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    palavrasnegras 1Agosto 2006

    À Sombrado Baobá

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    Sumário

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    Abertura, Emanoel Araujo

    Apresentação, Ana Lucia Lopes

    Com a palavra, os contadores de história, João Acaiabe, Giba Pedroza, Oswaldo Faustino

    A palavra falada: o som e o sentido humanos, Luiz Carlos dos Santos

    Ler e ouvir histórias: um exercício de pertencimento, Neide A. de Almeida

    O espelho mágico, Oswaldo Faustino

    Fagulhas e ostracismo: à memória de João Cândido, Cristiane Moscou

    Práticas de oralidade, Viviane Lima de Morais

    Quem conta o conto, conta como o conto foi..., Neide A. de Almeida

    Os contadores de histórias de cada um de nós

    Sugestões de leitura

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    Este é o milagre das palavras. O milagre da oralidade, esse

    patrimônio intangível que se formou nos quatro cantos daAmérica, silenciosamente, por um povo que veio aos ferros

    no tombadilho de um navio de traficantes brancos e negros,

    vendendo aquela carne humana, ferrada a fogo, com marcas

    indeléveis, aquelas que jamais se apagam.

    Pelo contrário, todo sofrimento se transformou numa forma

    de resistência para construir a linguagem mais profunda de

    identificação, ao mudar hábitos e costumes de uma sociedade

    que nem desconfiava do que acontecia, quando a ama de leiteamamentava o sinhozinho branco ou quando as novas palavras

    se formavam no falar cotidiano, na vida religiosa, nos atos

    sagrados das rezas, das preces, dos orikis para os Orixás,

    incorporando uma outra face do sincretismo à força das palavras.

    Assim, a oralidade é a palavra que transcende e que acende a

    ancestralidade na mágica continuada e na magnífica vibração do

    tan tã de um tambor, o halo de comunicação de todos aqueles

    que perpetuam a mesma origem dessa poderosa identidade.

    Emanoel AraujoCurador

    palavrasnegras

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    Negras palavras embalam sonhos, ensinam omundo, evocam memórias, atravessam oceanos,permanecem no tempo, lutam por direitos. A palavranos torna humanos, nomeia nossas experiênciase, ao conservar os sentidos dessa humanidade,preserva a espécie.

    O caderno  Negras Palavras  procura resgatar osignificado de palavras faladas e escritas que cons-tituem o imaginário brasileiro sob o domínio doconsciente ou do inconsciente. Nele, encontra-seo registro de experiências com a palavra em rodasde histórias, oficinas, depoimentos, entrevistas,encontros temáticos e seminários dedicados aoresgate da memória negro-africana na história ecultura brasileiras.

    O primeiro número do caderno, intitulado À Sombra do Baobá, trata de um tema tão antigoquanto nossa memória permite alcançar, o contare o ouvir histórias. Sabe-se que contar históriasreaproxima espaços, tempos e mentalidades, pormeio da força estruturadora da narrativa. As expe-riências humanas foram e são narradas. Quem nãose encanta e não se deixa levar ao ouvir “ há muitotempo...” ou “era uma vez...”?

    As histórias gozam da liberdade de transitar porrepresentações passadas e presentes e ousam pro-jetar futuros. Nelas, os conteúdos de um imaginário

    social se corporificam, provocando identificações,repulsas e referências, tanto no nível individual comono social. Enfim, as histórias são pautadas porvalores sociais narrados por seus personagens,conflitos, soluções, em tempos e espaços determina-dos pela estrutura da narrativa. O ser humanoprecisa de histórias para aprender a ser humano.

    Em um Museu, espaço em que a memória ématéria-prima de trabalho e reflexão, evocamosantigos registros que vieram do outro lado dooceano e chegaram até nós, há mais de quatro-centos anos. Ouvimos e nos identificamos comeles, os atualizamos em nossas experiências pes-soais e, assim, partilhamos conhecimentos que

    nos revelam filhos de uma memória negro-africanainscrita na nossa sociedade.

    Entretanto, esse reconhecimento de um modode pensar o mundo trazido e ensinado por homense mulheres de diversas regiões da África não éimediatamente percebido e aceito. Embora seencontrem na base da nossa sociabilidade, serãonecessárias muitas histórias “à sombra de outrosbaobás” até que se valorize a matriz negro-africanacomo uma das formadoras de valores, princípios ememórias em nosso país.

    Neste sentido, organizamos um conjunto deoficinas e um seminário que possibilitassemuma imersão no universo da contação de histó-rias, abrissem espaços de reflexão para a palavrafalada e escrita e que permitissem encontros comas memórias de cada um. Essas atividades esti-veram sob a coordenação de Neide A. de Almeida,que integra a equipe do Núcleo de Educaçãodo Museu Afro Brasil.

    Como em todas as nossas ações, as exposiçõesdo Museu são o nosso fio condutor. A série À Som- bra do Baobá  adotou como referência a narrativado acervo criada por Emanoel Araujo que conta, naperspectiva negro-africana, uma história brasileiracontida nas peças expostas e no arranjo da expo-sição. Os conteúdos de cada obra se associam e

    Apresentação

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    evidenciam o patrimônio intangível construído poressa população e que pode se ver revelado peloespaço museal, testemunha de múltiplos encontros.

    Nele, o leitor encontrará textos que recuperamo significado da tradição oral e nos remetem a umareflexão que atualiza esse sentido. As histórias es-

    critas, abordadas como registro de experiênciasconstitutivas e reguladoras da vida social, tambémcompõem objeto de análise.

    Depoimentos de contadores de história, quenos tempos atuais continuam a encantar e envol-ver pessoas, trazem para o caderno a presentifica-ção do ouvir histórias.

    Fragmentos de lembranças dos participantesdas oficinas são exemplos substantivos da impor-tância e da capacidade integradora contidas nas

    narrativas e na memória que se tem delas.

    É também pela palavra que podemos encon-trar negros representantes da história e da culturabrasileira que sistematicamente são relegados aoesquecimento. Aqui, eles têm lugar marcado.

    Nas páginas deste caderno indicamos também histórias daqui e de lá, que merecem ser contadasàs crianças, jovens e adultos como alimento para onosso imaginário.

    Está feito o convite para a leitura. E para começar,um trecho do poema de Luiz Gama, precursordo abolicionismo, que ultrapassou os limitesda sua condição de escravizado, tornando-sejornalista, poeta e advogado. Faleceu em 1882,levando consigo o reconhecimento de toda umacidade – São Paulo.

    Quem Sou Eu?

    “(....)

    O que sou, e como penso,

    Aqui vai com todo o senso,

    Posto que já veja irados

    Muitos lorpas enfunados,

    Vomitando maldições,Contra as minhas reflexões.

    (...) os homens poderosos

    Desta arenga receosos

    Hão de chamar-me Tarelo,

    Bode, negro, Mongibelo;

    Porém eu não me abalo,

    Vou tangendo o meu badalo

    Com repique impertinente,

    Pondo a trote muita gente.

    Se negro sou, ou se bodePouco importa. O que isto pode?

    Bodes há em toda a casta,

    Pois que a espécie é muito vasta...”

    (fragmento extraído de O Negro em Versos, antologiada poesia negra brasileira. Org. Luiz Carlos dos Santos,Maria Galas e Ulisses Tavares. 1a ed. São Paulo:Moderna, 2005, p. 35)

     

    Ana Lucia LopesNúcleo de Educação – Museu Afro Brasil

    Negras Palavras: À Sombra do Baobá  registraos diversos momentos dessa experiência

    e os organiza, por meio da palavra escrita,

    sob a forma de um caderno-revista.

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    Durante a realização da série “À Sombra do Baobá ”, Projeto Negras Palavras ,

    o Museu Afro Brasil recebeu três contadores de histórias. Cada um deles com

    experiências, percursos e práticas diversas. Oswaldo Faustino contou histórias

    para os quatro grupos que participaram das oficinas; Giba Pedroza nos presenteou

    com suas histórias no Seminário Memórias, histórias e identidades . João Acaiabe,

    gentilmente, nos concedeu uma entrevista numa noite fria do mês de maio.

    O leitor agora terá oportunidade de ler um pouco da história desses três contadores

    nos depoimentos que aqui transcrevemos.

    os contadoresde história

    Com a palavra,

    4

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    Estávamos tentando montar um grupo de atores negros, na década de 80, mas a gente não tinha ostextos. Normalmente, usávamos textos da África do Sul, alguns do Abdias do Nascimento (...). Então, nosjuntamos com o Antônio Abujamra, que ia dirigir o espetáculo, e começamos a fazer depoimentos paracoletar material. Num dia, as pessoas estavam fazendo os depoimentos e eu não tinha idéia do que iadizer, então, resolvi contar uma história que aconteceu comigo. Era uma história que me fazia muito mal,eu ficava emocionado, indignado: foi no interior, tinha um clube de classe média alta, fui até lá com uma

    amiga e, num momento em que fui procurá-la num espaço reservado aos brancos, fui expulso do clube.Quando eu terminei de contar, o Abu me disse: “você tem jeito para contar histórias”.

    Eu não entendi nada, estava ali emocionado com a história e ele nem parecia perceber. Mas foi a partirdali que eu comecei a contar histórias.

    Em 1983, quando fui pra TV Cultura, eu entrava no programa contava uma história e ia embora.Só tinha cinco minutos de trabalho. No começo não havia muitas histórias... Eu trabalhava com coisassobre o carnaval, historinhas de samba enredo e ia “arrumando” as histórias. Com o tempo o programafoi ficando mais profissional, começaram a chamar autores para escrever.

    Quando eu decorava a história, decorava contava, decorava contava, quando eu perdia o fio da meada,precisava ler pra me encontrar... Aí eu passei a aprender a história em vez de decorar. Eu aprendia econtava do meu jeito, armava do meu jeito. Claro que demorava muito mais, mas aí eu não me perdia.Quando você aprende as histórias, você pode contar qualquer uma delas... Eu acho que é quase vocêcontar com as suas palavras, você se apropria delas.

    “Tem história que você aprende e conta, ela fica mais na sua boca”.

