistema ferrovirio como a produo agrcola dos novos fronts
so eventos que implicam na transformao das prticas e na mudana da lgica que preside a
organizao do espao (BECKER, 2000, p. 11).
No se coloca em discusso a importncia dos sistemas de transporte para a organizao
de um territrio. Nossa preocupao volta-se para as implicaes que as atuais polticas de
modernizao e expanso do sistema ferrovirio no Brasil podem trazer para a sociedade e o
territrio. Trata-se de refletir sobre uma noo de desenvolvimento que no acarrete em mais
excluso social, desigualdade e pobreza.
3
Na tentativa de melhor entender a organizao do territrio brasileiro atual, este trabalho
pretende analisar a situao das ferrovias no Brasil, verificar o seu uso no transporte de produtos
agrcolas e aportar uma modesta contribuio para o planejamento territorial.
ESTRUTURA DO TRABALHO
Este trabalho est organizado de maneira a permitir compreender a organizao e o uso do
territrio brasileiro a partir da retomada do sistema ferrovirio brasileiro e da expanso da
produo nos novos fronts agrcolas. Por ser um produto importante na agricultura brasileira e na
composio das cargas das ferrovias, a soja ser utilizada com maior destaque no trabalho.
Na primeira parte do trabalho, A Ferrovia como elemento constitutivo do espao
geogrfico, sero discutidas as novas possibilidades de organizao do territrio surgidas a partir
da criao das ferrovias. Esse novo perodo, que teve incio com as ferrovias, conhecido como a
Primeira Revoluo Chandleriana. Nesse perodo, as ferrovias foram fundamentais para a
organizao do territrio brasileiro e de outros paises no mundo ao reduzir, drasticamente, a
distncia-tempo e a distncia-custo, nas aes sociais de maneira geral e econmicas em
particular, unificando mercados regionais e integrando territrios nacionais. Muitas tcnicas e
normas novas foram introduzidas, possibilitando aumentar a fluidez territorial e valorizar partes
do territrio, que passaram a ser mais competitivas em relao a outras.
Ao longo dos ltimos 150 anos, as ferrovias participaram da organizao do territrio
brasileiro de diferentes maneiras e de acordo com os diferentes interesses dos agentes. No item
Abordagem diacrnica das ferrovias no Brasil: uma proposta de periodizao, procura-se
delinear pedaos coerentes de tempo de maneira a descrever os principais eventos que
possibilitam compreender melhor a organizao espacial da atualidade. Para avaliar esses
eventos, sero analisadas tambm as polticas pblicas definidas nos planos governamentais,
como os Planos Nacionais de Desenvolvimento e PPAs, que ora indicavam a necessidade de
promover a integrao internacional do territrio, ora a integrao regional.
No terceiro item do trabalho, Abordagem sincrnica das ferrovias no Brasil: uma anlise
da situao atual, ser feita uma anlise do atual sistema temporal. Como ser apresentado, o
recm privatizado sistema ferrovirio foi transferido a empresas que, com novos objetivos e
intenes, esto redirecionando os usos das ferrovias e os investimentos e, conseqentemente,
4
promovendo uma reorganizao espacial do territrio. Essa retomada das ferrovias representa
tambm uma reorientao da matriz de transportes que tem a rodovia como o modal mais
utilizado. Neste item ser feita uma comparao entre os modais ferrovirio, hidrovirio e
rodovirio para tentar compreender como estes contribuem para o ordenamento territorial e
porque a ferrovia est sendo privilegiada para o transporte de produtos agrcolas dos novos fronts.
Neste item sero analisados, tambm, o processo de privatizao do sistema ferrovirio, que foi
norteado pelas polticas neoliberais, os contratos estabelecidos entre a Unio e as empresas
concessionrias e os investimentos realizados para a readequao das ferrovias. Como ser
apresentado, o investimento para reativar o sistema ferrovirio tem como objetivo principal
promover a integrao internacional do territrio brasileiro, ligando determinadas regies aos
mercados internacionais.
A caracterizao dos novos fronts agrcolas e dos corredores de exportao, descritos no
item O Transporte ferrovirio de produtos agrcolas, importante para o entendimento da
organizao do territrio brasileiro promovida pelos agentes. Os novos fronts so regies onde a
presena de tcnicas e normas hegemnicas e exgenas significativa e muito diferente de outras
regies agrcolas do Brasil, como o Sul. So regies que, por estarem distantes dos portos
exportadores, se utilizam dos corredores para multiplicar a movimentao dos produtos agrcolas.
Como ser apresentado, as ferrovias passam a contribuir para o aumento da fluidez territorial.
Para finalizar o trabalho sero apresentadas algumas concluses que possam indicar
algumas contribuies do sistema ferrovirio para a sociedade e para a organizao do territrio
brasileiro.
Informaes complementares sobre este trabalho esto disponveis nos anexos e na
bibliografia utilizada.
5
1.
A FERROVIA COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESPAO GEOGRFICO
6
A Primeira Revoluo Chandleriana e a nova concepo espao-temporal da
sociedade
A ferrovia, que surgiu no incio do sculo XIX, contribuiu para o incio de uma nova
sociedade, de uma nova relao entre agentes, pases e regies e para uma formao espacial
muito mais complexa.
Esta nova realidade alterou profundamente as relaes econmicas entre diferentes
localidades, reduziu a distncia medida em tempo e custo e formou grande parte das cidades que
conhecemos atualmente. Com as ferrovias foi o comeo do fim do isolamento das pessoas e das
regies.
As trocas mercantis aumentaram e contriburam para o surgimento de regies
especializadas em determinado tipo de produto. As empresas, at ento de abrangncia local,
passaram a atuar nas escalas nacional e internacional, necessitando, portanto, de novas tcnicas e
normas para gerir os recursos materiais e imateriais. A organizao das empresas foi possvel
tambm graas ao surgimento do telgrafo, que evoluiu junto com as ferrovias.
Com o surgimento das empresas ferrovirias, um novo ambiente normativo foi sendo
institudo para regular o funcionamento das ferrovias e da dinmica do sistema. As normas
definiram tambm grande parte do funcionamento da sociedade e das regies, que passaram a ter
como parmetro de organizao e de circulao os horrios e os traados das ferrovias.
Esse novo perodo, compreendido entre o incio do sculo XIX e incio do sculo XX,
ficou conhecido como a Primeira Revoluo Chandleriana, proposta pelos autores Bressand &
Distler, em 1995, e que teve como referncia a obra de Alfred Chandler The Visible Hand, The
Managerial Revolution in American Business. Nesse perodo, com o surgimento das ferrovias e
do telgrafo, verificou-se uma nova organizao do mundo e das relaes econmicas baseada
numa crescente diminuio da frico do espao (Bressand & Distler, Apud CASTILLO, 2001,
p. 239).
O emprego dessas novas tcnicas, a ferrovia e o telgrafo, permitiu a acelerao do
fluxo de pessoas e de bens materiais e imateriais, como informao, relatrios e cotaes de
preos. Utilizada primeiramente pelas empresas e organizaes, essas tcnicas permitiram as
primeiras percepes da instantaneidade e da possibilidade da ao distncia quase que de
7
forma imediata. Foi o incio da convergncia dos momentos2, e de um novo uso do tempo e do
espao (SANTOS, 2002a, p. 186).
Os avanos foram tremendos, porm a instantaneidade percebida no era completa,
total, como a do perodo atual, pois ainda o tempo era estabelecido por intermedirios que tinham
seus horrios de funcionamento e atrasos de distribuio dos sinais3.
Foi o perodo que deu incio emergncia de espaos mais racionais e ao processo de
transportar o nacional, e depois o universal, ao local; ou, ainda, configurao de espaos de um
mundo em processo de internacionalizao. As ferrovias no s ligavam os lugares ao mundo,
como ligavam o mundo aos lugares. E isso se dava atravs da troca de mercadorias, de idias, de
informaes, de normas e de experincias.
