OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA … · promover e análise uma reflexão acerca da...

24
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE Artigos Versão Online ISBN 978-85-8015-080-3 Cadernos PDE I

Transcript of OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA … · promover e análise uma reflexão acerca da...

OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE

Artigos

Versão Online ISBN 978-85-8015-080-3Cadernos PDE

I

UMA REFLEXÃO SOBRE LITERATURA E CONSCIÊNCIA NEGRA: identidades

de mulheres negras presentes em obras de Carolina Maria de Jesus e

Conceição Evaristo

Ana Lúcia Leal1

Fernanda Deah Chichorro Baldin2

Resumo: Este artigo é resultado de todo o trabalho realizado nos anos de 2014/2015 no programa PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) da Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Ele teve como base a implementação da Lei 10.639 por meio de pesquisa sobre identidades de mulheres negras nas obras de literatura de Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, realizado com 12 (doze) alunas (os) do Ensino Médio do Centro Estadual de Educação Básica de Jovens e Adultos – CEEBJA Fazenda Rio Grande. O principal objetivo do estudo foi levantar aspectos da identidade feminina na literatura negra no Brasil, ou seja, propiciar atividades que promovam reflexões sobre identidades de mulheres negras na literatura e consciência racial. Este estudo parte da implementação de um projeto realizado em quatro módulos que totalizaram 32 horas. As leituras, atividades e produções de textos trouxeram à tona a realidade de mulheres negras no Brasil e, principalmente, das famílias de cada um (as) dos (as) participantes. Palavras-chave: Identidade. Mulher Negra. Literatura. Cultura Afro-brasileira.

INTRODUÇÃO

O conservadorismo tradicional, no que diz respeito à diversidade

presente nas escolas, ainda é atuante e utiliza muitas estratégias de continuidade.

O racismo no Brasil é velado e cínico, enquanto que em alguns países se dá de

forma mais clara.

A escola, embora seja o espaço mais democrático existente em uma

sociedade, reflete esse conservadorismo, uma vez que há muita dificuldade para

tratar das questões da diversidade racial.

1 Professora da Rede Pública Estadual de Ensino do Paraná. E-mail de contato:

[email protected]

2 Orientadora PDE da Universidade UTFPR. E-mail de contato: [email protected]

O interesse neste assunto se deu devido à necessidade se trabalhar a

cultura africana e afro-brasileira em razão da implementação da Lei 10.639, uma

vez que esta lei veio para ressaltar a importância da cultura negra na formação da

sociedade brasileira, mas também devido ao interesse pessoal no tema, uma vez

que, independente da lei, é preciso levar para conhecimento dos alunos a cultura

e a história do povo negro.

Essa questão não é abordada devidamente na maioria das disciplinas

do Ensino Fundamental e do Médio, e isto não é diferente nas aulas de Língua

Portuguesa, especialmente quando se trata do ensino de Literatura.

Assim, na elaboração do projeto de intervenção pedagógica a ser

implementado, julgou-se necessário desenvolver um trabalho que trate presença

das mulheres negras em obras literárias brasileiras, em especial no que

concerne à presença das mulheres negras na sociedade brasileira, não apenas

no espaço da casa, privado, mas no espaço público, pois, com relação às

personagens negras, elas têm como espaço mais comum para a ambientação

literária o privado e, em contraposição aos estereótipos literários da moça branca,

aparecem quase invariavelmente como mulatas sensuais e fogosas, negras

abnegadas, submissas e máquinas de trabalhar. Estão quase sempre ligadas à

procriação, à questão patrimonial, familiar e sucessória e à exploração da mão-

de-obra, numa sociedade patriarcal, sexista e racista.

Partindo dessa visão, surgiu o interesse em observar identidades de

mulheres negras presentes em obras escritas por mulheres negras, buscando

notar como elas próprias se representam.

O ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas aulas de

Língua Portuguesa é feito muitas vezes com o tema da escravidão negra africana,

em especial nas aulas de literatura, fazendo surgir o seguinte questionamento:

como trabalhar nas aulas de literatura a Lei 10.639, a partir de uma seleção de

textos de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, buscando relacioná-la

com o momento histórico de cada aluna (o)?

É objetivo desse artigo fazer um breve estudo bibliográfico e análise

qualitativa e abordagem descritiva/comparativa das atividades que buscam

promover e análise uma reflexão acerca da presença de identidades de mulheres

negras na literatura, como meio de implementação da Lei 10.639/03, alterada

pela Lei 11.645/08, realizadas com alunos e alunas do Ensino Médio do Centro

Estadual de Educação de Jovens e Adultos - CEEBJA – Fazenda Rio Grande,

mostrando que a Literatura pode ser utilizada para combater os lugares sociais

assinalados ao gênero feminino.

As atividades desenvolvidas foram construídas buscando levantar

aspectos da literatura negra feminina no Brasil; fazer um estudo sobre a vida de

obra de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo; fazer um estudo sobre

identidades culturais e memória; buscar nas obras de Carolina Maria de Jesus e

Conceição Evaristo a existência de representações de identidades culturais de

mulheres negras; fazer um estudo sobre a obrigatoriedade do ensino da história

e cultura afro-brasileira a partir da Lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares

para a Educação das Relações Étnicorraciais e Ensino da História e Cultura Afro-

brasileira; e confeccionar material didático que subsidiasse a produção de

caderno memorialístico (diário) pelas alunas que fizeram parte do projeto.

