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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL

    PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA - MESTRADO

    SADE MENTAL NA ATENO BSICA:

    UM ESTUDO HERMENUTICO-NARRATIVO SOBRE O APOIO MATRICIAL

    NA REDE SUS-CAMPINAS (SP)

    MARIANA DORSA FIGUEIREDO

    Campinas, Fevereiro de 2006

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL

    PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA - MESTRADO

    SADE MENTAL NA ATENO BSICA:

    UM ESTUDO HERMENUTICO-NARRATIVO SOBRE O APOIO MATRICIAL

    NA REDE SUS-CAMPINAS (SP)

    MARIANA DORSA FIGUEIREDO

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-graduao em Sade Coletiva, do Departamentode Medicina Preventiva e Social da Faculdade deCincias Mdicas da Universidade Estadual de

    Campinas, para obteno do ttulo de mestre emSade Coletiva.

    Orientadora: Profa. Dra. Rosana Onocko Campos

    Campinas, Fevereiro de 2006

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    Ao meu pai (na memria),que me narrava histrias antes de dormir.

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    Agradecimentos

    Enfim, posso tentar retribuir com essas lembranas queles que me

    apoiaram na realizao desse trabalho, espero que continuemos trocando.

    Rosana, mais que orientadora... Pela aposta e confiana, sempre

    muito bem combinadas sutileza com que me assegurava nos momentos de

    hesitao. Meu agradecimento e respeito por todos esses anos de formao.

    s equipes do Centro de Sade So Marcos, em particular Vera, Dra.

    Valria e Dr. Pedro. Do nosso trabalho surgiram as indagaes que me

    impulsionaram ao mestrado.

    Agradeo especialmente a todos os profissionais que trouxeram sua voz

    nos grupos focais, gentilmente se deslocando de suas Unidades para tornar

    possvel essa pesquisa, e que constroem no cotidiano os novos rumos da

    sade mental.

    Cilene, Rosa, Ana Carla, Carol, Stella e Gabi, porque se desdobraram

    para pensar comigo a composio dos grupos focais, e deles participaram,

    empenhadas na concretizao de tantos desafios da Reforma.

    Gabi, em especial, que durante anos de convivncia me inspirava a

    seguir pela Sade Coletiva.

    Clarice, pela sua contribuio nas discusses e pela paixo e

    delicadeza com que desenvolve seu trabalho.

    rsula e Nusha, pelas sensveis observaes durante os grupos

    focais.

    Ao Juarez Furtado, pelos apontamentos sempre enriquecedores.

    Ao Gasto Wagner, cuja obra me mobiliza at aqui e para alm.

    Aos professores Everardo Nunes e Paulo Dalgalarrondo, pelas valiosascontribuies no exame de qualificao.

    turma do mestrado, pois, acompanhadas, era mais fcil seguir.

    Ao nosso grupo de pesquisa. Processando dvidas hermenuticas

    sempre com bom humor.

    Rose, pelo bem vindo socorro em algumas transcries.

    Ao CNPq, pelo financiamento da pesquisa.

    Ao Regis, pela sua fantstica ttica de ensinar ingls para quem teimavano querer aprender.

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    Nusha (de novo), pela amizade inigualvel e pelas conversas de fim

    de tarde, quando dividimos as alegrias e as dores da vida enquanto passeamos

    com nossos cachorros.

    Ao Nelson e Larissa (pais da Elis), querido casal que me incentivou

    tanto, da reviso do projeto sincera comemorao pela minha entrada no

    mestrado, e depois as perguntas interessadas sobre o trabalho.

    Ao Andr, pelas interlocues interminveis que adoramos e porque

    pudemos compartilhar nossas experincias (por vezes dolorosas) de ter a

    palavra como isca de sentidos.

    Leo, amiga decidida, por me mostrar que na vida podemos o quanto

    queremos.

    Aos queridos Cronpios, que fazem a hora do almoo incrivelmente

    familiar, saborosos momentos-vrgula no trabalho de escrever.

    minha famlia. Me, de quem herdei a determinao. Marina, Srgio e

    Lucas, Marcelo e Gr, vibram comigo a cada conquista. Lvia, pequena sapeca,

    porque veio e nos chama a brincar.

    Ao Marcus, minha paixo... Suportando minha ansiedade e

    compenetrao exageradas nos momentos mais cruciais da pesquisa, me

    lembrava que ela era somente mais uma das delcias da minha vida.

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    A solidez da terra, montona,

    parece-nos fraca iluso.

    Queremos a iluso grande do mar,multiplicada em suas malhas de perigo.

    CECLIA MEIRELES

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    Sumrio

    Resumo......9

    I. Introduo...........................................................................................11

    No passo da Reforma.11

    A sade mental na rede bsica.....14

    Uma rede ou um emaranhado?..............................................................19

    O Apoio Matricial: imbricando sade e sade mental.......25

    Sade mental e Apoio Matricial no Paidia Sade da Famlia...............33

    II. Objetivos..40

    III. Pressupostos metodolgicos.........................................................41

    IV. O trabalho de campo...47

    Tcnica de coleta dos dados: grupos focais...........................................49

    Os grupos focais em ao.......................................................................53

    V. Interpretao: a narrativa alinhavando sentidos...........................57

    VI. Referencial terico comum.............................................................62

    VII. As narrativas: diferentes olhares sobre o Apoio Matricial.........66

    1) O que diz a sade mental?.................................................................66

    2) A vez das Equipes de Referncia: Parte I..........................................833) A vez das Equipes de Referncia: Parte II.........................................95

    4) Da perspectiva do gestor..................................................................104

    VIII. A meta-narrativa: tecendo o nosso enredo..............................117

    IX. Referncias bibliogrficas............................................................132

    Anexos.................................................................................................141

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    Lista de abreviaturas

    AB: Ateno Bsica

    APS: Ateno Primria em Sade

    CAPS: Centro de Ateno Psicossocial

    CEVI: Centro de Vivncia Infantil

    CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    CONASP: Conselho Consultivo da Administrao de Sade Previdenciria

    CRAISA: Centro de Referncia e Ateno Integral Sade do Adolescente

    CRIAD: Centro de Referncia e Informao sobre Alcoolismo e Drogadio

    CS: Centro de Sade

    ER: Equipe de Referncia

    FCM: Faculdade de Cincias Mdicas

    MS: Ministrio da Sade

    NAC: Ncleo de Ateno Crise

    NADEQ: Ncleo de Dependncias Qumicas

    NAPS: Ncleo de Ateno Psicossocial

    NOT: Ncleo de Oficinas e Trabalho

    OMS: Organizao Mundial da Sade

    ONG: Organizao No-Governamental

    PSF: Programa de Sade da Famlia

    PTS: Projeto Teraputico Singular

    SADA: Servio de Ateno s Dificuldades de Aprendizagem

    SM: Sade Mental

    SMS: Secretaria Municipal de Sade

    SRT: Servio Residencial TeraputicoSUS: Sistema nico de Sade

    TO: Terapia Ocupacional

    UBS: Unidade Bsica de Sade

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    Resumo

    Na presente investigao realizamos uma anlise sobre a organizao

    das aes de sade mental na rede bsica de sade de Campinas (SP), a

    partir da implantao do arranjo de gesto denominado Apoio Matricial. Esse

    arranjo visa disparar a ampliao da clnica das equipes interdisciplinares de

    sade e reorientar a demanda para a sade mental. Desviando a lgica de

    encaminhamentos indiscriminados para uma lgica da co-responsabilizao,

    ele pretende produzir maior resolutividade assistncia em sade.

    Realizamos grupos focais com profissionais de sade mental, das

    Equipes de Referncia e gestores, e procuramos, sob a tica da abordagem

    hermenutica-crtica, encadear suas principais linhas argumentativas de modo

    narrativo, a fim de combinar a anlise com a construo de sentidos para o

    material produzido. Aps essas construes narrativas, produzimos uma meta-

    narrativa, conectando os diferentes enredos e vinculando-os ao contexto

    histrico-social da sade mental e da sade coletiva. Pretendemos, com isso,

    contribuir para que as discusses geradas pelos profissionais possam ser

    significadas no interior das transformaes polticas e assistenciais na rea da

    sade mental.

    Palavras-chave: sade mental, ateno bsica sade, apoio matricial, gesto.

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    Abstract

    By means of the present study, we analyzed the organization of mental

    health actions in the basic health network of the city of Campinas (SP), from the

    implantation of arrangements for the management called Matricial Support.

    These arrangements aim to advance the enlargement of the clinic of health

    interdisciplinary teams and reorient the demand for mental health. By deviating

    the logic of indiscriminate referrals to the logic of co-responsibility, it intends to

    produce a larger solvability to health assistance.

    We created focal groups with mental health professionals, from reference

    teams and managers, and we searched for, under the optics of the

    hermeneutic-critical approach, an interrelation of their main argumentative lines

    in a narrative way, with the purpose of combining the analysis with the

    construction of meanings for the material produced. After these narrative

    constructions, we produced a narrative goal, linking the different plots and

    joining them to the social-historical context of mental health and collective

    health. With that, we intended to contribute so the discussions generated by the

    professionals may be signified in the interior of political and assistance

    transformations in the area of mental health.

    Key-words: mental health, basic health care, matricial support, management.

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    En medio de la maraa, Dios, la araa.

    ALEJANDRA PIZARNIK

    I. Introduo

    No passo da Reforma

    Nos ltimos anos, a Reforma Psiquitrica brasileira tem avanado

    vigorosamente na reformulao da ateno em sade mental, desconstruindo

    conceitos e prticas baseadas no isolamento e na excluso social como formas

    de tratar a loucura.

    A partir do fim da dcada de 80, profissionais de sade mental1

    articulam-se em torno do lema Por uma sociedade sem manicmios e

    desencadeiam um amplo debate nacional sobre a loucura, a psiquiatria e a

    violao de direitos humanos nos manicmios, e passam a impulsionar

    processos de desinstitucionalizao e criao de novas propostas assistenciais

    (AMARANTE, 2001).

    Atravs de aes incisivas na cultura e da ampliao dos atores sociais

    envolvidos, o Movimento da Luta Antimanicomial extrapola o contorno das

    aes institucionais e de assistncia e passa a difundir a crtica ao manicmio e

    as discusses sobre o tema da Reforma Psiquitrica, chamando a sociedade a

    reconstruir sua relao com o louco e com a loucura (TENRIO, 2002),

    condio fundamental para o sucesso das iniciativas de reabilitao

    psicossocial.