As ferrovias ajudaram tambm na origem de um complexo sistema de diviso
internacional do trabalho, devido ao incremento de produtividade nos transportes4.
Contriburam, tambm, para modificar o tempo e o movimento dos homens (ELLUL, 1968, p.
335, 337) e reduzir o lapso de tempo que permitiu instalar uma ponte entre lugares distantes,
tornando-os virtualmente aproximados (DIAS, 2002, p. 141).
Os sistemas de transporte evoluram consideravelmente aps o surgimento das ferrovias e,
na mesma direo, foram a organizao das empresas e dos pases. As escalas de planejamento
das empresas e do Estado mudaram, possibilitando a unificao das aes e a
especializao/diferenciao das regies. A valorizao e desvalorizao dos espaos marcante
nesse perodo e as dinmicas das regies, dos pases e da sociedade se transformaram. O poderio
mercantil, que estava restrito principalmente aos portos, agora avana sobre o interior dos
territrios com grande velocidade.
O surgimento das ferrovias no incio do sculo XIX na Inglaterra e na metade do mesmo
sculo no Brasil, contribuiu para a organizao das relaes comerciais e sociais entre regies,
2 As ferrovias deram incio convergncia dos momentos. A histria das tcnicas , realmente, a histria da convergncia dos momentos e a partir da estrada de ferro esse processo de unificao marcha a galope (SANTOS, 2002a, p. 186). 3 Hoje, a simultaneidade percebida no apenas a que era trazida, no incio do sculo, pelo telgrafo, pelo cabo submarino ou pelo telefone, que transportavam sinais e vozes sem outra defasagem que os horrios de funcionamento preestabelecidos ou os atrasos na distribuio. Hoje, as mensagens e os dados chegam aos escritrios e lares diretamente, praticamente sem intermedirios (SANTOS, 2002a, p. 200). 4 o efeito combinado do incremento de produtividade nos transportes reduo dos fretes a longa distncia e da insero no comrcio de um fluxo de novos produtos originrios da indstria, deu origem a um complexo sistema de diviso internacional do trabalho, o qual acarretaria importantes modificaes na utilizao dos recursos em escala mundial. (FURTADO, 1974, p. 77).
8
pases e continentes. Modificaram, tambm, a configurao territorial de muitos pases, como foi
o caso dos Estados Unidos que, na segunda metade do sculo XIX, conseguiram integrar o pas e
transformar a atuao das empresas de regional para nacional e depois para internacional
(CHANDLER, 1998, p. 19).
Para ANDRADE (1970, p. 64) a expanso das ferrovias na segunda metade do sculo
XIX foi fundamental para a integrao dos territrios francs e norte americano, permitindo o
crescimento dos plos principais de expanso de sua rea de influncia, pela formao de 'ns de
trfego' e de 'zonas de desenvolvimento'.
Na virada do sculo XIX, a chave da dominao mundial passou a ser exercida pela
hipertrofia do poder terrestre, condicionado este ao desenvolvimento das vias frreas (FORTES,
1956, p. 26). Graas s ferrovias, grandes potncias, como os Estados Unidos e a Rssia,
consolidaram a integrao de seus territrios.
No Brasil, as ferrovias tiveram um papel importante na organizao da regio oeste do
estado de So Paulo. Elas foram construdas para atender ao escoamento da produo do caf
destinada s exportaes, mas contriburam tambm para a criao de muitas cidades do interior
paulista. Segundo MONBEIG (1984, p. 385), sobre o oeste paulista mais exato falar em
regies ferrovirias, que de regies geogrficas ou econmicas. Novas cidades foram criadas e
muitas outras ganharam uma importncia regional.
O surgimento das ferrovias foi to marcante que SILVA (1949, p. 71) props uma
periodizao dos transportes e subdividiu a circulao interna em primitiva, para o perodo
anterior ao advento das ferrovias, e atual, para o perodo que compreende o uso das ferrovias e
rodovias modernas. At ento, a circulao interna estava restrita s tcnicas de navegao fluvial
e por canal, que tinham uma topologia mais rgida, pouco flexvel, proporcionando velocidades
reduzidas. Com as ferrovias, o territrio pde ser integrado e os tempos de viagem encurtados
tremendamente.
A convergncia tempo-espao possibilitada, aps 1850, em regies servidas pelas
ferrovias e pelo telgrafo.
Todas as transformaes sociais e territoriais ocorridas na Primeira Revoluo
Chandleriana se devem, principalmente, evoluo e ao emprego das tcnicas e das normas, que,
como ser apresentado a seguir, tiveram como principal caracterstica a sua abrangncia global,
porm desigual.
9
Ferrovias: densidades tcnicas e normativas
A implantao das ferrovias no mundo, iniciada no sculo XIX, ocorreu quase que
simultaneamente. No Brasil, a assinatura do primeiro decreto e as primeiras concesses
coincidem com a primeira fase do surto ferrovirio, verificado na Inglaterra entre 1835 e 1837
(NAGAMIMI, 1994, p. 134). Como afirmou ELLUL (1968, p. 119), a tcnica alcana
progressivamente pas aps pas e sua rea de ao identifica-se com o mundo. Porm, os
resultados dessa implantao foram diferentes para cada pas, j que a tcnica efetivada em cada
territrio tem suas leis e suas razes (ELLUL, 1968, p. 213).
GEORGE (1970, p.293) chega a classificar a economia industrial dos pases de acordo
com a densidade das linhas ferrovirias. Segundo esse autor, pases com densidades superiores a
10 km/100 km2 possuem complexos industriais macios, com base em indstrias pesadas; pases
com densidades entre 5 e 10 km/100km2 possuem conjuntos regionais que associam zonas ou
focos industriais a regies agrcolas em economias industriais de mercado nacional e importante
comrcio internacional; com densidade menor que 5 km/100km2 so pases subdesenvolvidos,
onde o trem geralmente importado, no quadro de sistemas de explotao colonial ou semi-
colonial. Por traz dessas densidades tcnicas est a lgica de implantao e utilizao das linhas,
que ora realiza integraes intra e inter-regionais e ora realiza integraes internacionais, ligando
a produo aos portos exportadores.
Nos pases centrais, as linhas ferrovirias alcanaram, at o ano de 1900, quase que a sua
extenso total, permitindo integrar os territrios e ligar as principais cidades (BARKE, 1986, p.
70). O desenvolvimento dos meios de transporte est apresentado no GRFICO 1.1.
Uma das principais caractersticas do desenvolvimento das ferrovias da primeira
Revoluo Chandleriana foi a difuso desigual das tcnicas e das normas que, juntas,
constituram o sistema ferrovirio. A construo das ferrovias se deu de forma seletiva sobre o
espao e teve como base definidora a busca de regies j competitivas ou com potencial de serem
competitivas, acelerando e acentuando, desse modo, a diferenciao das regies. Esta
diferenciao estava, portanto, diretamente relacionada com as tcnicas e as normas empregadas.
10
Alm de transportar bens materiais e imateriais, as ferrovias contribuem diretamente,
tambm, para a difuso da tcnica a todos os lugares servidos pelas linhas ferrovirias. As regies
servidas pelas ferrovias so valorizadas duplamente, uma vez pela prpria possibilidade de acesso
a outros mercados, de escoamento de produtos, por exemplo, e a segunda pelo prprio acesso a
novas tcnicas que trafegam pela ferrovia.
E esse acrscimo constante e acelerado de tcnicas um processo irreversvel. Como
analisou ISNARD (1982, p. 191), o espao geogrfico no tem a capacidade de auto-adaptao,
como o espao natural, portanto, somente com mais tcnica possvel controlar e reduzir os
desequilbrios decorrentes da ao do homem.