Para tanto, foram realizadas atividades abordando a presença das

mulheres negras nas obras Quarto de despejo: diário de uma favelada de

Carolina Maria de Jesus e poemas de Conceição Evaristo presentes nas

antologias Cadernos Negros (Quilombhoje, 1990), Contos Afros (Quilombhoje) e

Contos do mar sem fim (Editora Pallas).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Lei Federal 10.639/03 modificou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB –

lei 9394/96) ao instituir a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-

brasileira nos sistemas de ensinos municipal, estadual e federal, que devem, a

partir da lei, incluir aulas sobre questões étnico-culturais em seus currículos.

De acordo com a lei 10.639/03, o Art. 1o da Lei no 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo:

Art. 26ª Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1

o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo

incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros

no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2

o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão

ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Percebe-se na criação da Lei 10.639/03 e 11.548/08 o propósito de

desconstruir preconceitos inerentes aos negros e negras socialmente. Para

Lopes:

O combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação, em nível escolar, deve tomar as mais diferentes formas de valorização da pessoa humana, povos e nações, valorização que se alcança quando descobrimos que as pessoas, mesmo com suas dessemelhanças, ainda são iguais entre si e iguais a nós, com direito de acesso aos bens e serviços de que a sociedade dispõe, de usufrui-los, criar outros, bem como de exercer seus deveres em benefício próprio e dos demais. (LOPES, 2005, p. 187)

Assim, pode-se dizer que a Lei 10.639 tem especial importância para a

divulgação/valorização do legado cultural africano, pois além de ampliar o parco

conhecimento que se tem dessa cultura, propõe um novo olhar sobre a história

africana e afro-brasileira e suas possíveis relações como o percurso histórico

brasileiro.

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana (2004):

A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte de discriminações.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para educação das relações

étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura afro-brasileira e africana

também expõem:

Art. 3° A Educação das Relações Étnico-Raciais e o estudo de História e Cultura Afro-Brasileira, e História e Cultura Africana será desenvolvida por meio de conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem

estabelecidos pelas Instituições de ensino e seus professores, com o apoio e supervisão dos sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP 003/2004. (DCN-s, 2004, p. 32)

A inclusão desse tema nos conteúdos escolares, em especial em

Língua Portuguesa, reconstrói nos alunos e nos professores uma imagem positiva

do continente africano, além de, por um lado, elevar a autoestima das (os) alunas

(os) afro-descendentes e, por outro lado, tornar as (os) demais alunas (os) menos

refratários à diversidade étnico-racial.

§ 3° O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil. (DCN-s, 2004, p. 32)

A literatura afro-brasileira é um tema que deve ser discutido e incluído

no currículo de Língua Portuguesa, uma vez que é constituída de uma fonte

riquíssima de saber e conhecimento que abrange tanto a história e cultura afro-

brasileira quanto africana (COSTA, 2014).

As relações étnico-raciais em nosso país são marcadas, historicamente, por profundas desigualdades sócio-econômicas, haja vista a perpetuação do racismo no seio social, realimentado ao longo do tempo por diversas facetas e dissimulações como, por exemplo, o mito da democracia racial e o eurocentrismo curricular. Emerge, daí a sua propagação e desdobramentos no espaço escolar, nas relações sociais, na mídia, nas artes e na literatura. Diante desse quadro geral, enfrentaremos grandes desafios para fazer valer a Lei Federal 10.639/03, em virtude da carência de docentes na área das relações étnico-raciais e, também, da parca publicação e circulação de materiais didáticos, teóricos e literários pertinentes à demanda atual, que é primar pela valorização e ressignificação da história e cultura africana e afro-brasileira, sem cair nas teias enredadas pelo racismo à brasileira. (OLIVEIRA, 2008, p.01)

Embora a Lei 10.639/03 já esteja em vigor a mais de 10 anos, percebe-

se ainda uma grande dificuldade de se trabalhar esses temas nas escolas. Isso

ocorre na maioria das vezes devido a falta de conhecimento a respeito do

assunto, ou até mesmo, por puro preconceito que se encontra no sub-

inconsciente de algumas pessoas.

Com relação ao ensino de literatura, de acordo com Dejair Dionísio:

Normalmente o negro, quando é retratado na literatura, é uma figura estilizada, estereotipada, que não representa a sua realidade, a sua história. Além disso, no Brasil há poucos autores também que são negros e que abordam a temática afro-brasileira” (In SANCHES, 2013)

Um bom exemplo sobre como as (os) negras (as) são retratados na

literatura brasileira são as novelas televisivas. Para Dejair Dionísio (In SANCHES,

2013):

O negro não é retratado. Elas vendem a imagem do Brasil no exterior e acabam gerando uma confusão, pois somos um país com cerca de 115 milhões de pessoas que se declaram negros, afro-descendentes, pardos, mas que não possuem a sua identidade exposta. E também não são retratados pelos escritores que são cânones no Brasil. Se pegar dez autores, não verá o negro realmente, seja no ambiente urbano ou rural. Esta é uma dívida muito grande em termos literários.

Assim, a representação do (a) negro (a) nas obras de literatura

brasileira é um tanto folclórica, estereotipada, com alguns conceitos mal

acabados. A negra aparece sem família, sem sobrenome, estrutura familiar,

história de vida. É muito folclorizada e acaba servindo de mote para a

desvalorização da mulher brasileira:

Vendeu-se a imagem, não apenas ele, mas todo um contexto literário, social e político, que vendeu a mulher como fogosa, gostosa, boa de cama, pronta para forno e fogão. Isso acaba no tipo de turismo que temos, principalmente, nas praias do Nordeste (DIONISIO in SANCHES, 2013).