    Tais aes na cultura foram fatores estratgicos e potencializadores do

    processo de desinstitucionalizao, j que se tratava no apenas de

    1

    Movimento dos Trabalhadores da Sade Mental, Rede de Alternativas Psiquiatria, AssociaoBrasileira de Psiquiatria, entre outros atores, que vieram compor, juntamente com usurios e familiares, o

    Movimento da Luta Antimanicomial.

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    desospitalizar os pacientes, mas de romper com o saber psiquitrico enquanto

    ideologia (BASAGLIA, 1985) e desconstruir todo um aparato manicomial que se

    estende s atitudes sociais, intolerncia frente s diferenas, s relaes de

    poder, dominao e excluso que se estruturam em torno da loucura

    (AMARANTE, 1995).

    Esse contexto de movimentao social e poltica, estreitamente ligado

    ao processo de redemocratizao do pas, cria as condies histricas para o

    surgimento de outras possibilidades de olhar e tratar a loucura e o sofrimento

    psquico, sendo ento nas dcadas de 80 e 90, delineadas grandes

    transformaes no cenrio das polticas pblicas em sade mental, na tentativa

    de supresso do manicmio2.

    Atravs de uma intensa produo terica e de novas experincias

    assistenciais, houve um esforo em direo implantao de uma poltica que

    promovesse mudanas nos servios e nas prticas profissionais. Mudanas

    que representaram negar a tutela como interveno teraputica, para construir

    uma assistncia baseada na produo de vida e de subjetividades, no

    restabelecimento das relaes afetivas e sociais dos sujeitos e na reconquista

    de seu poder social (DELGADO, GOMES & COUTINHO, 2001).

    nesse marco, que o Ministrio da Sade promulgou as Portarias

    189/91 e 224/92 (BRASIL, 1991 e 1992), que vieram anunciar um contnuo

    processo de reformulao legislativa da rea, baseado inicialmente na

    transferncia do financiamento de internaes psiquitricas para a criao de

    servios extra-hospitalares que substituiriam os hospitais psiquitricos. Essa

    poltica passou a ser desencadeada a partir das experincias pioneiras de dois

    2 As propostas para reverso do modelo manicomial sucederam-se sob diferentes posies polticas, como

    se ver adiante. Para uma reflexo mais aprofundada, ver Braga Campos (2000).

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    servios substitutivos ao hospital psiquitrico, o Centro de Ateno Psicossocial

    (Caps) Prof. Luis da Rocha Cerqueira, criado em So Paulo em 1987 e os

    Ncleos de Ateno Psicossocial (Naps), criados a partir de 1989 em Santos.

    Desde ento, o modelo Caps passou a ser experimentado nas diversas

    regies do Brasil como principal investimento da poltica de sade mental. Nas

    ltimas duas dcadas o nmero de Caps implantados expandiu de forma

    expressiva em todo o territrio nacional. De 1996 at 2004, o nmero de leitos

    em hospitais psiquitricos caiu de 72.514 para 48.344. Com isso, houve um

    grande incremento no nmero de Caps, ampliando-se de 154 servios

    existentes em 1996 para 554 na atualidade (BRASIL, 2004a).

    Ainda que se esteja longe de superar a supremacia do hospital

    psiquitrico, o processo de extenso da cobertura dos servios substitutivos

    vem ocorrendo de maneira consistente e continuada. A Coordenao de Sade

    Mental do Ministrio (idem, ibidem) estima a necessidade de 750 servios no

    pas (parmetro internacional adotado pelo Instituto Franco Basaglia IFB,

    2004). Apesar de insuficientes para a grandeza da populao brasileira, esses

    nmeros demonstram a crescente e intensiva difuso da rede substitutiva de

    sade mental pelo pas, numa trajetria promissora de reverso do modelo

    assistencial vigente.

    Porm, essa nova rede de ateno doena mental grave, ainda que

    inserida no rol das polticas pblicas de sade e alinhada aos princpios do

    SUS, veio se constituindo de forma bastante afastada da rede bsica de sade,

    resultando num certo descolamento entre as prticas de sade mental e as

    prticas de sade na sua acepo mais ampla.

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    crise/agudizao dos sintomas, o paciente acompanhado no Centro de Sade

    deva ser encaminhado para um servio de maior complexidade que, nesse

    caso, seria a internao hospitalar. Ainda que se esperasse que essas

    internaes ocorressem em hospitais gerais, o fato que na maioria das

    regies do pas elas continuaram a acontecer no hospital psiquitrico.

    Esse modelo era bastante criticado pelo Movimento de Trabalhadores da

    Sade Mental que, em suas diversas formas de expresso, defendiam uma

    proposta mais radical (no sentido de ser levada s ltimas conseqncias) de

    desinstitucionalizao e supresso dos manicmios. Alguns setores defendiam,

    sobretudo, a criao de equipamentos intensivos para a ateno psiquitrica,

    que fossem capazes de dar sustentao integral vida dos usurios, mesmo

    nos episdios de crise. Isso porque, especialmente nesse momento, seria

    fundamental manter o vnculo equipe/usurio.

    A partir dos princpios adotados na Constituio de 1988 para a

    organizao do Sistema nico de Sade, inicia-se a implementao de uma

    rede bsica mais complexa que a proposta do CONASP, que deveria funcionar

    no s como a porta de entrada ao sistema, mas realizar a integralidade das

    aes, incorporando a preveno, a promoo e a assistncia (MERHY, 1997).

    Diversos Estados brasileiros passam a propor a ampliao das equipes

    de sade mental na rede bsica, visando o desenvolvimento de aes

    preventivas e de nvel secundrio, tanto para pacientes com transtornos

    prevalentes de menor gravidade, quanto para os pacientes egressos de

    hospitais psiquitricos.

    Porm, essas iniciativas no se sucederam de grande investimento

    poltico. Segundo Sombini (2004), as equipes de sade mental foram

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    absorvidas nos servios sem qualquer reviso de seu processo de formao ou

    outras propostas de capacitao profissional. Foram se compondo com

    insuficincia de recursos humanos e pouca clareza do papel que deveriam

    exercer. Ainda mais, poderamos afirmar que elas foram instaladas sem o

    acompanhamento de dispositivos institucionais que lhes permitissem refletir

    sobre as prprias resistncias tarefa primria (KAS, 1991; ONOCKO

    CAMPOS, 2003), e analisar as formaes de compromisso institucionais

    resultantes, o que acabou por produzir (em numerosos casos) equipes que

    passaram a acompanhar as equipes das UBSs nas atividades de preveno,

    promoo e educao em sade, em prejuzo do acompanhamento dos casos

    mais graves.

    Nessa mesma poca, como j vimos, comeam a ser criados os

    primeiros servios extra-hospitalares em So Paulo e em Santos, os quais,

    pela inovao e ousadia da proposta, ganharam maior visibilidade e traziam

    grande repercusso para a reforma da assistncia em sade mental, visto que

    eram impulsionados por forte movimento poltico e social.

    Assim, o fechamento dos hospitais psiquitricos e a implementao de

    equipamentos substitutivos passam a ser as principais estratgias polticas

    para a sade mental nesse momento histrico, dada a necessidade e a grande

    dificuldade de desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as formas

    de tratamento j h muito tempo arraigadas no imaginrio social e tambm

    na lgica sanitria hegemnica como muito bem destaca Amarante (2001).

    Se por um lado o Caps ocupou esse lugar de destaque na reorganizao

    da assistncia em sade mental, por outro, pouco se investiu para que a rede

    16

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    bsica acompanhasse os avanos da rea de sade mental em sua trajetria

    de transformao tecno-assistencial.

    Todavia, essa dicotomia traz desdobramentos importantes para a

    configurao do SUS enquanto sistema unificado e integral, assim como para a

    eficcia tanto da rede bsica, quanto dos equipamentos substitutivos, dada a

    dificuldade de estabelecer parcerias necessrias para uma ateno resolutiva

    em sade mental.

    Alm disso, o restrito investimento da Reforma Psiquitrica na rede

    bsica traz repercusses para a produo de subjetividade dos profissionais,

    que se mantiveram, em geral, margem do movimento social pela sade

    mental e pouco engajados na criao de uma assistncia mais inclusiva e

    reprodutora da vida social. Todo o movimento gerado em torno da inveno de

    respostas clnico-polticas questo do sofrimento mental e a necessidade de

    construo de uma assistncia territorial e integralizada, ainda hoje, na rede

    bsica, encontram raro eco.

    Em decorrncia disso, e ainda se considerarmos que a sade mental

    veio se apresentando como uma especialidade na rea da sade, podemos

    ressaltar o modo bastante burocratizado com que ela continua operando nos

    Centros de Sade. Com prticas centralizadas nas tradicionais guias de

    referncia e contra-referncia, encaminha-se os pacientes para outras

    especialidades ou para o nvel de maior complexidade, repercutindo quase

    sempre em des-responsabilizao pela produo de sade. Isso nos casos em

    que os Centros de Sade possuem equipes de sade mental. O que dizer

    ento das situaes de diversos municpios brasileiros em que os profissionais

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    de sade mental encontram-se isolados nos ambulatrios de especialidades,

    recebendo os encaminhamentos da Ateno Primria?

    Esse modelo de rede hierarquizada em pirmide, com seus nveis de

    complexidade primria, secundria e terciria, tem sido bastante criticado por

    alguns autores. Campos, j em 1994, propunha ... a substituio da pirmide

    por um redemoinho de ponta-cabea. Micro-furaces com a base em

    movimento sobre o solo. Ao invs de uma estrutura ossificada pelo concreto de

    normas e programas, um fluxo estruturado (...). Um tufo invertido e em

    movimento, tendo como fonte de energia as necessidades e interesses dos

    usurios e como leme o dilogo do saber tcnico com este torvelinho de

    desejos. E tudo isto mediado pela poltica (Op. Cit.: 61-62). Ceclio (1997)

    discute a possibilidade de pensar a hierarquizao do sistema a partir de um

    arredondamento da pirmide (Op. Cit.: 9), de modo que todo servio

    funcionasse como porta de entrada s pessoas, cada servio

    responsabilizando-se efetivamente por elas e realizando a integralidade

    possvel das aes.

