OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
Versão Online ISBN 978-85-8015-080-3Cadernos PDE
I
UMA REFLEXÃO SOBRE LITERATURA E CONSCIÊNCIA NEGRA: identidades
de mulheres negras presentes em obras de Carolina Maria de Jesus e
Conceição Evaristo
Ana Lúcia Leal1
Fernanda Deah Chichorro Baldin2
Resumo: Este artigo é resultado de todo o trabalho realizado nos anos de 2014/2015 no programa PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) da Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Ele teve como base a implementação da Lei 10.639 por meio de pesquisa sobre identidades de mulheres negras nas obras de literatura de Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, realizado com 12 (doze) alunas (os) do Ensino Médio do Centro Estadual de Educação Básica de Jovens e Adultos – CEEBJA Fazenda Rio Grande. O principal objetivo do estudo foi levantar aspectos da identidade feminina na literatura negra no Brasil, ou seja, propiciar atividades que promovam reflexões sobre identidades de mulheres negras na literatura e consciência racial. Este estudo parte da implementação de um projeto realizado em quatro módulos que totalizaram 32 horas. As leituras, atividades e produções de textos trouxeram à tona a realidade de mulheres negras no Brasil e, principalmente, das famílias de cada um (as) dos (as) participantes. Palavras-chave: Identidade. Mulher Negra. Literatura. Cultura Afro-brasileira.
INTRODUÇÃO
O conservadorismo tradicional, no que diz respeito à diversidade
presente nas escolas, ainda é atuante e utiliza muitas estratégias de continuidade.
O racismo no Brasil é velado e cínico, enquanto que em alguns países se dá de
forma mais clara.
A escola, embora seja o espaço mais democrático existente em uma
sociedade, reflete esse conservadorismo, uma vez que há muita dificuldade para
tratar das questões da diversidade racial.
1 Professora da Rede Pública Estadual de Ensino do Paraná. E-mail de contato:
2 Orientadora PDE da Universidade UTFPR. E-mail de contato: [email protected]
O interesse neste assunto se deu devido à necessidade se trabalhar a
cultura africana e afro-brasileira em razão da implementação da Lei 10.639, uma
vez que esta lei veio para ressaltar a importância da cultura negra na formação da
sociedade brasileira, mas também devido ao interesse pessoal no tema, uma vez
que, independente da lei, é preciso levar para conhecimento dos alunos a cultura
e a história do povo negro.
Essa questão não é abordada devidamente na maioria das disciplinas
do Ensino Fundamental e do Médio, e isto não é diferente nas aulas de Língua
Portuguesa, especialmente quando se trata do ensino de Literatura.
Assim, na elaboração do projeto de intervenção pedagógica a ser
implementado, julgou-se necessário desenvolver um trabalho que trate presença
das mulheres negras em obras literárias brasileiras, em especial no que
concerne à presença das mulheres negras na sociedade brasileira, não apenas
no espaço da casa, privado, mas no espaço público, pois, com relação às
personagens negras, elas têm como espaço mais comum para a ambientação
literária o privado e, em contraposição aos estereótipos literários da moça branca,
aparecem quase invariavelmente como mulatas sensuais e fogosas, negras
abnegadas, submissas e máquinas de trabalhar. Estão quase sempre ligadas à
procriação, à questão patrimonial, familiar e sucessória e à exploração da mão-
de-obra, numa sociedade patriarcal, sexista e racista.
Partindo dessa visão, surgiu o interesse em observar identidades de
mulheres negras presentes em obras escritas por mulheres negras, buscando
notar como elas próprias se representam.
O ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas aulas de
Língua Portuguesa é feito muitas vezes com o tema da escravidão negra africana,
em especial nas aulas de literatura, fazendo surgir o seguinte questionamento:
como trabalhar nas aulas de literatura a Lei 10.639, a partir de uma seleção de
textos de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, buscando relacioná-la
com o momento histórico de cada aluna (o)?
É objetivo desse artigo fazer um breve estudo bibliográfico e análise
qualitativa e abordagem descritiva/comparativa das atividades que buscam
promover e análise uma reflexão acerca da presença de identidades de mulheres
negras na literatura, como meio de implementação da Lei 10.639/03, alterada
pela Lei 11.645/08, realizadas com alunos e alunas do Ensino Médio do Centro
Estadual de Educação de Jovens e Adultos - CEEBJA – Fazenda Rio Grande,
mostrando que a Literatura pode ser utilizada para combater os lugares sociais
assinalados ao gênero feminino.
As atividades desenvolvidas foram construídas buscando levantar
aspectos da literatura negra feminina no Brasil; fazer um estudo sobre a vida de
obra de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo; fazer um estudo sobre
identidades culturais e memória; buscar nas obras de Carolina Maria de Jesus e
Conceição Evaristo a existência de representações de identidades culturais de
mulheres negras; fazer um estudo sobre a obrigatoriedade do ensino da história
e cultura afro-brasileira a partir da Lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares
para a Educação das Relações Étnicorraciais e Ensino da História e Cultura Afro-
brasileira; e confeccionar material didático que subsidiasse a produção de
caderno memorialístico (diário) pelas alunas que fizeram parte do projeto.