Percebe-se isso claramente na obra “O cortiço”, de Aluísio Azevedo,

que mostra o sensualismo desenfreado da mulata, Rita Bahiana, que é “fruto

dourado e acre dos sertões americanos”, com “meneios” de uma “graça

irresistível, simples, primitiva”. Nestes trechos é destacada uma sexualidade

animalesca, mostrando a personagem uma mulata “feita toda de pecado”.

A sensualidade da mulher negra também se repete em narrativas de

Jorge Amado, nas quais as mulatas são exaltadas como objetos do desejo

masculino, como Gabriela, Tereza Batista, Tieta do Agreste.

Assim, a literatura afro-brasileira representa um importante papel na

construção da identidade étnica brasileira. A partir dessa reconstrução o (a) negro

(a) tenta resgatar o máximo de sua dignidade étnica e racial negada pelo meio

social (DUARTE, 2005, p.118).

Se, como foi dito a identidade cultural é a base para o estudo, também

o é a memória, pois parte dela as lembranças da vida, funcionando como um filtro

e ao mesmo tempo sendo o elo entre a cultura deixada e a nova a ser assimilada.

Stuart Hall (2006) apresenta o conceito do que denomina "identidades

culturais" como sendo aspectos de identidades que surgem do "pertencimento" a

culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. O

autor entende que as condições da sociedade estão "fragmentando as paisagens

culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no

passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais" (p.

9). Estas transformações estão alterando as identidades pessoais, influenciando a

ideia de sujeito integrado que temos de nós próprios: "Esta perda de sentido de si

estável é chamada, algumas vezes, de duplo deslocamento ou descentralização

do sujeito" (HALL, 2006, p. 9). Esse duplo deslocamento, que corresponde à

descentralização dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural

quanto de si mesmos, é o que resulta em "crise de identidade".

Para Mercer, “ a identidade somente se torna uma questão quando

está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é

deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza" (Mercer, 1990, p.43 in Hall,

2006).

Hall (2006) aponta que há três diferentes concepções de identidade.

A primeira concepção é chamada de identidade do sujeito do

Iluminismo, que expressa uma visão individualista de sujeito, caracterizado pela

centração e unificação, em que prevalece a capacidade de razão e de

consciência. Assim, entende-se o sujeito como portador de um núcleo interior que

emerge no nascimento e prevalece ao longo de todo seu desenvolvimento, de

forma contínua e idêntica.

Já a segunda concepção, a identidade do sujeito sociológico, considera

a complexidade do mundo moderno e reconhece que esse núcleo interior do

sujeito é constituído na relação com outras pessoas, cujo papel é de mediação da

cultura. Assim, o sujeito se constrói na interação com a sociedade, em um

diálogo contínuo com os mundos interno e externo. Ainda permanece o núcleo

interior, mas este é constituído pelo social, ao mesmo tempo em que o constitui.

Assim, o sujeito é, a um só tempo, individual e social; é parte e é todo.

A terceira é a concepção de identidade do sujeito pós-moderno, que

não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente, mas formada e

transformada continuamente, sofrendo a influência das formas como é

representado ou interpretado nos e pelos diferentes sistemas culturais de que

toma parte. A visão de sujeito assume contornos históricos e não biológicos, e o

sujeito adere a identidades diversas em diferentes contextos. Desta forma, o

sujeito pós-moderno se caracteriza pela mudança, pela diferença, pela

inconstância, e as identidades permanecem abertas.

Com relação aos textos memorialísticos, há uma complexa dialética no

que se refere a história e memória. Para Jacques Le Goff, que faz uma relação

entre a memória em suas múltiplas formas e a história dos historiadores, “A

memória, onde nasce a História, que por sua vez a alimenta, procura salvar o

passado para servir o presente e o futuro” (2003, p. 47).

Assim, para Le Goff, memória e história são, portanto, distintas e não

devem ser confundidas. Para o autor é função da memória, como também da

história, estabelecer os nexos entre o passado, o presente e o futuro. E, se a

memória procura salvar o passado, essa ação está longe de ser um mero resgate,

mas sim um processo direcionado a atuar no presente e a orientar os caminhos

do futuro. Le Goff aponta a memória como um do gênero, chamado por ele de

memorialística (LE GOFF, 2003).

O Diário é um exemplo de texto memorialístico que possui uma

estrutura bastante característica: repete a sua apresentação, ou seja, a cada dia

corresponde a um registro de situações e sentimentos diferentes. O autor dirige-

se ao diário como a um confidente, sendo frequente a utilização do vocativo

“Querido diário” ou até a criação de um nome para saudá-lo. Os registros são

ordenados por ordem cronológica de ocorrência/ local / data.

Além de obedecer a uma estrutura específica, o diário tem

características próprias:

- O protagonista e o narrador são a mesma pessoa. Por esse motivo é

utilizada a primeira pessoa;

- O diário é testemunha de uma necessidade de comunicação;

- O narrador dá livre expressão ao curso do seu pensamento, ou seja,

o diário destina-se ao próprio autor, tendo marcas da oralidade;

- O nível de língua é familiar, o registro é informal e o vocabulário

bastante simples;

- Há a presença de fatos, acontecimentos, episódios reais e objetivos e

presença da componente emocional e subjetiva: sentimentos, receios, dúvidas,

ansiedades;

- A narração é descontínua, intercalada, porque apenas ocorre quando

o sujeito/narrador deseja registrar algo.