As tcnicas e as normas das ferrovias determinam como o uso do espao ser realizado,
ou seja, como as regies sero organizadas e quem sero os beneficiados. O uso do espao a
transformao de matria prima pela ao do homem para assegurar a sua existncia. J o uso
1700 1750 1800 1850 1900 1950
50
100 __
1650
% da extenso final
Rio
estradas
CanalFerrovia
Carros por 1000 habitantes
| | | | | |
Fonte: BARKE (1986, p. 70)
GRFICO 1.1 DESENVOLVIMENTO DOS MEIOS DE TRANSPORTES
11
privado do espao pode ser aquele a assegurar a existncia de particulares, de poucas empresas,
dos agentes hegemnicos.
O conjunto de tcnicas e normas pode determinar o grau de tecnicidade da sociedade e
das empresas. Essa tecnicidade, que pode ser definida como o conjunto de relaes que o homem
mantm com as matrias, ou seja, a relao de transformao do espao geogrfico, nos conduz
diretamente na esfera do poder (RAFFESTIN, 1993, p. 227). As ferrovias, portanto, conferiram
s empresas maior capacidade de organizar o espao geogrfico de acordo com seus objetivos
particulares.
Foi tambm atravs dessas tcnicas, as ferrovias, que pores dos territrios passaram a
ser organizados em forma reticular ou, como sugeria Saint-Simon, como organismo rede. Saint-
Simon partia da idia de que o corpo humano se solidifica e morre quando a circulao
suspensa. Graas a essa analogia de organismo rede, Saint-Simon disps de uma ferramenta de
anlise para conceber uma cincia poltica e formular um projeto de melhoria geral do territrio
da Frana. O projeto consistia em traar sobre o territrio (organismo) as redes para assegurar a
circulao de todos os fluxos, enriquecendo o pas e melhorando as condies de vida de todas as
classes sociais (DIAS, 2005, p. 16). O problema dessa teoria, alm da analogia organicista que a
estrutura, a de afirmar uma relao mecanicista entre a expanso de rede e a emancipao social
e econmica. No raro encontrar, ainda hoje, heranas de pensamento sansimonista, sobretudo
entre os planejadores.
Mais aderente realidade nos parece o caminho que considera o conjunto das tcnicas e
das normas, das formas e dos contedos, de maneira indissocivel (SANTOS, 2002a, p. 337), e
sua contribuio para a construo de um espao artificial, racional, sendo indispensvel para que
as grandes empresas possam se utilizar plenamente do territrio5. Alm da desigual difuso dos
sistemas ferrovirios pelos territrios, a forma e o contedo das linhas no so
homogneas. Estas formas condicionam totalmente o contedo do sistema, ou seja, a
maneira como os fluxos materiais e imateriais so definidos. E, por outro lado, a forma e o
contedo das ferrovias esto diretamente relacionados com a competitividade regional e a
fluidez territorial.
5 O espao racional supe uma resposta pronta e adequada s demandas dos agentes, de modo a permitir que o encontro entre a ao pretendida e o objeto disponvel se d com o mximo de eficcia (SANTOS, 2002a, p. 300).
12
Competitividade regional e fluidez territorial
A competitividade das regies e a maior ou menor fluidez territorial (ARROYO, 2001, p.
105), que so sempre relativas, esto diretamente ligadas com a densidade tcnica e normativa
inerentes aos sistemas de transporte. Quanto maior a densidade das ferrovias, por exemplo, maior
a possibilidade de circulao e de realizao de trocas entre regies diferentes e de uma delas se
tornar competitiva, ou melhor, se valorizar.
Essa fluidez territorial pode ser compreendida como sendo a maior ou menor capacidade
de realizao de trocas entre diferentes localidades. Quanto maior a fluidez, maior a capacidade
de troca e da possibilidade das regies se tornarem mais competitivas. A fluidez pode ser
classificada em virtual, quando considerada apenas a densidade tcnica dos meios de
transporte, como quantidade de terminais e portos, quilmetros de rodovias, ferrovias e hidrovias,
e efetiva, quando considerado a freqncia e o uso efetivo dos sistemas de transporte, ou seja, a
quantidade de produtos transportados (SANTOS & SILVEIRA, 2001, p. 262).
Quando a fluidez efetiva maior que a virtual, o sistema de transporte pode entrar em
colapso e as trocas podem no ser efetivadas. Numa situao extrema, quando a fluidez nula as
trocas no se realizam e as regies permanecem isoladas, no competitivas.
A fluidez territorial , ao mesmo tempo, uma causa, uma condio e um resultado
(SANTOS, 2002a, p. 374). uma causa porque o aumento das trocas resulta em mais fluidez
territorial; uma condio porque sem ela no h a possibilidade de competitividade e
valorizao das regies; e resultado porque as prprias regies, para se valorizarem, buscam
mais fluidez. Est baseada nas redes tcnicas, animadas por fluxos, que so um dos suportes da
competitividade, da a busca voraz de mais fluidez e de mais tcnicas (SANTOS, 2002a, p. 274).
A possibilidade de valorizao, do aumento da competitividade regional, requer um
sistema de transporte que movimente a produo, j que esta s se torna til ou se torna uma
mais valia, quando seu valor percebido distncia, quando esta possui mobilidade. Com o
surgimento das ferrovias, essa circulao passa, ento, a comandar as mudanas de valor dos
espaos6, do territrio, promovendo a fragmentao e a diviso territorial do trabalho.
As vantagens locacionais, como os estoques de recursos naturais, por exemplo, no
bastam para que as regies sejam competitivas. necessrio que esses recursos sejam 6 O prprio padro geogrfico definido pela circulao, j que esta, mais numerosa, mais densa, mais extensa, detm o comando das mudanas de valor no espao (SANTOS, 2002a, p. 268).
13
movimentados, que a fluidez territorial seja adequada para o deslocamento dos produtos. Essa
possibilidade de movimentao foi marcante com o surgimento das ferrovias. Como afirmou
SANTOS, No basta, pois, produzir. indispensvel pr a produo em movimento. Em
realidade, no mais a produo que preside circulao, mas esta que conforma a produo
(SANTOS, 2002a, p. 275). Ou ainda, que a produtividade e a competitividade deixam de ser
definidos devido apenas estrutura interna de cada corporao e passam, tambm, a ser um
atributo dos lugares (SANTOS, 2002b, p. 88).
A competitividade regional, que estava restrita s regies prximas aos portos martimos
e fluviais, pode ser efetivada em regies localizadas no interior dos territrios, ou seja, para
praticamente qualquer lugar de alcance das ferrovias. As ferrovias tornaram-se um elemento
importante na definio das regies que seriam favorecidas e que passariam a ser mais
competitivas nacional e internacionalmente.
Esse processo de valorizao e desvalorizao das regies, que tem os sistemas de
transporte como principal condicionador, pode ser o incio do que se convencionou chamar de
guerra dos lugares (SANTOS, 2002a, p. 268-269). Para que as regies se tornem competitivas
frente s demais, elas necessitam de mais fluidez, de mais trocas e, com o aumento dessas trocas,
a fluidez ainda mais necessria.
No Brasil, com o surgimento das ferrovias a fluidez de pores do territrio brasileiro
aumentou significativamente, principalmente no Oeste Paulista. As regies servidas pelas
ferrovias passaram, ento, a ser competitivas para os mercados internacionais.
Esse aumento da fluidez territorial e da competitividade regional verificado a partir da
Primeira Revoluo Chandleriana foi definido, em grande parte, por polticas pblicas e privadas
que visavam valorizar determinadas regies. Essas polticas foram definidas para atender
diversos interesses e planos governamentais, permitindo, assim, constituir uma periodizao para
o sistema ferrovirio no Brasil.
14
2.