Para tanto, foram realizadas atividades abordando a presença das
mulheres negras nas obras Quarto de despejo: diário de uma favelada de
Carolina Maria de Jesus e poemas de Conceição Evaristo presentes nas
antologias Cadernos Negros (Quilombhoje, 1990), Contos Afros (Quilombhoje) e
Contos do mar sem fim (Editora Pallas).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A Lei Federal 10.639/03 modificou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB –
lei 9394/96) ao instituir a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-
brasileira nos sistemas de ensinos municipal, estadual e federal, que devem, a
partir da lei, incluir aulas sobre questões étnico-culturais em seus currículos.
De acordo com a lei 10.639/03, o Art. 1o da Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo:
Art. 26ª Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1
o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2
o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
Percebe-se na criação da Lei 10.639/03 e 11.548/08 o propósito de
desconstruir preconceitos inerentes aos negros e negras socialmente. Para
Lopes:
O combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação, em nível escolar, deve tomar as mais diferentes formas de valorização da pessoa humana, povos e nações, valorização que se alcança quando descobrimos que as pessoas, mesmo com suas dessemelhanças, ainda são iguais entre si e iguais a nós, com direito de acesso aos bens e serviços de que a sociedade dispõe, de usufrui-los, criar outros, bem como de exercer seus deveres em benefício próprio e dos demais. (LOPES, 2005, p. 187)
Assim, pode-se dizer que a Lei 10.639 tem especial importância para a
divulgação/valorização do legado cultural africano, pois além de ampliar o parco
conhecimento que se tem dessa cultura, propõe um novo olhar sobre a história
africana e afro-brasileira e suas possíveis relações como o percurso histórico
brasileiro.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (2004):
A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte de discriminações.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura afro-brasileira e africana
também expõem:
Art. 3° A Educação das Relações Étnico-Raciais e o estudo de História e Cultura Afro-Brasileira, e História e Cultura Africana será desenvolvida por meio de conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem
estabelecidos pelas Instituições de ensino e seus professores, com o apoio e supervisão dos sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP 003/2004. (DCN-s, 2004, p. 32)
A inclusão desse tema nos conteúdos escolares, em especial em
Língua Portuguesa, reconstrói nos alunos e nos professores uma imagem positiva
do continente africano, além de, por um lado, elevar a autoestima das (os) alunas
(os) afro-descendentes e, por outro lado, tornar as (os) demais alunas (os) menos
refratários à diversidade étnico-racial.
§ 3° O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil. (DCN-s, 2004, p. 32)
A literatura afro-brasileira é um tema que deve ser discutido e incluído
no currículo de Língua Portuguesa, uma vez que é constituída de uma fonte
riquíssima de saber e conhecimento que abrange tanto a história e cultura afro-
brasileira quanto africana (COSTA, 2014).
As relações étnico-raciais em nosso país são marcadas, historicamente, por profundas desigualdades sócio-econômicas, haja vista a perpetuação do racismo no seio social, realimentado ao longo do tempo por diversas facetas e dissimulações como, por exemplo, o mito da democracia racial e o eurocentrismo curricular. Emerge, daí a sua propagação e desdobramentos no espaço escolar, nas relações sociais, na mídia, nas artes e na literatura. Diante desse quadro geral, enfrentaremos grandes desafios para fazer valer a Lei Federal 10.639/03, em virtude da carência de docentes na área das relações étnico-raciais e, também, da parca publicação e circulação de materiais didáticos, teóricos e literários pertinentes à demanda atual, que é primar pela valorização e ressignificação da história e cultura africana e afro-brasileira, sem cair nas teias enredadas pelo racismo à brasileira. (OLIVEIRA, 2008, p.01)
Embora a Lei 10.639/03 já esteja em vigor a mais de 10 anos, percebe-
se ainda uma grande dificuldade de se trabalhar esses temas nas escolas. Isso
ocorre na maioria das vezes devido a falta de conhecimento a respeito do
assunto, ou até mesmo, por puro preconceito que se encontra no sub-
inconsciente de algumas pessoas.
Com relação ao ensino de literatura, de acordo com Dejair Dionísio:
Normalmente o negro, quando é retratado na literatura, é uma figura estilizada, estereotipada, que não representa a sua realidade, a sua história. Além disso, no Brasil há poucos autores também que são negros e que abordam a temática afro-brasileira” (In SANCHES, 2013)
Um bom exemplo sobre como as (os) negras (as) são retratados na
literatura brasileira são as novelas televisivas. Para Dejair Dionísio (In SANCHES,
2013):
O negro não é retratado. Elas vendem a imagem do Brasil no exterior e acabam gerando uma confusão, pois somos um país com cerca de 115 milhões de pessoas que se declaram negros, afro-descendentes, pardos, mas que não possuem a sua identidade exposta. E também não são retratados pelos escritores que são cânones no Brasil. Se pegar dez autores, não verá o negro realmente, seja no ambiente urbano ou rural. Esta é uma dívida muito grande em termos literários.