Existem dois grandes tipos de diário, de acordo com o tipo de receptor

a que se destinam: diário pessoal e diário de ficção.

O diário pessoal é íntimo e destina-se apenas a ser lido pelo seu autor.

Não existem grandes preocupações literárias, com linguagem fluida e familiar.

Poderá ser repetitivo em termos de forma (repetições a nível do registro escrito

que traduzem a fluência da oralidade) e de conteúdo (referência aos mesmos

episódios…).

Com relação ao diário de ficção, o mesmo não se trata de um diário

genuíno, cujo autor registra as emoções e vivências quotidianas. Há uma

preocupação pela escrita artística, acrescida da atenção sobre a linguagem

utilizada que também traduzirá o correr do pensamento. O diário de ficção é uma

obra literária apresentada na forma de anotações pessoais.

As Memórias são o recontar de experiências do passado que se

mantêm na memória. São contadas no tempo presente, portanto a perspectiva é a

do presente em relação ao passado. Assim, os acontecimentos do passado estão

sujeitos à lembrança emocional do narrador. A narrativa memorialística tem um

fundo histórico e cultural, sendo um testemunho de um tempo e de um meio,

podendo ter, por isso, valor documental.

Considerando que o discurso memorialístico não fixa o passado “tal

como foi”, as obras serão observadas como um arquivo da escravidão, tendo em

vista a definição de Foucault para o conceito de arquivo:

O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o

acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; [...]. Não tem o peso da tradição [...] não é, tampouco, o esquecimento acolhedor [...]; entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados (FOUCAULT, 2007, p. 147-148).

Assim, o arquivo é como um suporte da memória e isso se deve à

possibilidade de se preencher as lacunas do discurso elaborado pelos grupos

dominantes, pois, de acordo com Le Goff:

Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 2003, p.422).

ESCRITORAS NEGRAS: VIDA E OBRA

Este estudo teve como base a obra de Carolina Maria de Jesus e

Conceição Evaristo, escritoras negras cuja obra ainda é desconhecida de muitos

(as) professores (as).

Carolina Maria de Jesus é uma escritora da Favela do Canindé, que

nos anos 60 viu seu nome projetado em todo o mundo graças à publicação de

“Quarto de despejo: diário de uma favelada”, que denuncia as condições de

miséria subumana em que vivia. Entretanto sua história é muito mais que isso.

Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais em 14

de março de 1914. Viveu nesta cidade até sua adolescência, mudando-se, mais

tarde, para o interior de São Paulo e anos depois para a capital. Trabalhou como

doméstica, porém o trabalho não agradava e ela passou a catar papel.

A autora estudou somente alguns anos de sua vida, com ajuda de uma

benfeitora. Isso fez com que Carolina vivesse uma vida de sofrimento pois

pertencia a um meio que a excluiu por não ser letrada, e não conseguiu se

encaixar numa sociedade erudita pela sua historia de vida. (SANTOS E BORGES,

2013).

O que se destaca em sua obra é que foi mulher de muita fibra,

consciência racial e social, sendo uma escritora especial não só pelo que

escreveu, mas da forma em que o fez. Ela abriu as portas da favela muitos antes

do assunto social aparecer na mídia, e não foram apenas as suas palavras que

perturbaram os leitores e a crítica, mas também a sua figura peculiar adversa e

inesperada.

Para Toledo:

Carolina não teve medo de expor e sustentar sua fala desvalorizada, e sua obra sempre contou com uma aliada, a verdade marginal, que contou o cotidiano conflituoso com os vizinhos e demais moradores do Canindé. Carolina fez literatura de negros, escritura feminista, provou a opressão social e a negligência dos direitos humanos, colocou-se como exemplo vivo da diferença (In SANTOS E BORGES, 2013, p.1)

Assim, quando se fala no estudo de representações de identidades

culturais de mulheres negras, não se pode deixar de falar sobre Carolina Maria de

Jesus, pois em sua obra é possível observar sua identidade, especificamente de

uma mulher negra favelada, mostrando o entrelaçar das falas em diálogo com

conceitos que lhe dão uma forma como espaço, cultura e tempo (memória e

história).

É o que acontece em sua primeira obra, “Quarto de Despejo - Diário de

uma favelada”. Escrito após a, até então, catadora de papel, ser descoberta pelo

jornalista Aldálio Dantas, da Folha de São Paulo, em uma entrevista com os

moradores da favela sobre a transposição daquela para outro local da cidade.

Esta obra, traduzida para outros 13 idiomas, faz uma denúncia da

realidade perversa e cruel de problemas presentes em grandes centros do país

que não afetam somente a identidade de um sujeito, mas a identidade coletiva do

humano genérico (HELLER, 1979 in SANTOS E BORGES, 2013).

A escritora Conceição Evaristo nasceu em 1946, em Belo Horizonte,

cidade em que morou até 1971, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Ela é

Mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e

Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Seus textos começaram a ser conhecidos em 1990 na série Cadernos

Negros, publicação organizada pelo grupo Quilombhoje, dedicada à literatura

afrodescendente. A partir de então, Conceição Evaristo vem trilhando o caminho

de uma escritora versátil por transitar pela esfera de diversos gêneros como

poesia, romance, contos e ensaios. Seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio foi

publicado em 2003, no Brasil, e traduzido ao inglês em 2007. Posteriormente,

publicou o romance Becos da memória, em 2006, seguido de uma obra poética

com o título Poemas da recordação e outros movimentos, lançada em 2008.

