i
Natália Iorio
“O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia Pacificadora
no Rio de Janeiro”
Curso de Ciências Sociais Faculdade de Ciências Sociais
PUC-SP São Paulo, 2013
ii
NATÁLIA IORIO
O SILÊNCIO PACIFICADOR: A QUESTÃO DAS UNIDADES DE POLÍCIA
PACIFICADORA NO RIO DE JANEIRO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção de título de Bacharel em Ciências Sociais, sob a orientação da Profa. Doutora Matilde Maria Almeida Melo.
Curso de Ciências Sociais
Faculdade de Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo, 2013
iii
E do alto do morro
eu vejo a lua
e eu vejo o mar...
Ogum Iê, meu pai
Odoyá, minha mãe Yemanjá
iv
SUMÁRIO
Agradecimentos...................................................................................................i
Resumo ..............................................................................................................iii
Lista de figuras/tabelas/gráficos..........................................................................iv
Introdução .......................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 – Entre o “ser” e o “estar” na modernidade brasileira ........... 5
1.1 Dilemas e facetas da modernidade brasileira ............................................. 10
1.2 A forma do medo e da violência urbanas ................................................... 16
1.3 A urbanização brasileira: o caso do Rio de Janeiro e o surgimento da
Favela .............................................................................................................. 21
CAPÍTULO 2 – Do asfalto ao morro: nasce uma nova cidade .................... 40
2.1 As favelas cariocas e a segregação do espaço urbano: práticas e
(re)produções do medo .................................................................................... 44
2.2 A favela e a segurança pública: a polícia sobe o morro ............................. 50
2.3 As UPPs e a nova forma de policiamento .................................................. 58
CAPÍTULO III – O cotidiano silenciado: a UPP nas favelas Pavão-
Pavãozinho e Cantagalo ................................................................................ 69
3.1 Do que é feito Pavão-Pavãozinho e Cantagalo .......................................... 74
3.2 A UPP: antes e depois na voz dos moradores ........................................... 87
3.3 O ideal de paz e de guerra: percepções de um futuro na favela .............. 102
Considerações Finais .................................................................................. 111
Bibliografia .................................................................................................... 116
v
Anexo I .......................................................................................................... 120
Anexo II ......................................................................................................... 122
vi
Agradecimentos
Chegar ao término deste trabalho representa um marco na vida acadêmica e
determina um ponto de chegada e outro de partida no desenvolvimento dos
saberes das Ciências Sociais e nas temáticas referentes à segurança pública,
violência urbana e cidade.
Neste ínterim, primeiramente agradeço a amiga e orientadora, Matilde Maria
Almeida Melo, que de forma maternal soube com bondade e sinceridade,
colocar meus devaneios, ideias e desânimos nos eixos.
Quanto à minha família, agradeço aos meus pais e avós que mais tiveram de
lidar com meus silêncios e, por terem compreendido minha profunda empatia e
simpatia em desenvolver tal pesquisa.
Aos amigos que estiveram sempre me acompanhando nos sucessos e nas
falhas, assim como em minhas constantes mudanças de humor, Alan Favali
Paes, Alessandra Borges, Igor Andrade, Laís Dourado, Rodolfo Ceconi e, em
especial, a Ralph Sarlo quem primeiro me impacientou com ideias sobre o tal
Rio de Janeiro, o meu muito obrigada.
Aos que me ajudaram a entrar em contato com inúmeras pessoas para que os
processos de pesquisa, tais como as entrevistas, pudessem ser realizados,
agradeço ao amigo Hugo Albuquerque, a José Junior e João Vieira Madeira do
Grupo Cultural AfroReggae, ao Coronel da PMERJ Robson Rodrigues e ao
Deputado Estadual (PSOL-RJ) Marcelo Freixo. Ainda, um rápido
agradecimento a Gabriel Barbosa pelos passeios cariocas e pelos mapas da
cidade, e a Rose Dubois pela companhia e nova amizade que passei a ter no
Rio de Janeiro.
E finalmente, sem desmerecer o total crédito sem o qual este trabalho não teria
sentido, agradeço profundamente aos moradores das favelas Cantagalo e
Pavão-Pavãozinho que conversaram comigo e aceitaram de bom grado em
serem entrevistados, aos policiais da UPP que me orientaram quanto a
vii
localização de estabelecimentos na favela, à Associação de Moradores do
Cantagalo e à Instituição Solar Meninos de Luz por me indicar moradores que
pudessem participar das entrevistas.
viii
Resumo
O presente estudo pretende uma reflexão acerca das dinâmicas e
transformações das políticas públicas e de segurança adotadas nas favelas do
Rio de Janeiro, tendo como embasamento empírico o projeto e a instalação
das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Neste contexto, as favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo servem de
localidade para que se possa tecer um parâmetro das ações desta nova forma
de policiamento a partir de entrevistas feitas com moradores da região.
Neste campo, propõe-se, por fim, problematizar a questão da segregação
urbana e a emergência da violência e do medo nas grandes cidades, assim
como o aparato militar e repressivo do Estado procura resolver e mitigar as
problemáticas históricas, sociais e políticas da cultura e sociedade brasileiras.
ix
Lista de figuras/tabelas/gráficos
Gráfico I.1: Proporção do total da população favelada em cada ano - pag.36
Tabela III. 1: Total e percentual de domicílios particulares permanentes por tipo
de esgotamento sanitário - pag. 81
Foto 1: Painel pintado demonstrando o surgimento e a constituição da favela
exposta no Morro do Cantagalo - pag. 27
Foto 2: Favela da Rocinha - pag. 35
Foto 3: Vista do Morro Santa Marta - pag. 38
Foto 4: Representação do malandro carioca e também de Zé Pilintra - pag. 54
Foto 5: Morro Santa Marta, vista da laje Michael Jackson, e região do “Cantão”
- pag. 59
Foto 6: Vista da favela Cantagalo da Rua Raul Pompéia em Copacabana, e
ladeira de acesso pela Rua Sá Ferreira - pag. 70
Foto 7: Jogo de futebol na quadra do Pavão-Pavãozinho - pag. 71
Foto 8: Criança se esconde atrás de poste de luz na escadaria do Cantagalo, e
vista da praia de Copacabana do topo do morro do Pavão-Pavãozinho - pag.73
Foto 9: Crianças jogam bola na região do Cantagalo, onde as casas são feitas
de barro e madeira - pag. 76
Foto 10: Prédio do Criança Esperança, e parte do morro Pavão-Pavãozinho
visto do Cantagalo - pag. 79
Foto 11: Lixo aglomerado ao lado da quadra de esportes do Cantagalo, e
caçamba entulhada de sacolas plásticas - pag. 80
Foto 12: construções do PAC: conjunto de apartamentos e quadra de esportes
- pag. 82
Foto 13: Visão superior da Pousada Favela Cantagalo e, pintura indicando a
direção do Hostel Vizu Du Galo - pag. 83
Foto 14: Moradora D. com seus cinco cães em seu hostel, e vista da praia de
uma de suas janelas - pag. 84
Foto 15: Elevador com acesso à favela pela Praça General Osório, e moradora
A.P. ao lado de sua barraca de frutas - pag. 86
Foto 16: Ladeira de acesso ao Cantagalo com o início dos estabelecimentos
comerciais, e venda de televisores usados - pag.86
Foto 17: Prédio da base da UPP Pavão-Pavãozinho/Cantagalo - pag.88
x
Foto 18: Área territorial de abrangência da UPP Pavão-Pavãozinho/Cantagalo
- pag.88
Foto 19: Escada onde se vê pintadas as palavras “CV” de Comando Vermelho
– pag. 90
Foto 20: Pai e filho caminham próximos a base da UPP, e rapazes de
cumprimentam em viela do Cantagalo – pag.95
Foto 21: Parte da fachada de casa que fica na passagem que leva até o
Elevador, e bandeirinhas de Festa Junina enfeitando o Cantagalo - pag.97
Foto 22: Vista do Pavão-Pavãozinho de dentro da base da UPP - pag.100
Foto 23: Morador N. improvisa brinquedos em escadaria perto de sua casa, e
garoto empina pipa em cima de uma laje - pag.102
Foto 24:Poste na ladeira de acesso ao Cantagalo, e fachada de casa no
Pavão-Pavãozinho – pag.104
Foto 25: Varal estendido na região do Caranguejo – pag.105
Foto 26: Desenho das diversas regiões abrangidas pelo território da UPP –
pag.107
Foto 27: Pipa presa ao fio de eletricidade no Cantagalo – pag.108
Foto 28: Vista do Cantagalo onde a favela se insere ao bairro de Ipanema com
os prédios ao fundo – pag.110
11
Introdução
“Cidade maravilha
purgatório da beleza
e do caos.”
(“Rio 40 Graus” – Fernanda Abreu, 2006)
Pacificando o não apaziguado
O presente estudo se iniciou em 2012 quando, de antemão, foi me
perguntando sobre qual assunto mais interessava para desenvolvimento do
Trabalho de Conclusão de Curso, como exigência parcial para obter o título de
Bacharel em Ciências Sociais. Desde, então, sem muito saber onde pisava e
por onde andava, dois personagens despontaram com grande facilidade
advindos de minha curiosidade e empatia em estudá-los: a polícia e a favela.
Originalmente, esta pesquisa tinha como escopo desenvolver uma reflexão
acerca das representações do medo e da violência na cidade de Santo André,
região do ABC Paulista. Entretanto, com o tempo e, sem de fato começar a
pesquisa, esta foi abandonada. São Paulo não se encaixava em minhas
inquietudes e angústias enquanto pesquisadora e estudiosa.
O Rio de Janeiro despontou de modo fácil, cidade que sempre pontuou o
interesse tanto acadêmico quanto pessoal, fez-me com que as Unidades de
Polícia Pacificadora surgissem como temática e problemática de forma
espontânea e certeira.
Quase como que de um dia para outro, uma diferente proposta de pesquisa
surgira, com o objetivo de compreender as dinâmicas e as transformações nas
políticas públicas e nas políticas de segurança adotadas nas favelas, tendo
como recorte empírico, o projeto e a instalação das UPPs.
As Unidades de Polícia Pacificadora enquanto programa de uma nova forma de
policiamento, envolvendo ideais de polícia comunitária, de “pacificação” e de
12
retomada do território, antes comandado por traficantes pelo Estado, faziam-
me cheia de dúvidas e questões. O que são as UPPs? Quais suas estratégias
e modos de agir que faz dessas Unidades uma forma de policiamento diverso?
Quem são esses policiais? Por que a instalação da Polícia Pacificadora dá-se,
apenas, nas áreas de favelas? Quais as transformações e mudanças na vida
cotidiana e estrutural de quem vive na favela? Quais os discursos que pontuam
a ação das UPPs? Na opinião dos moradores, como é viver na favela antes e
depois da vinda da UPP? O tráfico acabou? A favela está “pacificada”?
Dentro deste ponto de partida, a pesquisa fundamentou-se, tendo como
cenário as favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho no Rio de Janeiro. Inserido
neste ambiente, o intuito é compreender como a polícia e as medidas
governamentais incutidas em políticas públicas tratam as pessoas que moram
nas favelas, o motivo pelo qual há policiamentos diversos numa mesma cidade
e, como a UPP inaugura – ou não – um novo modelo que pode vir a se tornar
uma nova política de segurança pública.
Processos de pesquisa
A escolha das favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, deveu-se a uma
pesquisa de Iniciação Científica sobre os filmes Tropa de Elite 1 e 21, em que
teve-se como intuito a realização de entrevistas com moradores de favelas do
Rio de Janeiro e de São Paulo. Partindo daí, contei com a ajuda do Grupo
Cultural AfroReggae para meu primeiro contato com moradores do Cantagalo
que trabalham no núcleo do Grupo, nesta mesma favela. Como para a UPP, as
favelas são aglomeradas em conjuntos, Pavão-Pavãozinho como favela
fronteiriça ao Cantagalo, se juntou a esta, também, como local de pesquisa.
Ao total, foram três visitas às favelas, perfazendo seis dias2 em que caminhei
pelas localidades realizando registros fotográficos e entrevistas com
1 IORIO, Natalia. Os filmes Tropa de Elite 1 e 2: impactos nas formas de pensamento de seu
público frente à realidade brasileira. São Paulo: PUC-SP; PIBIC-CEPE, 2013. (Relatório de
pesquisa).
2 Os dias em que ocorreram as visitas às favelas foram: 13/05/2013; 08 e 09/06/2013 e 18, 19
e 20/07/2013.
13
moradores. De modo geral, foram feitas onze entrevistas com moradores,
entretanto, destas, somente oito foram utilizadas nas análises desse trabalho3.
Além disso, entrevistas com o Coronel da PMERJ Robson Rodrigues (ex-
comandante das UPPs) e com o Deputado Estadual Marcelo Freixo (PSOL-
RJ), também foram feitas, assim como a participação em uma palestra sobre
os processos de pacificação no Cantagalo e Pavão-Pavãozinho discutidos
pelos comandantes desta UPP em questão, fazem parte do conjunto de dados
refletidos neste trabalho.
Como premissa metodológica para a obtenção das entrevistas com os
moradores, adotou-se a técnica “bola de neve” (snowball), que consiste numa
amostra não probabilística, em que os entrevistados iniciais, que aceitaram
responder as questões, indicam novas participantes e, assim sucessivamente,
até a pesquisa atingir um “ponto de saturação”, ou seja, a repetição de falas e
conteúdos já obtidos em entrevistas anteriores.
As questões das entrevistas fazem parte de um roteiro4 semiestruturado em
que se dialoga sobre o antes e depois no cotidiano dos moradores com a
instalação da UPP na favela. Temáticas como trabalho, família, saúde, lazer,
religião, convívio com vizinhos, relação com o tráfico de drogas,
relacionamento com a polícia, ausência e/ou existência de serviços públicos,
além, de perguntas sobre os termos “pacificação” e “polícia de proximidade”
perfazem o conteúdo do roteiro.
Sobre a estrutura dos capítulos: o primeiro procura tratar da noção de
modernidade no mundo e como este modelo social e político foi adotado na
sociedade brasileira, suas contradições e incompletudes. Como esta
modernidade e seu desenvolvimento, juntamente, ao crescimento urbano,
alavancaram medos e violências; e ainda, como o crescimento urbano e o
surgimento da favela no Rio de Janeiro angariaram formas e projetos de
3 Encontram-se em ANEXOS II.
4 Encontra-se em ANEXO I.
14
políticas públicas que tinham como pressuposto a eliminação e/ou “cura” dos
favelados.
No capítulo 2, a pauta é a forma com que certos espaços da cidade, àqueles
em que abriga grandes quantidades de trabalhadores em sua maioria pobres,
são tratados pelos governos e como a polícia é usada como força repressiva
para vigiar e ordenar esta parcela populacional. Nesta parte, ainda, são
esmiuçadas a forma com que o medo e a violência geram espaços segregados
e segregacionistas numa mesma cidade e, por fim, uma análise do projeto e
dos processos de instalação de uma UPP.
Por último, são analisadas as entrevistas com os moradores do Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo, percorrendo as principais questões apontadas por eles
nas entrevistas, juntamente às observações da pesquisadora em campo, numa
tentativa de refletir as questões iniciais que baseiam este trabalho com as
premissas teóricas fundamentadas aqui.
Além das visitas, fotos e entrevistas realizadas, a pesquisa contou com um
estudo bibliográfico acerca dos temas propostos, assim como a análise de
dados numéricos e censitários.
15
CAPÍTULO 1: Entre o “ser” e o “estar” na modernidade brasileira
“É lícito fugir como um ladrão, quando não há qualquer esperança de graça”
(“Macbeth”- William Shakespeare,1981).
A sociedade brasileira se fundou e se firmou meio a múltiplas colagens de
povos, etnias, culturas e línguas. Juntou o índio, o negro e o português num
mesmo cenário, recriou formas de produção conforme os desenhos naturais da
terra-Brasil, reagrupou em infinitas roupagens o estilo de se viver num clima
tropical, meio ao trabalho escravo africano, a sabedoria própria cabocla e a
cordialidade luso-brasileira.
Brasileiros e brasileiras nasceram deste caldo de diversidade e
heterogeneidade e, tempos depois, na mesma chave de entendimento, viria a
se plantar em solo tupiniquim, uma modernidade cheia de hibridismos e
colagens.
Por modernidade temos as rápidas transformações da vida social e política de
uma sociedade, o desenvolvimento tecnológico e a industrialização, os
superpovoamentos das cidades, as migrações, a comunicação em massa e o
mercado capitalista de produção. Meio ao turbilhão moderno, a sociedade
brasileira se pauta na inconclusividade.
O inconcluso está, por assim dizer, indefinido no híbrido, no difuso e no medo.
A sensação e vivência própria de estar num espaço moderno e modernizado,
porém sem as estruturas e o estilo de ser de uma modernidade de fato. O
Brasil, e suas múltiplas facetas, é um ator sem persona, um teatro sem palco.
Nestes meandros de parecer ser sem o ser de fato, crescem as grandes
cidades brasileiras, impulsionadas pelo comércio e pelas exportações, onde
rapidamente, a explosão demográfica e as migrações se fazem parecer na
escassez de moradias e de infraestrutura.
16
Segundo Max Weber (apud. HOLANDA, 1995: 95), as cidades são
representações de locais de poder, espaços para a criação de órgãos de
poder. No Brasil com a sua colonização portuguesa, as cidades tinham como
característica a exploração comercial de onde provinha a maior parcela do
poder nacional; sendo tais cidades, em sua maioria no litoral, para escoação da
produção e livre entrada de imigrantes para o trabalho.
Pela voz de Sérgio Buarque de Holanda (1995: 109), a fantasia portuguesa e a
sua liberalidade, produziram cidades sem muito planejamento, que dispensava
uma racionalidade de organização e que se transfiguravam em casas, vilas e
ruas feitas conforme o capricho de seu construtor. Os caminhos e as vielas se
compunham de linhas sinuosas e desajustadas, onde a invenção e imitação
vinham imbricadas de uma intenção realística e autêntica.
A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental,
não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na
linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma providência,
sempre esse significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” (...).
(HOLANDA, 1995: 110)
Esse “desleixo” que descreve Holanda, menos que um adjetivo pejorativo, veio
a se constituir como característica própria das construções e jeitos de se morar
nessas cidades opulentas e em rápido crescimento. Um jeito brasileiro de
construir, de se moldar às circunstancias, de fazer com o que se tem à mão, de
erigir aonde pode e da melhor forma que puder.
O Rio de Janeiro, uma das cidades talássicas que após a abolição da
escravatura e com o desenvolvimento comercial inchou os espaços urbanos de
migrantes, ex-escravos e caboclos, veio a se equilibrar entre cortiços e
casebres de trabalhadores pobres que não tinham onde habitar.
Como muitas dessas moradias se instalavam no centro da cidade, aos olhos da
burguesia que muito se incomodavam com toda aquela gente que se
avolumava perto de seus sobrados e casarões, governantes, assim como a
17
Prefeitura fluminense, projetaram formas de realocar, expulsar e extirpar essa
população trabalhadora.
Com a derrubada dos cortiços pela Reforma do prefeito Pereira Passos (1903 a
1906), os trabalhadores, assim como os desempregados, subiram os morros
cariocas e vieram a se fixar nas encostas litorâneas, autoconstruindo casas
com materiais improvisados. As favelas, como foram chamadas tais habitações
se acotovelaram em muitos bairros e morros do Rio de Janeiro e, mais uma
vez, foi considerada a peste da higiene e da segurança.
Não somente o Rio de Janeiro, mas a maioria dos grandes centros urbanos
possuiu – e possuem - planos e projetos que prefeitos, médicos e engenheiros
construíram para derrubada, extinção e remanejamento das favelas e seus
moradores. Todos eles continham a fagulha do medo e do preconceito étnico,
cultural e social acerca dessas populações e, em muitos casos, a medida
adotada para conter e vigiar tais pessoas, era pelo porrete da força policial.
Neste amplo panorama acerca das medidas governamentais adotadas nas
favelas e nos bairros pobres das grandes cidades, tendo como destaque a
cidade do Rio de Janeiro, o importante é destacar como essas populações
pobres e estigmatizadas pela sua condição socioeconômica são fontes de
estereótipos e mitos condizentes com o seu modo de viver e se instalar nas
cidades.
Janice Perlman, em sua obra, “O Mito da Marginalidade” (1977), afirma existir
certos discursos ligados aos estereótipos de certas faixas populacionais que
influenciam e legitimam uma série de medidas e políticas numa sociedade. Em
seus estudos sobre os moradores de favelas no Rio de Janeiro, Perlman,
analisou três tipos de formas como são vistas as favelas e, que denominam o
que a autora chama de “mito da marginalidade”.
A primeira dessas formas é aquela em que as favelas são vistas como
aglomerações patológicas onde as casas se formam de maneira
desorganizada e são povoadas de pessoas perigosas e imorais. Esses
18
elementos chamados de “marginais” vivem em condições subumanas e são
tratados como os “parasitas” da economia e da política da sociedade. A política
que “resolveria” esta “patologia social” seria a erradicação das favelas.
No Rio de Janeiro, esta forma de enxergar os favelados e suas moradas,
estabeleceu diversos pontos de convergência com as ideias e políticas médico-
higienista, que tomaram conta das mentes e ideologias das décadas de 1920 e
1930 com as medidas de Oswaldo Cruz, Pereira Passos e Agache.
A segunda forma de se tratar as favelas condiz com aquela em que se admite
que tais localidades estejam em busca de superação e para isso estão em
estado de transição para vida urbana de fato. Essa categoria diz serem, as
populações faveladas dinâmicas e ativas, com disposição ao trabalho, porém
sem oportunidades para ascender política e economicamente suas vidas; ainda
mais, enxergam esses moradores como componentes fundamentais de uma
identidade brasileira, com senso de ajuda mútua e comunitária. A solução para
essa transição seriam políticas voltadas para a legalização e urbanização das
favelas com a regularização da posse da terra. Assim, ocorreria a evolução
natural deste modo de vida à integração com a cidade.
Este modelo condiz com a visão de engenheiros e urbanistas, que ao longo de
toda a história carioca, construíram núcleos habitacionais, como as Vilas
Kennedy e os Parques Proletários. Tal visão incorre na dicotomia existente
entre favela e cidade para justificar que os espaços favelados não são áreas
pertencentes à cidade moderna e desenvolvida, mas sim uma enfermidade
desta, que iria, com políticas públicas assistencialistas, garantir esta evolução
rumo à civilidade e moralidade.
A última forma de encarar as favelas refere-se em enxergar a existência da
favela como calamidade inevitável do crescimento urbano. Daqui saem as
medidas assistencialistas e paternalistas da política, como foi o caso da Era
Vargas, que para a favela se recuperar de sua própria condição, seus
habitantes deveriam ser ensinados e catequizados acerca das formas de vida
moral, civilizada e moderna do asfalto.
19
Perlman resgata esses três tipos com que políticos, sociólogos, antropólogos,
urbanistas, médicos e urbanistas desenvolveram projetos para redesenhar o
espaço urbano que se tomava de favelas e por seus habitantes. Grande parte –
se não todas – as políticas públicas de cunho reformista ou de eliminação de
tais moradias que se seguiram ao longo das décadas no Rio de Janeiro, foram
formas de legitimar ou de expressar tais pensamentos que permeavam as
vistas e posturas da elite e de seus intelectuais em cada dada época.
O “mito da marginalidade”, portanto, reflete acerca da criação de estereótipos
que os favelados passam a ter, seja pelo modo como moram, ou seja, pelo
meio de vida que levam. Tais pressupostos abriram uma fenda na cidadania
urbana, estigmatizando populações, denominando-as como marginais e
perigosas, rechaçando o real problema e culpando esses moradores por
viverem onde vivem e por terem, ou não, o trabalham e/ou ocupação que tem.
Amiúde o caso carioca, o que se tem nos centros urbanos, é a tentativa de
organizar faixas populacionais de acordo com um padrão estético e moderno
que a elite possa aceitar. Esse padrão, normalmente, é acompanhado de
premissas preconceituosas e repressivas, que veem na heterogeneidade
cultural e étnica um flagelo e um risco para a segurança pública e pessoal.
A violência urbana é tida como própria expressão da modernidade em suas
falhas e vãos no aperfeiçoamento do sistema de produção capitalista e do
Estado democrático de direito. Como essa expressão é estruturada no espaço
social urbano, depende de cada especificidade regional e local, sendo o Brasil,
um contexto multiforme e multicultural, uma alavanca para o devaneio entre o
tradicional e o moderno, o rural e o urbano, a favela e o asfalto.
Neste capítulo, é pretendida uma reflexão acerca dos entraves para uma
modernidade completa na sociedade brasileira, a urbanização nos grandes
centros brasileiros e o aparecimento da favela nessas áreas.
No item 1.1 é realizada uma análise sobre os elementos sociais e políticos
pertencentes a uma sociedade moderna, e como tais características romperam
20
na sociedade brasileira, suas incompletudes e contradições, sob a égide do
tradicional e do conservador.
No item 1.2, a tentativa é relacionar as características de uma sociedade
moderna com a emergência da violência urbana e da constante sensação de
medo e insegurança nas populações da cidade. Como esses sentimentos
geram novas formas de comportamento e de segregação socioespacial.
No último item, a temática é o surgimento das grandes cidades no Brasil, com
destaque para o caso do Rio de Janeiro, assim como o aparecimento das
favelas e de seus moradores. Aqui, trata-se de buscar compreender como a
prefeitura e os governantes procuraram meios de esconder e eliminar as
moradias de trabalhadores pobres, como reflexo de um medo segregacionista
e racista da elite em relação a estas habitações.
1.1 Dilemas e facetas da modernidade brasileira
De uma breve olhada para a sociedade brasileira atual não é difícil nos
depararmos com incongruências e dificuldades no retrato de seu entendimento.
Se desse olhar focalizarmos num recorte de nossa vivência contemporânea,
apenas teremos um registro borrado e transpassado por cores, formas,
distorções, ângulos e velocidades diversas. Como numa fotografia tirada de um
susto, assim é a imagem que adquirimos de nossa própria realidade quando
defrontamos sentimento e razão numa única chave de entendimento e
objetividade.
A modernidade é um termo europeu, surgido de um projeto de sociedade e de
humanidade em que tinha por questão a individualidade humana e o amplo
desenvolvimento do sistema capitalista de reprodução econômica, além das
liberdades coletivas e individuais nos âmbitos político, sociais e culturais.
É próprio do conceito de modernidade estar vinculado ao de progresso,
entretanto, empiricamente, a modernidade somente se funda sob as bases do
desenvolvimento econômico capitalista que, por si só, carrega consigo crises e
complexidades próprias do sistema.
21
Independente da posição geográfica em que se deu a transformação cultural e
política dessa sociedade, o tempo moderno condiz com um novo tipo de
sistema social, tendo como características a sociedade da informação e a
sociedade do consumo.
Embevecidas pelo poderio econômico capitalista, essas sociedades se
regulamentam pela simultaneidade de informação e comunicação, pelo
encurtamento de distâncias físicas transformadas em realidades virtuais –
mesmo que não unicamente – e que transgridem o espaço e o tempo, pela
heterogeneidade cultural, pela descartabilidade e pela fragmentação de
significações e subjetividades e, também, pelo rápido processo de produção,
reprodução e reinvenção de tais elementos da cotidianidade do indivíduo
moderno.
Inauguração, também, da modernidade é o aparecimento do sujeito enquanto
ser que modifica e interage com o meio onde vive, transformando-o e
modificando-o no decorrer da história. Nasce o homem – e a mulher –
modernos, seres imbuídos pela constante transformação do espaço social
numa permanente desintegração e mudança desse espaço físico e subjetivo,
em que a individualidade é a recorrência máxima que caracteriza os mesmos.
O que rondam as mentes e os corpos desses novos atores e atrizes sociais do
mundo moderno é uma ininterrupta contradição, um enorme vazio e ausência
de valores meio a uma abundância de possibilidades (BERMAN, 2007: 32).
No meio desse turbilhão de oportunidades e anseios, o próprio mundo vinha
adquirindo novas feições em seu seio tecnológico e econômico, para listar
algumas: a descoberta no âmbito das ciências físicas de que a Terra não é o
centro do universo; o conhecimento científico se transforma em tecnologia; as
constantes industrializações da produção; o crescimento urbano acelerado;
explosões demográficas desenfreadas; migrações do meio rural para o urbano;
a burocratização dos Estados-nação; o desenvolvimento de meios de
comunicação em massa; os movimentos sociais e a expansão e intensificação
do mercado capitalista.
22
Meio a esse borbulhante mundo moderno que surgia (quase) de um dia para
outro, fez emergir, da mesma forma, muitas descontinuidades e interrupções
nas mentalidades e modos de ser e viver dos sujeitos modernos.
Verdade, também, que uma das marcas recorrentes do termo modernidade
reside em ser um espectro descontínuo; um fantasma sem forma sólida, que
ronda as ruas das grandes cidades e as mentalidades dessas novas
sociedades sem deixar marcas e delimitações. Move-se como neblina que logo
desaparece sem enredo ou roteiro a seguir. Tais descontinuidades e fluidez
são modos de vida desvinculados dos tipos tradicionais da ordem social
(GIDDENS, 1991: 13).
O Estado de direito e a democracia, assim como o liberalismo econômico, são
membros desse novo corpo social e cultural que se espalhou pelo mundo, mas
que, como todo modelo, apenas serviu de caminho tortuoso para novas
remodelações de vivências e estilos.
Trata-se de um costume recorrente das discussões teóricas revelarem certos
meandros da estrutura social sem que se consiga dar conta de toda a realidade
ou de suas múltiplas facetas. Com a definição do conceito de modernidade,
recorremos a mesma incompletude, sendo que desta, somente enxergamos
uma de suas faces. O outro lado deste rosto, é um misto de complexidade e
contradição, em que elementos que deveriam estar superados e rompidos são
incorporados e arrastados sob novas formas e arcabouços políticos e sociais.
Modernidade, portanto, é mais uma aglutinação e justaposição de elementos
tradicionais e conservadores com àqueles modernizantes: Estado democrático
de direito, urbanização, soberania das leis sobre o critério pessoal e emocional
do indivíduo, delimitação do público e do privado, sistema capitalista de
(re)produção econômica, relações de trabalho assalariado, entre outros.
Tais elementos que caracterizam muito do que se tem por moderno, em suma,
estão misturados numa relação de oposição, mas que se configura em uma
imagem de (des)harmonia e (des)compasso. Quer dizer, que as sociedades
modernas – e também as contemporâneas – levam consigo o fado de serem
perpassadas e permeadas por múltiplas influências e fundamentações
23
históricas, sociais, políticas e culturais de tempos diversos e, que mesmo nessa
contradição paradoxal, vestem e encarnam uma sociabilidade própria.
Deste caldeirão de misturas e incorporações, faz-se ver a foto da sociedade
moderna brasileira, que antes de ser foto, poderia ser mais uma miscelânea de
significados e trajetos, se não, trejeitos.
A modernidade no Brasil é moldada pela transitoriedade, num ritmo que clama
por um futuro que nunca se alcança e um presente que nunca se completa; um
movimento que não se integra num limite e nem se paralisa numa mediação
rumo a algo. É um constante devir de possibilidades de transformação humana
incapazes de (quase) se realizarem ou como descreve José de Souza Martins
(2012: 18), uma modernidade hesitante, sujeita a contradições e
incompletudes.
A modernidade, assim como a inerência do sistema capitalista de produção,
fundamenta um bloqueio às alternativas do possível para a realização do
indivíduo como ser social e político. Nas palavras de Martins, a modernidade,
“anuncia o possível, embora não o realize” (2012: 19).
Esse caldo de existência em que esse sujeito se encontra é o não encontro de
data e tempo, uma forma descolada em que o que se sente não é aquilo que
se configura no concreto; uma transmutação daquilo que decorre no tempo
cronológico e daquilo que ultrapassa o tempo do simbólico e do sentido. Este
sujeito moderno tem olhos sem alma, sentimento sem corpo e vontade sem
realização. De forma ideal, a modernidade para realizar-se enquanto tal,
deveria vir acompanhada de uma consciência crítica do moderno.
A modernidade só o é quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a
consciência critica do moderno; o moderno situado, objeto de consciência e
ponderação. A modernidade, nesse sentido, não se confunde com objetos e
signos do moderno, porque a eles não se restringe, nem se separa da
racionalidade que criou a ética da multiplicação do capital (...) (2012: 18).
Segundo, ainda o referido autor, no caso da sociedade brasileira, o moderno se
realiza enquanto forma sem conteúdo; é antes, uma modernidade aparente,
superficial. A crítica da qual conseguimos proferir em relação ao moderno, se
constitui como uma carcaça oca em que nenhum conteúdo de intenção e
24
transformação social e política se aglutinam nas consciências coletivas e
individuais. O tradicionalismo gruda como cutícula em unha nos modos de ser
e pensar do sujeito-Brasil e, por conseguinte, tem sido lento e tardio no
reconhecimento de igualdade social de seus cidadãos.
Há o costume de parecer ser e não o ser de fato. Um conforto em ser figurino
de um amplo desenvolvimento de instituições democráticas de Estado, de
politicas que são pautadas na distribuição igualitária de renda e boas condições
de vida e de seu bem estar político e econômico, sem que tais mecanismos
sejam realmente alicerce e acontecimento dessa vida social.
Vive-se hoje no campo próprio dos reflexos e das projeções. Vivemos numa
sociedade globalizada, altamente informacional e estruturada no decoro da
imagem. Essa disseminação imagética de um mundo imaginário, mas que
parece real torna-se ponto culminante de discursos, governos e ideologias.
Além do que, o imaginário justapõe o que, na experiência cotidiana, está
dissociado e em constante conflito e contradição.
Em outras palavras, o que temos no Brasil é uma sociedade que
aparentemente e de modo subcutâneo, é desenvolvida tecnologicamente e
economicamente, levando em conta os parâmetros capitalistas, mas que em
seu seio, é incompleta e contraditória, pois suas instituições e estruturas
elementares, como família, religião e Estado estão embrenhadas pelo discurso
e pela prática tradicionalista e conservadora.
Os pés que calçam esse corpo desconexo e contraditório andam pelas grandes
metrópoles vestindo calos feitos pelo rápido desenvolvimento urbano,
acentuado crescimento populacional e de uma progressiva passagem de um
estilo de vida rural para um urbano. O surgimento de polos industriais e
urbanos, assim como os comerciais, foi uma etapa da modernidade em que
esperançava-se por um projeto de vida sem medos e incertezas.
Com o rápido crescimento industrial e vertiginoso crescimento das populações
nas áreas urbanas, aliados a um mal gerenciamento da infraestrutura para
acomodar esse contingente populacional e a falha estatal em garantir serviços
públicos e sociais adequados à essas pessoas, o projeto de modernidade caiu
25
por terra levando parte da segurança e da felicidade que fazia parte do
imaginário dessa nova sociedade.
No Brasil de hoje, o que se tem é o que se vê; melhor dizendo, quase tudo
aquilo que se pensa ter é aquilo que se pensa enxergar. Nos grandes centros
urbanos e, até mesmo nas áreas rurais, é comum nos deparamos com meio
tecnológicos avançados de comunicação como a Internet ou mesmo a
presença de antenas de TV a cabo em favelas e áreas pobres nas cidades. A
imagem e a tecnologia, assim como a globalização de informações e
comunicações, tecem a teia principal da modernidade em sua disposição
imagética.
Em outras palavras, a nossa sociedade possui a imagem, o arquétipo, a
roupagem e o reflexo daquilo que é moderno, ou seja, grandes edifícios, alta
tecnologia, eficientes produções do setor mercadológico, um Estado
burocrático, mas que, entretanto, na sua funcionalidade, todas essas carcaças
são vazias e fragmentadas.
Tudo o que se tem por moderno não passa de uma teatralização do cotidiano,
em que os figurinos e a decoração dessa sociedade, em seu conteúdo
valorativo, fundamentam-se numa sociedade tradicional, permeada pelo
conservadorismo político, pelo preconceito étnico e racial e por formas de
produção econômicas pré-capitalistas (como o trabalho escravo e infantil, ainda
encontrado em toda a expansão geográfica brasileira).
Antes, é uma supervalorização das formas e das exterioridades, que o
brasileiro e a brasileira dão aos adornos e enfeites, sem se preocupar com seu
conteúdo e significado real daquilo que usa como signo. Melhor dizendo, essa
importância ao valor vem de forma lenta e dissimulada, um jeito de ser
recalcado pelos tradicionalismos e recorrências de um tempo histórico e
político que já acabou no tempo do calendário, mas que continua cândido e
firme nas (re)produções da vida social brasileira.
Na voz de Martins,
26
[a]ntes, é a tradição que agrega fragmentos do moderno sem agregar um
modo moderno de ser consciência do todo e consciência, por isso,
moderna, (...). (2012: 44).
Assim como o personagem que persegue durante toda a madrugada um
desconhecido pelas ruas de Londres em “O homem da multidão” de Edgar
Allan Poe, da mesma forma se escancara a sociedade brasileira em sua busca
por um progresso premeditado pela ordem, numa perseguição daquilo que
pretender ser, mas que se recusa ao alcance, premeditadamente, pelo medo
de se ver adiante, de ser o que está do outro lado.
A modernidade brasileira é o visto e não realizado, o medo enraizado no
passado que não permite a vontade de um futuro ir avante e concretizar-se.
Tais limites e incertezas de continuar rumo ao progresso e no desenvolvimento
de uma sociedade moderna por si só, conflitamos as nós mesmos com as
incompletudes nas leis e normas, nos abusos e explorações no trabalho, nas
ausências de direitos civis e sociais, nas misérias e desigualdades sociais, nos
hibridismos e múltiplas formas de preconceitos e racismos, além das
diversificadas formas de violência e reproduções do medo que se faz ver nos
confins brasileiros.
Por fim,
[é] na travessia, na passagem, no inacabado e inconcluso, no
permanentemente incompleto, no atravessar sem chegar, que está presente
o nosso modo de ser – nos perigos do indefinido e da limiaridade, por isso
viver é perigoso. Esta é uma sociedade faturada entre o fausto e o nefasto,
que se necessitam dialeticamente, o rio que divide nossa alma e nossa
consciência, nossa compreensão sempre insuficiente do que somos e do
que não somos e queremos ser. (MARTINS, 2012: 22).
1.2 A forma do medo e da violência urbanas
O projeto de modernidade que se esperava desfez-se meio a incompletudes e
contradições; cimentou consigo mesma um misto de aceleração desenfreada
de projetos urbanísticos em consonância com um aumento dos problemas
27
relacionados à habitação, segurança e distribuição de renda e direitos sociais
de forma igualitária.
Das sensações de incertezas num amplo sentimento de ilusão e
incongruências, o projeto de modernidade – em sua teoria - falhou, e veio
acompanhado de novos elementos discordantes da vida cotidiana do sujeito
moderno. No Brasil, assim como em outras nações, uma nova caricatura
comportamental emergiria como principal características dos grandes centros
urbanos.
A modernidade como um lugar sem escuridão e dúvidas (BAUMAN, 2008: 9),
recria-se em oposição, e desse ambiente movediço entre a faltante e o incerto
sobre projeções futuras, rompem em dois personagens: a cidade e o medo.
O medo e a insegurança são uma das pedras no meio do caminho de qualquer
indivíduo que testemunhe e viva o cotidiano numa metrópole. O medo de morte
violenta e da criminalidade (WACQUANT, 1995: 106 e SOUZA, 2008: 25),
exacerbados pela imprensa – em certa e exagerada medida – são um dos
pontos culminantes que moldam uma cultura do medo.
É certo que o medo sempre fez parte das vielas e ruas das cidades; o risco e a
sensação de vulnerabilidade são recorrências da vida do sujeito urbano, desde
as cidades romanas e gregas antigas. Medos estes que vão desde catástrofes
naturais e biológicas à daqueles que colocam em risco a integridade física e
emocional da pessoa (BECK, 2010: 28-33 e BAUMAN, 2008: 9). O medo na
voz de Bauman,
[é] uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita como
sentimento de ser suscetível ao perigo; uma sensação de insegurança e
vulnerabilidade. (2008, p. 9).
Além da recorrente sensação de instabilidade em relação ao futuro e suas
concretizações, o sujeito moderno se encara frente a outros tipos de medo que
em, menor ou maior recorrência, estão estritamente ligados ao contexto
28
sociopolítico de uma dada sociedade. Bauman (2008: 30), lista além dos
medos descritos acima, àquele concernente ao da exclusão, ou seja, o receio
de se ver excluído do modo de produção capitalista e da reprodução e do
consumo de seus bem materiais e simbólicos.
