SAUDE_MENTAL_ATENÇÃO_BÁSICA_mestrado_mariana
Transcript of SAUDE_MENTAL_ATENÇÃO_BÁSICA_mestrado_mariana
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
1/147
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL
PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA - MESTRADO
SADE MENTAL NA ATENO BSICA:
UM ESTUDO HERMENUTICO-NARRATIVO SOBRE O APOIO MATRICIAL
NA REDE SUS-CAMPINAS (SP)
MARIANA DORSA FIGUEIREDO
Campinas, Fevereiro de 2006
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
2/147
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL
PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA - MESTRADO
SADE MENTAL NA ATENO BSICA:
UM ESTUDO HERMENUTICO-NARRATIVO SOBRE O APOIO MATRICIAL
NA REDE SUS-CAMPINAS (SP)
MARIANA DORSA FIGUEIREDO
Dissertao apresentada ao curso de Ps-graduao em Sade Coletiva, do Departamentode Medicina Preventiva e Social da Faculdade deCincias Mdicas da Universidade Estadual de
Campinas, para obteno do ttulo de mestre emSade Coletiva.
Orientadora: Profa. Dra. Rosana Onocko Campos
Campinas, Fevereiro de 2006
2
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
3/147
Ao meu pai (na memria),que me narrava histrias antes de dormir.
3
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
4/147
Agradecimentos
Enfim, posso tentar retribuir com essas lembranas queles que me
apoiaram na realizao desse trabalho, espero que continuemos trocando.
Rosana, mais que orientadora... Pela aposta e confiana, sempre
muito bem combinadas sutileza com que me assegurava nos momentos de
hesitao. Meu agradecimento e respeito por todos esses anos de formao.
s equipes do Centro de Sade So Marcos, em particular Vera, Dra.
Valria e Dr. Pedro. Do nosso trabalho surgiram as indagaes que me
impulsionaram ao mestrado.
Agradeo especialmente a todos os profissionais que trouxeram sua voz
nos grupos focais, gentilmente se deslocando de suas Unidades para tornar
possvel essa pesquisa, e que constroem no cotidiano os novos rumos da
sade mental.
Cilene, Rosa, Ana Carla, Carol, Stella e Gabi, porque se desdobraram
para pensar comigo a composio dos grupos focais, e deles participaram,
empenhadas na concretizao de tantos desafios da Reforma.
Gabi, em especial, que durante anos de convivncia me inspirava a
seguir pela Sade Coletiva.
Clarice, pela sua contribuio nas discusses e pela paixo e
delicadeza com que desenvolve seu trabalho.
rsula e Nusha, pelas sensveis observaes durante os grupos
focais.
Ao Juarez Furtado, pelos apontamentos sempre enriquecedores.
Ao Gasto Wagner, cuja obra me mobiliza at aqui e para alm.
Aos professores Everardo Nunes e Paulo Dalgalarrondo, pelas valiosascontribuies no exame de qualificao.
turma do mestrado, pois, acompanhadas, era mais fcil seguir.
Ao nosso grupo de pesquisa. Processando dvidas hermenuticas
sempre com bom humor.
Rose, pelo bem vindo socorro em algumas transcries.
Ao CNPq, pelo financiamento da pesquisa.
Ao Regis, pela sua fantstica ttica de ensinar ingls para quem teimavano querer aprender.
4
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
5/147
Nusha (de novo), pela amizade inigualvel e pelas conversas de fim
de tarde, quando dividimos as alegrias e as dores da vida enquanto passeamos
com nossos cachorros.
Ao Nelson e Larissa (pais da Elis), querido casal que me incentivou
tanto, da reviso do projeto sincera comemorao pela minha entrada no
mestrado, e depois as perguntas interessadas sobre o trabalho.
Ao Andr, pelas interlocues interminveis que adoramos e porque
pudemos compartilhar nossas experincias (por vezes dolorosas) de ter a
palavra como isca de sentidos.
Leo, amiga decidida, por me mostrar que na vida podemos o quanto
queremos.
Aos queridos Cronpios, que fazem a hora do almoo incrivelmente
familiar, saborosos momentos-vrgula no trabalho de escrever.
minha famlia. Me, de quem herdei a determinao. Marina, Srgio e
Lucas, Marcelo e Gr, vibram comigo a cada conquista. Lvia, pequena sapeca,
porque veio e nos chama a brincar.
Ao Marcus, minha paixo... Suportando minha ansiedade e
compenetrao exageradas nos momentos mais cruciais da pesquisa, me
lembrava que ela era somente mais uma das delcias da minha vida.
5
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
6/147
A solidez da terra, montona,
parece-nos fraca iluso.
Queremos a iluso grande do mar,multiplicada em suas malhas de perigo.
CECLIA MEIRELES
6
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
7/147
Sumrio
Resumo......9
I. Introduo...........................................................................................11
No passo da Reforma.11
A sade mental na rede bsica.....14
Uma rede ou um emaranhado?..............................................................19
O Apoio Matricial: imbricando sade e sade mental.......25
Sade mental e Apoio Matricial no Paidia Sade da Famlia...............33
II. Objetivos..40
III. Pressupostos metodolgicos.........................................................41
IV. O trabalho de campo...47
Tcnica de coleta dos dados: grupos focais...........................................49
Os grupos focais em ao.......................................................................53
V. Interpretao: a narrativa alinhavando sentidos...........................57
VI. Referencial terico comum.............................................................62
VII. As narrativas: diferentes olhares sobre o Apoio Matricial.........66
1) O que diz a sade mental?.................................................................66
2) A vez das Equipes de Referncia: Parte I..........................................833) A vez das Equipes de Referncia: Parte II.........................................95
4) Da perspectiva do gestor..................................................................104
VIII. A meta-narrativa: tecendo o nosso enredo..............................117
IX. Referncias bibliogrficas............................................................132
Anexos.................................................................................................141
7
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
8/147
Lista de abreviaturas
AB: Ateno Bsica
APS: Ateno Primria em Sade
CAPS: Centro de Ateno Psicossocial
CEVI: Centro de Vivncia Infantil
CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
CONASP: Conselho Consultivo da Administrao de Sade Previdenciria
CRAISA: Centro de Referncia e Ateno Integral Sade do Adolescente
CRIAD: Centro de Referncia e Informao sobre Alcoolismo e Drogadio
CS: Centro de Sade
ER: Equipe de Referncia
FCM: Faculdade de Cincias Mdicas
MS: Ministrio da Sade
NAC: Ncleo de Ateno Crise
NADEQ: Ncleo de Dependncias Qumicas
NAPS: Ncleo de Ateno Psicossocial
NOT: Ncleo de Oficinas e Trabalho
OMS: Organizao Mundial da Sade
ONG: Organizao No-Governamental
PSF: Programa de Sade da Famlia
PTS: Projeto Teraputico Singular
SADA: Servio de Ateno s Dificuldades de Aprendizagem
SM: Sade Mental
SMS: Secretaria Municipal de Sade
SRT: Servio Residencial TeraputicoSUS: Sistema nico de Sade
TO: Terapia Ocupacional
UBS: Unidade Bsica de Sade
8
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
9/147
Resumo
Na presente investigao realizamos uma anlise sobre a organizao
das aes de sade mental na rede bsica de sade de Campinas (SP), a
partir da implantao do arranjo de gesto denominado Apoio Matricial. Esse
arranjo visa disparar a ampliao da clnica das equipes interdisciplinares de
sade e reorientar a demanda para a sade mental. Desviando a lgica de
encaminhamentos indiscriminados para uma lgica da co-responsabilizao,
ele pretende produzir maior resolutividade assistncia em sade.
Realizamos grupos focais com profissionais de sade mental, das
Equipes de Referncia e gestores, e procuramos, sob a tica da abordagem
hermenutica-crtica, encadear suas principais linhas argumentativas de modo
narrativo, a fim de combinar a anlise com a construo de sentidos para o
material produzido. Aps essas construes narrativas, produzimos uma meta-
narrativa, conectando os diferentes enredos e vinculando-os ao contexto
histrico-social da sade mental e da sade coletiva. Pretendemos, com isso,
contribuir para que as discusses geradas pelos profissionais possam ser
significadas no interior das transformaes polticas e assistenciais na rea da
sade mental.
Palavras-chave: sade mental, ateno bsica sade, apoio matricial, gesto.
9
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
10/147
Abstract
By means of the present study, we analyzed the organization of mental
health actions in the basic health network of the city of Campinas (SP), from the
implantation of arrangements for the management called Matricial Support.
These arrangements aim to advance the enlargement of the clinic of health
interdisciplinary teams and reorient the demand for mental health. By deviating
the logic of indiscriminate referrals to the logic of co-responsibility, it intends to
produce a larger solvability to health assistance.
We created focal groups with mental health professionals, from reference
teams and managers, and we searched for, under the optics of the
hermeneutic-critical approach, an interrelation of their main argumentative lines
in a narrative way, with the purpose of combining the analysis with the
construction of meanings for the material produced. After these narrative
constructions, we produced a narrative goal, linking the different plots and
joining them to the social-historical context of mental health and collective
health. With that, we intended to contribute so the discussions generated by the
professionals may be signified in the interior of political and assistance
transformations in the area of mental health.
Key-words: mental health, basic health care, matricial support, management.
10
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
11/147
En medio de la maraa, Dios, la araa.
ALEJANDRA PIZARNIK
I. Introduo
No passo da Reforma
Nos ltimos anos, a Reforma Psiquitrica brasileira tem avanado
vigorosamente na reformulao da ateno em sade mental, desconstruindo
conceitos e prticas baseadas no isolamento e na excluso social como formas
de tratar a loucura.
A partir do fim da dcada de 80, profissionais de sade mental1
articulam-se em torno do lema Por uma sociedade sem manicmios e
desencadeiam um amplo debate nacional sobre a loucura, a psiquiatria e a
violao de direitos humanos nos manicmios, e passam a impulsionar
processos de desinstitucionalizao e criao de novas propostas assistenciais
(AMARANTE, 2001).
