Post on 01-Oct-2018
1
CANTIGAS DE ROMARIA: QUANDO O SAGRADO E O PROFANO
SE ENCONTRAM doi: 10.4025/XIIjeam2013.rosa44
ROSA, Célia Santos da
INTRODUÇÃO
As primeiras manifestações literárias da poesia lírica trovadoresca galego-
portuguesa, cantigas de amor e cantigas de amigo, na Península Ibérica, datam,
provavelmente, dos fins do século XII. As cantigas de amigo testemunham a existência no
Noroeste da Península Ibérica de um lirismo muito antigo. Lirismo não importado, como
os gêneros cultos importados da Provença, essa modalidade lírica é considerada autóctone,
própria da terra. A jovem solteira é a protagonista destas composições. Ela anda pela
ribeira a cantar, a lavar roupa ou a dançar com as amigas confidentes, sob os ramos
floridos das avelaneiras. A moça num discurso simples, apaixonado e emotivo, exprime os
seus sentimentos, todas as preocupações, ao seu amigo (namorado) que se foi para a
guerra, deixando-a muito infeliz.
O grande tema das cantigas de amigo é a saudade. Há repercussão da realidade
social nestas composições, “porque as expedições militares e marítimas, as retiradas para
cas d'el-rei (casa do rei), mais de uma vez provocaram os dramas da ausência saudosa – ou
esquecimento infiel” (CIDADE, 1997, p. VIII). As cantigas de amigo constituem a
expressão da vida dos namorados, em tom de confidência espontânea, ao transmitirem com
verossimilhança o estado da alma das moças apaixonadas.
A presença do espaço ocupa um lugar de destaque nas composições. Abdala Junior
e Paschoalir (1994) enfatizam que as paisagens naturais como o riacho, a fonte (local dos
encontros amorosos ou de lavar os cabelos e as roupas), as praias (quando há referência às
ondas do mar) e as árvores (os ramos floridos das avelaneiras, por exemplo)
contextualizam o ambiente e atuam sobre o “eu” feminino, despertando o amor, ou a
confissão do desejo, “é o ambiente com a atuação animista integrando sentimentos e
objetos” (ABDALA JUNIOR; PASCHOALIR, 1994, p. 15). Maleval (1999) explica que a
2
ambientação, os lugares como ermidas, fontes e mar, árvores floridas, locais de encontros
dos namorados, levam o leitor ao estabelecimento de subgêneros. Um destes subgêneros é
a cantiga de romaria, foco de nosso estudo.
1. REFERENCIAL TEORICO
1.1 PEREGRINAÇÃO
A busca por lugares em que se possa entrar em contato com o sagrado é uma prática
comum nas culturas de todos os tempos, "a peregrinação é um fenômeno quase universal
na antropologia religiosa" (SOT, 2002, p.353). A peregrinação se caracteriza por ser uma
viagem, uma caminhada, uma prova física do espaço. Esta faz com que o peregrino seja
um estrangeiro por onde passe, não só aos olhos dos outros, mas também em relação ao
que era antes de colocar a caminho, explica Sot (2002). Etimologicamente peregrino
(peregrinus) significa expatriado ou exilado. A peregrinação é uma prova espiritual. A
caminhada possui um fim especifico no final da jornada o peregrino participara de uma
realidade diferente da profana, encontrando o sobrenatural num lugar determinado. Em
suma, a peregrinação é um tempo de festa e celebração.
De acordo com Baschet (2006), há vários motivos que levam a peregrinação,
promessas, esperança de cura. No século XI e XII, a peregrinação poderia também ser
realizada devido à imposição do clero, como forma de penitência. No entanto, qualquer
que seja o motivo que leve a peregrinação, ela se reveste de um contorno penitencial, no
mínimo em função das penas e sofrimentos que o caminho impõe.
Segundo Flori (2002), o primeiro impulso da peregrinação situa-se no século VIII
com o desenvolvimento das penitências tarifadas. A Igreja exigia a realização de uma
penitência como forma de obter remissão plena dos pecados revelados em confissão. Flori
(2002) afirma que estas penitências iriam desde a entrada num mosteiro até o exílio. Em
casos graves, como assassinato, adultério e incesto, cada vez mais a Igreja exigia a viagem
como penitência até um lugar santificado, por exemplo, o túmulo de um santo. Jerusalém é
a peregrinação acima de todas, devido ao túmulo do ressuscitado. As peregrinações são
objetos de votos individuais, com motivações diversas, voluntárias, intelectuais ou
místicas.