    Uma ateno integral, como a pretendida pelo SUS, s poder ser

    alcanada atravs da troca de saberes e prticas e de profundas alteraes

    nas estruturas de poder estabelecidas, instituindo uma lgica do trabalho

    interdisciplinar, por meio de numa rede interligada de servios de sade.

    Nesse sentido, o descompasso aqui discutido, entre a rede bsica e a

    rede de sade mental representada em especial pelos Caps, coloca-se como

    grande entrave para o entrelaamento das aes que, em sade mental, uma

    necessidade inquestionvel.

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    Uma rede ou um emaranhado?

    Os Caps configuram-se como equipamentos-sntese (NICCIO, 1994),

    subvertendo a lgica da hierarquizao e agregando os diferentes nveis de

    ateno em uma s unidade. Definidos como servios territoriais, isso aponta,

    para alm da regionalizao dos servios, idia de territrios subjetivos, ou

    seja, o conjunto de referncias socioculturais e econmicas que desenham a

    moldura do quotidiano do sujeito, de seu projeto de vida e de sua insero no

    mundo(DELGADO apudTENRIO, 2002: 32).

    Assim, a clnica no territrio no se restringe remisso de sintomas,

    mas ocupa-se da existncia dos sujeitos e de suas possibilidades de habitar o

    social (AMARANTE, 1995; GOLDBERG, 1992). Por isso, a assistncia nesses

    servios tem um carter intensivo e suas ofertas teraputicas so diversificadas

    e ampliadas para dar sustentao cotidiana s dificuldades acarretadas pela

    doena mental grave.

    Ainda que a clnica das psicoses e das neuroses graves esteja baseada

    em cuidados intensivos de especificidade de equipamentos como os Caps

    (TENRIO, 2002), a Ateno Bsica tem um papel importante no processo de

    reinsero social dos usurios com transtornos psiquitricos graves, j que

    tambm est imersa no territrio e , afinal, um espao de produo de sade

    em geral, tanto para os usurios, quanto para suas famlias.

    A questo que aqui se coloca vai alm da definio de qual servio

    deveria se incumbir do paciente grave, se o Caps ou a Ateno Bsica,

    outrossim, est na relao a ser construda entre os dois tipos de servios para

    a composio de uma rede de ateno integral e resolutiva em sade mental e

    em sade na sua acepo mais geral.

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    O Ministrio da Sade, em sua Portaria 336, define que os Caps devem

    responsabilizar-se (...) pela organizao da demanda e da rede de cuidados

    em sade mental no mbito do seu territrio e (...) desempenhar o papel de

    regulador da porta de entrada da rede assistencial no mbito do seu territrio

    (BRASIL, 2004b: 126).

    Tomando como princpios que a clnica e a reabilitao psicossocial so

    mais eficazes quando operadas no territrio existencial onde as pessoas vivem

    (LANCETTI, apudBRAGA CAMPOS & NASCIMENTO, 2003) e que o Caps o

    servio de referncia para a doena mental grave, ento quanto mais territorial

    seja o Caps, menos a Ateno Bsica se encarregar das demandas de maior

    gravidade.

    Contudo, ao tomarmos o Caps como ordenador da rede, como prope o

    Ministrio, no estaramos reiterando o foco nesse equipamento e o seu

    isolamento em relao quela rede ampla e entrelaada de sade que

    almejamos?

    Nesse caso, mais apropriado seria trabalhar com o conceito-imagem de

    uma rede multicntrica, em que o Caps pode funcionar como agenciador das

    demandas em sade mental, mas no qual, por outro lado, cada um dos atores

    sociais e servios envolvidos na ateno se destacam, em determinado

    momento, de acordo com o andamento do Projeto Teraputico de cada

    usurio. Uma rede que permita o entrelaamento das aes e das relaes.

    Uma rede pulsante e viva, que se movimente para dar sustentao s

    necessidades dos usurios e de acordo com elas. Uma rede sem centralidade,

    porm quente o suficiente para agenciar as demandas dos usurios, e se

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    transformar em um suporte efetivo para as dificuldades em andar a vida que

    esses usurios possuem.

    Assim, destaca-se a necessidade de parceria entre os servios: h

    casos comuns entre os servios, h situaes que dizem respeito tanto aos

    Caps como Ateno Bsica. Seria o caso do usurio do Caps que da regio

    de determinada equipe do Centro de Sade ou o garoto usurio de drogas que

    em dado momento precisa de uma conteno de crise. Nessas situaes

    fundamental a articulao dos servios, a discusso do caso comum, o

    envolvimento dos diversos atores no caso em questo.

    Alm disso, na Unidade Bsica de cada regio onde os usurios dos

    Caps so assistidos em seus problemas de sade em geral, e sabemos o

    quanto ainda necessrio desmistificar a doena mental no imaginrio dos

    profissionais de sade e qualific-los para lidar com essa demanda.

    Segundo estimativas da Organizao Mundial de Sade os problemas

    de sade mental respondem por 12% da carga mundial de doenas (OMS,

    2001). No Brasil, o Ministrio da Sade avalia que cerca de 3% da populao

    apresenta transtornos mentais severos e persistentes e necessita de cuidados

    contnuos, intensivos (especficos dos Caps), enquanto que 9% apresenta

    transtornos mentais leves, pelos quais a Ateno Bsica deve responsabilizar-

    se (BRASIL, 2003). Alm disso, de 6 a 8% da populao apresenta transtornos

    decorrentes do uso prejudicial de lcool e outras drogas, e tambm na rede

    bsica que se realizam as prticas de cunho preventivo e assistencial a essa

    demanda (idem, ibidem).

    Os transtornos psquicos leves, mais prevalentes, so manifestos

    geralmente sob a forma de queixas somticas e nervosas, transtornos de

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    ansiedade, quadros depressivos e reativos relacionados a problemas sociais e

    familiares e decorrentes do uso e abuso de psicotrpicos.

    Para alm desses transtornos, so diversos os problemas advindos das

    faltas concretas na vida, ou gerados pela ordem scio-econmica vigente.

    inegvel que a misria em que se encontra a maior parte da populao

    brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se traduz em condies

    de existncia favorveis s dificuldades afetivas, emocionais e relacionais.

    Existe, ainda, um componente subjetivo que se associa a toda doena

    fsica. Muitas vezes ele atua como entrave ao tratamento, adeso s prticas

    preventivas e at mesmo como intensificador da doena. Entre tantos

    exemplos por ns j conhecidos, seria o senhor que j no v tanto valor na

    vida e no mais se importa se o cigarro potencializa sua doena cardaca; a

    menina que no se mobiliza para o uso do preservativo nas relaes sexuais,

    preocupada com o juzo que far o seu parceiro; o paciente com cncer que

    no encontra resistncia para enfrentar a doena. Esses casos todos poderiam

    em muito se beneficiar com a ampliao da clnica3 das equipes do Programa

    de Sade da Famlia PSF (CAMPOS, 2003).

    Atualmente, o desenvolvimento da estratgia Sade da Famlia na rede

    bsica vem tencionando a incorporao das dimenses subjetiva e social na

    prtica clnica, atravs do princpio da ateno integral ao sujeito e por meio do

    vnculo entre equipes e usurios, a fim de propiciar maior resolutividade para

    os problemas de sade. Isso faz com que as equipes do PSF se deparem

    cotidianamente com problemas de sade mental.

    3

    Consideramos o termo ampliao da clnica no sentido desenvolvido por Campos (2003). Umaresignificao da clnica, de modo a deslocar sua nfase na doena, para centr-la num sujeito concreto e

    singular, portador de uma certa enfermidade.

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    Uma pesquisa do Ministrio da Sade mostra que 56% da equipes de

    Sade da Famlia referem realizar alguma ao de sade mental (BRASIL,

    2003), ainda que essas equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar

    com essa demanda. Por outro lado, por sua proximidade com as famlias e as

    comunidades, elas se constituem num recurso estratgico para o

    enfrentamento das diversas formas de sofrimento psquico (idem, ibidem).

    Alm disso, a Organizao Mundial de Sade e o Ministrio da Sade

    estimam que quase 80% dos usurios encaminhados aos profissionais de

    sade mental no trazem, a priori, uma demanda especfica que justifique a

    necessidade de uma ateno especializada (CAMPINAS, 2001a).

    o caso da senhora que costumamos denominar poli-queixosa, e que

    representa uma demanda das mais corriqueiras para a sade mental na

    Ateno Bsica. Se ampliarmos a escuta, nos deparamos com o seu grande

    vazio existencial, cultivado pela ausncia de espaos de convivncia, lazer,

    trabalho, pela relao j desgastada com o marido alcoolista ou mesmo pela

    iseno de sua funo materna tendo os filhos j crescidos.

    Nesses casos, o empreendimento de longos processos psicoterpicos e

    a administrao de antidepressivos so insuficientes como nicas respostas a

    esses problemas. Para melhor responder a essas demandas preciso

    mobilizar outros dispositivos de ateno, disparadores de produo de vida, de

    fortalecimento da auto-estima, de sociabilidade (BRAGA CAMPOS &

    NASCIMENTO, 2003; CUNHA, 2004).

    Baseado nessa compreenso, o Ministrio da Sade (BRASIL, 2003)

    tem estimulado a insero da sade mental na rede bsica atravs de redes de

    cuidado e da atuao transversal com outras polticas. Simultaneamente,

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    prope a ampliao da clnica das equipes de Sade da Famlia, na construo

    de um modo de fazer sade centrado no sujeito e no mais na doena.

    Para isso, necessrio qualificar as equipes a incorporarem, em seu

    repertrio de atuao, outras dimenses do sujeito alm de sua faceta

    biolgica, valorizando a sua subjetividade e o conjunto de relaes sociais que

    determinam desejos, interesses e necessidades (CAMPOS, 2000a; 2003).

    O especialista em sade mental , sem dvida, essencial nos muitos

    casos em que a demanda expressa claramente a necessidade da psicoterapia

    em suas diferentes possibilidades, da medicao psicotrpica nos estados

    mais agudos, da terapia ocupacional e outras atividades teraputicas

    peculiares ao ncleo de saber psi.

    Porm, como dito anteriormente, em muitas situaes as complexas

    necessidades da populao no podem ser satisfeitas com base apenas em

    tecnologias de uma ou outra especialidade (BRAGA CAMPOS &

    NASCIMENTO, 2003), mas fazem parte do campo de atuao de todo

    profissional de sade (CAMPOS, 2000b).