A ordem econômica do capitalismo se pondera sobre a balança em que
relaciona pesos e medidas de diferentes elementos; a vida moderna e, também
a contemporânea, se equilibra entre a ponderação da escassez e do risco;
entre a concentração (desigual) da riqueza e um amplo desenvolvimento
técnico-científico e urbano-industrial; entre a fome e o medo.
No Brasil e sua longa história de escravidão e servidão (MARTINS, 2011: 49),
os efeitos colaterais de uma modernidade incompleta – para utilizar o termo do
referido autor -, ressurge sobre o paradigma de um equilíbrio desarmônico,
colando em um só corpo social, os benefícios econômicos capitalistas e os
atrasos sociais e culturais que, por sua vez, reverberam num impedimento ao
desenvolvimento total da esfera econômica.
Nessa desarmonia conceitual e cotidiana brasileira, medos, inseguranças,
riscos e vulnerabilidades cresceram e destoaram-se junto aos homens e
mulheres de nossa pátria, reforçando a característica principal da falha e/ou
consequência moderna, o da violência urbana.
São os crimes, homicídios, assaltos, estupros, lesão à propriedade e todos os
outros medos decorrentes das ameaças constantes dessas práticas que dão
alma à personalidade fugidia, esquiva e reativamente violenta do sujeito
contemporâneo.
Viver nas grandes (e pequenas) cidades, atualmente, é sentir, mesmo que de
forma inconsciente, a vulnerabilidade do risco e da impotência de se proteger
frente à ameaça real e em potência de algo e/ou alguém. O medo e a
insegurança, portanto, são características e sentimentos próprios das cidades.
Segundo, Marcelo Lopes de Souza, em linhas gerais, tais cidades podem ser
interpretadas como Fobópoles, ou seja,
29
[...] cidades nas quais o medo e a percepção do crescente risco, do ângulo
da segurança pública, assumem uma posição cada vez mais proeminente
nas conversas, nos noticiários da grande imprensa etc., o que se relaciona,
complexamente, com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou
repressor, levados a efeito pelo Estado ou pela sociedade civil.(2008: 9).
Assim como o referido autor (2008: 9) aglutina as palavras phóbos (medo) e
pólis (cidade), cunhando o referido termo, Engels (2008), diz serem as grandes
cidades um ponto de convergência de desagregação da humanidade,
atomização do mundo e valorização dos interesses e objetivos particulares,
derivando daí, uma “guerra social de todos contra todos”5.
Souza, ainda, utilizando-se do termo conceituado por Hans Magnus
Enzensberger6, diz serem as cidades acometidas por uma “guerra civil
molecular”, conforme suas palavras, uma guerra
que mescla elementos de criminalidade menos ou mais organizada e
criminalidade ordinária não-organizada (...), respostas menos ou mais
preventivas, menos ou mais repressivas por parte da polícia (...) e reações
autodefensivas por parte da classe média e das elites (...) – reações essas
que agravarão a “guerra civil molecular”, ao invés de detê-la ou estancá-la -,
apresenta pontos de contato com uma guerra civil, visto ser, também, uma
situação de violência difusa, ações e reações de ressentimento, ódio e
violência de cidadão contra cidadão em uma multiplicidade de situações no
interior de uma cidade e de um país. (2008: 36).
Este medo, ainda, vem acompanhado da relação entre a escassez e o risco,
que a estrutura capitalista econômica incutiu nas mentalidades e nas formas de
agir do sujeito contemporâneo. No Brasil, essa combinação – perversa –
adquiriu inúmeras formas de miséria e pobreza, descambando no aumento das
taxas de criminalidade e de homicídio dos centros urbanos nacionais.
5 Frase designada por Thomas Hobbes em “O Leviatã”.
6 Poeta e ensaísta alemão.
30
Segundo Souza (2008: 31), o que temos é uma violência de cidadão contra
cidadão que não se respalda em ideologias políticas e, sim, na busca pela
sobrevivência material e simbólica dentro do sistema capitalista. Em outras
palavras, o “delinquente”, o “marginal” e o “bandido” assume tal posição de
violência para se inserir num contexto mercadológico e de consumo simbólico
dos produtos gerados pelo mercado. Nas palavras do referido autor:
A criminalidade (...) é, em um país como o Brasil, em larguíssima medida,
um subproduto da “dívida social” acumulada há gerações e gerações sob a
mediação de fatores institucionais (...) e culturais. (SOUZA, 2008: 41).
Assim, também, a violência é um caráter de desigualdade social na medida em
que é territorialmente desigual. Em outras palavras, a violência, como
distribuição desigual de renda, se insere no espaço geográfico da cidade,
sinalizando espaços e locais onde tal incidência e recorrência podem ser
menores ou maiores. Entretanto, essa “geografia da violência” não pode ser
confundida a uma “geografia do medo” (SOUZA, 2008: 54), já que a própria
prática violenta não se relaciona – necessariamente – com a sensação do
medo.
O medo pode existir em qualquer lugar, sem que práticas e ocorrências de
violência sejam presenciadas neste mesmo local. O medo muitas vezes se
confunde a prática da própria ação criminosa, fazendo com que certos espaços
sejam estigmatizados como violentos pela sua característica física e/ou
material ou pela situação econômica de seus habitantes.
Recorrente nas grandes cidades, o medo vem acompanhado de um projeto de
modernidade falho e incompleto em que, vicissitudes de práticas violentas e
criminosas se fazem acompanhar de um rápido crescimento industrial e da
distribuição desigual de renda suscitada pelo sistema econômico capitalista de
competição e produção do capital.
O aceleramento da urbanização brasileira em meados do século XIX acarretou
em diversas mudanças da estrutura material e simbólica – além da ideológica -
31
do tecido urbano. Da industrialização e do aumento vertiginoso das populações
urbanas, o medo e a insegurança vieram de mãos dadas ao modo como
populações, habitações e políticas públicas foram criadas e legitimadas nesse
novo cenário social.
As cidades brasileiras, aos poucos, se constituíram meio a enormes
contingentes populacionais pobres e/ou miseráveis que se acomodavam em
casebres e barracos formando aquilo que foi - e continua a ser – visto como
lugares proeminentes do perigo, do sujo e do contagioso. O modo como essas
faixas populacionais são tratadas fazem parte de um rol de politicas públicas
que se entreveem a problemáticas acerca da estética, da saúde e da
segurança urbanísticas em medidas governamentais de uma sociedade.
1.3 A urbanização brasileira: o caso do Rio de Janeiro e o surgimento da
Favela
É verdade que, assim como no caso da modernização, a urbanização dos
grandes centros urbanos impõe a concisa dualidade entre campo versus
cidade. Essa dualidade, ainda que simplista e reducionista, forma o panorama
geral que viveram as grandes cidades em meados do século XIX.
Da intensa urbanização e do crescimento vertiginoso das populações urbanas,
a falta de espaço e de infraestrutura, ocorreram inúmeros problemas e conflitos
entre as classes mais privilegiadas e as outras camadas de proletários e
pobres. Somada à problemática da habitação, os centros urbanos insurgentes,
intumescia-se meio a sujeira, a proliferação de doenças e a alta de preços dos
alimentos e de certos produtos de subsistência, fazendo emergir, a fome, a
desnutrição e a miséria.
32
Engels (2008: 70) faz análises e observações das grandes cidades da
Inglaterra do século XIX7 elucidando o vão feito entre capital e propriedade dos
meios de subsistência e produção e a classe proletária pobre. De suas
palavras, misturadas a observações minuciosas da vida e do cotidiano desses
proletários, surge a problemática em torno da habitação.
Segundo o autor, o crescimento das cidades inglesas, decantou bairros
considerados de “má fama”, como as áreas onde concentravam-se a classe
operária. Tais bairros e suas “habitações” – se honestamente pudesse ser
chamadas assim, já que se tratavam de casebres, cortiços e porões abrigando
dezenas de seres humanos num pequeno espaço insalubre e decadente –
eram palco da miséria extrema, das mortes por fome, das doenças causadas
pela falta de esgoto e higiene, pela degradação social e moral de quem lá vivia.
Esses bairros, preferencialmente, se instalavam longe do “olhar da burguesia”
e eram zonas onde a violência e o crime chegariam de forma mais escarrada e
desnudada do que em zonas nobres da cidade.
O crime aqui relatado pelo autor condizia com o roubo para a alimentação. Por
estarem esses proletários em plena miséria e, em grande parte, sem emprego
e/ou dinheiro, tais pessoas, recorriam às práticas violentas como meio de
sobrevivência.
Henri Lefebvre (1972: 7-28) em uma releitura da obra de Engels intitulada A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2008: 67-116), afirma ser parte
do fenômeno urbano a dupla tendência centralizadora do capitalismo que
paralelamente faz confluir a concentração demográfica com a concentração de
capital. Ou seja, é próprio das cidades e do sistema capitalista como
promovente do desenvolvimento urbano e industrial, que haja concentrações
de capital numa mesma medida em que se estabelecem grandes contingentes
de mão de obra, numa crescente concentração habitacional e demográfica. 7 As duas grandes cidades longamente analisadas por Engels são Londres e Manchester.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Editoral
Boitempo, 2008, pp. 67-116.
33
Segundo Lefebvre:
[n]asce uma povoação em torno de uma fábrica de dimensão média: a
expansão demográfica nessa povoação atrai inevitavelmente outros
industriais que ali se instalam para utilizarem (explorarem) a mão-de-obra. A
povoação se transforma em pequena cidade e esta em grande cidade.
(1972: 11).
A cidade, assim, nasce como uma grande maquinaria do sistema capitalista em
que se aglutinam no mesmo espaço, o desenvolvimento econômico
alavancado pela industrialização e um incremento da força de trabalho
disponível e altamente rotativo pela competição que se estabelece pelos altos
índices de crescimento demográfico deste solo urbano.
Quer dizer, que a economia do tipo capitalista, estritamente vinculada às
características de desenvolvimento urbano, acelera o ritmo da produção e
reprodução do capital gerando lucro para os grandes empresários que se
utilizam da mão de obra barata de milhares de migrantes e proletários que se
fixam nas cidades em busca de novas oportunidades e empregos (PERLMAN,
1977: 45).
Deste novo paradigma, surgem os bairros operários que abrigam todo tipo de
gente pobre e miserável das cidades. Tais espaços rapidamente se
transformam em lugares estigmatizados, onde a burguesia e suas políticas
policialescas escondem e/ou erradicam tais espaços como uma “peste” a ser
curada da cidade.
A urbanização brasileira serviu-se dos mesmos preceitos capitalistas que as
grandes metrópoles europeias, entretanto outros fatores socioculturais
intensificaram essa nova configuração espacial. Com a abolição da escravidão
em 1888, grande parte dos escravos libertos deixaram as casas de seus
senhores para irem se instalar na cidade, em suas próprias casas.
34
A casa-grande e a senzala (FREYRE, 1961: 153), lugar onde o escravo e o
senhor conviviam sob os auspícios de uma economia latifundiária, pouco a
pouco foi se desestruturando, deixando o escravo alforriado para se tornar
operário livre na cidade e as senzalas vazias.
Nas áreas centrais dessa nova cidade brasileira, surgia o “mucambo”8, morada
e, também, refúgio do negro livre, do negro fugido e do caboclo. Tais
mucambos se avolumaram de trabalhadores e proletários pobres, vindo a se
fixarem em lugares degradados da cidade, próximos da burguesia e de seus
sobrados que ocupavam a geografia urbana da época.
Na voz de Gilberto Freyre:
[m]as enquanto as senzalas diminuíam de tamanho, engrossavam as
aldeias de mucambos e de palhoças, pertos dos sobrados e das chácaras.
Engrossavam, espalhando-se pelas zonas mais degradadas das cidades.
(1961: 153).
Ainda, segundo o referido autor, a intensa urbanização em que se encontravam
as capitais brasileiras, acentuou, ainda mais, o antagonismo já existente entre
o branco e o negro. Entretanto, com a crescente incorporação da mão de obra
negra e cabocla na economia capitalista, fez aumentar, por outro lado, a
miscigenação do povo brasileiro, desenhando uma multifacetada etnia, cheia
de diversidades culturais em que se vestia de roupagens híbridas e camufladas
(FREYRE, 1968: 153).
Com a crise do café e da decadência da lavoura e da economia agrária, as
cidades passaram a ser o principal foco de desenvolvimento capitalista pela
crescente industrialização das cidades e seu chamariz de empregos e
oportunidades. Grandes migrações ocorreram com a ascensão da cidade
8 Optou-se por usar mucambo e não mocambo para utilizar-se do próprio termo utilizado por
Gilberto Freyre em Sobrados & Mucambos. Daqui pra frente o referido termo será usado sem
aspas.
35
brasileira, grande parte, figurada pela esperança de melhores empregos e
salários dos quais a empreitada rural já não dava conta.
A solução para as cidades lotadas que se seguiam daí, foi o aparecimento de
tais casebres, mucambos e palhoças que se avizinhavam próximos aos locais
de trabalho dos proletários. Nas áreas centrais das primeiras cidades
brasileiras, o superpovoamento e as constantes doenças e epidemias que daí
se avolumavam, fez com que a burguesia se escondesse em lugares
afastados, em chácaras e sobrados no topo de morros e encostas de colinas.
Segundo Freyre (1961: 162), a primeira área comercialmente urbana no Brasil
se deu no Recife e, foi lá também, que as problemáticas condizentes a
doenças e espaço para moradia, foram primeiro se instalar. No Rio de Janeiro,
a solução para o inchaço populacional urbano, deu-se pela construção de
cortiços próximos ao centro da cidade e de seus portos; na Bahia, além dos
mucambos, as palhoças e os casebres mal construídos, foram a solução para a
crescente “gente urbana” que emergia.
Logo, tais áreas com suas populações dantescas e suas espacialidades
reduzidas, se impregnaram de doenças e pestes, tornaram-se focos de penúria
e imundice, além de serem locais associados ao crime e à imoralidade.
Não tardou para que essas localidades de gente pobre e miserável se tornasse
um “flagelo”, um “perigo” para a saúde pública (FREYRE, 1961: 182).
Como “dever” público e governamental, essas habitações foram removidas
e/ou tiveram suas populações extirpadas para lugares distantes da centralidade
comercial e econômica urbana. Aos poucos, a burguesia desceria o morro e
seu extremo oposto, os trabalhadores pobres e negros alforriados junto aos
migrantes que chegavam de vários estados brasileiros, se instalariam nas
encostas, modificando a paisagem natural e geográfica das cidades.
No caso brasileiro, assim como na Inglaterra, as cidades foram palco de
inúmeros conglomerados de trabalhadores da grande indústria. A pobreza e a
miséria acabaram sendo elementos característicos dessas populações, pelos
baixos salários e o modo como era empregada a força de trabalho dos
36
operários. Situação de degradação moral e física, além do aumento das taxas
de desemprego e da rotatividade da mão de obra, integrava o cotidiano dessas
pessoas.
No Rio de Janeiro, a solução para tal contingente populacional, foi os cortiços,
recorrentemente chamados de “cabeças-de-porcos”, nome dado por ser o
primeiro e mais famoso cortiço da cidade se chamar “Cabeça de Porco”
(VALLADARES, 2005: 24). Na então, capital do Brasil9, os cortiços, também
eram associados ao lugar do perigo e da mazela, seus habitantes eram
coniventemente denominados imorais, vagabundos, malandros e criminosos.
O medo que estas parcelas populacionais incutiam nas mentalidades das
camadas mais ricas da sociedade, fez com que governos e administrações da
Prefeitura carioca solucionassem o problema das habitações e de seus
moradores escondendo-os ou os rechaçando para lugares longínquos, a ponto
de mascarar a real problemática carioca: falta de moradia e ausência de
planejamento da infraestrutura e dos serviços básicos urbanos.
Ainda no século XIX, o Rio, “acomodou” – conforme pode – combatentes da
Guerra de Canudos na Bahia, que vindos de lá, ocuparam um morro na região
central a fim de pressionar o Ministério da Guerra a pagar seus soldos
atrasados. Esta ocupação, datada de 1897, que mais tarde recebeu o nome de
Morro da Favela ou Morro da Providência, marcou o surgimento de um tipo de
habitação que, nos dias atuais, é muito recorrente na cidade carioca e em
outras cidades no mundo: a favela.
Segundo Valladares (2005: 26), o nome favela adveio de uma planta
(denominada Favella) encontrada nos acampamentos de onde vieram os
soldados de Canudos que, posteriormente, fora encontrado, também, no Morro
da Providência. Tal ocupação do morro suscitou o aparecimento de muitas
outras “favelas” pelo Rio de Janeiro; entretanto, a referida autora, afirma que o
9 O Rio de Janeiro perdeu o postulado de Distrito Federal em 1960 quando, o então presidente
Juscelino Kubitschek, transferiu a capital nacional para Brasília.
37
Morro da Providência não foi a primeira favela a existir em solo carioca e que
antes desta, com a data de 1881, muitas outras já se perfaziam como cenário
urbano. São elas, a Quinta do Caju, Mangueira10 e Serra Morena.
Foto 1: painel pintado demosntrando o surgimento e a constituição da favela exposta no
Morro do Cantagalo.
Junto ao nascimento das favelas – e em alguns casos, antecedendo-o -, veio a
destruição dos cortiços no centro da cidade fluminense com a Reforma Urbana
de Pereira Passos, ocorrida dentre os anos 1903 a 1906. O então prefeito do
Rio, Francisco Pereira Passos, influenciado pelas reformas urbanas em Paris,
tinha como pressuposto o embelezamento da cidade, alargamento de vias e
construção de edifícios e monumentos. Com o pretexto higienista e sob a
ameaça da malária, da febre amarela e da varíola que crescia nos locais de
cortiço, Pereira Passos outorgou a derrubada destes e sua definitiva extinção
do centro da cidade.
Sem os cortiços e com o prenúncio de uma modernização e elitização da
cidade, o Rio teve suas avenidas alargadas, seus bairros distantes ligados às
10
Segundo Valladares, a favela da Mangueira não é a mesma existente nos dias atuais na
Zona Norte do Rio, sendo aquela, existente nos limites do bairro de Botafogo, Zona Sul.
38
regiões centrais, a construção de edifícios e do Theatro Municipal. Os, assim,
“exilados” dos cortiços, com a alternativa de irem morar em lugares distantes
de seus locais de trabalho, optaram pelos bairros centrais de onde vieram,
fixando-se nas encostas e morros da cidade.
De uma hora para outra, favelas e mais favelas pontilhavam na paisagem
urbana fluminense, alarmando os olhares de governos e das elites que
julgavam ser aquelas áreas, assim como os cortiços o eram, espaços de
doenças, perigos, imoralidades e um sem números de pessoas marginais e
criminosas.
Segundo Valladares,
[a] favela passa, então, a ocupar o primeiro lugar nos debates sobre o futuro
da capital e do próprio Brasil, tornando-se alvo do discurso de médicos
higienistas que condenam as moradias insalubres. (2008: 28).
A favela como o novo estigma urbano, logo se interpenetra de soluções
mirabolantes vindas dos prefeitos e governadores cariocas. Em 1907, o médico
sanitarista Oswaldo Cruz, desenvolve uma Campanha de Saneamento do qual
seu principal objetivo era limpar as favelas do Rio, recuperando as áreas
insalubres e retirando seus moradores das áreas imundas e subumanas.
Por essa época era comum médicos e engenheiros desenvolverem programas
e campanhas para dar fim a “moléstia” das favelas nas cidades. No Rio de
Janeiro, as ideias de “doença”, “contágio” e “patologia social” vinham
acompanhadas do estereótipo de pessoas que viviam nessas áreas de favela e
um discurso médico-higienista de cunho reformista-progressista, se aglutinava
às mentalidades das elites.
Valladares aponta que a constante relação que se fazia entre o lugar de
moradia e o caráter do morador, compunha a visão determinista vigente na
época; por suas palavras:
39
[e]ngenheiros e médicos, considerando o meio ambiente como fonte direta
de males físicos e morais dos seres humanos, estabeleceram propostas
técnicas para o tratamento desses males urbanos. (...) as favelas seriam
elementos que tanto se opunham à racionalidade técnica quanto à
regulação do conjunto da cidade. Acabar com elas seria, então, uma
consequência “natural”. (2008: 41).
Essa visão determinista cunhou muitas políticas públicas que tinham como
principal intenção erradicar as moradias populares do Rio, fazer de sua
extinção a solução para um problema de proporções estruturais e
socioeconômicas muito maiores que uma simples higienização das classes
pobres.
Nos anos 1920, a favela é diagnosticada como “lepra da estética” e Mattos
Pimenta, médico higienista do Rotary Club do Rio, elabora o Programa de
Casas Populares com o objetivo de substituir a moradia na favela por conjuntos
de prédios. A favela, neste momento, é vista como um problema de moradia a
ser solucionado com a construção de conjuntos habitacionais que deslocariam
as populações faveladas para áreas onde se pudessem construir tais prédios.
Contudo, mesmo sob a égide do novo Programa, em 1922, o prefeito Carlos
Sampaio autoriza a derrubada do Morro do Castelo e, em 1928, o prefeito
Antonio Prado Junior, em pelo Carnaval, manda derrubar centenas de barracos
de favelas cariocas sem o prévio deslocamento dos moradores para outras
habitações, contrariando a política habitacional adotada por Mattos Pimenta.
Por essa época, ainda, é formulado o Plano Agache, do urbanista francês
Alfred Agache, com o objetivo de “extensão, renovação e embelezamento da
capital do país” (VALLADARES, 2008: 45). Estava na base de seu Plano, a
construção de moradias populares acrescido da destruição dos barracos, numa
clara alusão a um programa anti-favela.
De uma rápida revisão histórica das etapas da urbanização brasileira e de
como certos espaços e moradias foram tratadas pelas administrações públicas
e privadas, percebe-se a clara tentativa de erradicação de tais habitações
40
como sendo a solução imediata dos problemas urbanos causados pelo
acelerado crescimento demográfico e incremento do sistema capitalista de
produção.
No Rio de Janeiro, medidas, planos e programas adotados ao longo das
décadas, deixa clara a intenção de embelezamento e extirpação de uma classe
trabalhadora pobre e miserável que, sem recursos e dinheiro, para melhores
estalagens e meios de vida, viriam a ocupar os morros, constituindo o maciço
panorama de favelas da geografia carioca que foram, quase sempre, tratados
como “patologias sociais” removíveis do cenário urbano.
Trata-se aqui, buscar de um contexto específico, - o da realidade carioca dos
últimos séculos - demonstrar como as políticas públicas se pautam na
erradicação dos problemas urbanos e estruturais pela culpabilidade da vítima e
não pelos fatores econômicos, culturais e sociais da sociedade brasileira.
Desta forma, a favela é vista como um problema a ser tratado, seja pela sua
extinção ou pelo seu embelezamento e melhoramentos externos; estética e
limpeza perfazem o imaginário governamental. A partir dos anos de 1930,
quando as politicas públicas adotaram outro revés para dar conta dos
problemas das favelas e dos favelados foi que, no Rio de Janeiro, ocorreu um
aumento grande nas proporções populacionais.
Na ditadura populista de Getúlio Vargas, a temática higienista das moradias
populares continuou, mas agora, sob uma ótica assistencialista, de construção
de hospitais e escolas nas favelas com o intuito de ensinar e “salvar” os
favelados de sua própria condição de subalternos.
O prefeito do Rio, Pedro Ernesto, ostentou a política clientelista, dando favores
aos favelados em troca de seus votos, com o discurso da necessidade de
melhoria nas condições de vida dos moradores de favela. Em 1937, foi
elaborado o Código de Obras, que em seu texto contribui, em uma
ambiguidade, o apoio à verticalização urbana e à eliminação das favelas que
seriam substituídas por núcleos habitacionais, no entanto, as já existentes
41
continuariam a existir somente se não ocorressem mudanças e reformas nos
casebres e barracos.
Ao mesmo tempo em que o Código anuncia a eliminação das favelas, afirmava
a continuação de sua existência se não houvessem mudanças na estrutura
física das casas. A contradição existente revela a natureza política da época
em que a pauta assistencialista condizia com a reincorporação dos moradores
em outros tipos habitacionais que não a favela, ao mesmo tempo em que o viés
clientelista, visava os próprios favelados e suas necessidades básicas, como
mercado de voto, gerando assim um curral eleitoral.
Pelos anos de 1940, as favelas já funcionavam como expoentes mercados
imobiliários, tanto pelos preços cobrados em aluguéis, quanto àqueles
vendidos pelo valor do solo. Este mercado era impulsionado pelas altas taxas
de crescimento populacional e as novas ondas de êxodo rural que cresciam em
algumas décadas alavancadas pela indústria e pelo comércio.
Nesta década, ocorreram os primeiros recenseamentos sobre a condição
populacional das favelas. O antropólogo, assim como o sociólogo e o
assistente social, subiram o morro a fim de conhecer sua geografia e
demografia; mais que isso, os governos, cada vez mais contavam com os
dados desses profissionais para melhor aplicar suas politicas públicas nestes
locais. A favela, assim, se revela como o lugar da diversidade em que carrega
o mito de ser moradia do crime e da desordem social. Segundo Leeds & Leeds
(Apud. VALLADARES, 2008: 57):
Ressalta a diversidade entre as mesmas, e as situações descritas
desmitificam a visão corrente àquela época, das favelas como lugar de
criminalidade, marginalidade e desorganização social.
Continuando no governo populista de Vargas, de 1941 a 1944, entra em vigor o
Projeto Parques Proletários11, que tinham como pressuposto a construção –
outra vez – de conjuntos habitacionais que serviriam de habitat de transição. A
11
Os construídos foram: Gávea, Caju e Praia do Pinto.
42
ideia corrente era de que os favelados precisariam se reintegrar à cidade e à
“normalidade” cívica e urbana e, para isso, práticas e projetos de assistência
serviriam de base para essa transição, levando educação física e moral para os
favelados.
O objetivo era também dar assistência e educar os habitantes para que eles
próprios modificassem as suas práticas, adequando-se a um novo modo de
vida capaz de garantir sua saúde física e moral. (VALLADARES, 2008: 62).
Em 1947 é feito o primeiro Recenseamento das Favelas do Rio de Janeiro pela
Prefeitura com um viés higienista. Em 1950, o IBGE12, desenvolve o
Recenseamento Geral tendo resultados dispares em relação ao de 1947,
principalmente em relação ao número de favelas existentes no município
fluminense. Neste mesmo ano é criada a Fundação Leão XIII, que também,
vinha com a premissa assistencialista de outrora de recuperação dos espaços
favelados e do controle desta população, frequentemente associada a
comunistas.
É nesta época, também, que após inúmeras medidas e projetos de
readequação da população da favela em núcleos habitacionais e da
manutenção das favelas já existentes com melhorias nos serviços urbanos
básicos, que a política de erradicação e extinção das favelas volta à tona, como
a criação de duas Comissões para Extinção de Favelas. (VALLADARES, 1978:
23).
Contraditoriamente, a história habitacional do Rio de Janeiro sofre pelos seus
paroxismos e paradoxos. Fonte de um política habitacional falha e sem
objetivos claros quanto a melhoria nos setores de urbanização e investimentos
à longo prazo nas áreas de serviços públicos dessas áreas, suas populações,
12
Criado em 1934 com o nome de Instituto Nacional de Estatística (INE), durante o governo
Getúlio Vargas. Em 1937 já passa a se chamar Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/disseminacao/eventos/missao/instituicao.shtm>. Acessado em 01/11/2013.
43
assim como suas casas, sofriam, cotidianamente os impasses e reveses das
mudanças políticas e governamentais brasileiras.
Em 1955 é fundada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, com a Cruzada São
Sebastião que mobilizou recursos para uma iniciativa de urbanização de 12
favelas. Tal empreitada se estendeu até o ano de 1960, quando, segundo
Valladares, as populações faveladas cresciam a uma taxa de 7% ao ano,
sendo muito mais elevada que a taxa anual da população não-favelada de
3,3%. (1978: 22).
No mandato de Carlos Lacerda (1960-65), as construções das Vilas Kennedy
(inauguradas em 1964), eram outra investidura na tentativa de remanejar a
população favelada para longe dos olhos da elite e dos turistas. Essas Vilas,
apesar de abrigarem grande parte da população pobre do município carioca,
eram afastadas do centro comercial e industrial da cidade, dificultando a
mobilidade até os locais de trabalho.
Em 1960, um novo êxodo rural enche as cidades de trabalhadores rurais.
Assim como outrora, a fuga do campo por problemas relativos ao clima,
esgotamento do solo e mecanização da produção rural, reativam a esperança
de serem as grandes cidades, focos promissores de empregos e melhores
condições de vida.
Seis anos depois, em 1966, já durante a ditadura militar, o conjunto
habitacional, Cidade de Deus13 em Jacarepaguá (Zona Oeste) surgiria
abrigando grandes populações das áreas mais centrais da cidade vindo a
constituir uma das maiores favelas atuais do Rio de Janeiro.
Em plena ditadura militar, é instituído o Plano Nacional de Habitação com a
criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Serviço Federal de
13
O conjunto habitacional Cidade de Deus foi construído pela COHAB e financiado pelo BNH.
Fonte: Portal GeoRio. Disponível em:
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bairro.asp?area=118.
Acessado em: 19/11/2013.
44
Habitação e Urbanismo, que tinham como pressuposto uma política
habitacional, com vistas à casa própria e a urbanização de áreas sem
infraestrutura, como é o caso das favelas.
É no governo de Castelo Branco, que as favelas e os bairros populares
ganham atenção, já que suas populações constituíam um perigo para a
estabilidade populacional, caso se rebelassem em busca de melhorias
habitacionais. Com isso, o BNH, tinha como objetivo, promover a construção e
aquisição da casa própria pelas classes com menor renda, numa “contribuição
para a estabilidade social” e com a criação de “aliados da ordem” (AZEVEDO e
ANDRADE, 2011: 43).
Tais medidas habitacionais contavam com o investimento de agentes
populares como as COHABs (Companhia de Habitação Popular) e os agentes
privados, além do FGTS (Fundo de Garantia de Tempo de Serviço). Estes
investimentos, assim como a política em pauta, tinha como um dos intuitos,
manter a estabilidade política por meio de bonanças nos setores de
urbanização e infraestrutura e, a promessa da casa própria, para os favelados.
Dessa forma, a sensação de investimentos amplos neste setor contribuía para
uma sensação de tranquilidade, não fazendo despertar a ira e ódio das classes
menos favorecidas.
No entanto, a visão oposta se faz realidade, e a falta de moradia e de
empregos suficientes para essa nova massa trabalhadora, faz inchar as
populações faveladas e o aparecimento de novos bairros pobres e miseráveis.
As favelas com o passar dos anos aumentavam e já, nos anos de 1968-69,
“cerca de um milhão de favelados moravam no Rio”. (PERLMAN, 1977: 41).
Ao contrário do que certas políticas públicas tinham como objetivo a eliminação
e/ou extinção das favelas, é no Rio de Janeiro, onde se dá os maiores
crescimentos populacionais das parcelas faveladas considerando outras
45
grandes cidades brasileiras. Segundo o Censo 201014, da população total do
Estado do Rio de Janeiro de 15. 989. 929 habitantes, 12,6% moram em
favelas, num total de 2. 023. 744 de habitantes. Segundo o IBGE, as maiores
favelas com mais de 50 mil habitantes (em relação a outras cidades
brasileiras), estão justamente nos municípios do estado do Rio de Janeiro. A
Rocinha com a maior população de 69 mil habitantes é acompanhada pela
favela de Rio das Pedras com 54 mil habitantes; seguidas a essas, temos
outros quatro municípios com grandes favelas: Brasília, São Luís, Belém e
Recife.
Foto 2: favela da Rocinha (novembro de 2012).
No Rio de Janeiro, em meados dos anos 1950, a população favelada se
concentrava mais nas áreas centrais da cidade e na Zona Sul; nos últimos
anos, houve um deslocamento para as regiões da Barra da Tijuca e de
Jacarepaguá, Zona Oeste. Tais deslocamentos podem revelar as altas nos
preços dos imóveis e nos aluguéis nas áreas nobres e turísticas da cidade,
como é o caso das favelas localizadas na Zona Sul. O deslocamento para
áreas afastadas e mais pobres, como a de Jacarepaguá, reforçam a busca por
casas e aluguéis mais baratos que possam existir em tais regiões, mas
14
Dados provenientes do IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=rj&tema=aglomsubnor_censo2010>. Acessado em 01/11/2013.
46
também reforça a ideia de um maior incremento em políticas públicas e de
urbanização com a “expulsão” dos moradores mais pobres e sem condições de
reprodução da vida social sob o encarecimento da vida urbana.
Gráfico 1: Proporção do total da população favelada em cada ano
Fonte: IBGE. Disponível em IPP
15 (Instituto Pereira Passos – Coleção Estudos Cariocas, Maio
de 2012).
Observa-se que a partir dos anos 1980 em diante, e com o incremento e
desenvolvimento do crime organizado e da comercialização do tráfico de
drogas, as políticas públicas adotadas, passam a ser voltadas, em maior
medida, para a segurança. Segurança da elite e das classes que tem medo
destas populações e não segurança de quem vive e convive do e com o tráfico
de drogas e seus agentes do crime.
A polícia sempre esteve presente em tais espaços, controlando e punindo os
moradores pobres pelo estigma de serem perigosos, malandros e vagabundos.
O que se tem a partir das décadas de 1980-90, é uma intensificação do aparato
15
IPP:
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/3190_FavelasnacidadedoRiodeJaneiro_Censo_2010.PDF. Acessado em 01/11/2013.
47
militar e policialesco nas favelas e algumas políticas públicas de urbanização e
melhorias dos serviços urbanos.
Além do estigma social, a ideia de integração da favela com o restante da
cidade e sua transição para o moderno e urbano, continuam em vigor,
pressupondo a repressão policial e militarização do cotidiano, como medidas
de progresso e segurança.
Nessa nova roupagem de integração favela-asfalto, nos anos 2000, estes
locais ganham novo tom, o do turismo. Pacotes e guias turísticos são criados
para levar a pessoa não-favelada e/ou o estrangeiro à essas áreas, criando a
imagem do “exótico”, do “nativo” a ser visitado e conhecido.
A favela, neste ponto, ressurge em sua estetização. Como nos antigos sambas
em que se canta o morro com alegria e melancolia, no início deste século XXI,
a favela e seus habitantes, são observados por turistas e pessoas do asfalto
com o mesmo sentimento, tendo como cenário de fundo a violência e a
pobreza. Mais que uma tentativa de reintegração desses espaços com o
restante da cidade, a favela-turística revela uma clara dicotomia entre a cidade
formal e sua parte diferente e exótica.
É verdade que o Rio de Janeiro, desde tempos remotos, foi uma cidade voltada
para o turismo e para o desenvolvimento de suas belas paisagens e lugares de
cartão postal como o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar. A favela como mais
um incremento dos passeios de turismo só foi mais uma parcela daquilo que no
Rio é evidente aos olhos e perceptível em todos seus bairros.
48
Foto 3: vista do Morro Santa Marta (novembro de 2012).
Nessa leva de eventos culturais, religiosos, políticos, ambientalistas e
desportivos16 que o município fluminense foi e será sede, em 200817 é
inaugurada, como novo esquema de segurança pública, a primeira Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) com o objetivo de apreensão dos traficantes das
favelas e de seus armamentos com a instalação da polícia militar nestes locais.
Tal empreitada continua até os dias atuais, em seus sucessos e falhas, porém,
ainda como medida de segurança pública respaldada na repressão e na
belicosidade como ferramentas fundamentais de combate à criminalidade e de
manutenção a ordem pública.
Assim como em outros tempos, a polícia é chamada a resolver as
problemáticas da cidade, problemas que são mais sobre a ausência de
investimentos em infraestrutura e urbanização em áreas de favela e sobre a
incutida desigualdade social e cultural, do que um “caso de polícia” de fato.
A favela, antes de ser algo diferenciado e segregado do espaço urbano, é uma
parcela de entendimento e identidade desta própria cidade. Torna-se irrealismo
desenhar e descrever o Rio sem suas populações faveladas, sem seus morros
16
Somente nos últimos anos, podemos citar eventos como Rio+20, Rock in Rio, Jornada
Mundial da Juventude, final da Copa das Confederações, em que o Rio de Janeiro foi sede.
17 A UPP Santa Marta foi inaugurada em 19 de dezembro de 2008.
49
coloridos e aglomerados de casebres, sem as rodas de samba que cantam o
cotidiano de toda essa gente.
Entretanto, é ainda evidente que o homogêneo se dispersa do heterogêneo, e
aquilo que governos e governantes tentaram e continuam tentando fazer é a
erradicação dessas parcelas habitacionais, ou simplesmente, a sua
maquiagem em algo cabível ao medo de quem mora no asfalto ou dos olhos
estrangeiros.
É importante salientar, que no Brasil, diversas populações foram separadas,
escondidas, mascaradas e solapadas pelo medo e pelo preconceito, seja ele
étnico, racial, cultural, social, política ou econômico. Aquilo que Martins (2012:
22) denominou por modernidade incompleta, se aprofunda em nosso cotidiano
falho de cidadania e de adequação às diferenças, em que o estético e o
aparente possuem mais conteúdo que os valores que fundamenta essa
sociedade.
50
CAPÍTULO 2: Do asfalto ao morro: nasce uma nova cidade
Alvorada lá no morro que beleza
ninguém chora, não há tristeza
ninguém sente dissabor.
O sol colorido é tão lindo, é tão lindo
e a natureza sorrindo,
tingindo, tingindo a alvorada.
(“Alvorada” – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, 1976).
Há um funk carioca em que se diz: “eu só quero é ser feliz. Andar
tranquilamente na favela onde eu nasci.” 18. Já em outro, os MCs Júnior e
Leonardo atestam: “tá tudo errado. É até difícil explicar, mas do jeito que a
coisa anda, já passou da hora do bicho pegar.” 19.
Muito comum nas letras dos funks, a narração e a descrição do cotidiano de
quem vive nas favelas, ou mesmo, do dia a dia do tráfico e de seus agentes.
Mais que letras e ritmos, os funks são formas de expressar desejos e
insatisfações que essa população possui; algumas dessas letras atestam sobre
abusos da polícia, enquanto outros prezam pela ostentação do crime e da
violência.
Crime e violência são duas palavras que caminham, atualmente, junto com a
favela, sejam em noticiários ou em conversas de botequim, nas escolas ou nas
reuniões familiares. Não é de hoje que o morro se tornou sinônimo de mazelas
e perigos, o lugar próprio de onde advém os “bandidos” e “delinquentes” que de
lá descem para cometer delitos e crimes diversos. Do outro lado, no asfalto, as
classes mais abastadas se escondem em seus muros e condomínios com
18
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=W5FO0buG_eo>. Acesso em: 03 de setembro de 2013. “Rap da Felicidade”, Julinho Rasta e Katia (1994).
19 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_S-v39aGoKw>. Acesso em: 03 de setembro de
2013.
51
medo dessa galera que desce as encostas para cometer mil atrocidades e
crueldades.
Esse medo surge como uma peste nas grandes cidades e se dissemina
rapidamente pelo tecido urbano, criando enclaves e dicotomias de um mesmo
espaço. Favela e asfalto, duas parcelas diferenciadas de uma mesma cidade,
dicotomia dialética que preenche o urbano com suas atividades e ritmos
diversos.
Zuenir Ventura, em sua obra “Cidade partida” (1994), cunha o termo que
acompanha a cidade do Rio de Janeiro em seus mais íntimos interstícios. A
cidade partida deixa explícita a dualidade de duas partes de um todo, da
diferenciação entre pobres e ricos, de dois mundos diversos, do mocinho e do
bandido.
Entretanto, essa divisão seletiva de dois lados, refaz a tragédia da
“fragmentação” da cidade e/ou da “apartação” (SILVA, 2012: 401) do espaço
social e político urbano. Essa segmentação, como elucida SOUZA (2008: 58),
condiz com uma separação de territórios na geografia do espaço em que se
criam fronteiras entre o “perigoso” e o “criminoso” e as demais parcelas da
população.
Contudo, o “estigma” da violência enclausurado nas favelas cariocas permeia o
imaginário dos indivíduos que viram e sentiram o mercado do tráfico de drogas
chegar em becos e vielas dos morros cariocas em meados dos anos 1980. A
vinda da cocaína e de sua comercialização (ilegal e ilícita) pelos chefões do
tráfico e a onda crescente de criminalidade e da taxa de homicídios (ZALUAR,
1996: 96) que se seguiu daí, fez disparar a sensação de insegurança de quem
morava na cidade.