As obras de Conceição Evaristo, em linhas gerais, falam sobre

questões relativas à memória, escrita feminina, resistência, o legado histórico e as

influências do processo diaspórico na elaboração da identidade dos

afrodescendentes.

É possível perceber na obra de Conceição Evaristo que a questão da

ancestralidade africana é negada pelos brancos, transformando-se em um

passeio cultural que está vivo graças aos descendentes dos africanos que ainda

mantêm a tradição. A obra desta autora é importante quando se trata do estudo

da história e cultura africana e afro-brasileira pois ela trabalha a questão

ancestral e religiosa, mostrando que essas influências deixaram um legado

espiritual com a chegada dos Bantus no Brasil.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O método pesquisa realizada é bibliográfica, com método qualitativo e

abordagem descritiva/comparativa.

Gil (2002, p.18), aponta que uma pesquisa, quanto aos seus

procedimentos técnicos, quando bibliográfica, é desenvolvida com base em

material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos.

A abordagem descritiva tem como objetivo primordial a descrição das

características de determinadas populações ou fenômenos. Uma de suas

características está na utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados,

tais como o questionário e a observação sistemática.

A abordagem comparativa consiste em investigar fenômenos ou fatos e

explicá-los segundo suas semelhanças e suas diferenças. Geralmente o método

comparativo aborda duas séries de natureza análoga tomadas de meios sociais

ou de outra área do saber, a fim de detectar o que é comum a ambos. Este

método é de grande valia e sua aplicação se presta nas diversas áreas das

ciências, principalmente nas ciências sociais. Esta utilização deve-se pela

possibilidade que o estudo oferece de trabalhar com grandes grupamentos

humanos em universos populacionais diferentes e até distanciados pelo espaço

geográfico (FACHIN, 2001, p.37).

O estudo foi realizado no Centro Estadual de Educação Básica para

Jovens e Adultos – CEEBJA Fazenda Rio Grande, no município de Fazenda Rio

Grande- Pr, com 24 alunos (as) do Ensino Médio do período noturno, sendo 14

alunas e 8 alunos, durante os meses de junho a outubro de 2015.

Os instrumentos utilizados para o desenvolvimento desse estudo de

caso são pesquisas bibliográfica e as atividades pedagógicas estruturadas que

embasaram a construção de um caderno memorialístico.

RESULTADOS

Nenhum movimento cultural é globalizante. Não se pode imaginar que

todos os setores e pessoas da sociedade viveram da mesma forma em

determinado momento. Por isso, pode-se dizer que em certas épocas há uma

ideologia predominante, porém não globalizante. É o que acontece com a

implementação da Lei 10.639/03.

Quando se fala na implementação da Lei 10.639 é preciso pensar que

para que a mesma tenha efeito deve-se procurar uma metodologia diferenciada

para o trabalho de conteúdos literários de forma colaborativa e investigativa,

levando o (a) aluno (a) a trabalhar informações adquiridas.

Na realização das atividades, a professora atuou como colaboradora

no processo de leitura, percepção e construção do conhecimento, direcionando os

(as) alunos (as) em atividades que apresentem identidades de mulheres negras

na obra “Quarto de despejo: diários de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus

e poemas de Conceição Evaristo presentes em antologias poéticas, participando

como mediadora do processo.

A implementação teve início com uma apresentação aos alunos (as)

sobre os objetivos e metodologia desta pesquisa, procurando o compromisso de

procurar desvendar a questão da mulher negra na literatura de língua portuguesa.

Em razão da greve da educação do Paraná, as aulas somente tiveram

inicio em 12 de março, o que dificultou o início da implementação, uma vez que

no CEEBJA Fazenda Rio Grande, a turma de Língua Portuguesa do Ensino

Médio já estava em andamento e teria apenas mais um mês de aula para o seu

término. Assim, optou-se por esperar o início da próxima turma que só ocorreu em

abril.

Com a deflagração da segunda greve, em abril e maio, não foi possível

iniciar na data prevista e nem realizar a implementação toda no primeiro

semestre, uma vez que não houve tempo hábil para realizar o mínimo de 32h com

os mesmos alunos (as), condição fundamental para que se possa construir o

caderno memorialístico com os relatos dos mesmos.

Desta forma, foi feita uma reorganização do cronograma de

implementação, que teve início em junho.

A implementação foi realizada com alunos (as) do Centro Estadual de

Educação Básica de Jovens e Adultos – CEEBJA Fazenda Rio Grande, da cidade

de Fazenda Rio Grande, que cursam o Ensino Médio, período noturno.

O projeto foi introduzido com uma apresentação aos alunos (as) sobre

os objetivos e metodologia do trabalho, procurando o compromisso de desvendar

a questão da mulher negra na literatura de língua portuguesa e a produção do

caderno memorialístico. A seguir foi apresentado o Caderno Pedagógico e teve

início as atividades relativas ao projeto.