    Se hoje eu disser que vou fazer tal história pra amanhã, por encomenda, não dá... Você tem quese integrar na história, porque criança muitas vezes interfere, você tem que saber lidar com isso....Dessa forma, você pode responder, brincar, contar e envolver. (...) Uma vez eu fui contar histórias doMonteiro Lobato na Biblioteca Monteiro Lobato. Eu olhava no olho das crianças, aí ficava muito melhor....

    não tinha câmera, nada... Eu fui achando um jeito de chamar a atenção dos meninos... Eu nunca contoa história parado, eu conto e vou andando pelo espaço, às vezes ando a platéia toda com uma história.Como eu sou ator, isso pra mim é comum...

    (...)Algumas histórias ficam melhor lidas, você não consegue se apropriar delas para contar... Isso acontece

    com poemas também, às vezes é melhor ler do que contar. Então, eu vejo como as histórias ficamcomigo, eu leio várias vezes. Tem história que você aprende e conta, ela fica mais na sua boca e temumas histórias que não ficam bem... Aí eu conto a história que bate no coração.(...) Aquelas que me inco-modam eu não conto, de terror, por exemplo, as histórias da minha mãe eram terríveis, a gente sentavana porta de casa e ficava morrendo de medo. Eu não gosto de contar esse tipo de história....

    João Acaiabeator e contador de histórias

    “Antes de contar, é preciso 

    dormir com a história”

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    Eu conto histórias há 18 anos... Por parte de mãe eu sou descendente de baiano e por parte de pai demineiro. Às vezes, eu tinha vergonha da minha avó quando ela ia às reuniões de pais, ela era uma pessoamuito espontânea, brincava muito. Depois eu comecei a ter orgulho dela, porque eu fui crescendo e per-cebendo toda a riqueza que ela trazia. Minha avó me ensinou muitas coisas, sempre através da culturapopular, da tradição oral (...). As cantigas de trabalho, enfim, tudo isso faz parte da tradição oral. Quandoeu comecei a perceber a importância disso, comecei a mergulhar fundo na história da minha família e,

    através da história da minha família, fui mergulhar na cultura popular brasileira. Então, eu fiz o caminhoinverso. Comecei pesquisando os livros, os outros pesquisadores técnicos e fui parar onde eu tinha queter começado, na família.

    Eu reconheço dois instrumentos importantes para o contador de histórias e para o educador: a me-mória afetiva e o olhar criança... Por que há tanta gente querendo ouvir história hoje, por que a genteestá nessa sede de história? Acho que o mundo está precisando das histórias porque o mundo está serevendo. (...) Eu faço uma relação entre a criança e o homem primitivo. Porque o homem primitivo quandoveio ao mundo, as primeiras nações, os primeiros homens que por aqui passaram, eles inventaram ecriaram as histórias pra explicar tudo o que estava à sua volta. É a mesma postura da criança. O olho dacriança, o olhar da criança, brinca com as coisas do mundo enquanto vai aprendendo. Enquanto o olhardo adulto é um olhar mais centrado. Por exemplo, uma mulher andando pela rua puxando uma criançade cinco ou seis anos de idade. A menina vai o tempo inteiro brincando com os detalhes, vai olhar naparede, vê um velhinho sentado numa carruagem, enquanto a mãe vai puxando pela mão e dizendoassim: “Olha pra frente menina”. O olhar do adulto é o olhar que olha pra frente. O olhar da criançaé um olhar que brinca com coisas do mundo. Por isso, não se deve jogar fora o olhar do adulto, nemo olhar da criança. O perfeito é um equilíbrio entre esses dois olhares.

    “Mas a memória que eu uso nas histórias é essa memória afetiva, essa memória que traz o cheiro,a memória que traz a voz da minha avó que foi lavradora na Bahia e cantava.” 

    Eu acho que quando a gente perder um pouco da ansiedade e conseguir entender mais a importânciado olhar da criança e da memória afetiva a gente começa realmente um caminho muito mais gostosode ser trilhado. Isso eu acho muito importante para o educador e para o contador de história. E quandoeu falo de memória afetiva ou da criança, eu falo de duas coisas que andam juntas, por que como é que

    eu vou buscar a minha memória afetiva? Só se eu simplesmente destravar meu olhar criança e começara prestar mais atenção. Muita gente me diz: “Pôxa, tem que ter uma memória boa pra guardar tantahistória”. Mas eu tenho uma memória péssima, para falar a verdade, se alguém me fala o nome aqui,ali na esquina eu já esqueci. Não guardo número de telefone, não guardo nada. Mas a memória queeu uso nas histórias é essa memória afetiva, essa memória que traz o cheiro, a memória que traz a vozda minha avó, que foi lavradora na Bahia e cantava.

    Essa memória que registra coisas que, durante muito tempo, a gente julgou sem importância. Na mi-nha memória afetiva tem, por exemplo, uma voz assim: “Atenção dona de casa se encontra nesse localmaterial de limpeza em geral. Temos água lavadeira”, de um vendedor ambulante que passava pelaminha rua toda semana. Um dia eu estava contando história e precisava de uma voz para um vendedorque não tinha nada a ver com essa situação e essa voz saiu naturalmente. Ela estava guardada, estavaregistrada e quando eu vi, a voz nasceu naturalmente comigo.

    Giba Pedrozacontador de histórias

    “...Eu comecei a mergulhar fundo na história da minha

    família e através da história da minha família eu fui

    mergulhar na cultura popular brasileira”

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    “... Essa é a coisa que tem me encantado. Essa possibilidade de passar para frente este elo quenos leva pra muito mais longe, o elo da nossa história.“

    Tem uma tradição, que eu acredito que seja dos Dogon, que diz o seguinte: “eu trago dentro de mimtoda a minha ancestralidade, toda a minha descendência”. Todos eles estão aqui, presentes dentro demim, neste instante, eu sou apenas um lapso nessa história. É preciso que a gente se reconheça como

    um lapso, um instante dessa longa história, não somos maior que a própria história.

    O grande problema de você estar em cima de um caixote, sob a mira do olhar dos outros, é você acharque é mais importante do que aquilo que está fazendo. Se você se entende apenas como parte dessahistória, entende que a história é maior mesmo e se coloca como um instrumento dela.

    Contar história é exatamente isso, o meu gestual, as minhas caretas, a inflexão da minha voz sãoimportantes pra segurar a atenção, mas não são mais importantes que o que eu estou contando.

    Quando a gente faz esse tipo de trabalho, tem que ter certeza: “o que é que eu quero contar?”

    Tem aquele ditado que diz: “quem conta um conto aumenta um ponto”. Quem conta um conto nãosó aumenta um ponto, como transforma um ponto.... É fundamental que você, ao contar a história,trabalhe, envolva quem está na contação (...)... Eu olho pra ele ali, e ele tem que estar aqui, junto comigo,ele tem que estar na história, ele tem que participar da história, não pode ser um mero ouvinte.

    “O som da calimba nos remete a um lugar que a gente imagina que seja a África.”

    A calimba ia ser a trilha sonora da segunda história. (...) Mas eu estava tão envolvido que acabei nãosonorizando. A coisa fundamental nesse som é que ele nos faz viajar um pouquinho... porque ele é umsom estranho. Se vocês perceberem, ele não é um som do nosso cotidiano... O som da calimba nosremete a um lugar que a gente imagina que seja a África. Aliás, a África é também um produto do nossoimaginário. (...) Ela na verdade está na nossa alma e ocupa o nosso imaginário. E esse é um som que,

    como não é do nosso cotidiano, nos remete a essa viagem. E a matéria-prima da nossa contação dehistória, em especial a de hoje, ela precisa do imaginário, é como se eu colocasse aqui no meio um baú,abrisse esse baú e ele estivesse repleto de coisas e vocês tirassem essas coisas e elas não representas-sem o que aparentam. Você pega o tecido, mas não é o tecido...

    Essa é a minha experiência de vida.

    Oswaldo Faustinojornalista, escritor, dramaturgo e contador de histórias

    “eu trago dentro de mim todaa minha ancestralidade, toda a minha descendência”

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    A palavra falada

      Luiz Carlos dos Santoso som e o sentidohumanos

    A palavra falada é a alma da narrativa, e a narrativa

    é o caminho que a imaginação e o fazer humanos

    percorrem para nos ensinar quem somos,

    como somos e por que somos.

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    da Palavra Falada para a sociedade; seja comoexpressão e veículo de conhecimento e tradiçãodos grupos sociais, seja como modalidade maisusada da língua para a comunicação imediata entreduas pessoas, a História Oral se impõe hoje comouma metodologia necessária e presente, nos espaçossociais de produção e reprodução do saber: escolase museus, entre eles.

    Nessa perspectiva, o Museu Afro Brasil, afinadoem ser um museu dinâmico, não poderia deixar

    de lado uma metodologia de registro que priorizaa fonte primeira do conhecimento: a Palavra Falada.Força vital para as sociedades negro-africanas e tãomarcante na oralidade afro-brasileira. A Palavra doreligioso, do sambista, do artista, do quilombola,do poeta, do escritor, do operário, do professor, doanônimo. A Palavra que gera história.

    Entretanto, quando falamos estamos circunscritosa um contexto, dialogamos com papéis sociais e,por isso mesmo, falamos de lugares conhecidos ereconhecidos. Somos adultos experientes e gestores

    de um dado grupo social.

    Ao contarmos histórias, passamos valores, reafir-mamos crenças, metaforizamos personagens, hiper-bolizamos costumes e, muitas vezes, confirmamospreconceitos. E aqui só estamos considerando apalavra falada seja nas sociedades tradicionais,seja na globalizada.

    Nas primeiras, as narrativas seguem a circula-ridade do conhecimento e de sua transmissão. Sãosociedades da palavra. O homem vale tanto quanto

    a sua palavra. Nestas, a mentira tem hora e lugare o silêncio é essencial e comunica. Os homens etodos os seres vivos comungam. Há maior proximi-dade, logo, o cheiro, o gesto, os sons são elementosvivos, integrados à história narrada e futuros acio-nadores da memória.

    Já na sociedade globalizada, o espetáculo tomao lugar do círculo, forma geométrica que nos per-mite concretizar contatos, e o contato inexistente,

    se concretiza apenas como possibilidade virtu-al, ou seja, nunca tivemos tanta possibilidade decomunicação como hoje e, ao mesmo tempo, sen-timo-nos tão sós.