Atravs de aes incisivas na cultura e da ampliao dos atores sociais
envolvidos, o Movimento da Luta Antimanicomial extrapola o contorno das
aes institucionais e de assistncia e passa a difundir a crtica ao manicmio e
as discusses sobre o tema da Reforma Psiquitrica, chamando a sociedade a
reconstruir sua relao com o louco e com a loucura (TENRIO, 2002),
condio fundamental para o sucesso das iniciativas de reabilitao
psicossocial.
Tais aes na cultura foram fatores estratgicos e potencializadores do
processo de desinstitucionalizao, j que se tratava no apenas de
1
Movimento dos Trabalhadores da Sade Mental, Rede de Alternativas Psiquiatria, AssociaoBrasileira de Psiquiatria, entre outros atores, que vieram compor, juntamente com usurios e familiares, o
Movimento da Luta Antimanicomial.
11
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
12/147
desospitalizar os pacientes, mas de romper com o saber psiquitrico enquanto
ideologia (BASAGLIA, 1985) e desconstruir todo um aparato manicomial que se
estende s atitudes sociais, intolerncia frente s diferenas, s relaes de
poder, dominao e excluso que se estruturam em torno da loucura
(AMARANTE, 1995).
Esse contexto de movimentao social e poltica, estreitamente ligado
ao processo de redemocratizao do pas, cria as condies histricas para o
surgimento de outras possibilidades de olhar e tratar a loucura e o sofrimento
psquico, sendo ento nas dcadas de 80 e 90, delineadas grandes
transformaes no cenrio das polticas pblicas em sade mental, na tentativa
de supresso do manicmio2.
Atravs de uma intensa produo terica e de novas experincias
assistenciais, houve um esforo em direo implantao de uma poltica que
promovesse mudanas nos servios e nas prticas profissionais. Mudanas
que representaram negar a tutela como interveno teraputica, para construir
uma assistncia baseada na produo de vida e de subjetividades, no
restabelecimento das relaes afetivas e sociais dos sujeitos e na reconquista
de seu poder social (DELGADO, GOMES & COUTINHO, 2001).
nesse marco, que o Ministrio da Sade promulgou as Portarias
189/91 e 224/92 (BRASIL, 1991 e 1992), que vieram anunciar um contnuo
processo de reformulao legislativa da rea, baseado inicialmente na
transferncia do financiamento de internaes psiquitricas para a criao de
servios extra-hospitalares que substituiriam os hospitais psiquitricos. Essa
poltica passou a ser desencadeada a partir das experincias pioneiras de dois
2 As propostas para reverso do modelo manicomial sucederam-se sob diferentes posies polticas, como
se ver adiante. Para uma reflexo mais aprofundada, ver Braga Campos (2000).
12
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
13/147
servios substitutivos ao hospital psiquitrico, o Centro de Ateno Psicossocial
(Caps) Prof. Luis da Rocha Cerqueira, criado em So Paulo em 1987 e os
Ncleos de Ateno Psicossocial (Naps), criados a partir de 1989 em Santos.
Desde ento, o modelo Caps passou a ser experimentado nas diversas
regies do Brasil como principal investimento da poltica de sade mental. Nas
ltimas duas dcadas o nmero de Caps implantados expandiu de forma
expressiva em todo o territrio nacional. De 1996 at 2004, o nmero de leitos
em hospitais psiquitricos caiu de 72.514 para 48.344. Com isso, houve um
grande incremento no nmero de Caps, ampliando-se de 154 servios
existentes em 1996 para 554 na atualidade (BRASIL, 2004a).
Ainda que se esteja longe de superar a supremacia do hospital
psiquitrico, o processo de extenso da cobertura dos servios substitutivos
vem ocorrendo de maneira consistente e continuada. A Coordenao de Sade
Mental do Ministrio (idem, ibidem) estima a necessidade de 750 servios no
pas (parmetro internacional adotado pelo Instituto Franco Basaglia IFB,
2004). Apesar de insuficientes para a grandeza da populao brasileira, esses
nmeros demonstram a crescente e intensiva difuso da rede substitutiva de
sade mental pelo pas, numa trajetria promissora de reverso do modelo
assistencial vigente.
Porm, essa nova rede de ateno doena mental grave, ainda que
inserida no rol das polticas pblicas de sade e alinhada aos princpios do
SUS, veio se constituindo de forma bastante afastada da rede bsica de sade,
resultando num certo descolamento entre as prticas de sade mental e as
prticas de sade na sua acepo mais ampla.
13
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
14/147
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
15/147
crise/agudizao dos sintomas, o paciente acompanhado no Centro de Sade
deva ser encaminhado para um servio de maior complexidade que, nesse
caso, seria a internao hospitalar. Ainda que se esperasse que essas
internaes ocorressem em hospitais gerais, o fato que na maioria das
regies do pas elas continuaram a acontecer no hospital psiquitrico.
Esse modelo era bastante criticado pelo Movimento de Trabalhadores da
Sade Mental que, em suas diversas formas de expresso, defendiam uma
proposta mais radical (no sentido de ser levada s ltimas conseqncias) de
desinstitucionalizao e supresso dos manicmios. Alguns setores defendiam,
sobretudo, a criao de equipamentos intensivos para a ateno psiquitrica,
que fossem capazes de dar sustentao integral vida dos usurios, mesmo
nos episdios de crise. Isso porque, especialmente nesse momento, seria
fundamental manter o vnculo equipe/usurio.
A partir dos princpios adotados na Constituio de 1988 para a
organizao do Sistema nico de Sade, inicia-se a implementao de uma
rede bsica mais complexa que a proposta do CONASP, que deveria funcionar
no s como a porta de entrada ao sistema, mas realizar a integralidade das
aes, incorporando a preveno, a promoo e a assistncia (MERHY, 1997).
Diversos Estados brasileiros passam a propor a ampliao das equipes
de sade mental na rede bsica, visando o desenvolvimento de aes
preventivas e de nvel secundrio, tanto para pacientes com transtornos
prevalentes de menor gravidade, quanto para os pacientes egressos de
hospitais psiquitricos.
Porm, essas iniciativas no se sucederam de grande investimento
poltico. Segundo Sombini (2004), as equipes de sade mental foram
15
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
16/147
absorvidas nos servios sem qualquer reviso de seu processo de formao ou
outras propostas de capacitao profissional. Foram se compondo com
insuficincia de recursos humanos e pouca clareza do papel que deveriam
exercer. Ainda mais, poderamos afirmar que elas foram instaladas sem o
acompanhamento de dispositivos institucionais que lhes permitissem refletir
sobre as prprias resistncias tarefa primria (KAS, 1991; ONOCKO
CAMPOS, 2003), e analisar as formaes de compromisso institucionais
resultantes, o que acabou por produzir (em numerosos casos) equipes que
passaram a acompanhar as equipes das UBSs nas atividades de preveno,
promoo e educao em sade, em prejuzo do acompanhamento dos casos
mais graves.
Nessa mesma poca, como j vimos, comeam a ser criados os
primeiros servios extra-hospitalares em So Paulo e em Santos, os quais,
pela inovao e ousadia da proposta, ganharam maior visibilidade e traziam
grande repercusso para a reforma da assistncia em sade mental, visto que
eram impulsionados por forte movimento poltico e social.
Assim, o fechamento dos hospitais psiquitricos e a implementao de
equipamentos substitutivos passam a ser as principais estratgias polticas
para a sade mental nesse momento histrico, dada a necessidade e a grande
dificuldade de desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as formas
de tratamento j h muito tempo arraigadas no imaginrio social e tambm
na lgica sanitria hegemnica como muito bem destaca Amarante (2001).
Se por um lado o Caps ocupou esse lugar de destaque na reorganizao
da assistncia em sade mental, por outro, pouco se investiu para que a rede
16
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
17/147
bsica acompanhasse os avanos da rea de sade mental em sua trajetria
de transformao tecno-assistencial.
Todavia, essa dicotomia traz desdobramentos importantes para a
configurao do SUS enquanto sistema unificado e integral, assim como para a
eficcia tanto da rede bsica, quanto dos equipamentos substitutivos, dada a
dificuldade de estabelecer parcerias necessrias para uma ateno resolutiva
em sade mental.
Alm disso, o restrito investimento da Reforma Psiquitrica na rede
bsica traz repercusses para a produo de subjetividade dos profissionais,
que se mantiveram, em geral, margem do movimento social pela sade
mental e pouco engajados na criao de uma assistncia mais inclusiva e
reprodutora da vida social. Todo o movimento gerado em torno da inveno de
respostas clnico-polticas questo do sofrimento mental e a necessidade de
construo de uma assistncia territorial e integralizada, ainda hoje, na rede
bsica, encontram raro eco.
Em decorrncia disso, e ainda se considerarmos que a sade mental
veio se apresentando como uma especialidade na rea da sade, podemos
ressaltar o modo bastante burocratizado com que ela continua operando nos
Centros de Sade. Com prticas centralizadas nas tradicionais guias de
referncia e contra-referncia, encaminha-se os pacientes para outras
especialidades ou para o nvel de maior complexidade, repercutindo quase
sempre em des-responsabilizao pela produo de sade. Isso nos casos em
que os Centros de Sade possuem equipes de sade mental. O que dizer
ento das situaes de diversos municpios brasileiros em que os profissionais
17
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
18/147
de sade mental encontram-se isolados nos ambulatrios de especialidades,
recebendo os encaminhamentos da Ateno Primria?
Esse modelo de rede hierarquizada em pirmide, com seus nveis de
complexidade primria, secundria e terciria, tem sido bastante criticado por
alguns autores. Campos, j em 1994, propunha ... a substituio da pirmide
por um redemoinho de ponta-cabea. Micro-furaces com a base em
movimento sobre o solo. Ao invs de uma estrutura ossificada pelo concreto de
normas e programas, um fluxo estruturado (...). Um tufo invertido e em
movimento, tendo como fonte de energia as necessidades e interesses dos
usurios e como leme o dilogo do saber tcnico com este torvelinho de
desejos. E tudo isto mediado pela poltica (Op. Cit.: 61-62). Ceclio (1997)
discute a possibilidade de pensar a hierarquizao do sistema a partir de um
arredondamento da pirmide (Op. Cit.: 9), de modo que todo servio
funcionasse como porta de entrada s pessoas, cada servio
responsabilizando-se efetivamente por elas e realizando a integralidade
possvel das aes.