O caderno conta com quatro unidades. As três primeiras com

atividades relativas ao estudo de textos das autoras escolhidas e produção de um

diário com relato da vida dos (as) alunos (as). O último módulo aborda a

construção do caderno memorialístico com a compilação destes textos e

exposição das atividades realizadas. Foram utilizadas oito horas/aula para cada

um dos módulos.

O primeiro módulo teve início com a apresentação da frase “A

memória, onde nasce a História, que por sua vez a alimenta, procura salvar o

passado para servir o presente e o futuro” (LE GOFF, 2003, p. 47). A partir desta

frase, foi dada a oportunidade para que alunas (os) pudessem manifestar sua

opinião sobre o que diferencia memória e história. Após a fala das (os) alunas

(os), foi explicado que para Le Goff, memória e história são distintas e não devem

ser confundidas. Para o autor é função da memória, como também da história,

estabelecer os nexos entre o passado, o presente e o futuro. E, se a

memória procura salvar o passado, essa ação está longe de ser um mero resgate,

mas sim um processo direcionado a atuar no presente e a orientar os caminhos o

futuro. Le Goff aponta a memória como um do gênero, chamado por ele de

memorialística (2003).

Também conversamos sobre o passado pessoal e coletivo, com suas

histórias, memórias, acontecimentos e particularidades. Contar a própria história

ou fazer dela base para construção de uma obra ficcional é um exercício literário

realizado por muitos autores. A narrativa do passado, seja de forma realista ou

saudosista, psicológica ou sociológica, serve de excelente fonte para a leitura e

produção de textos. Autores de várias épocas e estilos criaram obras

memorialistas. Muitas delas se tornaram clássicas, e a diversidade narrativa prova

que narrar os fatos do passado pode ser bastante estimulante.

O gênero memorialístico na literatura foi abordado e fez-se um relato

sobre autoras (es) que produziram obras com o intuito de preservar memórias de

fatos marcantes de suas vidas, dando vida a obras literárias de grande

importância. Um exemplo é Cora Coralina. Foi distribuído cópias de trechos do

poema Vintém de cobre, de Cora Coralina, fazendo orientação da leitura, pedindo

que observassem o tom confessional, autobiográfico, nostálgico e subjetivo

presente no poema. A seguir, foram distribuídas cópias do poema

Profundamente, de Manual Bandeira, falando sobre a nostalgia quase trágica no

poema, que fala da perda da inocência e da orfandade do poeta, ao retratar

metaforicamente seus familiares (e suas memórias de tempos felizes da infância)

dormindo profundamente, ou seja, os mortos, vivem apenas na memória,

destacada no poema.

Como este módulo relaciona-se a textos memorialísticos foi importante

ressaltar que há vários tipos de textos literários que podem se enquadrar no

memorialismo: autobiografia, cuja característica principal é a narrativa pessoal da

própria história; correspondências, que por sua forma pessoal e privada, acabam

expondo detalhes e lembranças das vidas dos missivistas; crônicas, em que os

autores fazem uso de acontecimentos cotidianos como inspiração; diários, por si

só destinados a preservar s memórias de quem escreve; lendas, que são histórias

contadas de geração a geração, muitas vezes baseadas em nossa memória

ancestral; genealogia, que narra a história das famílias e poesia lírica que, por sua

característica sentimental, é um gênero que muitas vezes mistura recordações,

nostalgia e memórias da vida do autor.

A identidade é construída a partir de nossa história. História essa que

pode ser contada a partir da memória. E a memória evoca lembranças, como se

percebe no poema Negro Estrela, de Conceição Evaristo (EVARISTO, 2008,

p.59). Neste poema a voz da própria autora quer mostrar a feição e as

particularidades de Osvaldo, seu companheiro de vida, com o intuito de, em frente

a morte, não ser abatida pela dor da ausência, mas, conservar saudáveis

lembranças. Outro poema de feição memorialística é Mineiridade, no qual

Conceição Evaristo trata de sua relação com sua terra natal.

Percebe-se que a escritora não está em sua terra natal e isto faz com

que ela sinta saudade de Minas Gerais, mas, em paralelo a isso, percebe-se que

ela carrega as marcas de seu Estado de origem como o vocabulário típico, com

termos como “trem” e “uai”. Esse fragmento também permite que se estabeleça a

oposição entre Minas Gerais, que mescla a urbanização com suas montanhas, e

o lugar em que Conceição se encontra, uma cidade plenamente urbanizada, pois

o cenário exterior, repleto de cimento, reflete-se nela tornando-a “maciça” e “sem

jeito”. Sendo assim, verifica-se que a autora enfrenta um conflito no que se refere

à sua identidade, pois esta, conforme mostra o poema, é resultado da situação de

“deslocamento”.

Os (as) alunos (as) perceberam que passado pessoal e coletivo, com

suas histórias, memórias, acontecimentos e particularidades, sempre foi uma

fonte muito importante para produção literária e que contar a própria história ou

fazer dela base para construção de uma obra ficcional é um exercício literário

realizado por muitos autores. A narrativa do passado, seja de forma realista ou

saudosista, psicológica ou sociológica, serve de excelente fonte para a leitura e

produção de textos.

Foi realizada uma produção de textos, na qual os (as) alunos (as)

iniciaram com a data, como em um diário, já dando forma aos textos do caderno

memorialístico. A ideia é que, a partir dos poemas analisados, os (as) alunos (as)

produzissem individualmente narrativas que tratem de histórias sobre sua própria

família ou memórias pessoais.