O medo cresceu como tumor nas mentalidades e comportamentos do sujeito
urbano. Fez adoecer, lentamente, prejuízos e preconceitos apregoados
naqueles que moravam no mesmo ambiente das atividades ilícitas e ilegais. O
armamento pesado dos traficantes e a sua organização interna, tais como suas
normas próprias e seus modos cruéis de resolver problemas e dívidas, fizeram
desse “câncer mental”, uma epidemia segregacionista e excludente.
52
Logo, a polícia foi chamada para dar conta dos maléficos que tinham como
front de batalha, a favela. Virou caso de polícia e a figura do mocinho e do
bandido foi amplamente divulgada na imprensa. O Rio de Janeiro rapidamente
se pintou de manchetes como: “Rio em guerra”, “Rio contra o tráfico”, “Rio da
paz”.
Paz e guerra, assim como asfalto e favela, formaram a dicotomia de uma
mesma coisa. A segurança pública e seu armamento pesado era a única
solução encontrada e a grande maioria da população apoiava as políticas de
segurança adotadas por governos e governadores.
Para quem continua nas favelas, como diz o funk, “tá tudo errado” e “enquanto
os ricos moram numa casa grande e bela, o pobre é humilhado, esculachado
na favela”. De modo geral, mas não unicamente, é nas favelas que estão as
grandes massas trabalhadoras e pobres dos centros urbanos, muitas vezes
famílias inteiras desempregadas e em situação de miséria e pauperismo
(PERLMAN, 1977: 34 e ZALUAR, 1996: 85). O tráfico de drogas e daqueles
que participam de suas atividades, formam minoria dominante do morro, que
criam uma hegemonia própria, baseada no crime e na crueldade como forma
de coerção social desses espaços.
A polícia, muitas vezes, é cooptada pela ilegalidade, caindo nas tripas da
corrupção. O grande monstro das cidades, quando visto em suas veias e
ramificações nervosas, torna-se um complexo organismo de muitas
contradições. A corrupção institucional brasileira, somada ao tradicionalismo e
ao conservadorismo da própria sociedade, faz emergir o urro das (in)justiças e
das desigualdades sociais.
Entretanto, é perigoso ver o elucidado acima como um quadro pintado de cores
estáticas; a criminalidade urbana e a (sensação de) insegurança, além do
medo da violência, é um processo em que pobres versus ricos não se perfaz
com o dinamismo da realidade e, incorrer, numa análise de luta de classe
seria um equívoco que deixaria muitas análises e sutilezas da realidade social,
política e cultural das cidades e, também, do Rio de Janeiro.
53
Não cabe aqui, também, reativar a justificativa de que a pobreza acompanha a
criminalidade e que um é a causa da outra. Como justifica PERLMAN (2012:
221), em o “mito da marginalidade”20 que é usado para culpar a vítima em
questão, no caso os pobres moradores de favelas, sem considerar que a
pobreza é encontrada em outras áreas que não àquelas e, que a violência,
assim como a criminalidade, não é fato exclusivo da população das favelas.
Muitos estudos sociológicos e antropológicos sobre o tema o reduzem àquilo
que Alba ZALUAR (1994: 90) denominou de raciocínio determinista, em que
pobres estariam relacionados ao crime numa extensão direta de causalidade,
deixando de lado outros sistemas e sujeitos dessa sociedade. Tal visão é a
mesma do policial, que procura um estereótipo suspeito, num conjunto de
imagens que condicionam uma ação; tais imagens intermeadas por
tradicionalismos e conservadorismos e, quiçá, racismos e etnocentrismos
advindas de épocas longínquas do Brasil colonial (ZALUAR, 1996: 90-95).
O monstro das cidades, que é preferível chamar de monstro caricatural do
medo, é uma criatura que subjuga a cidadania, fazendo com que sociabilidades
e indivíduos em sua heterogeneidade e diversidade se enclausurem em suas
casas, muros, favelas e mundos próprios.
A convivência sociopolítica entre os indivíduos se faz necessária numa
cidadania, assim como em uma democracia; quer dizer, que essa apartação
geopolítica do espaço urbano refaz um mapa dicotômico e segregado em
muitas partes, fazendo com que a participação popular e crítica dessa
sociedade seja mutilada em muitas fronteiras que não se tocam, não se
estranham e não se permeiam.
Neste capítulo, buscar-se-á dar conta de uma reflexão mais aprofundada
quanto a distribuição da população urbana no espaço, assim como a formação
de espaços segregados, como são as favelas e os bairros populares, e,
também, a constituição de parcelas populacionais, normalmente os estratos
mais altos da sociedade, fechadas em “enclaves fortificados” (CALDEIRA,
2000: 211) murados e cercados por segurança
20
Elucidado anteriormente neste trabalho. Ver página 17.
54
No primeiro item é desenvolvida uma reflexão sobre a favela como símbolo de
mazelas e perigos da e para cidade, como o medo e a insegurança se
constroem no imaginário e na sensação da sociedade como pertencentes a
esses lugares. Procurou-se ainda, problematizar o conceito de cidade dual ou
“cidade partida”, assim como o de “classes perigosas”, que sairiam desses
espaços pregando o crime e a violência.
No seguinte item, desenvolver-se-á uma análise do aumento da criminalidade e
da violência urbana a partir da década de 1980 com a chegada da cocaína nos
morros, assim como a problemática entorno de como as forças policiais
tratavam e continuam a tratar os moradores de favela.
No último item, o tom é dado pelo projeto e a instalação das Unidades de
Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas cariocas e sua consonância como uma
nova forma de policiamento pautada nos ideais de polícia comunitária e numa
política de proximidade com a população local. Neste item, o intuito foi
desenvolver uma rápida elucidação do objetivo e das atuações das UPPs para
dar fundamentação às análises do próximo capítulo.
Por fim, o capítulo desenvolve-se no propósito de explicitar os problemas
urbanos atuais sob a ótima da segurança pública e da violência na cidade
carioca. O Rio de Janeiro hoje é uma grande metonímia em que não cabe mais
emoldurá-lo numa simplista cidade dual ou partida, é mais um caleidoscópio,
uma história a ser contada a cada instante de diversas perspectivas.
Diferentemente do que o funk diz: “o bicho já pegou!”. E há muito tempo.
2.1 As favelas cariocas e a segregação do espaço urbano: práticas e
(re)produções do medo
Da urbanização acelerada e do “inchaço” populacional das grandes cidades,
surgiram pluralidades de estilos de se viver e morar, sendo a favela uma das
formas tratada neste trabalho.
Nome tão conhecido de jornais, filmes e gingas brasileiros, a favela foi vista
como uma mazela ou um lugar do qual a cidade preferiria esconder e/ou
55
esquecer. Porém, na voz dos muitos sambistas que viram os morros crescerem
pelo Rio de Janeiro, a favela é algo bem diferente daquele pregado pela elite e
difundido pelos políticos.
Herivelto Martins (“Ave Maria no morro”, 1942), dizia: “barracão de zinco/ sem
telhado, sem pintura/ lá no morro/ lá não existe felicidade arranha-céu/ pois
quem mora lá no morro/ já vive pertinho do céu.”; e, já no samba de Zé Keti em
seu “Opinião” (1963), a favela se canta assim: “podem me prender/ podem me
bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ daqui do
morro eu não saio não./ Se não tem água/ eu furo um poço/ se não tem carne/
eu compro um osso/ e ponho na sopa/ e deixa andar/ fale de mim/ quem quiser
falar/ se eu morrer amanhã, seu doutor/ estou pertinho do céu.”.
Assim como nas músicas acima, a favela também é relatada como um bom
lugar para se viver, que mesmo com suas penúrias e dificuldades, o povo dali é
alegre e com opinião de que quem mora lá, de lá não quer sair. Essa
identidade própria com o lugar da favela e de seus habitantes acompanhou as
letras de muitos cantores e que, também, continua a existir nas letras atuais
dos funks cariocas.
O morro “pertinho do céu” é a expressão de uma estética própria da favela,
uma forma de embelezar e afirmar a subjetividade da população que lá vive.
Muito arraigada nos sambas antigos, a favela e o morro eram o ponto de
encontro de personagens como o malandro e o sambista, mas também, do
retratado da pobreza que lá existe. Como na composição de Neca da Portela, a
favela “nunca foi reduto de marginal/ e posso falar de cadeira/ minha gente é
trabalhadeira/ a favela é um problema social.”.
Essa estetização do cotidiano do favelado e que conta seus jeitos de nascer e
viver na favela denota a peculiaridade própria dessas pessoas, suas casas, seu
“trabalho duro” e sua música tão própria do tamborim e do pandeiro dos
mulatos e cabrochas de Noel Rosa e Cartola.
Em alguma medida, as favelas ainda podem ser consideradas “elementos
estranhos à sociedade” (GUIMARÃES, 2008: 30), onde o Estado, aclamado
pelas classes mais abastadas, em sua maioria, utiliza-se da legitimidade da
56
violência pela força policial para “controlar”, “vigiar” e “ordenar” os sujeitos
desses locais.
Medo e sensação de insegurança são dois sentimentos que moldam os
comportamentos do sujeito moderno e urbano, assim como serve de adjetivos
estruturantes do espaço urbano, conforme descreve Souza:
(...) [Q]ue se pode perceber que a problemática da (in)segurança pública,
tendo como pano de fundo o medo generalizado, se vai convertendo em um
formidável fator de (re)estruturação do espaço e da vida urbanos. (2008:33)
A violência urbana e a insegurança pública são os dois destaques, segundo o
referido autor, para as dinâmicas de segregação e/ou fragmentação do tecido
socioespacial das cidades modernas e contemporâneas.
Conforme citado anteriormente, Zuenir Ventura em “Cidade Partida” (1994)
sintetiza no título de seu livro aquilo que hoje, nas falas coloquiais do Rio de
Janeiro, se resumiria pela oposição – e, também, complementariedade – de
asfalto versus favela. Essa dicotomia tão fácil ao cotidiano carioca revela a
ideia de que se tem num mesmo espaço urbano inúmeras divisões, repartições
e fronteiras.
Mais uma vez, são nos sambas que essa dualidade se refaz novamente. De
uma forma a vangloriar o morro em detrimento da cidade, Aníbal Cruz, em
1942, escreve que “tudo no morro é melhor que na cidade/ tanto na dor como
na felicidade”. Ao contrário dos discursos anteriores reproduzidos aqui, no
morro é melhor de se viver do que “entre as luzes fatais da cidade.”. (“Menos
eu”, Roberto Martins e Jorge Faraj, 1936).
O Rio de Janeiro, hoje, possui 704 favelas em seu município, segundo dados
do Instituto Pereira Passos citado por Perlman (2012: 218) e, diferente de
outras capitais como a paulista, suas favelas e conglomerados se precipitam no
coração da cidade, meio a bairros de classe média e alta, próximos às orlas
marítimas e de circulação comercial e turísticas.
Inevitavelmente, tal visibilidade reforça o medo que certas pessoas têm
daqueles que habitam tais regiões de vulnerabilidade e desigualdade social.
Parte desse medo surge da onda crescente de criminalidade e violência vista
57
nos centros urbanos. No Rio de Janeiro o aumento das taxas de crimes e
homicídios (final da década de 1970) é o âmago que faz dos favelados, os
culpados e causadores da violência praticada e sentida.
(...) já no início deste século [XXI] os morros da cidade eram vistos pela
polícia e por alguns setores da população como locais perigosos e refúgio
de criminosos. (ZALUAR e ALVITO, 2006: 10).
Cada vez mais, as parcelas populacionais que “sentem medo” são
impulsionadas a se enclausurarem em suas casas e apartamentos com muros
e aparatos tecnológicos de vigilância e monitoramento, tais como as câmeras
de segurança. Tais “enclausuramentos” são denominados “condomínios
exclusivos” por Souza (2008: 71) e “enclaves fortificados” por Caldeira (2000:
211) e servem de refúgio para aqueles com medo do risco de uma violência
qualquer e do crime que a “rua” aparentemente teria em si mesma. Esses
meios e jeitos de se esconder na cidade, formula outro tipo de segregação
socioespacial, tendo como pano de fundo a insegurança e a criminalidade.
A mesma visibilidade material que as favelas desenham no cenário urbano
carioca, faz emergir uma invisibilidade simbólica, uma tentativa de tornar os
que ali moram invisíveis e distantes do restante da cidade. Invisibilidade e
visibilidade não se exaurem na oposição favela-asfalto, mas é, antes de tudo,
uma fragmentação do espaço social e político em regiões fronteiriças
angariadas pelo sentimento do fenômeno da Fobópole21( SOUZA, 2008: 8).
Porém, são as classes mais privilegiadas economicamente que se armam com
aparatos de autoproteção e vigilância, afastando-se da população
aparentemente “perigosa” que áreas populares e de favela possam abrigar.
Dessa forma, tanto os que se entocam em seus enclaves fortificados, quanto a
força repressiva do Estado contra a população favelada - indubitavelmente
reforçada pelo medo e pelo espírito reacionário daquelas – desenham
espacialidades que reduzem a diversidade sociopolítica e cultural de uma
cidade.
Como elucida Souza,
21
Ver página 29.
58
(...) o Estado e seus planejadores se encarrega[m] de produzir
espacialidades que reduzem a diversidade, além de tolerarem que
empreendedores privados busquem, até mesmo à custa dos espaços
públicos, assegurar espaços “exclusivos” e “homogêneos” aos usuários
mais abastados (2008: 90).
Já segundo Silva (2012), esse medo gerador de espacialidades territoriais é,
um resíduo substancial do que ele denomina, “medo dos diferentes”, ou seja,
um espírito segregacionista em que as elites dirigentes e outras camadas mais
privilegiadas, se afirmam como superiores, sejam pelo poder do patrimônio
(imóveis, dinheiro, influência política, etc), seja por uma possível superioridade
etnorracial.
Tal cenário perfaz um “conflito social” (SILVA, 2012: 410) opondo de um lado o
Estado e certas classes hegemônicas e do outro uma maioria discriminada pela
sua situação econômica e social, reafirmando um padrão histórico de
segregação e de violência étnica.
A favela como mazela e problema a ser resolvido é justificada por muitos
sentidos e sentimentos oriundos de pensamentos e atitudes conservadoras e
reacionárias que tem em seu seio, a resolução do conflito pela força e
repressão.
De toda a história da favela carioca, a palavra “desordem” foi a que mais se
confundiu ao seu significado habitacional e social. Não é de hoje que a
sociedade brasileira se utiliza de diálogos que ligam causas a efeitos, de modo
direto, para justificar e legitimar suas ações e discursos.
A desordem e, consequentemente, o erro, o perigo, o mau e o malvado foram
adjetivos constantemente associados à favela; do outro lado teríamos a ordem
do asfalto, suas leis e normas, sua limpeza e honestidade. Daí, os pontos se
ligariam facilmente conforme a lógica elucidada acima: favela seria o lugar da
desordem, de onde proveriam os delinquentes e marginais que causariam a
violência e o risco da (des)ordem do asfalto.
Portanto, as “classes perigosas”, segundo Guimarães (2008: 21) seriam os tais
moradores da favela, que pela sua condição econômica e de vulnerabilidade
social, marcariam em seus cotidianos e hábitos o estigma do crime e da
59
violência, claramente elucidando uma generalização e uma clara relação de
causalidade direta entre pobreza e criminalidade.
Todavia, a história brasileira, pode nos mostrar o contrário, rechaçando ideias
simplistas e esquemáticas como as oposições elucidadas anteriormente, vistas
como errôneas e equivocadas. Porquanto, a ideia de segregação,
fragmentação e apartação social persistem, emergindo em práticas e
comportamentos cotidianos de quem vive nas cidades.
Conforme afirma Michel Misse (2011: 10), essa relação direta entre pobreza e
criminalidade não resulta em nenhuma abordagem mais aprofundada sobre o
tema e, essa síntese de causalidade, revela um relativismo em que a pobreza
em si mesma não explicaria nada. Teríamos dessa forma, segundo o referido
autor, uma “cultura da pobreza”, em que quase todas as mazelas sociais se
explicariam pelo trauma da pobreza brasileira, que esta em si mesma, se
mostraria como uma variável isolada, sem relação direta e causal com o crime
nas grandes cidades.
Cabe daí, desenhar um panorama em que elementos tais como pobreza,
criminalidade e medo se soldam numa bricolagem difusa e relativista. A
sensação e a eminência de um risco ou violência é muito mais forte do que a
realidade empírica na relação desses elementos em suas linhas de causa e
efeito.
No Rio de Janeiro, a insegurança e o próprio medo perpassam tanto os ricos
quanto os pobres, tanto os que vivem na Zona Sul como os do subúrbio e, esse
medo ou sua mera sensação, moldam o tecido urbano, criando fronteiras entre
os vistos como perigosos e os “outros”.
É importante dizer que tal segregação não pode, unicamente, recair na imagem
do Rio como uma cidade dual e partida em dois opostos, mas sim um campo
geopolítico de muitas divisões e subdivisões que levam em conta fatores
econômicos, políticos e sociais.
Não cabe afirmar, ao mesmo tempo, que por esse motivo não há segregações
e preconceitos, além de prejuízos racistas e repressivos, de uma parcela da
população em relação a outra. A militarização do espaço com o uso da força
60
policial em certos espaços em detrimento de outros, assim como a repressão e
a letalidade de tal força, revela uma clara mira do Estado sobre certas parcelas
populacionais.
Assim como na melodia de Chico Buarque22, “a luz é dura/ a chapa é quente”
para os que moram nas favelas, seja pela sua condição socioeconômica
precária ou pela falta de garantia de direitos sociais, políticos e culturais pelo
Estado. Tudo esquenta e se silencia com a vinda da polícia para essas regiões
e, nunca se sabe “que futuro tem/ aquela gente toda”. E essa gente toda é a
gente de toda a cidade, tanto favelados quanto não-favelados.
2.2 A favela e a segurança: a polícia sobe o morro
Não é de hoje que o Rio de Janeiro e, em certa medida, os centros urbanos
brasileiros, são identificados como locais de grandes taxas de criminalidade e
violência. Principalmente no Rio, a delonga do bandido versus mocinho é uma
das imagens mais reproduzidas da atualidade carioca.
Um “caso de polícia” pode ir desde assaltos e sequestros até furtos e brigas
entre colegas e vizinhos; nos casos brasileiros, esses delitos ganham múltiplas
ilegalidades e criatividades. No Rio, o disparate das taxas populacionais
oriundas da abolição da escravatura, da migração e da imigração aos centros
urbanos, fez com que os casos de polícia ganhassem múltiplas arbitrariedades
das forças do Estado que tinha como preceito a manutenção da ordem pública,
tendo em vista a desordem “inerente” das parcelas pobres cariocas.
A ação policial é guiada pela suspeita, que tem como fundamentação, àqueles
indivíduos com certas características físicas e o seu local de moradia. Já no
século XX, os policiais tinham delimitado um grupo de imagens estereotipadas
que figuravam suas ações. Quer dizer, que desde remotos tempos, a polícia
brasileira agiu – e continua a agir - sob a ótima de um “elemento suspeito” a ser
reprimido e corrigido, autuando as “classes perigosas” que tendem a cometer
crimes e residem em áreas pobres e degradadas.
22
“Subúrbio”, 2006.
61
Na visão policial, em termos generalizantes, o meio social é o determinante do
comportamento criminoso e, dessa forma, a síntese pobreza igual a crime,
regulava as mentalidades e o cassetete carioca. Pelos anos de 1900, nos
primórdios da República verde-e-amarela e com a Reforma de Pereira
Passos23, o que se queria, era uma cidade modelo para as demais regiões
brasileiras, o Rio seria o local próprio do progresso e da ordem, tal como
emoldura nossa bandeira nacional.
A nação seria “civilizada”. A cidade do Rio de Janeiro, capital federal,
serviria de exemplo para o resto do país, incorporando hábitos e costumes
europeus no seu dia-a-dia. Não podiam, por isso, admitir tradições afro-
brasileiras e lusitanas que significavam atraso cultural. (ZALUAR, 1996: 89).
Como exemplificado por Zaluar no trecho acima, tanto os ex-escravos quantos
os portugueses eram alvos de constantes batidas policiais e prisões arbitrárias
pelos seus costumes e condição social e étnica. Vadiagem e desordem pública
eram os focos principais que levavam às ações policiais; o samba a capoeira e,
também, o candomblé eram “perturbações” a serem reprimidos por colocar em
perigo a seguridade da capital24 brasileira.
Claramente, o que se tinha, era um controle repressivo de certas faixas
populacionais tidas como desordeiras e perigosas, numa alusão de limpeza da
cidade. O trabalho, ao contrário da vadiagem e da ociosidade e mesmo da
festa, era tido como ocupação regular e direita em detrimento das outras,
recalcadas como maléficas para o espírito e para a ordenança social e política.
Como elucida a referida autora,
A repressão às contravenções tinha como objetivo separar o trabalho da
vagabundagem. (...) A República apostou na polícia para mudar a
sociedade violentamente. Não era uma democracia. Por isso é que se diz
que, naquela época, a questão social foi considerada uma questão de
polícia. Em todo o país. (ZALUAR, 1996: 93).
23
Ver página 37 sobre a Reforma Urbana do prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro.
24 Considerando que a capital do Brasil ficava no Rio de Janeiro, passando a ser em Brasília no
ano de 1960.
62
A polícia como aposta de “correção” da sociedade brasileira sempre foi uma
função que não se adapta bem a um ideal democrático, em que as forças
policiais usariam da prevenção e, quando muito preciso da repressão, para
proteger e defender o direito de cidadania de alguns indivíduos numa dada
sociedade. No Brasil, concomitantemente, a polícia sempre foi uma força
altamente repressora, militar e letal.
Após a ditadura militar, na década de 1980, o Rio de Janeiro foi acometido pelo
crescimento da violência e da sensação de insegurança. Em grande parte, este
aumento da criminalidade deveu-se, segundo alguns autores (ZALUAR, 1996;
ALVITO e ZALUAR, 2006; SOUZA, 2008; e PERLMAN, 2010) à chegada da
cocaína no Brasil, e sua alavancada comercialização num mercado ilegal e
ilícito. Daí, surgiram as facções criminosas que controlavam o comércio e sua
distribuição de dentro das favelas.
Segundo Souza (2008), o que temos nas favelas a partir desse período, são
“mercados da violência” ou “economia da violência”, em que o território
espacial e físico age como fator preponderante na comercialização da droga e
na ampliação do crime e de ações violentas para a sua legitimidade e
continuidade. Como explicita o autor,
Por três razões principais as favelas assumem uma importância muito
grande no comercio de tóxicos nas cidades brasileiras: além de serem
mananciais de mão-de-obra barata e descartável, sua localização e sua
organização espacial interna são, via de regra, extraordinariamente
vantajosas para a instalação do comercio de drogas ilícitas. (2008: 60).
Nessa nova configuração territorial e social do espaço de favelas, surge a
figura do traficante, o “dono do morro”, que comanda a boca de fumo, a
chegada da droga e sua comercialização. O chefe do tráfico assume o tom de
patrão executivo e normativo da favela, tendo o monopólio da vida e da morte
sobre seus habitantes, numa hierarquia25 do crime e na legitimação do poder
pelas normas de coerção interna que tais facções articulam nos morros.
25
Sobre a hierarquia do crime, ZALUAR (1996, p. 98) descreve algumas funções de pessoas
que são do tráfico: o “dono da boca” é o traficante que controla a venda da droga; “vapor” é o
gerente que permanece no local; “avião” é o que leva a droga até seu consumidor. Ainda é
63
O crime organizado, desta forma, estabelece uma nova forma de acumulação
da riqueza, mesmo que esta economia seja uma economia pautada no crime e
nas atividades ilegais. Essa acumulação é resguardada pelos instrumentos de
violência do traficante, tais como sua liberdade na escolha de matar, perdoar e
vingar alguém.
O vadio dá vez ao bandido. Em outros tempos, a polícia ia atrás do vagabundo
e do malandro carioca. Também, não existia cocaína e nem traficante com
armamento pesado, o que se tinha, era um uso pontual de maconha nas
favelas, que não chegava a se firmar como comércio.
Mais uma vez, as rodas de samba se embrenhavam meio a vida do morro,
afinando a festa junto ao cotidiano das pessoas de favela e, Chico Buarque já
dizia, numa composição de 1964, que “menino quando morre vira anjo/ mulher
vira uma flor no céu” e “malandro quando morre/ vira samba”. O samba, assim
como o funk atualmente, contam histórias e vidas de pessoas que foram
ilustres e/ou populares na favela, seja pelos seus trambiques e/ou crimes ou
por seus valores.
O malandro também é representado na Umbanda pela figura de Zé Pilintra,
sendo o espírito patrono dos bares, locais de jogos e sarjetas. Em um dos
sambas cultuados nos terreiros, vê-se a imagem da malandragem como oposta
ao trabalho e à polícia, como neste trecho: “estava sentado na praça/ quando a
polícia chegou./ Eu tenho um sentimento profundo/ me levaram como
vagabundo.” (“Ponto de seu Zé Pilintra”).
Mesmo em assuntos religiosos, a cotidianidade desses personagens da vida
carioca assume grande importância. Em outro trecho, “quando eu desço do
morro/ a nega pensa que vou trabalhar/ eu trago o meu baralho no bolso/ meu
cachecol no pescoço/ e vou pra Barão de Mauá/ trabalhar, trabalhar pra que?/
se eu trabalhar eu vou morrer.” 26.
sabido, que existem o “tesoureiros” que cuidam da administração do dinheiro, “fogueteiros” que
avisam da entrada da polícia na favela, entre outros.
26 Disponível em: http://malandrosemalandras.blogspot.com.br/2011/05/pontos-cantados-na-
umbanda-ao-seu-ze.html. Acessado em 04/11/2013. Os pontos de Umbanda e Candomblé não possuem autoria facilmente identificáveis.
64
A recusa do trabalho pela festa e pelo jogo, além das mulheres, ilustra a vida
desses malandros que constantemente se envolviam em brigas pelas ruas e,
por terem, a postura de pessoas que “não gostam de trabalhar”, eram
constantemente presos e reprimidos pela polícia. Os estereótipos do festeiro e
do vagabundo eram os grandes suspeitos da desordem da segurança pública.
Foto 4: representação do malandro carioca e também de Zé Pilintra27
.
Com o tempo, o malandro de terno, gravata e chapéu que saia pela noite a
tamborilar sambas e cantarolar melodias para as moças, sai de cena. Se antes
a polícia subia o morro atrás dessas figuras por sua má fama social e cultural,
atualmente, a polícia taticamente entra atrás do traficante “armado até os
dentes”.
A mudança que ocorre na ação policial não é em relação aos seus motivos e
causas, estas continuam, no mais, as mesmas; porém, a partir da década de
1980, a sensação do risco da morte violenta e da existência de facções
27
Fonte:
https://www.google.com.br/search?q=ze+pilintra&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=MSp4UtaHD5Ww4AOlnoG4BA&ved=0CAkQ_AUoAQ&biw=1024&bih=499#facrc=_&imgdii=_&imgrc=8ucDR5CP6UOJbM%3A%3Btk9jchO_b3So9M%3Bhttp%253A%252F%252Flucirosa.com.br%252Fwp-content%252Fuploads%252F2010%252F10%252Fze_pilintra.jpg%3Bhttp%253A%252F%252Flucirosa.com.br%252Fhomenagem-ao-mestre-ze-pilintra%252F%3B210%3B320
65
criminosas armadas faz com que a polícia utilize em alto grau seu aparato
militar e bélico na liquidação de tais agentes do tráfico.
O traficante, também, se faz oposto do trabalhador pobre. É o dono da favela
que demarca seu território, utilizando da força e do poder, assim como da
masculinidade; veste o semblante do chefe do crime organizado. A figura do
chefe homem e, em sua maioria jovem, que ostenta arma e dinheiro consagra
uma ilusão de liberdade; essa liberdade que tem, por via de regra, a escolha de
morte ou vida sobre outrem. Conforme afirma Zaluar,
A afirmação maior de um bandido é, inclusive, sua disposição em terminar
de vez com a liberdade alheia; em suas palavras, a “disposição para matar”
(ZALUAR, 1994a apud ZALUAR, 1996: 100).
Nesta nova roupagem do crime e do surgimento de novos sujeitos sociais, a
polícia volta como sendo a força necessária de recuperação, repressão,
vigilância e correção de partes de uma população com “tendências ao crime”.
Novamente a favela e seus moradores constituem a mira, o elemento suspeito
das ações policiais, tendo agora a comercialização de droga e o gerenciamento
do tráfico como alvo do combate.
A polícia adentra a favela com suas táticas e armas para combater e reprimir o
tráfico de drogas. Nessa ira impetuosa do Estado contra os delinquentes do
crime, a violência da letalidade da polícia se faz presente, assim como a
grandiloquência do aparato bélico que os traficantes trazem consigo. Apronta-
se um verdadeiro front de guerra tendo a favela como território de luta; seus
habitantes, constantemente, são assaltados por tiroteios, mortes, torturas e,
porventura, algum bandido que pede esconderijo em uma de suas casas.
O Estado é chamado, mais uma vez, como interventor da segurança e da paz
pública. Assim como nos primórdio de nossa República, a ordem pública e o
bem estar das classes mais abastadas, no que diz respeito à sua segurança,
devem ser tidos como premissa governamental para a erradicação e a
maquiagem das habitações pobres.
O elemento suspeito da polícia, de uma hora para outra, é o mesmo que em
áureos tempos em que um capoeira era detido por praticar sua dança e luta em
66
locais públicos ou quando a dona do terreiro que dançava samba cultuando o
candomblé era recriminada pela sua religiosidade. Voltamos, ou melhor,
permanecemos, numa clara alusão daquilo que é visto como uma mira em
determinadas parcelas populacionais pelas suas características físicas e local
de moradia.
Negros, jovens e favelados. São três elementos (SILVIA, 2005: 11)
contundentes para uma abordagem policial ou uma repressão, muitas vezes
letal, por parte dos “homens do Estado”. Não cabe aqui, vitimar um lado e
culpar o outro, mas fazer romper a noção de que ambos os lados dessa “luta”
do (e contra) o crime são sujeitos e atores da atualidade urbana; seja da
violência, da criminalidade exacerbada ou do tráfico de drogas.
Pelas palavras de Michel Misse (2011: ix), violência é a “força que se usa
contra o direito e a lei”, numa ruptura da ordem ou no uso de meios para se
impor uma determinada ordem. Ora, tanto os policiais quanto os traficantes
são, dessa forma, violentos e usam de uma dada violência para impor uma
ordem ou fazer valer uma. Não importa se a violência é formal ou ilegal, é
violência e suas táticas, meios e fins fazem emergir um caldeirão de
espacialidades e comportamentos em uma cidade.
No Rio de Janeiro, o domínio das favelas pelos traficantes constitui uma
territorialização (MISSE, 2011) do espaço físico e político, em que o poder de
controlar e estabelecer leis constitui um ponto de poder político e cultural de
uma população. Entretanto, as constantes tentativas do Estado em retomar
essas áreas, tendo como punho forte as políticas de segurança pública,
constituem também, uma arregimentação do espaço, numa demarcação do
território. Cidades territorializadas, cercadas, impugnadas e negociadas como
panteão norteador de políticas públicas do Estado e de mercados privados de
segurança e de investimentos imobiliários.
O que se tem hoje é um reforço de uma “militarização da questão urbana”
(SOUZA, 2008: 33), quer dizer, o uso intensivo de aparatos de segurança
(pública e privada), que em seu seio possui a lógica militar de combater um
inimigo e reprimi-lo em busca da ordem e da seguridade. Este inimigo, mais e
67
mais vezes, senão todas as vezes, é àquele interno, o próprio cidadão
brasileiro.
Ainda, para citar o referido autor, a questão da militarização do cotidiano,
segundo ele, faz surgir uma “guerra civil molecular” em
que mescla elementos de criminalidade menos ou mais organizada e
criminalidade ordinária não-organizada, (...) respostas menos ou mais
preventivas, menos ou mais repressivas por parte da polícia (...) e reações
autodefensivas por parte da classe média e das elites - reações essas que
agravarão a “guerra civil molecular” ao invés de detê-la ou estanca-la -,
apresenta pontos de contato com uma guerra civil, visto ser, também, uma
situação de violência difusa, ações e reações de ressentimento, ódio e
violência de cidadão contra cidadão em uma multiplicidade de situações no
interior de uma cidade ou país. (SOUZA, 2008: 36).
O que se procurou pontuar aqui foi como a questão da violência e da sensação
de insegurança geram modos e comportamentos de se lidar com certas
parcelas populacionais que carregam em seu meio cultural, político e
habitacional, “estigmas” que os levam a ser suscetíveis de uma suspeita
policial e repressiva por parte das forças de segurança do Estado, e como tais
suspeitas das miras policiais. E como esta ação da polícia pautada na suspeita
e no estereótipo do negro e pobre, constitui uma visão de mundo de classes
mais privilegiadas e uma forma hegemônica e homogênea de mascarar a
realidade social com tons de um branqueamento étnico e um poderio de
riqueza econômica como propulsores de uma gestão político-social e urbana
num dado espaço.
No Rio de Janeiro, isto é preconizado pelas favelas e seus habitantes que
constituem, grosseiramente, o local e os sujeitos próprios do crime e das
mazelas de insegurança da cidade. A segurança pública age conforme os
mecanismos dominantes da elite carioca e de uma maioria que prega uma
“guerra contra o crime e contra as drogas” como solução imediata de profundas
discordâncias relativas aos direitos civis e políticos de enormes populações,
que tiveram ao longo dos anos brasileiros, discriminadas seus costumes
religiosos, culturais e étnicos.
68
Para citar Silva, tem-se uma visão simplista de que a violência é um problema
em si mesma:
Um dos principais entraves a uma abordagem mais consequente é que a
violência urbana tem sido encarada como um problema em si mesmo,
independentemente dos fatores sócio-histórico-econômico-culturais que a
retroalimentam. No calor das paixões, as propostas de solução, não raro,
partem do suposto – absolutamente falso – de que é possível “acabar com a
violência”. No caso das drogas, por exemplo, “acabar com os traficantes” (e
não com o tráfico; ou mandá-los para longe, como se fosse possível,
mantido o modelo de “guerra às drogas” no mundo, quebrar a corrente entre
tráfico e uso.” (2012: 395).
Dentro deste contexto, as políticas de segurança pública adotadas no Rio de
Janeiro ao longo dos anos, foram respaldadas pela força do Estado, uso de
aparato militar e bélico, em que se tinha como alvo o criminoso traficante de
drogas residente das áreas pobres e de favela.
Neste sentido, é pretendido analisar a instalação e atuação do policiamento de
proximidade alavancado pelo projeto das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs), tema do item posterior, e como essa nova dinâmica na conduta e
prática policiais reconfiguram sociabilidades e territorialidades da cidade
fluminense.
2.3 As UPPs e a nova forma de policiamento
A partir do que foi visto até o momento, encontramo-nos numa nova fase da
segurança pública do Rio de Janeiro, ou pelo menos, pelos planos da
Secretaria de Segurança Pública, de instituir uma nova forma de prática policial
para a solução dos problemas relacionados à violência armada nas favelas.
Em 2008, a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) é instalada no
morro Santa Marta, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. As Unidades de
Polícia Pacificadora são um programa de combate à criminalidade que o tráfico
de drogas incute nas favelas do Rio de Janeiro, tendo como intuito a
consolidação da “Polícia de Proximidade”, possuindo como norte principal as
teorias acerca do Policiamento Comunitário.
69
A proposta governamental é a instalação de 40 UPPs até 2014 – ano em que o
Rio sediará a Copa do Mundo -, até o momento, a cidade conta com 34
Unidades instaladas. São elas: Adeus/Baiana, Alemão, Andaraí, Arará/Mandela
Babilônia/Chapéu-Mangueira, Barreira/Tuiuti, Batan, Borel, Caju, Cerro-Corá,
Chatuba, Cidade de Deus, Coroa/Fallet/Fogueteiro, CPP,
Escondidinho/Prazeres, Fazendinha, Fé/Sereno, Formiga, Jacarezinho,
Macacos, Mangueira, Manguinhos, Nova Brasília, Parque Proletário, Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo, Providência, Rocinha, Salgueiro, Santa Marta, São
Carlos, São João/Matriz/Quieto, Tabajaras/Cabritos, Turano, Vidigal e Vila
Cruzeiro.
Foto 5: Morro Santa Marta, vista da laje Michael Jackson (à esquerda), e região do “Cantão” (à direita) (novembro de 2012).
Segundo dados do sítio da UPP28, até o momento, são 233 territórios
“retomados” pelo Estado, 8.592 policiais com treinamento de polícia de
proximidade e 9.442.247 m² de áreas de extensão sob proteção das UPPs.
As UPPs possuem dois aspectos diferentes do policiamento comum adotados
nas favelas cariocas: a proposta de ocupação permanente e o enfoque na
retirada das armas ao invés da pauta de erradicação do tráfico de drogas. A
premissa central, desta vez, não recai no combate ao tráfico exclusivamente,
28
Disponível em: < http://www.upprj.com/>. Acesso em: 20 de agosto de 2013.
70
mas na permanência no local, com a tomada do domínio territorial das favelas
pelo Estado e do controle armado dos traficantes.
Segundo Rodrigues e Siqueira (2012: 11), a instalação de uma UPP numa
favela reverbera nas melhorias condizentes com a eliminação ou quase
inexistência de confronto armados nesses locais. Desta forma, interrompe-se o
círculo vicioso de reprodução da violência tanto conduzido pelos traficantes
quanto pela arbitrariedade da polícia ao adentrar os morros, quando a tática de
policiamento era o confronto com o intuito de apreensão e eliminação dos
traficantes.
A forma com que é instalada uma UPP segue, em geral, quatro processos de
ocupação. Num momento inicial dá-se a “intervenção tática” com a entrada na
favela de agentes do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e do Batalhão
de Polícia de Choque com o objetivo de prender criminosos e armas. Na
segunda etapa, o momento da “estabilização”, ocorre a ação conjunta da
intervenção tática mais o cerco à área que será comandada pela UPP, para a
realização de rondas e intervenções.
A etapa seguinte, marca a implantação da UPP de fato, para a realização de
rondas e prisões de criminosos remanescentes e com mandados de prisão
expedidos, além do contato inicial com a população local. A quarta etapa
refere-se a fase de avaliação e monitoramento, em que a base da UPP é
materialmente instituída no local, com a ocupação de prédios já existentes na
região ou improvisadas em contêineres.
Em relação ao trabalho policial, uma UPP é composta por um comandante
(com a patente de capitão ou major, dependendo da extensão da favela),
subcomandante (com patente de tenente) e as guarnições de patrulhamento
(compostas por praças). O comandante e o subcomandante são os policiais de
interlocução entre os vários atores e setores (população local, policiais, órgãos
estatais e privados) da favela e será o responsável pela comunicação e
conexão entre essas diversas partes.
Os objetivos específicos das Polícias Pacificadoras é a consolidação do
controle estatal e da devolução da paz e da tranquilidade públicas aos
71
moradores de favela. Tais conceitos como o de “paz” e “pacificação” são, em
si, muito genéricos para o conjunto de ações que o novo modelo de
policiamento promete cumprir e, mesmo assim, são slogans próprios dos
benefícios angariados pelas UPPs.
Anteriormente às Unidades de Polícia Pacificadora, outro programa figurou-se
em algumas favelas cariocas, o GPAE (Grupamento de Policiamento em Áreas
Específicas), com sua primeira unidade na favela do Cantagalo e Pavão-
Pavãozinho29. O GPAE é visto hoje como precedente negativo das UPPs e,
também, foi uma unidade de policiamento especializado em áreas de favelas,
tendo como o intuito a presença local da polícia com o enfoque no policiamento
de repressão ao armamento, em contrapartida, à repressão ao tráfico de
drogas unicamente.
O não sucesso dos GPAEs deveu-se, em suma, porque se tratava de uma
iniciativa preconizada por um grupo minoritário dentro da PMERJ30 sem apoio
institucional e político, o que acabou por não alavancar tal medida em política
de governo e de segurança pública.