Uma ateno integral, como a pretendida pelo SUS, s poder ser
alcanada atravs da troca de saberes e prticas e de profundas alteraes
nas estruturas de poder estabelecidas, instituindo uma lgica do trabalho
interdisciplinar, por meio de numa rede interligada de servios de sade.
Nesse sentido, o descompasso aqui discutido, entre a rede bsica e a
rede de sade mental representada em especial pelos Caps, coloca-se como
grande entrave para o entrelaamento das aes que, em sade mental, uma
necessidade inquestionvel.
18
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
19/147
Uma rede ou um emaranhado?
Os Caps configuram-se como equipamentos-sntese (NICCIO, 1994),
subvertendo a lgica da hierarquizao e agregando os diferentes nveis de
ateno em uma s unidade. Definidos como servios territoriais, isso aponta,
para alm da regionalizao dos servios, idia de territrios subjetivos, ou
seja, o conjunto de referncias socioculturais e econmicas que desenham a
moldura do quotidiano do sujeito, de seu projeto de vida e de sua insero no
mundo(DELGADO apudTENRIO, 2002: 32).
Assim, a clnica no territrio no se restringe remisso de sintomas,
mas ocupa-se da existncia dos sujeitos e de suas possibilidades de habitar o
social (AMARANTE, 1995; GOLDBERG, 1992). Por isso, a assistncia nesses
servios tem um carter intensivo e suas ofertas teraputicas so diversificadas
e ampliadas para dar sustentao cotidiana s dificuldades acarretadas pela
doena mental grave.
Ainda que a clnica das psicoses e das neuroses graves esteja baseada
em cuidados intensivos de especificidade de equipamentos como os Caps
(TENRIO, 2002), a Ateno Bsica tem um papel importante no processo de
reinsero social dos usurios com transtornos psiquitricos graves, j que
tambm est imersa no territrio e , afinal, um espao de produo de sade
em geral, tanto para os usurios, quanto para suas famlias.
A questo que aqui se coloca vai alm da definio de qual servio
deveria se incumbir do paciente grave, se o Caps ou a Ateno Bsica,
outrossim, est na relao a ser construda entre os dois tipos de servios para
a composio de uma rede de ateno integral e resolutiva em sade mental e
em sade na sua acepo mais geral.
19
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
20/147
O Ministrio da Sade, em sua Portaria 336, define que os Caps devem
responsabilizar-se (...) pela organizao da demanda e da rede de cuidados
em sade mental no mbito do seu territrio e (...) desempenhar o papel de
regulador da porta de entrada da rede assistencial no mbito do seu territrio
(BRASIL, 2004b: 126).
Tomando como princpios que a clnica e a reabilitao psicossocial so
mais eficazes quando operadas no territrio existencial onde as pessoas vivem
(LANCETTI, apudBRAGA CAMPOS & NASCIMENTO, 2003) e que o Caps o
servio de referncia para a doena mental grave, ento quanto mais territorial
seja o Caps, menos a Ateno Bsica se encarregar das demandas de maior
gravidade.
Contudo, ao tomarmos o Caps como ordenador da rede, como prope o
Ministrio, no estaramos reiterando o foco nesse equipamento e o seu
isolamento em relao quela rede ampla e entrelaada de sade que
almejamos?
Nesse caso, mais apropriado seria trabalhar com o conceito-imagem de
uma rede multicntrica, em que o Caps pode funcionar como agenciador das
demandas em sade mental, mas no qual, por outro lado, cada um dos atores
sociais e servios envolvidos na ateno se destacam, em determinado
momento, de acordo com o andamento do Projeto Teraputico de cada
usurio. Uma rede que permita o entrelaamento das aes e das relaes.
Uma rede pulsante e viva, que se movimente para dar sustentao s
necessidades dos usurios e de acordo com elas. Uma rede sem centralidade,
porm quente o suficiente para agenciar as demandas dos usurios, e se
20
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
21/147
transformar em um suporte efetivo para as dificuldades em andar a vida que
esses usurios possuem.
Assim, destaca-se a necessidade de parceria entre os servios: h
casos comuns entre os servios, h situaes que dizem respeito tanto aos
Caps como Ateno Bsica. Seria o caso do usurio do Caps que da regio
de determinada equipe do Centro de Sade ou o garoto usurio de drogas que
em dado momento precisa de uma conteno de crise. Nessas situaes
fundamental a articulao dos servios, a discusso do caso comum, o
envolvimento dos diversos atores no caso em questo.
Alm disso, na Unidade Bsica de cada regio onde os usurios dos
Caps so assistidos em seus problemas de sade em geral, e sabemos o
quanto ainda necessrio desmistificar a doena mental no imaginrio dos
profissionais de sade e qualific-los para lidar com essa demanda.
Segundo estimativas da Organizao Mundial de Sade os problemas
de sade mental respondem por 12% da carga mundial de doenas (OMS,
2001). No Brasil, o Ministrio da Sade avalia que cerca de 3% da populao
apresenta transtornos mentais severos e persistentes e necessita de cuidados
contnuos, intensivos (especficos dos Caps), enquanto que 9% apresenta
transtornos mentais leves, pelos quais a Ateno Bsica deve responsabilizar-
se (BRASIL, 2003). Alm disso, de 6 a 8% da populao apresenta transtornos
decorrentes do uso prejudicial de lcool e outras drogas, e tambm na rede
bsica que se realizam as prticas de cunho preventivo e assistencial a essa
demanda (idem, ibidem).
Os transtornos psquicos leves, mais prevalentes, so manifestos
geralmente sob a forma de queixas somticas e nervosas, transtornos de
21
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
22/147
ansiedade, quadros depressivos e reativos relacionados a problemas sociais e
familiares e decorrentes do uso e abuso de psicotrpicos.
Para alm desses transtornos, so diversos os problemas advindos das
faltas concretas na vida, ou gerados pela ordem scio-econmica vigente.
inegvel que a misria em que se encontra a maior parte da populao
brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se traduz em condies
de existncia favorveis s dificuldades afetivas, emocionais e relacionais.
Existe, ainda, um componente subjetivo que se associa a toda doena
fsica. Muitas vezes ele atua como entrave ao tratamento, adeso s prticas
preventivas e at mesmo como intensificador da doena. Entre tantos
exemplos por ns j conhecidos, seria o senhor que j no v tanto valor na
vida e no mais se importa se o cigarro potencializa sua doena cardaca; a
menina que no se mobiliza para o uso do preservativo nas relaes sexuais,
preocupada com o juzo que far o seu parceiro; o paciente com cncer que
no encontra resistncia para enfrentar a doena. Esses casos todos poderiam
em muito se beneficiar com a ampliao da clnica3 das equipes do Programa
de Sade da Famlia PSF (CAMPOS, 2003).
Atualmente, o desenvolvimento da estratgia Sade da Famlia na rede
bsica vem tencionando a incorporao das dimenses subjetiva e social na
prtica clnica, atravs do princpio da ateno integral ao sujeito e por meio do
vnculo entre equipes e usurios, a fim de propiciar maior resolutividade para
os problemas de sade. Isso faz com que as equipes do PSF se deparem
cotidianamente com problemas de sade mental.
3
Consideramos o termo ampliao da clnica no sentido desenvolvido por Campos (2003). Umaresignificao da clnica, de modo a deslocar sua nfase na doena, para centr-la num sujeito concreto e
singular, portador de uma certa enfermidade.
22
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
23/147
Uma pesquisa do Ministrio da Sade mostra que 56% da equipes de
Sade da Famlia referem realizar alguma ao de sade mental (BRASIL,
2003), ainda que essas equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar
com essa demanda. Por outro lado, por sua proximidade com as famlias e as
comunidades, elas se constituem num recurso estratgico para o
enfrentamento das diversas formas de sofrimento psquico (idem, ibidem).
Alm disso, a Organizao Mundial de Sade e o Ministrio da Sade
estimam que quase 80% dos usurios encaminhados aos profissionais de
sade mental no trazem, a priori, uma demanda especfica que justifique a
necessidade de uma ateno especializada (CAMPINAS, 2001a).
o caso da senhora que costumamos denominar poli-queixosa, e que
representa uma demanda das mais corriqueiras para a sade mental na
Ateno Bsica. Se ampliarmos a escuta, nos deparamos com o seu grande
vazio existencial, cultivado pela ausncia de espaos de convivncia, lazer,
trabalho, pela relao j desgastada com o marido alcoolista ou mesmo pela
iseno de sua funo materna tendo os filhos j crescidos.
Nesses casos, o empreendimento de longos processos psicoterpicos e
a administrao de antidepressivos so insuficientes como nicas respostas a
esses problemas. Para melhor responder a essas demandas preciso
mobilizar outros dispositivos de ateno, disparadores de produo de vida, de
fortalecimento da auto-estima, de sociabilidade (BRAGA CAMPOS &
NASCIMENTO, 2003; CUNHA, 2004).
Baseado nessa compreenso, o Ministrio da Sade (BRASIL, 2003)
tem estimulado a insero da sade mental na rede bsica atravs de redes de
cuidado e da atuao transversal com outras polticas. Simultaneamente,
23
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
24/147
prope a ampliao da clnica das equipes de Sade da Famlia, na construo
de um modo de fazer sade centrado no sujeito e no mais na doena.
Para isso, necessrio qualificar as equipes a incorporarem, em seu
repertrio de atuao, outras dimenses do sujeito alm de sua faceta
biolgica, valorizando a sua subjetividade e o conjunto de relaes sociais que
determinam desejos, interesses e necessidades (CAMPOS, 2000a; 2003).
O especialista em sade mental , sem dvida, essencial nos muitos
casos em que a demanda expressa claramente a necessidade da psicoterapia
em suas diferentes possibilidades, da medicao psicotrpica nos estados
mais agudos, da terapia ocupacional e outras atividades teraputicas
peculiares ao ncleo de saber psi.