    Para muitos a internet é sinônimo de demo-cracia do conhecimento, ou seja, todo mundo podeter o seu ou produzi-lo. As narrativas desse tem-po se articulam em forma de clipes e se manifes-tam tanto nas narrativas orais, quanto na escritas epodem ser representadas principalmente nas pe-

    ças publicitárias, nas pixações, entre outras formasde manifestação.

    Ora, todos lembramos das histórias que nosforam contadas, como nos foram contadas e quemas contou. Entre nós, vínculos mágicos colocamem cena personagens populares fascinantesque desempenham no enredo papéis sociaisimportantes. Se pensarmos nas histórias sobre osaci-pererê, a mula sem cabeça, o negro d’àgua,o moleque d’água e outras, e observarmos oslugares onde elas se desenrolam, as outras perso-

    nagens que participam da trama e o quando ashistórias acontecem, encontraremos fazendas,escravos, senhores, padres, mulheres misteriosas,assombrações (memória de mortos), populaçõesribeirinhas, crianças, crenças morais e religiosas,enfim, micro-sociedades que falam de uma socie-dade maior, histórias que fazem História.

    Transportemo-nos para o texto de AmadouHampa Té Bâ, a fala humana como poder decriação. Segundo esse estudioso das sociedadesda palavra, no Mali,

    “Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três potencialidades do poder, do querere do fazer, contidas nos vinte elementos dos quaisele foi composto. Mas todas essas forças, das quaisé herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha colocá-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa

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     segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, por-tanto, considerada como a materialização, ou exte- riorização, das vibrações da forças.” 

    Antes, Hampa Té Bâ explica como Maa Ngala,Ser Supremo, transmite a Maa (Homem) o podercriador divino, pelo dom da Mente e da Palavra.A tradição Komo, no Mali, diz que:

    “Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos os elementos do

    cosmo foram formados e continuam existir. Ele o intitulou guardião do Universo e o encarregou de Zelar pela conservação da Harmonia Universal. Por isso é penoso ser Maa.

     Iniciado por seu criador, mais tarde Maa trans- mitiu a seus descedentes tudo o que havia apren-dido, e esse foi o início da grande cadeia de trans- missão oral iniciatória da qual a ordem do Komo(como as ordens do Nama, do Kore etc., no Mali)diz-se continuadora.” 

    As palavras, como já dissemos falam de pessoase lugares, contam histórias e fazem História. Na suaontogênese está a criação da realidade. Ao longoda história da humanidade, a palavra ganhou e ga-nha novos sentidos e usos. Ela expressa o momentohistórico do grupo social e embora seja essencialpara a sociedade, ela é também representação deanseios, desejos, esperanças e preconceitos.

    No tempo, o sentido de valor das palavras mudou.As histórias hoje podem ser contadas atravésde discos, CDs, DVDs e mesmo em pequenos

    círculos escolares, na esteira do que chamamosde indústria cultural que, ao transformar em pro-dutos as relações sociais, esvaziam-nas e atribuema elas o valor de mercado, com prazo de validadepré-determinado.

    Por isso, devemos ficar atentos, resultados quesomos de sociedades que priorizaram diferente-mente o uso seja da palavra falada, seja da palavraescrita, ao que afirma J. Vansina, em A tradição oral

    e sua metodologia: “Tudo que uma sociedade con- sidera importante para perfeito funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensãode vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo écuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral, isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedadeque adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas à tradição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, quevinham de sociedades letradas, a acreditar erronea-

     mente que as tradições eram um tipo de conto defadas, canção de ninar ou brincadeira de criança.” 

    Bibliografia

    KI-ZERBO, J. (Coord.). Metodologia e Pré-História da África.  História

    Geral da África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982. v.1.

    Luiz Carlos dos Santos é consultor de História Oral doMuseu Afro Brasil, em São Paulo. Jornalista, mestre em Socio-

    logia pela USP, professor de Língua Portuguesa e Literatura daEscola Vera Cruz e do Centro Universitário Ibero-Americano.

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    Ouvir e contar histórias são práticas muito anti-gas. Por mais que se recue no tempo procurandoidentificar o momento em que o homem passou afazer uso sistemático da narrativa, não se encontraesse ponto de partida.

    Houve um tempo em que o lugar da História, talcomo hoje a conhecemos, era ocupado por relatosque recuperavam o cotidiano, justificativas parasituações e fatos inexplicáveis. É com esse caráterque as histórias surgem em todos os lugares domundo e cumprem a função fundamental de pas-sar de geração a geração a memória, a cultura, asidentidades dos diferentes povos. E, ao longo dos

    tempos, esses conhecimentos permeiam as dife-rentes sociedades. Aproximadamente no século XVI, sobretudo

    na Europa, pesquisadores começam a recolhere registrar as histórias que circulam oralmente.Em Portugal, por exemplo, Gonçalo FernandesTrancoso recolhe e registra diversos contos popu-lares, sempre enfatizando o cunho moral dessashistórias que contribuíam de forma significativapara a regulação social e principalmente como

    Neide A. de Almeida

    Ler e ouvir histórias

    um exercício

    de pertencimento

    “...a arte literária se apresenta como um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente

    passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação entre

    os homens (...) A Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com

    os nossos semelhantes...” Lima Barreto

    recurso para elaborar, assimilar experiências do-lorosas como as perdas, as mortes provocadaspelas epidemias que assolavam o país. As histó-rias de Trancoso correram mundo e tiveram grandeinfluência no Brasil, principalmente no Nordeste.

    Mas a literatura oral no Brasil tem tambémem sua origem a marca da herança africana,vinda da Nigéria, “onde os narradores populares,os “akpalôs”, faziam parte de uma casta especial,que se deslocava de tribo em tribo recitando os seus “alôs”. A Velha Totonha de José Lins do Rego,que se deslocava de engenho a engenho, narrandocom riqueza mímica e procurando dar o tom local

     às suas narrativas, é sua mais autêntica seguidora.”  (Guimarães : 2000, p. 86)

    Outros exemplos dessa prática são os trabalhosrealizados pelos Irmãos Grimm, Perrault, Andersen,muito conhecidos e, em boa parte, responsáveispela poderosa presença dos contos europeus emnosso imaginário. Esse fato revela um dos resulta-dos da intensa articulação entre a escrita e o poder:os contos europeus de tradição oral tornaram-se,a partir do registro escrito, ponto de partida,

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    ocuparam lugar de referência e deixaram à sombraas produções de outros povos, das outras matrizes

    constitutivas de nossa cultura. Conforme afirmaGnerre, “o modelo de língua escrita que é assumido,em geral, é aquele da modalidade expressiva das línguas européias que (...) fica mais distante das modalidades e gêneros expressivos próprios daoralidade. Desta forma, realiza-se o tipo talvez mais sutil de dominação: a de chegar a convencer osdominados de que sua língua pode (e deve) ser uti- lizada à imagem e semelhança da língua dos domi- nadores.”  (p. 109)

    Até bem pouco tempo, as histórias da cultura

    popular brasileira eram tratadas como produçõesmenores, como deturpações de histórias originais.O olhar eurocêntrico destituindo de originalidadeaquilo que é essencialmente diverso, mestiço.

    No Brasil tivemos importantes pesquisadoresda cultura popular: Nina Rodrigues, Artur Ramos,Sílvio Romero, Mário de Andrade, Câmara Cascudo,dentre outros, responsáveis pela coleta e registrode histórias populares brasileiras encontradas emtodas as regiões. Em muitas delas observamos a

    marca explícita das culturas indígenas e africanas,também fundadoras de nossa cultura. Entretanto,

    pouco foi o espaço destinado a esse acervo que,ainda hoje, circula num espaço muito restrito, aque poucos têm acesso, o que mais uma vez re-sulta num apagamento, na invisibilidade de umaprodução intensa que representa de forma originalo imaginário e a identidade do povo brasileiro.

    Obviamente essa não é uma questão queenvolve apenas a circulação das informações,mas é resultado de um posicionamento ideoló-gico que destina espaço privilegiado a um certopadrão cultural, que elege portanto uma estética,

    um modo de dizer, um modo de ver e de repre-sentar o mundo. Atribui, assim, legitimidade evalor a determinadas manifestações e margi-naliza, discrimina, inferioriza outras.

    Num momento em que a formação de leitoresconstitui uma das grandes preocupações de diver-sas instituições que atuam nas áreas de educaçãoe cultura, a retomada dessa discussão a respeitodo caráter e das origens de nossa produção literáriaé essencial. Se considerarmos o lugar da literatura

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    na construção da história, da memória e da iden-

    tidade de um povo e se observarmos o quantoa produção literária de origem africana foi relegada,discriminada, inferiorizada, teremos aí um elementoimportante para analisar e entender a construçãodo imaginário e da identidade do povo brasileiro.

    Considerando que um dos aspectos essenciaisenvolvidos no processo de formação do leitor ésua relação com a literatura e que um dos desa-fios para formar leitores é garantir os processosde identificação e a sensação de pertencimento,temos então uma importante reflexão a fazer: como

    contribuir para que o contato com a literatura quetematiza o negro como personagem e como pro-tagonista de nossa história esteja presente naformação dos nossos leitores, particularmente dosnegros e mestiços?

    Sabemos que não h á uma única resposta paraquestão tão complexa, mas ousamos indicar umcaminho possível: promover a prática de ouvir,contar e ler histórias, particularmente aquelasde origem africana e as brasileiras que tenhamo negro como foco.

    A literatura é considerada, desde os temposmais remotos, experiência essencial no proces-so de formação do sujeito. Por meio da literaturatemos a oportunidade de conhecer tempos e lugaresdiversos, experimentar sensações, sentimentos edesejos, muitas vezes impossíveis no cotidiano. Estaé uma das contribuições essenciais da literatura:a possibilidade de identificar-se, de provisoria-mente ocupar o lugar de um outro, de uma perso-nagem e, protegidos por essa pele, viver as mais

    diversas experiências.