Ao contrário, as UPPs são um plano conjunto da Prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro com a Secretaria de Segurança Pública do Estado31, porém, da mesma
forma que os GPAEs, não podem ser vistas como práticas de uma segurança
pública, já que seus preceitos, limites e futuros não estão previamente
estabelecidos, assim como mecanismos de controle externos não foram
instituídos previamente, com instalação das mesmas (RODRIGUES e
SIQUEIRA, 2012: 13). As UPPs, hoje, atuam mais como um experimento, um
processo em construção, um “grande laboratório” como citou o Coronel Robson
Rodrigues da PMERJ (ex-comandante das UPPs) em entrevista32.
Em relação ao trabalho policial, as Unidades têm como objetivo básico a polícia
de aproximação, como parâmetro principal, o estreitamento de relações entre
29
Inauguração em 22/09/2000.
30 Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
31 As UPPs são parte do mandato do secretário de segurança pública do Rio, José Beltrame.
32 Realizada pela pesquisadora no dia 10/06/2013 no Quartel General da PMERJ.
72
morador e policial, tendo como estrutura, o convívio cotidiano dentro das
favelas. Tal política de proximidade não pode ser confundida com um
policiamento comunitário, já que este, não perfaz as ações adotadas pelos
policiais da UPP, sendo apenas uma meta futura a ser atingida pelo programa.
Na teoria, o policiamento comunitário depende de uma filosofia com táticas de
estratégias acrescidas da operação e da prática da ação policial em conjunto
com a população local. A sociedade civil, neste caso, agiria como co-produtora
da segurança (SKOLNICK, 2002: 25) com um papel ativo de coordenação e de
manutenção da lei e da ordem.
Segundo Skolnick, o policiamento comunitário33 se baseia em quatro elementos
programáticos, são eles: prevenção do crime baseada na comunidade;
reorientação das atividades de patrulhamento; aumento da responsabilização
da polícia; e descentralização do comando.
O primeiro desses elementos diz respeito à responsabilidade em manter a
ordem e a segurança de uma localidade numa junção de tarefas tanto do
policial quanto do morador deste local; além dessa função, os policiais devem,
constantemente, fazer visitas às casas para alertarem sobre recomendações
de segurança e prevenção do crime.
A reorientação das atividades de patrulhamento põe em questão, justamente,
as formas de ronda policial usadas na prevenção do crime; normalmente, o que
se tem é um patrulhamento ostensivo no combate à violência, onde o uso da
força e do aparato bélico ganha legitimidade primeira. No policiamento
comunitário, ao contrário, o que se pretende é a instalação de mini-postos
policiais em que as rondas se dariam a pé, numa clara alusão de proximidade
com a população local, além de conversas com os moradores sobre problemas
cotidianos, não necessariamente, relacionados ao crime.
33
O policiamento comunitário, estudado por SKOLNICK, deve-se aquele existente em áreas de
classe média, perfazendo um cenário completamente diverso daquele visto em áreas de favela.
O tomado deste conceito como modelo para as UPPs pode ser tornar ineficiente se não tratar
das especificidades do contexto carioca.
73
O terceiro elemento, aumento da responsabilização da polícia, refere-se a
tentativa de se criarem mecanismos para ouvir a população. Neste caso, a
polícia seria parte conjunta da população em que estaria instalada uma base
de polícia comunitária, sem, entretanto, perder a divisa entre os moradores e
polícia.
A descentralização do comando, como último elemento apontado pelo autor,
diz respeito a uma maior adaptabilidade do comando policial local conforme as
características do ambiente, quer dizer, a ação policial deve ser adaptável
conforme as particularidades locais num envolvimento maior com a
comunidade.
Skolnick deixa clara a importância da participação da sociedade civil na
promoção da segurança juntamente à polícia para uma melhoria na sensação
da mesma e no decréscimo das taxas criminológicas de uma dada região.
Contudo, o mesmo autor alerta:
Se for realizado de modo autoritário e sem a responsabilização em relação
à comunidade local, poderá vir a ser apenas mais uma reciclagem do
policiamento da “pancadaria”. Por outro lado, se for uma resposta inteligente
para os problemas que perturbam o bairro, e refletir os desejos da maioria,
então a manutenção da ordem poderá ser considerada como capaz de
proporcionar um serviço relevante da polícia, embora seja um serviço
realizado sob a ameaça explícita da lei. A manutenção da ordem representa
uma ampliação dos propósitos do policiamento, ultrapassando a estrita
supressão dos crimes para chegar ao desenvolvimento de comunidade nas
quais se pode viver dignamente. (2002: 29).
Com as UPPs e seu policiamento de proximidade, não se chega ao
policiamento comunitário, basicamente, o policiamento de proximidade
estabelece a presença diária do policial no local, tendo em vista, a interação
com a população local.
Para que daí se prossiga a uma polícia comunitária, as UPPs necessitariam de
uma melhor intermediação na interação policial-morador, tendo este último
como ator ativo na construção da segurança local. Além disso, a UPP não
conta com um controle externo que dê conta de avaliar e revisar as práticas
74
dos policias nem uma definição formal das etapas a se cumprir até que este
policiamento comunitário vigore. O risco que decorre daí é a estagnação do
projeto, com a eminência de alavancar a corrupção da polícia e da
degeneração do programa.
A corrupção torna-se uma grave problemática dentro do contexto de favelas
cariocas, já que sempre houveram acordos estabelecidos entre traficantes e
policiais para diminuir e adiar o confronto destas duas partes. Este acordo,
denominado “arrego” foi e, continua sendo, uma prática muito comum em
favelas para que se interrompa, mesmo que temporariamente, alguns
confrontos bélicos nessas áreas (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012: 44). A
corrupção policial, ainda, fazia chegar armamentos pesados desviados de
batalhões para as mãos dos traficantes, pagas pelo lucro do próprio tráfico de
drogas.
Como medida cautelar, a UPP incorporou em seu contingente, praças recém-
formados da PMERJ. Tal cautela se junta ao discurso de que policiais
formados recentemente e sem experiência com o policiamento de radiopatrulha
e de confronto, teriam os “vícios” criados e existentes na corporação reduzidos
e/ou inexistentes.
Sobre o risco da corrupção na UPP, Rodrigues e Siqueira atestam que
[a] corrupção policial no seio das UPPs pode, ironicamente, ter
consequências mais graves que as práticas de corrupção tradicionais. De
modo distinto das práticas do “arrego” (nas quais o policial não adquire junto
com o dinheiro o poder sobre a comunidade), a corrupção policial nas
UPPs, caso ocorra, conjuga-se com um alto grau de controle sobre os
assuntos da vida cotidiana. (2012: 43-44).
O risco da corrupção numa UPP se faz ainda maior quando percebe-se a não
existência institucional de um órgão regulador das ações desses policiais. Já
que cada território de comando da UPP possui uma estrutura interna própria,
com um contingente policial e uma forma de interação com a população
caracterizada segundo as peculiaridades do local, reafirma-se a dificuldade em
dar conta de apreender esses dinamismos e controlar as ações nesses
espaços.
75
As principais demandas atendidas pelos policias de uma UPP são as
relacionadas com o volume do som em festas, rixas e brigas, problemas com a
mobilidade de pessoas idosas e/ou com deficiência em se deslocar pelo morro,
e problemáticas referentes à saúde, como resgate e socorro de feridos.
Tais demandas são denominadas, pejorativamente, pelos próprios policiais de
a “feijoada” de cada dia (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012: 39), por justamente,
não se tratar de problemáticas condizentes com aquilo que os policiais pensam
ser o “verdadeiro” trabalho policial. Tais medidas, não envolvem, diretamente, o
confronto armado; nem a dualidade policial versus bandido.
A cultura policial e a simbologia que este trabalho desperta nas mentes e
comportamentos de praças e comandantes é daquele policial pronto para o
combate armado, altamente repressivo e letal. Essa percepção traz conflitos e
problemas para os policias da UPP, treinados numa política de proximidade em
que o diálogo e a resolução de conflitos interpessoais são a grande pauta e
missão desses novos policias.
Mais ainda, há toda uma resistência às UPPs e ao seu trabalho dentro da
própria corporação da PMERJ. Segundo Rodrigues e Siqueira (2012: 45), em
estudo sobre as práticas cotidianas da UPP em quatro favelas34 do Rio,
afirmam que há um descrédito por parte dos policias de não UPP aos policiais
de UPP, pela ideia de que o policiamento de proximidade não condiz com uma
“real” situação policial.
Essa desavença cultural entre prática e ideologia do trabalho policial se reflete
nas relações cotidianas entre morador-policial e, pode suscitar novas clivagens
e interrupções numa proximidade ou numa interação entre morador-policial.
As favelas do Rio de Janeiro, mesmo que imbricadas em zonas e áreas da
classe abastada, é reduto de miséria e pobrezas que geram violências
domésticas e um sem número de atividades ilegais e ilícitas, assim como o
tráfico de drogas. A instalação das UPPs nessas áreas reforça uma iniciativa
34
Batan, Borel, Providência e Tabajaras/Cabritos.
76
pungente do governo no combate ao crime e na expulsão de pessoas tidas
como perigosas.
A recuperação de territórios e o controle dessas áreas pelo Estado acabam por
retirar o controle do território de favela de um grupo de traficantes armados,
passando a ser de domínio estatal. A territorialização do espaço nas mãos do
Estado, também gera uma segregação socioespacial do espaço urbano, uma
vez que há policiamentos diversos para cada parcela de toda a cidade do Rio
de Janeiro.
Além do que, a prática policial da UPP, mesmo sendo baseada num
policiamento de proximidade, contém em si o germe e a mentalidade de uma
polícia militar altamente repressiva e letal em sua atividade. Esta mentalidade
e, também, a memória de ações passadas da polícia nas favelas, gera uma
desconfiança e um desconforto mútuo entre moradores e policiais. Esse
paradigma, pode se revelar como um desgaste na relação entre as partes
envolvidas, gerando um esgotamento no sentido do policiamento de
proximidade, assim como na confiança do morador em ter na polícia uma
aliada para seus problemas cotidianos.
Segundo o deputado estadual Marcelo Freixo em entrevista35, a polícia deve ter
três fatores para o seu desenvolvimento enquanto polícia ligada à cidadania e à
democracia:
tem que ter uma formação adequada, que você não tem hoje; tem que ter
formação adequada com valorização, com pagamento decente; policial no
Rio de Janeiro hoje ganha um absurdo, os piores salários do Brasil; tem que
ter o controle sobre essa polícia, né? Você não tem. Hoje, todos os
sistemas de corregedoria, de ouvidoria são muito falhos. A punição é
exclusiva aos praças, os oficiais nunca são punidos. Não chega. E a
proximidade. Essas são as três coisas: a proximidade, a polícia se
aproximar mais do direito do cidadão; o controle sobre essa polícia e a sua
formação e valorização. Esse tripé é fundamental pra uma outra polícia e
para uma outra política de segurança. Isso não tá garantido no Rio de
Janeiro. (Marcelo Freixo).
35
Realizada pela pesquisadora em 07/06/2013.
77
O tripé formação/valorização – controle externo – proximidade, são os
elementos básicos que compõem o ideal de policiamento comunitário e, que
por isso mesmo, deveria ser amplamente difundido e respeitado por todos os
setores da PMERJ e na formação do policial de UPP.
Além do mais, o que se tem hoje é a expansão rápida do domínio territorial das
favelas pelas forças policiais, sem a definição clara das metas futuras do
projeto da UPP e nem das etapas necessárias a serem cumpridas para a
instituição de um policiamento comunitário de fato. Essa demanda de
conquistar territórios, impulsionadas pela propaganda estatal e governamental
do Rio, e alavancadas, em certa medida, pela imprensa, faz emergir a
sensação de que a quantidade se funde à qualidade.
Entretanto, recorrendo ao que já foi exposto, corre-se o risco de uma nova
territorialização por parte da polícia dos espaços de favela, com alto grau de
controle dessas populações e a eminência de corrupção dentro da corporação.
Além disso, a memória de ações policiais passadas nas favelas incute um
distanciamento e uma desconfiança entre moradores e policiais gerando um
desconforto mútuo das partes em se envolver mais tacitamente na ideologia de
polícia de proximidade. Esta cultura residual, que tem no passado as bases
para o presente e o futuro, é o grande impasse cultural e político que tem, por
necessidade, a sua superação.
Para que as UPPs não sejam degradadas e solapadas pela corrupção, como o
foi as GPAEs, necessita-se da instituição de metas e controles externos a essa
nova prática; além de iniciativas para desfazer as desconfianças e desconfortos
da população com mais atividades e reuniões entre policiais e a população
favelada.
Como elucida Marcelo Freixo, o ponto de partida para uma melhoria nos
assuntos de segurança que envolve as UPPs, parte de um melhor
gerenciamento das ações policiais. Em suas palavras:
[e]u acho que você tem que ter um planejamento de ocupação que seja um
planejamento de redução do papel do tráfico e isso tem que ser
acompanhado de um melhor controle do tráfico de armas e munições, (...)
78
porque, na verdade, não há controle do que… Enfim, tem tráfico de armas e
munições, não tem só tráfico de drogas, né? A grande questão não é nem a
droga. A grande questão é que as pessoas não morrem de overdose, as
pessoas morrem de tiro. Então, tem uma série de políticas que tem que
acompanhar. Você tem que ter um planejamento. (Marcelo Freixo).
A ideia de uma melhor planejamento da instalação das polícias pacificadoras,
reflete também, a forma com que as Unidades são espalhadas pela geografia
da cidade, revelando a convergência de instalações nos bairros da Zona Sul
fluminense em detrimento de zonas do subúrbio e da Baixada Fluminense.
Trata-se de ter como meta, uma política de segurança pública preocupada com
toda a cidade e, não só, a legitimação e estabelecimento de uma polícia dentro
de áreas de favelas como sendo locais do perigo e da insegurança. Antes, é
preciso uma reestruturação do espaço urbano em que não se crie mais
segregações, dicotomias e territorialidades específicas.
79
CAPÍTULO 3: O cotidiano silenciado: a UPP nas favelas Pavão-
Pavãozinho e Cantagalo
“A refavela
revela aquela
que desce o morro e vem transar.
O ambiente
efervescente
e uma cidade a cintilar.
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó”
(“Refavela” – Gilberto Gil, 1977).
Andar pela cidade do Rio de Janeiro é sempre uma experiência de se enroscar
por caminhos de apartamentos altos, casas antigas, biroscas de suco e água
de coco e, gigantescos aglomerados de casas e casebres, que aparecem entre
uma esquina e outra, em cima de um túnel, no fundo de uma rua. Caminhar
pelo Rio é se descobrir por entre a desigualdade social brasileira escancarada,
mas, que mesmo deflagrada, guarda muitas histórias de violência e abusos,
facilmente escondidas pelo “asfalto”.
Nesse imbricado cenário, andando por ruas desconhecidas, que me vi diante
de um imenso aglomerado de casas e sobrados, fundidos ao morro com vista
para o mar, e permeado de pessoas vindas de vários cantos do país. Tinha
encontrado, então, a favela do Cantagalo e sua vizinha, a favela do Pavão-
Pavãozinho.
80
Foto 6: vista da favela Cantagalo da Rua Raul Pompéia em Copacabana (à esquerda), e
ladeira de acesso ao Cantagalo pela Rua Sá Ferreira (à direita).
As favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo estão localizadas na Zona Sul da
cidade do Rio de Janeiro, entre os bairros de Copacabana e Ipanema. Próximo
à orla da praia e dos bairros mais procurados pelos turistas. Juntas, as favelas
possuem 10.338 habitantes, num total de 3.268 domicílios segundo o Censo do
IBGE de 2010. Quinta região a receber a Unidade de Polícia Pacificadora em
dezembro de 2009, depois de Santa Marta (2008), Cidade de Deus (2009),
Batan (2009) e Chapéu-Mangueira/Babilônia (2009), a região passou a ser
denominada como o conjunto Pavão-Pavãozinho/Cantagalo.
Segundo a UPP Social36, tanto Cantagalo como Pavão-Pavãozinho, surgiram a
partir da ocupação da orla da cidade ainda no século XX donde o crescimento
comercial e a maior oferta de empregos estimularam a vinda de pessoas do
interior do estado e de Minas Gerais.
O acesso à favela se dá no final da Rua Sá Ferreira pela ladeira Saint Roman
e, sua subida, de início, a quem não conhece, parece-se mais com uma
continuidade do bairro de Copacabana: ruas de paralelepípedos, com grandes
casas e casarões murados e muito arborizados. Mesmo muito semelhante ao
“asfalto”, à entrada da favela sempre fica estacionada uma viatura da UPP com
as portas abertas com um ou dois policiais armados, na maioria das vezes,
com fuzis.
36
Disponível em: < http://uppsocial.org/territorios/pavao-pavaozinho-cantagalo/>.
81
Logo ao lado da viatura, do outro lado da rua, um burburinho de motos
entrando e saindo marcam a parada do ponto de moto-taxis. Muito comum em
comunidades cariocas, a moto-taxi e, também, as “kombis”, é o meio de
transporte dos moradores para „subir o morro‟. A movimentação é grande,
muitas pessoas conversam, algumas mandam frases de adeus aos que estão
subindo, outros param nos camelôs para comprar alguma coisinha ou tomar
uma cerveja.
Continuando na ladeira, a rua de paralelepípedo dá lugar ao asfalto e as casas
arborizadas vão perdendo muros e jardins sendo substituídos por escadarias,
vielas, ruelas, postes e um emaranhado de fios elétricos. O ar, antes úmido e
gelado, agora é expansivo, com uma leve brisa da praia sorvido pelo calor do
concreto. As ladeiras são íngremes e tortuosas, com muito lixo pelo chão e
alguns pontos de esgoto a céu aberto.
Andando por essas ruelas e vielas, foi difícil, de uma primeira olhada, perceber
onde termina Cantagalo e onde começa Pavão-Pavãozinho. Mesmo encaradas
pelo Estado e pela polícia como um conjunto, seus moradores definem-se
como morador de uma ou de outra área, nunca sendo do mesmo conjunto. Há
várias entradas para a favela do Pavão-Pavãozinho, uma delas é uma
escadaria que leva diretamente às regiões do Caranguejo e do Vietnã, onde no
topo, foi construída uma quadra de futebol.
Foto 7: jogo de futebol na quadra do Pavão-Pavãozinho.
Não há setas nem direções e, a subida do morro é feita pela descoberta e pelo
incerto: ora se encontra o caminho certo, ora se entra na sala de algum
morador, ou adentra-se numa laje e, quando isto acontece, é merecida a
82
parada para tomar fôlego e apreciar a vista de toda a praia de Ipanema, do
Leblon e do Arpoador. Entre erros e acertos e, com o tempo, acostuma-se aos
caminhos que te levam ao topo do morro; mesmo parecendo um labirinto de
escadas, há caminhos certos para lugares determinados. O espaço, mesmo
parecendo bagunçado, possuí uma lógica de organização.
Essa lógica condiz com aquilo que Lúcio Kowarick (2011: 10) denomina como
“lógica da desordem”:
uma modalidade de crescimento econômico que reproduzia “vulnerabilidade
social na cidade” de forma ampliada, gerando processos predatórios com
feições nitidamente políticas. A urbanização aparentemente desordenada
da metrópole tinha uma lógica adotada pelo Estado repressivo que se
constituiu em alicerce importante para a acumulação de capital.
A junção de crescimento acelerado da econômica brasileira com o
consequente inchaço das grandes cidades de migrantes como mão de obra
barata, fez emergir áreas de habitação em espaços clandestinos ou não,
carentes de infraestrutura, como iluminação, esgoto e água encanados, coleta
de lixo, postos de saúde, entre outros. Nesse ínterim, surgem as casas
apertadas umas as outras, com tijolos a vista, antenas penduradas, varais
sobre vielas, janelas apertadas entre alpendres e vasos de flores.
A favela possui padrões técnicos próprios de habitação em que se nota uma
grande heterogeneidade do ambiente construído, mas que denota também um
estilo peculiar de viver na cidade. Estilo esse estigmatizado pela acumulação
do capital e pela especulação imobiliária.
Quando não se tem onde morar, busca-se um terreno (clandestino ou não) que
sirva de alicerce para a autoconstrução de uma casa com materiais baratos e
improvisados, legando a técnica e perícia aos saberes cotidianos de quem não
pode contar com padrões de arquitetura formais.
Mais que isso, as favelas e sua estética organizacional, revelam a
desigualdade social existente na cidade quando deixa inscrito no espaço a
83
diferença entre aqueles economicamente mais abastados daqueles que
habitam áreas degradadas e sem os serviços públicos adequados.
No Rio de Janeiro, a diferença e as desigualdades, se evidenciam a olho nu: a
favela cresce no meio de edifícios de luxo, lojas de roupa, boutiques, avenidas
e comércios dos mais variados tipos. Pobreza e riqueza unem-se num aspecto
de normalidade e segregação socioespacial.
Foto 8: criança se esconde atrás de poste de luz na escadaria do Cantagalo (à esquerda),
e vista da praia de Copacabana do topo do morro do Pavão-Pavãozinho (à direita).
A favela tem muitos sons, muitas buzinas, conversas, roncos de motores,
gritos; entretanto, em alguns desses meandros de casas e escadas, é possível,
somente, escutar o silêncio. O sono de um gato no telhado, do garoto
empinando pipa no pedaço de casa em construção, das ondas do mar que
quebram ao longe.
Neste capítulo é tratado das percepções cotidianas dos moradores das favelas
Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, refazendo um trajeto histórico – quando
possível – do antes e depois da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora
nas favelas; as mudanças, rupturas e continuidades dessa nova forma de
policiamento.
Este capítulo foi dividido em três partes, assim como os outros: no item 3.1
trato da descrição das duas favelas, relatando dados estatísticos e censitários,
84
além das próprias percepções da pesquisadora em visitas às localidades; no
item 3.2, o foco é a instalação da UPP, o antes e o depois na visão dos
moradores, suas críticas, denúncias e opiniões sobre o Programa e percepções
de melhoria da segurança pública; o último item, 3.3, relata o posicionamento
dos moradores em relação ao futuro e, toca nos ideias de guerra e paz tão
contundentemente utilizadas nos discursos de segurança do Rio de Janeiro,
além de projeções quanto a uma favela melhor e “pacífica”.
Vale ressaltar, que todos os itens serão entremeados por recortes das
entrevistas feitas com os moradores, tanto do Cantagalo quanto do Pavão-
Pavãozinho, e observações da pesquisadora que conviveu e vivenciou
situações dum espaço de favela, com conjunturas novas e diferentes.
3.1 Do que é feito Pavão-Pavãozinho e Cantagalo
No muro da favela tem escrito de tinta e com pouca pontuação, que ao
despertar do galo, todos os moradores desciam para o trabalho e iam acordar a
cidade lá embaixo; escravos fugidos e interioranos de Minas Gerais formavam
os primeiros habitantes do Cantagalo.
Do seu lado, surgiria a favela do Pavão-Pavãozinho, e em outro muro, é sabido
que sua origem vem de uma remota lenda de que um vistoso pavão do Ceará
trazia um famoso homem de lá para as terras do Rio de Janeiro. Como toda
boa lenda é incerta, numa outra mureta, diz ser o nome da favela devido a um
quintal de pavões que existia há algum tempo ou a um senhor, de pés
rachados de tanto andar descalço, chamado Pé de Pavão.
Histórias ou não, verdadeiras ou falsas, tanto Cantagalo como Pavão-
Pavãozinho, foi sendo povoada, em sua maioria, por famílias vindas de Minas
Gerais, interior do Rio e ex-escravos no início do século XX, segundo dados do
sítio da UPP Social37. Entretanto, na voz dos moradores e pelas próprias
palavras pintadas nas paredes, muitos moradores vieram de outras regiões do
Brasil, como do norte e nordeste brasileiro:
37
Disponível em: http://uppsocial.org/. Acessado em 07/11/2013.
85
Minha vó chegou aqui em 1900, comecinho do século. 1903, 1906... Eu não
lembro. Chegou meu avô e duas senhoras, chegou no lugar, pegou um
vale. O que é um vale? Uma montanha, um lugar onde eles ficaram tudo
escondido. (...) Aí começaram a construir, só que na época não podia
construir casa de alvenaria, só barraco. E assim mermo foi parteira,
rezadeira. Nasci aqui, geração da família toda, nasci aqui e depois a
geração foi se espalhando pelo Rio e, até hoje, eu não sei de onde minha
vó veio. Ela falava muito de Miracema do Norte. Acho que é Minas. (D. 41,
moradora do Cantagalo)
Mesmo com a confusão da moradora, seus familiares vieram do estado de
Tocantins, onde fica Miracema do Norte. Assim como os avós de D., muitos
outros vieram de outros lugares atrás de moradia e melhores condições e
facilidades de trabalho. O morro, onde hoje existem grandes aglomerados de
casas, era de aspecto rural, com barracos, muitos animais e chão de terra.
Ainda descrevendo sua infância, D. diz que naquela época o cotidiano da
favela era um cotidiano de fazenda:
Fui criada com porco, com porquinho-da-índia. (...) Tomava leite de cabra. E
até hoje em dia, o pessoal ainda tem essas coisa da alma, acorda de
manhã cedo. Solta os cachorros, a mulecada solta os passarinho, tem o
pessoal que trabalha na praia, que vai fazer ginástica na praia. De manhã é
hora desse movimento. Família, criança e animal.
Pelas lembranças de outra moradora que nasceu na favela do Pavão-
Pavãozinho, sua infância era da brincadeira:
Quando eu nasci meus pais já moravam aqui. São da Paraíba. Vieram de lá
pra cá, aí fizeram a casa deles aí, e aí, nasci aqui mermo. Tive uma infância
boa, brincava muito, corria pelos caminho. Era muito bom. (M, 46, moradora
Pavão-Pavãozinho).
Atualmente, o conjunto Pavão-Pavãozinho/Cantagalo possuí 10.338
habitantes, num total de 3.268 domicílios, numa densidade demográfica de
808,0 habitantes por hectare, segundo o Censo do IBGE de 2010; sendo essas
residências, 54% próprias, 44% alugadas e 2% cedidas. Das casas e barracos
que se pode observar, sua maioria é feita de alvenaria, muitas sem reboco a
86
vista, mas que, no entanto, em seus interiores guardam um rigor estético
próprio e organizado.
De uma visão geral, a favela do Cantagalo, tem uma arquitetura mais
espaçosa, as casas, mesmo que construídas sem muito planejamento quanto
ao lugar ocupado, possuem certo distanciamento em relação às vizinhas e,
poucas, se elevam em sobrados e andares. Já Pavão-Pavãozinho, o que se
observa é o oposto: as casas são muito juntas, com muitas escadarias sem
direcionamento e que podem ou não te levar a algum lugar, ruelas sem saída e
muitas casas com andares e lajes em construção.
Esse planejamento do qual é citado, condiz com uma forma de organização do
espaço que muito se refere a condição social de quem ali reside; quer dizer,
que o planejamento do espaço geográfico, assim como sua disposição
arquitetônica, tem a ver com inúmeros elementos que formam a vida social do
sujeito.
Urbanização acelerada, espoliação imobiliária, acúmulo de capital, relações
econômicas do mercado imobiliário, assim como segregação socioespacial e
desigualdades sociais, formam um todo que imbricam no modo de ser e
construir nas favelas. Não à toa a disposição de casas sejam muito
aglomeradas ou a falta de esgoto e água encanada faz surgir inúmeros modos
improvisados de se conseguir dar conta da higiene e da nutrição diária dessas
populações.
87
Foto 9: crianças jogam bola na região do Caranguejo, onde as casas são feitas de barro e madeira.
Lúcio Kowarick (1993) denomina isto, “lógica da desordem” em que, de modo
sintético, o crescimento acelerado das grandes cidades no chamado “milagre
brasileiro” sujeitou o capital a novas formas de relação econômicas e
financeiras influenciando, diretamente, na condição da habitação e na
distribuição das moradias no tecido urbano.
As condições de vida dependem de uma série de fatores, da qual a
dinâmica das relações de trabalho é o ponto primordial. Não obstante tal
fato, é possível fazer uma leitura dessas condições através da análise da
expansão urbana, com seus serviços e infra-estrutura, espaços, relações
sociais e níveis de consumo, aspectos diretamente ligados ao processo de
acumulação do capital. (KOWARICK, 1993: 33).
Nas favelas do Rio de Janeiro, existem peculiaridades encontradas em todas
as localidades, entretanto, cada lugar difere do outro em suas minúcias, cores
e “arranjamentos”. Assim como citado, o Cantagalo parece ser um espaço
muito mais amplo e arejado, enquanto Pavão-Pavãozinho preza pelas
escadarias íngremes, becos sem saída e ruas estreitas. O modo como foram
construídas as casas (grande parte autoconstruídas por seus próprios
moradores) também diferenciam conforme os materiais utilizados e a condição
socioeconômica de seus habitantes.
88
No Cantagalo há muitas casas de tijolos e alvenaria, pintadas ou não, a
claridade adentra-se mais facilmente desse lado da comunidade, os telhados
são altos, as vias de passagem mais largas e claras. A circulação de pessoas é
intensa, mas curvas e vielas escondem esquinas e vãos.
Já no Pavão e no Pavãozinho, as casas são mais juntas e aglomeradas, o
cinza do cimento se faz mais presente nas paredes e mais acima no morro,
muitas casas são feitas de barro e tocos de madeira, sofrendo grandes riscos
de desmoronamento. As escadarias longínquas são desgrenhadas e muitas
terminam no sopé de alguma casa ou se ramificam em outras duas escadas.
Tanto em uma como em outra favela, as curvas das ruas são numerosas,
algumas casas se formam a arriscar qualquer noção de perpendicularidade, em
que a visão de um curioso se perde em linhas de fuga e ângulos.
Ruelas sem saída e com pouca claridade infringem na pouca circulação de
transeuntes, fazendo surgir locais de esconderijo e/ou atividades ilícitas. Tais
espaços eram e continuam a ser, muito utilizados por traficantes e agentes do
tráfico como “boca de fumo”. A construção arquetípica dos ambientes, assim
como o uso que se faz dele, condiz com uma relação econômica e utilitária.
Quer dizer que o espaço e a sua ambivalência de usos e significados, denotam
a quantidade de apropriações que se possa fazer ou dar a um determinado
lugar. A favela, hoje em dia, mesmo que sem os movimentos contínuos do
tráfico como antes da instalação da UPP, guarda essa memória, traça no chão
e nas paredes a comercialização da droga.
Mais que uma relação comercial, a segurança reaparece nesses meandros,
fazendo ecoar os tiros aprisionados nas casas, das mortes sugadas pelo
concreto e das disparidades sociais apontadas pelos tiroteios entre “bandido” e
polícia.
Andando por todos esses cantos, o acesso da Rua Sá Ferreira, adentra-se a
ladeira que levará ao topo do Morro do Cantagalo, onde foi instalada a base da
Unidade de Polícia Pacificadora em 2009. Durante toda a subida da ladeira, é
percebida a diferenciação arquitetônica do ambiente; conforme se adentra na
favela, casas muradas e arborizadas dão lugar a biroscas, bares, oficinas,
89
padarias, lojas de roupa, camelôs e feiras; pavimentadas num emaranhado de
ruas e fios elétricos que conduzem a dois caminhos distintos. Um, seguindo
reto na ladeira, acabará na base da UPP e no prédio do Projeto Criança
Esperança e do AfroReggae; outro, pelo lado esquerdo, uma escadaria recém-
construída, arranja-se num difuso conjunto de casas, desembocando em outra
escada até a segunda ladeira de acesso a favela.
O prédio do Criança Esperança é um espaço onde funciona o Espaço Criança
Esperança (ECE), que atende crianças e adolescentes num projeto
educacional e cultural. Dentro do prédio funciona uma biblioteca, um espaço
multimídia, salas de aula e lanchonetes. Criado em 2001, o projeto atende mais
de oito mil pessoas, segundo o VivaRio38, e mesmo com muitas atividades, o
prédio é pouco iluminado e escondido. Aos fundos funciona um dos núcleos do
Grupo Cultural AfroReggae com projetos e atividades ligadas à arte e à
empregabilidade de jovens moradores de favelas e ex-atuantes do tráfico.
Foto 10: prédio do Criança Esperança à esquerda, e parte do morro Pavão-Pavãozinho
visto do Cantagalo.
Caminhar pelos dois percursos em dias diferentes, contudo, demonstra a
intensidade e a agitação do vaivém de pessoas, mesmo aos domingos de
manhã. Por todo lugar, percebe-se a grandes quantidades de lixo e sacolas
plásticas reunidas em montes e espalhadas pelas ruas e quadras da favela. O
odor de lixo é forte em alguns trechos e, de uma rápida olhada pelo meio-fio
das calçadas, vê-se o esgoto que escorre à céu-aberto.
38
Disponível em: < http://vivario.org.br/educacao-artes-e-esportes/espaco-crianca-esperanca/>.
90
Muito comum nas faslas dos moradores, o problema com o lixo que transborda
e se mistura a brincadeira da criança ou é obstáculo de quem anda por lá.
A gente não tem, com freqüência, coleta de lixo. Antes tinha, que era os gari
comunitário, depois eles tiraram o comunitário e colocaram outros [de] fora.
Aí a gente fica assim, com os caminho tudo sujo. Tem essa passarela aqui
que a gente sempre varre, tem dia que isso aqui ta uma zona danada. As
criança pega lixo começa a brincar com lixo pelos caminho e aí deixa assim
ó, tudo espalhado. Aí a gente mermo, pega e limpa. A gente varre. (M, 46,
moradora Pavão-Pavãozinho).
A Comlurb, empresa pública de coleta de lixo da cidade do Rio de Janeiro,
sobe a ladeira do Cantagalo para o recolhimento, entretanto, muito lixo é
despejado nas encostas do morro e nos arredores das quadras, não sendo
retirado dali. No Pavão-Pavãozinho, a história se repete, tendo muito lixo pelas
ruas e um forte cheiro de esgoto em alguns pontos.
Foto 11: lixo aglomerado ao lado da quadra de esportes do Cantagalo (à esquerda), e
caçamba entulhada de sacolas plásticas (à direita).
Segundo dados do IBGE39, o percentual de domicílios com banheiro ou
sanitário adequado é de 99,2%, num total de 3.241 domicílios; contra 2
domicílios inadequados (0,1%). Em relação a coleta de lixo, os dados são
semelhantes: 3.265 dos domicílios (99,9%), estão na faixa adequada de coleta
de lixo, enquanto 3 domicílios (0,1%) constituem a faixa inadequada.
39
Censo de 2010
91
Mesmo que os dados apontem para a existência de banheiros ou sanitários e
de coleta de lixo como sendo “adequados”, grande parte das vias públicas e de
passagem das favelas permanecem com esgoto à céu-aberto e com
amontoados de lixo sem recolhimento adequado e em tempo viável para a
proliferação de insetos, ratos e mal cheiro.
Tabela 1: Total e percentual de domicílios particulares permanentes por tipo de esgotamento sanitário
Fonte: Instituto Pereira Passos (IPP); dados preliminares do Censo Demográfico IBGE (2010).
Na subida rumo ao topo do Cantagalo, do lado esquerdo, há uma passarela
recém-construída que adentra por uma viela com casas, ostentando uma
grande quadra de esporte abaixo. Um pouco mais acima, um conjunto de
prédios também, demonstrava ser construído há pouco tempo. Tais
construções, fazem parte do PAC 2 (Programa de Aceleração do Crescimento),
e condizem com o programa de urbanização do conjunto Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo executado pelo Estado e encontra-se em estágio de
obras ainda não finalizado;40 com um investimento previsto de
R$35.988.463,97.
Além dessas construções, Pavão-Pavãozinho possuí, também, ruas e
escadarias pavimentadas, além de um dos acessos ao morro, reformado e
construído em forma de um portal.
40
Dados disponíveis em: < http://www.pac.gov.br/obra/28554>. Acessado em 17/11/2013.
92
Foto 12: construções do PAC: conjunto de apartamentos (à esquerda) e quadra de
esportes (à direita).
É fácil andar por esses caminhos e encontrar muitas crianças correndo pelas
subidas e descidas, brincando com os colegas ou empinando pipa de uma laje.
Elas facilmente se misturam aos animais e ao cenário; parecem fazer parte da
desconexão de paredes, perspectivas, rebocos, encanamentos e entulho.
Juntamente com gatos e cães, as crianças se escondem em vãos e fazem
brinquedo de qualquer improviso e resto de lixo.
É fácil se deparar com objetos quebrados, utensílios de cozinha jogados no
chão, pedaços de pipa que embaraçaram nos fios elétricos, bonecas de
plástico, carrinhos, entre outros pedacinhos que servem de brincadeira para as
crianças. As ruas da favela e todos seus becos e caminhos, servem de quintal
para o brincar e conversar; o ambiente de fora de casa é o ponto de encontro e
de reunião, uma extensão da sociabilidade dos habitantes.
Segundo dados censitários41, do total da população, 27% correspondem à faixa
etária de 0 a 14 anos (2.741 pessoas), enquanto as de 15 a 29 anos, 34%
(3.504 pessoas); contudo, a grande parte da população do conjunto Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo, está na faixa dos 30 a 64 anos com 37% do total
habitacional (3.792), e dos 65 em diante, 3% da população (301 pessoas).
41
IBGE, Censo 2010.
93
Sobre a distribuição de sexos conforme a idade, homens são a maioria do 0
aos 29 anos, enquanto mulheres, tornam-se maioria, dos 30 anos em diante.
Depreende-se desses dados, que os homens são maioria entre crianças e
jovens e, que esta porcentagem decresce quando chegam à faixa etária adulta;
mulheres são as que mais envelhecem e permanecem nas famílias. Tais
afirmativas poderiam reforçar a ideia de que a mortalidade masculina é maior
pela alta vulnerabilidade que esta parcela da população sofre, tanto nos
trabalhos fora de casa, brigas domésticas, quanto pela forte incidência de
garotos no tráfico de drogas. (SILVIA, 2005: 11-19).
De um dos dois dias em que foi visitado Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, duas
veze fui interpelada pelas duas figuras que mais se vê correndo pela favela:
crianças e cães.
Na primeira delas, um garotinho seguiu-me pelas escadarias do Cantagalo. Era
domingo de manhã e a maior movimentação vinha de seus companheiros que
corriam de bicicleta de um lado a outro. Percebendo que estava sendo seguida,
olhei para o garoto e este, energicamente, perguntou-me num inglês carioca:
“Money?! Money?! Money?!”. Percebendo ser aquilo uma prática muito comum
entre as crianças de favelas com fama de turísticas, respondi-o em português.
Logo que reconheceu o idioma, como sendo o mesmo que o seu, este perdeu
interesse em mim e saiu correndo para o outro lado da viela.
Foto 13: visão superior da Pousada Favela Cantagalo (à esquerda) e, pintura indicando a direção do Hostel Vizu du Galo (à direita).
94
Sozinha novamente e munida com uma pequena máquina fotográfica, percebi
que mesmo com muitas crianças e senhoras que saiam para cultos religiosos,
muito silêncio perpassava a manhã no Cantagalo. Num desses intervalos
silenciosos, foi observado que na escadaria de baixo, em um pequeno sobrado,
funciona uma pousada e, fez com que se reforçasse ainda mais a hipótese de
que o garoto de antes havia me considerado como alguma turista estrangeira
passeando pela favela.
De muitas casas ouvia-se o rádio tocando um pagode ou a TV ditando o
noticiário. Duas garotas saíram para comprar pão na padaria próxima, outros
muitos, desciam com sacolas cheias de produtos para o trabalho na praia.
Numa das curvas, na rua Cândido Portinari, repentinamente, saíram de trás de
uma parede três cães correndo. Atrás deles, uma mulher corria e gritava
chamando por seus nomes. Com correntes e coleiras na mão, D. relatou que
um de seus cães fugia de casa para roubar banana na quitanda onde,
normalmente, comprava seus alimentos.
Foto 14: moradora D. com seus cinco cães em seu Hostel (à esquerda), e vista da praia de uma de suas janelas (à direita).
A moradora D. se intitula como uma empreendedora e é dona de um Hostel
com vista para a praia de Copacabana e Ipanema.
Eu tenho dois quartos, um menor e um maior. O que eu fiz? O quartinho
maior, botei as cama. No momento eu só tenho quatro camas, mas
95
acontece as mágicas, acontece os imprevistos. Os imprevistos, a gente
enche a cama de colchão inflável. A partir do momento que eu trabalho
nessa idéia, eu vi que a idéia é boa né? Mercado é promissor e a gente
começa a ver, capital de giro pra poder fazer o negócio aí, realmente, fluir.
(D.,41, moradora Cantagalo).