Porm, como dito anteriormente, em muitas situaes as complexas
necessidades da populao no podem ser satisfeitas com base apenas em
tecnologias de uma ou outra especialidade (BRAGA CAMPOS &
NASCIMENTO, 2003), mas fazem parte do campo de atuao de todo
profissional de sade (CAMPOS, 2000b).
Considerando as questes aqui discutidas, algumas administraes
municipais tm formulado modelos tecno-assistenciais para a insero ou
aprimoramento da sade mental na Ateno Bsica, de acordo com cada
realidade local (LANCETTI, 2001).
O Apoio Matricial um arranjo institucional implantado no municpio de
Campinas (SP) para reorganizar sua rede bsica de sade e foi recentemente
incorporado pelo Ministrio da Sade (2003) como estratgia de gesto para a
construo de uma rede ampla de cuidados em sade mental.
24
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
25/147
O Apoio Matricial: imbricando sade e sade mental
Onde a brasa mora e devora o breu
Como a chuva molha o que se escondeu
O seu olhar melhora o meu
ARNALDO ANTUNES e PAULO TATIT
No nova a tentativa de integrar a sade mental nas prticas de
mdicos e outros profissionais de sade. Antes de falarmos sobre o Apoio
Matricial, consideremos algumas das tradies que subjazem a essa proposta,
buscando, assim, entender seus pontos de contato e os limites que o Apoio
Matricial pretende superar com sua inovao.
J desde as primeiras dcadas do sculo XX o estudo das relaes
mente-corpo foi se colocando como um dos temas de progressiva importncia
para o saber mdico, se reunindo em torno do movimento chamado medicina
psicossomtica. Esse movimento, nascido na Alemanha e na ustria, e logo
difundido nos Estados Unidos, representa um retorno de uma abordagem
psicolgica na prtica e na pesquisa mdicas, aps a consolidao da
tendncia organicista da medicina do sculo XIX (BOTEGA, 2002a; BOTEGA &
DALGALARRONDO, 1997).
A psicossomtica parte das relaes entre o psquico, o social e o
biolgico na determinao da sade e da doena e desenvolve-se na
concepo de que toda doena humana psicossomtica, j que incide num
ser sempre provido de soma e psique, inseparveis, anatmica e
funcionalmente (MELLO FILHO, 1994; PINHEIRO, 1992). Valendo-se das
contribuies da psicanlise, a psicossomtica procurou considerar a dinmica
25
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
26/147
da relao mdico-paciente, as relaes entre o doente e sua famlia, e entre a
doena, a cultura e a sociedade.
Na dcada de 50, Michal Balint inicia na Inglaterra sua famosa
experincia de superviso de casos trazidos por clnicos gerais, a fim de
estudar o que se passava na intimidade da relao entre mdicos e seus
pacientes e como o desprezo ou a considerao do mdico pelos aspectos
psicolgicos poderia influenciar na evoluo da doena (MELLO FILHO, 1994).
Situados entre a psicanlise e a medicina, os grupos Balint ganharam grande
destaque internacional, estendendo-se tanto ao incremento da formao de
mdicos, como a uma nova potencialidade da interveno do psicanalista
(MISSENARD, 1994).
Em diversos pases o desenvolvimento de servios psiquitricos nos
Hospitais Gerais tambm contribuiu no estreitamento das relaes entre
mdicos e profissionais de sade mental. No Brasil, com as transformaes da
poltica em sade mental a partir da dcada de 80 e ao lado da criao de
servios substitutivos ao hospital psiquitrico, houve uma ampliao das
modalidades de assistncia psiquitrica nos Hospitais Gerais (BOTEGA &
DALGALARRONDO, 1997).
Dentre essas modalidades, a Psiquiatria de Consultoria e Ligao
assinala a proposta de integrao da sade mental com as equipes
assistenciais do hospital, a partir das influncias da psicossomtica. Ela visa
aprimorar a assistncia mdica por meio de auxlio especializado da psiquiatria
no diagnstico e tratamento de pacientes com problemas psquicos, enfocando
tambm os problemas interpessoais e institucionais entre o paciente, a famlia
26
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
27/147
e a equipe de sade (BOTEGA, 2002a; BOTEGA & DALGALARRONDO,
1997).
Neste sentido, Consultoria refere-se atuao de um profissional da
sade mental que avalia e indica um tratamento para pacientes que esto sob
os cuidados de outros especialistas, sendo que sua presena no servio
episdica e responde a uma solicitao especfica. Ligao implica em
atividades mais regulares com a equipe mdica, a participao em reunies
clnicas, a assistncia direta aos pacientes e o trabalho com os aspectos da
relao entre a equipe assistencial e o paciente (idem, ibidem).
A expresso Interconsulta Psiquitrica tem sido empregada de forma
genrica, substituindo o termo Psiquiatria de Consultoria e Ligao, para
indicar o conjunto de atividades realizadas por profissionais de sade mental
junto a diversos servios do Hospital Geral (idem, ibidem).
Segundo Botega (2002b), uma caracterstica marcante da Interconsulta
Psiquitrica o seu carter emergencial. A equipe de sade solicita a
interconsulta do psiquiatra quando os problemas apresentados por seus
pacientes extrapolam os limites de sua atuao. A equipe decide quando e se
deve pedir ajuda ao psiquiatra. Muitas vezes essa deciso pode ser postergada
at que a equipe no suporte as dificuldades desencadeadas por uma situao
clnica e o psiquiatra deve responder de imediato. Outras vezes, a interconsulta
solicitada de acordo com o nvel pessoal de tolerncia da equipe, sua
formao, experincia, autonomia e interesse pelos aspectos psicolgicos.
Nestes casos, o encaminhamento Interconsulta Psiquitrica pode ser
utilizado como uma forma de transferir a angstia ou responsabilidade, ou para
evitar o contato com os aspectos psicossociais do paciente (BOTEGA, 2002c).
27
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
28/147
De todo modo, embora a Interconsulta proponha a integrao entre a
equipe mdica e os profissionais de sade mental, o que ocorre a
manuteno do esquema tradicional dos encaminhamentos e das guias de
referncia e contra-referncia, com atuao isolada de ambos os lados e
demandas espordicas de trabalho conjunto.
precisamente essa lgica centrada no encaminhamento ao
especialista que o Apoio Matricial pretende superar na rede bsica de sade,
atravs de modificaes na estrutura organizacional que repercutam em
reformulao do processo de trabalho tradicional.
Em 1999, Campos props um arranjo organizacional que radicaliza e
altera a tnue reforma sugerida pela escola denominada matricial (Op. Cit.:
398). Na proposta desse autor, profundas reformas estruturais seriam
necessrias para produzir sade com um grau maior de resolutividade e
desalienar os trabalhadores de sade em relao ao objetivo ltimo de seu
trabalho. Partindo de Neuhauser (1972) e outros, Campos prope uma rotao
dos organogramas. Assim, os antigos departamentos especializados (outrora
verticais, encarregados do acompanhamento longitudinal dos usurios) passam
a ser horizontais oferecendo apoio especializado s equipes interdisciplinares
de referncia.
Nessa linha, so as Equipes de Referncia as responsveis por ampliar
a clnica, realizar os Projetos Teraputicos ao mdio e longo prazo,
promovendo assim o vnculo e a responsabilizao, para desviar a lgica de
encaminhamentos desnecessrios.
Uma gesto implicada com a produo de sade deve,
necessariamente, se haver com essa questo, principalmente no contexto da
28
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
29/147
Ateno Bsica. O Apoio Matricial se coloca como um dos arranjos
institucionais capazes de subverter a lgica dominante do modelo mdico
(ONOCKO CAMPOS, 2003) e produzir outras linhas de subjetivao nos
trabalhadores que estimulem uma ateno compromissada com os sujeitos.
Referimo-nos ao Apoio Matricial como um dos arranjos, porque ele s
possvel atrelado a uma forma de organizar os servios que garanta um
sistema de referncia entre profissionais e usurios. Esse outro arranjo (Equipe
de Referncia) complementar adscrio de clientela proposta pelo
Programa de Sade da Famlia.
A adscrio est fundamentada na importncia do vnculo entre
profissionais e usurios. A relao teraputica, horizontal no tempo, passa a
ser a linha reguladora do processo de trabalho. Assim, toda vez que o usurio
procura o servio, ele atendido pela sua equipe e seu profissional de
referncia, o que permite o acompanhamento do processo
sade/doena/interveno de cada paciente (CAMPOS, 1999).
Gradativamente, isso estimula a responsabilizao pela produo de sade e
amplia a clnica, porque quando o usurio passa a ter um nome e uma histria,
a implicao da equipe aumenta e as respostas profissionais deixam de ser
estereotipadas (ONOCKO CAMPOS, 2003).
Ampliar a clnica significa tambm que os profissionais possam, em
determinados momentos, colocar em suspenso o seu saber prvio, o saber que
vem garantido com a tcnica, com o procedimento padro, para se abrirem ao
contato intersubjetivo que se d na relao profissional/paciente e para
interrogarem-se, em cada situao, sobre a melhor interveno a fazer.
29
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
30/147
A proposta que os profissionais possam aprender a lidar com os
sujeitos em sua totalidade, incorporando em suas prticas as dimenses
subjetiva e social do ser humano. Mas que estejam acompanhados, nessa
tarefa, por algum especializado que lhes d suporte para compreender e
intervir nesse campo.
O Apoio Matricial da sade mental seria esse suporte tcnico
especializado, em que conhecimentos e aes, historicamente reconhecidos
como inerentes rea psi, so ofertados aos demais profissionais de sade
de uma equipe. um encontro entre profissionais de sade mental e a equipe
interdisciplinar de sade na composio de um espao de troca de saberes,
invenes e experimentaes que auxiliem a equipe a ampliar sua clnica e a
sua escuta, a acolher o choro, a dor psquica, enfim, a lidar com a subjetividade
dos usurios.
O termo Matr(i) vem do latim me, a origem, de onde se vem. O Apoio
Matricial est relacionado a essa noo de matriz, o lugar de onde se gera.