    Considerando as questes aqui discutidas, algumas administraes

    municipais tm formulado modelos tecno-assistenciais para a insero ou

    aprimoramento da sade mental na Ateno Bsica, de acordo com cada

    realidade local (LANCETTI, 2001).

    O Apoio Matricial um arranjo institucional implantado no municpio de

    Campinas (SP) para reorganizar sua rede bsica de sade e foi recentemente

    incorporado pelo Ministrio da Sade (2003) como estratgia de gesto para a

    construo de uma rede ampla de cuidados em sade mental.

    24

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    O Apoio Matricial: imbricando sade e sade mental

    Onde a brasa mora e devora o breu

    Como a chuva molha o que se escondeu

    O seu olhar melhora o meu

    ARNALDO ANTUNES e PAULO TATIT

    No nova a tentativa de integrar a sade mental nas prticas de

    mdicos e outros profissionais de sade. Antes de falarmos sobre o Apoio

    Matricial, consideremos algumas das tradies que subjazem a essa proposta,

    buscando, assim, entender seus pontos de contato e os limites que o Apoio

    Matricial pretende superar com sua inovao.

    J desde as primeiras dcadas do sculo XX o estudo das relaes

    mente-corpo foi se colocando como um dos temas de progressiva importncia

    para o saber mdico, se reunindo em torno do movimento chamado medicina

    psicossomtica. Esse movimento, nascido na Alemanha e na ustria, e logo

    difundido nos Estados Unidos, representa um retorno de uma abordagem

    psicolgica na prtica e na pesquisa mdicas, aps a consolidao da

    tendncia organicista da medicina do sculo XIX (BOTEGA, 2002a; BOTEGA &

    DALGALARRONDO, 1997).

    A psicossomtica parte das relaes entre o psquico, o social e o

    biolgico na determinao da sade e da doena e desenvolve-se na

    concepo de que toda doena humana psicossomtica, j que incide num

    ser sempre provido de soma e psique, inseparveis, anatmica e

    funcionalmente (MELLO FILHO, 1994; PINHEIRO, 1992). Valendo-se das

    contribuies da psicanlise, a psicossomtica procurou considerar a dinmica

    25

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    da relao mdico-paciente, as relaes entre o doente e sua famlia, e entre a

    doena, a cultura e a sociedade.

    Na dcada de 50, Michal Balint inicia na Inglaterra sua famosa

    experincia de superviso de casos trazidos por clnicos gerais, a fim de

    estudar o que se passava na intimidade da relao entre mdicos e seus

    pacientes e como o desprezo ou a considerao do mdico pelos aspectos

    psicolgicos poderia influenciar na evoluo da doena (MELLO FILHO, 1994).

    Situados entre a psicanlise e a medicina, os grupos Balint ganharam grande

    destaque internacional, estendendo-se tanto ao incremento da formao de

    mdicos, como a uma nova potencialidade da interveno do psicanalista

    (MISSENARD, 1994).

    Em diversos pases o desenvolvimento de servios psiquitricos nos

    Hospitais Gerais tambm contribuiu no estreitamento das relaes entre

    mdicos e profissionais de sade mental. No Brasil, com as transformaes da

    poltica em sade mental a partir da dcada de 80 e ao lado da criao de

    servios substitutivos ao hospital psiquitrico, houve uma ampliao das

    modalidades de assistncia psiquitrica nos Hospitais Gerais (BOTEGA &

    DALGALARRONDO, 1997).

    Dentre essas modalidades, a Psiquiatria de Consultoria e Ligao

    assinala a proposta de integrao da sade mental com as equipes

    assistenciais do hospital, a partir das influncias da psicossomtica. Ela visa

    aprimorar a assistncia mdica por meio de auxlio especializado da psiquiatria

    no diagnstico e tratamento de pacientes com problemas psquicos, enfocando

    tambm os problemas interpessoais e institucionais entre o paciente, a famlia

    26

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    e a equipe de sade (BOTEGA, 2002a; BOTEGA & DALGALARRONDO,

    1997).

    Neste sentido, Consultoria refere-se atuao de um profissional da

    sade mental que avalia e indica um tratamento para pacientes que esto sob

    os cuidados de outros especialistas, sendo que sua presena no servio

    episdica e responde a uma solicitao especfica. Ligao implica em

    atividades mais regulares com a equipe mdica, a participao em reunies

    clnicas, a assistncia direta aos pacientes e o trabalho com os aspectos da

    relao entre a equipe assistencial e o paciente (idem, ibidem).

    A expresso Interconsulta Psiquitrica tem sido empregada de forma

    genrica, substituindo o termo Psiquiatria de Consultoria e Ligao, para

    indicar o conjunto de atividades realizadas por profissionais de sade mental

    junto a diversos servios do Hospital Geral (idem, ibidem).

    Segundo Botega (2002b), uma caracterstica marcante da Interconsulta

    Psiquitrica o seu carter emergencial. A equipe de sade solicita a

    interconsulta do psiquiatra quando os problemas apresentados por seus

    pacientes extrapolam os limites de sua atuao. A equipe decide quando e se

    deve pedir ajuda ao psiquiatra. Muitas vezes essa deciso pode ser postergada

    at que a equipe no suporte as dificuldades desencadeadas por uma situao

    clnica e o psiquiatra deve responder de imediato. Outras vezes, a interconsulta

    solicitada de acordo com o nvel pessoal de tolerncia da equipe, sua

    formao, experincia, autonomia e interesse pelos aspectos psicolgicos.

    Nestes casos, o encaminhamento Interconsulta Psiquitrica pode ser

    utilizado como uma forma de transferir a angstia ou responsabilidade, ou para

    evitar o contato com os aspectos psicossociais do paciente (BOTEGA, 2002c).

    27

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    De todo modo, embora a Interconsulta proponha a integrao entre a

    equipe mdica e os profissionais de sade mental, o que ocorre a

    manuteno do esquema tradicional dos encaminhamentos e das guias de

    referncia e contra-referncia, com atuao isolada de ambos os lados e

    demandas espordicas de trabalho conjunto.

    precisamente essa lgica centrada no encaminhamento ao

    especialista que o Apoio Matricial pretende superar na rede bsica de sade,

    atravs de modificaes na estrutura organizacional que repercutam em

    reformulao do processo de trabalho tradicional.

    Em 1999, Campos props um arranjo organizacional que radicaliza e

    altera a tnue reforma sugerida pela escola denominada matricial (Op. Cit.:

    398). Na proposta desse autor, profundas reformas estruturais seriam

    necessrias para produzir sade com um grau maior de resolutividade e

    desalienar os trabalhadores de sade em relao ao objetivo ltimo de seu

    trabalho. Partindo de Neuhauser (1972) e outros, Campos prope uma rotao

    dos organogramas. Assim, os antigos departamentos especializados (outrora

    verticais, encarregados do acompanhamento longitudinal dos usurios) passam

    a ser horizontais oferecendo apoio especializado s equipes interdisciplinares

    de referncia.

    Nessa linha, so as Equipes de Referncia as responsveis por ampliar

    a clnica, realizar os Projetos Teraputicos ao mdio e longo prazo,

    promovendo assim o vnculo e a responsabilizao, para desviar a lgica de

    encaminhamentos desnecessrios.

    Uma gesto implicada com a produo de sade deve,

    necessariamente, se haver com essa questo, principalmente no contexto da

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    Ateno Bsica. O Apoio Matricial se coloca como um dos arranjos

    institucionais capazes de subverter a lgica dominante do modelo mdico

    (ONOCKO CAMPOS, 2003) e produzir outras linhas de subjetivao nos

    trabalhadores que estimulem uma ateno compromissada com os sujeitos.

    Referimo-nos ao Apoio Matricial como um dos arranjos, porque ele s

    possvel atrelado a uma forma de organizar os servios que garanta um

    sistema de referncia entre profissionais e usurios. Esse outro arranjo (Equipe

    de Referncia) complementar adscrio de clientela proposta pelo

    Programa de Sade da Famlia.

    A adscrio est fundamentada na importncia do vnculo entre

    profissionais e usurios. A relao teraputica, horizontal no tempo, passa a

    ser a linha reguladora do processo de trabalho. Assim, toda vez que o usurio

    procura o servio, ele atendido pela sua equipe e seu profissional de

    referncia, o que permite o acompanhamento do processo

    sade/doena/interveno de cada paciente (CAMPOS, 1999).

    Gradativamente, isso estimula a responsabilizao pela produo de sade e

    amplia a clnica, porque quando o usurio passa a ter um nome e uma histria,

    a implicao da equipe aumenta e as respostas profissionais deixam de ser

    estereotipadas (ONOCKO CAMPOS, 2003).

    Ampliar a clnica significa tambm que os profissionais possam, em

    determinados momentos, colocar em suspenso o seu saber prvio, o saber que

    vem garantido com a tcnica, com o procedimento padro, para se abrirem ao

    contato intersubjetivo que se d na relao profissional/paciente e para

    interrogarem-se, em cada situao, sobre a melhor interveno a fazer.

    29

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    A proposta que os profissionais possam aprender a lidar com os

    sujeitos em sua totalidade, incorporando em suas prticas as dimenses

    subjetiva e social do ser humano. Mas que estejam acompanhados, nessa

    tarefa, por algum especializado que lhes d suporte para compreender e

    intervir nesse campo.

    O Apoio Matricial da sade mental seria esse suporte tcnico

    especializado, em que conhecimentos e aes, historicamente reconhecidos

    como inerentes rea psi, so ofertados aos demais profissionais de sade

    de uma equipe. um encontro entre profissionais de sade mental e a equipe

    interdisciplinar de sade na composio de um espao de troca de saberes,

    invenes e experimentaes que auxiliem a equipe a ampliar sua clnica e a

    sua escuta, a acolher o choro, a dor psquica, enfim, a lidar com a subjetividade

    dos usurios.

    O termo Matr(i) vem do latim me, a origem, de onde se vem. O Apoio

    Matricial est relacionado a essa noo de matriz, o lugar de onde se gera.

    Uma oferta do ncleo profissional psi ao campo dos profissionais de sade, na

    construo de um novo saber, um saber que se pretende transdisciplinar

    (BRAGA CAMPOS & NASCIMENTO, 2003). A transdisciplinaridade que, no

    sentido dado por Passos & Barros (2000), uma das grandes apostas do

    Apoio Matricial. A noo de transdisciplinaridade subverte o eixo de

    sustentao dos campos epistemolgicos, graas ao efeito de desestabilizao

    (...) da unidade das disciplinas e dos especialismos(Op. Cit.: 76).