Assim, a representação do (a) negro (a) nas obras de literatura
brasileira é um tanto folclórica, estereotipada, com alguns conceitos mal
acabados. A negra aparece sem família, sem sobrenome, estrutura familiar,
história de vida. É muito folclorizada e acaba servindo de mote para a
desvalorização da mulher brasileira:
Vendeu-se a imagem, não apenas ele, mas todo um contexto literário, social e político, que vendeu a mulher como fogosa, gostosa, boa de cama, pronta para forno e fogão. Isso acaba no tipo de turismo que temos, principalmente, nas praias do Nordeste (DIONISIO in SANCHES, 2013).
Percebe-se isso claramente na obra “O cortiço”, de Aluísio Azevedo,
que mostra o sensualismo desenfreado da mulata, Rita Bahiana, que é “fruto
dourado e acre dos sertões americanos”, com “meneios” de uma “graça
irresistível, simples, primitiva”. Nestes trechos é destacada uma sexualidade
animalesca, mostrando a personagem uma mulata “feita toda de pecado”.
A sensualidade da mulher negra também se repete em narrativas de
Jorge Amado, nas quais as mulatas são exaltadas como objetos do desejo
masculino, como Gabriela, Tereza Batista, Tieta do Agreste.
Assim, a literatura afro-brasileira representa um importante papel na
construção da identidade étnica brasileira. A partir dessa reconstrução o (a) negro
(a) tenta resgatar o máximo de sua dignidade étnica e racial negada pelo meio
social (DUARTE, 2005, p.118).
Se, como foi dito a identidade cultural é a base para o estudo, também
o é a memória, pois parte dela as lembranças da vida, funcionando como um filtro
e ao mesmo tempo sendo o elo entre a cultura deixada e a nova a ser assimilada.
Stuart Hall (2006) apresenta o conceito do que denomina "identidades
culturais" como sendo aspectos de identidades que surgem do "pertencimento" a
culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. O
autor entende que as condições da sociedade estão "fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais" (p.
9). Estas transformações estão alterando as identidades pessoais, influenciando a
ideia de sujeito integrado que temos de nós próprios: "Esta perda de sentido de si
estável é chamada, algumas vezes, de duplo deslocamento ou descentralização
do sujeito" (HALL, 2006, p. 9). Esse duplo deslocamento, que corresponde à
descentralização dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural
quanto de si mesmos, é o que resulta em "crise de identidade".
Para Mercer, “ a identidade somente se torna uma questão quando
está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza" (Mercer, 1990, p.43 in Hall,
2006).
Hall (2006) aponta que há três diferentes concepções de identidade.
A primeira concepção é chamada de identidade do sujeito do
Iluminismo, que expressa uma visão individualista de sujeito, caracterizado pela
centração e unificação, em que prevalece a capacidade de razão e de
consciência. Assim, entende-se o sujeito como portador de um núcleo interior que
emerge no nascimento e prevalece ao longo de todo seu desenvolvimento, de
forma contínua e idêntica.
Já a segunda concepção, a identidade do sujeito sociológico, considera
a complexidade do mundo moderno e reconhece que esse núcleo interior do
sujeito é constituído na relação com outras pessoas, cujo papel é de mediação da
cultura. Assim, o sujeito se constrói na interação com a sociedade, em um
diálogo contínuo com os mundos interno e externo. Ainda permanece o núcleo
interior, mas este é constituído pelo social, ao mesmo tempo em que o constitui.
Assim, o sujeito é, a um só tempo, individual e social; é parte e é todo.
A terceira é a concepção de identidade do sujeito pós-moderno, que
não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente, mas formada e
transformada continuamente, sofrendo a influência das formas como é
representado ou interpretado nos e pelos diferentes sistemas culturais de que
toma parte. A visão de sujeito assume contornos históricos e não biológicos, e o
sujeito adere a identidades diversas em diferentes contextos. Desta forma, o
sujeito pós-moderno se caracteriza pela mudança, pela diferença, pela
inconstância, e as identidades permanecem abertas.
Com relação aos textos memorialísticos, há uma complexa dialética no
que se refere a história e memória. Para Jacques Le Goff, que faz uma relação
entre a memória em suas múltiplas formas e a história dos historiadores, “A
memória, onde nasce a História, que por sua vez a alimenta, procura salvar o
passado para servir o presente e o futuro” (2003, p. 47).
Assim, para Le Goff, memória e história são, portanto, distintas e não
devem ser confundidas. Para o autor é função da memória, como também da
história, estabelecer os nexos entre o passado, o presente e o futuro. E, se a
memória procura salvar o passado, essa ação está longe de ser um mero resgate,
mas sim um processo direcionado a atuar no presente e a orientar os caminhos
do futuro. Le Goff aponta a memória como um do gênero, chamado por ele de
memorialística (LE GOFF, 2003).
O Diário é um exemplo de texto memorialístico que possui uma
estrutura bastante característica: repete a sua apresentação, ou seja, a cada dia
corresponde a um registro de situações e sentimentos diferentes. O autor dirige-
se ao diário como a um confidente, sendo frequente a utilização do vocativo
“Querido diário” ou até a criação de um nome para saudá-lo. Os registros são
ordenados por ordem cronológica de ocorrência/ local / data.