    Em seu livro A psicanálise dos contos de fadas,Bruno Bettelheim enfatiza a importância desseprocesso na constituição da psique do sujeito.Imagine-se então o efeito provocado no imaginárioda criança negra que tem como único modelo debeleza princesas e príncipes brancos, esculpidosde acordo com uma estética européia. E que,muitas vezes, convivem com personagens negrasque são geralmente desfiguradas, caricaturizadas,

    representam aquilo que se rejeita, o mal, o feio, o

    indesejável. Imagine-se o significado e o efeito docontato com um universo estritamente branco, noqual o negro raramente aparece e, quando issoacontece, ocupa com freqüência um lugar de subal-ternidade, representa o estereótipo...

    Essa foi a tônica da produção literária até muitorecentemente. Vale lembrar que a história da leiturano Brasil é marcada, em sua origem, pelas importa-ções, particularmente no que diz respeito às obrasdestinadas à “formação de leitores”.

    A questão é que, desde então, e durante muitotempo, pouco se fez pela inclusão efetiva do negrocomo personagem na literatura, particularmentenaquela destinada às nossas crianças. Com isso, ashistórias ouvidas e lidas continuaram perpetuandoum universo idealizado, marcado pelo preconceito,pela discriminação. Esse foi (e ainda é) certamenteum mecanismo poderoso no processo de inferiori-zação e de negação da identidade negra. Profundacontradição se considerarmos nossa origem mes-tiça, visceralmente marcada pelas matrizes africa-nas. Como nos diz Rabassa, a “influência do negro sobre a cultura de um país no qual seu grupo foi numeroso é, geralmente, mais profunda e alcança mais longe do que meras manifestações superfi-ciais podem fazer supor. Na época da escravidão, a escrava freqüentemente era encarregada dacriação das crianças e muitas vezes tornava-se uma segunda mãe para elas. Presenteava a criança com histórias do folclore africano, cantigas, crenças reli- giosas e superstições. Tendo sido adquiridas emtão tenra idade, essas tradições tornavam-se partedo folclore local ou nacional....”  (p. 34).

    Felizmente nos últimos anos observa-se umapreocupação de algumas instâncias com a produçãoe a circulação de uma literatura em que o negroapareça como protagonista, discuta e vivencieconflitos típicos de sua posição numa sociedadepreconceituosa. Preocupação também com o quepodemos chamar de Literatura Negra, aquela produ-zida por negros e na qual os valores, a estéticae as origens do negro ocupam espaço principal.Incluir essa produção no repertório de leitura de

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    nossa sociedade é um desafio urgente que requerum movimento de reconhecimento, apropriaçãoe identificação.

    Uma das vertentes do Projeto Negras Palavrasrealizado pelo Museu Afro Brasil é exatamente esta:ler e refletir sobre o processo de leitura e apropriaçãodas narrativas escritas de origem africana e brasi-leira. Para tanto, é urgente conhecer a produçãode autores como Joel Rufino dos Santos, Júlio Emí-lio Braz, Rogério Barbosa de Andrade, EdimilsonPereira, Geni Guimarães, Elisa Lucinda, dentre tan-tos outros, todos eles comprometidos com o quepodemos chamar de literatura negra destinada àcriança e ao jovem. Nessas obras encontraremospersonagens negras protagonistas de situaçõesdiversas, questões como os princípios que orien-tam a estética em culturas africanas, tal qual selê em  As tranças de Bintou; conflitos existenciaisrelacionados à vivência do preconceito, como o donarrador de Na cor da pele, de Júlio Emílio Braz.

    É por meio desse contato que poderemos cons-tituir um repertório consistente, variado, que nospermitirá colocar ao lado das histórias já conhecidaspor todos, essas que circulam desde sempre en-tre nós, mas que ainda ocupam tão pouco espaço.

    Vale dizer que não se trata de substituir, de negaro valor dessa literatura que atravessa os tempos,marcando as histórias de todos nós. Trata-se de am-pliar esse universo, garantir espaço, lugar e legiti-mação para o diverso, para as diferentes formas deolhar, ver e representar o mundo e o homem.

    Afinal, como o contador, o leitor de histórias pre-cisa dominar plenamente a narrativa que escolhepara ler; e para tanto é preciso conhecer profunda-mente as personagens a ponto de imaginar suas

    características físicas, seu jeito de falar, as expres-sões que lhe são típicas. Da mesma forma, o leitorde histórias precisa “conhecer” o lugar em que sepassa a história, com seus perigos, seus fascínios.

    Afinal, é esse conhecimento que possibilita a fami-liaridade do leitor com a história que, nascida natradição oral, agora se encontra registrada, escrita,mas precisa tornar-se novamente oralidade.

    O leitor empresta sua voz, seus sentimentos,sua emoção ao texto e nesse movimento contagiao ouvinte, faz dele um semelhante, como nos dizLima Barreto – o grande escritor brasileiro –, e comisso cria a possibilidade de estreitar laços, criarvínculos, pertencer.

    Bibliografia

    BETTELHEIM, Bruno. A luta pelo signficado. In: A psicanálise dos

    contos de fadas. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980. (Literatura

    e teoria literária; v. 24)

    GNERRE, Maurizzio. Da oralidade para a escrita: processo de

    “redução” da linguagem. In:  Linguagem, escrit a e poder .

    3a ed. São Paulo : Martins Fontes, 1991. (Texto e Linguagem)

    GUIMARÃES, Maria Flora. O conto popular. In: Brandão, Helena

    Nagamine. Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel.

    discurso político, divulgação científica. São Paulo : Cortez,

    2000 (coleção Aprender e ensinar com textos, v.5)RABASSA, Gregory. O negro na história e na literatura. In:O negro

     na ficção bras ileir a: meio século de história literária. Rio

    de Janeiro : Edições Tempo Brasileiro, 1965. (Biblioteca de

    Estudos Literários, 4)

    Neide A. de Almeida  integra a equipe que coordena oNúcleo de Educação do Museu Afro Brasil. Socióloga, Mestre em

    Lingüística Aplicada pela PUC-SP, é pesquisadora pelo Cenpec

    – Centro de Estudos, Pesquisa em Ação Comunitária.

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    Não. Ele não estava lá. Olhava que olha-

    va, procurava que procurava, mas ele nãoconseguia se ver na superfície translúcida

    daquele espelho. A sala estava lá, a mesa,

    a janela ao fundo, tudo, menos ele...

    Caramba! Será que ele não existia? Existia, sim.Mas, pasme, aquele era um menino invisível.

    Você sabe o que é uma criança descobrir-seinvisível? Não. A gente pode imaginar, pode ter umavaga idéia. Mas saber, saber mesmo, só sabequem é. A dor da invisibilidade só sente quem tem.E aquele menino era invisível.

    Claro que ele não era invisível para todos. A mãeconseguia vê-lo, amá-lo, compreendê-lo, e era paraela que ele sempre corria. “Mãe, eu quero me ver.Eu quero ser visto.” E ela, sempre generosa, dizia:“Calma, meu filho! Talvez isso seja porque vocêainda é ninguém. Mas um dia você será alguém.Aí, o mundo inteiro vai poder vê-lo, reconhecê-lo”.

    E o menino ficou matutando sobre aquelas pala-vras: “Um dia você será alguém. Aí, o mundo inteirovai poder vê-lo, reconhecê-lo”.

    E o que fazer para ser alguém? A própria mãe,que acreditava ter todas as respostas, disse-lhe oque ela imaginava ser a solução: “Para ser alguémvocê precisa estudar”.

    – “Mãe, me põe na escola para eu ser alguém!Afinal, quem é ninguém jamais poderá se ver refle-tido no espelho.”

    E lá foi o menino para o seu primeiro dia de aulae... Não. Ele não se via refletido no espelho escolar.Ele não estava lá também. Em nenhum espelho.

    Não estava no livro de matemática. O livro de His-tória não contava a sua história. O de língua pátrianão falava a sua língua.

    Nem a professora o enxergava. Ela beijava algu-mas crianças, acariciava, dava atenção, aplaudiasuas respostas, caprichava na nota. Mas ele, não.Não estava lá.

    O tempo passou. E, no mesmo dia em que setornou adolescente, como num passe de mágica,ele deixou de ser invisível e se tornou... suspeito.

    Suspeito crônico. Suspeito de todos os males que

    acometiam a comunidade em que vivia. De todosos males da sociedade.

    E, no Brasil, se você é suspeito, já é culpado. Senão culpado do que suspeitam, culpado por teremsuspeitado de você. E, finalmente, ele se tornouvisível, na primeira página do noticiário policial.

    Mas essa história não termina aí. Seria triste de-mais. Aquele menino tinha uma irmãzinha caçula.Tão invisível quanto ele. E, como ainda era criança,ela acreditava na existência de um velhinho quetrazia presentes no dia de Natal. As outras crianças

    o chamavam de Papai Noel. Ela, porém, o conheciapor Baba Noel. Como as demais, ela escreveu umacartinha para o tal velhinho.

    E Baba Noel começou a ler as cartas das crian-ças: uma pedia boneca, outra queria bola, outra,bicicleta, aquela, computador, celular, vídeo game...E Baba Noel abriu aquela carta com um pedido es-tranho: “Para que eu possa me ver, me reconhecer,me identificar, eu quero uma jóia, uma jóia que mereflita: um espelho mágico”.

    Só então Noel se deu conta de que não era aprimeira carta que ele recebia com esse pedido.Havia outras, que ficaram esquecidas no fundo dobaú de correspondências. Eram dezenas, centenas,milhares. Caramba! Talvez ele pudesse arranjaralguns espelhos mágicos, mas como arranjar espe-lhos para atender a tantos pedidos?

    Teve, então, a idéia de fazer um único espelho.Um espelho gigantesco, em que todas as criançasinvisíveis pudessem refletir-se. Baba Noel, então,procurou seu filho predileto, um artista sensível,culto, elegante, um escultor chamado M’Noel, e

    pediu-lhe que esculpisse, em ouro e no mais finocristal, esse espelho mágico.

    Foram anos de trabalho, muitos... Mas um dia oespelho mágico ficou pronto e todas as crianças,antes invisíveis, puderam ver seu reflexo e refletirsobre elas próprias... Aí, descobriram que são belas,belíssimas, ricas, poderosas, não ficam a dever nadaa todas as demais crianças.

    E o espelho mágico ganhou até um nome: MuseuAfro Brasil. Olha só, a gente é lindo ou não é?