    Dessa maneira, coloca-se a sade mental na rede bsica com o papel

    fundamental de contribuir com seus saberes para aumentar a capacidade

    resolutiva da equipe local. Construir, junto com os outros profissionais de

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    sade, um raciocnio integral sobre cada caso e contribuir na inveno de

    possveis caminhos a percorrer na prtica teraputica.

    Por outro lado, o Apoio Matricial pretende superar a lgica da

    especializao e da fragmentao do trabalho da prpria rea de sade

    mental. Pretende romper com o sistema das guias de referncia e contra-

    referncia, que produzem encaminhamentos consecutivos e que se traduzem,

    usualmente, em des-responsabilizao e alienao dos profissionais em

    relao ao objetivo primordial de seu trabalho, que a produo de sade.

    Contudo, a assistncia especializada dos profissionais de sade mental

    deve continuar existindo como uma das ofertas teraputicas, para aqueles

    casos em que se identifica claramente a necessidade de uma ateno e

    tecnologia prprias do ncleo de saber psi. Mas, nessa perspectiva, no h

    diluio de responsabilidades. Quando um paciente utiliza uma oferta

    especializada da sade mental, ele no se desvincula da sua Equipe de

    Referncia. Esta continua como co-responsvel pelo desdobramento de seu

    Projeto Teraputico (CAMPOS, 1999).

    A responsabilizao compartilhada dos casos permite regular o fluxo de

    pacientes nos servios. Atravs do Apoio Matricial, se iro distinguir as

    situaes individuais e sociais, comuns vida cotidiana, que podem ser

    acolhidas pela equipe local e por outros recursos sociais do entorno, daquelas

    demandas que necessitam de uma ateno especializada da sade mental, a

    ser oferecida na prpria Unidade ou, de acordo com o risco e a gravidade, pelo

    Caps da regio de abrangncia.

    Com isso, possvel evitar prticas que levam psiquiatrizao e

    medicalizao do sofrimento humano e, ao mesmo tempo, promover a

    31

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    eqidade e o acesso, garantindo coeficientes teraputicos de acordo com as

    vulnerabilidades e potencialidades de cada usurio.

    Isso favorece a construo de novos dispositivos de ateno em

    resposta s diferentes necessidades dos usurios e a articulao entre os

    profissionais na elaborao de Projetos Teraputicos pensados para cada

    situao singular. Sempre considerando uma diversidade de possibilidades e

    recursos, dentro e fora do Centro de Sade.

    O Apoio Matricial pode acontecer tambm atravs de atendimentos

    conjuntos entre o profissional de referncia e o profissional psi. Isso se d em

    algumas situaes mais complexas, mas nas quais, mesmo assim, no se

    avalia a necessidade do acompanhamento especfico da sade mental. So

    situaes de excluso social, luto, perdas as mais diversas, que devem ser

    acolhidas durante a consulta clnica. Ou, ainda, quando o paciente de

    referncia do Caps, mas est em tratamento de algum problema de sade com

    sua equipe na Ateno Bsica. Muitas vezes, os profissionais sentem-se

    inseguros para lidar com esses pacientes e o atendimento conjunto com o

    apoiador matricial pode proporcionar um encontro desmistificador do sofrimento

    psquico e da doena mental, ajudando a diminuir o preconceito e a

    segregao da loucura.

    Essa reordenao do desenho institucional da rede bsica permite que a

    complexidade da vida dos sujeitos e de suas necessidades sejam trazidas para

    o coletivo e possam ser enfrentados atravs do trabalho conjunto, favorecendo

    a gesto do processo de trabalho e a formao de uma outra subjetividade

    profissional (CAMPOS, 1999), centrada no dilogo e na transdisciplinaridade.

    32

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    Sade mental e Apoio Matricial no Paidia Sade da Famlia

    Aportando-se nos princpios do SUS e da Reforma Psiquitrica, a rede

    bsica do municpio de Campinas (SP) vem experimentando o Apoio Matricial,

    desde 2001, com a implantao do Programa Paidia Sade da Famlia

    (CAMPINAS, 2001b).

    O nome Paidia indica a formao integral do ser humano, noo

    originria da Grcia clssica, e faz referncia abordagem ampliada das

    questes de sade (CAMPOS, 2003). Para alm do biolgico, sade como

    fruto da sociabilidade, da afetividade, da organizao da vida cotidiana, das

    relaes com o territrio e com o meio ambiente. O Programa Paidia,

    portanto, tem como pressuposto que produzir sade significa tambm intervir

    nessas dimenses.

    Paidia se refere tambm dupla finalidade (CAMPOS, 2000a) de

    qualquer instituio, que seria tanto produzir valores de uso, quanto atender

    aos interesses e necessidades de seus agentes institucionais, cumprindo

    funes pedaggicas e de produo de subjetividade das pessoas. No caso da

    sade, a produo e o atendimento das necessidades sociais e de sade dos

    usurios devem vir atreladas produo simultnea de subjetividade dos

    trabalhadores. Por isso, a proposta de gesto do Paidia uma gesto

    compartilhada ou co-gesto, reconhecendo que no h combinao ideal entre

    os distintos interesses de usurios e profissionais e que no exerccio da co-

    gesto que se iro construindo contratos e compromissos entre os sujeitos

    envolvidos com o sistema de sade (CAMPINAS, 2001a).

    O Programa Paidia uma adaptao do Programa de Sade da

    Famlia do Ministrio da Sade, ajustado ao contexto sanitrio de Campinas,

    33

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    uma cidade com caractersticas metropolitanas e que j tinha uma histria

    pioneira na rea da sade.

    Segundo Braga Campos (2000), essa histria se inicia j na dcada de

    70, quando Campinas passa a organizar os servios pblicos de sade atravs

    do modelo da Ateno Primria em Sade. Nesta poca foram criados Postos

    de Sade Comunitria com equipes constitudas por mdicos generalistas e

    auxiliares de sade, que trabalhavam muito diretamente com a comunidade

    numa perspectiva de educao em sade. Alm disso, os servios de sade

    mental tambm passam a ser oferecidos nessa rede de Ateno Primria.

    Eram equipes mnimas de sade mental, com psiclogo, assistente social e

    psiquiatra (e posteriormente o terapeuta ocupacional) alocados em alguns

    Postos e Centros de Sade.

    Dessa forma, em 2001, quando a Secretaria Municipal de Sade iniciou

    a implantao do Programa Paidia, Campinas j contava com uma rede de 44

    Centros de Sade, porm no havia adotado o Programa de Sade da Famlia

    do Ministrio. A rede bsica funcionava num modelo que subdividia a sade em

    reas de ateno e programas. A assistncia e os profissionais se dividiam nas

    reas de ateno ao adulto, criana, mulher, e nos programas de sade

    mental e bucal (CAMPINAS, 2001c; SOMBINI, 2004).

    Diferente de outros municpios onde o PSF foi implantado em mdulos

    paralelos s Unidades Bsicas, em Campinas optou-se por empregar os

    recursos j existentes na rede para constituir um PSF ampliado e combinado

    com outros princpios, como acolhimento, responsabilizao, co-gesto, entre

    outros, para reformular a ateno em sade na cidade (CAMPINAS, 2001c).

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    Assim, os profissionais dos Centros de Sade foram reorganizados em

    Equipes de Referncia para famlias de determinado territrio geogrfico. O

    que passa a definir a organizao do trabalho no so mais os programas ou

    as reas clnicas (adulto, criana, mulher, mental, etc), mas sim os usurios,

    seus Projetos Teraputicos e as necessidades encontradas no territrio de

    abrangncia de cada equipe (idem, ibidem).

    As Equipes de Referncia passam a ser o eixo permanente dos Centros

    de Sade. Elas se constituem em Unidades de Produo que tm objeto e

    objetivo de trabalho comum, ou seja, o atendimento bsico e integral s

    famlias, e cada uma tem autonomia relativa para pensar e organizar o

    processo de trabalho e os Projetos Teraputicos (CAMPOS, 1999; CAMPINAS,

    2001b).

    Essas equipes so compostas de maneira ampliada em relao ao

    modelo PSF do Ministrio. Alm do mdico generalista, da enfermagem e dos

    agentes comunitrios de sade, no Paidia tambm fazem parte das equipes,

    o pediatra, o ginecologista, o dentista e o auxiliar de consultrio dentrio.

    Cada uma dessas equipes ampliadas responsvel pela cobertura de

    aproximadamente 1400 famlias adscritas (CAMPINAS, 2001c).

    Algumas reas especficas, que antes eram organizadas segundo

    categorias profissionais ou especialidades, como a sade mental, a sade

    coletiva, a reabilitao fsica, no Programa Paidia passam a integrar o eixo

    matricial de apoio, para contribuir na ampliao da clnica das Equipes de

    Referncia.

    Como j discutimos anteriormente, o Apoio Matricial da sade mental

    passa a ser um recurso essencial na rede bsica, atravs do qual se busca

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    modificar o processo de trabalho tanto das Equipes de Referncia quanto da

    prpria sade mental, as quais, dentro do modelo hegemnico da sade,

    vinham cada vez mais num movimento de especializao, fragmentao do

    trabalho e des-responsabilizao pela sade integral dos sujeitos.

    Em Campinas apostou-se na organizao da sade mental na rede

    bsica atravs do Apoio Matricial principalmente pela sua potencialidade em

    criar uma assistncia mais integrada, desconstruindo a lgica do

    encaminhamento. O Apoio Matricial se destina, assim, a criar rede de ateno,

    a alinhavar as aes dos diversos profissionais que iro se responsabilizar

    juntos pelos Projetos Teraputicos.

    Alm disso, essa opo baseia-se na necessidade de garantir o princpio

    da eqidade na ateno. Aumentando a capacidade resolutiva das Equipes de

    Referncia, amplia-se o acesso para aquelas pessoas que esto em situaes

    mais complexas de vida e que realmente demandam uma ateno

    especializada do ncleo da sade mental.

    Sendo assim, os profissionais de sade mental na rede bsica de

    Campinas, tm como diretrizes:

    1. apoio e acompanhamento s equipes locais de referncia (...); 2.

    trocar conhecimentos e somar formao de um raciocnio generalista e

    multidisciplinar destas equipes, com discusso de casos em sade mental; 3.

    assistncia especializada aos casos demandados pela e para a clnica.