O segundo módulo teve como base a construção da identidade

feminina afro-brasileira. Mesmo na língua falada no país, na expressão “mulher

negra”, o adjetivo negro contém um significado implícito de sujeira, melancolia,

condenação, etc. Esse fato também nos revela que princípios de equidade não

fazem parte da rotina da mulher afro-brasileira: ela ainda efetua trabalhos com a

mais baixa remuneração; ainda que tenha concluído um curso superior, o

mercado a rejeita devido à sua “aparência”. Ainda que sejam muitas, as mulheres

negras permanecem invisíveis. Mas, dessa invisibilidade, ressurgem e constroem

suas identidades (GONÇALVES, 2014).

No que se refere à representação literária da mulher negra, percebe-se

que ela ainda está ligada às imagens do passado escravo, retratada como a anti-

musa da sociedade brasileira, porque não é adequada ao modelo estético. A

literatura, assim como a história, produz um apagamento dessas mulheres,

ocultando os sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira

(GONÇALVES, 2014).

Assim, a literatura das mulheres negras é como uma arma de

criatividade e de resistência do sujeito diaspórico, levantando questões sobre o

preconceito.

O que eu tenho pontuado é isso: é o direito da escrita e da leitura que o povo pede, que o povo demanda. É um direito de qualquer um, escrevendo ou não segundo as normas cultas da língua. É um direito que as pessoas também querem exercer. (EVARISTO, 2009).

As atividades foram iniciadas com a frase de Conceição Evaristo

escrita em um cartaz, incentivando os (as) alunos (as) a expressar opinião sobre

o direito de escrever segundo as normas cultas ou não. Partindo da fala dos (as)

alunos (as), foi feita uma breve introdução sobre a vida de Conceição Evaristo,

enfatizando a história de luta da escritora negra, solicitando que fizessem uma

pesquisa em livros, revistas ou internet sobre a vida e obra da autora.

O resultado apresentado foi que as obras de Conceição Evaristo falam

sobre questões relativas à memória, escrita feminina, resistência, o legado

histórico e as influências do processo diaspórico na elaboração da identidade dos

afrodescendentes. Nessas obras, a memória aparece como elemento

absolutamente central. Ela chega a afirmar que todo seu trabalho de escritora

consiste em perseguir vestígios de memória para recompor uma história perdida:

O que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou perseguindo esquecimento, invento, invento. Inventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos becos de minha memória imaginei, criei (EVARISTO, 2009).

A obra de Conceição Evaristo aborda temas complexos, tais como a

vida nas favelas, o preconceito e a exclusão social. Mas, ela também fala de

amor, de esperança, da família. Sua perspectiva feminina mostra sua constante

busca, suas estratégias diversas de luta contra o preconceito, a opressão e a

injustiça social. E com os diferentes temas que aborda, dá um passo à frente na

luta contra a exclusão política e social. Assim é possível perceber em seus

poemas que a autora re-constrói suas diferentes identidades: mulher, preta,

pobre.

Foi escolhido o poema Vozes-mulheres de Conceição Evaristo, que

narra a trajetória de mulheres negras no Brasil, como ponto de partida para

estimular os alunos (as) a produzirem textos narrativos a partir de suas memórias

individuais familiares. Após a leitura do poema, os alunos foram questionados

sobre a história da diáspora, como ela é relembrada, recuperada, apontando o

fato de o poema, como já indica o título, só fala sobre mulheres, em especial a

história de todas as mulheres afro-brasileiras de um modo geral. Os (as) alunos

(as), conseguiram perceber que todo o texto se refere à família da

escritora.

Foi possível perceber nesta atividade que o texto traz uma voz poética

que reconhece a importância de ser mulher: força que move o mundo, aquela que

gera a vida. Entretanto, a mulher sabe que o mundo ainda é masculino: a vida é

inaugurada em baixa voz, porque o mundo ainda não está preparado para ela,

para o que tem a dizer, por isso a necessidade de violentar, de impor-se. Imagens

de silêncio e palavras que não foram ditas nos mostram uma voz feminina ainda

silenciada. Seus desejos são vagos, suas esperanças, insinuadas.

Partindo do texto lido e das análises realizadas, os (as) alunos (as)

pesquisaram a história de suas famílias, perguntando aos familiares sobre fatos

marcantes da história familiar. Datas e locais de nascimentos e falecimentos,

origens, ocupação, formação, além de acontecimentos marcantes como viagens,

participação em momentos históricos, ou até mesmo histórias peculiares, trágicas

ou engraçadas, foram anotados.

A seguir passou-se para a produção de um texto memorialístico

partindo da seguinte frase “Se as mulheres do passado contassem as suas

memórias…”. Os (as) alunos (as), começaram então a elaborar uma página de

diário escrito por uma mulher de uma determinada época.

O terceiro módulo começou com a seguinte pergunta: Quem foi

Carolina Maria de Jesus?

Após explicar que Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra e

favelada, mãe solteira, quase sem escolaridade, que trabalhava nos lixões em

volta da favela do Canindé, em São Paulo, e de lá tirava os meios de sustentar a

família. Sua produção literária também teve início no lixão, pois era de lá que ela

tirava os livros que embasaram sua aprendizagem e os cadernos nos quais

escrevia, foi lido o seguinte excerto do livro Quarto de despejo: diário de uma

favelada:

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorre. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro. (JESUS, p.2000, p.147)

A fez-se um debate sobre o excerto, buscando que os (as) alunos (as)

expressassem sua opinião sobre a relação entre a vida que a autora fala e a cor

preta.