Uma oferta do ncleo profissional psi ao campo dos profissionais de sade, na
construo de um novo saber, um saber que se pretende transdisciplinar
(BRAGA CAMPOS & NASCIMENTO, 2003). A transdisciplinaridade que, no
sentido dado por Passos & Barros (2000), uma das grandes apostas do
Apoio Matricial. A noo de transdisciplinaridade subverte o eixo de
sustentao dos campos epistemolgicos, graas ao efeito de desestabilizao
(...) da unidade das disciplinas e dos especialismos(Op. Cit.: 76).
Dessa maneira, coloca-se a sade mental na rede bsica com o papel
fundamental de contribuir com seus saberes para aumentar a capacidade
resolutiva da equipe local. Construir, junto com os outros profissionais de
30
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
31/147
sade, um raciocnio integral sobre cada caso e contribuir na inveno de
possveis caminhos a percorrer na prtica teraputica.
Por outro lado, o Apoio Matricial pretende superar a lgica da
especializao e da fragmentao do trabalho da prpria rea de sade
mental. Pretende romper com o sistema das guias de referncia e contra-
referncia, que produzem encaminhamentos consecutivos e que se traduzem,
usualmente, em des-responsabilizao e alienao dos profissionais em
relao ao objetivo primordial de seu trabalho, que a produo de sade.
Contudo, a assistncia especializada dos profissionais de sade mental
deve continuar existindo como uma das ofertas teraputicas, para aqueles
casos em que se identifica claramente a necessidade de uma ateno e
tecnologia prprias do ncleo de saber psi. Mas, nessa perspectiva, no h
diluio de responsabilidades. Quando um paciente utiliza uma oferta
especializada da sade mental, ele no se desvincula da sua Equipe de
Referncia. Esta continua como co-responsvel pelo desdobramento de seu
Projeto Teraputico (CAMPOS, 1999).
A responsabilizao compartilhada dos casos permite regular o fluxo de
pacientes nos servios. Atravs do Apoio Matricial, se iro distinguir as
situaes individuais e sociais, comuns vida cotidiana, que podem ser
acolhidas pela equipe local e por outros recursos sociais do entorno, daquelas
demandas que necessitam de uma ateno especializada da sade mental, a
ser oferecida na prpria Unidade ou, de acordo com o risco e a gravidade, pelo
Caps da regio de abrangncia.
Com isso, possvel evitar prticas que levam psiquiatrizao e
medicalizao do sofrimento humano e, ao mesmo tempo, promover a
31
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
32/147
eqidade e o acesso, garantindo coeficientes teraputicos de acordo com as
vulnerabilidades e potencialidades de cada usurio.
Isso favorece a construo de novos dispositivos de ateno em
resposta s diferentes necessidades dos usurios e a articulao entre os
profissionais na elaborao de Projetos Teraputicos pensados para cada
situao singular. Sempre considerando uma diversidade de possibilidades e
recursos, dentro e fora do Centro de Sade.
O Apoio Matricial pode acontecer tambm atravs de atendimentos
conjuntos entre o profissional de referncia e o profissional psi. Isso se d em
algumas situaes mais complexas, mas nas quais, mesmo assim, no se
avalia a necessidade do acompanhamento especfico da sade mental. So
situaes de excluso social, luto, perdas as mais diversas, que devem ser
acolhidas durante a consulta clnica. Ou, ainda, quando o paciente de
referncia do Caps, mas est em tratamento de algum problema de sade com
sua equipe na Ateno Bsica. Muitas vezes, os profissionais sentem-se
inseguros para lidar com esses pacientes e o atendimento conjunto com o
apoiador matricial pode proporcionar um encontro desmistificador do sofrimento
psquico e da doena mental, ajudando a diminuir o preconceito e a
segregao da loucura.
Essa reordenao do desenho institucional da rede bsica permite que a
complexidade da vida dos sujeitos e de suas necessidades sejam trazidas para
o coletivo e possam ser enfrentados atravs do trabalho conjunto, favorecendo
a gesto do processo de trabalho e a formao de uma outra subjetividade
profissional (CAMPOS, 1999), centrada no dilogo e na transdisciplinaridade.
32
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
33/147
Sade mental e Apoio Matricial no Paidia Sade da Famlia
Aportando-se nos princpios do SUS e da Reforma Psiquitrica, a rede
bsica do municpio de Campinas (SP) vem experimentando o Apoio Matricial,
desde 2001, com a implantao do Programa Paidia Sade da Famlia
(CAMPINAS, 2001b).
O nome Paidia indica a formao integral do ser humano, noo
originria da Grcia clssica, e faz referncia abordagem ampliada das
questes de sade (CAMPOS, 2003). Para alm do biolgico, sade como
fruto da sociabilidade, da afetividade, da organizao da vida cotidiana, das
relaes com o territrio e com o meio ambiente. O Programa Paidia,
portanto, tem como pressuposto que produzir sade significa tambm intervir
nessas dimenses.
Paidia se refere tambm dupla finalidade (CAMPOS, 2000a) de
qualquer instituio, que seria tanto produzir valores de uso, quanto atender
aos interesses e necessidades de seus agentes institucionais, cumprindo
funes pedaggicas e de produo de subjetividade das pessoas. No caso da
sade, a produo e o atendimento das necessidades sociais e de sade dos
usurios devem vir atreladas produo simultnea de subjetividade dos
trabalhadores. Por isso, a proposta de gesto do Paidia uma gesto
compartilhada ou co-gesto, reconhecendo que no h combinao ideal entre
os distintos interesses de usurios e profissionais e que no exerccio da co-
gesto que se iro construindo contratos e compromissos entre os sujeitos
envolvidos com o sistema de sade (CAMPINAS, 2001a).
O Programa Paidia uma adaptao do Programa de Sade da
Famlia do Ministrio da Sade, ajustado ao contexto sanitrio de Campinas,
33
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
34/147
uma cidade com caractersticas metropolitanas e que j tinha uma histria
pioneira na rea da sade.
Segundo Braga Campos (2000), essa histria se inicia j na dcada de
70, quando Campinas passa a organizar os servios pblicos de sade atravs
do modelo da Ateno Primria em Sade. Nesta poca foram criados Postos
de Sade Comunitria com equipes constitudas por mdicos generalistas e
auxiliares de sade, que trabalhavam muito diretamente com a comunidade
numa perspectiva de educao em sade. Alm disso, os servios de sade
mental tambm passam a ser oferecidos nessa rede de Ateno Primria.
Eram equipes mnimas de sade mental, com psiclogo, assistente social e
psiquiatra (e posteriormente o terapeuta ocupacional) alocados em alguns
Postos e Centros de Sade.
Dessa forma, em 2001, quando a Secretaria Municipal de Sade iniciou
a implantao do Programa Paidia, Campinas j contava com uma rede de 44
Centros de Sade, porm no havia adotado o Programa de Sade da Famlia
do Ministrio. A rede bsica funcionava num modelo que subdividia a sade em
reas de ateno e programas. A assistncia e os profissionais se dividiam nas
reas de ateno ao adulto, criana, mulher, e nos programas de sade
mental e bucal (CAMPINAS, 2001c; SOMBINI, 2004).
Diferente de outros municpios onde o PSF foi implantado em mdulos
paralelos s Unidades Bsicas, em Campinas optou-se por empregar os
recursos j existentes na rede para constituir um PSF ampliado e combinado
com outros princpios, como acolhimento, responsabilizao, co-gesto, entre
outros, para reformular a ateno em sade na cidade (CAMPINAS, 2001c).
34
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
35/147
Assim, os profissionais dos Centros de Sade foram reorganizados em
Equipes de Referncia para famlias de determinado territrio geogrfico. O
que passa a definir a organizao do trabalho no so mais os programas ou
as reas clnicas (adulto, criana, mulher, mental, etc), mas sim os usurios,
seus Projetos Teraputicos e as necessidades encontradas no territrio de
abrangncia de cada equipe (idem, ibidem).
As Equipes de Referncia passam a ser o eixo permanente dos Centros
de Sade. Elas se constituem em Unidades de Produo que tm objeto e
objetivo de trabalho comum, ou seja, o atendimento bsico e integral s
famlias, e cada uma tem autonomia relativa para pensar e organizar o
processo de trabalho e os Projetos Teraputicos (CAMPOS, 1999; CAMPINAS,
2001b).
Essas equipes so compostas de maneira ampliada em relao ao
modelo PSF do Ministrio. Alm do mdico generalista, da enfermagem e dos
agentes comunitrios de sade, no Paidia tambm fazem parte das equipes,
o pediatra, o ginecologista, o dentista e o auxiliar de consultrio dentrio.
Cada uma dessas equipes ampliadas responsvel pela cobertura de
aproximadamente 1400 famlias adscritas (CAMPINAS, 2001c).
Algumas reas especficas, que antes eram organizadas segundo
categorias profissionais ou especialidades, como a sade mental, a sade
coletiva, a reabilitao fsica, no Programa Paidia passam a integrar o eixo
matricial de apoio, para contribuir na ampliao da clnica das Equipes de
Referncia.
Como j discutimos anteriormente, o Apoio Matricial da sade mental
passa a ser um recurso essencial na rede bsica, atravs do qual se busca
35
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
36/147
modificar o processo de trabalho tanto das Equipes de Referncia quanto da
prpria sade mental, as quais, dentro do modelo hegemnico da sade,
vinham cada vez mais num movimento de especializao, fragmentao do
trabalho e des-responsabilizao pela sade integral dos sujeitos.
Em Campinas apostou-se na organizao da sade mental na rede
bsica atravs do Apoio Matricial principalmente pela sua potencialidade em
criar uma assistncia mais integrada, desconstruindo a lgica do
encaminhamento. O Apoio Matricial se destina, assim, a criar rede de ateno,
a alinhavar as aes dos diversos profissionais que iro se responsabilizar
juntos pelos Projetos Teraputicos.
Alm disso, essa opo baseia-se na necessidade de garantir o princpio
da eqidade na ateno. Aumentando a capacidade resolutiva das Equipes de
Referncia, amplia-se o acesso para aquelas pessoas que esto em situaes
mais complexas de vida e que realmente demandam uma ateno
especializada do ncleo da sade mental.