Sobre a vista que tem do seu Hostel, D, continua:
Alguma coisa paga essa visão? Você vai no Copacabana Palace, você vai
ter a praia. Você vai sair daqui; no primeiro andar você vê a praia aqui, lá
em cima você só vê uma partezinha; aqui você vê um 380: Copacabana,
Niterói.
Ainda sobre o turismo, foi questionado a outra moradora sobre como é esta
relação de pessoas do „asfalto‟ com a favela, se no Cantagalo e no Pavão-
Pavãozinho sempre tiveram turistas. Sem pouca expectativa com o
questionamento, ela descreve:
[a]gora acho que aumentou mais, por causa daquele elevador lá embaixo.
Tem gente que vai lá visitar, fazer visita, aí anda o morro, conhece o morro,
entende? (A.P., 31, moradora Cantagalo).
A.P. nasceu e cresceu no Morro do Cantagalo. Atualmente, está
desempregada e ajuda seu marido na feira montada na ladeira inicial que
desemboca na Rua Sá Ferreira. Assim como a feirinha de frutas montada na
subida da favela, outros tipos de comércio funcionam pelo local como citados
anteriormente: biroscas, bares, oficinas mecânicas, agências bancárias,
padarias, mercearias, camelôs que vendem desde brinquedos a radinho de
pilha, restaurantes, fornecedores de água e de gás, lojas de roupas e sapatos,
entre outros.
96
Foto 15: Elevador com acesso à favela pela Praça General Osório (à esquerda), e
moradora A.P. ao lado de sua barraca de frutas (à direita).
Mesmo que a oferta de produtos seja razoavelmente ampla dentro das favelas,
grande parte de seus moradores possuem emprego no „asfalto‟.
Aos fins de tarde, durante a semana, vê-se a intensa movimentação de adultos
que sobem a ladeira para suas casas do retorno do trabalho; entre eles,
grandes quantidades de jovens voltando de escolas se misturam às moto-taxis
e às vans paradas na entrada da favela.
Foto 16: ladeira de acesso ao Cantagalo com o início dos estabelecimentos comerciais
(à esquerda), e venda de televisores usados (à direita).
97
As diversões de quem mora na favela sempre possuem um jeito de ser muito
característico do lugar: esbanjam comida e bebida e, normalmente, vizinhos e
conhecidos são chamados a prestigiar juntos um aniversário, uma festa de
batizado ou uma ceia de Natal.
Os bailes e festas de aniversário são muito comentados pelas redondezas,
entretanto, pela proximidade às praias, a de Copacabana e Ipanema, os
moradores do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo desfrutam, também, bastante do
banho de sol e do mar.
Grande reclamação de alguns é que, depois da instalação da UPP nas duas
favelas, a Lei do Silêncio42 passou a valer como vale para o „asfalto‟; portanto,
quando, em dias de bailes e festas, tais eventos somente se prolongarão até às
22 horas. Antes da UPP, alguns bailes e festas eram patrocinados pelos
chefões do tráfico podendo ir até de madrugada.
Segundo a moradora A.P., os policias da UPP em datas festivas não deixam
que o barulho atrapalhe os vizinhos e outros moradores das redondezas;
segundo ela: “(...) não pode passar dum limite de uma festinha, eles qué ir lá
pra desligar o som dos outro, É só isso…”.
Mesmo que rapidamente, tentou-se neste item, demonstrar a peculiaridade da
vida na favela, as formas de sociabilidade entre os moradores e o fator
histórico que fundou o Pavão-Pavãozinho e o Cantagalo. Além do mais,
algumas mudanças e problemas são pontuadas nas falas dos moradores,
inferindo numa reflexão acerca dos novos dinamismos culturais, sociais e
políticos que a vinda da UPP pode ter suscitado na região.
3.2 A UPP: antes e depois na voz dos moradores
42 LEI Nº 126, DE 10 DE MAIO DE 1977: dispõe sobre a proteção contra a poluição
sonora, estendendo, a todo o Estado do Rio de Janeiro, o disposto no Decreto-Lei nº 112, de 12 de agosto de 1969, do ex-Estado da Guanabara, com as modificações que menciona. (Disponível em: < http://www.perfeituradorio.org/index.php/lei-do-silencio/#more-33>.
98
A Unidade de Polícia Pacificadora chegou ao Pavão-Pavãozinho/Cantagalo no
dia 23 de dezembro de 2009. Quinta base a ser instalada, a Unidade funciona
no local há quatro anos e seu prédio encontra-se no topo do Cantagalo.
Foto 17: prédio da base da UPP Pavão-Pavãozinho-Cantagalo
Foto 18: área territorial de abrangência da UPP Pavão-Pavãozinho/Cantagalo.43
43
Foto retirada do sítio da UPP Social. Disponível em: < http://uppsocial.org/territorios/pavao-
pavaozinho-cantagalo/>. Acessado em 15/11/2013.
99
Muito comum nas paredes e muros da favela encontrar as letras „CV‟, de
Comando Vermelho, pintadas. A moradora M., questionada sobre sua vinda
para a favela do Pavão-Pavãozinho, conta como os comandantes do tráfico
passaram pela região antes da chegada da polícia:
Na época que eu vim pra cá era [década de] 80. Vim pra cá pequena. Eu
morava em Duque de Caxias. Minha mãe andando por aqui, aí encontrou
esse lugar. Na época quem cedeu a casa aqui foi o poder paralelo que
existia na época, aqui. Já mudou mais de três vezes né? O poder paralelo.
Muitas, muitas, muitas guerras. Na época que eu vim era neutro, não tinha
facção nenhuma. Já tinha [tráfico]. Na época que eu vim morar aqui o
tráfico não era como é agora, que é Comando Vermelho, PCC, Terceiro
Comando, Milícia, ADA [Amigos dos Amigos]. Naquela época não existia
isso. Existia em outros lugares, mas aqui, quando eu era pequena, que eu
vim descobrir, aqui não existia, foi quando descobriram, que o Comando
Vermelho invadiu aqui. Aí foi quando trocou. (M., 45, moradora do Pavão-
Pavãozinho).
A moradora, mesmo afirmando a existência de diversas facções antes da
instalação da polícia na favela, deixa evidente a legitimidade do Comando
Vermelho sobre as outras facções. Até hoje, mesmo sem o tráfico aparente,
dominando a comunidade, o CV ainda é muito pontuado nas conversas e
discussões quanto o tema é segurança e criminalidade.
E continua:
Ai teve as invasões, que tentaram invadir, foi o Terceiro Comando que
invadiu o morro. Terceiro Comando ficava tentando invadir Pavão-
Pavãozinho. Que o Cantagalo na época que eu era criança, era outra
facção. Eu estudava lá no Brizolão e quando eu tinha que ir pra lá era um
sacrifício. Quando chegava lá, as filha do dono do morro batia em que
morava aqui, uma confusão danada. Ai depois quando eu fiz uns treze
anos, ai acabou isso, porque aí, o Comando Vermelho tomou o outro lado.
(M.; 45; moradora Pavão-Pavõzinho)
Assim como a moradora descreve, o Comando Vermelho foi a principal facção
atuante nas duas favelas, mesmo que o Pavão-Pavãozinho tenha passado
100
anos sob o domínio de outras facções, segundo suas palavras, após inúmeros
confrontos, o CV tomou o território das duas regiões.
O confronto e a disputa de territórios pelas facções criminosas é coisa comum
nas favelas do Rio. Um dos discursos do projeto da UPP é justamente a
instalação da polícia em tais localidades para a “recuperação” desses
territórios, tornando esses espaços públicos para a livre circulação de pessoas.
Ainda, segundo polícia, a UPP quando instalada prende e/ou afugenta os
chefes do morro; entretanto, os policiais afirmam que o tráfico não acaba,
apenas, perde certa força. Outro termo, o de „pacificação‟, condiz com o fim de
mortes por arma de fogo e, mesmo, o fim da ostentação e do uso de
armamento pesado por “bandidos” e de um possível confronto bélico com a
PM.
Foto 19: escada onde se vê pintadas as palavras “CV” de Comando Vermelho.
Contudo, discursos continuam a afirmar a existência do tráfico e a memória
latente do Comando Vermelho reforça as relações de poder existentes dentro
da favela com a chegada da UPP. A existência do comando da polícia onde
antes era dominada pelo tráfico, perfaz um cenário simbólico dos lugares das
101
relações de poder. Onde antes era o traficante, agora é a polícia, daí provem a
associação mais recorrente nas falas dos moradores.
A única coisa que mudou é que saiu um armamento e entrou outro,
entendeu? Saiu o armamento dos bandidos e entrou o armamento das
polícias. Antigamente você via bandido armado, hoje você vê a polícia.
(Morador Pavão-Pavãozinho T., 56 anos)
A associação direta do “armamento dos bandidos” que sai, e o “armamento da
polícia que entra, em si, já é uma fala que anuncia um problema em relação ao
simbolismo do poder da polícia na favela, uma vez que essa mesma polícia
tem por objetivo uma proximidade com os moradores, contando com o
confronto mínimo entre eles.
Em relação ao fim do armamento pesado dentro das favelas, os moradores
afirmam que acabou, mas de forma pontual e residual, o tráfico de drogas
ainda continua com armas de calibre menor e sem ser visto durante o dia.
Mas arma tem, quem disse que não tem? De dia não tem, mas de noite…
(A.P.; 31, moradora Cantagalo).
Em outra fala em relação a existência do tráfico e do armamento, a moradora
S. do Cantagalo, afirma que a boca muda de lugar o tempo todo para que os
policiais da UPP não fiquem “enchendo o saco”.
É... Antes, onde você passa no morro, tinha boca de fumo, os meninos
estavam com arma. É... Hoje não. Tem... Cada hora a boca tá num lugar.
Tipo, uma hora tá lá no Galo, depois muda, exatamente por conta da UPP,
pra eles não ficarem lá enchendo o saco direto. Então, muda. As bocas de
fumo mudam de lugar. Por conta disso. E a arma, eles usam a noite, mas a
UPP sabe que tem, mas também não faz nada pra acabar. Então, eu não
vejo muita diferença não, a UPP, pra mim, só entrou pra maquiar.
A ideia de maquiagem nos remete à concepção da relação simbólica do poder
e também, da memória existente de que a polícia, como outrora, entra no
morro exclusivamente para rechaçar os moradores pela sua condição
habitacional e socioeconômica, além da truculência e da letalidade com os
traficantes de droga.
102
Em relação a atitude policial de proximidade com os moradores, há uma ideia
confusa do que seja um policiamento de proximidade.
Eles não pedem licença [os policiais]. Não tão nem aí. São poucos os
educados. São raros. Eu testo, eu não presto. Tem um grupinho, eu passo e
dou bom dia. Não responde! Mal educado. Como é que o governo quer que
os morador se aproxima de policiais que fala bom dia e eles não
respondem? Não responde!(M., 45, moradora Pavão-Pavãozinho).
Esta última fala nos revela o que Rodrigues e Siqueira (2012: 39) apontam
como as dificuldades do policiamento da UPP, já que a memória e a similitude
das relações de poder entre traficantes e policiais estão imbricadas em muita
desconfiança e medo. Os referidos autores ainda apontam os reflexos desse
tipo de emoção na confiança e na disposição do policial em relação aos
moradores. Segundo eles, os policiais se sentem muitos expostos e muitas
vezes, espremidos entre a não consciência do verdadeiro trabalho policial e a
hostilidade dos moradores em relação a eles.
Em outras passagens, os moradores revelam a existência de policiais que
contribuem para a melhoria na interação com os moradores.
Tem alguns policiais que são bem legais, que chegam e conversam, mas
tem outros que não. (S., moradora Cantagalo, 19 anos).
Sobre a ideia de segurança ou da sensação de uma maior segurança, uma
moradora é questionada acerca do termo “pacificação”, tão comum no slogan
da UPP quanto nos noticiários cariocas:
Qual o problema de segurança da favela? O governo, ué! A favela nunca
teve problema de segurança. Agora, o que é a UPP na favela? A UPP está
aqui pra fazer da seguinte forma: pra inibir que as facções se agrida, pra
não ter invasão, tá aqui pra fazer a segurança da boca de fumo. Acorda! (...)
Não é um programa de pacificação? Então! Pacifica aí. (D.; 41, moradora
Cantagalo).
A clara alusão que a moradora faz de que na favela sempre existiu segurança,
mesmo quando da não instalação da UPP, nos remete sobre a coerção política
e territorial que o tráfico de drogas e seus agentes perfaziam no ambiente.
103
Ainda assim, quando a polícia vem para o morro, o único problema existente na
favela é o próprio governo, e a UPP, segundo ela, é a forma do governo conter
o confronto armado entre facções criminosas, entre policial e traficante e a
diminuição da ostentação do crime que fazia frente ao poder e a força do
Estado.
Ainda, em comparação ao antes e depois da vinda da UPP para o Cantagalo e
para o Pavão-Pavãozinho, alguns moradores reforçam a ideia de que antes
havia o respeito por parte dos traficantes e, que com a polícia, não se têm o
entendimento de suas ações.
Quando tinha os menino [do tráfico] aí, respeitava as pessoas. A UPP não,
a UPP faz bagunça. Não podem ver uma menina de peitinho durinho que
eles chama, eles abusa das pessoas, tratam as pessoas com ignorância.
Igual no outro dia, tinha uns meninos … bateram no meu irmão e eles não
fizeram nada. Nada vezes nada. De braços cruzados ele ficou e continuou.
Recebe coisas que … Ah! Muita coisa errada. A UPP ... tem bandido no
meio … A UPP aceita dinheiro deles pra ter certas coisas na comunidade …
(A.P. moradora Cantagalo).
Mesmo que a UPP inaugure uma intenção de racionalidade e previsibilidade de
suas ações e operações, a sensação prevista pelos moradores e esboçada
nesta última fala, refaz a experiência passada de uma polícia violenta e
arbitrária; de uma ação policial fundamentada no combate e não na prevenção.
Em outra conversa, a moradora recorda dos benefícios que a população tinha
com o tráfico, numa clara alusão da ausência de tais “serviços” com a vinda da
polícia para a favela.
Na época que eu morava aqui, quando eu era pequena, eu lembro que o
chefe do morro, que ele foi preso aqui na delegacia. O morro todo desceu
pra ajudar a tirar ele. Aí saiu, ai subiu o morro todo. Todos os morador
subiu, foram pra quadra do Pavãozinho. Teve uma festa. Ele mandou fazer
uma festa, distribuir refrigerante, bolo. O primeiro chefe do morro que eu
conheci, mas fazia alguma coisa pros moradores. Dos meus seis anos de
idade até meus dez, ele que comprava meu material de escola, minha roupa
de escola, meu sapato. Várias vez comprou o gás pra minha mãe. Lá onde
a gente morava, ele ia de porta em porta perguntar, ele pessoalmente, não
104
mandava ninguém. Perguntava se você precisava de alguma coisa,
perguntava se você tava passando necessidade. Ele ajudava alguns
moradores sim e, infelizmente, a pessoa né... Como muitos políticos, uns
ajuda e outros ferra. Naquela época era assim, as outras facções não.
Horrível e péssimo. Foi só o Comando Vermelho. (M., 45, moradora Pavão-
Pavãozinho).
Percebe-se da fala anterior, a clara proximidade que alguns traficantes tinham
com a população local e, que tal proximidade, fazia com que existisse uma
sociabilidade de proteção mútua entre os dois grupos. De um lado os
moradores tinham suas necessidades atendidas pelo dinheiro do tráfico,
enquanto que os traficantes podiam solicitar proteção dos moradores caso as
forças do Estado reivindicassem algo. A luta de força se esmiuçava diante da
ineficiência do governo na garantia de direitos civis e sociais para a população
da favela e na garantia de infraestrutura e de melhorias nos serviços públicos.
A respeito dos objetivos centrais da instalação da UPP na favela, os moradores
ganham tom crítico e afirmam serem as UPPs uma forma de tornar visível o
morro que as pessoas do asfalto e os turistas não puderam vivenciar, até
então, pela violência contida sob o domínio do tráfico de drogas.
A pacificação, amiga, é o governo podendo fazer sabe o que? Trazer Lady
Gaga no morro com tranquilidade, sem ter especulação que teve lá no Dona
Marta, entendeu? O tráfico tá fazendo a segurança? Entendeu? É o
beneficio de um governo poder mostrar o mundo “olha só, estamos aqui!
Você pode vim.”. A gente entende que fica mais fácil pra gente ir na favela
visitar, as pessoas visitá, ir comprar mais uma bala, mais uma água ali,
porque ela vai se sentir segura, porque pra nós, nós não temos problema
com tiroteio não! Faz um tempo que não tem tiroteio no morro aí! Pô, é
mermo heim! Um tempão que não morre gente no morro. Pode ser eu, pode
ser você, mas é difícil você esquecer o barulho do calibre. (...) Pacificação,
ela é pra trazer o mundo pra favela, pra fazer essa coisa... Todo mundo
conhecer, trocar experiência, entendeu? (D., moradora Cantagalo).
“Trazer o mundo pra favela” é a expressão constantemente repetida pelos
moradores quando perguntados sobre a circulação de pessoas depois da vinda
da UPP para a favela. O aumento de pessoas do asfalto e turistas atesta a tal
105
sensação de segurança que a existência da polícia pode ter incutido nas
pessoas.
Atualmente, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho possui hostels e pousadas para
abrigar turistas e estrangeiros que, além de quererem conhecer toda a cidade
do Rio de Janeiro, deixam explícita a curiosidade em vivenciar um cotidiano na
favela. O que antes era visto com medo e precaução, por uma grande maioria
da população, agora, também, torna-se ponto turístico.
Ao sair da casa de D., foi mencionado o desejo de se tirar foto de um grupo de
garotos que se reuniam num muro próximo; alertando-me, pediu para que eu
não tirasse, porque “aquela galera ali é barra pesada.”. Percebendo que os
meninos ali, nada faziam além de observar o movimento da favela, entendi que
lá poderia ser a passagem de uma boca de fumo e eles os “agentes” do local.
Continuei com as fotos. Um morador e seu filho passaram por mim, com um
sorriso e um jeito alegre de falar e disse-me: “Êêê! Que beleza heim! Agora
você pode subir até aqui e tirar sua foto.”.
Foto 20: pai e filho caminham próximos à base da UPP (à esquerda), e rapazes se cumprimentam em viela do Cantagalo (à direita).
Mesmo que a UPP seja relatada em várias passagens com certo desânimo e
descrença de suas melhoras e benefícios, é explícita na voz dos moradores
que houve algumas mudanças depois de sua instalação na favela.
106
Uma delas é referente ao “cessar-fogo”, justamente relacionado ao
estancamento do círculo vicioso de incursões policiais e tiroteios nas
localidades de favela. (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012: 15).
Com a UPP aqui... Tipo, que vieram mais ONGs, tipo a Agência Rede para
a Juventude, que promove projetos para a melhoria da comunidade, aí
minha irmã tem até um projeto, minha irmã e minha amiga, minha amiga o
projeto dela é pra reciclar, é, limpar a comunidade, juntar os lixos, fazer
mutirão e, minha irmã, aproveita o lixo, pega os recicláveis e recicla, o
projeto delas tem essa ligação. (S., moradora Cantagalo, 19 anos).
A vinda de órgãos privados e estaduais para dentro das favelas é uma das
metas que a UPP pretende angariar com sua instalação permanente. ONGs,
projetos esportivos, cursos profissionalizantes, atividades culturais, agentes de
saúde e mutirões de limpeza tiveram um aquecimento com a vinda dos
policiais; entretanto, algumas iniciativas ficam restritas a algumas parcelas da
população que de alguma forma se identifique com tais medidas.
Outra referência a melhorias implementadas e/ou melhoradas após a vinda da
UPP para o Cantagalo e o Pavão-Pavãozinho, foi a inauguração de um Posto
de Saúde pela Prefeitura no morro do Cantagalo e outro pelo FIRJAN do SESI
no Pavão-Pavãozinho. Nos dois casos, os moradores dizem que o
funcionamento é bom e o atendimento engloba grande parte da população da
favela.
107
Foto 21: parte da fachada de casa que fica na passagem que leva até o Elevador (à esquerda), e bandeirinhas de Festa Junina enfeitando o Cantagalo (à direita).
Em outros casos, as melhorias vieram acompanhadas de falhas e
investimentos ainda por se fazer:
[m]as dizer que mudou, mudou, mas não foi muito essas coisas. Falta ainda
muita melhoria pra comunidade, entendeu? A gente não quer ver
armamento, a gente quer ver benfeitoria pra comunidade, entendeu? Como,
é, como é que se fala? Saneamento básico, esgoto, essas coisas assim, é,
que venha melhoria pra comunidade. (T., morador Pavão-Pavãozinho, 56
anos).
Problema recorrente na fala dos moradores é a questão com o lixo. Segundo
eles, com a UPP, alguns moradores não se sentem cooptados a respeitar os
locais de coleta de lixo especificados, deixando sacolas espalhadas pelas ruas
e vielas.
O que tem que melhorar é a questão do lixo. É muito lixo, da coleta de lixo e
da limpeza, porque a obra [do PAC] derrubou muita casa, então não tirou os
entulhos e aí os ratos, começaram a sair, então é muito rato. É rato
andando pelos fios, sabe? E aí é muita sujeira. A comunidade de certa
forma, também, não ajuda, deixa o lixo naquele terreno vazio, entendeu? Aí
108
vai acumulando. Tem que melhorar a sujeira. É muita sujeira, muita mesmo.
(C., moradora Cantagalo, 29 anos).
Em outra fala, ainda sobre o lixo:
A educação tem que vir dos próprios moradores, você vê moradores
jogando sacolas de lixo nas valas, nas portas dos outros moradores, e isso
eu vejo e fico indignado, entendeu? (T., morador Pavão-Pavãozinho, 56
anos).
Outra grande reclamação dos moradores é em relação ao baile funk. Com a
implantação das UPPs nas favelas, os bailes foram proibidos por serem vistos
pela polícia, como uma referência e/ou apologia ao tráfico de drogas e aos
traficantes, já que eram seus agentes que financiavam e legitimavam as festas
nas favelas.
Uma coisa que eles [policiais da UPP] fizeram errado, ao meu ver, o povo
aqui do morro gosta de uma festa, gosta de curtir, tiraram o baile [funk], que
antes era financiado pelo tráfico. Agora os DJs mesmo da comunidade, se
juntaram e tal, tavam querendo dar baile, eles tinham tirado o baile. Eles
tiraram o baile acabou. Eles passavam neguinho tacava coisa nele, sempre
tava dando confusão, assim, na estrada e o tipo de abordagem deles,
também, é muito agressivo. (S. moradora Cantagalo, 19 anos).
Em outra experiência com uma moradora do Pavão-Pavãozinho, acerca das
melhoras com a entrada da UPP na favela, ela comenta:
[m]uitas coisas melhorou com a entrada da UPP, muitas coisas piorou. Uma
coisa que piorou: é muito mal desorganizado [sic], o governo só colocou a
polícia no morro, mais nada. O governo não deu planejamento pra ninguém,
não tem um planejamento de... Aqui tem uma associação de moradores,
mas ela não é responsável por nada. Na rua não tem um síndico que é
responsável pelo aluguel? Na comunidade também, tinha que ter alguém.
(...) (M.; 45, moradora Pavão-Pavãozinho)
A ideia de organização e planejamento é muito marcado nas conversas com os
moradores. Uma das reclamações diante da instalação da UPP é a vinda da
polícia sem o acompanhamento de serviços de planejamento do local. Ou seja,
os moradores esperam que alguma forma de poder possa organizar o espaço
de modo a dar coesão e significado a vida cotidiana deles.
109
Em outras palavras, o que se infere das falas nas entrevistas, é que antes com
o domínio do tráfico, havia certa preocupação por parte dos chefes em manter
a favela funcionando de forma coesa, sem desentendimentos ou brigas entre
moradores. Antes, segundo os moradores, tudo funcionava bem e havia leis
próprias (e não condizentes com as leis formais do Estado) que arquitetava o
funcionamento orgânico da favela enquanto tal. Mesmo sendo reduto do tráfico
e do crime, tais processos, traziam organização à vida de quem lá morava,
mesmo que sob as normas do tráfico.
Quando a polícia adentra a favela e lá se instala com a promessa de
permanência, há uma mudança do lugar ocupado pelo “dono do morro” para o
lugar agora ocupado pelo policial, fazendo com que se crie uma imagem do
Estado gestor daquela localidade.
Nas falas dos moradores é constante se deparar com o paradoxo que existe
entre esta mentalidade de ser requerer um “dono” para a favela.
Eu acho que assuntos relacionados de briga de vizinho, não tem que ser
13ª[DP]. Se na época do poder paralelo quem resolvia era os bandido,
porque a UPP não pode resolver? Por que que o vizinho ta brigando com o
outro ... Agora, a hora que tem um som ligado alto, você liga pra UPP, a
UPP manda você desligar o comércio; se tem uma festa, por exemplo, eu to
fazendo aniversário do meu filho, aí eu quero ir até umas três horas da
manhã. Não posso. Tenho que pedir permissão pra UPP. Qualquer coisa
que tenha dentro da comunidade, você tem que pedir permissão pra UPP.
Quando tem briga de vizinho, pra vim na tua casa é uma dificuldade. Aquilo
que aconteceu comigo sexta passada [briga com o vizinho], ligamo pra lá e
nada de aparecerem. Eu fui até na sede da UPP, cheguei lá, e ele [o
vizinho] falou o contrário. Passaram como certo e eu como errado. Eu tava
com pescoço arranhado, com meu rosto machucado. Fiquei cheia de
hematoma no braço e ponto. Cheguei na UPP fui maltratada; o capitão ... O
comandante tava lá, que chegou, mandou eu calar a boca, mandou meu
marido calar a boca. (M., 45, moradora Pavão-Pavãozinho).
A contradição da fala da moradora é nítida e se faz presente em outras
conversas na favela. O que os moradores esperam? Segurança, organização e
planejamento? Segurança com melhorias em serviços públicos? Segurança
com um dono, que mesmo dono se utilize de mecanismos ilegais para tanto?
110
Ou uma polícia que faça a vez de um dono utilizando a farda do Estado de
direito para tal?
Foto 22: vista do Pavão-Pavãozinho da base da UPP.
Mais uma vez, a imagem de um “dono” para tomar conta do local e organizar a
vida cotidiana se faz presente, entretanto, esse mesmo dono, tem de saber se
distanciar dessa mesma vida cotidiana, aparecendo apenas em momentos de
tensão e briga entre vizinhos, ou em brigas de família.
Como descreve Gilberto Freyre, em sua análise sobre a vida sexual entre a
casa grande e a senzala, os brasileiros possuem uma espécie de sadismo, um
tipo de mandonismo que, em nossa sociedade, sempre encontra sua vítima
onde pode exercer seu domínio. Em suas palavras,
(...) no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar “povo brasileiro”
ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente
autocrático. (FREYRE, 2006: 114).
Um “governo másculo” é a constante investida que se pode inferir das falas dos
moradores. Uma vez que procuram um “dono” para dar conta de problemas de
suas vidas cotidianas, uma autoridade “forte”, associada à masculinidade e ao
poder, é contundentemente associada ou à violência dos traficantes ou a farda
da polícia que permanece no morro.
111
Esta associação, mesmo que inconsciente, gera infortúnios no ideal de uma
polícia de proximidade, assim como gera ambiguidades e retrocessos num
percurso democrático e de cidadania, já que pressupõe medidas e desejos
condizentes com um tipo de sociedade tradicional e pautada num poder
autocrático.
Um sentimento de “vitimização” também é emitido pela voz dos moradores,
assim como o é a forma com que essas populações foram tratadas ao longo do
tempo: ora com a alma paternalista e clientelista ora com a repressão e a
violência, ou ainda com a mediação entre estas duas formas. Outra vez,
Freyre, sintetiza serem esses comportamentos e pensamentos,
[m]enos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de
organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima,
ou de sacrificar-se. (2006: 114).
O antes e o depois da UPP se pauta muito pela pouca melhora, ou por uma
lenta vinda de projetos e benefícios em políticas públicas, urbanização e
infraestrutura para a favela. Algumas problemáticas são permeadas por críticas
ao próprio comportamento de alguns moradores que não possuem uma relação
de ajuda mútua com questões da favela, tais como, a limpeza das ruas e o
recolhimento do lixo em caçambas para o não acúmulo nas vias de passagem.
O baile funk, assim como a falta de lazer e de projetos que envolvam as
crianças e os adolescentes, é outro ponto crucial de incômodo nos moradores.
Segundo eles, a ausência de lazer ou de atividades para as crianças e os
jovens é a porta de entrada destes para o tráfico.
O morador M. do Cantagalo, reflete sobre como algumas iniciativas de projetos
para crianças e jovens, por parte da polícia, poderia ser uma alternativa para
que as mesmas permanecessem afastadas do tráfico:
Tão de férias. Qual lazer eles terão aqui? Podia ser feito melhor. Não é um
projeto social? Acho quem um projeto social, eles teriam que pegar o
pessoal da polícia militar, o AfroReggae, o Criança Esperança, não ficar
sentado de braços cruzados. Vir de encontro com a comunidade, não botar
uns troço qualquer lá e aguardar que meia dúzia de criança vá lá e “ó!
Interessante”. Quando tá na época da arrecadação, aí eles mandam chamar
112
as criança, bota a camiseta e eles tão lá aparecendo, depois somem. Não é
legal. Pode tá aqui, pode melhorar muito mais. Pode se aproveitar, que eu
acho que pode. A criança que tem o pai traficante, a probabilidade da
criança não ser igual ao pai é de 40%. (M., morador Cantagalo, 56 anos).
Foto 23: morador N. improvisa brinquedos em escadaria perto de sua casa (à esquerda) e, garoto empina pipa de laje no Pavão-Pavãozinho (à direita).
Entretanto, contradição das falas dos moradores é latente e o desejo de quem
mora na favela revela um solo permeado por incompletudes e resignações.
Tais incompletudes e resignações revelam-se na experiência cotidiana de
quem lá vive, reverberando vicissitudes e conflitos num ideal de política
comunitária e de uma sociabilidade democrática.
3.3 O ideal de paz e de guerra: percepções de um futuro na favela
Guerra e paz foram as duas manchetes que corriqueiramente eram atribuídas à
vida nas favelas nas últimas décadas em que o crime organizado e o tráfico de
drogas tomou conta dessas regiões.
Com o fim da guerra e a promulgação da paz, surgiram as UPPs, tendo como
meta direta a conquista desses espaços. Mesmo que a guerra e paz estejam
difundidos nos cotidianos, nem um nem outro existem de fato como estados
113
absolutos da experiência e vida dos moradores da favela. Tais estados são
conjuntos semânticos e simbólicos utilizados pelos governos e pela imprensa
para legitimar políticas públicas e medidas repressivas nos morros cariocas.
No Cantagalo e no Pavão-Pavãozinho, a ideia de polícia de proximidade vinha
imbricada à teoria da polícia comunitária. Sem distinguir um do outro de forma
clara, os moradores acabam por confundir e assemelhar esses dois tipos de
policiamento. Ou antes, se referir a um como sendo o outro e vice-versa; não
há uma clara conceituação entre as diferenças dos dois tipos de policiamento
aqui previstos.
Acerca da pacificação e do ideal de paz, muitos moradores atestaram não
existir pacificação nas favelas e que o ideal de paz se mescla às melhorias em
infraestrutura, urbanização, acesso à saúde, educação e mais empregos. Tal
concepção reforça a ideia de que uma sensação de paz e de segurança no
morro vem atrelada a investimentos materiais no local, sejam eles provenientes
de órgãos públicos ou privados.
A questão dos bens estarem diretamente atrelados ao bem estar social e
político, assim como o individual, segundo os moradores, imprime a questão
acerca da ausência e das ineficiências que os Estado tem ao gerir tais recursos
urbanísticos e estruturais. A relação direta da sensação de segurança com a
melhoria de serviços públicos e privados se faz ouvir nas reclamações
corriqueiras de quem vive nas favelas.
114
Foto 24: poste na ladeira de acesso ao Cantagalo (à esquerda), e fachada de casa no Pavão-Pavãozinho (à direita).
Perguntados sobre o que seria a favela ideal, no caso o Cantagalo e o Pavão-
Pavãozinho ideais, muitos moradores alertaram sobre a ausência de respeito e
de compreensão entre os próprios moradores. Essa tônica revela que, ao
contrário do que uma primeira impressão possa transparecer, as problemáticas
das favelas também são geradas e reproduzidas pela convivência entre os
próprios moradores e, que muitos dos entraves de sociabilidade e de ajuda
mútua, se faz no âmbito da vida privada e coletiva dessas pessoas nesses
espaços.
Acho que não tem o Cantagalo ideal, mas, um lugar onde todo mundo viva
bem, é... Se respeite, em primeiro lugar, que é isso que não tem muito. (S.,
moradora Cantagalo, 19 anos).
115
Foto 25: varal de roupas estendido na regiao do Caranguejo.
Já outro morador, atesta como a favela ideal a partir do que nela falta:
Saneamento. Mais limpeza no morro, mais consciência e educação dos
moradores. Falta muita coisa. (...), por exemplo, trazer mais coisas boas
pras comunidades, quadra de esporte, essas coisas, lazer, esporte. (T.
morador Pavão-Pavãozinho, 56 anos).
Nas conversas de favela é muito comum encontrar uma fala resignada e
desanimada acerca das “injustiças” praticadas pelos governantes contra as
populações mais pobres, assim como palavrórios de reivindicação por
melhores escolas, hospitais e mais vagas de emprego. Depreende-se daí, que
esse sentimento comedido e, por ora, inflamado, é a contradição já
anteriormente explicitada, de que o brasileiro ora se faz dono de si próprio, ora
repassa essa responsabilidade a alguma autoridade, ao “Estado paternalista de
direito”.
Perguntados sobre a questão da “pacificação”, muitos identificam que a paz
preconizada pelos discursos da UPP e do governo, continua sendo
acompanhada da violência, que em teoria, deveriam ser elementos antitéticos.
É... Não é uma ideia de paz né? Pacificação. Que a única coisa que eles
fizeram foi trocar os policiais, aliás, os bandidos pelos policiais, mas, tá
bom, o que que... Continua o tráfico de drogas, as armas, tudo, então...
116
Acho que é só o nome mesmo. Pacificação acho que foi só o nome. Pra
mim não mudou muita coisa não. (S., moradora Cantagalo, 19 anos).
Mais uma vez a confusão detida nas relações de poder é expressa na fala
anterior. A associação entre a arma do traficante e a arma do policial é o ponto
de partida da percepção cotidiana de que a UPP, ao retomar os territórios do
tráfico, possuem, dessa forma, a decisão sobre a vida política da localidade e,
assim, é facilitada a vinculação da ideia de a UPPs serem os novos “donos do
morro”.
Essa associação direta e rápida demarca a confusão que pode ocorrer na
delimitação do papel do policial da UPP e seu poder político local. Quer dizer,
que a troca, aparente, das “armas do bandido” pelas “armas do policial”, deixa
explícita a confusão que os moradores podem fazer do controle ideológico e
político do território pela polícia, uma vez que a UPP “tomou” o lugar dos
traficantes ao se instalar na favela.
Segundo Rodrigues e Siqueira:
A articulação entre o poder da arma e o poder político não ocorre de modo
analógico e mimético, como se essa fosse a única forma reconhecida de
poder por parte dos moradores. Esse foi, entretanto, o modo fundamental
de poder que esteve vigente de modo mais saliente no cotidiano das favelas
ocupadas por grupos de traficantes durante longos períodos. (2012: 45).
Esta articulação entre o poder do traficante e o poder desempenhado pelos
policias da UPP na favela, mesmo que em parte seja simbólico, gera outros
entraves, quando em uma favela como Cantagalo e Pavão-Pavãozinho e suas
diversas regiões (Nova Brasília, Buraco Quente, Quebra Braço, Terreirão,
Pavãozinho, Pavão, Pavão Pavãozinho, Cantagalo, Serafim, Caranguejo e
Vietnã), são tratadas como um território único, desconsiderando as
características e as problemáticas próprias de cada localidade.
117
Foto 2644
: desenho das diversas regiões abrangidas pelo território da UPP Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo.
As diversas regiões, ainda, guardam memórias e resquícios dos confrontos
entre facções rivais e, por esse motivo, criou-se nas próprias vivências dos
moradores, certos distanciamentos das áreas proibidas pelos traficantes de
transitar. Dessa forma, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, quando possuíam
facções de traficantes rivais, tinham sua circulação de pessoas entre essas
localidades bastante interrompida e diminuída. Com a vinda da polícia para a
favela, a circulação é permitida e regularizada, porém, a memória e o
comportamento incutido nos moradores, faz com que tais regiões ainda sejam
limítrofes e fronteiriças umas em relação as outras.
44
Foto tirada do livro do Museu de Favela do Cantagalo. PINTO, Rita de Cássia S.; SILVA,
Carlos Ezequiel G. da; LOUREIRO, Kátia A. S. (org.). Circuito das Casas-Tela, caminhos de
vida no Museu de Favela. Rio de Janeiro: Museu de Favela, 2012.
118
Foto 27: pipa presa ao fio de eletricidade no Cantagalo.
Acerca da proximidade com que os policias da UPP procuram desenvolver em
relação à população local, a fala da moradora a seguir, demonstra a relação
que a mesma fez entre a tentativa de policiamento de proximidade com a
possibilidade de benfeitorias angariadas a bens e a projetos sociais:
Tem alguns policiais que são bem legais, que chegam e conversam, mas
tem outros que não. Então assim, perto da minha casa ficam dois policiais,
que tem um espaço lá, uma pracinha que eles já ficam lá, tipo um ponto
deles. E o pessoal, a vizinha, já todos conhece eles. Muda, assim, sabe,
hoje fica dois, amanhã, são policiais diferentes. E aí, é assim, mas são
sempre os mesmos policiais, em dias diferentes são outras, né? E aí o
pessoal tem amizade com eles né, eles ficam lá, eles conversam, brincam
com as crianças. Tem a parte da UPP que é mais social, que promove
passeios, atividades das crianças, tudo. (C., moradora Cantagalo, 29 anos).
A “parte da UPP que é mais social” refere-se a medidas pontuais tomadas por
alguns comandantes e subcomandantes em relação, principalmente às
crianças, para que se possa aproximá-las da polícia, desfazendo o medo e a
insegurança que possa existir entre as duas partes.
Tal tentativa demonstra a referida ideia de que crianças e jovens estariam entre
os mais escolhidos para se tornarem novos agentes do tráfico e, uma
119
aproximação da polícia através de projetos sociais, educativos e esportivos,
romperia com a uma imagem repressiva das ações policiais nas favelas.
Porém, outro morador diz não ter presenciado nenhuma mudança com a vinda
da UPP para a favela, em suas palavras:
Pra mim continua a merma coisa. E pra mim não trouxe benfeitoria
nenhuma. (T., morador Pavão-Pavãozinho, 56 anos)
Grande problema das UPPs é o seu relacionamento direto de “pacificação” e
segurança com o desenvolvimento imediato de uma cidadania no local. Com a
vinda da UPP, algumas coisas puderam ser melhoradas como a diminuição do
armamento pesado no comércio do tráfico de drogas, a maior circulação de
pessoas como visitantes e turistas adentrando as favelas e, investimentos, em
projetos educacionais e esportivos e na área de saúde. O grande dilema é
transcender a memória e uma cultura tradicional e repressiva, que quase
sempre torna-se meta impossível.
A memória de uma polícia violenta e que entrava nas favelas unicamente para
o confronto e a troca de tiro, longamente praticada no Rio de Janeiro, faz
emergir uma série de acontecimentos e emoções nas pessoas que moram
nessas regiões. Tais sensações são o ponto de partida da subjetividade
humana para o diálogo e a sociabilidade, fazendo com que o recuo e o
distanciamento em relação ao policial de UPP, seja um comportamento lógico e
espontâneo.
Quer dizer, que a longa história de tiroteios e mortes nas favelas praticadas por
policiais e por traficantes, em certa medida, fazem emergir situações e reações
por parte dos moradores em relação a essa polícia permanente. Os moradores
ficam arredios e muitas vezes, hostilizam a ação policial.
Outra questão, a da corrupção policial e da identificação do trabalho policial,
faz ficarem esmiuçadas questões acerca do papel da polícia na cidadania e na
democracia, assim como, as responsabilidades que o policial tem na sociedade
civil e vice versa.
120
Foto 28: vista do Cantagalo onde a favela se insere ao bairro de Ipanema com os prédios ao fundo.