Além de obedecer a uma estrutura específica, o diário tem
características próprias:
- O protagonista e o narrador são a mesma pessoa. Por esse motivo é
utilizada a primeira pessoa;
- O diário é testemunha de uma necessidade de comunicação;
- O narrador dá livre expressão ao curso do seu pensamento, ou seja,
o diário destina-se ao próprio autor, tendo marcas da oralidade;
- O nível de língua é familiar, o registro é informal e o vocabulário
bastante simples;
- Há a presença de fatos, acontecimentos, episódios reais e objetivos e
presença da componente emocional e subjetiva: sentimentos, receios, dúvidas,
ansiedades;
- A narração é descontínua, intercalada, porque apenas ocorre quando
o sujeito/narrador deseja registrar algo.
Existem dois grandes tipos de diário, de acordo com o tipo de receptor
a que se destinam: diário pessoal e diário de ficção.
O diário pessoal é íntimo e destina-se apenas a ser lido pelo seu autor.
Não existem grandes preocupações literárias, com linguagem fluida e familiar.
Poderá ser repetitivo em termos de forma (repetições a nível do registro escrito
que traduzem a fluência da oralidade) e de conteúdo (referência aos mesmos
episódios…).
Com relação ao diário de ficção, o mesmo não se trata de um diário
genuíno, cujo autor registra as emoções e vivências quotidianas. Há uma
preocupação pela escrita artística, acrescida da atenção sobre a linguagem
utilizada que também traduzirá o correr do pensamento. O diário de ficção é uma
obra literária apresentada na forma de anotações pessoais.
As Memórias são o recontar de experiências do passado que se
mantêm na memória. São contadas no tempo presente, portanto a perspectiva é a
do presente em relação ao passado. Assim, os acontecimentos do passado estão
sujeitos à lembrança emocional do narrador. A narrativa memorialística tem um
fundo histórico e cultural, sendo um testemunho de um tempo e de um meio,
podendo ter, por isso, valor documental.
Considerando que o discurso memorialístico não fixa o passado “tal
como foi”, as obras serão observadas como um arquivo da escravidão, tendo em
vista a definição de Foucault para o conceito de arquivo:
O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o
acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; [...]. Não tem o peso da tradição [...] não é, tampouco, o esquecimento acolhedor [...]; entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados (FOUCAULT, 2007, p. 147-148).
Assim, o arquivo é como um suporte da memória e isso se deve à
possibilidade de se preencher as lacunas do discurso elaborado pelos grupos
dominantes, pois, de acordo com Le Goff:
Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 2003, p.422).
ESCRITORAS NEGRAS: VIDA E OBRA
Este estudo teve como base a obra de Carolina Maria de Jesus e
Conceição Evaristo, escritoras negras cuja obra ainda é desconhecida de muitos
(as) professores (as).
Carolina Maria de Jesus é uma escritora da Favela do Canindé, que
nos anos 60 viu seu nome projetado em todo o mundo graças à publicação de
“Quarto de despejo: diário de uma favelada”, que denuncia as condições de
miséria subumana em que vivia. Entretanto sua história é muito mais que isso.
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais em 14
de março de 1914. Viveu nesta cidade até sua adolescência, mudando-se, mais
tarde, para o interior de São Paulo e anos depois para a capital. Trabalhou como
doméstica, porém o trabalho não agradava e ela passou a catar papel.
A autora estudou somente alguns anos de sua vida, com ajuda de uma
benfeitora. Isso fez com que Carolina vivesse uma vida de sofrimento pois
pertencia a um meio que a excluiu por não ser letrada, e não conseguiu se
encaixar numa sociedade erudita pela sua historia de vida. (SANTOS E BORGES,
2013).
O que se destaca em sua obra é que foi mulher de muita fibra,
consciência racial e social, sendo uma escritora especial não só pelo que
escreveu, mas da forma em que o fez. Ela abriu as portas da favela muitos antes
do assunto social aparecer na mídia, e não foram apenas as suas palavras que
perturbaram os leitores e a crítica, mas também a sua figura peculiar adversa e
inesperada.
Para Toledo:
Carolina não teve medo de expor e sustentar sua fala desvalorizada, e sua obra sempre contou com uma aliada, a verdade marginal, que contou o cotidiano conflituoso com os vizinhos e demais moradores do Canindé. Carolina fez literatura de negros, escritura feminista, provou a opressão social e a negligência dos direitos humanos, colocou-se como exemplo vivo da diferença (In SANTOS E BORGES, 2013, p.1)
Assim, quando se fala no estudo de representações de identidades
culturais de mulheres negras, não se pode deixar de falar sobre Carolina Maria de
Jesus, pois em sua obra é possível observar sua identidade, especificamente de
uma mulher negra favelada, mostrando o entrelaçar das falas em diálogo com
conceitos que lhe dão uma forma como espaço, cultura e tempo (memória e
história).
É o que acontece em sua primeira obra, “Quarto de Despejo - Diário de
uma favelada”. Escrito após a, até então, catadora de papel, ser descoberta pelo
jornalista Aldálio Dantas, da Folha de São Paulo, em uma entrevista com os
moradores da favela sobre a transposição daquela para outro local da cidade.