    O espelho mágico Oswaldo Faustino

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    (...) Então ele retirou um pedacinho de cada uma dasvinte criaturas, misturou-os e, depois, soprando na mistura

    uma centelha de seu próprio hálito de fogo, criou um

     novo Ser, o Homem, ao qual deu uma parte de seu nome:

     Maa. Assim, esse novo ser continha, por seu nome e pela

    centelha divina nele insuflada, alguma coisa do próprio

     Maa Ngala.

     Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis,

     segundo as quais todos os elementos do cosmo haviam

     sido formados e continuavam a existir. Instituiu Maa como

     guardião do universo e encarregou-o de zelar pela manu-tenção da Harmonia universal. Por esta razão é difícil ser

     Maa. (...) Hampa Té Bâ

    Segundo a tradição Bambara, no Mali, o homem foicriado para fazer companhia ao criador. Em comumeles têm a palavra – transmitida na centelha porMaa Ngala – que, assim como o fogo, pode criarou destruir. É difícil ser guardião do universo emanter a harmonia, tendo como ferramenta e aliadoelemento tão potente como o fogo, ou a palavra.

    Fagulhas e ostracismo:

    Cristiane Moscou

    à memória de João Cândido

    As palavras contam histórias que, de acordocom a imaginação, lembrança ou interesse dequem conta, podem sofrer modificações – “quemconta um conto aumenta um ponto.” É a fagulhaacendendo chamas ou causando incêndios.

    Histórias podem ser contadas a partir de objetose imagens, como acontece no Museu Afro Brasil.O núcleo História e Memória, por exemplo, reúnea reprodução de retratos de várias personalidades ne-gras brasileiras que tiveram destaque em diferentes

    áreas do conhecimento como as artes, arquitetura,medicina, engenharia, literatura, entre outras.

    Essas imagens nos remetem a trajetórias que serelacionam entre si no Brasil e, não raro, em outroslugares do mundo, formando uma imensa colcha deretalhos. É o que se dá com o compositor e maestroCarlos Gomes, autor da mais famosa ópera brasileira,O Guarani , e amigo de André Rebouças, engenheiroe abolicionista. Há também o caso de Machado deAssis, que teve suas primeiras obras publicadas

    João Cândido, o almirantnegro e seus companhea bordo do encouraçado1910

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    pelo primeiro editor de livros no Brasil: Franciscode Paula Brito. Em comum, todos esses homenssão descendentes de negros africanos.

    São percursos desconhecidos da maioria das

    pessoas, que muitas vezes não foram apropriadosou retransmitidos nas escolas, nos museus ou mes-mo na vida cotidiana. Muitos deles têm reconhecidacontribuição à sociedade brasileira. Dão nomes aruas, avenidas, escolas e até mesmo a cidades, masa sua origem africana permanece oculta.

    Muitas vezes já em vida, ou quando suas biografiasforam retransmitidas, tais personalidades passarampor processos de branqueamento, ou seja, tiveramsuas imagens modificadas, a fim de esconder seustraços reveladores de descendência africana e re-

    forçar a idéia de que o conhecimento não podeestar vinculado à origem negra.

    A maioria das personalidades negras brasilei-ras tem sua história e imagem apagadas – comoque destruídas por incêndios – relegadas ao ostra-cismo, como João Cândido, herói da Revolta daChibata, às vezes mencionada nas escolas, masnunca aprofundada. Neste momento acenderemosuma fagulha.

    Para avaliar a importância da biografia quese segue, vale citar o grande escritor GabrielGarcia Márquez:

    “As histórias são como eu lembro para contar”(Viver para contar, 2003)

    A data: 22 de novembro de 1910. Estava em-possado havia uma semana o novo presidenteda República: Marechal Hermes da Fonseca, que,apoiado pelos militares, vencera as eleições tendocomo adversário Rui Barbosa, que era apoiado pelos

    civilistas. Marujos da Marinha da Guerra tomamnavios, alguns recém-comprados da Inglaterra,e apontam os canhões para o Rio de Janeiro e oPalácio do Catete, sede do governo.

    As queixas dos revoltosos eram motivadas pelosbaixos salários, má alimentação, mínima formaçãodada aos marujos e, principalmente, a exigência dofim dos castigos corporais com chibatas, vara demarmelo ou um chicote flexível com agulhas e pre-gos para tornar o castigo mais dolorido.

    Abolidos com a Proclamação da República, oscastigos corporais estavam previstos no Códigoda Marinha. Limitados a 25 golpes, muitas vezes chega-vam a 200. No dia anterior ao levante, o marinheiroMarcelino Rodrigues, tinha sido castigado com

    250 chibatadas. Era o estopim do movimento, quejá vinha sendo planejado. Vale informar que naMarinha brasileira grande parte dos marinheirosera negra e mestiça, portanto, esse castigo remetiaaos tempos da escravidão. Além do mais, havia anosnão era aplicado pela Marinha de outros países.

    O principal líder desta revolta, João CândidoFelisberto, filho de um escravo, nascera em 24 dejunho de 1880, em Rio Pardo, Rio Grande do Sul.Entrou para o Arsenal de Guerra daquele estado;aos 14 anos foi transferido para a Escola de Apren-

    dizes Marinheiros no Rio de Janeiro e, de lá, para aMarinha de Guerra.

    O levante liderado por João Cândido, conhecidocomo Almirante Negro (ver box), durou seis dias,apavorando a população do Rio de Janeiro mas, apósnegociação com o governo brasileiro, os naviosforam entregues pacificamente aos oficiais daMarinha. O governo brasileiro aceitou as reivindica-ções dos marinheiros, porém, dias depois, excluiuda Marinha quase mil homens sob o argumento deque eram “elementos não desejáveis”.

    Em dezembro, por motivos desconhecidos,estourou nova revolta, desta vez dos fuzileirosnavais. Controlou-se a rebelião, prisões foram feitase quase quinhentas pessoas (ex-marinheiros, men-digos, prostitutas e vagabundos) tiveram comodestino o norte do país para trabalhar na extraçãoda borracha ou na construção da estrada Madeira-Mamoré. Muitos morreram fuzilados ou em conse-qüência dos maus-tratos.

    Outros revoltosos de novembro tiveram quecumprir pena na ilha das Cobras. Em três dias,dezesseis dos dezoito presos estavam mortos.Foram expostos a uma mistura com cal que ossufocava e torturava. Desse massacre restaramdois sobreviventes: o soldado naval João Lira e omarinheiro de primeira classe João Cândido.

    Enviado para o Hospital dos Alienados, dirigidopelo médico negro Juliano Moreira em 1911, foiabsolvido das acusações em 1912. Sem sucesso,

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    ... a fala humana anima, coloca em

    movimento e suscita as forças que

    estão estáticas nas coisas.A. Hampa Té Bâ

    Práticas deViviane Lima de Morais

    oralidade

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    Inspirados por tradições orais africanas, nas quaiso aprendizado se dá na coletividade, no exato ins-tante em que se fala e que se ouve, nos reunimos,À Sombra do Baobá, para descobrir ou reanimarforças que estavam estáticas em nós.

    Nosso baobá, como toda velha árvore, estavacarregado de memórias, projetando sobre nós umasombra incomensurável capaz de dar sentido àsnossas superstições, nossos ditos populares, nossossotaques, nossas cores. Ali, ao abrigo da luz ofuscantedo sol da modernidade, da pressa dos nossos dias,paramos algumas horas para nos olhar e nos ouvir.

    O Museu Afro Brasil foi o nosso baobá. E aquelaÁfrica que parecia tão distante de nós, pelo imensoOceano Atlântico que nos separa, ou por aindaacharmos que toda a história que nos liga a ela se

    restringe ao período da escravidão, veio nos en-contrar para trazer nossos avós, pais, infâncias eoutras histórias. A África se tornou um lugar tãoreal quanto mítico, um lugar onde podemos buscare deixar nossas músicas, instrumentos, palavras,comidas, gestos, onde podemos nos abastecer desentidos e fantasias. E nestes encontros, à sombrado baobá, o elo estabelecido entre África e Brasilfoi firmado pela oralidade.

    Sempre pensamos nela como o som que saida boca, o que é vocalizado, a voz. Mas a voz éapenas um elemento desta prática humana pre-sente em todo o corpo e fora dele. Nos gestosque fazemos, nos objetos que tocamos e rituaisque executamos. Cada som e cada gesto gravam

    nos corpos e nos objetos a memória produzidanaquele instante. E essa memória faz parte deum momento da oralidade.

    Equivocadamente, quando pensamos as socie-dades tradicionais africanas, limitamos a oralidade

    aos momentos e espaços ritualísticos. Entretanto,se expressa nos seus mais amplos sentidos.

    Os rituais estão presentes tanto em sociedadesmodernas quanto em tradicionais. E, semelhanteàs culturas modernas de lá e de cá, estes ritos nãoestão condicionados apenas ao universo religioso.Temos em nosso mundo moderno diversos rituaisque não se restringem ao espaço da religiosidade,ainda que contenham elementos deste.

    No cotidiano de povos tradicionais africanos

    há rituais, religiosos e não religiosos, com a uti-lização de um elemento material da oralidadeque é a máscara ou o costume de mascarar-se.Mascarar-se, entre Gueledés, Dogons etc., diz res-peito à possibilidade de se revestir da ancestralida-de invocada para aquele momento sociocultural.Por essa razão, as máscaras não se limitam a umacobertura do rosto ou da cabeça, mas sim detoda a extensão do corpo daquele indivíduo, quesairá da sua condição física e humana para darlugar às forças da tradição que ele representa.A máscara, portanto, é um dos elementos da perfor-mance oral que se compõe também da música, dadança, da interação com os ouvintes e de todos osensinamentos anteriores e posteriores que concre-tizaram esse momento. Essas máscaras mantêmuma estrutura estética tradicional, que guarda emsi diversos processos ritualísticos e na qual a ora-li dade está presente desde a sua concepção econfecção até o seu uso.

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    Ao rememorar nossas tradições e rituais de ora-lidade, reencontramos nossos velhos contadoresde histórias, um contraponto a uma prática moder-na, em que o contato com a história, quando existe,em geral, se dá por meio da leitura, numa atividade

    individual e solitária. Aproveitando o fato de estar-mos embaixo do baobá, uma árvore mitificada, quemetaforiza de maneira poética a relação ancestralentre África e Brasil, passamos a refletir sobre aescrita e a oralidade, e como estes elementos serelacionam em sociedades tradicionais. Um modode compreendermos nossas máscaras, que nãosão materializadas como entre os povos africanos,mas que também nos revestem de uma ancestrali-dade própria do ato de contar histórias.