3
O sucesso da peregrinação, segundo Flori (2002), deve-se a uma mudança de
mentalidade religiosa.
A peregrinação corresponde perfeitamente bem à espiritualidade dos leigos que aspiravam pela salvação, particularmente os guerreiros, os cavaleiros, que a Igreja manteve por muito tempo sob suspeita em razão de sua profissão (FLORI, 2002, p. 11).
Toda a peregrinação é na Idade Média, uma aventura, um risco. Muitas vezes,
quando o destino é longínquo, as pessoas redigem seu testamento antes da partida, e
colocam em ordem os seus negócios, como se viagem fosse sem volta, constata Baschet
(2006). De certa maneira o peregrino morre para o mundo ao iniciar a caminhada rumo aos
locais sagrados, ao retornar é outro homem, declara Sot (2002).
Somente, na época carolíngia é que a peregrinação a um lugar fixado
antecipadamente e regida por critérios estritos, a indispensável autorização clerical, toma o
lugar da andança errante penitencial, sem objetivo. Nos primeiros séculos da Idade Média,
a viagem penitencial era mais importante que o destino da viagem. Sot (2002) ressalta que
somente nos séculos XI e XII que a palavra peregrinus deixou de significar o expatriado
para assumir o sentido de "viajante religioso". Contudo, a peregrinação cristã enfatiza mais
a pessoa que se pretende encontrar do que o lugar em que ela se encontra, Cristo na Terra
Santa, Tiago, o Maior, em Compostela, ou Pedro e Paulo em Roma. É a união entre o ideal
de expatriação e a busca de um lugar santificado que confere à peregrinação cristã o
sentido pelo qual é concebida ainda hoje.
Os corpos dos santos permitem constituir através de toda a Europa, uma rede de
lugares sagrados que atraem peregrinações. Baschet (2006) explica que as cidades, que
atraem as grandes peregrinações, não se encontram geograficamente no centro da
cristandade, mas em suas margens ou mesmo fora dela. Este é o caso de Jerusalém e dos
lugares santos da Palestina, locais de peregrinação por excelência, pela distância e pela
dificuldade do caminho, que fazem a provação mais alta. Além disto, permite ao peregrino
entrar em comunhão direta com o próprio Cristo.
A peregrinação a Santiago de Compostela, para Baschet (2006), é a grande
invenção medieval. Ela repousa sobre um conjunto de fatos lendários, desprovidas de
fundamentos históricos, que se forma entre os séculos VIII e XI. Segundo o pesquisador,
surgem as narrativas da invenção das relíquias identificadas como sendo as de São Tiago, e
4
também a lenda de uma pregação do apóstolo na Península Ibérica.
A lenda da pregação do apóstolo Santiago na Espanha foi elaborada entre os
séculos VII e XIII, de acordo com Sot (2002), e apoia-se na descoberta de relíquias
consideradas de Tiago, o Maior, entre 788 e 838. Inspirado por visões um eremita chamado
Pelágio teria descoberto o corpo do apóstolo num túmulo de mármore. Os historiadores
não acreditam mais que se tratasse do corpo do santo, que dificilmente teria ido à Espanha.
Possivelmente, um corpo descoberto em um antigo cemitério cristão em torno do ano 800,
devido à má interpretação de uma inscrição teria sido relacionado com a lenda
preexistente.
Baschet (2006) considera que a invenção e a promoção de Compostela podem ser
postas em relação a sua localização marginal. A Galícia é um fim de mundo, e abre-se para
o desconhecido oceano, além disso, é uma fronteira com o mundo infiel. Há o vínculo da
peregrinação com a Reconquista. A peregrinação a Compostela é favorecida pelos
soberanos hispânicos, pois reforça os reinos e manifesta a unidade da cristandade,
simbolicamente convocada para fazer face aos mulçumanos.