Sendo assim, os profissionais de sade mental na rede bsica de
Campinas, tm como diretrizes:
1. apoio e acompanhamento s equipes locais de referncia (...); 2.
trocar conhecimentos e somar formao de um raciocnio generalista e
multidisciplinar destas equipes, com discusso de casos em sade mental; 3.
assistncia especializada aos casos demandados pela e para a clnica.
Partindo dela uma clnica ampliada reformular a ateno sade mental,
saindo do programado nvel secundrio, ambulatorial (...), para um movimento
atravs das demandas das equipes do Paidia, por todo o territrio
geogrfico, histrico, biogrfico e subjetivo(CAMPINAS, 2001a: 15).
36
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
37/147
Essa assistncia especializada pode ser oferecida pelos profissionais de
sade mental das prprias Unidades Bsicas ou, de acordo com o risco e a
gravidade, nos equipamentos de referncia em sade mental.
Atualmente a rede conta com 47 Centros de Sade e 13 Mdulos de
Sade da Famlia4. H profissionais de sade mental sediados em 24 destes
Centros de Sade, que apiam matricialmente as Equipes de Referncia de
sua Unidade de origem e das Unidades prximas que no possuem
profissionais de sade mental. Alm disso, so responsveis pela ateno
especializada em sade mental aos casos demandados por essas equipes.
Os equipamentos de referncia em sade mental dentro rede de sade
de Campinas organizaram-se em trs principais frentes, articuladas com a rede
bsica e com propostas de aes intersetoriais com a assistncia social, a
educao, cultura, ongs e equipamentos sociais dos territrios (CAMPINAS,
2003 e 2001a):
- Rede de ateno psicossocial: Destina-se ateno s pessoas com
transtornos psquicos graves (neuroses e psicoses graves). Compem essa
rede os Caps de cada Distrito, os Servios Residenciais Teraputicos
(moradias extra-hospitalares), o Ncleo de Ateno Crise (NAC), o Ncleo de
Oficinas e Trabalho (NOT que tambm atende pessoas em tratamento de
dependncia qumica);
- Rede de ateno infncia e adolescncia: Alm dos pediatras e
outros profissionais das Equipes de Referncia/Sade da Famlia e dos
programas Crescer Antes (reduo de gravidez na adolescncia), Criando
Redes de Esperana (assistncia s crianas e jovens usurios de drogas e
4 Os Mdulos de Sade da Famlia foram criados para ampliar a cobertura dos Centros de Sade em
locais afastados e de difcil acesso ao Centro de Sade da rea de abrangncia.
37
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
38/147
em situao de rua) e Quebrando o Silncio (assistncia s vtimas de
violncia domstica e abuso sexual), constituda pelos seguintes
equipamentos de referncia: CRAISA (Centro de Referncia e Ateno Integral
Sade do Adolescente), CEVI (Centro de Vivncia Infantil) e SADA (Servio
de Ateno s Dificuldades de Aprendizagem);
- Rede de ateno dependncia qumica: Com dois servios de
referncia, o CRIAD (Centro de Referncia e Informao sobre Alcoolismo e
Drogadio) e o NADEQ-24hs (Ncleo de Dependncias Qumicas - a proposta
de assistncia preferencialmente ambulatorial, mas conta com leitos em
hospitais gerais e no NADEQ para desintoxicao e avaliao clnica, quando
necessrio).
Um dos grandes desafios para a sade mental, os quais o Programa
Paidia vem procurando enfrentar atravs do Apoio Matricial, que a lista de
espera e outras formas de represso da demanda se transformem e consigam
ocupar os espaos coletivos de convivncia. (...) a maior contribuio para a
preveno e promoo sade mental ser a possibilidade de facilitar a
relao e o convvio entre as pessoas(CAMPINAS, 2001a: 19).
Para isso, o municpio conta com trs Centros de Convivncia
organizados nos Distritos Leste, Noroeste e Sudoeste. Esses Centros de
Convivncia so espaos culturais, criados para estimular a ampliao das
redes sociais e promover a incluso social, que auxiliam no fortalecimento da
auto-estima das pessoas e no resgate da cidadania. So utilizados como
dispositivo teraputico para a ateno em sade mental e so abertos
comunidade em geral.
38
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
39/147
nesse cenrio que o Apoio Matricial vem sendo construdo. Em cada
contexto institucional e de acordo com os recursos disponveis em cada regio
de Campinas, esse arranjo adquire formas peculiares de configurao,
refletindo tempos e histrias diferentes, mas que em geral vm sendo
pactuadas entre gestores e profissionais.
Muitos so os avanos em desenvolvimento e outras tantas so as
dificuldades reconhecidas. Por ser o Apoio Matricial um arranjo inovador e
recentemente implantado, de grande importncia a formulao de propostas
de avaliao dessa experincia e de outras que forem surgindo, j que, em
nvel nacional, o Ministrio da Sade (BRASIL, 2003) tem estimulado a sua
utilizao como forma de aprimorar a rede de sade dos municpios.
Alm disso, como qualquer arranjo que se institucionaliza, o Apoio
Matricial no est a salvo de ser capturado pela lgica dominante (ONOCKO
CAMPOS, 2003) das organizaes de sade. Por essa razo, uma anlise
crtica e constante fundamental para realimentar a sua funo contra-
hegemnica.
Assim, reiteramos a importncia do debate sobre esta e outras
estratgias possveis para tecer uma rede de ateno que seja capaz de
sobrepor sade e sade mental como instncias interligadas e
complementares. Uma rede que, sobretudo, incite o movimento de acordo com
as necessidades sociais e de sade das pessoas s quais ela se destina. Uma
rede efetiva de ajuda e socorro ao usurio da sade mental e no uma teia na
qual ele fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da des-
responsabilizao, uma rede de salvamento e no de captura e indefesa.
39
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
40/147
II. Objetivos
Geral:
Analisar o funcionamento do arranjo Apoio Matricial da sade mental no
Programa Paidia Sade da Famlia de Campinas (SP).
Especficos:
- Investigar como vem se dando a articulao entre as equipes de sade
mental e as Equipes de Referncia do PSF de Campinas;
- Investigar se a sade mental, na rede bsica de Campinas, tem sado do
papel de especialidade e se constitudo como rede de Apoio Matricial
para as Equipes de Referncia;
- Analisar como e se a reorganizao do processo de trabalho baseada
no Apoio Matricial tem contribudo para a ampliao da clnica na rede
bsica de Campinas.
40
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
41/147
III. Pressupostos metodolgicos
Por que?
Quem faz essa pergunta se encontra diante de um enigma, algo que no entende. No
entende e di. preciso que o no-entendido doa para que a pergunta brote. H muitas coisas
que no entendemos. Mas elas no doem. No doendo, no fazemos a pergunta. Fazemos a
pergunta para diminuir a dor, para dar sentido dor.
RUBEM ALVES
Optamos pela hermenutica como abordagem metodolgica para
nortear a pesquisa, especialmente porque ela privilegia a historicidade do
objeto e a reflexo vinculada praxis.
A hermenutica uma disciplina antiga que se ocupava especialmente
da compreenso de textos bblicos. Pode-se consider-la como uma postura
interrogativa, que busca a compreenso do sentido daquilo que est sendo
comunicado num texto, aqui entendido de forma ampla: biografia, narrativa,
discurso, documento, livro, dentre outros.
Analisando as diferentes linhas de produo em torno da hermenutica,
Ayres (2005) se refere Teoria hermenutica como um conjunto de princpios
e procedimentos metdicos usados na exegese dos textos bblicos, na
interpretao de obras clssicas e na interpretao e aplicao jurdica do
esprito das leis. Segundo o autor, esses princpios foram posteriormente
unificados em uma nica cincia e arte da compreenso em geral, na medida
em que o escopo da hermenutica foi historicamente sendo ampliado,
passando, assim, de uma condio de regras e tcnicas interpretativas a uma
filosofia, um modo de compreender a existncia.
41
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
42/147
A Filosofia hermenutica passa ento a consistir numa reflexo
metadiscursiva que vai alm da compreenso de textos e obras, e funda na
linguagem a compreenso das prprias realidades humanas. Para Ayres
(ibidem), Gadamer, o principal terico da hermenutica filosfica, no aborda a
hermenutica como uma metodologia, mas a entende como uma atitude
filosfica que sustenta procedimentos cognitivos de modo geral.
Em sua obra Verdade e Mtodo (1997), Gadamer trabalha com alguns
conceitos que fundamentam o processo hermenutico da compreenso:
tradio, preconceito, histria efeitual.
Encontramo-nos sempre imersos na tradio. Tradio que expressa
atravs de mltiplas vozes que ressoam tanto o hegemnico quanto o novo,
estando sempre atuante no presente e nas mudanas histricas.
Para Gadamer (1997), o distanciamento histrico que produz uma
tenso capaz de interpelar o pesquisador com indagaes a respeito de uma
dada realidade. O presente e suas questes no compreendidas voltam a
ateno do pesquisador para o passado, para a tradio e a historicidade
dessas questes.
Assim, nesse encontro entre passado e presente que o pesquisador
opera na tentativa de responder quilo que o interpelou, se d o que o autor
chama de destaque do objeto.
O conceito de destaque do objeto colocado como uma relao
recproca. O que deve ser destacado tem que destacar-se de algo (...). Todo
destacar algo torna simultaneamente visvel aquilo do qual se destaca (Op.
Cit.: 457), de tal modo que o contexto scio-histrico no qual o objeto veio se
constituindo deve permear constantemente o processo de compreenso. No
42
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
43/147
nosso caso, como o Apoio Matricial se destina a transformar prticas
hegemnicas na sade, a investigao esteve implicada com as tradies da
rea que comparecem e se atualizam nas prticas atuais.
Gadamer discute a funo positiva do preconceito como sendo a
condio, a mola propulsora do movimento hermenutico. No seria possvel
afastarmo-nos de nossos preconceitos, que esto mais prximos de valores e
de crenas do que da racionalidade, numa suposta neutralidade cientfica como
ambiciona o pensamento positivista.
Nossos conceitos prvios permeiam inevitavelmente nossa
compreenso, de forma que, quando entramos em contato com o objeto, o
fazemos a partir de determinadas expectativas e de determinados projetos de
sentido que desenhamos previamente. A compreenso do que est posto no
texto consiste precisamente na elaborao desse projeto prvio, que,
obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se d
conforme se avana na penetrao do sentido (Op. Cit.: 402).