Esta obra, traduzida para outros 13 idiomas, faz uma denúncia da
realidade perversa e cruel de problemas presentes em grandes centros do país
que não afetam somente a identidade de um sujeito, mas a identidade coletiva do
humano genérico (HELLER, 1979 in SANTOS E BORGES, 2013).
A escritora Conceição Evaristo nasceu em 1946, em Belo Horizonte,
cidade em que morou até 1971, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Ela é
Mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Seus textos começaram a ser conhecidos em 1990 na série Cadernos
Negros, publicação organizada pelo grupo Quilombhoje, dedicada à literatura
afrodescendente. A partir de então, Conceição Evaristo vem trilhando o caminho
de uma escritora versátil por transitar pela esfera de diversos gêneros como
poesia, romance, contos e ensaios. Seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio foi
publicado em 2003, no Brasil, e traduzido ao inglês em 2007. Posteriormente,
publicou o romance Becos da memória, em 2006, seguido de uma obra poética
com o título Poemas da recordação e outros movimentos, lançada em 2008.
As obras de Conceição Evaristo, em linhas gerais, falam sobre
questões relativas à memória, escrita feminina, resistência, o legado histórico e as
influências do processo diaspórico na elaboração da identidade dos
afrodescendentes.
É possível perceber na obra de Conceição Evaristo que a questão da
ancestralidade africana é negada pelos brancos, transformando-se em um
passeio cultural que está vivo graças aos descendentes dos africanos que ainda
mantêm a tradição. A obra desta autora é importante quando se trata do estudo
da história e cultura africana e afro-brasileira pois ela trabalha a questão
ancestral e religiosa, mostrando que essas influências deixaram um legado
espiritual com a chegada dos Bantus no Brasil.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O método pesquisa realizada é bibliográfica, com método qualitativo e
abordagem descritiva/comparativa.
Gil (2002, p.18), aponta que uma pesquisa, quanto aos seus
procedimentos técnicos, quando bibliográfica, é desenvolvida com base em
material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos.
A abordagem descritiva tem como objetivo primordial a descrição das
características de determinadas populações ou fenômenos. Uma de suas
características está na utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados,
tais como o questionário e a observação sistemática.
A abordagem comparativa consiste em investigar fenômenos ou fatos e
explicá-los segundo suas semelhanças e suas diferenças. Geralmente o método
comparativo aborda duas séries de natureza análoga tomadas de meios sociais
ou de outra área do saber, a fim de detectar o que é comum a ambos. Este
método é de grande valia e sua aplicação se presta nas diversas áreas das
ciências, principalmente nas ciências sociais. Esta utilização deve-se pela
possibilidade que o estudo oferece de trabalhar com grandes grupamentos
humanos em universos populacionais diferentes e até distanciados pelo espaço
geográfico (FACHIN, 2001, p.37).
O estudo foi realizado no Centro Estadual de Educação Básica para
Jovens e Adultos – CEEBJA Fazenda Rio Grande, no município de Fazenda Rio
Grande- Pr, com 24 alunos (as) do Ensino Médio do período noturno, sendo 14
alunas e 8 alunos, durante os meses de junho a outubro de 2015.
Os instrumentos utilizados para o desenvolvimento desse estudo de
caso são pesquisas bibliográfica e as atividades pedagógicas estruturadas que
embasaram a construção de um caderno memorialístico.
RESULTADOS
Nenhum movimento cultural é globalizante. Não se pode imaginar que
todos os setores e pessoas da sociedade viveram da mesma forma em
determinado momento. Por isso, pode-se dizer que em certas épocas há uma
ideologia predominante, porém não globalizante. É o que acontece com a
implementação da Lei 10.639/03.
Quando se fala na implementação da Lei 10.639 é preciso pensar que
para que a mesma tenha efeito deve-se procurar uma metodologia diferenciada
para o trabalho de conteúdos literários de forma colaborativa e investigativa,
levando o (a) aluno (a) a trabalhar informações adquiridas.
Na realização das atividades, a professora atuou como colaboradora
no processo de leitura, percepção e construção do conhecimento, direcionando os
(as) alunos (as) em atividades que apresentem identidades de mulheres negras
na obra “Quarto de despejo: diários de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus
e poemas de Conceição Evaristo presentes em antologias poéticas, participando
como mediadora do processo.
A implementação teve início com uma apresentação aos alunos (as)
sobre os objetivos e metodologia desta pesquisa, procurando o compromisso de
procurar desvendar a questão da mulher negra na literatura de língua portuguesa.
Em razão da greve da educação do Paraná, as aulas somente tiveram
inicio em 12 de março, o que dificultou o início da implementação, uma vez que
no CEEBJA Fazenda Rio Grande, a turma de Língua Portuguesa do Ensino
Médio já estava em andamento e teria apenas mais um mês de aula para o seu
término. Assim, optou-se por esperar o início da próxima turma que só ocorreu em
abril.
Com a deflagração da segunda greve, em abril e maio, não foi possível
iniciar na data prevista e nem realizar a implementação toda no primeiro
semestre, uma vez que não houve tempo hábil para realizar o mínimo de 32h com
os mesmos alunos (as), condição fundamental para que se possa construir o
caderno memorialístico com os relatos dos mesmos.
Desta forma, foi feita uma reorganização do cronograma de
implementação, que teve início em junho.