A peregrinação constitui um fator de unidade. O peregrino é um estrangeiro, que
percorre por lugares diversos, com povos que falam uma língua diferente da sua. No
entanto, o peregrino pode constatar que se encontra em terra cristã, contando sempre com
asilo nas Igrejas. A fé é partilhada por todos os povos, apesar de suas línguas serem
diferentes. A travessia dos territórios e a convergência implicada pela peregrinação
desenham pela própria forma dos itinerários, a unidade da cristandade.
Segundo Baschet (2006), na Idade Média, a peregrinação não é apenas um
deslocamento material, ela também é uma metáfora, toda a vida terrestre é pensada como
uma peregrinação. O homem na terra é um peregrino caminhando em meio às provações
mundanas e desejando atingir sua pátria celeste. A vida na terra é vista como passagem,
uma vez que a verdadeira moradia é o além celeste.
1.2 CANTIGAS DE ROMARIA
A designação poesia trovadoresca abrange as composições em verso, líricas e
satíricas, a lírica refere-se às cantigas de amigo e as cantigas de amor, e a satírica designa
as cantigas de escárnio e maldizer. Ferreira (s/d) afirma que as primeiras manifestações
5
literárias da poesia lírica trovadoresca galego-portuguesa, na Península Ibérica, datam,
provavelmente, dos fins do século XII.
O nome trovadorismo deriva de trovador, maneira pelo qual o poeta era chamado
em Portugal. Na Provença, grande centro de atividade lírica, o poeta recebia o nome de
troubador. Segundo Moisés (1986), o radical da palavra troubador vem de trouver (achar),
significando que o poeta devia ser capaz de compor, achar sua canção, cantiga ou cantar. A
poesia trovadoresca era cantada com acompanhamento musical e possuíam uma estreita
aliança com a música, o canto e a dança. As composições eram acompanhadas de
instrumentos de sopro, corda e percussão, de acordo Moisés (1986). O trovador tocava o
instrumento, especialmente os de corda, ou deixava a parte instrumental para um
acompanhante, jogral ou menestrel.
Carvalho (1995) explica que a designação trovador servia para todos aqueles que
compunham cantigas, trovas e que as cantavam. No entanto, o termo foi reservado apenas
àqueles poetas de alta estirpe social, que não tinham necessidades econômicas, por isso,
trovavam só pelo amor de poetar. O poeta que trovava por dinheiro recebia o nome de
segrel e compunha textos poéticos quando lhe pagavam por isto. Os segreis eram homens
de origem nobre, mas de nobreza decadente. Percorriam as cortes em busca de meios de
subsistência, apresentando as cantigas na companhia de instrumentistas e cantores. Havia
também os menestreis, homens sem nobreza que geralmente não compunham as cantigas,
porém, tocavam instrumentos e cantavam trovas compostas por outros. Os jograis eram
acompanhados por mulheres que dançavam, cantavam e tocavam pandeiros e castanholas.
Elas recebiam como pagamento o soldo, devido a isto eram conhecidas como soldadeiras,
explica Carvalho (1995). Estas mulheres eram mais conhecidas pelo seu comportamento
licencioso do que pela qualidade das suas apresentações artísticas.
A poesia trovadoresca por ser transmitida oralmente, passou a ser transcrita em
pequenos cadernos, com a finalidade de impedir a perda. Um pouco mais tarde, com o
objetivo de guardar esta poesia, definitivamente, contra qualquer perda, as letras das
cantigas foram transcritas em coletâneas de canções denominadas cancioneiros. Isto era
realizado por ordem do mecenas, especialmente os reis. Desses cancioneiros, três merecem
destaque Cancioneiro da Ajuda, composto nos fins do século XIII, contendo 1310 cantigas,
quase todas de amor; Cancioneiro da Biblioteca Nacional que contém 1647 cantigas de
6
todos os tipos, englobando trovadores dos reinados de Afonso III e de D. Dinis; e o
Cancioneiro da Vaticana com 1205 cantigas de todos os gêneros.