    A escrita é parte da oralidade. Segundo uma

    concepção malinesa, o homem é um conjuntode vinte forças que vibram e se expandem produ-

    zindo inicialmente pensamentos, depois sons efinalmente palavras. Poderíamos incluir a escritacomo uma destas forças que, segundo a históriada humanidade, surgem após este processo inicialde expressão?

     Esses elementos que se inscrevem sobre super-fícies variadas auxiliam o homem na compreensãodo mundo e de si, registrando seus pensamentos,sons e palavras.

    O que em nossa sociedade reconhecemosoficialmente como escrita não se aplica para estespovos. Pois, nos seus registros, representa-segraficamente não a língua, a forma do som, e simo modo como se vive e compreende o mundo.

    Estes registros se constituem por meio dedesenhos ou símbolos que não podem ser lidosde maneira literal já que apresentam concepçõesde mundo e sociedade extremamente complexose específicos destas culturas. Estas inscrições,gravadas, pintadas ou esculpidas se apresentamem suportes diversificados, que nem sempretêm como finalidade guardar um registro paraposteridade, como observamos na concepçãode escrita ocidental.

    Cada suporte definirá um tipo de registro damemória e uma necessidade de comunicação quese dá em diversos âmbitos do cotidiano: o tecido,as paredes ou portas das casas, as máscaras,o corpo (pinturas e escarificações), o chão, dentreoutros. Apesar de serem de natureza e uso dife-renciado todos são suportes perecíveis. Por isso,há a necessidade de transmissão oral do conhe-cimento. Enquanto os registros escritos perecem,a memória perdura para a confecção de novosregistros em uma prática hierárquica e geracionalde ensinamento das tradições.

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    No entanto, ainda que estes registros pareçamestáticos, não podem ser lidos desta maneira. Essaescrita, nestes casos, também deve ser compre-endida como uma força vibrante, principalmentequando analisamos os suportes escolhidos para a

    sua exposição.

    Um corpo pintado ou escarificado, quando emmovimento de caminhada ou de dança, incita-nos afalar sobre ele e com ele. Seus movimentos trans-mitem a vibração do que foi escrito naquele suporte.As pinturas corporais ou as escarificações, bemcomo as máscaras são colocadas em espaços visí-veis para comunicar, para serem vistas, para seremlidas. E assim, unindo o gestual com os acessóriose as inscrições, o corpo fala e convida a falar.

    Os tecidos também são móveis e maleáveis, feitospara serem expostos sobre o corpo, sentidos e lidoscom os olhos, com os pés, produzidos nas portasdas casas em meio aos diálogos cotidianos dosespaços públicos e coletivos. A escrita se iniciano desenho ziguezagueado do entrelaçamento defios, no dinamismo obtido por essas linhas que ex-pressam a força vital da composição que tambémestá na fala, na dança e na silhueta das estatuetas.A vibração contida nessas linhas recupera o movi-mento contínuo do tear manual, que determinarátambém a escolha das formas que serão impressasno tecido e, inclusive, o uso que cada sujeito farádaquele objeto.

    Nas casas ou portas inscritas podemos obser-var o uso calculado de um espaço de comunicaçãooral. O que se escolhe para expor, para quem e comque finalidade. As inscrições são feitas do lado defora destes espaços para todos que passam e quechegam, comunicando, informando ou advertindo,abrindo e fechando sua mensagem. As portas são,

    em si, espaços de passagem que dividem lu-gares e pessoas, permitindo ou não o contatoentre eles. Mas, ao serem utilizadas como umsuporte para a escrita, propiciam um elo entreo escritor e o espectador, um elo que se fará

    no âmbito da oralidade, do questionamento, dacompreensão do outro.

    Bibliografia

    HAMPA TÉ BÂ, Amadou. A tradição viva.  História Geral da

     África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982, v.1.

    ZUMPTHOR, Paul.  Introdução à poesia oral . São Paulo :

    Hucitec/EDUC, 1998.

    CARRÉS D´IMAGES. Masques: espirits d Áfrique. Photografies

    de Thomas Renaut; Textos de Marie-Aude Priez. Paris :

    ASA Éditions, 2000.

    Viviane Lima de Morais Educadora do Núcleo de Edu-cação do Museu Afro Brasil. Mestre e Doutoranda em História

    Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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    Uma jovem mulher lê uma história para um grupo reunido em torno de uma mesa

    de vidro. Todos estão sentados no chão, têm os olhos centrados na mulher que lê.

    Eu também a observo atentamente, vejo o perfil da leitora. De repente, no exato

    momento em que se dá a transformação que encaminha a narrativa para o final,

    apagam-se as luzes da biblioteca; continuamos olhando e ouvindo a leitora que

    agora passa a contar o texto. Quando se anuncia o desfecho da narrativa, lenta-

    mente as luzes se acendem e iluminam o perfil da contadora. A magia da história

    coincide com a mágica experiência vivida pelo grupo.

    (cena flagrada em uma das oficinas À Sombra do Baobá, no Museu Afro Brasil)

    Neide A. de Almeida

    Quem conta o conto,conta como o conto foi...

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    Em um dos momentos da série  À Sombra do Baobá,  Projeto Negras Palavras, nos dedicamos areunir e analisar histórias de origens diversas a res-peito de um mesmo tema, de um mesmo conflito.Tomamos como ponto de referência um conto bra-sileiro de origem africana: A menina e o quibungo.Nesta história uma menina transgride um limite im-posto pela mãe: “criança não deve sair sozinha ànoite”. A punição para tal transgressão é tornar-sealvo e vítima do quibungo.

    Como se vê, situação e conflito semelhantesaos encontrados num conhecido clássico da lite-ratura infantil, Chapeuzinho Vermelho. Mas a his-tória apresentada por Henriqueta Lisboa, recolhidapor Nina Rodrigues, não é a única que aborda omesmo tema de forma tão semelhante, há outros

    exemplos, dentre os quais discutimos tambémO bicho Pondê, recolhido por Lindolfo Gomes; A falsa avó, registrada por Ítalo Calvino; Fita verde no cabelo, de Guimarães Rosa, e dois contos afri-canos: Duula, a mulher canibal  e  A mãe canibal e seus filhos, o primeiro recontado por RogérioBarbosa e o segundo por Júlio Emílio Braz.

    Ao reunir esse conjunto de histórias é possívelobservar alguns aspectos, normalmente diluídosna concepção eurocêntrica que orienta nosso olhar.

    Um primeiro elemento que merece destaque é que,ao contrário do que parece, as histórias surgem nomundo inteiro “nas feiras populares de Bagdá, nosoásis que reuniam os beduínos, nas ágoras gregas,nas savanas africanas, nos feudos da Idade Médiaou entre os índios das Américas”, como diz FlávioMoreira (p. 14). Ou seja, criar, contar e ouvir histó-rias não é privilégio de um povo, mas prática típicado ser humano, desejoso de explicar fenômenosnaturais, sentimentos inexplicáveis, estabelecerlimites, garantir que as regras de sobrevivênciae convivência sejam respeitadas, interiorizadase atuem não apenas na razão, mas também noinconsciente, no imaginário e na emoção do homem.Por isso mesmo, essas histórias quando compa-radas revelam ao leitor elementos universais.

    Mas as histórias têm também suas singulari-dades, reveladoras das características das diferentesculturas, dos costumes das comunidades em queforam produzidas. O quibungo, animal mítico deorigem africana, lembra um lobo, mas se parecetambém com um homem. Um traço marcante dessafigura é que ele tem duas bocas: uma que usa parase alimentar e outra, localizada nas costas, que éutilizada para devorar crianças. Semelhante, então,ao lobo mau tão conhecido dos contos de fadas,o quibungo remete o ouvinte também ao “homem

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    do saco”, ao “bicho papão”, personagens típicosde nossa cultura popular, todos eles criados paragarantir determinadas condutas infantis. Nas his-tórias africanas, o canibalismo é invocado comoum exemplo da permanente tensão vivida pelohomem: fazer parte da natureza e da cultura simul-taneamente. Duula torna-se canibal durante umadas migrações forçadas, vividas por famílias soma-li. Ao longo da travessia dos desertos, as pessoasmorrem e a única forma de sobreviver é alimentar-se dos restos dos que ficam pelo caminho. Assim,a menina desenvolve o gosto pela carne humana epassa a representar uma ameaça para os demaishumanos. Da mesma forma, os filhos são afas-

    tados da mãe canibal pelo pai que quer garantir aintegridade das crianças, mas o desejo de conhe-cer os pais coloca os filhos em perigo.

    É interessante observar que nas duas históriasafricanas, diferente do que acontece nas demais,é recorrente a presença do pai e da mãe e de doisirmãos. Os cenários também mudam conforme acultura que produz a narrativa: a floresta, o deserto,uma aldeia. Entretanto, em todos os casos, trata-sesempre de lugares típicos e, de certa forma, tambémuniversais, basta mencionar uma floresta, um deserto,

    uma aldeia para que todos imaginem esse espaço. Nas histórias brasileiras são encontradas marcas

    que remetem o leitor à origem africana: nomes comoo quibungo, o bicho Pondê e fórmulas que articu-lam a narrativa e que, na oralidade, são utilizadas

    para envolver os ouvintes, garantir o interesse ea participação da platéia na história, como se dácom as repetições de determinadas expressõesem diversos momentos do texto.

    A análise desses elementos e de tantos outrosconstitui um aspecto importante no processo deapropriação das histórias, seja para contar, sejapara ler. Daí a necessidade e a importância deingressar no universo das narrativas africanas, quehoje ganham espaço em nosso mercado editorial,e paralelamente conhecer as inúmeras histórias dacultura popular brasileira, e em todas elas encon-trar o que há de universal e que provoca não só

    a imediata identificação do ouvinte, mas tambémo que elas trazem de singular e que permite, pormeio do encantamento, uma aproximação comculturas que são, ao mesmo tempo, tão familiarese tão desconhecidas.