Para a hermenutica, o exerccio constante da interrogao a nica
forma de passarmos dos nossos conceitos prvios ao entendimento daquilo
que de fato diz o texto. dar-mo-nos conta dos prprios pressupostos, para
que o texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar
sua verdade com as nossas opinies prvias pessoais.
atravs do exerccio da pergunta sobre os prprios preconceitos e do
reconhecimento das vozes do passado e da tradio, que a histria faz efeito
e ento o objeto pode destacar-se.
So os efeitos da histria no presente que determinam o que se mostra a ns
como algo questionvel e passvel de transformar-se num objeto de
43
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
44/147
investigao. Portanto, a questo da aplicao do conhecimento est colocada
desde o incio, pois o prprio contexto da aplicao que faz possvel o
destaque do objeto.
A aplicao , no processo hermenutico, to essencial quanto a
compreenso e a interpretao. Um saber geral que no saiba aplicar-se
situao concreta permanece sem sentido (GADAMER, 1997: 466). E o
problema da aplicao, posto que faz parte do mundo da ao e da situao
concreta e real, sempre um problema tico. Interessa aqui, no o saber
prvio da tcnica, com o qual a relao meios/fins j est resolvida a priori.
Mas o saber-se em situao, para agir em funo de uma finalidade que no
carrega em si os meios predeterminados para atingi-la. A tica requer sempre
buscar conselho consigo prprio perante cada situao para, a sim, acionar
um saber prvio (ONOCKO CAMPOS, 2004).
Nessa perspectiva, ao analisar os entraves nos quais esbarra a
implantao do Apoio Matricial em Campinas, pretendeu-se levantar
proposies e buscar sadas para superar tais impasses. Isso considerando
que as concluses sero sempre concluses provisrias, j que esto referidas
a um dado momento histrico e, assim, passveis de novas formulaes. Ainda,
a pesquisa teve a inteno de promover um espao de anlise e reflexo para
que os participantes extrapolassem o papel de mera fonte de dados, sendo
estimulada sua capacidade crtica para gerar possveis transformaes e
intervenes na realidade.
Apoiamo-nos tambm em Ricoeur que, a partir de Gadamer, prope
conectar teoria crtica e hermenutica. Para este autor, o discurso sempre
discurso a respeito de algo (...) a vinda linguagem de um mundo
44
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
45/147
(RICOEUR, 1990: 46) e portanto, para a interrogao hermenutica, interessa
o tipo de mundo que aberto pelo texto, que o que possibilita que a
hermenutica comporte uma crtica do real.
O que produz o distanciamento necessrio compreenso a fixao
do discurso na escrita. Na escrita, a comunicao se d na e pela distncia,
no h situao comum ao escritor e ao leitor.
Assim, a escrita torna o texto relativamente autnomo em relao s intenes
do autor, o que possibilita que o texto se abra sucessivas leituras situadas em
diversos contextos scio-culturais, podendo se descontextualizar para depois
ser recontextualizado numa nova situao. Nisso est a instncia crtica da
interpretao.
Porm, uma hermenutica crtica deve basear-se no apenas na escrita,
mas na obra, que objetivao de uma prxis e revela o tipo de ser-no-mundo
do texto. Ricoeur chama de agenciamento formal essa busca pela proposio
de mundo que est contida no texto, a reatualizao, na leitura, do mundo
prprio quele texto que nico.
O que deve ser interpretado, num texto, essa proposio de mundo.
Porm, ela no se encontra atrs do texto, como uma espcie de inteno
oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela
(Op. Cit.: 58).
Com essa dimenso mediadora prpria ao texto, Ricoeur marca a
entrada em cena da subjetividade do intrprete, j que o carter fundamental
do discurso ele ser sempre dirigido a algum. Para o autor, compreender
compreender-se diante do texto (Op. Cit.: 58). No se trata de projetar-se no
texto, mas expor-se a ele e ao contato com o mundo que se manifesta diante
45
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
46/147
dele. A subjetividade do intrprete assim colocada em suspenso, irrealizada e
potencializada, do mesmo modo que o mundo do texto.
Cabe ressaltar que, como no estudo de Soares (1999), extrapolamos a
postura hermenutica na compreenso de textos que foram escritos
precisamente como composio literria, cientfica ou artstica, para utiliz-la
na interpretao de textos construdos a partir do desenho metodolgico que se
adotou nesta pesquisa, ou seja, do material transcrito das discusses em
grupos focais com os atores envolvidos com o nosso objeto de estudo.
A interpretao aqui entendida como sendo composta pelos
movimentos da anlise e da construo (FREUD, 1975; ROUDINESCO &
PLON, 1998; ONOCKO CAMPOS, 2005), com os quais procuramos agregar os
fragmentos histricos e inerentes ao nosso tema na produo de linhas de
sentido.
Essa construo de sentido se d atravs do que Ricoeur (1997) chama
agenciamento dos fatos, ou seja, da sua composio de modo narrativo5.
Fazer rupturas e religaes, encadeando acontecimentos, histrias e
linhas argumentativas, para depois reuni-los em uma narrativa. Uma narrativa
que recupera a tradio para produzir um sentido novo e, ainda, necessrio, j
que se trata de histrias ainda no narradas e por estarem inseridas no campo
da prxis, pedem para ser contadas(Op. Cit.: 115).
5 Essa questo ser aprofundada mais adiante, no captulo V.
46
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
47/147
IV. O trabalho de campo
Para o delineamento do trabalho de campo, nos inspiramos em alguns
instrumentais da pesquisa avaliativa, mais especificamente da avaliao de
quarta gerao, como intitulada por Guba & Lincoln (1989).
Estes autores reconhecem que um processo avaliativo sempre ir
envolver um juzo de valor sobre o que se pretende avaliar. Como discutido por
Furtado (2001), isso implica a necessidade de ampliar e diversificar os eixos
em torno dos quais so emitidos tais julgamentos, de forma que a avaliao
no se torne arbitrria.
Devem, portanto, ser includos no processo avaliativo os diferentes
pontos de vista dos grupos envolvidos com o programa ou servio avaliado, os
quais emitiro seus distintos e eventualmente divergentes julgamentos.
Os grupos envolvidos com o programa/servio, comumente chamados
stakeholders ou grupos de interesse, so as organizaes, grupos ou pessoasque sero potencialmente vtimas ou beneficirios do processo avaliativo. So
formados por pessoas que tm caractersticas comuns e que esto envolvidas
ou podero ser afetadas pela avaliao (FURTADO, 2001).
Apesar de no se configurar como um processo avaliativo formal, esta
pesquisa se props a trabalhar com os principais agentes envolvidos na
implantao do Apoio Matricial, a fim de analis-lo a partir de seus diferentes
olhares. Assim sendo, foram definidos como grupos de interesse da pesquisa:
- Profissionais de sade mental da rede (Unidades Bsicas e Caps), que
realizam o Apoio Matricial;
- Profissionais de Equipes de Referncia de Unidades Bsicas que
possuem equipes de sade mental;
47
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
48/147
- Profissionais de Equipes de Referncia de Unidades que no possuem
sade mental (Essa distino se deu porque nas Unidades que no possuem
equipes de sade mental, o Apoio Matricial feito por profissionais de outras
Unidades ou do Caps da regio);
- Gestores (Coordenadora de Sade Mental da Secretaria Municipal de
Sade, equipe de apoiadoras distritais de sade mental e coordenadores de
Unidades Bsicas), j que a implantao do Apoio Matricial depende, em
grande medida, de sua funo de governo6.
Para incluir os grupos de interesse e seus diferentes pontos de vista, foi
necessrio construir, junto com tais grupos, um referencial terico comum
sobre o Apoio Matricial. Realizamos uma primeira etapa de discusso para
formar um consenso sobre seus objetivos, meios e resultados pretendidos, que
pudesse servir como parmetro para as reflexes sobre o cotidiano dos
servios e as construes da realidade efetivadas por cada grupo.
Esse referencial foi construdo atravs de informaes obtidas nas
discusses com os grupos de interesse (como se ver a seguir), anlise de
documentos da Secretaria Municipal de Sade referentes ao Apoio Matricial e
observaes da prpria pesquisadora. Uma vez delineado um quadro terico
geral, baseado nas informaes dessas diferentes fontes, ele foi sintetizado na
forma de um esquema grfico e um conjunto dos principais tpicos que
definem e descrevem o Apoio Matricial.
Na etapa seguinte, o referencial terico comum foi apresentado a cada
um dos grupos de interesse para que pudesse ser negociado e validado.
6 Assumindo os riscos inevitveis de qualquer escolha, os usurios, embora sejam evidentemente afetados
pelas transformaes tecno-assistenciais, no foram por ns includos como um grupo de interesse dapesquisa, j que nosso objetivo principal era analisar o funcionamento do Apoio Matricial enquanto
arranjo transformador das prticas profissionais, a partir do destaque da gesto do processo de trabalho.
48
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
49/147
Tomando-o como pano de fundo, cada grupo de interesse pde discutir sobre
suas opinies, questes e experincias relacionadas ao Apoio Matricial. Tais
questes foram fomentando as discusses subseqentes com os outros grupos
de interesse, assim como as anlises de documentos e observaes da
pesquisadora alimentaram as discusses de forma a expandir a interlocuo e
o referencial utilizado pelos participantes.
Tcnica de coleta de dados: grupos focais
O grupo focal uma tcnica que permite a obteno de dados a partir de
encontros grupais entre pessoas que compartilham traos comuns.
Caracteriza-se pelo interesse nos conhecimentos, opinies, representaes,
atitudes e valores dos participantes, e possibilita uma anlise em profundidade
de dados obtidos nessa situao de interao grupal (WESTPHAL, BGUS &
FARIA, 1996).
Essa tcnica tem sido bastante utilizada na conduo de grupos de
discusso, em investigaes nas reas educacionais, de sade e das cincias
sociais, com a finalidade de acompanhar e avaliar experincias, programas e
servios, a partir do ponto de vista dos grupos neles envolvidos (WESTPHAL,
BGUS & FARIA, 1996; WORTHEN, SANDERS & JAMES, 2004).