A implementação foi realizada com alunos (as) do Centro Estadual de
Educação Básica de Jovens e Adultos – CEEBJA Fazenda Rio Grande, da cidade
de Fazenda Rio Grande, que cursam o Ensino Médio, período noturno.
O projeto foi introduzido com uma apresentação aos alunos (as) sobre
os objetivos e metodologia do trabalho, procurando o compromisso de desvendar
a questão da mulher negra na literatura de língua portuguesa e a produção do
caderno memorialístico. A seguir foi apresentado o Caderno Pedagógico e teve
início as atividades relativas ao projeto.
O caderno conta com quatro unidades. As três primeiras com
atividades relativas ao estudo de textos das autoras escolhidas e produção de um
diário com relato da vida dos (as) alunos (as). O último módulo aborda a
construção do caderno memorialístico com a compilação destes textos e
exposição das atividades realizadas. Foram utilizadas oito horas/aula para cada
um dos módulos.
O primeiro módulo teve início com a apresentação da frase “A
memória, onde nasce a História, que por sua vez a alimenta, procura salvar o
passado para servir o presente e o futuro” (LE GOFF, 2003, p. 47). A partir desta
frase, foi dada a oportunidade para que alunas (os) pudessem manifestar sua
opinião sobre o que diferencia memória e história. Após a fala das (os) alunas
(os), foi explicado que para Le Goff, memória e história são distintas e não devem
ser confundidas. Para o autor é função da memória, como também da história,
estabelecer os nexos entre o passado, o presente e o futuro. E, se a
memória procura salvar o passado, essa ação está longe de ser um mero resgate,
mas sim um processo direcionado a atuar no presente e a orientar os caminhos o
futuro. Le Goff aponta a memória como um do gênero, chamado por ele de
memorialística (2003).
Também conversamos sobre o passado pessoal e coletivo, com suas
histórias, memórias, acontecimentos e particularidades. Contar a própria história
ou fazer dela base para construção de uma obra ficcional é um exercício literário
realizado por muitos autores. A narrativa do passado, seja de forma realista ou
saudosista, psicológica ou sociológica, serve de excelente fonte para a leitura e
produção de textos. Autores de várias épocas e estilos criaram obras
memorialistas. Muitas delas se tornaram clássicas, e a diversidade narrativa prova
que narrar os fatos do passado pode ser bastante estimulante.
O gênero memorialístico na literatura foi abordado e fez-se um relato
sobre autoras (es) que produziram obras com o intuito de preservar memórias de
fatos marcantes de suas vidas, dando vida a obras literárias de grande
importância. Um exemplo é Cora Coralina. Foi distribuído cópias de trechos do
poema Vintém de cobre, de Cora Coralina, fazendo orientação da leitura, pedindo
que observassem o tom confessional, autobiográfico, nostálgico e subjetivo
presente no poema. A seguir, foram distribuídas cópias do poema
Profundamente, de Manual Bandeira, falando sobre a nostalgia quase trágica no
poema, que fala da perda da inocência e da orfandade do poeta, ao retratar
metaforicamente seus familiares (e suas memórias de tempos felizes da infância)
dormindo profundamente, ou seja, os mortos, vivem apenas na memória,
destacada no poema.
Como este módulo relaciona-se a textos memorialísticos foi importante
ressaltar que há vários tipos de textos literários que podem se enquadrar no
memorialismo: autobiografia, cuja característica principal é a narrativa pessoal da
própria história; correspondências, que por sua forma pessoal e privada, acabam
expondo detalhes e lembranças das vidas dos missivistas; crônicas, em que os
autores fazem uso de acontecimentos cotidianos como inspiração; diários, por si
só destinados a preservar s memórias de quem escreve; lendas, que são histórias
contadas de geração a geração, muitas vezes baseadas em nossa memória
ancestral; genealogia, que narra a história das famílias e poesia lírica que, por sua
característica sentimental, é um gênero que muitas vezes mistura recordações,
nostalgia e memórias da vida do autor.
A identidade é construída a partir de nossa história. História essa que
pode ser contada a partir da memória. E a memória evoca lembranças, como se
percebe no poema Negro Estrela, de Conceição Evaristo (EVARISTO, 2008,
p.59). Neste poema a voz da própria autora quer mostrar a feição e as
particularidades de Osvaldo, seu companheiro de vida, com o intuito de, em frente
a morte, não ser abatida pela dor da ausência, mas, conservar saudáveis
lembranças. Outro poema de feição memorialística é Mineiridade, no qual
Conceição Evaristo trata de sua relação com sua terra natal.
Percebe-se que a escritora não está em sua terra natal e isto faz com
que ela sinta saudade de Minas Gerais, mas, em paralelo a isso, percebe-se que
ela carrega as marcas de seu Estado de origem como o vocabulário típico, com
termos como “trem” e “uai”. Esse fragmento também permite que se estabeleça a
oposição entre Minas Gerais, que mescla a urbanização com suas montanhas, e
o lugar em que Conceição se encontra, uma cidade plenamente urbanizada, pois
o cenário exterior, repleto de cimento, reflete-se nela tornando-a “maciça” e “sem
jeito”. Sendo assim, verifica-se que a autora enfrenta um conflito no que se refere
à sua identidade, pois esta, conforme mostra o poema, é resultado da situação de
“deslocamento”.