    Bibliografia

    BETTELHEIM, Bruno. A luta pelo signficado. In: A psicanálise

    dos contos de fadas. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980.

    (Literatura e teoria literária; v. 24)

    GNERRE, Maurizzio. Da oralidade para a escrita: processode “redução” da linguagem. In:  Linguagem, escrita e

     poder . 3 a ed. São Paulo : Martins Fontes, 1991. (Texto

    e Linguagem)

    MOREIRA, Flávio (Org.). A infância da ficção. In:Os grandes contos

     populares do mundo. Rio de Janeiro : Ediouro, 2005.

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    O Projeto Negras Palavras pretende iniciar um espaço coletivo sistemático de encontros para ouvir e

    contar histórias. As oficinas À Sombra do Baobá constituem o início desse processo.

    Os contadores de histórias são personagens que marcam a vida dos homens desde os tempos maisremotos. Alguns deles se tornaram famosos e atravessam os séculos na memória dos povos. Há tam-bém uma outra dimensão dessa experiência que, quase sempre, se localiza nas relações mais cotidianase familiares. São os pais, mães, avós as principais figuras lembradas quando se questiona a respeito doscontadores que marcaram as histórias de cada sujeito. Exemplos disso são os depoimentos de dois au-tores de origem negra que escrevem literatura sobre o negro, como o de Joel Rufino:

    “Um outro fator de influência foi minha avó, analfabeta, mas que era como a Vó Totonha, de José Linsdo Rego. Vocês conhecem a persoangem, que ia de fazenda em fazenda, contando histórias pros meni-

     nos? Ela era da casta dos contadores de histórias. Isso vem da África, da África ocidental. Minha avó erauma Griot, contava histórias, muitas histórias...”  (Trecho da entrevista publicada em Garcia, Pedro Benja-mim; Dauster, Tânia. Teia de autores. Belo Horizonte : Autêntica, 2000, p. 37.)

    e o de Rogério Andrade Barbosa:

    “Cresci rodeado de livros. Meu pai é professor e escritor. Tem mais de cem livros publicados, entreseles, gramáticas, dicionários e livros didáticos. É professor de Latim, Português e Francês. Hoje ele temoitenta anos e ainda se relaciona muito com livros. Minha mãe, embora tenha apenas o quarto ano primário, lê muito, talvez por influência de meu pai e de todos aqueles livros lá em casa. Os dois eram ótimos conta-dores de histórias. Muito antes de eu aprender a ler, eles já inventavam personagens.”  (idem, p. 133)

    cada um de nósOs contadores de histórias de

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    Os depoimentos dos participantes da oficina Rituais de apropriação: o ouvir , realizadas no Museu AfroBrasil, reforçam esses dados:

    “Voltei com nitidez ao ‘primário’, consegui, no caminho de volta pra casa, visualizar

    colegas e professores, o pátio da escola, a saída... o uniforme..., a minha ‘Pró’ comose diz na Bahia, foi uma saudade boa, realmente ouvir histórias acaba por contar

    nossa história”.

    Nádia Rosa

    “Percebi que o compartilhar de uma memória tão íntima despertou minha atenção aos meus refe-rencias de histórias e da própria história de minha vida. Lembrei-me das histórias que minha mãe contava(Festa no Céu, a da origem da mandioca, de macaco sapeca....) e que, conforme fui crescendo, foram semodificando com a adolescência, os tempos do colégio e o período da ditadura, que me marcou desdecedo por ter deixado meus pais (meus primeiros heróis) tão frágeis e humanos. Se por um lado minhamãe trazia estas referências deste passado próximo, meu pai quase as negava, só contava histórias

    engraçadas, de situações que aconteceram com ele e seus amigos. (...)Creio que as histórias que ouvimos nos pertencem de alguma forma e orientam o que nós somos e

    como atuamos no mundo.”Gabriela Lieiras

    “Essa experiência trouxe a minha infância. Com certeza lembrei-me exatamente o dia

    em que minha avó contou que via o saci-pererê sob uma árvore. Era tudo tão real...”  Amanda Albornoz

    “Ah! Foi maravilhoso! Num primeiro momento, fiquei um tanto presa às histórias das cinderelas, belasadormecidas, chapeuzinho vermelho etc., tentando recordar-me qual dessas histórias havia escutado nainfância e qual tinha me marcado, Entretanto, minhas memórias não traziam essas histórias. Em minhasmemórias estavam presentes as histórias contadas pela minha avó. Foi simplesmente maravilhoso recor-dar e poder partilhar um pedaço de mim, da minha família, da minha cultura, desse patrimônio que nãoestá publicado nos livros. São histórias que nascem do imaginário, da vivência, experiência popular quetêm entre seus objetivos, educar, criar e manter valores, culturas e tradições. Para mim foi espetacular, emespecial pelo fato dos participantes se recordarem das histórias de domínio popular.”

    Claudia Novais

    “A minha irmã mais velha tinha um hábito, que até hoje ela tem com meus sobri-

    nhos. Lá em Minas, a gente tinha uma cama de casal e todos os pequeninos dormiam juntos e ela dormia com a gente. Então, antes de dormir ela contava histórias, princi-

    palmente na época de inverno... Ela contava histórias bíblicas (...) e toda vez era aquilo.

    Era uma coisa engraçada, porque mesmo depois, quando a gente ia para a missa e

    ouvia as mesmas histórias contadas no evangelho, não eram do mesmo jeito que ela

    contava, não era da mesma forma que a gente via aquele velhinho de barba branca

    como ela descrevia. E mesmo aquela coisa dos poucos cobertores, a gente tudo junto,

    tudo escutando. Eu posso até ouvir ela contando, você adormecendo, querendo conti-

    nuar prestando atenção, mas você não dava conta, eu sempre acabava adormecendo.

    Era muito bom.”

    Rosana Dias Côrrea

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    “Minha mãe sempre foi uma grande contadora de histórias, até hoje ela é, ela está com 84 anos econta histórias. Nós nascemos na fazenda, não tinha luz, não tinha TV, não tinha nada. Em casa, era amesma história que a Lourdes conta: meu pai punha uma chapa no chão, aquelas brasas, todo mundoem volta. Mas era tanta história... Todo dia; era sagrado. E na fazenda era como uma colônia, as pessoasse reuniam para contar histórias. Minha mãe contava aquelas histórias bonitas que até hoje eu gosto, elamisturava com as histórias que a gente ouve hoje, e tinham também aquelas histórias que eu tenho medoaté hoje... mas era verdadeiro... Eu adoro contar histórias, eu conto história e canto pros meus filhos.Eu ouvi muito essas histórias e no vestibular eu narrei uma história, mas depois me deu uma tristeza, emplena prova eu comecei a chorar. Eu pensei ‘Meu Deus será que isso aconteceu mesmo?’ Eu fui longe,fui na África, eu contei uma história triste, e me convenci dela...”

    Isabel de Fátima Estevão Pereira

    “Tem uma história que minha mãe contou pra mim, que a mãe dela contou pra ela, que a avó delacontou e assim por diante. É a história ‘Josefina e a cabaça’. Era uma cidade muito próxima de onde a mi-nha avó morava e avó da minha avó e assim por diante; e tinha uma menina que se chamava Josefina, quemorava numa casa e no alto do monte, lá longe, tinha uma planta que chamava cabaça e diziam que essacabaça era mágica. O pai da menina proibia que ela fosse até aquele lugar. Como era muito travessa, ela

    foi até lá, pegou um graveto e começou a escrever naquela cabaça: ‘Josefina é muito bonita’, Josefinaé muito bonita e inteligente’, ‘Josefina é muito bonita, inteligente e tem a perna fina’. E cada vez que elaescrevia na cabaça com o graveto, a cabaça ia crescendo, ia crescendo, ia crescendo cada vez mais. Atéque um dia essa cabaça, de tão grande que se tornou, começou a rolar atrás da Josefina e cantava umamúsica que é mais ou menos assim:

    Ô JosefinaÔ maranataMandacaruMandou te dizer que até onde você forEu vou te comerEu vou te comerEu vou te comer(Eu não sei porque, mas ficou essa música na minha cabeça até hoje).E aí ela foi correndo, correndo, correndo até que uma hora essa cabaça se quebrou e se espalhou em

    milhares de pedaços lá pela região e até a sementinha cantava pra ela:Ô JosefinaÔ maranataMandacaruMandou te dizer que até onde você forEu vou te comerEu vou te comerEu vou te comerE aí dizem... Minha mãe diz que é a história do berimbau. É uma história que me marcou muito.

    Maria Neusa Valverde

    “Minha infância está repleta de histórias. Era um tempo de alegria, em que eu me

    sentia segura ao lado de todos os meus familiares (hoje estão todos desagregados).

    Essa provocação trouxe toda essa gente para perto de mim novamente e eu me senti

    amada como no passado, do modo que uma criança necessita.” Nylda Rodriguez

    E você? Quem foi o contador de histórias de sua infância?Você tem uma história que considerada a sua preferida, a mais marcante?

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    Os comedores de palavrasEdimilson de Almeida; Rosa Maria Margarida de Carvalho. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2004.

    Trata-se da história de um garoto, filho de um contador de histórias. Depois da morte do pai, o meninodecidiu morar no País dos Bichos Comedores de Palavras, pois não percebia mais seu lugar nomundo, achava que não tinha a mesma arte de seu pai para contar histórias. Assim, desiludido, ele pas-

    sa por várias aventuras até encontrar os bichos comedores de palavras, mas estes não conseguem comer todas aspalavras que o garoto fala, pois ele conta muitas histórias, uma vez que tinha passado por muitas aventuras. Então,renegado pelos monstros, o garoto encontra um velho sábio, que o faz perceber que ele também é um contador dehistórias, tão bom quanto seu pai fora. E, assim, o garoto sai pelo mundo contando suas histórias. (Ramon Koelle)

    Sugestões de leitura

    Não há como discordar de Pennac. Como julgar alguém por suas escolhas de leitura?Que parâmetros nos permitem considerar essas escolhas de leitura mais ou menos adequadas?De maneira nenhuma temos essa pretensão.

    Ocorre, entretanto, que sempre a organização de um curso, uma oficina ou uma publicação de qualquernatureza implica escolhas orientadas por critérios subjetivos. Apresentamos, a seguir, alguns dos livrosque consideramos importantes para aqueles que estejam preocupados em conhecere abordar histórias africanas e histórias brasileiras de origem africana.