ABORDAGEM DIACRNICA DAS FERROVIAS NO BRASIL: UMA PROPOSTA DE PERIODIZAO
15
O territrio como componente da periodizao
Uma periodizao pode ser observada quando um determinado evento, que a princpio
uma novidade, um desvio, uma anormalidade frente aos eventos de um sistema temporal
(SANTOS, 2002c, p. 249-260), se torna, em seguida, num evento regular, que se mantm, que se
reproduz uniformemente e que substitui ou se torna mais significativo que os do momento de sua
emergncia. Aquilo que a princpio era uma novidade, um desvio, se torna um padro (SANTOS,
2002a, p. 146).
Porm, esses eventos no se realizam isoladamente mas, sim, de forma solidria,
formando uma situao, um sistema de eventos, que pode variar de acordo com a sua escala de
origem e de realizao. Esses diferentes eventos, por sua vez, so caracterizados pelas tcnicas
utilizadas pela sociedade para construir a histria do uso do territrio7.
O uso do territrio pode ser verificado atravs da implantao de infra-estruturas, da
dinmica da economia e da sociedade, das polticas dos governos e das empresas, das normas e
leis utilizadas na regulao, das regras de financiamento e da agricultura (SANTOS &
SILVEIRA, 2001, p. 21).
As polticas de transporte no Brasil, por exemplo, no foram as mesmas ao longo dos
ltimos 150 anos. O Estado se preocupava, num determinado momento, com a ocupao do
territrio brasileiro, num segundo momento, com a modernizao e, num terceiro, com a insero
internacional (QUADRO 2.1). As polticas econmicas ora estavam preocupadas com a
integrao voltada para o mercado externo, atravs das exportaes, ora para o mercado interno.
Os prprios produtos transportados e as formas de investimentos foram bem diferentes para cada
momento. Para acompanhar essas mudanas, os sistemas de transportes foram sendo
readequados, refuncionalizados, reaparelhados.
Analisando os sistemas de eventos, possvel definir, ento, a periodizao do sistema
ferrovirio brasileiro em trs momentos distintos: a) criao e expanso; b) estatizao e
readequao e c) desestatizao e recuperao (para o transporte de carga).
7 Por intermdio de suas tcnicas diversas no tempo e nos lugares, a sociedade foi construindo uma histria dos usos do territrio nacional (SANTOS & SILVEIRA, 2001, p. 27).
16
QUADRO 2.1 PERIODIZAO DAS FERROVIAS NO BRASIL
Caractersticas\Momento Criao e expanso Estatizao e readequao
Desestatizao e recuperao
Perodo aproximado 1835-1957 1957-1996 1996-atual
Plano nacional do governo brasileiro relativo aos transportes
Ocupao Modernizao do territrio, era
desenvolvimentista, segurana nacional
Insero internacional,
globalizao, ocupao dos
cerrados
Caracterstica do sistema ferrovirio
Desenvolvimento Readequao Reestruturao
Extenso da linha (Km) 30 mil 30 mil 29 mil
Prioridade econmica do governo Exportao Integrao do territrio/exportao
Exportao
Controle das ferrovias Privado Estatal Privado
Investimentos em novas linhas Privado Estatal Estatal/Privado
Investimentos na operao Privado Estatal Privado
Caractersticas dos principais fluxos
Vrios produtos e passageiros
Commodities e passageiros
Commodities e containers
Principais produtos Caf Minrio Minrio e soja
Prioridade dos investimentos em transporte
ferrovias rodovias ferrovias e rodovias
Objetivos dos investimentos Construo de novas linhas
Saneamento das empresas
Melhoria da eficincia
operacional
Relao entre expanso agrcola e ferrovias
A agricultura segue a expanso
das linhas
- As ferrovias seguem a expanso da
agricultura
Fontes consultadas: TELLES (1984), VARGAS (1994) e ANTT (www.antt.gov.br). Organizado pelo autor.
17
Momento 1 - Criao e expanso do sistema ferrovirio
O primeiro momento da periodizao das ferrovias no Brasil vai de 1835, com as
primeiras tentativas de criao de empresas ferrovirias, at 1957, quando o sistema ferrovirio
foi estatizado com a criao da RFFSA Rede Ferroviria Federal S.A.
Nesse primeiro momento, o territrio brasileiro, segundo BARAT (1978, p. 89), estava
organizado mais como um arquiplago do que como um continente.
A organizao do territrio brasileiro no incio deste momento da periodizao do sistema
ferrovirio muito bem caracterizada, tambm, por Golbery do Couto e Silva (COUTO E
SILVA, 2003, p. 35, 36, 562). Para esse autor, do ponto de vista da circulao, o territrio
brasileiro um vasto arquiplago, formado por um ncleo central (So Paulo, Belo Horizonte e
Rio de Janeiro), trs grandes pennsulas (regies Nordeste, Sul e Centro-Oeste) e uma grande
ilha perdida (Amaznia). Para a integrao e valorizao do territrio brasileiro, o autor prope
a revitalizao de trs stimos de circulao, entre o ncleo central e as trs pennsulas, e, a partir
de ento, a aproximao do Centro-Oeste com a Amaznia (ver representao no ANEXO 1).
J para Wilson Cano, o territrio brasileiro estava organizado em regies isoladas
economicamente devido, principalmente, configurao dos sistemas de transportes, j que as
grandes distncias causavam margens naturais de proteo s industriais locais (CANO, 1998,
p. 60). Antes de 1940, a nica integrao entre os plos exportadores no Brasil era realizada
atravs da navegao de cabotagem (BARAT, 1978, p. 91).
O que se verificava nesse momento que a economia nacional no era integrada, j que
cada uma das regies havia tido uma histria e uma trajetria especfica (CANO, 1998, p. 312),
ou seja, eram independentes.
Para FURTADO (1959, p. 110), no final do sculo XVIII, a economia brasileira se
apresentava como uma constelao de sistemas em que alguns se articulavam entre si e outros
permaneciam praticamente isolados. A integrao territorial era algo pouco realista, j que na
primeira metade do sculo XIX os interesses regionais constituam uma realidade muito mais
palpvel que a unidade nacional (FURTADO, 1959, p. 115).
O crescimento da economia cafeeira, verificada entre 1880 e 1930 e ajudada pelas
ferrovias, criou fortes discrepncias regionais mas, por outro lado, dotou o Brasil de um slido
18
ncleo em torno do qual as demais regies tiveram necessariamente de articular-se (FURTADO,
1959, p. 273).
Por ser um grande produtor de produtos tropicais, isso logo aps a independncia, o Brasil
estava intimamente integrado s economias europias, das quais dependia. No era constitudo,
portanto, num sistema autnomo, mas sim um prolongamento de outros sistemas maiores
(FURTADO, 1959, p. 116).
Apesar dos vrios surtos de crescimento industrial entre 1885 e 1930, a economia
brasileira se manteve fundamentalmente com a caracterstica de exportadora de produtos
primrios (BARAT, 1978, p. 8), tendo a infra-estrutura de transportes, as ferrovias, voltadas para
o escoamento dos fluxos de produo do interior ao litoral (BARAT, 1978, p. 9). A organizao
das atividades econmicas no Brasil podia ser definida, tambm, como uma sociedade agro-
exportadora (NAGAMIMI, 1994, p. 131). Esse padro de acumulao primrio-exportador s
comeou a ser modificado com a crise de 1929 (CANO, 1998, p. 285).
No final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, com a decadncia das atividades de
extrao do ouro, o territrio brasileiro passa a se organizar novamente na atividade econmica
da produo agrcola. Por estar voltada ao exterior, essa produo se fixa na faixa litornea de
norte a sul, prxima aos portos de embarque e exportao (PRADO JNIOR, 2004, p. 85). As
ferrovias vm participar exatamente desta organizao produtiva interior-portos-exterior.
Essa dependncia externa dos sistemas ferrovirios nesse primeiro momento promoveu
uma catstrofe para a Ferrovia Madeira-Mamor, no estado de Rondnia. Construda com o
objetivo de exportar borracha, sua utilizao j estava invivel em 1912, ano de sua inaugurao,
quando os preos internacionais da borracha despencaram.