    Partindo dela uma clnica ampliada reformular a ateno sade mental,

    saindo do programado nvel secundrio, ambulatorial (...), para um movimento

    atravs das demandas das equipes do Paidia, por todo o territrio

    geogrfico, histrico, biogrfico e subjetivo(CAMPINAS, 2001a: 15).

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    Essa assistncia especializada pode ser oferecida pelos profissionais de

    sade mental das prprias Unidades Bsicas ou, de acordo com o risco e a

    gravidade, nos equipamentos de referncia em sade mental.

    Atualmente a rede conta com 47 Centros de Sade e 13 Mdulos de

    Sade da Famlia4. H profissionais de sade mental sediados em 24 destes

    Centros de Sade, que apiam matricialmente as Equipes de Referncia de

    sua Unidade de origem e das Unidades prximas que no possuem

    profissionais de sade mental. Alm disso, so responsveis pela ateno

    especializada em sade mental aos casos demandados por essas equipes.

    Os equipamentos de referncia em sade mental dentro rede de sade

    de Campinas organizaram-se em trs principais frentes, articuladas com a rede

    bsica e com propostas de aes intersetoriais com a assistncia social, a

    educao, cultura, ongs e equipamentos sociais dos territrios (CAMPINAS,

    2003 e 2001a):

    - Rede de ateno psicossocial: Destina-se ateno s pessoas com

    transtornos psquicos graves (neuroses e psicoses graves). Compem essa

    rede os Caps de cada Distrito, os Servios Residenciais Teraputicos

    (moradias extra-hospitalares), o Ncleo de Ateno Crise (NAC), o Ncleo de

    Oficinas e Trabalho (NOT que tambm atende pessoas em tratamento de

    dependncia qumica);

    - Rede de ateno infncia e adolescncia: Alm dos pediatras e

    outros profissionais das Equipes de Referncia/Sade da Famlia e dos

    programas Crescer Antes (reduo de gravidez na adolescncia), Criando

    Redes de Esperana (assistncia s crianas e jovens usurios de drogas e

    4 Os Mdulos de Sade da Famlia foram criados para ampliar a cobertura dos Centros de Sade em

    locais afastados e de difcil acesso ao Centro de Sade da rea de abrangncia.

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    em situao de rua) e Quebrando o Silncio (assistncia s vtimas de

    violncia domstica e abuso sexual), constituda pelos seguintes

    equipamentos de referncia: CRAISA (Centro de Referncia e Ateno Integral

    Sade do Adolescente), CEVI (Centro de Vivncia Infantil) e SADA (Servio

    de Ateno s Dificuldades de Aprendizagem);

    - Rede de ateno dependncia qumica: Com dois servios de

    referncia, o CRIAD (Centro de Referncia e Informao sobre Alcoolismo e

    Drogadio) e o NADEQ-24hs (Ncleo de Dependncias Qumicas - a proposta

    de assistncia preferencialmente ambulatorial, mas conta com leitos em

    hospitais gerais e no NADEQ para desintoxicao e avaliao clnica, quando

    necessrio).

    Um dos grandes desafios para a sade mental, os quais o Programa

    Paidia vem procurando enfrentar atravs do Apoio Matricial, que a lista de

    espera e outras formas de represso da demanda se transformem e consigam

    ocupar os espaos coletivos de convivncia. (...) a maior contribuio para a

    preveno e promoo sade mental ser a possibilidade de facilitar a

    relao e o convvio entre as pessoas(CAMPINAS, 2001a: 19).

    Para isso, o municpio conta com trs Centros de Convivncia

    organizados nos Distritos Leste, Noroeste e Sudoeste. Esses Centros de

    Convivncia so espaos culturais, criados para estimular a ampliao das

    redes sociais e promover a incluso social, que auxiliam no fortalecimento da

    auto-estima das pessoas e no resgate da cidadania. So utilizados como

    dispositivo teraputico para a ateno em sade mental e so abertos

    comunidade em geral.

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    nesse cenrio que o Apoio Matricial vem sendo construdo. Em cada

    contexto institucional e de acordo com os recursos disponveis em cada regio

    de Campinas, esse arranjo adquire formas peculiares de configurao,

    refletindo tempos e histrias diferentes, mas que em geral vm sendo

    pactuadas entre gestores e profissionais.

    Muitos so os avanos em desenvolvimento e outras tantas so as

    dificuldades reconhecidas. Por ser o Apoio Matricial um arranjo inovador e

    recentemente implantado, de grande importncia a formulao de propostas

    de avaliao dessa experincia e de outras que forem surgindo, j que, em

    nvel nacional, o Ministrio da Sade (BRASIL, 2003) tem estimulado a sua

    utilizao como forma de aprimorar a rede de sade dos municpios.

    Alm disso, como qualquer arranjo que se institucionaliza, o Apoio

    Matricial no est a salvo de ser capturado pela lgica dominante (ONOCKO

    CAMPOS, 2003) das organizaes de sade. Por essa razo, uma anlise

    crtica e constante fundamental para realimentar a sua funo contra-

    hegemnica.

    Assim, reiteramos a importncia do debate sobre esta e outras

    estratgias possveis para tecer uma rede de ateno que seja capaz de

    sobrepor sade e sade mental como instncias interligadas e

    complementares. Uma rede que, sobretudo, incite o movimento de acordo com

    as necessidades sociais e de sade das pessoas s quais ela se destina. Uma

    rede efetiva de ajuda e socorro ao usurio da sade mental e no uma teia na

    qual ele fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da des-

    responsabilizao, uma rede de salvamento e no de captura e indefesa.

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    II. Objetivos

    Geral:

    Analisar o funcionamento do arranjo Apoio Matricial da sade mental no

    Programa Paidia Sade da Famlia de Campinas (SP).

    Especficos:

    - Investigar como vem se dando a articulao entre as equipes de sade

    mental e as Equipes de Referncia do PSF de Campinas;

    - Investigar se a sade mental, na rede bsica de Campinas, tem sado do

    papel de especialidade e se constitudo como rede de Apoio Matricial

    para as Equipes de Referncia;

    - Analisar como e se a reorganizao do processo de trabalho baseada

    no Apoio Matricial tem contribudo para a ampliao da clnica na rede

    bsica de Campinas.

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    III. Pressupostos metodolgicos

    Por que?

    Quem faz essa pergunta se encontra diante de um enigma, algo que no entende. No

    entende e di. preciso que o no-entendido doa para que a pergunta brote. H muitas coisas

    que no entendemos. Mas elas no doem. No doendo, no fazemos a pergunta. Fazemos a

    pergunta para diminuir a dor, para dar sentido dor.

    RUBEM ALVES

    Optamos pela hermenutica como abordagem metodolgica para

    nortear a pesquisa, especialmente porque ela privilegia a historicidade do

    objeto e a reflexo vinculada praxis.

    A hermenutica uma disciplina antiga que se ocupava especialmente

    da compreenso de textos bblicos. Pode-se consider-la como uma postura

    interrogativa, que busca a compreenso do sentido daquilo que est sendo

    comunicado num texto, aqui entendido de forma ampla: biografia, narrativa,

    discurso, documento, livro, dentre outros.

    Analisando as diferentes linhas de produo em torno da hermenutica,

    Ayres (2005) se refere Teoria hermenutica como um conjunto de princpios

    e procedimentos metdicos usados na exegese dos textos bblicos, na

    interpretao de obras clssicas e na interpretao e aplicao jurdica do

    esprito das leis. Segundo o autor, esses princpios foram posteriormente

    unificados em uma nica cincia e arte da compreenso em geral, na medida

    em que o escopo da hermenutica foi historicamente sendo ampliado,

    passando, assim, de uma condio de regras e tcnicas interpretativas a uma

    filosofia, um modo de compreender a existncia.

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    A Filosofia hermenutica passa ento a consistir numa reflexo

    metadiscursiva que vai alm da compreenso de textos e obras, e funda na

    linguagem a compreenso das prprias realidades humanas. Para Ayres

    (ibidem), Gadamer, o principal terico da hermenutica filosfica, no aborda a

    hermenutica como uma metodologia, mas a entende como uma atitude

    filosfica que sustenta procedimentos cognitivos de modo geral.

    Em sua obra Verdade e Mtodo (1997), Gadamer trabalha com alguns

    conceitos que fundamentam o processo hermenutico da compreenso:

    tradio, preconceito, histria efeitual.

    Encontramo-nos sempre imersos na tradio. Tradio que expressa

    atravs de mltiplas vozes que ressoam tanto o hegemnico quanto o novo,

    estando sempre atuante no presente e nas mudanas histricas.

    Para Gadamer (1997), o distanciamento histrico que produz uma

    tenso capaz de interpelar o pesquisador com indagaes a respeito de uma

    dada realidade. O presente e suas questes no compreendidas voltam a

    ateno do pesquisador para o passado, para a tradio e a historicidade

    dessas questes.

    Assim, nesse encontro entre passado e presente que o pesquisador

    opera na tentativa de responder quilo que o interpelou, se d o que o autor

    chama de destaque do objeto.

    O conceito de destaque do objeto colocado como uma relao

    recproca. O que deve ser destacado tem que destacar-se de algo (...). Todo

    destacar algo torna simultaneamente visvel aquilo do qual se destaca (Op.

    Cit.: 457), de tal modo que o contexto scio-histrico no qual o objeto veio se

    constituindo deve permear constantemente o processo de compreenso. No

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    nosso caso, como o Apoio Matricial se destina a transformar prticas

    hegemnicas na sade, a investigao esteve implicada com as tradies da

    rea que comparecem e se atualizam nas prticas atuais.

    Gadamer discute a funo positiva do preconceito como sendo a

    condio, a mola propulsora do movimento hermenutico. No seria possvel

    afastarmo-nos de nossos preconceitos, que esto mais prximos de valores e

    de crenas do que da racionalidade, numa suposta neutralidade cientfica como

    ambiciona o pensamento positivista.

    Nossos conceitos prvios permeiam inevitavelmente nossa

    compreenso, de forma que, quando entramos em contato com o objeto, o

    fazemos a partir de determinadas expectativas e de determinados projetos de

    sentido que desenhamos previamente. A compreenso do que est posto no

    texto consiste precisamente na elaborao desse projeto prvio, que,

    obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se d

    conforme se avana na penetrao do sentido (Op. Cit.: 402).