Os (as) alunos (as) perceberam que passado pessoal e coletivo, com
suas histórias, memórias, acontecimentos e particularidades, sempre foi uma
fonte muito importante para produção literária e que contar a própria história ou
fazer dela base para construção de uma obra ficcional é um exercício literário
realizado por muitos autores. A narrativa do passado, seja de forma realista ou
saudosista, psicológica ou sociológica, serve de excelente fonte para a leitura e
produção de textos.
Foi realizada uma produção de textos, na qual os (as) alunos (as)
iniciaram com a data, como em um diário, já dando forma aos textos do caderno
memorialístico. A ideia é que, a partir dos poemas analisados, os (as) alunos (as)
produzissem individualmente narrativas que tratem de histórias sobre sua própria
família ou memórias pessoais.
O segundo módulo teve como base a construção da identidade
feminina afro-brasileira. Mesmo na língua falada no país, na expressão “mulher
negra”, o adjetivo negro contém um significado implícito de sujeira, melancolia,
condenação, etc. Esse fato também nos revela que princípios de equidade não
fazem parte da rotina da mulher afro-brasileira: ela ainda efetua trabalhos com a
mais baixa remuneração; ainda que tenha concluído um curso superior, o
mercado a rejeita devido à sua “aparência”. Ainda que sejam muitas, as mulheres
negras permanecem invisíveis. Mas, dessa invisibilidade, ressurgem e constroem
suas identidades (GONÇALVES, 2014).
No que se refere à representação literária da mulher negra, percebe-se
que ela ainda está ligada às imagens do passado escravo, retratada como a anti-
musa da sociedade brasileira, porque não é adequada ao modelo estético. A
literatura, assim como a história, produz um apagamento dessas mulheres,
ocultando os sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira
(GONÇALVES, 2014).
Assim, a literatura das mulheres negras é como uma arma de
criatividade e de resistência do sujeito diaspórico, levantando questões sobre o
preconceito.
O que eu tenho pontuado é isso: é o direito da escrita e da leitura que o povo pede, que o povo demanda. É um direito de qualquer um, escrevendo ou não segundo as normas cultas da língua. É um direito que as pessoas também querem exercer. (EVARISTO, 2009).
As atividades foram iniciadas com a frase de Conceição Evaristo
escrita em um cartaz, incentivando os (as) alunos (as) a expressar opinião sobre
o direito de escrever segundo as normas cultas ou não. Partindo da fala dos (as)
alunos (as), foi feita uma breve introdução sobre a vida de Conceição Evaristo,
enfatizando a história de luta da escritora negra, solicitando que fizessem uma
pesquisa em livros, revistas ou internet sobre a vida e obra da autora.
O resultado apresentado foi que as obras de Conceição Evaristo falam
sobre questões relativas à memória, escrita feminina, resistência, o legado
histórico e as influências do processo diaspórico na elaboração da identidade dos
afrodescendentes. Nessas obras, a memória aparece como elemento
absolutamente central. Ela chega a afirmar que todo seu trabalho de escritora
consiste em perseguir vestígios de memória para recompor uma história perdida:
O que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou perseguindo esquecimento, invento, invento. Inventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos becos de minha memória imaginei, criei (EVARISTO, 2009).
A obra de Conceição Evaristo aborda temas complexos, tais como a
vida nas favelas, o preconceito e a exclusão social. Mas, ela também fala de
amor, de esperança, da família. Sua perspectiva feminina mostra sua constante
busca, suas estratégias diversas de luta contra o preconceito, a opressão e a
injustiça social. E com os diferentes temas que aborda, dá um passo à frente na
luta contra a exclusão política e social. Assim é possível perceber em seus
poemas que a autora re-constrói suas diferentes identidades: mulher, preta,
pobre.
Foi escolhido o poema Vozes-mulheres de Conceição Evaristo, que
narra a trajetória de mulheres negras no Brasil, como ponto de partida para
estimular os alunos (as) a produzirem textos narrativos a partir de suas memórias
individuais familiares. Após a leitura do poema, os alunos foram questionados
sobre a história da diáspora, como ela é relembrada, recuperada, apontando o
fato de o poema, como já indica o título, só fala sobre mulheres, em especial a
história de todas as mulheres afro-brasileiras de um modo geral. Os (as) alunos
(as), conseguiram perceber que todo o texto se refere à família da
escritora.
Foi possível perceber nesta atividade que o texto traz uma voz poética
que reconhece a importância de ser mulher: força que move o mundo, aquela que
gera a vida. Entretanto, a mulher sabe que o mundo ainda é masculino: a vida é
inaugurada em baixa voz, porque o mundo ainda não está preparado para ela,
para o que tem a dizer, por isso a necessidade de violentar, de impor-se. Imagens
de silêncio e palavras que não foram ditas nos mostram uma voz feminina ainda
silenciada. Seus desejos são vagos, suas esperanças, insinuadas.