Nesse momento, a Inglaterra tinha interesse em investir e operar ferrovias e portos, pois
era uma garantia de maior eficincia no transporte de produtos a ela destinado, assim como
tambm permitia a absoro dos seus bens de capital e da sua tecnologia (BARAT, 1978, p. 10).
At a primeira metade do sculo XX, mais precisamente s vsperas da Segunda Guerra, os
investimentos estrangeiros no Brasil provinham predominantemente da Inglaterra (55% do total).
Os americanos participavam com 28% e os canadenses com 9%. Aps a Segunda Guerra, a
situao se inverteu. Os americanos e os canadenses participavam com 54% e os ingleses com
29% (MONBEIG, 1971, p. 122-123).
19
O incio da implantao das ferrovias pode ser organizado em alguns eventos: a) tentativa
de instalao das ferrovias, em 1835; b) inaugurao da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1854; c)
transferncia das atenes para o Oeste paulista, com a inaugurao da Estrada de Ferro Santos-
Jundia (NAGAMIMI, 1994, p. 136).
O modelo adotado para a implantao das ferrovias, que inclua os incentivos para atrair
os investidores, era: a) garantia de juros de 5% a 7%; b) criao da zona de privilgios de 30 km
para cada lado das linhas (NAGAMIMI, 1994, p. 138). Alm da prpria atividade de transporte,
as empresas ferrovirias podiam explorar as margens das ferrovias.
No primeiro momento da histria das ferrovias, as leis formuladas provocaram grandes
problemas para os dois momentos subseqentes. Na Lei 641, 26 de junho de 1852, a garantia de
juros de at 5% a.a. sobre o capital empregado na construo das estradas de ferro foi um
incentivo ineficincia na construo e operao das ferrovias, j que as tarifas pouco
importavam e o lucro era garantido pelo governo (TELLES, 1994, p. 233). Numa tentativa de
desenvolver ainda mais as estradas de ferro no Brasil, foi decretada a Lei 2.450 de 24 de
setembro de 1873 que tratava das subvenes quilomtricas.
A criao das subvenes quilomtricas, em que o governo arcaria com 30 contos por
quilmetro construdo, fez com que as estradas fossem as mais baratas possveis, sem recortes,
tneis e pontes, conseqentemente com muitos desvios e curvas. O que deveria ser um incentivo,
foi responsvel pela construo de pssimas estradas, com efeitos desastrosos e srios entraves
para as ferrovias e para o territrio nacional. Estas leis foram extintas em 1903.
A construo das linhas, segundo A. B. Fortes, obedeceu quase que exclusivamente a
injunes polticas. As ferrovias, debruadas todas elas sobre o litoral, esto longe ainda de
proporcionar um grau aceitvel de integrao social (FORTES, 1956, p. 27-28).
A construo das ferrovias brasileiras, por no se enquadrar em objetivos nacionais
mais amplos, gerou uma heterogeneidade de tecnologias e bitolas (mais de 10 medidas
diferentes) (CAIXETA-FILHO, 2001b, p. 82). Essas diferenas de carter tcnico entre as
empresas ferrovirias no eram to percebidas, pois funcionavam como sistemas isolados.
Logo no incio das construes ferrovirias, a produo do caf foi deslocada para os
estados de So Paulo e Paran, fazendo com que a ferrovia perdesse o sentido no Rio de Janeiro
por falta de cargas (LAMBERT, 1972, p. 167). A ferrovia monofuncional, dependente quase que
20
exclusivamente de um nico produto, o caf, comprometeu a organizao do territrio do Rio de
Janeiro.
A relao entre produtores de caf e ferrovias explicada por FURTADO (1959, p. 116)
ao descrever quem foram os governantes aps a independncia do Brasil. Para esse autor
no existia na colnia sequer uma classe comerciante importante - o grande comrcio era
monoplio da Metrpole - resultava que a nica classe com expresso era a dos grandes
senhores agrcolas. Qualquer que fosse a forma como se processasse a independncia,
seria essa classe a que ocuparia o poder, como na verdade ocorreu, particularmente a
partir de 1831.
No mapa A regio vital do Brasil, MONBEIG (1971, p. 120) mostra a relao muito
prxima entre as culturas de caf, no estado de So Paulo, e a ferrovia (MAPA 2.1). O interior do
Estado de So Paulo servido por linhas ferrovirias na busca do caf, que seguia, ento, aos
portos exportadores.
MAPA 2.1 FERROVIAS E O CAF MOMENTO 1
Fonte: MONBEIG (1971, p. 120-121)
21
A lgica de funcionamento da rede ferroviria podia ser verificada tambm pelos tipos de
vages empregados para o transporte. Em 1951, dos mais de 65 mil composies existentes,
quase 7 mil eram do tipo carro (passageiros, dormitrios, restaurante, bagagens, correio) e 5 mil
especficos para transporte de gado (GORDILHO, 1956, p. 158-159).
A evoluo do sistema ferrovirio (FORTES, 1956, p. 29) nesse primeiro momento foi
enorme, atingindo mais de 34 mil quilmetros de linhas ou 400 km por ano de mdia (QUADRO
2.2).
Nesse momento, a tcnica importada, fornea, ou seja, a locomotiva a vapor, foi adaptada
no Brasil para usar carvo nacional e lenha como fontes de energia, possuindo poder calorfico
inferior ao carvo importado (LAMBERT, 1972, p. 166). A gua utilizada nas caldeiras tambm
no era adequada ou de mesma qualidade. So adaptaes que comprometeram o territrio, seja
pela fluidez reduzida, pelos custos envolvidos ou pelas florestas destrudas.
QUADRO 2.2 - EVOLUO DAS LINHAS FERROVIRIAS - 1845 1939
Ano Construdo (km) Evoluo (km) 1854 14,5 14,5 1860 208,2 222,7 1865 275,7 498,4 1870 246,5 744,9 1875 1.055,1 1.800 1880 1.597,9 3.397,9 1885 3.532,4 6.930,3 1890 3.042,8 9.973,1 1895 2.994 12.967,1 1900 2.349,3 15.316,4 1905 1.464,4 16.780,8 1910 4.544,7 21.325,5 1915 4.736,5 26.062 1920 2.238 28.300 1925 2.431,5 30.731,5 1930 1.746,5 32.478 1935 628 33.106 1939 1.098,2 34.204,2
Fonte: BARAT, 1991, p. 10
22
A pulverizao da rede ferroviria em pequenas empresas, que deveriam ter recursos
prprios de administrao, oficinas e estoques de reposio, agravou a situao financeira das
empresas. Em 1952, segundo LOPES e SOBRINHO (1951, p. 55), existiam 40 empresas
deficitrias de um total de 44. Esta situao s foi resolvida com a criao da RFFSA, em 1957,
consolidando as 18 ferrovias regionais, e da FEPASA, em 1971.
A infra-estrutura, utilizada at ento para o escoamento de produtos aos portos
exportadores, passou a ser, no momento subseqente, um obstculo ao crescimento econmico,
principalmente por dois fatores: a) deteriorao do sistema ferrovirio e porturio devido ao
declnio dos fluxos de exportao e de restries de importao de peas de reposio e b) a
incapacidade das ferrovias de promover a unificao dos mercados, em virtude do isolamento dos
sistemas e das restries dos traados (BARAT, 1978, p. 13).
Comea, ento, o segundo momento da periodizao do sistema ferrovirio, que tem o
Estado como principal agente centralizador das decises.
Momento 2 - Estatizao e readequao do sistema ferrovirio
O segundo momento da periodizao, que vai de 1957, com a criao da RFFSA, at
1996, com a privatizao do sistema ferrovirio, tem como principal caracterstica o controle
estatal do sistema ferrovirio.