    Nesta seção, o leitor encontrará não exatamente sinopses, mas apresentações, comentários,considerações e indicações a respeito de textos que circularam em nossas rodas de histórias.

    “As nossas razões para ler são tão diferentes comoas nossas razões para viver...”  Daniel Pennac

    A origem da morteIn: Sikulume  e outros contos africanos. Adap. Júlio Emílio Braz; Ilustr. Luciana Justiniani. Rio de Janeiro :Pallas, 2005.

    Ao saber que um reles inseto fora escolhido para levar uma mensagem da Lua aos homens, a lebre,sempre querendo ser a mais esperta, passa uma rasteira no inseto e toma o seu lugar. Atrapalhada comosempre, ela não consegue passar a mensagem original aos homens. Quando retorna contando o seu

    feito, a lua furiosa dá- lhe uma paulada no focinho. Por isso, a lebre tem um focinho rachado.Uma fabúla simplese objetiva na moral passada: “Nunca tente ser mais esperto que os outros, você pode sair com o nariz rachado”.(Avelina Machado)

    Sundiata, o Leão do MaliRecontada por Will Eisner. Trad. Antonio de Macedo Soares. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2004.

    Nesta versão em quadrinhos, Eisner reconta a saga de Sundiata, personagem real, fundador do ImpérioMali na África por volta do século XIII. Depois de lutar contra a opressão do povo de Sasso, comandadopor Sumanguru, o Leão do Mali vence a batalha de Kirina. Esta epopéia já foi contada em versos, baladase cantigas; mitificada, tornou-se lenda. Do poderoso príncipe dos malinqués, chegou-nos sua coragem,

    sua bravura e sua persistência. Muitas são as versões desta saga. Esta é mais uma delas... (Luiz Carlos dos Santos)

    Para conhecer uma outra versão da mesma história, leia também: Sundiata ou A Epopéia Mandinga. Djibril TamsirNiane. Tradução Oswaldo Biato. São Paulo : Ática, 1982.

    As tranças de BintouSylviane A. Diouf; Ilustr. Shane W. Evans. São Paulo : Cosac & Naify, 2004.

    Bintou é uma menina fascinada por cabelos e tem um sonho: usar tranças. Um dia ela descobre, contadopor sua avó, o motivo pelo qual as meninas de seu povoado só podem trançar o cabelo a partir de certaidade. E, depois de, bravamente, ganhar o direito à realização de um sonho, sua avó com sabedoria esem ferir a tradição do seu povo deixa a neta feliz. Esta é uma história que recupera o sentido da tradição

    e do saber dos mais velhos em direção aos mais novos. (Ana Lucia Lopes)

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    O chamado de SosuMeshack Asare. Ilustr. do autor. Trad. Maria Dolores Prades. São Paulo : Edições SM, 2005. Sosu percebe a tempo o início de uma forte tempestade que pode destruir a aldeia à beira-mar ondevive, no oeste da África. Aflito e sem poder andar, resolve avisar o seu povo do perigo iminente como toque do tan-tã. Mas, para chegar até o instrumento, Sosu precisa enfrentar o temporal. Será que ovilarejo vai ser salvo? Essa é uma história que reafirma valores como aceitação e a superação de limites.

    Ela apresenta um menino que viu sentido em enfrentar enormes desafios. O que o moveu? (Ana Lucia Lopes)

    A menina e o quibungoIn:  Literatura oral para a infância e a juventude:  lendas, contos & fábulas populares no Brasil. Org. porHenriqueta Lisboa; Pref. e ilustr. Ricardo Azevedo. São Paulo : Peirópolis, 2002.

    Você sabe o que é um quibungo? Se não sabe, o que você imagina que seja? Esses foram as primeirasperguntas feitas aos participantes das oficinas À Sombra do Baobá, antes da leitura da história. Trata-sede um delicioso conto que compõe a coletânea  Literatura oral para a infância e a juventude. Nesta mes-

    ma obra, você poderá ler também O bicho Pondê, entre muitas outras fábulas, lendas e contos populares. A história A menina e o quibungo provavelmente fará com que o leitor se lembre de outras histórias de diferentes origens.Esta versão é de origem africana, mas também traz marcas explícitas de que passou por um processo de apropriaçãobrasileira. É uma história envolvente. Quem ouviu, gostou, apropriou-se dela e saiu por aí contando a sua versão...Você pode encontrar este conto também no site http://jangadabrasil.com.br/maio/im90500c.htm (Neide A. de Almeida)

    O bicho PondêIn: Literatura oral para a infância e a juventude:  lendas, contos & fábulas populares no Brasil. Org. por Henriqueta

    Lisboa; Pref. e ilustr. Ricardo Azevedo. São Paulo : Peirópolis, 2002.

    Esta é a história de uma menina que sempre se distraía ao sair para fazer os “mandados” e foi avisada de que o Pondêa pegaria e mataria. Ela, como sempre saiu à noite, se distraiu e foi pega, tendo que pedir ajuda aos familiares quenão a atendiam. No final, só a mãe, “abrindo uma folha da porta”, consegue tirá-la das mãos do bicho, que ficou noterreiro esperando-a sair, quando seus irmãos, ao amanhecer, o mataram e a menina aprendeu a não se distrair mais.Este conto lembra a história do quibungo, Chapeuzinho Vermelho (....) e também dos Três porquinhos. A expressão“a meia folha da porta” dá um sabor diferente à história, pela poesia que contém. As palavras que o autor usa, quea gente não está acostumada a usar, que a gente acha que o outro não vai entender é que dão sabor, que fazemo outro ficar com vontade de ler. (Nadia Rosa)

    O beco do pilãoNaguib Mahfuz. Trad. Paulo Daniel Farah. São Paulo : Planeta do Brasil, 2003. Trata-se do livro “O Beco do Pilão”, do escritor egípcio Naguib Mahfuz. Logo no início do romance, o poetae contador de histórias, que durante décadas recordou aos clientes do café do beco (o Café do Kircha),no Cairo, as aventuras de heróis tradicionais e histórias de procedências diversas, é expulso do local paramarcar a rejeição do passado e um ato de “modernização”: um rádio é instalado no café, que não pode

    mais acomodar o poeta/contador de histórias.Essa aparente impossibilidade de coexistência entre o novo e o antigo, como se cada um devesse decidir a que ladopertence, pode ser contraposta pelo contar e ouvir histórias, tradição tão cara à África (e ao Egito antigo e con-temporâneo como parte dela). (Paulo Farah)

    Duula, a mulher canibal: um conto africanoRogério Andrade Barbosa; ilustr. Graça Lima. São Paulo : DCL, 1999.

    Duula, no passado uma jovem bonita, torna-se canibal, durante uma das migrações forçadas vividas por famí-lias somali. Ao longo da travessia dos desertos, as pessoas morrem e a única forma de sobreviver éalimentar-se dos restos dos que ficam pelo caminho. Assim, a menina desenvolve o gosto pela carnehumana e passa a representar uma ameaça para os demais humanos. Este é um conto africano que fará

    o leitor se lembrar de muitas outras histórias ouvidas desde a infância, mas desta vez você terá a oportunidade deentrar em contato com um pouco do universo e do imaginário daquele continente. Além disso, o livro é belamente ilus-trado; oferece, desse modo, também a possibilidade de aproximação com a estética africana. (Neide A. de Almeida)

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    A oficina 1, Rituais de iniciação: o ouvir , proporcionou aos participantes a oportunida-de de ouvir histórias e iniciar uma reflexão a respeito da importância da narrativa oral napreservação da memória e na construção do imaginário e da identidade:

    - Contação de histórias, Oswaldo Faustino- Visita orientada ao acervo, Viviane Lima de Morais e Cristiane Bernardino Dias

    (Cristiane Moscou)- Palestra A palavra falada: o som e o sentido humanos, Luiz Carlos dos Santos- Roda de depoimentos: o contador de histórias de cada um de nós

    Oficina 1

    No seminário Histórias, memórias e identidades discutiu-se o papel e a importância dapreservação da tradição oral e da prática de ouvir, contar e ler histórias para a construçãodo imaginário e da identidade. A mesa foi integrada por Gilberto Pedroza, Oswaldo Faus-tino, Luiz Carlos dos Santos e Neide A. de Almeida.

    Na segunda oficina, Quem conta um conto..., foram abordados aspectos envolvidosnos processos de contar e ler histórias, com ênfase para a identificação de elementosuniversais e de singularidades em versões escritas de contos da tradição oral.

    - Visita orientada ao acervo, Viviane Lima de Morais e Cristiane Bernardino Dias(Cristiane Moscou)

    - Palestra Ler e ouvir: um exercício de pertencimento, Neide A. de Almeida- Roda: As histórias de cada um

    Oficina 2

    Seminário

    Roteiro

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    Créditos

    Curador

    Emanoel Araujo

    Concepção e Coordenação Editorial

    Ana Lucia Lopes

    Neide Aparecida de Almeida

    Editoria e Produção

    Neide Aparecida de Almeida

    Núcleo de Educação

    Coordenadora

    Ana Lucia Lopes

    Consultora em Arte Educação

    Maria da Betânia Galas

    Assistentes

    Neide Aparecida de Almeida

    Renata Felinto

    Educadores

    Alexandre Araújo Bispo

    Alexandre da Silva

    Claudia Teles dos Santos

    Cristiane Bernardino Dias

    Glaucea Helena de Britto

    Juliana Ribeiro da Silva

    Maria Aparecida Oliveira Lopes

    Maria das Graças Quaresma dos Santos

    Milton Silva dos Santos

    Renato Araújo da Silva

    Sarah Rute Barboza

    Solange Nascimento Ardila

    Vanicléia Silva Santos

    Viviane Lima de Morais

    Fotografia

    Núcleo de Educação

    Projeto Gráfico e Editoração EletrônicaVia Impressa Edições de Arte

    Pré-press e Impressão

    Garilli Gráfica e Editora

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       P  r  o   j  e   t  o   d  e   I  m  p   l  a  n   t  a  ç   ã  o   d  o   M  u  s  e  u   A   f  r  o   B  r  a  s   i   l

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