Partindo do texto lido e das análises realizadas, os (as) alunos (as)
pesquisaram a história de suas famílias, perguntando aos familiares sobre fatos
marcantes da história familiar. Datas e locais de nascimentos e falecimentos,
origens, ocupação, formação, além de acontecimentos marcantes como viagens,
participação em momentos históricos, ou até mesmo histórias peculiares, trágicas
ou engraçadas, foram anotados.
A seguir passou-se para a produção de um texto memorialístico
partindo da seguinte frase “Se as mulheres do passado contassem as suas
memórias…”. Os (as) alunos (as), começaram então a elaborar uma página de
diário escrito por uma mulher de uma determinada época.
O terceiro módulo começou com a seguinte pergunta: Quem foi
Carolina Maria de Jesus?
Após explicar que Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra e
favelada, mãe solteira, quase sem escolaridade, que trabalhava nos lixões em
volta da favela do Canindé, em São Paulo, e de lá tirava os meios de sustentar a
família. Sua produção literária também teve início no lixão, pois era de lá que ela
tirava os livros que embasaram sua aprendizagem e os cadernos nos quais
escrevia, foi lido o seguinte excerto do livro Quarto de despejo: diário de uma
favelada:
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorre. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro. (JESUS, p.2000, p.147)
A fez-se um debate sobre o excerto, buscando que os (as) alunos (as)
expressassem sua opinião sobre a relação entre a vida que a autora fala e a cor
preta.
Também foi lido o seguinte trecho: “Eu classifico São Paulo assim: o
Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a
favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2000, p.28).
Após a leitura, apontou-se que a autora faz uma referência a lugares
comuns de São Paulo, onde os turistas normalmente vão, o Palácio do Governo e
a Prefeitura, mas também fala da favela, lugar considerado como um depósito e
que para Carolina, em uma analogia ao quarto de despejo, várias vezes é descrito
estar no inferno: “Cheguei ao inferno. Devo incluir-me, porque eu também sou da
favela. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de
despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (JESUS, 2005, p.33).
A leitura desses trechos teve como objetivo mostrar que tanto o lugar
onde a autora morava, assim como sua condição feminina e étnica são de
extrema importância para se pensar os papéis exercidos e a identidade
construída partindo de um cotidiano de atribulações documentados no livro
Quarto de despejo: diário de uma favelada.
A seguir foi lido o primeiro capítulo de Quarto de despejo: diário de uma
favelada, de Carolina Maria de Jesus (2000, p.03), pedindo que observassem que
a escrita da autora baseia-se em aspectos memorialísticos bastante pessoais,
enfatizando o aspecto memorialístico contrapondo-se a um contexto histórico e
social.
Após a leitura passou-se para a produção de mais um texto
memorialístico, utilizando uma fotografia do passado, que não deveria ser
recente, quanto mais antiga melhor, apresentando a história dessa foto.
Foi passado o curta-metragem O Papel e mar, adaptação do diretor
Luiz Antônio Pilar para a obra da autora que leva o mesmo nome, buscando
refletir com os (as) alunos (as) que, apesar de sua célebre obra ter repercutido
bastante, Carolina morreu como viveu: pobre.
No quarto módulo foi construído o Caderno Memorialístico. Durante
todas as unidades anteriores foram escritos textos memorialísticos, alguns em
forma de textos narrativos e outros em forma de diário.
As leituras e atividades realizadas tiveram o intuito de dar aos alunos e
alunas parâmetros para a construção de seus textos. Para tanto foram
trabalhados aspectos do gênero textual memórias, chamando a atenção para
alguns aspectos como narração em primeira pessoa e uso de tempos verbais. Os
(as) alunos (as) iniciaram já na primeira unidade a construção das suas
memórias, mas foi preciso retomar as discussões iniciais sobre memória e
solicitar que os (as) alunos (as) repensem ou confirmem suas impressões.
Para a construção do Caderno Memorialístico, que é o produto final
deste caderno pedagógico, foi preciso rever todos os textos já produzidos e
selecionar os que fariam parte do Caderno. Cada aluno (a) leu seus textos e
escolheu no mínimo dois que foram corrigidos.
São 24 (vinte e quatro) narrativas escolhidas, que fazem parte de uma
publicação, com as memórias de cada uma/um que trabalhou com o tema. O
Caderno Memorialístico está em fase final e deverá ser impresso no ano de 2016.
Suas cópias ficarão na Biblioteca do Colégio.
CONCLUSÃO
A realização deste estudo trouxe como principal contribuição a visão da
vida e trajetória dos (as) alunos e alunos do CEEBJA Fazenda Rio Grande.
Falar de história e memória não foi fácil, pois muitos fazem confusão
entre as duas. Não apenas aluno (as), mas também professores (as). Entretanto,
no decorrer das atividades foi possível mostrar as diferenças entre elas.
Outro ponto importante na realização das atividades foi o gosto
demonstrado pelos (as) participantes na leitura dos poemas e textos. Todos (as)
ficaram muito interessados e fizeram diversas perguntas. Foi possível perceber
que se identificaram com os textos.
Assim, pode-se dizer que a realização do trabalho atingiu seu principal
objetivo: implementar a Lei 10.639 utilizando textos literários e despertando nos
(as) alunos (as) o reconhecimento de suas identidades, sejam elas de
descendência africana ou não.
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