Quando a UPP se instala numa favela, levando consigo a imagem da
pacificação e do fim do domínio armado por traficantes da favela cria-se um
novo cenário em que a existência de uma polícia permanente no morro, no
lugar dos “bandidos”, perfaz uma nova territorialização deste lugar. Esta nova
territorialização, longe de integrar asfalto e morro, cria novas dicotomias,
revelando uma cidade dual, a mesma Cidade Partida que caracterizou Zuenir
Ventura, uma cidade em que asfalto e favela ainda são diferentes, sendo o
perigoso e o delinquente, ainda, personagens pertencentes às favelas.
Essa nova relação de poder, tingida pela bandeira da paz e do fim do confronto
bélico, reforça uma prática de segurança pública segregacionista, em que não
se pretende uma real integração entre as “partes” dicotômicas da mesma
cidade.
A UPP para se constituir numa política de segurança pública de fato, deve
estabelecer conexões com toda a cidade e fazer valer a importância de que
espaços segregados e tratados de forma diferenciada, não contribuem para a
cidadania e para a democracia de respeito aos direitos civis, políticos e sociais
da população. Trata-se de emergir mecanismos e âmbitos institucionais que dê
respaldo político e ideológico, além da construção prática e cultural, de uma
polícia não-repressiva, não-letal e vinculada ao policiamento comunitário, numa
busca pela paz de cidadania e numa tranquilidade democrática.
121
4. Considerações finais: o silêncio pacificador
“O mundo assim dividido
não pode permanecer.
Foi esse mundo que mata
tanta criança ao nascer,
que negou à Aparecida
o direito de viver.
Quem ateou fogo às vestes
dessa menina infeliz
foi esse mundo sinistro
que ela nem fez nem quis
- que deve ser destruído
pro povo viver feliz.”
(“Quem matou Aparecida, história de uma favelada que ateou fogo às vestes” – Ferreira Gullar, 2010).
O título deste trabalho tem mais a ver com a sensação vivida quando primeiro
adentrei a favela do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho. Não somente lá, mas
em qualquer favela que tenha uma UPP, existe um silenciar que não é literal,
mas simbólico.
Nas entrevistas, o não dizer ou o quase dizer para logo emudecer, revelava
muito mais que um simples calar. Este calar ronda um novo discurso de
segurança pública ao redor de um novo policiamento de proximidade
implantado somente nos locais de favela. Como outrora, é fácil perceber a
cidade dual em que o Rio de Janeiro novamente se pinta. A existência de um
policiamento, mesmo que com os ideais de uma polícia comunitária, que
estrutura suas ações nestes locais de forma diversa que em outras partes da
cidade, revela a clara distinção entre os favelados e aqueles que moram no
asfalto.
122
O ideal de integração, de “pacificação” e do retorno da tranquilidade entre
favela e cidade é a grande tônica dos discursos dos comandos de polícia e do
próprio governo fluminense. Entretanto, é pela voz dos moradores, que a
ausência de um caráter ideológico e político da UPP se faz presente.
A ideia de que a instalação da Polícia Pacificadora é uma maquiagem do
próprio governo, reflete um vazio valorativo que o trabalho policial de
proximidade faz se explicitar na opinião dos moradores das favelas. Como a
própria concepção de modernidade no Brasil, que é incompleta e repleta de
contradições e resquícios de práticas e modelos tradicionais, a UPP, também,
possuí certo descrédito na visão dos moradores.
Esse descrédito, ainda se imbrica numa memória presente no corpo e nas
mentalidades de quem mora na favela. Longamente envolvidos num cotidiano
de confrontos bélicos entre polícia e traficante, os favelados possuem em sua
vivência e experiência a marca do medo e da violência, assim como o risco da
arbitrariedade da ação policial permeada de preconceitos étnicos e raciais e
suspeitas estereotipadas que recaem, em sua maioria, sobre eles mesmos.
Essa memória de uma polícia repressiva, letal, violenta e arbitrária continua
quando a UPP entra na favela, acompanhada do BOPE ou do CHOQUE para a
repressão e o aprisionamento dos traficantes. Essa lembrança gera problemas
de representação do poder dentro da favela quando a polícia pacificadora se
instala de forma permanente.
A recorrente imagem que os moradores tecem de que apenas houve uma troca
entre as “armas dos bandidos” pelas “armas dos policiais”, gera um confronto
ideológico do próprio papel da polícia dentro das favelas, assim como põe em
cheque o objetivo de um policiamento de aproximação.
Esse conflito de representações do poder, ainda faz com que os moradores
vejam na polícia permanente, um novo tipo de “dono do morro”, com domínio
sobre eles e sobre suas vidas individuais e coletivas. Esta alusão interrompe e
bloqueia os objetivos de se ter uma polícia racional e moderna, pautada nos
123
direitos civis da democracia e não na espontaneidade e desejo individual de um
“dono”, tal como agiam os traficantes.
Esse dilema, ainda é exacerbado, quando a ideia de uma polícia repressiva e
violenta se faz presente na ação cotidiana de um policial de UPP e, mais ainda,
quando as práticas e ações, assim como as premissas teóricas de um
policiamento de proximidade não são transmitidos e informados aos
moradores.
Acrescido a esses entraves, o próprio policial se vê numa situação em que,
quase sempre, os moradores lhe tratam com hostilidade, indiferença e
insegurança. Esse mesmo policial encontra, dentro da PMERJ, as constantes
desaprovações de seus colegas policiais militares que não trabalham na UPP,
reforçando a noção de que o policiamento de proximidade não condiz com um
“real” policiamento, que seria o daquele pautado na ação de rua e no confronto
direto com o “inimigo”.
Surge daí o problema de identificação do próprio indivíduo com o seu papel de
policial perante a sociedade; esta não identificação leva ao desânimo e a
irritação, podendo desembocar em medidas corruptas dentro da favela. Todos
esses sentimentos, ainda podem recair na corrupção policial, levando a UPP
refazer os mesmos vícios dos policiais de outrora, com o adendo de ser um
órgão de instalação permanente dentro da favela, fazendo com que o domínio
territorial seja legitimado pelo poder bélico, politico e ideológico da violência
militar.
Tais limitações descritas são um conjunto de conclusões aferidas das
entrevistas com os moradores do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho, mas
também, dados provenientes de Rodrigues e Siqueira (2012: 9-52). Contudo,
algumas melhoras foram possíveis de serem percebidas e expressadas pelos
moradores das favelas escolhidas para este estudo.
Segundo os entrevistados, houve um aumento de pessoas vindas do asfalto e
de turistas para a favela, assim como um aquecimento no comércio e na
124
inauguração de hostels e pousadas dentro do morro. Uma notável diminuição
nos confrontos entre polícia e traficante, assim como a ocorrência de tiroteios,
mesmo que o tráfico ainda continue vigorando em menor escala no local.
Alguns investimentos privados e públicos, como ONGs e construção de postos
de saúde, foram implementados; porém, a coleta de lixo, a proliferação de
sujeira em encostas, as obras não finalizadas do PAC e alguns empecilhos em
relação a ajuda mútua entre os próprios moradores, perfazem certas mazelas
que ainda se instauram na favela.
No mais, a mudança que a UPP inaugura dentro de um novo modelo de
policiamento, faz-se tímido e lento, quando problemas estruturais e
institucionais, assim como entraves ideológicos e políticos do projeto de
policiamento comunitário não são revistos e reproduzidos por uma formação
policial que prime por um profissional que entenda seu papel de proximidade
diante da sociedade, sendo que esta, também, deverá ser seu co-agente na
promoção da segurança urbana.
Mais ainda, o grande slogan ao redor da “pacificação” com o fim do domínio da
favela por traficantes e pelo armamento que circulava nestes espaços, pouco a
pouco perde eficácia, quando os moradores apontam o retorno gradual do uso
de armamentos pelos traficantes reminiscentes e de confrontos e tiroteios
envolvendo policiais45.
As UPPs, como nova estratégia de segurança inauguram uma possível nova
mentalidade para se entender uma política de segurança pública baseada
numa polícia comunitária e próxima da sociedade. Entretanto, seus possíveis
benefícios e, aqueles já conseguidos com a sua instalação nas favelas, correm
o risco de se degenerarem e degradarem se não houver corregedorias que
45
No dia 24/10/2013, ocorreu troca de tiros entre a polícia e um possível traficante na favela do
Pavão-Pavãozinho. Fonte: O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/policia-vai-
ouvir-moradores-sobre-troca-de-tiros-no-pavao-pavaozinho-10523277. Acessado em
19/11/2013.
125
pontuem e controlem externamente os excessos e vícios dos policiais da
Polícia Pacificadora.
Torna-se importante, também, uma formação para os policiais de UPP quanto
a construir uma identidade policial voltada para os preceitos democráticos,
assim como uma melhor comunicabilidade entre os moradores das favelas e os
policiais, fazendo com que os primeiros se tornem responsáveis e co-autores
da segurança.
Finalmente, as Unidades de Polícia Pacificadora teriam – e ainda podem ter –
tudo para se tornar um projeto voltado para as práticas cidadãs de uma cidade
“não partida”, em que a polícia seja vista como produtora de segurança e de
ajuda e, não de medo, violência e segregações.
No mais, o silêncio dos abusos e das atrocidades praticadas por traficantes e
policias nas favelas, deve permear-se de dizeres e fazeres, para que a
memória e a realidade presente não acabe, novamente, num simples silenciar.
126
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Músicas
“Alvorada” – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho
“Ave-Maria no morro” – Herivelto Martins
“Eu sou favela” – Neca da Portela
“Malandro quando morre” – Chico Buarque
“Menos eu” – Roberto Martins e Jorge Faraj
“Opinião” – Zé Keti
“Ponto de Seu Zé Pilintra” – sem autoria
“Tá tudo errado” – Mc Júnior e Leonardo
“Rap da Felicidade” – Julinho Rasta e Katia
“Refavela” – Gilberto Gil
“Rio 40 Graus” – Fernanda Abreu
“Subúrbio” – Chico Buarque
“Vida no morro” – Aníbal Cruz
Sites
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística):
http://www.ibge.gov.br/home/
IPP (Instituto Pereira Passos): http://ipprio.rio.rj.gov.br/
O Globo: http://oglobo.globo.com/rio/
UPP: http://www.upprj.com/
UPP Social: http://uppsocial.org/
PAC 2: Programa de Aceleração do Crescimento: http://www.pac.gov.br/
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: http://www.rio.rj.gov.br/
130
Viva Rio: http://vivario.org.br/
Youtube: http://www.youtube.com/
ANEXOS
ANEXO I
Roteiro de entrevista moradores - Pavão-Pavãozinho/Cantagalo
- Qual sua idade?
- Há quanto tempo mora aqui?
- Por qual motivo veio para cá?
- Veio de qual lugar?
- Como era seu cotidiano antes de 2009? (antes da instalação da UPP)
- Como era sua relação com seus vizinhos?
- Com a sua família? Morava com a família?
- Tinha alguma religião? Freqüentava algum lugar?
- Onde trabalhava? Como fazia para chegar até lá?
- Como eram os serviços prestados pelo Estado/Prefeitura (luz elétrica, esgoto,
coleta de lixo, etc)?
- Quando precisava de auxilio médico, como fazia?
- Há escolas por perto?
- Como era o dia-a-dia com o tráfico? E com a polícia?
- Quem freqüentava a favela/comunidade além dos moradores? Muita gente do
asfalto subia? Havia turistas?
- E ONGs? Existia algum tipo de associação de moradores?
- E agora? Como é seu cotidiano? (após instalação UPP)
- Como é sua relação com seus vizinhos?
- (Ainda) mora com a família? Como é a relação?
- Tem religião? Freqüenta algum lugar?
- Onde trabalha? Como faz para chegar lá?
131
- Como são os serviços prestados pelo Estado/Prefeitura?
- Quando precisa de auxilio médico, como faz?
- Há escolas por perto?
- Como é o seu dia-a-dia com o tráfico? E os policiais da UPP?
- Hoje, quem freqüenta a favela/comunidade além dos moradores? Há turistas?
- Possui ONGs ou associação de moradores? Como funcionam? Qual sua
relação com essas instituições?
- Na sua avaliação, o que mudou de lá para cá na sua região?
- O que ainda pode mudar?
- O que precisaria mudar?
132
ANEXO II
Entrevistas
Entrevista - Moradora Cantagalo - A.P. (08/06/2013)
A.P. estava sentada numa cadeira de plastico na ladeira de entrada para o
morro do Cantagalo. Ao seu lado estava montada uma mesa cheia de frutas.
Ajudava seu marido na feirinha todos os dias, menos de domingo. Era sábado,
fim de tarde e a movimentação na ladeira era grande. Intenso fluxo de taxis e
motos que passavam buzinando o tempo todo.
Natalia: Quanto tempo que você mora aqui?
A.P. 31 anos
N. Por que você veio pra cá? Você é daqui do Rio?
A.P. Uhum … Eu nasci aqui.
N. Como era seu cotidiano antes de 2009?
A.P. Ah! Sem a UPP aqui era melhor …
N. É … Por que (que) era melhor?
A.P. O movimento era mais … Os comércio ficava aberto até tarde, não tinha
essa bagunça que tem agora porque a UPP não respeita, a UPP não faz nada.
A UPP vê muita coisa errada e deixa passar.
N. Mas, bagunça como? Era mais organizado antes?
A.P. Era.
N. Mas em que sentido? A rua …
A.P. Tudo. Quando tinha os menino aí, respeitava as pessoas. A UPP não, a
UPP faz bagunça. Não podem ver uma menina de peitinho durinho que eles
chama, eles abusa das pessoas, tratam as pessoas com ignorância. Igual no
outro dia, tinha uns meninos … bateram no meu irmão e eles não fizeram nada.
Nada vezes nada. De braços cruzados ele ficou e continuou. Recebe coisas
133
que … Ah! Muita coisa errada. A UPP ... tem bandido no meio … A UPP aceita
dinheiro deles pra ter certas coisas na comunidade …
N. O tráfico continua?
A.P. Continua.
N. Armas?
A.P. Continua também. A UPP sabe disso porque eles aceita dinheiro. Eu já vi.
Ihh tem muita coisa errada. Muita coisa errada. O governo não soube organizar
essas coisa da UPP nessas comunidades. Prá botar, bota uma UPP direita,
decente, não corrupta. Porque na frente do tenente eles falam uma coisa, mas
pro trás é totalmente diferente. Na frente do major eles falam uma coisa, mas
por trás é totalmente diferente, eles aceita coisa que até Deus duvida,
entendeu? É muita coisa errada. Eles são sujo como todos ele … os policiais
mais respeitado, que eu acho, que eu ainda não vi nada de errado, também no
dia que eu ver não tô aqui para julgar ninguém, é a BOPE.
N. O BOPE subiu aqui em 2009, né?
A.P. É.
N. Depois não subiu mais?
A.P. Depois não subiu mais não. Entendeu? Então, assim, não gosto deles
(UPP), porque eles são abusados, eles não respeitam as pessoas no meio da
rua, passa de carro assim balado na frente dos outros e não quer saber o que
tá acontecendo com os outro. Ficam lá embaixo ó, não quer nem saber. Tão
nem aí.
(pausa)
N. Antes da UPP você morava com a sua família?
A.P. Sim.
N. Agora também?
A.P. Sim.
N. Como era a relação, assim … Se você quiser comparar, como era a relação
com seus vizinhos e a sua família, antes e depois da UPP?
A.P. Bom.
N. Antes?
A.P. É.
N. E agora?
134
A.P. Ah! Agora não. Agora as pessoas não tem mais diversão na comunidade.
Tinha baile, quando rola uma festa, eles qué acabar. Eu mesma já passei
muitos coisa errada na mão da UPP. Eu com o maior barrigão, já me agrediu,
agrediram meu esposo.
N. Agrediu como? Falar ou …
A.P. Porrada mermo. Briga na mão com o maior barrigão … Prá ganhar neném
e … Fui parar na delegacia.
N. Por que eles fizeram isso?
A.P. Porque a menina discutiu comigo e eu discuti com a menina, eu dei um
tapa na cara da menina, eles acharam que eu agi errado aí me jogaram spray
de pimenta, levaram meu esposo pra delegacia. Meu um tapa na cara,
entendeu? O policial que me bateu, foi até expulso daqui, foi lá pra Santa
Marta, entendeu? Mas, cadê o respeito?
N. Foi expulso daqui, mas foi prá outra né?
A.P. É … Não tem respeito. Nota que eu fosse dar pra eles, nota zero. Horrível.
Eles sabem de tudo. Tudo, tudo. Cê pensa que não, mas ele sabe de tudo. Já
vi até policial da UPP cheirando cocaína.
N. Junto com os traficantes?
(A.P acena com a cabeça em tom de desdém e não responde.)
N. E, quando tinha os meninos aqui, então, como era?
A.P. Era nota dez.
N. Como é que era?
A.P. Você precisava de um gás, eles te dava, se precisava de um dinheiro, eles
dava. Não te cobrava nada, você não era obrigada a fazer nada pra eles.
N. Não tinha não essa troca de “Ah te dou um médico, te dou um remédio e
você me dá sua proteção”?
A.P. Não! Não! Por exemplo, a pessoa passasse mal, eles arrumava um carro,
arrumava, pagava um taxi pra levar a pessoa. Era totalmente diferente. Agora
não. Esses dias a mulher passou mal lá em cima, a UPP não pode levar, não
tinha uma viatura! Eles não respeita não. Por mim eu acabava com todos eles.
Nota zero pra todos eles. A UPP, tudo!
N. Tinha então, uma certa segurança? Com os meninos aqui?
A.P. Isso! Ninguém roubava casa de ninguém.
N. É … fiquei sabendo que assalto aumentou né?
135
A.P. É. Agora róba, abusa dos outros. Pinta e borda. O que mais tem é aquilo
alí, a boca é bem alí (A.P. aponta para meu lado esquerdo e mostra um
pequeno terreno abandonado, como uma quadra), os policial fica tudo alí.
Ninguém faz nada não! Ninguém faz nada! Ninguém toma providência de nada.
N. Tem alguma forma, outro lugar que vocês podem denunciar esses policiais?
A.P. Não adianta nada não. Só Deus pra resolver isso. Só Deus … Só Jesus.
(pausa)
N. E esse tipo de serviço como hospital, escola …?
A.P. Não!
N. Nunca teve?
A.P. Hospital aqui não. Só tem aquele posto alí em cima. Também nota zero.
N. E agora com a UPP, não veio mais nada prá cá?
A.P. Não.
N. Nenhum tipo de serviço público?
A.P. Não.
N. E saneamento?
A.P. Ihh tudo ruim. Ihh! Aqui não tem nada que preste não. O que tinha que
prestar ó ... já prestou muito tempos atrás.
N. Mas, antigamente tinha então? Era melhor?
A.P. Era. Tudo melhor …
N. E por que que piorou?
A.P. Por que? Porque agora tá tudo bagunça. Eles fazem o que qué. Faz o que
não qué, entendeu? As paraíba sai com os policial, os policial sai com as
paraíba. Do Pavão! Ihh é muita coisa menina.
N. Você mora no Pavão?
A.P. Cantagalo.
N. E luz?
A.P. A luz é legal. As vezes acaba é normal acabar, mas as vezes …
N. Mas sempre teve? Antigamente e agora?
A.P. Sempre teve luz. Normal.
N. E escola?
A.P. Só o CIEP lá em cima.
N. Veio antes ou depois?
136
A.P. Teve antes, mas também não é boa a escola, não. Falá que é boa a
escola, também não é não.
N. Pior que do asfalto?
A.P. Pior que do asfalto, porque, lá como é muita criança, então, tem professor
que não tem … Ah tem professor que não quer aturar filho dos outro né?
Porque eles ganha mas também não qué abuso, eles qué ensinar as crianças,
mas tem umas criança que não qué aprender, quer ir prá escola prá fazer
bagunça, qué escola prá ficar pintando com o professor, então eles não aceita
isso, entendeu?
N. E os professores, normalmente, moram aqui também?
A.P. Não. Vem tudo de fora. Eles querem respeito, eles acorda cedo é prá
educar as criança, mas também tem mãe que não …
N. Agora assim, tava falando essa coisa de saneamento, de hospital, de ter
remédio, com a UPP, o discurso do governo é que essas coisas viriam pra cá
aos poucos, né?
A.P. Vem nada! Não tem nada! Não tem nada! É uma bagunça que só. Não
tem nada! Não tem nada! Quem falar que tem vai tá mentindo, porque não tem
nada!
N. E nem ajuda você consegue deles? Se precisar …
A.P. Ihh é ruim heim! É difícil heim. Muito difícil. Antigamente tinha tudo, era
tudo bonzinho; agora, eles passam aqui só olhando pras garotinha nova, aperta
a buzina prás garotinha nova, assim que eles fazem. O tempo que você ficar
aqui, o tempo … Você só vai ver isso.
N. E essa história de polícia comunitária?
A.P. Nada disso. Nada! Nada! Nada! Nada! Desde de quando eles entrô, eu
nunca vi, não vi resultado nenhum deles. Só vi coisas piores.
N. E pessoas de fora? Como eu assim? Tinha antes?
A.P. Tinha … Tinha porque aqui em cima tem uns pessoal que leva turista prá
conhecer os morros. Tinha!
N. Sempre teve turismo aqui, então?
A.P. Sempre teve.
N. E agora aumentou ou diminuiu?
137
A.P. Agora acho que aumentou mais, por causa daquele elevador lá embaixo.
Tem gente que vai lá visitar, fazer visita, aí anda o morro, conhece o morro,
entendeu? Eles não vê isso: armamento. Não vê nada disso.
N. Mas tem?
A.P. Mas tem. Com certeza aqui tem. Bandido … O tráfico não acaba não.
N. A UPP diz que o tráfico não acaba, mas o que eles acabam é com as mortes
e com as armas de fogo … Isso sim?
A.P. Isso sim. Mas arma tem, quem disse que não tem? De dia não tem, mas
de noite …
N. Os traficantes de antes continuam aqui?
A.P. Não! Os grandão não. Foram tudo embora. Ficou só os buxa.
N. E aí eles continuam? Com arma?
A.P. Continua. Normal.
(pausa)
N. O que você acha que tem que mudar?
A.P. Ai! Mudar tudo. (risos)
N. Tudo o que?
A.P. Tudo! Tudo! Tudo, assim, dar mais assistência pra comunidade, porque eu
acho que é uma comunidade carente, entendeu? Assim, abrir mais projeto,
assim sabe, o povo, a população, eu acho assim, acho que tinha que mudar
tudo. Dar mais assistência, assim, dar um salário digno pro povo, porque o
povo trabalha tão por pouco. Trabalha o mês todo prá ganhar um salário
mínimo. O governo sentado ganha mais que isso, entendeu? Ahh é muita
coisa, então, você não sabe o que fazer. As vezes você vai querer … Vai num
lugar arrumar serviço, eles bate a porta prá você. Dá mais chance prá
presidiário, eles não dão! Só porque é ex presidiário e mora na comunidade,
eles não dão, entendeu? Então assim, sabe, eu penso de um jeito, eles pensa
de outro, entendeu? Quem somos nós prá mudar a população? Mudar os
governo? Governador? O Sérgio (Cabral) … Esse governador, dá mais
assistência pros camelô, botar os camelô num lugar digno. Não fazer o que
eles faz: catar as coisa das pessoas. As pessoas trabalha com tanto … Ganha
tão pouco, aí vão lá compram a mercadoria prá vir aqui pegar, tirar os pessoal
daqui que tá trabalhando. Aí fala que vai colocar um lugar prá trabalhar. Tudo
mentira, só inventa, entendeu? É isso. Dá assistência prá esses menino que se
138
encontram no vício do crack, abrir uma clínica, assim … Dá um negócio
decente prá eles, sabe? Então, a gente queria um mundo melhor né? Um
mundo sem violência, sem miséria, assim, com trabalhador ganhando um
salário digno que dá prá se sustentar. Você pensar bem … É … contar um
salário mínimo, são seis notas de cem reais. Que que é seis notas de cem
reais? Com a família que tem bastante criança sem esse negócio do Bolsa
Família? A pessoa ganha duzentos e pouco, acha que o governo tá dando
muito. Não tá dando muito. É pouco pra quem tem criança. Assim, dá a Bolsa
Família prá quem precisa. Prá quem precisa mermo, não é prá dá … Tem
gente que ganha quase um salário num Bolsa Família, por que? Tem uns que
ganha cento e pouco e outros que ganha duzentos e pouco, entendeu? Assim,
por mim, assim, na minha opinião, se eu fosse Deus, eu ia dá, assim, eu penso
assim, se o senhor me abençoar … No meu sonho, eu pretendo ajudar muita
gente que precisa, assim, se eu tivesse dinheiro tirava esses jovem da rua,
tirava esses morador da rua … Mar nada é como a gente qué, né? É como
Deus qué, né? É muito triste você vê essas maldade que acontece no mundo,
nas comunidade, entendeu? Aí policial mata um trabalhador e fala que é
bandido. Nem tudo é bandido.
N. Você sabe de algum caso, de matar alguém?
A.P. Matar já … Na talevisão.
N. E aqui?
A.P. Não! Aqui nunca teve isso não. Graças a Deus. Mas passa … Muita coisa
errada. O governo abafa muito caso, entendeu? Acha que tudo é comunidade,
tudo é na comunidade. Não! Comunidade tem gente honesta, também. Tem
gente que não presta? Tem! Mas também tem muita gente honesta. Tem
trabalhador, tem meninos decente. Tem! Assim, no meu ponto de vista, porque
eu sou cristã, se eu pudesse eu dava um mundo melhor prá muita gente que
precisa. Tem muita gente que precisa. O que é um salário digno prá uma
pessoa que paga aluguel, come, sustenta filho? Não é nada! O governo ganha
muito mais.
N. Você sabe se tem muita gente desempregada aqui?
A.P. Tem. É o que mais tem. E acaba caindo no tráfico porque não tem nada o
que fazer. Porque vai num lugar o hômi não quer dar trabalho porque é preto,
porque … é, mora na comunidade. Eles não dão. Muito preconceito ainda. Em
139
todos lugar tem. Não é só aqui não, em todas as comunidade tem, até na rua,
também, tem.
N. Você tava dizendo que tinha que ter mais projeto pra comunidade. Que tipo
de projeto?
A.P. Ah! Todos projeto. Serviço prá esses adolescente.
N. Serviço que você diz é … Educação …?
A.P. É! Educação! Abrir um projeto pra dá um serviço pra esses adolescente,
Jovem Aprendiz, jovem que nunca trabalhou, não tem uma carteira assinada,
ter o primeiro serviço. Eu acho assim, entendeu? Dar mais segurança pros
pessoal da comunidade.
N. Como seria essa maior segurança?
A.P. Ah! Uma comunidade decente, assim, as casa que precisa de melhoria,
eles ajudar. Por exemplo, você não tem condição de ajeitar sua casa, o
governo pagar pra vir ajeitar casa pá pessoa. Nem todo mundo tem. Assim, ó,
assim uma comunidade toda pintada, sabe? As casas tudo bonitinha, direitinho,
entendeu? Uma rua toda direitinha, entendeu? A família tendo o que comer na
sua mesa, nunca faltar. Cê você pensar bem tem muita gente que passa
necessidade. Muita gente que passa necessidade mesmo. As vezes é
necessário, você vai prum lado, você vai pro outro, você não encontra nada, aí
… A pessoa tem que fazer merda, porque não tem opção. Vai deixar um filho
morrer de fome? Vai deixar um filho passar fome? Não! Não vai mesmo … Eu
tenho oito filhos, jamais eu vou deixar meus filhos passar fome, mas nunca
matei, nunca fumei, nunca cheirei, nunca bebi. Eu tô desempregada, trabalho
aqui (aponta para a mesa com frutas) …
N. Você trabalhava onde?
A.P. Trabalhava numa loja lá no shopping Leblon. Aí o gerente que me
contratou foi mandado embora e entrou outro gerente e me mandou embora.
N. Por que?
A.P. Ninguém sabe porquê. Entendeu?
N. Será que é porque você mora aqui?
A.P. Não … Assim, é porque eu sou preta. Certeza! Porque todo mundo lá
gostava de mim, todo mundo gostava do meu serviço.
N. Quanto tempo você ficou lá?
A.P. Fiquei lá foi cinco meses.
140
N. E antes desse emprego?
A.P. Eu trabalhava numa firma de limpeza lá no centro da cidade.
N. Como você fazia para ir até esses lugares?
A.P. Pegava transporte. Aqui é bem localizado, não demorava. Pegava o 474,
ia prá cidade.
N. O problema era só aqui né? Tinha que subir tudo a pé?
A.P. (risos) Aqui é. Mas agora tem esses moto-taxi, tem a kombi.
N. Aí você pega moto-taxi, mas antigamente era na canela …
A.P. Antigamente era … Era na canela (risos).
N. Você mora muito lá pra cima?
A.P. Eu moro lá em cima, lá no outro morro, lá em cima.
N. E vem aqui … E o AfroReggae? Ajuda? Não ajuda?
A.P. Ah não tenho nada que dizer não porque eu nunca fui lá ...
N. Seus filhos?
A.P. Nunca …
N. Conhece alguém?
A.P. Conheço. Minha cunhada trabalha lá. A C., uma negona altona …
N. Ah!! A C. Conheço ela!
A.P. Minha cunhada!
N. Você tava dizendo de projeto, por isso perguntei do AfroReggae porque
parece que eles tem muito projeto pra juventude …
A.P. Tem. Para as crianças tem. Nunca fui lá, nunca consegui nada ali. Então,
nem faço questão de pedir.
N. O AfroReggae veio antes da UPP né?
A.P. Tem muito tempo já. Veio antes da UPP, já tinha. Muito antes.
N. Como seria a comunidade dos seus sonhos?
A.P. A comunidade dos meus sonhos? (sorriso) É … Todo mundo trabalhando,
sem gente desempregada, sabe? Um sonho? Mãe podendo educar seus filhos,
dá uma condição boa pro seus filhos, dá um colégio bom pros seus filhos …
(nesse momento o marido de A.P. que trabalha na feira junto com ela,
interrompe e fala da esposa e acrescenta: “Mais assistente social”)
A.P. Assistente social.
N. Não tem?
141
A.P. Ter tem, mas não tem o suficiente, assim, sabe? Muita gente
desempregada, assim … Todo mundo ganhando um salário digno, pra nunca
deixar faltar. Sabe, assim, é meu sonho e meu sonho ninguém vai poder
apagar meu sonho, né? Como eu também tenho o sonho de ter uma casa, criar
meus filho, ter um serviço digno, sabe? Eu creio que antes deu morrer, isso vai
acontecer na minha vida, entendeu? Eu tenho muita esperança. Muita! Não
posso deixar meus sonhos ir embora. Não! Vamo entrar em 2014, eu creio que
Deus vai tocar nesse governador aí de, de tocar um pouco no salário das
pessoas que necessitam, que precisam trabalhar.
N. Já que temos essa polícia pacificadora aqui … como seria, então, um lugar
pacificado?
A.P. Ter uma praça digna para as crianças brincar. Chegou esse negócio de
Dia das Criança, todo mundo se unir e fazer uma festa pras criança. Não tem.
N. Você falou da festa né? Antigamente tinha festa?
A.P. Tinha! E era pra comunidade inteira. Era muitos brinquedo bom.
Televisão, geladeira, fogão, brinquedo caríssimos.
N. Quem dava esses brinquedos?
A.P. Aí a gente não sabe (sorrindo)!
N. Era com os meninos?
A.P. (continuando a sorri) Uhum! Tinha festa de Natal. As mãe ganhava
presente.
N. Como é que era? Contaí …
A.P. Era nessas quadra aí. Eles davam presente, eram muito bem educado.
Era os menino dez. Fazia as maldade dele, mas só fazia com quem merecia,
entendeu? Agora com quem não merecia, eles não fazia não. Não tinha roubo,
você poderia dormir com a sua porta aberta que ninguém te roubava. Eles te
respeitava. Dava bom dia, boa tarde. “Tia, tá precisando de alguma coisa?”.
Agora não. Tá precisando, ninguém quer saber de nada.
N. E as festas acabou mesmo?
A.P. Acabou tudo. As criança não ganha … As vezes, os menino lá do
AfroReggae que se une com os outros menino, aí todo mundo arrecada um
dinheiro e compra uns brinquedo pras criança, aí faz uns sorteio lá em cima.
N. Como era a relação de vocês moradores com a polícia quando não tinha
UPP aqui ainda?
142
A.P. Ah normal! Porque eles subia só pra matar mesmo. Então, quando matava
gente inocente, os morador descia todo mundo atrás. Agora não. Agora, tanto
faz quanto tanto fez. Ninguém respeita a UPP, também, a UPP não respeita.
Eles são ignorante! Qualquer coisa quer jogar spray de pimenta na cara dos
outro, não pode passar dum limite de uma festinha, eles qué ir lá pra desligar o
som dos outro, É só isso …
N. E quando a UPP chegou aqui …
A.P. Ninguém foi!
N. Teve algum tipo de inauguração?
A.P. Teve inauguração, mas ninguém foi não. Quase morador nenhum foi.
N. E eles não tentaram chegar em nenhum morador?
A.P. Não. Ah! Só instalaram e ficou por aí mermo.
N. Não teve nenhum tipo de conversa?
A.P. Não. Eu não me lembro não, porque eu não fui.
N. Tem Associação de Moradores aqui?
A.P. Ihhhh! (pausa)
N. (risos) Que que foi?
A.P. Não serve prá nada. Prá nada!!! Cê você precisar de um pedacinho de
terreno, nenhum eles te dá. Eles te vende. É tudo desse jeito.
(Um senhor passa e dá boa tarde a nós duas. Logo vejo que ele conhece A.P.
e se trata do pastor da igreja)
A.P. Aí é isso … Ninguém … Associação? Nota zero! A presidente do morro?
Também, nota zero! Ihhh!!! Tudo merda. Ninguém faz nada. Nascida e criada
aqui eu nunca tive uma casa aqui na comunidade. Quando eu fui ganhar uma
casa, eles tomaram minha casa.
N. Sua casa era alugada?
A.P. Não. Quando eu ganhei um pedacinho duma casinha, no final dessa
estrada alí. A presidente do morro foi lá com o menino, que ela fechava com os
bandido aí, e tomou minha casa. Aí, até hoje eu não tenho uma casa.
N. Mas, por que?
143
A.P. Porque, se aquela casinha fosse a dali, eu ia ganhar um apartamento.
Eles não me deu essa chance de ganhar um apartamento. Ali em cima, aquele
prédio ali.
N. Agora …?
A.P. Agora eu moro de aluguel. Nota zero. Tinha que jogar todo mundo na lata
de lixo. Sério!
N. Tem algum tipo de reunião com a associação e os moradores?
A.P. Não! Tem apartamento lá em cima, vazio, porque eles não dão pra
ninguém. Nascida e criada no morro, nunca tive uma casa. Não sei nem o que
é ter uma casa. Tenho casa porque eu pago aluguel. Pago 400 reais de
aluguel. Nunca tive uma casa. Nunca! Nunca!
N. Por que que tá vazio os apartamentos?
A.P. Não sei. É do governo. Agora tu vai lá pegar que o governo te bota pra
fora, chama a polícia pra te botar pra fora.
( A.P. para a conversa para conversar com alguém do outro lado da feira)
N. Você frequenta alguma igreja aqui?
A.P. Sim. Assembleia de Deus.
N. Aqui mesmo?
A.P. Na Rocinha.
[Fim da entrevista]
Entrevista – Moradora Cantagalo – 19/07/2013
A moradora V. estava subindo a rampa do Cantagalo com mais duas amigas,
todas com uniforme da Escola Solar. Chamei V. e pedi a entrevista. Acanhada,
ela aceitou. Ficamos alguns minutos paradas em pé, de frente com a base da
UPP.
N. Você mora no Cantagalo?
144
V. Sim.
N. Quanto tempo que você mora aqui?
V. Desde pequena.
N. Quantos anos você tem?
V. Tenho 14.
N. Então, 14 anos? [que você mora aqui]
V. É mais ou menos isso porque eu vim do Recreio né
N. Você veio do asfalto...
V. Vim
N. Por que você veio pra cá?
V. Porque a minha mãe separou do meu pai, aí a gente veio morar aqui...
N. Aí vocês encontraram uma casa aqui e vieram pra cá?
V. Aham. Aí a gente veio com a minha vó. Não. A gente veio morar na casa da
minha vó, aí depois de um tempo minha mãe comprou a casa aqui no Galo.
N. E como era sua relação com a sua família e com os vizinhos antes da UPP?
V. Antes? Acho que a minha família nunca teve problema com vizinhos. Acho
que sempre foi boa. A minha vó sempre tratou bem todo mundo. Nunca teve
confusão, brigas...
N. E agora? Depois da UPP?
V. É... Melhor ainda.
N. Melhorou?
V. Melhorou.
N. Por que?
V. Porque eu acho que ... com os bandidos aqui né, era muita bagunça, era
baile [funk] todo dia, briga na estrada, confusão. E aí, agora com a UPP, não
tem mais isso, não tem baile, não tem briga, não tem... Sabe, de manhã você
não encontra todo mundo bêbado pela rua.
N. Tinha muito isso antes?
V. Tinha...
145
N. E essa questão de saneamento e de coleta de lixo, como era antes e agora?
V. É... Antes, o lixo... Nossa! Transbordava ali no chão, era a ladeira tudo sujo
de lixo. Agora não. Tem dia sim, que fica, bastante, que a Comlurb demora a
vim, mas quando vem, eles recolhem tudo também.
N. A Comlurb sobe? Toda semana?
V. Aham ...
N. Todo dia?
V. Acho que sim, todo dia.
N. E luz e água?
V. Luz? Nunca mais acabou, assim, porque antes acabava, ficava uns dois
dias, sem ter luz no morro. Agora não, quando acaba é algum problema e a
Light vem logo, vem resolver. Fica só algumas horas, assim.
N. E essa questão de saúde e postos médicos, vi que tem um aqui embaixo
né... Hospital não tem?
V. Hospital não tem. Postinho tem.
N. E antes da UPP?
V. Não tinha não.
N. E como que fazia se precisasse de alguma coisa?
V. Ah! A gente tinha que descer né. Descer o morro todo, ir no médico lá
embaixo.
N. Tinha alguma ajuda?
V. Ah... A família, um ajudando o outro. O vizinho... Assim...
N. Você já precisou usar esse posto de agora?
V. Já. Fiquei doente, aí tive que ir lá tomar vacina. A Bezetacil.
N. E como que é o atendimento?
V. É muito bom. Demora, assim, porque é muita gente, sabe, mas, é muito
bom.
N. Você trabalha?
V. Não. Só estudo.
N. Você estuda no Solar?
146
V. Sim.
N. Você sempre estudou lá?
V. Sempre estudei lá.
N. E você se sente segura? Como é a segurança aqui? Antes e depois [da
UPP]?
V. Ai... Antes, eu ficava meio com medo, sabe, porque eu vim morar aqui muito
pequena, aí eu via né, coisas assim, com arma, fumando, essas coisas. Aí eu
ficava com medo, mas agora tá tranquilo. Tu anda de noite não tem nada disso,
sabe, essas coisas, assim, mudou muito.
N. Você não vê mais, então, nem arma e nem gente fumando?
V. Fumando tem, mas não é aquelas coisas sabe? Cigarro, normal, essas
coisas...
N. Bom e a UPP tem esse projeto de Polícia Comunitária, de aproximação,
como você vê isso?
V. Ai... Não sei.
N. Ela [a UPP] é próxima dos moradores?
V. É. Eu acho que sim, porque quando morador passa e fala “bom dia”, é “boa
tarde”, essas coisas assim, aí quando tem alguma confusão, assim, aí os
moradores vão lá falar com eles [os policiais], aí eles vão resolver, entendeu?
N. Alguém da sua família ou você já precisou? [Da ajuda da polícia]
V. Não. Só o pessoal que mora em cima da minha casa. Aí, eles foram lá.
N. E conseguiram ajuda?
V. Sim.
N. E você acha que... O que que tem que mudar aqui na comunidade? Precisa
mudar alguma coisa?
V. (pausa) Aqui? Não sei. Eu acho que do jeito que tá, tá bom sabe? Mas com
as pessoas que moram aqui tem que ter consciência né? Porque é muito lixo, é
muita bagunça, essas coisas. Tem que pensar né?
N. Tá tendo algum tipo de reunião? Com a associação de moradores ou
mesmo com a UPP?