    Para a hermenutica, o exerccio constante da interrogao a nica

    forma de passarmos dos nossos conceitos prvios ao entendimento daquilo

    que de fato diz o texto. dar-mo-nos conta dos prprios pressupostos, para

    que o texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar

    sua verdade com as nossas opinies prvias pessoais.

    atravs do exerccio da pergunta sobre os prprios preconceitos e do

    reconhecimento das vozes do passado e da tradio, que a histria faz efeito

    e ento o objeto pode destacar-se.

    So os efeitos da histria no presente que determinam o que se mostra a ns

    como algo questionvel e passvel de transformar-se num objeto de

    43

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    investigao. Portanto, a questo da aplicao do conhecimento est colocada

    desde o incio, pois o prprio contexto da aplicao que faz possvel o

    destaque do objeto.

    A aplicao , no processo hermenutico, to essencial quanto a

    compreenso e a interpretao. Um saber geral que no saiba aplicar-se

    situao concreta permanece sem sentido (GADAMER, 1997: 466). E o

    problema da aplicao, posto que faz parte do mundo da ao e da situao

    concreta e real, sempre um problema tico. Interessa aqui, no o saber

    prvio da tcnica, com o qual a relao meios/fins j est resolvida a priori.

    Mas o saber-se em situao, para agir em funo de uma finalidade que no

    carrega em si os meios predeterminados para atingi-la. A tica requer sempre

    buscar conselho consigo prprio perante cada situao para, a sim, acionar

    um saber prvio (ONOCKO CAMPOS, 2004).

    Nessa perspectiva, ao analisar os entraves nos quais esbarra a

    implantao do Apoio Matricial em Campinas, pretendeu-se levantar

    proposies e buscar sadas para superar tais impasses. Isso considerando

    que as concluses sero sempre concluses provisrias, j que esto referidas

    a um dado momento histrico e, assim, passveis de novas formulaes. Ainda,

    a pesquisa teve a inteno de promover um espao de anlise e reflexo para

    que os participantes extrapolassem o papel de mera fonte de dados, sendo

    estimulada sua capacidade crtica para gerar possveis transformaes e

    intervenes na realidade.

    Apoiamo-nos tambm em Ricoeur que, a partir de Gadamer, prope

    conectar teoria crtica e hermenutica. Para este autor, o discurso sempre

    discurso a respeito de algo (...) a vinda linguagem de um mundo

    44

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    (RICOEUR, 1990: 46) e portanto, para a interrogao hermenutica, interessa

    o tipo de mundo que aberto pelo texto, que o que possibilita que a

    hermenutica comporte uma crtica do real.

    O que produz o distanciamento necessrio compreenso a fixao

    do discurso na escrita. Na escrita, a comunicao se d na e pela distncia,

    no h situao comum ao escritor e ao leitor.

    Assim, a escrita torna o texto relativamente autnomo em relao s intenes

    do autor, o que possibilita que o texto se abra sucessivas leituras situadas em

    diversos contextos scio-culturais, podendo se descontextualizar para depois

    ser recontextualizado numa nova situao. Nisso est a instncia crtica da

    interpretao.

    Porm, uma hermenutica crtica deve basear-se no apenas na escrita,

    mas na obra, que objetivao de uma prxis e revela o tipo de ser-no-mundo

    do texto. Ricoeur chama de agenciamento formal essa busca pela proposio

    de mundo que est contida no texto, a reatualizao, na leitura, do mundo

    prprio quele texto que nico.

    O que deve ser interpretado, num texto, essa proposio de mundo.

    Porm, ela no se encontra atrs do texto, como uma espcie de inteno

    oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela

    (Op. Cit.: 58).

    Com essa dimenso mediadora prpria ao texto, Ricoeur marca a

    entrada em cena da subjetividade do intrprete, j que o carter fundamental

    do discurso ele ser sempre dirigido a algum. Para o autor, compreender

    compreender-se diante do texto (Op. Cit.: 58). No se trata de projetar-se no

    texto, mas expor-se a ele e ao contato com o mundo que se manifesta diante

    45

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    dele. A subjetividade do intrprete assim colocada em suspenso, irrealizada e

    potencializada, do mesmo modo que o mundo do texto.

    Cabe ressaltar que, como no estudo de Soares (1999), extrapolamos a

    postura hermenutica na compreenso de textos que foram escritos

    precisamente como composio literria, cientfica ou artstica, para utiliz-la

    na interpretao de textos construdos a partir do desenho metodolgico que se

    adotou nesta pesquisa, ou seja, do material transcrito das discusses em

    grupos focais com os atores envolvidos com o nosso objeto de estudo.

    A interpretao aqui entendida como sendo composta pelos

    movimentos da anlise e da construo (FREUD, 1975; ROUDINESCO &

    PLON, 1998; ONOCKO CAMPOS, 2005), com os quais procuramos agregar os

    fragmentos histricos e inerentes ao nosso tema na produo de linhas de

    sentido.

    Essa construo de sentido se d atravs do que Ricoeur (1997) chama

    agenciamento dos fatos, ou seja, da sua composio de modo narrativo5.

    Fazer rupturas e religaes, encadeando acontecimentos, histrias e

    linhas argumentativas, para depois reuni-los em uma narrativa. Uma narrativa

    que recupera a tradio para produzir um sentido novo e, ainda, necessrio, j

    que se trata de histrias ainda no narradas e por estarem inseridas no campo

    da prxis, pedem para ser contadas(Op. Cit.: 115).

    5 Essa questo ser aprofundada mais adiante, no captulo V.

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    IV. O trabalho de campo

    Para o delineamento do trabalho de campo, nos inspiramos em alguns

    instrumentais da pesquisa avaliativa, mais especificamente da avaliao de

    quarta gerao, como intitulada por Guba & Lincoln (1989).

    Estes autores reconhecem que um processo avaliativo sempre ir

    envolver um juzo de valor sobre o que se pretende avaliar. Como discutido por

    Furtado (2001), isso implica a necessidade de ampliar e diversificar os eixos

    em torno dos quais so emitidos tais julgamentos, de forma que a avaliao

    no se torne arbitrria.

    Devem, portanto, ser includos no processo avaliativo os diferentes

    pontos de vista dos grupos envolvidos com o programa ou servio avaliado, os

    quais emitiro seus distintos e eventualmente divergentes julgamentos.

    Os grupos envolvidos com o programa/servio, comumente chamados

    stakeholders ou grupos de interesse, so as organizaes, grupos ou pessoasque sero potencialmente vtimas ou beneficirios do processo avaliativo. So

    formados por pessoas que tm caractersticas comuns e que esto envolvidas

    ou podero ser afetadas pela avaliao (FURTADO, 2001).

    Apesar de no se configurar como um processo avaliativo formal, esta

    pesquisa se props a trabalhar com os principais agentes envolvidos na

    implantao do Apoio Matricial, a fim de analis-lo a partir de seus diferentes

    olhares. Assim sendo, foram definidos como grupos de interesse da pesquisa:

    - Profissionais de sade mental da rede (Unidades Bsicas e Caps), que

    realizam o Apoio Matricial;

    - Profissionais de Equipes de Referncia de Unidades Bsicas que

    possuem equipes de sade mental;

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    - Profissionais de Equipes de Referncia de Unidades que no possuem

    sade mental (Essa distino se deu porque nas Unidades que no possuem

    equipes de sade mental, o Apoio Matricial feito por profissionais de outras

    Unidades ou do Caps da regio);

    - Gestores (Coordenadora de Sade Mental da Secretaria Municipal de

    Sade, equipe de apoiadoras distritais de sade mental e coordenadores de

    Unidades Bsicas), j que a implantao do Apoio Matricial depende, em

    grande medida, de sua funo de governo6.

    Para incluir os grupos de interesse e seus diferentes pontos de vista, foi

    necessrio construir, junto com tais grupos, um referencial terico comum

    sobre o Apoio Matricial. Realizamos uma primeira etapa de discusso para

    formar um consenso sobre seus objetivos, meios e resultados pretendidos, que

    pudesse servir como parmetro para as reflexes sobre o cotidiano dos

    servios e as construes da realidade efetivadas por cada grupo.

    Esse referencial foi construdo atravs de informaes obtidas nas

    discusses com os grupos de interesse (como se ver a seguir), anlise de

    documentos da Secretaria Municipal de Sade referentes ao Apoio Matricial e

    observaes da prpria pesquisadora. Uma vez delineado um quadro terico

    geral, baseado nas informaes dessas diferentes fontes, ele foi sintetizado na

    forma de um esquema grfico e um conjunto dos principais tpicos que

    definem e descrevem o Apoio Matricial.

    Na etapa seguinte, o referencial terico comum foi apresentado a cada

    um dos grupos de interesse para que pudesse ser negociado e validado.

    6 Assumindo os riscos inevitveis de qualquer escolha, os usurios, embora sejam evidentemente afetados

    pelas transformaes tecno-assistenciais, no foram por ns includos como um grupo de interesse dapesquisa, j que nosso objetivo principal era analisar o funcionamento do Apoio Matricial enquanto

    arranjo transformador das prticas profissionais, a partir do destaque da gesto do processo de trabalho.

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    Tomando-o como pano de fundo, cada grupo de interesse pde discutir sobre

    suas opinies, questes e experincias relacionadas ao Apoio Matricial. Tais

    questes foram fomentando as discusses subseqentes com os outros grupos

    de interesse, assim como as anlises de documentos e observaes da

    pesquisadora alimentaram as discusses de forma a expandir a interlocuo e

    o referencial utilizado pelos participantes.

    Tcnica de coleta de dados: grupos focais

    O grupo focal uma tcnica que permite a obteno de dados a partir de

    encontros grupais entre pessoas que compartilham traos comuns.

    Caracteriza-se pelo interesse nos conhecimentos, opinies, representaes,

    atitudes e valores dos participantes, e possibilita uma anlise em profundidade

    de dados obtidos nessa situao de interao grupal (WESTPHAL, BGUS &

    FARIA, 1996).

    Essa tcnica tem sido bastante utilizada na conduo de grupos de

    discusso, em investigaes nas reas educacionais, de sade e das cincias

    sociais, com a finalidade de acompanhar e avaliar experincias, programas e

    servios, a partir do ponto de vista dos grupos neles envolvidos (WESTPHAL,

    BGUS & FARIA, 1996; WORTHEN, SANDERS & JAMES, 2004).