A nacionalizao das ferrovias no Brasil, com a criao da RFFSA e da FEPASA,
colocou sobre os ombros da Unio ou de certos Estados uma carga pesada. O nmero de
passageiros decresce e o trfego de mercadorias no assinala um progresso seno graas ao
minrio de ferro (MONBEIG, 1971, p. 117).
Na primeira metade do sculo XX j se verificava uma progressiva emergncia de um
sistema cujo principal centro dinmico era o mercado interno (FURTADO, 1959, p. 267). As
ferrovias, implantadas para atender o escoamento de produtos primrios em direo aos portos,
revelaram-se inadequadas para responder aos estmulos do intenso processo de industrializao
iniciado a partir da dcada de 1930 (BARAT, 1978, p. 23). Os sistemas ferrovirios regionais
contriburam pouco para a unificao dos mercados. Este redirecionamento das polticas
econmicas, agora preocupadas com o mercado interno, requeria meios de transporte que
ligassem as regies do Brasil. Surge, ento, o rodoviarismo.
23
Na dcada de 1950, FORTES (1956, p. 29) j previa que, com o apogeu da poltica
rodoviria, iniciada em 1930 com o Presidente Washington Lus, as ferrovias existentes, com
rarssimas excees, entrariam em franca degresso. Quanto ao rodoviarismo, FORTES (1956, p.
44) salienta, ainda, que houve uma indiscriminada utilizao das rodovias quanto s cargas
transportadas e uma forte dependncia externa devido importao de combustveis, veculos,
asfalto. Importaes onerosas para o pas e um abandono das ferrovias j constitudas.
Para CAIXETA-FILHO (2001b, p. 76-77), as ferrovias perderam competitividade para as
rodovias devido, principalmente, aos seguintes fatores: a) o transporte ferrovirio era mais
regulado pelo Estado do que o sistema rodovirio; b) o sistema ferrovirio tinha menor liberdade
para definir tarifas; c) o sistema ferrovirio tinha custos e tempo elevados de construo; d) o
sistema ferrovirio estava voltado aos portos, no atendendo nova ordem de integrao
nacional.
Com a chegada do rodoviarismo, o territrio brasileiro estava organizado em torno de
ferrovias locais, voltadas aos portos. Diferentemente do Brasil, na Europa e nos Estados Unidos,
quando o automvel se imps, j estava terminada a era da construo ferroviria, ou seja, j
existia uma rede coesa de estradas de ferro (LAMBERT, 1972, p. 162,163).
Neste segundo momento da periodizao do sistema ferrovirio, o desenvolvimento e a
segurana do territrio passam a ser de fundamental importncia para a problemtica dos
transportes (VALENTE, 1971, p. 24). FORTES (1956, p. 7) destaca, ainda, que o Brasil necessita
de um amplo sistema transportador para atender as exigncias no apenas de carter scio-
econmico, mas ainda de carter poltico-militar. A preocupao com a segurana nacional nas
polticas de transportes visvel neste segundo momento. Para LOPES e SOBRINHO (1951, p.
8), as polticas de transportes devem considerar, em sntese, parmetros como o econmico, o
social, o poltico e o militar.
A integrao do mercado nacional, promovida pelo rodoviarismo, foi possvel, segundo
CANO (1998, p. 178-181), pelas polticas do Estado, pelos investimentos pblicos e pela
eliminao de algumas barreiras protecionistas: a) a crise de 1929 eliminou as barreiras na
rbita da competio; b) reduo gradativa (completada em 1943) de impostos interestaduais
que incidiam sobre o comrcio de mercadorias entre os estados; c) criao e melhoria dos
transportes inter-regionais. A integrao proporcionou, segundo esse autor, efeitos de estmulo,
de inibio ou bloqueio e, at mesmo, de destruio.
24
Com essa integrao, foi verificado um aumento do grau inter-regional de
complementaridade (CANO , 1998, p. 181), principalmente do estado de So Paulo. Entre 1955
e 1968, enquanto as exportaes de So Paulo para o exterior aumentaram 58%, suas vendas para
o resto do Brasil aumentaram 505%; as importaes do exterior cresceram 98% ao passo que as
importaes vindas do resto do Brasil aumentaram 176%. As ferrovias, voltadas para os portos
como sistemas independentes, no poderiam atender as necessidades de ligao das regies
brasileiras, ou seja, no poderiam contribuir para o aumento do grau de complementaridade.
A evoluo do trfego de mercadorias no Brasil entre 1950 e 1970 confirma que houve
um aumento substancial do transporte rodovirio e um declnio muito grande do transporte
ferrovirio (TABELA 2.1). Nesse perodo, enquanto a taxa de crescimento anual do transporte
rodovirio foi de 13,7%, o ferrovirio foi de 6,7%, o martimo 4,4% e o areo 3,5%. Para o
transporte de passageiros, a taxa de crescimento das rodovias foi de 12,3%, j as ferrovias
tiveram um decrscimo de -0,1%.
TABELA 2.1 - EVOLUO DO TRFEGO DE MERCADORIAS 1950 - 1970 - BILHES DE TON.KM
Ano Rodovias Ferrovias Martimo Areo 1950 38 29,2 32,4 0,4 1955 52,7 21,2 25,8 0,2 1960 60,5 18,7 20,6 0,1 1965 67,5 17,6 14,6 0,2 1970 73 15,7 11,2 0,1
Taxa de crescimento anual 1950- 1970 13,7 6,7 4,4 3,5
Taxa de crescimento anual de passageiros 1950- 1970 12,3 -0,1 - 3,8
Fonte: BARAT, 1978, p. 16
A evoluo do rodoviarismo pode ser observada, tambm, pelo aumento expressivo da
quantidade de carros de passeio entre 1950 e 1970, mais de 600%, e de rodovias construdas,
mais de 200% (TABELA 2.2).
25
TABELA 2.2 - EVOLUO DO RODOVIARISMO NO BRASIL - 1950-1970
Ano Carros de passeio Total Extenso da rede rodoviria estadual e federal (km)
1950 254.187 425.938 55.900
1955 428.577 679.832 76.298
1960 639.781 9.876.230 108.277
1965 1.415.521 1.875.457 129.430
1970 2.464.285 3.126.559 181.011 Fonte: BARAT, 1978, p. 58
Nesse segundo momento, o desequilbrio do sistema de transportes ferrovirios era
evidente, como pode ser verificado pela TABELA 2.3. Apesar dos mais de 30 mil quilmetros de
linhas existentes no Brasil, boa parte das cargas transportadas e da eficincia verificada estava
concentrada em quatro sistemas independentes. Os sistemas federal e estadual (So Paulo) tinham
uma participao no transporte de cagas muito inferior mdia global.
TABELA 2.3 - DESEQUILBRIO DAS FERROVIAS NO BRASIL - 1965 - 1970
km tkm (106) Empregados Densidade
103 tkm/km/ano 103 tkm/empreg/anoSistema Qtde 1965 1970 1965 1970 1965 1970
1965 1970 1965 1970 Federal 13 25.747 25.101 8.806 12.057 145.004 123.862 342 480 61 97 Estado de So Paulo 6 6.851 5.344 3.160 3.151 44.045 38.037 461 590 72 83 Independentes 4 1.265 1.657 6.293 15.047 8.344 7.815 4.975 9.081 757 1.925 Total 23 33.863 32.102 18.259 30.255 197.393 169.714 539 942 93 178 Fonte: BARAT, 1978, p. 38 Nota: tkm tonelada x quilmetro
Na dcada de 1990 apenas 8% das linhas ferrovirias era responsvel por 80% de todo o
transporte sobre trilhos no Brasil (MARQUES, 1996, p. 7). Em 1993 a RFFSA possua 76,7% de
toda a malha e transportava apenas 31,8% das cargas, a FEPASA 14,9% e 5,6%, a EFVM 3,1% e
35,8% e a EFC 3,8% e 26,2%. Um ndice que podia mostrar a eficincia econmica, e at mesmo
organizacional, das empresas na poca a quantidade de carga transportada (TKU8) por
8 TKU - Tonelada Quilmetro til - quantidade de toneladas teis transportadas multiplicadas pela quilometragem percorrida pelas mesmas.