Também foi lido o seguinte trecho: “Eu classifico São Paulo assim: o

Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a

favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2000, p.28).

Após a leitura, apontou-se que a autora faz uma referência a lugares

comuns de São Paulo, onde os turistas normalmente vão, o Palácio do Governo e

a Prefeitura, mas também fala da favela, lugar considerado como um depósito e

que para Carolina, em uma analogia ao quarto de despejo, várias vezes é descrito

estar no inferno: “Cheguei ao inferno. Devo incluir-me, porque eu também sou da

favela. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de

despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (JESUS, 2005, p.33).

A leitura desses trechos teve como objetivo mostrar que tanto o lugar

onde a autora morava, assim como sua condição feminina e étnica são de

extrema importância para se pensar os papéis exercidos e a identidade

construída partindo de um cotidiano de atribulações documentados no livro

Quarto de despejo: diário de uma favelada.

A seguir foi lido o primeiro capítulo de Quarto de despejo: diário de uma

favelada, de Carolina Maria de Jesus (2000, p.03), pedindo que observassem que

a escrita da autora baseia-se em aspectos memorialísticos bastante pessoais,

enfatizando o aspecto memorialístico contrapondo-se a um contexto histórico e

social.

Após a leitura passou-se para a produção de mais um texto

memorialístico, utilizando uma fotografia do passado, que não deveria ser

recente, quanto mais antiga melhor, apresentando a história dessa foto.

Foi passado o curta-metragem O Papel e mar, adaptação do diretor

Luiz Antônio Pilar para a obra da autora que leva o mesmo nome, buscando

refletir com os (as) alunos (as) que, apesar de sua célebre obra ter repercutido

bastante, Carolina morreu como viveu: pobre.

No quarto módulo foi construído o Caderno Memorialístico. Durante

todas as unidades anteriores foram escritos textos memorialísticos, alguns em

forma de textos narrativos e outros em forma de diário.

As leituras e atividades realizadas tiveram o intuito de dar aos alunos e

alunas parâmetros para a construção de seus textos. Para tanto foram

trabalhados aspectos do gênero textual memórias, chamando a atenção para

alguns aspectos como narração em primeira pessoa e uso de tempos verbais. Os

(as) alunos (as) iniciaram já na primeira unidade a construção das suas

memórias, mas foi preciso retomar as discussões iniciais sobre memória e

solicitar que os (as) alunos (as) repensem ou confirmem suas impressões.

Para a construção do Caderno Memorialístico, que é o produto final

deste caderno pedagógico, foi preciso rever todos os textos já produzidos e

selecionar os que fariam parte do Caderno. Cada aluno (a) leu seus textos e

escolheu no mínimo dois que foram corrigidos.

São 24 (vinte e quatro) narrativas escolhidas, que fazem parte de uma

publicação, com as memórias de cada uma/um que trabalhou com o tema. O

Caderno Memorialístico está em fase final e deverá ser impresso no ano de 2016.

Suas cópias ficarão na Biblioteca do Colégio.

CONCLUSÃO

A realização deste estudo trouxe como principal contribuição a visão da

vida e trajetória dos (as) alunos e alunos do CEEBJA Fazenda Rio Grande.

Falar de história e memória não foi fácil, pois muitos fazem confusão

entre as duas. Não apenas aluno (as), mas também professores (as). Entretanto,

no decorrer das atividades foi possível mostrar as diferenças entre elas.

Outro ponto importante na realização das atividades foi o gosto

demonstrado pelos (as) participantes na leitura dos poemas e textos. Todos (as)

ficaram muito interessados e fizeram diversas perguntas. Foi possível perceber

que se identificaram com os textos.

Assim, pode-se dizer que a realização do trabalho atingiu seu principal

objetivo: implementar a Lei 10.639 utilizando textos literários e despertando nos

(as) alunos (as) o reconhecimento de suas identidades, sejam elas de

descendência africana ou não.

REFERÊNCIAS

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994.

BRASIL. Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003 que altera a Lei 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,

para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática

“História e cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília, 2003.

________. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Brasília: MEC/CNE 10/03/2004.

COSTA, Dione Ribeiro. A literatura afro-brasileira em sala de aula. Disponível

em: http://www.gelne.org.br/Site/arquivostrab/ . Acesso em maio 2014.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidades. Belo Horizonte:

FALE/UFMG, 2005.

FACHIN, O. Fundamentos de metodologia. São Paulo: Saraiva, 2001.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2007.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP&A,

2006.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão [et al.]. São Paulo:

Editora da UNICAMP, 2003.

OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. Literatura afro-brasileira infanto-juvenil:

enredando inovação em face à tessitura dos personagens negros. –São Paulo:

ABRALIC, 2008. Disponível em: http://www.abralic.org.br. Acesso em maio 2014.

SANCHES, Alexandre. 2013. O negro tem pouca expressão como autor e personagem

na literatura. Disponível em http://londrina.odiario.com/arteespetaculos/noticia

/792894/o-negro-tem- pouca-expressao-como-autor-e-personagem-na-literatura/

Acesso em 20 abr 2014.

SANTOS, Lara Gabriella Alves; BORGES, Valdeci Rezende. Quarto de despejo: o

espaço na obra de Carolina de Jesus. Anais do SILEL. Volume 3, Número 1.

Uberlândia: EDUFU, 2013.