Segundo Westphal (1992), o grupo focal permite verificar de que modo
as pessoas avaliam uma experincia, como definem um problema e como suas
opinies, sentimentos e representaes encontram-se associados a
determinado fenmeno. Trata-se de desenvolver um processo que visa
compreenso das experincias dos participantes do grupo, do seu prprio
ponto de vista.
49
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
50/147
Optamos pelo grupo focal como estratgia de coleta de dados,
pensando no que comenta Minayo: ... no mbito de determinados grupos
sociais atingidos coletivamente por fatos ou situaes especficas,
desenvolvem-se opinies informais abrangentes, de modo que, sempre que
entre membros de tais grupos haja intercomunicao sobre tais fatos, estes se
impem, influindo normativamente na conscincia e no comportamento dos
indivduos (MINAYO, 2000: 129).
De acordo com Westphal, Bgus & Faria (1996), como as percepes,
atitudes, opinies e representaes so socialmente construdas, a expresso
das mesmas mais facilmente captada durante um processo de interao em
que comentrios de uns podem fazer emergir a opinio de outros.
Alm de possibilitar a apreenso no somente do que pensam os
participantes, mas tambm porque eles pensam de determinada forma, essa
interao grupal proporciona que o pesquisador possa observar como a
controvrsia vem tona e como os problemas so resolvidos (WESTPHAL,
BGUS & FARIA, 1996), evidenciando os diferentes graus de consensos e
dissensos existentes (FURTADO, 2001).
O moderador dos grupos tem um papel fundamental na conduo da
discusso. Ele deve criar uma atmosfera permissiva e no ameaadora entre
os participantes, deve manter a discusso focalizada no assunto, encorajar
todos os participantes a contribuir para a discusso, resolver conflitos e solicitar
maiores informaes quando a discusso no estiver clara. Deve resumir e
devolver ao grupo, periodicamente, as idias bsicas resultantes das
discusses, para encadear os assuntos e solicitar maiores esclarecimentos
(WESTPHAL, 1992).
50
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
51/147
Acrescenta-se a isso o moderador como algum que pode, de um ponto
de vista externo ao grupo, contribuir com outras snteses a partir das questes
trabalhadas no grupo e de suas prprias leituras prvias sobre o assunto
(FURTADO, 2001).
Os grupos focais, numa pesquisa, costumam ser coordenados por um
nico moderador, a fim de garantir certa homogeneidade na conduo dos
grupos. O moderador deve contar com o auxlio de um observador, que estar
atento para as comunicaes no-verbais, anotando as contribuies de cada
membro do grupo, as conversas paralelas, os momentos que parecem
significar unanimidade ou discordncia, entre outros aspectos que se
mostrarem relevantes (WESTPHAL, 1992). Alm disso, para garantir a coleta
dos dados, a discusso deve ser udio-gravada, com o conhecimento e
autorizao dos participantes.
Para o planejamento dos grupos focais necessrio definir os sujeitos
participantes, a composio dos grupos e um roteiro de questes de interesse
para a discusso.
Segundo Westphal (1992), o critrio de seleo dos participantes usado
para o grupo focal intencional, e se baseia na concepo de que a posio
que o indivduo ocupa na estrutura social se associa sua construo social da
realidade. Essa realidade est intimamente relacionada forma como os
indivduos se posicionam em relao s questes propostas.
A composio dos grupos focais deve, preferencialmente, privilegiar a
homogeneidade entre os participantes. Os grupos mais homogneos permitem
obter resultados mais ricos e aprofundados sobre o tema (WESTPHAL, 1992),
na medida em que cada grupo elabora e esmia as questes em discusso a
51
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
52/147
partir de seu lugar especfico enquanto componentes da trama social. Ademais,
a homogeneidade desejvel para facilitar a interao grupal (WORTHEN,
SANDERS & JAMES, 2004), ao passo que a heterogeneidade e as diferenas
muito marcantes em termos de educao, papis sociais ou autoridade podem
inibir as relaes interpessoais.
O roteiro da discusso composto por um conjunto de tpicos ou
questes abertas, que focaliza os temas de interesse da pesquisa. Esse
roteiro, formulado em funo dos objetivos e do referencial terico assumido,
serve como guia para o moderador coordenar a discusso (WESTPHAL, 1992).
Como se trata de uma discusso grupal, e no uma entrevista em grupo,
o roteiro deve ser flexibilizado. No h seqncia rgida de tpicos, eles muitas
vezes vo emergir espontaneamente a partir do andamento da prpria
discusso, ou podero ser introduzidos pelo moderador, que ir encadear um
tpico a outro e aprofundar as questes discutidas.
De acordo com Westphal (1992), os grupos focais colocam as pessoas
em situaes prximas situao real de vida, oferecendo ao pesquisador a
possibilidade de apreender a dinmica social e analisar a forma que adquirem
as relaes interpessoais no contato com o tema em discusso.
Assim, essa tcnica nos pareceu bastante apropriada aos propsitos da
pesquisa, j que interessava analisar o posicionamento dos trabalhadores na
constituio das equipes e a maneira pela qual isso se reflete na organizao e
no processo de trabalho. Alm disso, consonante com os princpios da
pesquisa, o espao de discusso e anlise promovido nos grupos focais
favorece o desenvolvimento da capacidade crtica dos sujeitos, potencializando
sua ao prtica e as possveis intervenes no cotidiano dos servios.
52
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
53/147
Os grupos focais em ao
O trabalho de campo iniciou aps a aprovao da pesquisa pelo Comit
de tica da FCM e pela Secretaria Municipal de Sade de Campinas7.
Foram feitos cinco grupos focais, nos quais participaram profissionais de
todos os Distritos de Sade de Campinas, representando cada um dos grupos
de interesse (como descrito anteriormente: profissionais de sade mental,
profissionais de Equipes de Referncia de Unidades Bsicas que possuem
profissionais de sade mental e de Unidades que no possuem, e os
gestores)8.
Partindo dos grupos de interesse, a escolha dos profissionais que
participariam dos grupos focais foi feita juntamente com a equipe de
apoiadoras distritais. A consigna para essa escolha era que o profissional
deveria estar envolvido, de alguma maneira, com o Apoio Matricial, fosse um
profissional engajado nesta proposta ou fosse um crtico dela. Cada apoiadora
distrital indicou os profissionais de seu Distrito que poderiam melhor contribuir
com a pesquisa e a partir desta indicao foram feitos os contatos para a
apresentao da pesquisa e o convite para a participao nos grupos.
Todos os grupos foram coordenados pela pesquisadora, que atuou
como moderadora da discusso, facilitando que cada participante pudesse
expressar suas opinies e pareceres a respeito do tema proposto e focalizando
o debate para as questes mais pertinentes. A pesquisadora contou com o
auxlio de uma observadora, encarregada de captar as informaes no-
verbais e ajudar na anlise de eventuais vieses existentes.
7 Ver anexos 1 e 2.8 Para uma melhor compreenso da conformao dos grupos focais, ver anexo 3.
53
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
54/147
As discusses foram udio-gravadas, com a autorizao dos
participantes, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido9.
Eram duas as etapas para os grupos focais. A primeira tinha como
objetivo construir, junto com os profissionais, o referencial terico comum do
Apoio Matricial. A segunda etapa seria o momento de analisar as vicissitudes
da prtica do Apoio Matricial, tendo o referencial terico como pano de fundo.
Nesta primeira etapa para a construo do referencial terico comum
fizemos um grupo focal misto, composto por representantes de cada um dos
grupos de interesse: trs apoiadoras distritais, quatro profissionais de sade
mental (dentre estes, duas psiclogas e duas terapeutas ocupacionais) e uma
profissional de Equipe de Referncia (mdica generalista). A composio mista
deste grupo foi necessria para incluir, j desde o incio do processo, as
diferentes perspectivas na elaborao compartilhada do referencial terico.
Aps apresentarmos o desenho geral da pesquisa, seus objetivos,
questes e procedimentos, os participantes foram convidados a falar sobre o
que entendiam como Apoio Matricial e o debate centrou-se na construo de
um consenso possvel sobre esse arranjo.
Sempre que necessrio e quando a discusso se desdobrava para as
particularidades do cotidiano dos servios, a pesquisadora focava a discusso
para os princpios e objetivos do Apoio Matricial, recolocando a inteno desta
primeira etapa e a importncia da consolidao de um referencial comum para
nortear as anlises dos prximos grupos.
Na segunda etapa seria o momento de validar o referencial terico do
Apoio Matricial construdo no grupo anterior, e confront-lo com a sua prtica,
9 Anexo 4.
54
-
8/4/2019 SAUDE_MENTAL_ATENO_BSICA_mestrado_mariana
55/147
a fim de que fossem colocados em discusso, a partir de um referencial
compartilhado, os consensos e os eventuais antagonismos entre o que os
profissionais supem que seja o Apoio Matricial e o modo como ele de fato
operado. Nesta segunda etapa foram feitos quatro grupos focais, agora
grupos homogneos em relao aos grupos de interesse, ou seja, cada grupo
focal era composto por profissionais de cada um dos quatro grupos de
interesse10. Os integrantes da primeira etapa (referencial terico) tambm
participaram desta segunda etapa, agregando-se a partir do grupo de interesse
aos outros profissionais participantes.
Assim, a composio dos quatro grupos focais da segunda etapa se
deu da seguinte maneira:
Grupo focal Sade Mental: trs psiclogas e duas terapeutas
ocupacionais.
Grupo focal Equipes de Referncia de Unidades que possuem sade
mental: trs mdicas, trs enfermeiras e uma auxiliar de enfermagem.
Grupo focal Equipes de Referncia de Unidades que no possuem
sade mental: uma mdica, uma enfermeira e trs agentes de sade.
Grupo focal Gestores: coordenadora de sade mental da Secretaria de
Sade, cinco apoiadoras distritais de sade mental e quatro coordenadores de
Unidades Bsicas.
Em cada um desses quatro grupos, a pesquisadora inicialmente
apresentava a pesquisa e seu