26
empregado. A EFC tinha o melhor ndice, com 18,18 milhes de TKU por empregado, a EFVM
vinha em segundo com 8,9, depois a RFFSA com 0,86 e por ltimo a FEPASA com 0,41. Havia
um desbalanceamento do sistema ferrovirio brasileiro, j que as empresas EFVM e EFC
apresentavam um rendimento muito superior e favorvel se comparado com as demais.
Foi nesse momento crtico do setor ferrovirio, e das novas polticas neoliberais impostas
pelos pases centrais, que a RFFSA foi includa, atravs do Decreto Lei n 473/92, no PND
Programa Nacional de Desestatizao9. verificado, ento, a constituio de um novo momento.
Momento 3 - Desestatizao e recuperao
No terceiro momento da periodizao do sistema ferrovirio, que iniciou em 1996 e se
estende at os dias atuais, h uma srie de mudanas estruturais e institucionais no Brasil
balizadas, principalmente, pela globalizao e pelas prticas neoliberais vigentes a partir da
dcada de 1990.
Para Wilson Cano, essa poltica neoliberal de abertura, desregulamentao e privatizao
potencializa ainda mais os efeitos perversos da Terceira Revoluo Industrial, j que as
polticas pblicas passam a privilegiar a eficincia e no a equidade (CANO, 1998, p. 349, 351).
Essa desregulao do setor ferrovirio, que na verdade uma nova regulao, um
fenmeno mundial. Nos Estados Unidos, a desregulamentao do setor iniciada em 1980 fez com
que as linhas fossem diminudas em um tero (para 315.500 Km), os empregados cortados pela
metade (280 mil) e a capacidade dos vages dobrada. Isso possibilitou carregar 40% mais
mercadorias com 40% menos vages. As atuais 535 ferrovias so todas lucrativas (CAIXETA-
FILHO, 2001b, p. 79).
No momento atual possvel verificar um aumento da porosidade territorial, considerada
por ARROYO (2001, p. 143) como uma qualidade dos territrios nacionais em facilitar a sua
relao com o exterior, a partir de uma base institucional incumbida da regulao do movimento.
uma ao poltica exercida em diferentes nveis (federal, estadual e municipal) tanto por
governos quanto por empresas. Este aumento pode ser verificado pelos incentivos fiscais
exportao, principalmente de commodities agrcolas, financiamentos e programas voltados
modernizao da produo agrcola e fortalecimento dos corredores de transportes.
9 Ver reproduo do decreto no ANEXO 2.
27
Nesse terceiro momento da periodizao verificada, tambm, a consolidao do meio
tcnico-cientfico-informacional, j que os objetos tcnicos tendem a ser ao mesmo tempo
tcnicos e informacionais graas extrema intencionalidade de sua produo e de sua
localizao (SANTOS, 2002a, p. 238). As polticas pblicas passam a incorporar prticas de
carter estritamente geoeconmicas, criando e requalificando espaos para atender,
principalmente, aos interesses dos agentes hegemnicos e suas lgicas globais.
A recuperao do sistema ferrovirio nesse momento foi realizada atravs da privatizao
das empresas ferrovirias estatais, que passaram a ser controladas pelo setor privado. Os
investimentos realizados pelas concessionrias, principalmente para fortalecer os corredores de
exportao, intensificaram ainda mais a insero internacional do territrio brasileiro. Alm do
minrio de ferro, que o principal produto transportado pelas ferrovias atualmente, a soja dos
novos fronts surge como uma nova alternativa.
A integrao territorial promovida pelas ferrovias, e definidas nos principais planos de
desenvolvimento dos governos, como os Planos Nacionais de Desenvolvimento e Planos
Plurianuais, ser apresentada a seguir.
O papel das ferrovias no processo de integrao do territrio brasileiro
Apesar da importncia dos sistemas de transporte para a integrao do territrio, a sua
implantao no Brasil no ocorreu de uma forma regular e uniforme. O resultado foi a
constituio de um territrio com uma distribuio muito desigual de densidades rodovirias,
ferrovirias e hidrovirias e com fluidez insuficiente para promover o desenvolvimento
econmico e social de vrias regies e a organizao adequada do territrio.
A evoluo e a periodizao do sistema ferrovirio mostram, tambm, que seus usos
estiveram, em grande parte, apoiados na necessidade de transportar a produo aos portos
exportadores, promovendo a integrao internacional do territrio brasileiro. Estes usos podem
ser explicados, em parte, pelos planos governamentais institudos ao longo do sculo XX.
28
Sistema ferrovirio nacional ou integraes regionais?
Em 1835, as propostas do governo para a construo das ferrovias sugeriam algum tipo de
integrao do territrio brasileiro. O regente Diogo Antnio Feij e Antnio Limpo de Abreu
assinam um decreto que autorizava a concesso para a construo de uma estrada de ferro que
ligasse a capital s provncias de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia (NAGAMIMI, 1994,
p. 134). Seria, talvez, o nico indcio do governo de promover a integrao das regies brasileiras
utilizando as ferrovias. A partir de ento, as linhas foram construdas praticamente apenas para
ligar as regies produtoras aos portos exportadores.
A organizao do territrio brasileiro, em forma de ilhas regionais ou arquiplago10,
apresentado no perodo entre a segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX, requeria,
para atender s atividades econmicas, dependentes do mercado externo, a construo de
sistemas de transporte voltados ao exterior. Foi nesse perodo que as ferrovias foram construdas.
Na atualidade, o papel de integrao inter-regional ficou restrito s rodovias, j que as ferrovias
atendem, em grande parte, exportao de commodities e integrao do Brasil aos mercados
internacionais.
No incio, as ferrovias foram construdas para atender s exportaes de produtos
primrios (BARAT, 1978, p. 23), atendendo necessidades locais imediatas, sem prever o futuro
(LAMBERT, 1972, p. 165). Para FORTES (1956, p. 26), os ciclos econmicos acarretaram
linhas de transporte que eram relegadas a segundo plano logo que as razes de ordem econmica
se inclinavam noutro sentido.
Para MONBEIG (1971, p. 117), o traado das estradas de ferro brasileiras no reflete
nem um plano de conjunto, nem uma adaptao aos interesses coletivos. Ele foi concebido sob a
influncia de preocupaes locais e polticas, nas zonas de antigo povoamento [...] interesses dos
agricultores [...] ligando os centros de agricultura aos portos. Ainda para DIAS (2002, p. 142),
a participao dos plantadores de caf nas sociedades de estradas de ferro demonstra o poder
social conquistado pela burguesia paulista que, decidindo sobre a configurao espacial da rede
ferroviria e assim sobre a circulao, comandava de uma forma quase completa o processo
produtivo.
10 "Tnhamos, assim, ilhas regionais, bem localizadas, com dinmicas autnomas que, juntas, constituam o arquiplago brasileiro, para usar a imagem de Francisco de Oliveira." (ARAJO, 2000, p. 73).
29
A implantao das ferrovias coincide com a formao dos corredores de transporte
conhecidos atualmente. Seu traado j uma norma definidora de seus usos. E, uma vez definido
este traado, e devido principalmente sua rigidez, o sistema pouco flexvel para novos usos.
A lgica de integrao promovida com a construo das ferrovias estava relacionada aos
interesses dos cafeicultores do estado de So Paulo. Estes associavam seus capitais para
construo das linhas, cujo traado era feito em funo da distribuio de suas fazendas, a fim de
ficar assegurado o escoamento das colheitas para Campinas, Jundia e Santos. Ou seja, a relao
capital do caf e ferrovias foi muito estreita, permitindo considerar a relao do interior de So
Paulo e o caf como a moderna expanso territorial do Brasil (MONBEIG, 1971, p. 56-57).