A religiosidade das populações, segundo Ferreira (s/d), se traduz nas romarias às
numerosas ermidas, as cantigas de romaria apresentam uma estreita ligação com a
realidade peninsular. Nestas composições, a moça se propõe a comparecer no santuário
para rezar e cumprir promessas ou relata a sua peregrinação, “os motivos dessas romarias
nem sempre são de pura devoção (...) é apenas a ocasião de um encontro com o namorado,
muitas vezes no dia da festa do patrono, outras vezes um disfarce do ato de devoção”
(LEMOS, 1990, p. 48). Os encontros amorosos em festas e locais de culto cristão
pertencem a uma longa tradição popular, de acordo com Maleval (1999). Cidade (1972)
constata que como ainda hoje, frequentemente, sucede, a devoção pelo santo é inferior à
obsessão amorosa.
As entrevistas amorosas, geralmente, ocorrem nas romarias junto ao santuário. As
moças nessas ocasiões podem exibir suas habilidades coreográficas, seus vestidos novos,
para o amigo. Enquanto a mãe se entrega às devoções, as moças aproveitam para encontrar
o namorado, ou avistar-se com ele.
Maleval (1999) considera que os encontros amorosos em festas e locais de culto
cristão, representados nas catingas de romarias, possuem uma longa tradição popular. Os
santuários, peregrinações e feiras eram lugares em que o povo se encontrava. De acordo
com Vasconcelos (1999):
São em países de pequenos agricultores, dispersos em casais, como a Galicia e o norte de Portugal, o centro principal e quase único de grandes reuniões festivais de gente de todas as classes, com predomínio da Arrais miúda. Em plena natureza é que a alma ingênua e rude do povo manifesta as suas tendências e aspirações. (...); é aí que a mocidade de ambos os sexos conversa e namora com maior liberdade, consagrada pela tradição. (VASCONCELOS, 1904-1990 apud MALEVAL, 1999, p. 34).
As romarias se apresentam como resquícios do sincretismo religioso. Na
oportunidade de participar das rezas, fazer ou cumprir promessas em locais privilegiados
incluía-se o desejo de encontrar (ou conhecer) o amigo ou namorado, segundo Maleval
(1999), sem o estigma da culpa ou do pecado. Assim, o motivo religioso e o tema
sentimental são unidos nas cantigas de romaria.
O trovadorismo ibérico apresenta como fator de desenvolvimento a peregrinação a
7
Santiago de Compostela e a outras cidades famosas pelos seus santuários, de acordo com
Maleval (1999).
O prestígio jacobeo muito contribuíra para o desenvolvimento do Trovadorismo ibérico [...] o Caminho permitira a interação entre os trovadores occitanos, mestres na arte de trovar sobre "fin' amors", e a tradição poética autóctone, a que certamente se filiam os peculiares "cantos de mulher" desse noroeste da Península Ibérica (MALEVAL, 1999, p. 23).
Carvalho (1995) constata que o norte de Portugal continua ainda nos dias atuais a
ser um importante lugar de romarias tradicionais, onde a alegria do povo se manifesta sob a
proteção dos santos e das santas que propiciam o pretexto do encontro. Os modelos de
canções populares, segundo Carvalho (1995), cantadas nas romarias na vida cotidiana nos
campos, teriam inspirado os poetas posteriores. O tema das romarias proporciona aos
poetas belíssimas descrições líricas com pormenores de grande sentimento estético.
As cantigas de romaria são originárias do Ocidente da Península, refletindo as
tendências naturais e o modo de vida do povo dessa região. As composições documentam a
religiosidade das populações manifestadas nas romarias às numerosas capelas das
pequenas localidades e também às cidades maiores como Santiago de Compostela, Lisboa,
Faro entre outras.
Os lugares de romaria e peregrinação, espaços sagrados, eram buscados com a
intenção de fazer ou de cumprir promessas. Contudo, como demonstram as cantigas de
romaria, essa busca não era movida apenas pela fé religiosa, pois havia também as causas
sentimentais. De acordo com Correia (1978), nas cantigas de romaria, as preces da jovem
ao santo para que este lhe traga o namorado, estão relacionadas com os rituais antigos,
talvez célticos e, quem sabe, romanos ou até mesmo africanos, implorando aos
antepassados ou forças da natureza, proteção e ajuda. Segundo a autora, as cantigas,
realmente, tinham estreita relação com rituais onde a mulher exerce um papel muito
importante. Ainda hoje nas comunidades africanas são reservados a ela certos papéis,
inclusive os relacionados com o fogo.