V. Não. Acho que não.
(pausa)
147
N. Como seria o Cantagalo ideal para você?
V. (pausa). Eu não sei, porque, tem tanta gente assim, sabe, que tem uma
coisa, uma opinião pra falar e outras não liga, não tá nem aí. Acho que é um
morro sem briga, sem lixo, sem confusão.
N. E quando você tem que sair assim, pra lazer, pra se divertir, você fica por
aqui ou você vai pra outro lugar?
V. Não. Vou pra rua, pra pizzaria, pra praia.
N. Aqui não tem nada?
V. Aqui? Aqui tem. Bar né?! Não tem muita coisa assim, só as vezes que rola
uma festinha com os amigos aqui.
N. E o AfroReggae? Você conhece?
V. Conheço.
N. Já fez alguma coisa lá?
V. Não.
N. Nem assistiu nada?
V. Já assisti. Teatro. Circo.
N. E você acha, que coisas assim, ajuda?
V. Acho que sim né, porque eles sai pra fazer apresentação, circo, sei lá...
N. Tá bom então. Obrigada.
V. Só isso?
N. Só.
[Fim da entrevista]
Entrevista – Moradora Cantagalo – 18/07/2013
A moradora S. estava num brechó na ladeira do Cantagalo. Expliquei sobre a
pesquisa para a dona do brechó que já me conhecia e S. se disponibilizou em
dar a entrevista. Na entrada do comércio, três policiais da UPP faziam ronda e
148
haviam parado na ponta da escada, perto de onde estávamos. Uma semana
antes da chegada do Papa Francisco para a Jornada Mundial da Juventude, o
morro estava cheio de turistas e estrangeiros, e a polícia era vista com maior
frequência pelas ruas da favela.
Sugeri de irmos para outro lugar onde a polícia não ficasse ouvindo a
entrevista. Atravessamos a rua e entramos na Escola Solar. Na entrada,
sentamos num banco. Poucas pessoas passavam por lá, um homem ficou o
tempo todo próximo de nós, ouvindo a conversa.
N. Qual que é teu nome?
S. S.
N. Tem muito turista aqui hoje por causa da Jornada?
S. Muito!
N. Então, tu mora no Cantagalo ou no Pavão?
S. Moro no Cantagalo.
N. Quanto tempo que você mora aqui?
S. Há 19 anos. (risos)
N. Quantos anos você tem? 19?
S. É!
N. Nasceu aqui?
S. Desde sempre.
N. Você trabalha?
S. Eu... Trabalho a noite na ótica que meu pai abriu.
N. Onde? Desculpa.
S. Numa ótica que meu pai abriu aqui no morro.
149
N. E você trabalha antes dessa ótica?
S. Não. Só estudo.
N. Você continua estudando?
S. Aham.
N. Você estuda aqui? [No Solar]
S. Período integral.
N. Como era seu cotidiano, assim, antes da UPP?
S. Antes da UPP? Pra mim não mudou muita coisa não, porque eu nunca fui de
ficar andando pelo morro, mas antes a gente via mais armas... A coisa era mais
escancarada. Hoje não, hoje, eles, depois da UPP, a coisa começou a ficar
mais escondida, pelo menos era, agora tá voltando de novo. O povo tá
voltando a andar de arma, vender drogas.
N. Então, arma você vê?
S. Já. É porque, tipo eles não vão abusar e andar de manhã, mas a noite,
dependendo do lugar que você tá no morro, você vê também, os meninos de
arma, ainda.
N. Você disse que tá mais escondido, então não acabou? [o tráfico armado]
S. Não acabou! Isso é fato, não acabou, mas está mais escondido. De tipo, que
maquiaram.
N. E como que é esse escondido?
S. É... Antes, onde você passa no morro, tinha boca de fumo, os meninos
estavam com arma. É... Hoje não. Tem... Cada hora a boca tá num lugar. Tipo,
uma hora tá lá no Galo, depois muda, exatamente por conta da UPP, pra eles
não ficarem lá enchendo o saco direto. Então, muda. As bocas de fumo mudam
de lugar. Por conta disso. E a arma, eles usam a noite, mas a UPP sabe que
tem, mas também não faz nada pra acabar. Então, eu não vejo muita diferença
não, a UPP, pra mim, só entrou pra maquiar. Pra falar que agora tem policial,
150
pra coisa não ficar tão escancarada como era antes, mas continua a mesma
coisa. Se eles tiverem que pegar pra bater em alguém que fez besteira no
morro, os bandidos no caso, vão bater, como no dia mataram um menino aqui,
de porrada.
N. Foi agora isso?
S. Acho que foi no final do ano passado. Pegaram o menino...
N. A UPP pegou?
S. Não, os meninos [do tráfico], a UPP foi chegar depois, pra levar o cara pro
hospital e tal. Aqui também tem cracudo, a UPP não faz nada. Tá só com a
UPP, ponto. Eu não vejo a UPP fazendo nada aqui.
N. Você já teve alguma relação direta, que você precisasse, com os policiais?
S. Não. Eu nunca precisei não. Minha tia que já aconteceu. Uma vez, dela
cortar o pé, assim, eles levaram ela pro hospital, mas foi só isso também. Eu
nunca tive contato direto com a UPP não.
N. Como que eram os serviços, geral assim, na comunidade? Então, como que
era escola, antes e depois?
S. Ficou a mesma coisa. Só que com a entrada da UPP, as escolas ganharam
mais segurança. Até porque, no começo, a UPP ficava muito aqui, ficava muita
parada em frente a escola, mas, e tipo se precisar de alguma coisa, a escola tá
precisando, precisa que a UPP faça a segurança de alguma coisa, que vai vir
alguém importante aqui, aí a UPP desce e faz a segurança, mas também a
escola empresta quando precisam do teatro, daqui, pra eles fazerem a reunião
deles, quando vem uma quantidade muito grande de policiais, a escola
empresta, as vezes, a UPP faz trabalho aqui com os alunos, mas não mudou
muita coisa não.
N. Mas antes, mesmo, com o tráfico, quando não tinha a UPP aqui, tinha certa
segurança?
S. Não. Era... Não vou dizer que era pior, mas já aconteceu de muitas vezes,
porque aqui [Escola Solar] é pago, tem que fazer a inscrição, de a mãe vir
151
primeiro e não conseguir vaga pra criança, vir o menino [do tráfico], alguém
armado descer e falar “eu quero e acabou” e ter que arrumar vaga, se não...
Porque a pessoa tá armada. Já aconteceu. Com a UPP não acontece mais, até
porque né, a pessoa ia ser presa, ela não é tão burra assim. Vamos ter o limite,
mas fora isso, não mudou muita coisa não. Aqui tem muito filho de traficante
estudando.
N. E esses filhos continuam no tráfico?
S. Não. Muita gente, as vezes, quem é filho de traficante não entra. É mais o
pessoal de fora que acha legal. Ah! Tem dinheiro, anda de ouro pra lá e pra cá,
com arma, então os meninos ...
N. O pessoal do asfalto, você diz?
S. É! O pessoal do asfalto vem muito por causa da droga. Acho que teve uma
menina também, que tem um filho lá de baixo, que o menino saiu de lá agora,
ficou aqui morando com ela e tá preso agora. Pra mim a UPP não mudou muita
coisa não.
N. Vocês, porque eu já entrevistei umas quatro pessoas, e sempre quando
falam do tráfico, vocês falam dos meninos, tem alguma razão? Ou é garoto,
porque eles são novos?
S. Não, é porque, eles são mais... É, são novos. Antes o pessoal da boca era o
pessoal mais velho, até porque eles não queriam envolver muito menor de
idade, hoje em dia não, são mais menor de idade e que os próprios meninos.
Muito menino saiu da boca depois que a UPP entrou, como muito menino novo,
muito mesmo, entrou, porque a UPP entrou e a boca, também, encheu de
menor. Muita criança pequena, muita pessoa menor de idade. Por isso que a
gente fala “os meninos”, porque tá muita gente menor de idade.
N. E a questão do lixo, porque eu vejo muito lixo, assim, espalhado,
principalmente lá naquela, no lugar que o PAC fez aquela obra, lá na quadra ...
S. Com a UPP aqui... Tipo, que vieram mais ONGs, tipo a Agência Rede para a
Juventude, que promove projetos para a melhoria da comunidade, aí minha
irmã tem até um projeto, minha irmã e minha amiga, minha amiga o projeto
152
dela é pra reciclar, é, limpar a comunidade, juntar os lixos, fazer mutirão e,
minha irmã, aproveita o lixo, pega os recicláveis e recicla, o projeto delas tem
essa ligação. Com a UPP facilitou, porque é um projeto, o projeto Agência, veio
depois da UPP, mas antes, a comunidade está mais limpa, de fato; mas antes,
tinha ah... Uma barranceira, tem vários ali no morro que tem barranceira. Os
moradores reclamavam do lixo, se os meninos botassem “não pode jogar mais
lixo”, acabou! Não pode. Ai de quem pegar jogando! Toma porrada. Então, eles
controlavam... Era uma forma deles controlar. Hoje com a UPP não, eles
controlam, entre aspas, da forma certa. Ainda mais com os projetos que vem
até para ensinar, os moradores mesmo, onde jogar o lixo certo e tal, como tem
no Leme, Favela Orgânica, que reaproveita o lixo úmido que são as comida,
casca. Aqui esses dois projetos que ajuda. Até pra limpar mesmo, pra manter a
comunidade mais limpa e ensinar.
N. Mas, eu tive aqui no domingo e eu vi a Comlurb subindo ...
S. Eles sobem pra fazer a limpeza.
N. Sobe todo dia?
S. Não. Tem os garis mesmo da comunidade, que são os que fazem limpeza
diária. A Comlurb vem, o caminhão da Comlurb vem pra catar, o caminhão,
pegar a caçapa que tá cheia, vem esvaziar, pra entrada de novos lixos, eles
vem para isso, mas limpeza mesmo, é diariamente, o pessoal da Comlurb do
morro mesmo. Os garis.
N. E o esgoto? Vejo ainda que tem alguns pontos que corre, assim... [a céu
aberto]
S. Tá mais fechado, antes era demais. No Quebra então!
N. Onde?
S. O Quebra, que é onde, mais perto do elevador, na General Osório. Tem o
elevador da General Osório, lá já é o Quebra, o buraco quente. Nossa!!! Ali tem
um lugar, que agora tá mais limpo, mas ali tinha um esgoto, que choveu:
transbordou. É horrível, um nojo! Eu não descia ali de jeito nenhum chovendo.
Tenho nojo. Agora, tá mais fechado, tão fechando mais. Tá menos.
153
N. A Prefeitura tá vindo, então?
S. Tá...! Devagar, mas tá vindo. Mas tá melhor. Em relação ao lixo e ao esgoto,
tá melhor sim. Tão melhores sim.
N. E a questão da saúde? Posto de Saúde ou mesmo hospital?
S. Aqui tá funcionando bem o postinho. Em relação a saúde tá melhor. Antes a
gente não via, pelo menos eu não via, quando aconteceu um acidente aqui que
o carro perdeu o freio, desceu a ladeira, pegou três senhoras e um rapaz, o
pessoal do bombeiro veio, com o carro, levou todo mundo, antes, eu não via
isso. Depois da UPP, é que eles tão subindo mais, acho que por conta da
segurança, a UPP passa uma certa segurança que dá pra eles subir. Aqui a
postinho funciona bem, as vezes demora no atendimento, mas fora isso, é
ótimo. Tipo, eu mesmo, quando sair daqui com a minha irmã, vou levar ela pro
postinho, que ela tá super resfriada, mas lá é bom. O atendimento é bom.
N. Tem remédio?
S. Tem remédio, tem tudo e, se não tiver, eles te dão a receita pra comprar,
mas normalmente, tem todos os remédios lá. Eles fazem o acompanhamento a
pressão. Meu pai tava com pressão alta, teve que fica fazendo um mês de
acompanhamento, eles encaminha pra exame, é... Teste de gravidez, fazem
tudo lá. E tem esse daqui e tem o do SESI também. A do SESI é no Pavão,
mas não é da Prefeitura. O do SESI é muito bom, faço preventivo lá. O pessoal
prefere fazer preventivo lá. Lá, também, é ótimo. É, tem a carteirinha, tudo
direitinho, os profissionais lá, também, são super atenciosos. É bom.
N. E antigamente como que fazia?
S. Não tinha.
N. Não tinha, mas aí quando precisava...
S. Não tinha. Tinha que ir pro hospital mesmo.
N. Os meninos chegavam a ajudar em alguma coisa?
154
S. Não. Se, tipo, aconteceu alguma coisa, tipo, você falar “tô precisando...”,
eles pegavam , se precisasse, eles mesmo desciam com as pessoas e
carregavam, dava um dinheiro, passagem pra alguma coisa, depois
procuravam saber “pô, como é que tá?” e tal, mas, eles, em relação assim, se o
morador precisasse, eles ajudavam sim. Como teve gente que não conseguiu,
não tinha dinheiro pra comprar material escolar, eles davam material escolar.
Mas, né!? É um dinheiro não muito abençoado. Mas eles, os moradores, eles
era errados, mas eles ajudavam sim os moradores, de uma certa forma.
N. O que eu quero entender é assim, tinha essa ajuda que vinha deles, claro
que o dinheiro vinha do tráfico e enfim, como que agora, essas pessoas que
precisam de ajuda, consegue ou não consegue mais?
S. Tem meio de consumo por outros meios. Muita gente teve que começar a
trabalhar depois do tráfico, muita gente mesmo. É..., mas, tipo, tem gente,
apesar de a boca ainda estar pequena, consegue alguma coisa, assim, com o
tráfico, mas as coisas mais assim, corre pra UPP, tentar com a UPP.
N. E consegue?
S. Consegue. Acho que consegue. Eu nunca precisei. Graças a Deus, mas
minha tia, que é envolvida com esses meninos da boca, se ela precisar de
dinheiro pra alguma coisa, como ela já precisou, correu a UPP e a UPP, é...
disponibilizou pra ela. Como se a gente precisar, por exemplo, do salão deles
[da UPP] de reunião, que não é uma coisa muito grande, na base deles, se os
moradores precisarem e tal, e forem lá e pedir, eles emprestam.
N. E tem reunião dos moradores ou da Associação dos moradores?
S. Tava tendo, até por conta dos projetos que tavam vindo, tipo o Projetão tal,
tava tendo. Agora, não sei.
N. Que projeto?
S. É do Projetão que tá tendo com o pessoal do BNDS com o pessoal das
comunidade. Tipo, juntar todos os projetos que tem e fazer um Projetão.
N. Ah! Juntar tudo num só?
155
S. É. Do Pavão fazer com o pessoal do Pavão e do Galo, dois Projetões, um de
cada parte com o BNDS ajudando, mas isso é uma coisa muito complicada.
N. Mas aí faria o que? Juntaria todas as ONGs do Cantagalo e
S. É! Do Cantagalo e fazer um Projetão de melhoria pra comunidade, o BNDS
financiaria esses projetos. Mas é complicado porque o pessoal daqui tá
acostumando muita com as coisas na mão, então, aí ninguém quer correr atrás
de nada, só quer receber, então, nem vale muito a pena.
N. E a Associação de moradores?
S. Eles estão sempre envolvidos.
N. Já precisou deles pra alguma coisa?
S. Não. A Associação de moradores funciona de uma certa forma, funciona. É
mais pra carta, tipo, se você precisa iniciar alguma coisa, algum comunidade à
comunidade. Algum problema que esteja... É só passar lá, que eles passam
pro pessoal maior. Mas funciona, poderia ser melhor, mas funciona bem a
Associação. A água, aqui, também, funciona bem, pelo menos a parte do Galo,
o cara que liga, todo mundo elogia ele porque, além, ele tem os dias certinhos
pra ligar cada parte da comunidade, do Cantagalo no caso, o Pavão eu não sei
bem. Então, ele passa, o bom é que, tinha gente que ligava e ah “tô nem aí”, ou
ouve a água chegando e liga a bomba. Ele não. Ele liga a água e vem
descendo avisando, todas as partes. No Quebra ele faz isso, liga a água e vai
lá no Quebra a grita “olha a água vizinha”, aí todo mundo já liga a bomba
desesperado pra pegar água. É bem legal, por isso, que quando, final do ano,
ninguém reclama de dar caixinha pra ele. Todo mundo junta, assim, pessoal da
comunidade, em relação a isso, junta e dá o dinheiro pro final do ano, dá a
caixinha pra eles. Em relação a isso, a agente é bem, só em relação a isso
também.
N. Você tem filho?
S. Não!!! Quero ter filho não, já basta minha irmã de seis anos que eu cuido.
N. Você tem quantos irmãos?
156
S. Tenho quatro.
N. Qual a idade deles?
S. Tudo do mesmo pai e da mesma mãe. Eu tenho 19, minha irmã tem 17, um
tem 15 e outro tem 13 e a mais novinha tem 6.
N. E o AFroReggae lá em cima, você conhece?
S. Conheço! Tenho amigos que já participaram, tá até tendo evento.
N. Tem o negócio do circo não é?
S. É! Meu amigo me chamou pra ir, mas eu não fui não porque eu tava
trabalhando. Aí não deu pra eu ir não. Mas o AfroReggae, eu não tenho o que
falar do AfroReggae.
N. Mas é que você nunca fez nada lá?
S. Não. Eu nunca fiz nada lá.
N. Mas você acha que ajuda?
S. Bom, esse meu amigo do projeto, me chamou, ele passa o dia inteiro lá, no
AfroReggae, mas ele recebe pra isso. Eles fazem, porque tem o AfroReggae e
tem o Bibois, que foi um grupo que surgiu dentro do AfroReggae, que dançam,
break, essas coisas. Tanto a parte do AfroReggae quanto a parte do Bibois, e
ele recebe parte do AfroReggae, acho que eles também dão aula lá dentro,
essas coisas tudo. Ele recebe, mas eu não tenho, sempre tive vontade de
participar do circo, mas não tenho tempo, a escola não deixa, sabe, o dia
inteiro. Trabalho.
N. Na ótica você faz o que?
S. Eu, meu pai, o pessoal trabalha de dez as oito, assim, eu como estudo aqui
o dia inteiro, eu vou pra lá e fico de seis as oito com meu pai. Aí, eu faço a
última arrumação antes de a gente ir embora, eu organizo as coisas, eu sou a
recepcionista, a que marca horário, divulgo também, quando precisa, dou
informações, sabe? Meu pai também faz isso tudo, só que ele fica mais com
157
parte do exame. Ele que faz o exame, que monta os óculos, ele que vai ver
esse negócio de lente, armação.
N. Mas teu pai não é médico?
S. Não. Ele é formado em optometria.
N. Entendi. Agora que a gente falou de agora e de antes, que que você acha
que tem que melhorar ainda ou se tem que melhorar alguma coisa?
S. Não! Tem! Tem que melhorar muita coisa aqui ainda. A própria comunidade
tem que entender, apesar de a UPP não fazer questão nenhuma que eles tão
aqui pra proteger, pra trazer melhorias pra comunidade, o pessoal tem que, né,
entender isso. Muita gente aqui é a favor do tráfico, você vê assim, muita gente
tá acostumado com o tráfico, então, é... Uma coisa que eles [policiais da UPP]
fizeram errado, ao meu ver, o povo aqui do morro gosta de uma festa, gosta de
curtir, tiraram o baile [funk], que antes era financiado pelo tráfico. Agora os DJs
mesmo da comunidade, se juntaram e tal, tavam querendo dar baile, eles
tinham tirado o baile. Eles tiraram o baile acabou. Eles passavam neguinho
tacava coisa nele, sempre tava dando confusão, assim, na estrada e o tipo de
abordagem deles, também, é muito agressivo. Eles... Todo mundo reclama que
eles batem, o marido da minha amiga também é da boca, ela tava contando
que ele tava no Quebra a noite, eles pegaram ele, ele passou, eles estavam no
beco, levaram ele por beco escuro, mas quebraram ele, quebraram, acho que
os dois braços dele de tanto bater.
N. Mas por que? Só porque ele tava lá?
S. É! Porque sabe que ele é envolvido. Só que acho, que como ele não tava
com nada, ele é abusado também, esse povo também, ele é abusado e
aproveitaram que tava escuto, sem ninguém no caminho, no beco escuro
ainda, só ele... Quebraram ele todinho, os moradores começaram a ouvir,
gritos assim, saiu todo mundo, meteram o pé, deixaram ele no chão e meteram
o pé. O pessoal do morro que desceu, levou ele pro hospital e tal, então, assim,
tinha que melhorar a abordagem deles. Melhorar, procurar saber na
comunidade o que tá acontecendo, que que tá faltando assim...
158
N. Não tem essa troca?
S. Não! Pra procurar saber o que eles podem ajudar, pros moradores, pra
própria comunidade poderem pegar mais confiança neles e, por exemplo aqui,
pra deixar pra fazer melhorias, não pra esculachar, também. Mas precisa
melhorar muita coisa.
N. O que mais? Além da UPP?
S. Os próprios moradores precisam ser mais unidos. Porque é um querendo
passar por cima do outro, um querendo pisar... Os comerciantes, um querendo
ganhar mais dinheiro que o outro... É, a pessoa tem que ser mais unido.
N. Como que seria então, o Cantagalo ideal?
S. As pessoas serem mais unidas. É... Até que tá melhorando, assim, meu pai,
ele o pessoal aqui mané ping-pong, onde você passa tem uma mesa, as vezes
nem mesa, eles pegam madeira, essas portas velhas, e botam em cima de
alguma coisa e ficam jogando ping-pong. Tá demais isso (risos), aí... É
engraçado eles jogando. É muito engraçado. Aí que vão fazer, o pessoal, meu
pai tava querendo, falou até com Kei, que é o cabo do CRJ, que promove
eventos, assim, pro pessoal da comunidade, aí meu pai tava falando até com
ele pra ver se no Dia das Crianças não faz um torneio, final de um torneio de
ping-pong. Aí, também, seria uma festa, teria pula-pula para as crianças,
premiação e tal e, isso envolveria os comércios, os comerciantes da
comunidade, que eles ajudariam com o que eles pudessem e, isso acaba
deixando a comunidade mais unida, tipo, acabou de ter a Festa Junina aqui.
Então é uma forma de as pessoas estarem mais unidas, se conhecendo. Acho
que não tem o Cantagalo ideal, mas, um lugar onde todo mundo viva bem, é...
Se respeite, em primeiro lugar, que é isso que não tem muito.
N. Então, tem muita briga?
S. Tem. Ih! Vive tendo briga. Vive tendo briga.
N. Antes e depois era assim?
159
S. Não. Antes e depois. Esses dias mesmo, é... Tava tendo discussão entre o
cracudo e o comerciante, o cracudo pegou, depois de muito tempo, o irmão do
outro que não tinha nada a ver, o cara passou com o carro, o comerciante,
tacou um monte de pedra pra dentro do carro, quebrou o negócio do carro do
moço, nem foi na UPP, foi logo nos meninos, os meninos da boca. Desceu com
os meninos da boca, aí teve desenrolo no mesmo caminho, só não sei como
não bateram neles lá mesmo. Eles são mais de bater. Também teve, noutro
dia, o cara, o menino, o senhor tava sentado, assim, na beirada de uma
birosca, o garoto menor de idade saiu dirigindo o carro, pegou a perna dele [do
senhor], pressionou na parede. Lá da loja ouvi os ossos do cara quebrando.
Até a UPP descer e, tipo, todo mundo desesperado. O cara jorrando sangue da
perna do cara, o cara assim serinho, como se tivesse sentindo nada, e o
pessoal desesperado. Aí veio, um carro passou, e o carro passou, o cara falou
“não! Deixa que a UPP leva”, a UPP desceu, o moço mesmo não. A pessoa
mesmo que ocasionou o acidente, meteu o pé, não quis nem saber, depois, de
muito tempo, subiram pra saber como é que tava o cara e tal, mas não deram
assistência, não deram nada.
N. Mas aí a UPP foi e levou?
S. Foi. Aí tem que levar também, entendeu. Não tem jeito. Mas aqui, vire e
mexe, tem briga, mulher rolando de um lado para o outro de porrada. Olha!
Aqui é demais.
N. E essa coisa do turismo e tal? Antes subia a quantidade de gente que sobe
agora?
S. Subia. Não tanta gente como tá agora, aqui sempre foi um lugar que sempre
teve muito turismo, o pessoal vinha muito pra cá, mas, agora, tá demais e é
bom. É até bom. Tem, o pessoal mesmo já abriu, meu tio vai abrir uma
república pra estudantes, pra estudante, pro pessoal que mora longe, tem
muito hostel só pra gringo, como tem pro pessoal da comunidade que não tem
casa e tal, aí vai pra lá. Aí tá abrindo muita coisa pra, tem o MUF, que é o
Museu de Favela, eles também...
N. Tem Museu aqui?
160
S. Tem.
N. Onde que fica?
S. Ih, fica lá pra cima no Galo. Na igrejinha. Só você subindo, você pergunta,
onde fica o MUF? Que vão te localizando, mas até tem umas setas vermelhas,
que vai mostrando assim o caminho. Lá, eles também trazem muito turista, eles
vivem, adoram teatro, vivem vendo ingresso pros moradores. Quem quiser ir lá
pega ingresso pra ir pro teatro. Então, tipo, umas amigas minha sempre vai no
teatro.
N. Teatro aqui?
S. Não. Teatro fora.
N. Antes tinha hostel?
S. Não que eu saiba.
N. Mas aí turista subia e não tinha problema com o tráfico?
S. Não!
N. Eu poderia fazer entrevista assim?
S. Não. Até poderia, o máximo que os meninos iam perguntar é “o que que
foi?”, “não tô fazendo entrevista e tal”, mas era tranquilo. Era bem tranquilo.
N. Essa coisa de pacificação, o que você acha? Do nome, assim, que eles
usam, inclusive...
S. É... Não é uma ideia de paz né? Pacificação. Que a única coisa que eles
fizeram foi trocar os policiais, aliás, os bandidos pelos policiais, mas, tá bom, o
que que... Continua o tráfico de drogas, as armas, tudo, então...
(pausa)
Acho que é só o nome mesmo. Pacificação, acho que foi só o nome. Pra mim
não mudou muita coisa não.
N. É isso, se quiser dizer mais alguma coisa...
161
S. (risos) Tô esperando a minha irmã, então.
N. Que série você tá?
S. Segundo ano.
N. Aí ano que vem você se forma ...
S. Andei dando uns moles sabe?
N. Aí pretende fazer alguma coisa depois? Faculdade?
S. Tenho. Aqui [Solar] tem convênio com universidade e com a Gama Filho.
Aqui, porque, aqui, o ensino médio e o fundamental são a universidade, aí eles
já saem daqui com a faculdade garantida, daqui pra fazer a faculdade. De
graça, também.
N. O que você quer fazer?
S. Quero fazer fisioterapia, depois me especializar em estética, depois da
fisioterapia.
N. Minha mãe faz isso.
S. Eu acho muito legal! Vou fazer. Tem, minha amiga também, tá querendo
fazer fisioterapia.
N. Legal.
[Fim da entrevista]
Entrevista – Moradora Pavão-Pavãozinho – 09/06/2013
A moradora M. estava subindo os últimos degraus do morro do Pavão-
Pavãozinho, numa região conhecida como “caranguejo”. Num dado momento,
M. parou na ponta da escada para olhar um rapaz que grafitava uma porta
162
velha. Pintava um grande girassol que sorria. Apresentei-me a M, que com uma
sacola de verduras na mão, correspondeu de modo desconfiado. Pedi-a, então,
a entrevista e M. aceitou, dizendo que teria que ser rápido, pois precisava
preparar o almoço. Era domingo, fazia muito sol e as crianças desciam e
subiam a todo o momento a escada em escolhemos para sentar.
N. Quanto tempo você mora aqui?
M. Há 46 anos. Fui nascida e criada aqui.
N. Aqui é o Pavão?
M. Pavão.
N. Me explica uma coisa, qual a diferença entre o Pavão e o Pavãozinho?
Porque parece que são duas áreas diferentes...
M. Olha! Não sei porque eles colocaram o nome dividido, Pavão-Pavãozinho,
acho que abreviaram, assim, esse é Pavão, primeiro é Pavão e depois é
Pavãozinho, porque também, não sei.
N. Então, você nasceu aqui e, por que seus familiares vieram pra cá?
M. Por que? Quando eu nasci meus pais já moravam aqui já.
N. Moravam. E eles eram do Rio mesmo?
M. Não. São da Paraíba. Vieram de lá pra cá. Aí fizeram a casa deles aí e aí,
eu nasci aqui mermo.
N. E como era a relação com os vizinhos e com a família?
M. Boa. Tive uma infância boa, a gente brincava muito de pique bandeira,
correndo aí pelos caminhos. Era muito bom. Agora de lá pra cá o que que
mudou? O que que mudou é que a gente não tem com frequência coleta de
lixo.
N. Antes tinha?
163
M. Também não tinha. Agora começou os gari a trabalhar, não! Antes tinha!
Antes tinha! Tinha que eram os gari comunitário, mas depois eles tiraram os
comunitário e botaram os outros de fora, aí a gente fica assim, com os caminho
tudo sujo.
N. E tem esgoto a céu aberto né?
M. É! É! Tudo a céu aberto. Tem essa passarela aqui que a gente sempre
varre, pra não ficar tudo tão bagunçado, tem dia que isso aqui tá uma zona
danada, as crianças pegando lixo, começa a brincar com lixo pelos caminhos,
aí deixa assim ó, tudo espalhado. A gente mermo pega e limpa, a gente varre.
A rotina é essa: trabalho.
N. Você trabalha aqui?
M. Não. Trabalho lá... Lá perto do Rio Centro.
N. E aí é tranquilo pra transporte?
M. É. Às vezes quando falta o dinheiro da passagem eu vou a pé. Desço isso
tudo, pego o bonde ali, desço tudo, aí se tiver dinheiro de passagem, pago
passagem, se não tiver, eu vou a pé.
N. Você sempre trabalhou nesse lugar?
M. Não. Nunca trabalhei aqui dentro do morro não.
N. Como é a relação com os vizinhos agora?
M. A relação é boa.
N. Normalmente tem muita briga...
M. Varia de vizinho pra vizinho. Vizinho tem que se entender um com outro, pra
não ter confusão né?! É a gente se entende aqui sim, dificilmente, difícil sair
briga de vizinho com vizinho. E aqui é a parte mais alta, a parte mais, é a mais
calma que tem né. Aqui as crianças brinca aqui em cima, chega uma certa
hora, a noite, as crianças tão brincando aqui em cima, a gente fica bebendo
uma cervejinha ali pelo Zeca, fica todo mundo perto de casa mesmo.
164
N. Como era a relação da polícia aqui antes da UPP, quando existia o tráfico,
tráfico armado?
M. Sempre existiu, né?! Sempre existiu.
N. O tráfico continua?
M. Continua né! Continua. Vê o caso da Rocinha, lá do Alemão... Mas sabe
como que é as polícia né? As vezes eles ficam aí, ficam aí junto, pra lá e pra
cá, a UPP também fica, pra lá e pra cá, mas eles só que é descobrir né.
Querem saber quem é quem.
N. Essa história de polícia comunitária, acontece ou não?
M. As vezes acontece. As vezes a polícia... É difícil eles virem aqui pra cima
né, porque eles são preguiçoso pra subir.
N. É. Eu vi eles aqui embaixo, mas já estavam descendo.
M. É descendo pra almoçar! É de lá da segunda pra quinta [estação] só, que
eles descem ali pra almoçar na Bela Vista.
N. Que estação é essa aqui?
M. Quinta estação. A última. Subiu de bonde?
N. Subi a pé. Como é que era aqui quando tinha o tráfico armado, enfim,
quando não tinha a base da UPP, como era essa coisa de serviço?
M. Era normal. Só o médico que não. Só o postinho que não. Não tinha
postinho antes, aí depois que veio, depois que surgiu a UPP aí, que fizeram o
postinho.
N. E resolve?
M. Resolve. Eu mermo me trato lá, faço consulta lá, as vezes. Ah! Eu acho
bom. Eu ainda não tenho nada que reclamar não do serviço do posto, do posto
comunitário não. Como é que fala? Postinho lá de saúde. Posto de saúde. Não
tenho nada que reclamar não.
N. O que ainda precisa mudar aqui na comunidade?
165
M. Pô! O que precisa mudar?! É o bondinho subir até o final do morro né!
(risos).
N. Esse bondinho veio como? Com o PAC?
M. É!
N. Faz pouco tempo que tem aí então?
M. Não. Faz bastante tempo. Foi o PAC do... Começou no PAC, o primeiro
PAC que teve aí, que eu não lembro quando foi.
N. O que mais que precisa mudar?
M. Por enquanto é isso né. É o bonde subir até o final do morro.
N. E você acha que agora tá pacificado [o morro]?
M. É, tá pacificado. Praticamente tá pacificado né, porque, aqui é difícil sair um
tiroteio.
N. Tinha bastante antes?
M. É... Tinha. Agora melhorou um pouco.
N. Esses tiroteios faziam parte do cotidiano?
M. Antes do coisa [da UPP], tinha. Antes tinha.
N. Você teve alguma relação direta com os meninos do tráfico?
M. Não. Não... Não. Eles lá e nós aqui né?! Morador, a segurança do morador
e assim vamos sobrevivendo. Assim vai sobrevivendo.
N. Obrigada.
[Fim da entrevista]
Entrevista – Morador Pavão/Pavãozinho – 18/07/2013
166
O morador T. foi entrevistado na Escola Solar, onde trabalhava. Era fim de
tarde e o sol adentrava a pequena mesa onde estávamos com uma janela que
se abria para a ladeira de subida para o Cantagalo.
N. Você mora no Cantagalo ou no Pavão?
T. Pavão.
N. Quanto tempo?
T. 30 anos.
N. Mas você nasceu aqui?
T. Não. Eu vim pra cá. Nasci no Ceará.
N. E como você veio pra cá?
T. Ahh... Eu vim através dos meus outros irmãos que moram aqui muito tempo
e aí eu gostei daqui, vim com 15 ano...
N. E aí você veio com a sua mãe?
T. Vim só.
N. Veio sozinho?
T. Vim. Meus irmãos já estavam aqui. Aí como eu trabalho aqui perto, aí eu vim
morar aqui no Pavão através de um colega meu.
N. Você trabalhava onde?
T. Eu trabalhava antigamente em botequim. Meu primeiro emprego.
N. Mas era no asfalto ou aqui?
T. No asfalto.
N. E agora você trabalha?
167
T. Trabalho aqui na escola.
N. No Solar?
T. É.
N. E como que era sua vida, em relação, antes da UPP, antes de 2009, com os
vizinhos?
T. Continua a merma coisa.
N. Como é que era então?
T. É porque eu sou assim, sou daquele sabe, entrar e sair entendeu? Cada um
na sua e pra mim a pacificação mudou pouca coisa. Mudou pouca coisa.
N. Mudou o que então?
T. É... Assim, é... No sentido do pessoal andar armado, entendeu? É... Aí você
não vê. A única coisa que mudou é que saiu um armamento e entrou outro,
entendeu? Saiu o armamento dos bandidos e entrou o armamento das polícias.
Antigamente você via bandido armado, hoje você vê a polícia.
N. E isso é uma melhora ou não?
T. Bom, por um lado sim entendeu? Por um lado sim, mas dizer que mudou,
mudou, mas não foi muito essas coisas. Falta ainda muita melhoria pra
comunidade, entendeu? A gente não quer ver armamento, a gente quer ver
benfeitoria pra comunidade, entendeu? Como, é, como é que se fala?
Saneamento básico, esgoto, essas coisas assim, é, que venha melhoria pra
comunidade.
N. Como que era a educação antes? Então, essa coisa de escola?
T. A educação sempre foi a mesma entendeu? É, assim, por exemplo, a
educação do Estado aqui, a escola hoje abriga aqui 400 alunos, é da
comunidade, entendeu? Você comparando o grau de estudo daqui com o
estudo da escola estadual, municipal, aqui é totalmente mais forte, entendeu?
Do que a do asfalto. Aqui eu trabalho há 8 anos, aqui na escola, e o resultado é
bem melhor que lá embaixo e já encaminha os alunos daqui pra faculdade, pra
168
emprego, alguns trabalham no Hotel Fasano, outro na faculdade. Tem uma
menina aqui que ficou um ano e seis meses, terminou os estudos, hoje tá na
faculdade, graças aqui, tá fazendo fisioterapia, e também, tem meus filhos que
entrou com um ano e pouco, hoje tá com 17 anos, eu pretendo que ele termine
os estudos aqui, então, a educação aqui, entendeu? Sempre foi a mesma.
N. Então, não mudou? O que eu digo é assim, com o tráfico aqui e depois com
a polícia não teve nenhuma mudança?
T. É pelo contrário. É o pessoal do tráfico, eles sempre protegeram aqui,
protegeram em termo de não deixar ninguém fazer baderna, destruir, roubar,
porque mermo eles tem que ter eles aqui entendeu? Eles não querem ver os
filhos deles no mesmo caminho que eles vivem, entendeu? No meio da
vagabundagem, ostentando arma, vendendo droga, entendeu? Aqui tem muito
filho deles, eles querem os filhos dele na faculdade, no trabalho, entendeu?
N. E essa movimentação, então, continua? De venda de droga...?
T. Ah! Em todas as comunidades continua, enquanto existir usuário de droga,
então a droga nunca vai se acabar.
N. Então, a polícia aqui, não elimina?
T. Nem aqui e nem em comunidade nenhuma. Não vai eliminar. Porque é
aquilo que te falo, enquanto existir viciado, a droga não vai acabar, entendeu?
Então, no morro como no asfalto e você... Não é só porque é comunidade, que
você vai ver lá existe tráfico de droga. Logico, no asfalto também existe, mas
só que é mais diferente, é escondido, entendeu? Não é que nem na
comunidade.
N. Mas aqui também... Eu não vejo nada quando entro aqui, mas as pessoas
que já falei dizem que vê armamento, vê o tráfico, eu não vejo nada, então, é
escondido também...
T. É, agora é mais, como é que se fala? É mais escondido entre eles mermo,
entendeu?
(pausa)
169
N. E a saúde? Antes e depois.
T. Continua a merma coisa (risos). É, você vai no hospital aí, você vê filas
enormes, doentes deitado no chão...
N. Mas aqui dentro o que você tá falando?
T. Não.
N. Não. Tô falando aqui dentro, como era o acesso a posto de saúde e a
medicamento, enfim, e à médico, com o tráfico e, agora, depois com a UPP?
T. Mudou pouca coisa. Porque sempre existiu o posto de saúde aqui dentro
entendeu? E os moradores sempre tiveram acesso. Hoje tá assim, por
exemplo, mudou um pouco porque o pessoal do asfalto já tiveram um pouco,
assim, de liberdade pra subir, assim, pra subir a comunidade. Hoje tem um,
dois postos aqui, de saúde. Tem um aqui [Cantagalo] e tem outro lá no Pavão.
Tem o do SESI e um, que acho que é da Prefeitura. SESI não da FIRJAN.
N. Não é do SESI?
T. É SESI, mas é FIRJAN. Ele dá o aluguel.
N. Mas acesso a remédio, essas coisas, com o tráfico, tinha?
T. Não, as pessoas buscavam mais lá fora, no asfalto.
N. Mas o tráfico ajudava de alguma forma?
T. Que eu saiba não.
N E saneamento? Que eu vejo, assim, saneamento e lixo. Porque eu andei
vendo, assim, e eu vejo a Comlurb aí, mas ainda vejo muito lixo espalhado pra
dentro...
T. Não, então, antigamente, o pessoal da limpeza não tinha tanto acesso como
hoje tem. Hoje tem os próprios garis dentro da comunidade né? Mas aí é o que
te falo, a educação não tem que vir só de baixo, educação tem que vir de casa,
por que que eu falo de casa? A educação tem que vir dos próprios moradores,
você vê moradores jogando sacolas de lixo nas valas, nas portas dos outros
170
moradores, e isso eu vejo e fico indignado, entendeu? Por exemplo, todo dia eu
desço com a minha sacola de lixo, se cada morador fizesse isso, fizesse sua
parte, acho que a comunidade seria bem mais limpa, porque teve uma
pesquisa aí, que o Pavão é a comunidade mais suja aqui do Rio de Janeiro.
Isso eu concordo porque eu vejo, porque você vê as valas aí, são lotadas de
lixo, são lotada, então, educação não tem que vir só do Estado, só daqui
debaixo, os próprios moradores tem que ter consciência.