Para esse autor, s existia uma verdadeira rede ferroviria no Estado de So Paulo (MONBEIG,
p. 117).
O entrelaamento das atividades ferrovirias e porturias navegao deu origem a
sistemas ferrovirios isolados e com caractersticas fundamentalmente regionais. A integrao no
sentido longitudinal do territrio era, portanto, rarefeita (BARAT, 1978, p. 9).
Por ter suas ferrovias voltadas aos portos, o plo internacional em torno do qual girava a
economia brasileira era situada na Inglaterra (BARAT, 1978, p. 97).
A integrao do territrio brasileiro ocorreu somente aps o surgimento das grandes
rodovias, principalmente aps 1950, fazendo com que o Brasil deixasse de ser um conjunto de
'ilhas culturais e econmicas' dispersas para se tornar um continente a gravitar economicamente
em torno de um plo (BARAT, 1978, p. 73), ou seja, em torno de So Paulo.
Parte dessa integrao do territrio brasileiro viabilizada pelas ferrovias pode ser melhor
entendida nos diversos planos governamentais apresentados a seguir.
Planos de desenvolvimento do Brasil
O planejamento utilizado pelos governos como um instrumento indicativo dos caminhos
a serem seguidos para o desenvolvimento do pas, tendo como objetivo, segundo o discurso
oficial, o homem brasileiro, nas suas diferentes dimenses e aspiraes (BRASIL, 1980, p. 28).
Indica, tambm, as possibilidades de organizao futura do territrio, as possibilidades de
valorizao e desvalorizao de regies, a incluso ou excluso de cidades e de atividades
30
econmicas, a integrao ou a desintegrao. O territrio organizado, principalmente, pelas
polticas relacionadas s infra-estruturas de transporte, comunicao e energia.
Os planos governamentais passam a determinar as possibilidades de ordenamento do
espao, que so determinados de acordo com os projetos dos diversos agentes11. Ou como
descreve ARAJO12, os planos permitem apenas esboar tendncias referentes futura
distribuio espacial das atividades no Pas.
No Brasil, o planejamento relacionado aos transportes uma prtica recente. Em 1934 o
Brasil teve seu 1 Plano Nacional de Viao e em 1944 o 1 Plano Nacional propriamente
rodovirio (LOPES e SOBRINHO, 1951, p. 157). Verifica-se, portanto, que grande parte dos
investimentos realizados no sistema ferrovirio, iniciado na segunda metade do sculo XIX, foi
anterior a esses planos de viao. Foram, na verdade, planos independentes, de carter regional,
sem a preocupao nacional.
Outros planos anteriores a 1934 foram apresentados por engenheiros e polticos, porm
no foram aprovados ou utilizados oficialmente (QUADRO 2.3). Em 1964 foi criado o II PNV-
Plano Nacional de Viao e em 1973 o III PNV.
11 Na origem do ordenamento do espao existe, j o dissemos, a vontade de realizar um projeto de vida: projeto coletivo da pequena comunidade ou do grande Estado que determinam e escolhem seu destino, segundo uma ttica emprica ou prospectiva, projeto do grupo detentor dos meios de produo, o qual imposto ao conjunto da sociedade (ISNARD, 1982, p. 57). 12 As informaes disponveis sobre os investimentos futuros no permitem mais que esboar tendncias referentes futura distribuio espacial da atividade no Pas (ARAJO, 2000, p. 80).
QUADRO 2.3 - PLANOS DE VIAO ANTERIORES A 1934
Nome Ano Objetivo principal do plano Plano Queiroz 1874 Transporte fluvial e ferrovirio
Plano Rebouas 1874 Transporte Ferrovirio Plano Morais 1879 Transporte fluvial Plano Bicalho 1881 Transporte fluvial e ferrovirio Plano Bulhes 1882 Transporte fluvial e ferrovirio
1 Plano Republicano 1890 Transporte fluvial e ferrovirio Plano Calgeras 1926 Transporte Ferrovirio
Estudo de Paulo de Frontin 1927 Transporte ferrovirio Fonte: LOPES e SOBRINHO (1951, p. 156)
31
A partir de ento, diversos foram os planos de desenvolvimento que definiram a
construo e os investimentos em transportes e, conseqentemente, na organizao do territrio
brasileiro13.
1) Plano da Comisso Mista Brasil-Estados Unidos (1951/1952): este plano estava
voltado mais para reabilitar o sistema de transporte, j que houve um desequilbrio nos
investimentos que ajudaram no trfego rodovirio e areo e prejudicaram o ferrovirio e
cabotagem. Para a sua formulao, este plano considerou conceitos de germinao e
estrangulamento.
2) Programa de Metas (1956/1960): o objetivo do plano era promover a integrao
vertical da estrutura industrial. Para o setor ferrovirio, foi dada prioridade a linhas com
indiscutvel significao econmica e variantes para eliminar trechos onerosos. Com a criao
da RFFSA foi possvel centralizar os programas de reaparelhamento e construo das ferrovias.
Utilizou conceitos de pontos de crescimento e pontos de estrangulamento.
3) Plano Trienal de Desenvolvimento Econmico-Social (1963/1965): tinha como
objetivo corrigir as distores econmicas e sociais resultantes do acelerado esforo de
industrializao dos anos precedentes. Os investimentos foram orientados para harmonizar a
estrutura da produo demanda, permitindo a interligao das regies de grande potencial
econmico.
4) Programa de Ao Econmica do Governo PAEG (1964/1966): dentre alguns dos
objetivos bsicos desse programa, possvel destacar a reativao do ritmo de desenvolvimento
econmico, a reduo progressiva da inflao e a reduo das desigualdades regionais e setoriais.
destacado tambm a necessidade de reduzir as despesas da Unio. Com relao aos transportes,
o programa previa a racionalizao das operaes dos servios e a melhora na seleo de
investimentos.
5) Programa Estratgico de Desenvolvimento PED (1968/1970): o objetivo bsico do
programa era o desenvolvimento econmico auto-sustentado. Quanto ao subsetor de transportes,
os objetivos eram: a) garantir uma infra-estrutura adequada, eficiente e integrada das vrias
modalidades de transportes; b) proporcionar do lado da demanda e do lado da oferta, condies
13 Fontes consultadas sobre os planos: BRASIL (1972, 1980), BARAT (1978, p. 119-137), CARDOSO (1998), GARTENKRAUT (2002) e www.planejamento.gov.br.
32
para a expanso do PIB; c) orientar as empresas nacionais para o fortalecimento do poder
competitivo, visando o aperfeioamento das polticas de investimentos e de tarifas.
Os investimentos propostos pelos planos demonstram, claramente, as intenes de
promover o sistema rodovirio, por conta da integrao do territrio, e desestimular o uso das
ferrovias. Nesses planos apresentados, enquanto a previso dos investimentos para o sistema
ferrovirio foi reduzida de 38% para 16% do total de investimentos, o rodovirio foi aumentado
de 26% para 59% (TABELA 2.4).
6) I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972/1974): o modelo de desenvolvimento
tinha como objetivo principal alterar o modo de organizao do Estado e das instituies para
transformar o Brasil, atendendo alguns objetivos: a) colocar o Brasil na categoria das naes
desenvolvidas; b) duplicar at 1980 a renda per capita; c) crescimento anual do PIB entre 8% e
10% ao ano. Alguns programas de desenvolvimento regionais foram institudos, como o PIN -
Programa de Integrao Nacional (rodovias Transamaznica e Cuiab-Santarm) e Proterra -
Programa de Redistribuio de Terras e de Estmulos Agroindstria do Norte e do Nordeste. O
investimento previsto no subsetor de transportes era de 9% do PIB (ver mais informaes sobre
os investimentos nos ANEXOS 3 e 4).
7) II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975/1979): o modelo de desenvolvimento
adotado deveria considerar a influncia de fatores internacionais, principa