8
3. OBJETIVO
Objetivamos apresentar uma leitura das cantigas líricas trovadorescas,
especificamente em cantigas de romaria, tendo como foco o espaço sagrado. Informações
sobre o contexto histórico, cultural e religioso medieval dos séculos XIII e XIV foram
importantes para a concretização deste estudo.
4. METODOLOGIA
Para que o estudo em questão se concretize, metodologicamente, as noções teóricas
sobre espaço estão contempladas no projeto. O estudo do espaço sagrado nas cantigas de
romaria faz-se necessário pelo fato de que o espaço é uma importante categoria tanto na
narrativa literária como na poesia, uma vez que tem a função de revelar o caráter e o
comportamento das personagens. Assim não é indiferente a localização da ação num
espaço natural ou construído, num espaço rural (aldeia) ou num espaço urbano (a cidade).
A articulação entre micro-espaço, como a rua ou a praça, a alternância entre o espaço
interior e o exterior, tudo se conjuga na narrativa e no texto poético para lhes conferir
significado coerente e uma determinada visão do mundo. Santos e Oliveira (2001)
distinguem o espaço da narrativa e o espaço no texto poético, enquanto aquele tende a estar
associado a referências internas ao plano ficcional, o espaço no texto poético pode eleger a
própria palavra como um espaço “o signo verbal não é apenas decodificado
intelectualmente, mas também sentido em sua concretude” (p.74).
A base que nos orientará, no que diz respeito ao efeito do texto sobre o leitor, será a
Estética da Recepção. A história literária articula tanto a recepção atual de um texto quanto
sua recepção ao longo da história, e ainda a relação da literatura com o processo de
construção da experiência de vida do leitor. O texto só adquire existência no momento da
leitura e os “resultados” ou “efeitos” dessa leitura são fundamentais para que se pense seu
sentido.
Os textos são passíveis de diferentes recepções porque lidos por públicos diferentes
no tempo e no espaço, o status desses textos também se modifica. O valor estético de um
texto é medido pela recepção inicial do público, que o compara com outras obras já lidas.
9
5. DESENVOLVIMENTO
As cantigas de romaria fazem referência às cidades e locais de intensa romaria e
peregrinação na Idade Média. Esses espaços, considerados sagrados, eram procurados com
a intenção de fazer e cumprir promessas. Contudo, determinados textos demostram que o
motivo da busca destes lugares não era apenas religioso, pois havia também o motivo
sentimental. Na cantiga de Airas Corpancho a moça deseja ir em romaria a Santiago de
Compostela:
De fazer romaria pug'en meu coraçon a Sant' Iag' un dia, por fazer oraçon e por ueer meu amigo logu'i. E se fezer [bon] tempo e mha madre non fôr, querrey andar mui leda, por parecer melhor e por ueer meu amigo logu'i. Quer'eu ora mui cedo prouar se poderey hir queymar mhas candeas con gran coita que ey, e por ueer meu amigo logu'i. (Nunes, 1970, p. 192)
Nesta composição a jovem revela o motivo que a leva procurar Santiago de
Compostela, fazer oração e encontrar-se com o namorado que estaria neste local. A
romaria é a ocasião esperada para ver e se exibir ao amado. A jovem vai bela para o
encontro, como demonstra o seguinte trecho da cantiga de D. Afonso Lopes de Baian:
Hyr quer' oi' eu, fremosa, de coraçon, por fazer romaria e oraçon, a sancta Maria das Leyras, poys meu amigo hy uen. (NUNES, 1970, p.238).
A donzela dirige-se a Santa Maria das Leiras. A ocasião exige que a jovem
apresente-se bela, “fremosa”, não para cumprir as exigências da romaria e fazer oração,
mas para ver o namorado que está no local. O encontro com o amado proporciona grande
felicidade a jovem. Visitar o espaço sagrado era uma das raras oportunidades da jovem sair
10
de casa para realizar conquistas ou encontros amorosos, como monstra este trecho da
composição de Joan de Requeixo:
Fui eu, madr', em romaria a Faro com meu amigo e uenho d'el namorada, por quanto falou comigo, ca mi iurou morria por mi: tal bem mi queria! (NUNES, 1970, p.219).