    Segundo Westphal (1992), o grupo focal permite verificar de que modo

    as pessoas avaliam uma experincia, como definem um problema e como suas

    opinies, sentimentos e representaes encontram-se associados a

    determinado fenmeno. Trata-se de desenvolver um processo que visa

    compreenso das experincias dos participantes do grupo, do seu prprio

    ponto de vista.

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    Optamos pelo grupo focal como estratgia de coleta de dados,

    pensando no que comenta Minayo: ... no mbito de determinados grupos

    sociais atingidos coletivamente por fatos ou situaes especficas,

    desenvolvem-se opinies informais abrangentes, de modo que, sempre que

    entre membros de tais grupos haja intercomunicao sobre tais fatos, estes se

    impem, influindo normativamente na conscincia e no comportamento dos

    indivduos (MINAYO, 2000: 129).

    De acordo com Westphal, Bgus & Faria (1996), como as percepes,

    atitudes, opinies e representaes so socialmente construdas, a expresso

    das mesmas mais facilmente captada durante um processo de interao em

    que comentrios de uns podem fazer emergir a opinio de outros.

    Alm de possibilitar a apreenso no somente do que pensam os

    participantes, mas tambm porque eles pensam de determinada forma, essa

    interao grupal proporciona que o pesquisador possa observar como a

    controvrsia vem tona e como os problemas so resolvidos (WESTPHAL,

    BGUS & FARIA, 1996), evidenciando os diferentes graus de consensos e

    dissensos existentes (FURTADO, 2001).

    O moderador dos grupos tem um papel fundamental na conduo da

    discusso. Ele deve criar uma atmosfera permissiva e no ameaadora entre

    os participantes, deve manter a discusso focalizada no assunto, encorajar

    todos os participantes a contribuir para a discusso, resolver conflitos e solicitar

    maiores informaes quando a discusso no estiver clara. Deve resumir e

    devolver ao grupo, periodicamente, as idias bsicas resultantes das

    discusses, para encadear os assuntos e solicitar maiores esclarecimentos

    (WESTPHAL, 1992).

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    Acrescenta-se a isso o moderador como algum que pode, de um ponto

    de vista externo ao grupo, contribuir com outras snteses a partir das questes

    trabalhadas no grupo e de suas prprias leituras prvias sobre o assunto

    (FURTADO, 2001).

    Os grupos focais, numa pesquisa, costumam ser coordenados por um

    nico moderador, a fim de garantir certa homogeneidade na conduo dos

    grupos. O moderador deve contar com o auxlio de um observador, que estar

    atento para as comunicaes no-verbais, anotando as contribuies de cada

    membro do grupo, as conversas paralelas, os momentos que parecem

    significar unanimidade ou discordncia, entre outros aspectos que se

    mostrarem relevantes (WESTPHAL, 1992). Alm disso, para garantir a coleta

    dos dados, a discusso deve ser udio-gravada, com o conhecimento e

    autorizao dos participantes.

    Para o planejamento dos grupos focais necessrio definir os sujeitos

    participantes, a composio dos grupos e um roteiro de questes de interesse

    para a discusso.

    Segundo Westphal (1992), o critrio de seleo dos participantes usado

    para o grupo focal intencional, e se baseia na concepo de que a posio

    que o indivduo ocupa na estrutura social se associa sua construo social da

    realidade. Essa realidade est intimamente relacionada forma como os

    indivduos se posicionam em relao s questes propostas.

    A composio dos grupos focais deve, preferencialmente, privilegiar a

    homogeneidade entre os participantes. Os grupos mais homogneos permitem

    obter resultados mais ricos e aprofundados sobre o tema (WESTPHAL, 1992),

    na medida em que cada grupo elabora e esmia as questes em discusso a

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    partir de seu lugar especfico enquanto componentes da trama social. Ademais,

    a homogeneidade desejvel para facilitar a interao grupal (WORTHEN,

    SANDERS & JAMES, 2004), ao passo que a heterogeneidade e as diferenas

    muito marcantes em termos de educao, papis sociais ou autoridade podem

    inibir as relaes interpessoais.

    O roteiro da discusso composto por um conjunto de tpicos ou

    questes abertas, que focaliza os temas de interesse da pesquisa. Esse

    roteiro, formulado em funo dos objetivos e do referencial terico assumido,

    serve como guia para o moderador coordenar a discusso (WESTPHAL, 1992).

    Como se trata de uma discusso grupal, e no uma entrevista em grupo,

    o roteiro deve ser flexibilizado. No h seqncia rgida de tpicos, eles muitas

    vezes vo emergir espontaneamente a partir do andamento da prpria

    discusso, ou podero ser introduzidos pelo moderador, que ir encadear um

    tpico a outro e aprofundar as questes discutidas.

    De acordo com Westphal (1992), os grupos focais colocam as pessoas

    em situaes prximas situao real de vida, oferecendo ao pesquisador a

    possibilidade de apreender a dinmica social e analisar a forma que adquirem

    as relaes interpessoais no contato com o tema em discusso.

    Assim, essa tcnica nos pareceu bastante apropriada aos propsitos da

    pesquisa, j que interessava analisar o posicionamento dos trabalhadores na

    constituio das equipes e a maneira pela qual isso se reflete na organizao e

    no processo de trabalho. Alm disso, consonante com os princpios da

    pesquisa, o espao de discusso e anlise promovido nos grupos focais

    favorece o desenvolvimento da capacidade crtica dos sujeitos, potencializando

    sua ao prtica e as possveis intervenes no cotidiano dos servios.

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    Os grupos focais em ao

    O trabalho de campo iniciou aps a aprovao da pesquisa pelo Comit

    de tica da FCM e pela Secretaria Municipal de Sade de Campinas7.

    Foram feitos cinco grupos focais, nos quais participaram profissionais de

    todos os Distritos de Sade de Campinas, representando cada um dos grupos

    de interesse (como descrito anteriormente: profissionais de sade mental,

    profissionais de Equipes de Referncia de Unidades Bsicas que possuem

    profissionais de sade mental e de Unidades que no possuem, e os

    gestores)8.

    Partindo dos grupos de interesse, a escolha dos profissionais que

    participariam dos grupos focais foi feita juntamente com a equipe de

    apoiadoras distritais. A consigna para essa escolha era que o profissional

    deveria estar envolvido, de alguma maneira, com o Apoio Matricial, fosse um

    profissional engajado nesta proposta ou fosse um crtico dela. Cada apoiadora

    distrital indicou os profissionais de seu Distrito que poderiam melhor contribuir

    com a pesquisa e a partir desta indicao foram feitos os contatos para a

    apresentao da pesquisa e o convite para a participao nos grupos.

    Todos os grupos foram coordenados pela pesquisadora, que atuou

    como moderadora da discusso, facilitando que cada participante pudesse

    expressar suas opinies e pareceres a respeito do tema proposto e focalizando

    o debate para as questes mais pertinentes. A pesquisadora contou com o

    auxlio de uma observadora, encarregada de captar as informaes no-

    verbais e ajudar na anlise de eventuais vieses existentes.

    7 Ver anexos 1 e 2.8 Para uma melhor compreenso da conformao dos grupos focais, ver anexo 3.

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    As discusses foram udio-gravadas, com a autorizao dos

    participantes, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido9.

    Eram duas as etapas para os grupos focais. A primeira tinha como

    objetivo construir, junto com os profissionais, o referencial terico comum do

    Apoio Matricial. A segunda etapa seria o momento de analisar as vicissitudes

    da prtica do Apoio Matricial, tendo o referencial terico como pano de fundo.

    Nesta primeira etapa para a construo do referencial terico comum

    fizemos um grupo focal misto, composto por representantes de cada um dos

    grupos de interesse: trs apoiadoras distritais, quatro profissionais de sade

    mental (dentre estes, duas psiclogas e duas terapeutas ocupacionais) e uma

    profissional de Equipe de Referncia (mdica generalista). A composio mista

    deste grupo foi necessria para incluir, j desde o incio do processo, as

    diferentes perspectivas na elaborao compartilhada do referencial terico.

    Aps apresentarmos o desenho geral da pesquisa, seus objetivos,

    questes e procedimentos, os participantes foram convidados a falar sobre o

    que entendiam como Apoio Matricial e o debate centrou-se na construo de

    um consenso possvel sobre esse arranjo.

    Sempre que necessrio e quando a discusso se desdobrava para as

    particularidades do cotidiano dos servios, a pesquisadora focava a discusso

    para os princpios e objetivos do Apoio Matricial, recolocando a inteno desta

    primeira etapa e a importncia da consolidao de um referencial comum para

    nortear as anlises dos prximos grupos.

    Na segunda etapa seria o momento de validar o referencial terico do

    Apoio Matricial construdo no grupo anterior, e confront-lo com a sua prtica,

    9 Anexo 4.

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    a fim de que fossem colocados em discusso, a partir de um referencial

    compartilhado, os consensos e os eventuais antagonismos entre o que os

    profissionais supem que seja o Apoio Matricial e o modo como ele de fato

    operado. Nesta segunda etapa foram feitos quatro grupos focais, agora

    grupos homogneos em relao aos grupos de interesse, ou seja, cada grupo

    focal era composto por profissionais de cada um dos quatro grupos de

    interesse10. Os integrantes da primeira etapa (referencial terico) tambm

    participaram desta segunda etapa, agregando-se a partir do grupo de interesse

    aos outros profissionais participantes.

    Assim, a composio dos quatro grupos focais da segunda etapa se

    deu da seguinte maneira:

    Grupo focal Sade Mental: trs psiclogas e duas terapeutas

    ocupacionais.

    Grupo focal Equipes de Referncia de Unidades que possuem sade

    mental: trs mdicas, trs enfermeiras e uma auxiliar de enfermagem.

    Grupo focal Equipes de Referncia de Unidades que no possuem

    sade mental: uma mdica, uma enfermeira e trs agentes de sade.

    Grupo focal Gestores: coordenadora de sade mental da Secretaria de

    Sade, cinco apoiadoras distritais de sade mental e quatro coordenadores de

    Unidades Bsicas.

    Em cada um desses quatro grupos, a pesquisadora inicialmente

    apresentava a pesquisa e seu