A menina sente-se muito feliz devido ao fato de ter falado com o amado. A procura
pelo espaço sagrado de Faro – cidade portuguesa, capital do Distrito de Faro – foi o que
proporcionou o encontro com o namorado. Neste local os namorados puderam confessar
seus sentimentos, o amigo finalmente revela o amor que sente pela jovem, um sentimento
tão profundo que o faria morrer pela moça. É nos locais de romaria e peregrinação que os
jovens enamorados se encontram, como podemos averiguar na cantiga de Martin de
Guinzo:
Non mi digades, madre, mal(s) e irei vee-lo sem verdade que namorei na ermida do soveral u m'el fez muitas vezes coitad'estar, na ermida do soveral (CORREIA, 1978, p.148)
A ermida de Soveral – localizado na aldeia de Sobral, em Santa Marina de Guinzo
– é o local de encontro dos enamorados nesta cantiga de romaria. A jovem confessa a mãe
que namorou na ermida de Soveral. Porém, ao contrário da cantiga de Joan de Requeixo,
em que a moça sente alegria por ter ido a Faro e falado com o amigo, nessa composição o
local de encontro não trás apenas felicidade, mas também sofrimento, “coitad'estar”. No
entanto, mesmo sofrendo a moça deseja ir à ermida de Soveral para encontrar-se com a
amado. Ela pede que mãe não recrimine sua atitude em encontra-se com o amado, mesmo
após o sofrimento que ele lhe causou. Em certas cantigas o sofrimento da jovem é causado
pela recusa da mãe em não permitir a menina ir em romaria.
Non poss-er, madre, ir a Santa Cecilia ca me guardades a noit'e o dia do meu amigo.
11
(…) Ca me guardades a noit'e o dia; morrer-vos ei com aquesta perfia por meu amigo. (CORREIA, 1978, p.150).
Nesta outra cantiga de Martin de Guinzo, a moça em tom lamentoso queixa-se da
proibição da mãe que não a deixa ir a Santa Cecília. A moça deseja ir até o local com o
intuito de encontrar o namorado. A menina se encontra sob vigilância da mãe, que não a
permite ver o namorado. O sofrimento da jovem é tal, devido a não se encontrar com seu
amado, que a levará a um fim trágico, a morte por amor, “morrer-vos ei com aquesta perfia
/ por meu amigo” (CORREIA, 1978, p.150). A mãe nesta cantiga é opositora da jovem,
pois não permite a ida a Santa Cecília, consequentemente o encontro dos namorados.
Maleval (1999) afirma que a mãe na maioria das cantigas de romaria funcionará como
opositora da moça, proibindo-lhe a ida. Certas cantigas registram o momento em que a
menina pede permissão à mãe para ir encontrar-se com o amigo na romaria, como na
cantiga de Joam Servando:
A San Seruand', u ora uan todas orar; madre uelida, por Deus uin uo-lo roguar que me leixedes alá hir, a San seruand', e, se o meu amigo ui, leda serey, por non mentir. (NUNES, 1970, p.215).
A menina pede permissão da mãe para ir até San Servando – antiga basílica
construída na cidade de Toledo, em uma comunidade autônoma de Castilha de La Mancha,
na Espanha. O tratamento que a moça utiliza-se com mãe é um forte indício do quanto ela
pretende ser persuasiva, par convencer a mãe a lhe deixar ir à romaria “madre uelida, por
Deus uin uo-lo roguar” (NUNES, 1970, p.215). O motivo que leva a jovem a ir até San
Servando, além do religioso, é o sentimental. O amigo da jovem estará neste local, ela diz
que ficará feliz se o encontrar, “a San Seruand', e, se o meu amigo iur, / leda serey, por non
mentir.” (NUNES, 1970, p.215). A moça anseia tanto pela permissão da mãe que roga por
Deus “por Deus uin uo-lo roguar” (NUNES, 1970, p.215). De acordo com Lemos (1990), a
religiosidade da rapariga, em certas cantigas, apresenta-se ingênua e simplória, quando se
aborrece com o santo porque ele não ouve os seus pedidos, como ocorre na cantiga de
Nuno Fernandez Torneol:
12
Non uou eu a San Clemenço orar e faço gram razon, ca el non mi tolh' a coyta que trago' no meu coraçon, nen mh-aduz o meu amigo, pero lho rogu ' lho digo. Non uou a San Clemenço nen el non se nenbra de mi, nen mh-aduz o meu amigo, que sempr' amey, des que o ui, nen mh-aduz o meu amigo, pero lho rogu ' lho digo. (NUNES, 1970, p.226).
Há um grande sofrimento, “coyta”, provocado pela ausência do namorado, a jovem
roga ao santo que lhe traga o amado, porém como ele não a atende, ela se queixa
afirmando que o santo não se lembra dela, “non el non se nenbra de mi” (NUNES, 1970,
p.226). A jovem se revolta contra o santo e nega-se a participar da romaria.
Por meio das romarias as moças adquirem maior liberdade, “é quase sempre na
romaria, junto do santuário, que a entrevista amorosa se realiza, lá que as habilidades
coreográficas, os vestidos novos se exibem, para encanto do amigo” (CIDADE, 1972, p.
VII).
Poys nossas madres uam a Sam Simon de Val de Prados candeas queymar, nós, as meninhas, punhemos d ' andar con nossas madres, e elas enton queymen candeas por nós e por ssy, e nós, meninhas, baylaremos hy (NUNES, 1970, p.215).
A cantiga de Pero Viviaez demonstra que as moças ao procurar o espaço sagrado,
no caso San Simon de Val de Prados, possuem o intuito de se divertirem. É neste local que
elas poderão se exibirem para os amigos, longe do olhar protetor da mãe. Enquanto as
mães vão em romaria com a intenção de acender velas, as filhas desejam andarem
livremente. Nesta cantiga há união entre o sentimento religioso, expresso pelas mãe, e o
sentimento amoroso, representado pelas filhas. Portanto, é nas romarias que as jovens
adquirem uma maior liberdade. Lembrando que no período medieval, as moças raramente
tinham liberdade para sair de casa e realizar suas conquistas e encontros amorosos.
13
CONCLUSÕES
As peregrinações são extrema importância na época medieval, importância que se
estende até os dias atuais. A peregrinação é um fenômeno que atinge grande parte das
culturas, seja ocidental ou oriental. Nas cantigas de romaria as peregrinações surgem não
apenas com fins religiosos, mas também com finalidades profanas, isto, o encontro
amoroso. O sagrado e o profano se encontram nas cantigas de romaria, a linha que separa
estes dois polos é tênue nas cantigas de romaria. A jovem, que participa das romarias e
peregrinações, não procura o espaço sagrado apenas com finalidades religiosas. Ela busca
o espaço sagrado com intenções consideradas profanas. Nestes locais, os jovens podem
encontrar-se sem o estigma da culpa e do pecado. É importante, ressaltar que as romarias
são uma das raras ocasiões em que a jovem adquire certa liberdade, longe dos olhares
maternos, ela pode se exibir aos olhares do namorado, sem sofrer reprimendas da mãe.
Portanto, nas cantigas romaria ocorre o encontro entre o sagrado e o profano.
REFERÊNCIAS:
ABDALA JUNIOR, Benjamin; PASCHOALIR, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1994.
BASCHET, Jérônimo. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
CARVALHO, Romulo de. O texto como documento social. Lisboa: Fundação Caluste Gulbenkian, 1995.
CIDADE, Hernani. Poesia medieval - cantigas de amigo. Lisboa: Serra Nova, 1972.
CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galego-portugueses. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.
FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Poesia e Prosa Medievais. Lisboa: Ulisseia, s/d.
FLORI, Jean. Jerusalém e as cruzadas. Trad. José Rivair Macedo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval - volume II. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.
LEMOS, Esther de. A literatura medieval. A poesia. In: História e antologia da literatura portuguesa séculos XIII e XIV. Lisboa: Gulbenkian, p. 39-50, 1990.
14
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e Poesia. Rio de Janeiro: Editora Ágora da Ilha, 1999.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1986.
NUNES, J. J. Crestomatia Arcaica – excertos da literatura portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Edtora, 1970.
SANTOS, Luís Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa. Introdução à teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SOT, Michel. Peregrinação. Trad. José Rivair Macedo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval - volume II. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.