N. Então quando a Prefeitura sobe, ela só pega aqui, essas vias principais...
T. Não. Ela sobe o morro.
N. Sobe todo...
T. Sobe todo o morro.
N. Aí sobe os garis e saí recolhendo...
T. Isso. Por exemplo, lá no Pavão, tem uma boca de lixeira lá que vem lá do
Vietnã, tem um tubo lá pro pessoal jogar lixo lá, na boca dela, e vem dispersar
aqui na quinta estação. Então os garis estão lá de domingo a domingo
recolhendo lixo, descendo o bondinho, não sei se você sabe o bondinho... O
elevador alí, e o carro dos garis fica aqui embaixo.
N. E com o tráfico?
T. Não tinha isso.
N. Não tinha nenhum tipo de organização deles pra ajudar na limpeza?
T. Não. Tinha. Aí eu te falo, não tinha né, com o tráfico, os garis é da Comlurb,
mas em cima, tinha os garis da comunidade, entendeu? Mas só que o morro
era mais limpo porque o próprio pessoal do tráfico botava ordem, entendeu?
Tinha que limpar, não tinha essa bagunça que é hoje.
N. E a polícia também não...
T. Não faz a sua parte.
171
N. E como que é a sua relação com a UPP, se você já teve alguma
experiência, ou se você sabe de outra experiência de familiar, de amigo?
T. Não. Experiência da UPP é que ela bota regra, assim, muito rígida pros
moradores. Antigamente (sic) você não podia fazer uma festa de aniversário
porque tinha que ir lá [com a UPP] pegar autorização e tinha que ir só até meia
noite, uma hora da manhã.
N. Com a UPP?
T. É. Com a UPP. Então, acabou com a diversão da comunidade, entendeu?
Agora deram o horário de sexta à sábado até as quatro da manhã. De
domingo, até meia noite. Isso aí, eles tiraram muito a liberdade dos moradores.
N. Porque antigamente...
T. É, rolava... Mas, por exemplo, hoje se você faz uma festinha vai até quatro
horas, isso só tem um mês. Porque um mês atrás, você só podia fazer uma
festinha até uma hora da manhã, até duas horas. Ainda tinha que ir lá pedir
autorização. Pedir autorização deles.
N. E esse ideal de polícia comunitária, de polícia de aproximação, de diálogo
com o morador, acontece?
T. Não. Acontecia antes. Na época do Nogueira, do comandante Nogueira, ela
sempre aproximava mais, ele andava pela comunidade, ele falava pros
moradores, ele fazia projetos pras crianças, ele dava aula de futebol aqui na
Escola, levava as crianças da comunidade pra fazer passeio, pra levar pro
Maracanã e hoje, esse comandante que entrou aí, nem eu conheço. Ninguém
conhece.
N. Já me falaram dele [do Nogueira]. Você sabe o que aconteceu pra ele sair?
T. An?
N. Não, porque em outras entrevistas, o pessoal sempre fala desse Nogueira, e
ele saiu, eu não sei o que aconteceu pra ele sair?
172
T. Não. É porque isso aí, é uma reunião entre eles mermo. Do Secretário [de
segurança] que cuida deles lá entendeu? Aí isso é questão, por exemplo, aí vai
sair o Nogueira, aí entrou o Senna, entendeu? Aí já foi botando mais rigidez,
entendeu? Aí depois o Senna saiu e entrou esse outro, você nem vê a cara
dele. Não vê ele falando com os moradores, morador nenhum conhece ele,
você não vê ele aqui nas comunidades Pavão, Pavãozinho, Cantagalo. Tava
havendo uma aproximação. Não tem mais essa aproximação.
N. E como que é essa rigidez que você falou?
T. Então, de termo de horário.
N. Só o horário?
T. Não. Só o horário pra você, fazer tua festinha, por exemplo, os próprios
birosqueiros, só poderia tá aberto até uma, duas horas da manhã. Agora não,
eles podem ficar até quatro horas, cinco horas.
N. Já que estamos falando do antes e do agora, como que seria, então, a
comunidade ideal? O que precisa melhorar e se precisa melhorar alguma
coisa?
T. Saneamento. Mais limpeza no morro, mais consciência e educação dos
moradores. Falta muita coisa.
N. O que que é muita coisa?
T. (risos) Nossa! Sei lá, assim, por exemplo, trazer mais coisas boas pras
comunidades, quadra de esporte, essas coisas, lazer, esporte, porque o da
Escola aqui tem atividade o dia todo, tem aula de futebol, tem vôlei, tem
sapateado, tem dança de salão, tem ballet, entendeu? E tem aula de
informática. Já a comunidade não tem isso, entendeu? Até porque a creche
não tem capacidade pra acolher todas as crianças. Todas as crianças. Então é
isso que precisa. Mais educação pro pessoal da comunidade.
N. Eu sei que tem algumas ONGs por aí e tem o AfroReggae, você conhece?
T. Conheço. Eu já, até fez uma reunião de, aqui no teatro, onde eu trabalho.
173
N. Você trabalha no teatro?
T. Uhum.
N. Achei que fosse trabalhasse só aqui [no Solar]
T. Não, trabalho no teatro. Faço a iluminação e a parte elétrica aqui da Escola.
N. Aqui na Escola?
T. É.
N. Mas o teatro que você diz é aqui?
T. É. Aqui na Escola.
N. Ah! Não sabia que tinha.
T. Tem o teatro Meninos de Luz, entendeu? Aí eu trabalho nessa parte, só
iluminação. É tanto que essa escola, Meninos de Luz, ela não trouxe, ela não
só trouxe a oportunidade pras crianças como pros pais também. E, também,
pra alguns funcionários. Alguns funcionários se formaram, também, através
daqui. Um se formaram professora de letra, outra... Várias profissões. Tudo as
custas daqui também. Então, essa escola Meninos de Luz, tem ajudado muito
o Pavão, Pavãozinho, Cantagalo. E que você não vê outra comunidade que
tem uma escola dessa pra ter um horário integral com 400 crianças da própria
comunidade e aqui a gente só aceita criança da própria comunidade. O que
ajuda muito aqui é a FIRJAN. O SESI oferece vários cursos.
N. Já que a UPP tem o nome de pacificação, o que você acha dessa
pacificação?
T. (risos). Sei lá, não acho nada. Pra mim continua a merma coisa. E pra mim
não trouxe benfeitoria nenhuma, porque assim, eu sou uma pessoa que mora
aqui há 30 anos. Eu sei entrar e sair [da favela], todo mundo gosta de mim,
geral, geral, entendeu? Eu não sou de ficar bajulando ninguém e nem puxando
o saco de ninguém, entendeu? Eu sou só de casa pro trabalho e do trabalho
pra casa. Eu já trabalhei com comércio, aqui na comunidade, com uma
pizzaria, há 10 anos entendeu? Eu nunca deixei um inimigo, ninguém, nunca
174
teve reclamação da minha pessoa, nem do lado a e nem do lado b, todo mundo
me adora. E daqui do trabalho, eu brinco com todo mundo, no geral, com os
patrões, com os colegas do trabalho, então, é esse meu dia-a-dia, é buscar
alegria e amizade, entendeu? Então, a UPP pra mim, não trouxe nada. Eu
continua a merma coisa.
N. E eu reparei hoje, por causa da Jornada [Mundial da Juventude] e porque é
férias né? E tem muita gente, assim, acho que de fora...
T. Tem.
N. Turista mesmo.
T. Tem.
N. Antigamente, ates da UPP, era essa a movimentação de turista?
T. Não.
N. Eu poderia entrar e fazer entrevista?
T. Não.
N. Aumentou essas pessoas de fora?
T. Uhum. Aumentou. Aumentou mais turista, assim, porque, que hoje, é que
nem aquilo que te falei, a UPP melhorou por um lado? Sim, melhorou, mas falta
muita coisa. Hoje, melhorou, com a UPP você pode subir a comunidade,
descer a comunidade, entendeu? E hoje tem muitos turistas aí, até morando na
comunidade. Alugando casa. Então, e aproveitar essa onda aí até chegar a
Copa de Mundo [de 2014], passar a Copa do Mundo, só Deus sabe. Então, eu
digo assim, as pessoas, quer aproveitar esse, essa etapa, é agora sabe? Por
exemplo, casa que valia 15 mil, 20 mil, hoje a pessoa tá pedindo 100 mil, 120
mil, entendeu? Valorizou muito. Se a pessoa quer lucrar, tem que ser agora,
nesse período, entendeu? Depois que passar a Copa de Mundo, essas coisas
aí, só Deus sabe, como é que vai ficar porque acredito eu, que o governo vai
ter verba suficiente pra sustentar não sei quantos mil policias que entraram na
UPP, entendeu?
175
N. É muito policial né?
T. São muitos policiais. Muitos. Cada comunidade tem 500 policias, tem 300,
dependendo do tamanho da comunidade. Então, aí você vê, vamo botar uns
100 mil policiais, o Estado vai ter verba suficiente pra sustentar 100 mil
policiais? E é muita, muita coisa, entendeu? É tanto que tá tendo essa onda de
violência, com esses protesto. Muitas coisas. Mas pra mudar, nunca é tarde.
N. Obrigada.
T. Nada.
[Fim da entrevista]
Entrevista - Moradora Cantagalo – 18/07/2013
A moradora C. trabalha na creche da Escola Solar. A creche ficava numa
grande casa de pedra pintada de verde. Adentrei a casa procurando por ela e
me disseram que ficasse no andar superior a esperando. Subi as escadas e o
barulho de crianças gritando e brincando era um incômodo. Falei com C. em
uma sala cheia de bebes, estava cuidando deles e pediu que eu a esperasse
um pouco. Sentei na antessala que dava de encontro a duas outras salas com
mais crianças. Alguns bebês vinham até a porta me espiar. Após uns dez
minutos, C. me cumprimentou e descemos para uma espécie de escritório
onde pude prosseguir com a entrevista.
N. Você mora no Pavão ou no Cantagalo?
C. Cantagalo
N. Há quanto tempo?
C. Há trinta anos. Tem trinta anos, desde quando eu nasci.
176
N. E morava com quem?
C. Morava com a minha mãe, meus pais. Com 19 anos fui morar no Galo, fiz
um puxadinho, cozinha, quarto e banheiro e eu moro do lado. Hoje mora eu e
minha filha. Porque eu fui morar com o pai dela, mas aí a gente se separou e
mora eu e minha filha só.
N. Quantos anos tem sua filha?
C. Tem 7.
N. Como que é sua relação com os vizinhos?
C. Os meus vizinhos, é boa, tipo assim, eles são muito antigo. No Pavão já é
mais diferente, toda hora troca, mas meus vizinhos eram da época da minha
vó, depois da época da minha mãe, da minha época, agora já tem as crianças,
tem minha filha, são vizinhos bem antigos, como se fosse da família assim,
porque se precisar pode pedir pra um, pra outro, que eles estão ali. Um ou
outro que vieram morar pouco tempo de aluguel, mas a grande maioria é
antiga.
N. É tranquilo?
C. É tranquilo. São tranquilo.
N. Sempre foi?
C. Sempre foi. Tem as brigas, assim, de vizinho, mas é tranquilo. Coisas que
resolve.
N. Como que seus pais vieram pra cá?
C. Minha mãe e meu pai vieram de Minas. Meu pai, a mãe dele veio de Minas e
foi morar em outra comunidade, na Mineira; meu pai veio de Minas e foi morar
em outro morro, na Mineira que é no Rio Comprido e depois veio morar aqui, e
minha mãe veio de Minas já pra morar aqui com a minha vó.
N. Aí eles se conheceram aqui?
C. Se conheceram aqui. E ficaram. É.
177
N. Já que você trabalha aqui, você sempre trabalhou aqui?
C. Não. Já trabalhei em outros lugares. Tem cinco anos que tô aqui.
N. Onde você trabalhava antes?
C. Já trabalhei nas Lojas Americanas em Ipanema, já trabalhei numa loja em
São Cristovão, faz cinco anos também.
N. E o transporte como é que era?
C. Transporte público, ônibus.
N. Não, mas era fácil?
C. Era fácil, Ipanema era mais fácil que tinha como eu ir a pé. Agora São
Cristovão eu pegava o 747, é fácil, só ônibus pra ir e pra voltar. Tranquilo.
N. E educação, como é que era essa coisa de escola antes da UPP e depois?
C. Bem, escola, eu estudei no Brizolão, que é o CIEP, então, assim, eu peguei
a época que inaugurou. Era muito bom. Eu estudei, entrei com jardim e fui até
o ginásio lá. Era tranquilo. Sempre foi tranquilo. Tinha esse negócio de tiroteio,
tudo, aí a escola fechava, mas depois da UPP, tranquilo. Depois eu fui estudar
na rua, estudei ali na Castro Guimarães, não estudei muito aqui no morro, só
no Brizolão. Hoje em dia o Brizolão não é tão bom assim, não tem mais quase
nada, acho que não tem mais o ginásio, não funciona piscina nem nada, mas
acho que a UPP não interferiu muito nesse negócio de escola não. Tem muita
creche, agora, acho que tem três. Tem a creche da Tia Elza, tem aqui o Solar,
tem a Pierina, tem duas creches na comunidade, mas escola mesmo só tem o
Brizolão, aqui no Solar ou na rua. Escola, assim que eu falo, do primeiro ano
em diante. Ou no Brizolão ou no Solar, aqui no morro não tem, só tem creche.
N. Aí no caso, o pessoal desce?
C. É. Tem que descer.
N. E saúde?
178
C. Tem o Clínica da Família, que veio depois que a UPP ocupou o morro. Essa
Clínica da Família aqui. Tinha um postinho subindo a ladeira aqui, eram
voluntários que tinha endocrinologista, tinha floral e tinha ortopedia, mas fechou
pra obra e não abriu. E tem um posto da FIRJAN que fica no Pavão. Que tem
ginecologista, clínico, acho que tem endocrinologista também, dentista. E tem a
Clínica da Família aqui que tem tudo.
N. Isso tudo veio depois da UPP?
C. Depois da UPP.
N. E como que era antes?
C. Antes não tinha. Tinha onde é o posto do Pavão, tinha uma médica, doutora
Jane, tinha um postinho lá, que eu não sei de quem era, que funcionava. Tinha
a doutora Jane que era clínica, tinha um pediatra, doutor Cláudio e tinha
ginecologista, mas eu não sei se era algo do governo ou alguma ONG.
Funcionou há muitos anos, mas só tinha esse também. Depois parou, não sei
por que e aí não tinha mais posto de saúde aqui. Começou depois da UPP
esses outros.
N. Aí parou?
C. Parou não. Acabou. Eles não vieram, foram embora. Não sei também qual
motivo. Acabou esse posto e não funcionou mais, aí depois que veio a UPP pro
morro que trocou, a Clínica da Família ou do FIRJAN.
N. Aí é tudo do governo?
C. Isso. Da FIRJAN é do SESI e o Clínica da Família é da Prefeitura, do
município.
N. E essa coisa de iluminação, esgoto, coleta de lixo?
C. Então, tem a obra do PAC agora, né, então, assim, iluminação é boa, tem
alguns caminhos escuros, mas é uma iluminação boa. Umas partes são
iluminadas, são poucos os caminhos escuros, não são muitos. No Cantagalo
não tem esgoto aberto, já aqui pro Pavão, dizem que tem. No Cantagalo não
tem. Tem, agora, tá tendo muita sujeira por causa da obra do PAC e
179
quebraram as casas, demoliram as casas e os entulhos ficaram, não recolheu,
não teve ninguém recolhendo. Deu muito rato, muita sujeira, tá muita sujeira,
entendeu? E a coleta de lixo não tá muito legal não. A coleta de lixo. Acumula
muito lixo.
N. Eu vi assim, perto da quadra, sabe aquela quadra...
C. Sei.
N. Ficou um amontoado de lixo.
C. Muito lixo. Porque assim, tá tendo poucas caçambas. Fica na estrada
principal e alguns pontos do morro e nos pontos do morro, o Comlurb entra,
varre, mas não todo dia, porque antes tinha, antes da UPP entrar, tinha os
garis comunitários. Então eles varriam todos os dias, o caminho ficava mais
limpo. Ficava sujo claro, porque o pessoal suja, mas ficava mais limpo, porque
ele passava todos os dias varrendo. Cada ponto do morro tinha um gari
responsável. E aí tirou. Agora entrou a Comlurb, a Comlurb não vem todos os
dias, a Comlurb vem de vez em quando, então acumula muito lixo.
N. E esses garis comunitários eram moradores daqui?
C. Eram moradores daqui, mas eles eram carteira assinada. Não sei como é
que era, por onde que era, qual empresa, sei que eles trabalhavam de
uniforme, carteira assinada, tudo direitinho.
N. Mas aí tinha alguma parceria com o tráfico?
C. Não. Não tinha nada a ver com o tráfico não. Mas não tinha não, porque os
garis comunitários, tinha até mulher que trabalhava, eles nunca tiveram
nenhum tipo de movimento com nada, era pessoas de família mermo,
direitinha.
N. Não, mas que eu digo assim, do tráfico pagar...
C. Não. Isso que tô falando, eles eram carteira assinada, tudo direitinho. Não
sei de onde que era. E acabou porque veio a Comlurb. Não tinha nenhuma
ligação, que eu saiba, não.
180
N. Você teve algum contato com o pessoal do tráfico na época do tráfico e
agora com os policiais com a UPP?
C. É, teve assim, a gente via né? Os traficantes armados, a gente via, quando
eu descia pra trabalhar, tinham pontos perto da minha casa. A gente via tudo
isso e com a UPP acabou. Então assim, você não vê mais traficante armado,
não vê, se tem venda de droga, você não vê vendendo, porque deve ser algum
lugar especifico, entendeu? A gente sabe no fundo, no fundo, que ainda tem,
mas a gente não vê. Não é aquela coisa mais visível. Então você pode entrar
pelo morro tranquilo que você não vê nada. Você vê os policiais andando tudo,
mas você não vê. Não tem. Bem mais tranquilo com a UPP. Mudou, mudou
muito isso, isso mudou bastante, entendeu? E a violência também, tiroteio, não
tem mais. Desde quando a UPP entrou aqui no morro que você não escuta
troca de tiro, nada disso.
N. Mas o que eu escuto assim [nas entrevistas], é que assim, a gente não vê
mais, mas as pessoas falam...
C. As pessoas falam que existe. Então, isso que tô falando, a gente não vê,
mas as pessoas dizem que existe, que ainda existe o tráfico, que ainda existe a
venda de droga, mas aí é mais quem é viciado, assim, que sabe onde que é os
pontos entendeu? Sabe onde é que vende, tudo essas coisas.
N. E essa coisa de polícia comunitária, polícia de aproximação, acontece?
Esse diálogo?
C. Acontece algumas vezes, nem sempre. Tem alguns policiais que são bem
legais, que chegam e conversam, mas tem outros que não. Então assim, perto
da minha casa ficam dois policiais, que tem um espaço lá, uma pracinha que
eles já ficam lá, tipo um ponto deles. E o pessoal, a vizinha, já todos conhece
eles. Muda, assim, sabe, hoje fica dois, amanhã, são policiais diferentes. E aí,
é assim, mas são sempre os mesmos policiais, em dias diferentes são outras,
né? E aí o pessoal tem amizade com eles né, eles ficam lá, eles conversam,
brincam com as crianças. Tem a parte da UPP que é mais social, que promove
passeios, atividades das crianças, tudo.
N. Tem isso?
181
C. Tem. Tem essa aproximação, entendeu? Mas também, tem aqueles mais
durões, mas eu acho que as vezes precisa de ter esses mais durões né,
porque se não... Mas tem, essa parte social, tem futebol, eles fazem futebol
com as crianças lá em cima.
N. Mas é um projeto?
C. Acho que é um projeto deles. De vez em quando eles fazem algum passeio,
teve até um passeio, que eu mesma fui que o ano passado foi no Dia das
Crianças, que foi no Maracanãzinho? Foi a UPP, assim todas as UPPs, todas
as comunidades, aí eles vem com ônibus, com as crianças, entendeu? Quando
também, eles conseguem ingresso, ano passado teve show pra Xuxa, eles
levam, entendeu? Eles fazem uma atividade, eles aproximam.
N. O que você acha assim, se tem alguma coisa que tem que melhorar aqui na
comunidade? E o que?
C. O que tem que melhorar é a questão do lixo. É muito lixo, da coleta de lixo e
da limpeza, porque a obra [do PAC] derrubou muita casa, então não tirou os
entulhos e aí os ratos, começaram a sair, então é muito rato. É rato andando
pelos fios, sabe? E aí é muita sujeira. A comunidade de certa forma, também,
não ajuda, deixa o lixo naquele terreno vazio, entendeu? Aí vai acumulando.
Tem que melhorar a sujeira. É muita sujeira, muita mesmo.
N. Você tava falando da obra, me explica direitinho...
C. É obra do PAC. É... É, o PAC veio, aí o que que vão fazer? Eles quebraram
algumas casas porque eles vão abrir ruas, a que a ladeira sobe, os carros vão
entrar por dentro da comunidade, por dentro do morro, e aí eles tiveram que
remover as casas e fizerem dois prédios lá em cima, três prédios lá em cima e
fizeram esse daqui do lado, tem um aqui do lado, que tá vazio. Para as
pessoas morarem nesses prédios, só que assim, eles quebraram a casa,
tiraram as pessoas da casa, eles moram de Aluguel Social, até os
apartamentos ficarem prontos. Uns já ficaram outros não. E aí a obra não
acaba. A obra parou. Tipo assim, a obra parou mês passado, tá parada, não
sabe quando que vai voltar. Aí fica os entulho, fica a bagunça da obra, fica a
sujeira, entendeu? A obra tá parada. Só isso. É bom, é bom, o projeto é bom,
182
só é ruim que para toda hora. Dizem que vai mudar, que aí a empresa que tá
vai entrar outra empresa, mas até entrar fica parado.
N. Quantos anos tá nisso?
C. A obra tá há bastante tempo, tá... Antes da UPP entrar teve obra, depois
parou, a UPP entrou em 2009. Antes de a UPP entrar, teve uma obra do PAC e
parou, aí depois voltou. Aí tem uns dois anos que voltou, aí agora, parou de
novo, entendeu? Tem muito tempo.
N. E turismo, assim, porque...
C. Melhorou muito. Tem muita gente. Até mesmo onde eu moro, tem dois
vizinhos meus que são franceses, vieram da França e tão morando aqui. E tem
uma pousada, aqui subindo, que vem muita gente de fora, pra ficar, as vezes,
dias aqui no Rio de Janeiro, fica na pousada. Tem muito, muito turista aqui no
Cantagalo. Melhorou muito.
N. Eu vi que tem muito hostel.
C. Tem. Tem muito hostel. Tem um subindo aqui.
N. Conheço, da D.?
C. É. Conheceu a D. (risos). As pessoas, também, tem muito medo de subir,
né, claro, por todo o receio de subir, porque eram traficantes armados mermo
e... E... E... Como é que vou falar? Ele eles, de uma certa forma, implicavam,
eles não implicavam assim, eles queriam saber quem é que tá chegando.
Pessoa diferente ele já ficavam, porque eles vivem num mundo de medo, na
verdade. Então, qualquer pessoa diferente que chegava, eles já tinham medo.
Aí eles tinham medo de qualquer pessoa que chegava, então eles abordavam
qualquer pessoa que chegava. Não quer saber, então, não vinha.
N. Eu conseguiria entrar para fazer a entrevista?
C. Até conseguiria, mas eles iam perguntar, de onde você vem? O que você
quer? Entendeu? Não era tão fácil assim. Tem até o Mirante, tem bastante
gente que pega o elevador pra ver o Mirante e até que acaba, depois entrando
no morro pra conhecer. É bem tranquilo sobre isso.
183
N. Você tem alguma religião?
C. Espírita.
N. Tem algum centro aqui?
C. Não. Não tem. Eu comecei aqui no Solar, quando era criança aqui, começou
com umas aulas, aí foi indo, foi indo, virei espírita. Nem trabalhava aqui ainda
nem nada. Depois que eu vim trabalhar. E eu frequento um centro espírita na
rua, lá na Souza Lima. Agora, aqui no Solar, tem uma salinha ali na
administração que a gente tá tentando colocar. A gente já tem palestra aqui e
passe, só que a gente, não tá sendo muito divulgado, a gente tá começando a
divulgar, então já tem algumas pessoas que tão vindo. E durante o sábado tem
a evangelização das crianças e dos adultos, então, vem bastante gente da
comunidade.
N. Porque o que eu vi é muita igreja...
C. É muita igreja evangélica. Católica só tem uma, tem duas, tem uma no
Pavão e uma no Cantagalo, que são bem antigas, que foram as primeiras
igrejas do morro.
N. A que é perto do MUF?
C. Isso. Aquela foi a primeira igreja católica do Cantagalo. É uma capela na
verdade, porque é da Igreja Nossa Senhora da Paz e ali é a capela. Eu fui
criada na igreja católica, fui criada ali, fiz catecismo tudo ali, primeira comunhão
e aí, depois foram surgindo muitas igrejas evangélicas, espiritismo tá
começando agora, estou muitos anos aqui, mas as pessoas estão começando
a aparecer mais agora. Eles ainda veem o espiritismo muito como macumba,
então, não tinha nenhum centro espírita, tinha um de macumba, no Cantagalo.
Tinha, há muitos anos atrás, mas depois, fechou e nunca mais teve. No Pavão
não sei se teve. Cantagalo eles tinham, era uma tradição, assim, uma família,
eles se vestiam no Ano Novo, iam pra praia tudo, depois acabou.
N. E lazer?
184
C. Lazer. Assim, não tem muito espaço de lazer, tem as atividades que a UPP
promove para as crianças, tem o Criança Esperança, mas tá fechado. Na
época das férias eles fecham. Tem o AfroReggae, também, que promove
eventos lá para as crianças e tudo e pra gente tem cinema, tem teatro, tem...
Só. E assim, baile, pagode, essas coisas, mas assim, só quando a UPP libera.
Agora tá liberando, tá tendo baile, tá tendo pagode na quadra, mas não é
sempre que eles liberam né. Entendeu? Tem um alvará, não sei como que é.
Aí quem promove, tem essas músicas aí a noite, nos bares, mas para as
crianças, é só quando tem alguma coisa...
N. Já que a UPP tem o no nome pacificação, no projeto, o que você acha
dessa pacificação?
C. Não, então. Tem alguns policias que são pacíficos. Minha filha fazia até
ballet lá em cima do Criança Esperança e aí, a gente conversava com alguns
policiais e tinha, tem uns policiais que são pacíficos mesmo. Que tentam
sempre, que tão sempre atento, mas assim, a comunidade vê a UPP, não vê
com bons olhos, nem todos, né? Muitos querem que fiquem, mas nem todos
veem com bons olhos. E tem aqueles policiais turrões, então, aqueles mais
violentos, acabam fazendo com que essa, essa, tipo assim, a comunidade não
aceitar. Já não querem muito aceitar, ainda tem esses policiais que acaba
fazendo com que não aceitem mesmo, entendeu? Em vez, como, não pacifico.
Eu acho que eles são pacíficos, olhando morro de como era antes, antes da
pacificação, da violência, das drogas, tudo. E assim, eles ocuparam o morro,
não teve morte, violência, não teve aquele tiroteio, quando eles vieram,
ocuparam, que nem a gente via quando tinha invasão de tráfico. Troca de tiro.
Era morte mermo. De você passar vê corpo pelo chão, tiroteio. A UPP entrou
não teve isso e acalmou, então assim, e mesmo, por mais violento que eles
sejam, que as vezes, tacam spray na cara dos outros, de bater, de levar preso
que não sei o que, é porque, também, muitas vezes o pessoal desacata. Então,
eu acho que eles são pacíficos, porque diminuiu muito a violência, entendeu?
Então, é... Há uma violência ainda, mas não da forma que era, entendeu? Acho
que eles estão aqui pra melhorar, tão tentando melhorar, tão tentando chegar
num ponto, mas assim, ainda tem que agir de uma forma grosseira ainda, pra
conseguir acalmar essa situação, entendeu? E algumas situações, tipo assim,
185
eles andam pelo morro, não tem preguiça de andar pelo morro não. Outro dia
tava na Associação [de moradores] e escutei o policial falando com o rapaz da
Associação, o presidente, “ah! A gente vai num lugar que é ponto de venda de
droga”, que eles sabem, dizem que sabem, e aí eles tão olhando pra quela
pessoa sempre, sabe que aquela pessoa tem envolvimento, então, quando
eles vão naquela pessoa, eles já tão de olho, entendeu? Eu, eu e minha
família, assim, tô falando por mim, eu não tenho o que reclamar nem a minha
família tem que reclamar de nenhum tipo de violência dos policiais. Eu escuto
assim, às vezes a mãe falando “ah! Porque o policial...”, entendeu? Mas às
vezes tá no lugar errado com a pessoa errada, entendeu? E acaba levando
junto. Então eu acho que eles são pacíficos sim.
N. Bom é só isso.
C. Foi bom. (risos)
N. Obrigada.
[Fim da entrevista]
Entrevista – Morador Cantagalo – 19/07/2013
O morador M. trabalha na Associação de Moradores do Cantagalo e foi onde
pude entrevista-lo. De fala baixa e calma, M. se sentou ao fundo da
Associação, com um copo de café nas mãos, falava meio ressentido, com certa
tristeza e resignação. A Associação de Moradores ficava numa ladeira
silenciosa, porém, muito movimentada. Um morador que mexia nas
correspondências cantava ao fundo o tempo. Uma televisão chiava contando
as notícias do dia.
N. Tu mora no Cantagalo?
M. Sou nascido e criado aqui, tem 57 anos.
N. E você trabalha na Associação?
M. [interrompido por outro integrante da associação]
186
B. Aqui é todo mundo voluntário. Eu sou o presidente, mas sou voluntário. Ele
também. São pessoas que ajudam voluntariamente. Ele já foi presidente,
atualmente não é, mas continua ajudando voluntariamente.
M. Ele vai falar por mim.
B. Não! Eu só tô complementando. Mas ele tem mais coisa pra falar porque ele
é nascido e criado na comunidade, o tempo todo na comunidade. Então ele
passou por esse período todo de transição. Então ele tem muita coisa pra falar.
É a pessoa ideal pra você fazer a entrevista. Agora se ele mentir aqui eu
quebro a cabeça dele aqui. (risos)
M. Tem que fazer jogo limpo.
B. Agora ele é meu segurança aí.
M. Teu segurança?
(risos)
N. Foi tua família que veio pra cá?
M. Foi. Minha vó. Vieram de Minas. Aí depois, minha vó veio, uma tia minha
veio. Todos nós somos, quer dizer, da minha vó pra cá, todos nós somos
nascidos aqui. Dificilmente, agora tem, sobrinho, primo, sobrinho nascido aqui.
N. E como era a relação com seus vizinhos e com a sua família, antes de
2009?
M. É assim, antes da UPP é assim, a família era mais unida. A comunidade
aqui não era tão aberta. Era mais fechada, você sabia quem era quem, a ajuda
era mútua. Você não tinha muita coisa, não tinha essa... Imensidão de
benefícios que você tem, internet, acessibilidade, metro, se ganhava menos
mas era mais feliz. Hoje você tem que, tivemos uma primeira polícia na
comunidade que foi o GPAE. A partir do GPAE as coisas começaram a
modificar.
N. Que ano que foi?
M. Na época... 92. A partir daí começamos a sentir, nós começamos a perder a
raiz da comunidade.
N. E o que seria essa raiz da comunidade e essa coisa de ser mais unida que
você estava falando?
M. É que não tinha tanto estrangeiro, não tinha tanto imigrante aqui no morro. A
ligação existia mais no Pavão-Pavãozinho. Lá existia mais alugueis, progresso
lá era maior. Aqui não. Aqui era mais fechado, mais unido. Pra você penetrar
187
na comunidade você tinha... Tinha que se identificar com alguém aqui. Você
tinha que ter alguém te trazido pra cá. Que nem o B. chegou aqui, ele
caminhava com o pessoal antigo aí e nós começamos a respeitar o B.,
interessou pela comunidade. O B. não caiu de paraquedas aqui, não [inaudível]
o pessoal que tá aqui, não tá sendo parceiro, o cara passa por você assim e
esquece que você tem (pausa). É... Esqueceram a humildade, que pra ser feliz
não precisamos de muito dinheiro. De lá pra cá tem casa com 4, 5 civil. Quer
dizer, o cara monta aqui e vai embora. Virou comércio. Você passa pela
pessoa no caminho, você não sabe por quem tá passando. Mal mal é um bom
dia, se dá bom dia. Dá um boa noite... E não é legal isso. Se você passa mal
você precisa de alguém pra te ajudar, isso nós tínhamos antes, permanece isso
ainda, os mais antigos, mas, os imigrantes não tem essa preocupação que nós
temos.
N. Quando você diz imigrantes é o pessoal que vem do asfalto ou é que vem
de outro estado?
M. De outro estado, que vem do asfalto. Cara ganha legal na rua e vem morar
de aluguel. E o cara tem a cara de pau de falar “vim morar no morro porque
não pago água, não pago luz, tenho tudo de graça”. Não sabe a luta que foi
botar a luz aqui, não sabe a luta que nós temos pra manter a água
funcionando.
N. Você pegou essa parte toda?
M. Peguei.
N. Como é que foi?
M. Em relação a luz?
N. É. Da luz e da água
M. A luz. Foi na época da ditadura, mas fizemos um grupo de trabalho com o
pessoal da igreja, que as pessoas via as coisas de um modo diferente. Tinha
que trazer benefícios pra gente, criar um grupo de luz e a Associação de
Moradores, Comissão de Luz. Você pagava... Vamos dizer, 50 mil, e a renda
da Associação não chegava a 50 mil para a conta de luz. Verão você ficava
mais sem energia que outra coisa. Aí a Light começou a trazer o benefício. Não
pra cá, mas para outras comunidades e aí, nós começamos a fazer esse grupo,
e pedimos reivindicações. A Light deu pra cada morador um ponto, um
comprovante de residência, que não tínhamos comprovante de residência. Não
188
tínhamos comprovante. Quem tinha era a Associação e a Fundação João XIII.
A partir daí, a luz veio, ficou melhor, consequentemente, mesmo caminho, nós
conseguimos uma abertura com a SEDAE, aí cada morador teve uma
torneirinha, as valas começaram a diminuir. Se você disse que ainda tem uma
vala negra na comunidade... Porque ainda existe ainda.
N. E agora?
M. Bom. Agora. A relação com vizinho tá modificada, porque os vizinhos...
Antes se você tinha arroz e feijão, você tinha, se tivesse arroz e feijão, você
sabia dividir, cada um comia arroz e feijão contigo, mas hoje se você comprar
uma televisão de 40 polegadas no caso, o cara quer comprar maior que a tua.
Não tá preocupado em saber a luta que você tem, tá preocupado no
investimento enorme de mostrar que você tem a capacidade maior, entendeu?
Isso nós estamos perdendo devagarzinho. Cara vem pra cá, não quer saber o
problema que a comunidade tem, o problema que nos passamos aqui pra
manter isso aqui. Se você tem um cara desses [apontou para B.] que se
disponha a trabalhar direto. O cara não tá nem aí pra você. Não pode jogar lixo
no caminho, o cara joga lixo no caminho, excesso de coisas que os caras
falam. A construção da irregular, não quer saber de nada. Primeira coisa que o
cara faz, chega aqui compra a casa e não sabe quem é o vizinho dele. Chega
aqui se vê no benefício. Não tenho condições, deixa ver... De ter um ar
condicionado. Ele não quer saber como tá a rede, bota o ar condicionado e
fecha a porta dele ali e deixa a porra lá ligada, pode explodir. Quando acaba a
luz é o primeiro a ligar pra nós pra saber da luz. Isso não é legal cara. Nós
perdemos, perdemo não, temos a liderança que toma conta da rede aí. E a
primeira coisa que o cara pergunta pra nós é: “que horas que a luz vai
chegar?”. Não tá preocupada com a vida na comunidade, tá preocupado com o
bem estar dele. Porque ele não podia ficar sem o ar condicionado. Quando eu
morava não tinha ar condicionado, não tinha água, não tinha essa facilidade.
Chega aqui ele quer...
(pausa)
N. Então essa parte de água, de saneamento, de luz, foram os próprios
moradores que foi reivindicando aos poucos...
M. Foi uma luta pra conseguir. Todo dia tinha encontro, você tinha que sair do
seu serviço. “ó! Tem uma reunião em tal lugar”, então bora lá. O grupo se
189
dividia e cada um ia para um lado. As coisas acontecia, e nós tínhamos o
fantasma da remoção conosco aqui. E esse fantasma, nós ganhamos. Ainda se
mantém até hoje, não sei. Agora, dizer pra você, que melhorou, aparentemente
sim.
N. E o tráfico? Você pegou então, quando tava começando?
M. Eu peguei o tráfico, quando no tempo do tráfico, ainda havia respeito.
Traficante tinha respeito. Nós conhecíamos os traficantes, traficante também
conhecia a família, não passava na tua frente demonstrando a arma que eles
tinha na sua frente, eles procuravam não vender a droga para os menores,
entendeu? Ele não deixava, sabia quem era quem, não deixava determinado
garoto se envolver no tráfico. Isso não. Ele sabia pela família: “família de fulano
não pode”. Você tava lá ele andava você embora. “Vai embora.”. Hoje é ao
contrario, hoje o cara busca o moleque dentro de casa pra botar na vida. E o
trafico tinha um ar de família. Era um negocio de família. Tinha a família que
tinha o lado errado, o lado negro e, com certeza, 50% da família... Ainda temos
descendentes disso aqui ainda. Pouco, mas temos. E a família que tá aqui, não
comanda mais nada aqui. O cara que começou a gerar renda, renda, renda, a
comunidade também tem renda, mas não pra nós. Era renda que não
permanecia aqui. Eles começaram a botar armamento pesado, você via quem
trazia, mas não tava fazendo mal a você, não tava te devendo nada. Você
procurava atirar em quem você achava que tinha que atirar. Isso foi um dos
motivos que fizemos o grupo.
N. Da Associação?
M. Não. O grupo que tínhamos da igreja. Nos tínhamos um grupo de apoio
mais por causa do tráfico.
N. Que grupo de apoio?
M. Nós tínhamos um grupo de apoio chamado GTI: Grupo de Apoio de
Trabalho da Igreja. Esse foi um dos motivos que esse grupo existiu. Pra
resgatar, pra não deixar o jovem ir pro tráfico. É um grupo paralelo, até hoje
você sabem quem é quem, você faz seu trabalho e ele faz o dele.
N. Não tem nenhum tipo de conflito a mais?
M. Não. Não. Conflito nós já passamos, mas hoje é mais brando.
N. Mas existe ainda?
190
M. Existe, mas, as rixas, mas isso dá pra você contornar. 54 anos eu sei quem
eu posso bater de frente e quem eu posso bater de frente, geralmente, é tudo
moleque mais novo que eu. O [inaudível] desde que entrou no tráfico eu sou
muito amigo dos pais dele. Logo, não tenho inimigo. Quer dizer, calculo que
não tenho inimigo, mas desde do tempo que tô aí, os pais são criado conosco,
nosso amigo. O B. já brigou na mão com vagabundo (risos). Sério. Ele já
brigou. Cara foi lá assaltar, ele foi lá e brigou. Quer dizer, manda ele fazer isso
hoje? Não podemos fazer isso.
N. Por que não pode? A polícia...
M. Olha só. A polícia não tá nem aí pra nós. Faz o trabalho deles, fazemos o
nosso. Tem coisas que temos que ir lá buscar, pedir ajuda deles, se eles
quiserem fazer eles fazem, se não quiserem não tem viatura.
N. Eles dão essa desculpa?
M. É. Você tem que bater três vezes na mesma pessoa pro cara poder te
atender. Eu acho que o policiamento tava aqui pra ajudar a comunidade, mas...
Não sei pra que uma comunidade tão pequena com um número imenso de
policial. Hoje vai ser um dia, porque hoje é sexta-feira, o pessoal começa a se
exaltar mais, o único divertimento que temos é um pagodinho lá embaixo. É
correto você ter que pedir permissão, é corretor você ter hora pra início, meio e
fim, mas não é correto o cara ficar toda hora na tua cola. Pior que eles sabem
onde tá o tráfico e não vai lá perturbar a garotada. Tem uma festa na tua casa
e disser que vai terminar com a tua festa, ele termina. Não sei porque tanto
policial para um morro que se diz pacificado e o tráfico anda normal. Só não
tem armas. Não consigo ver arma pesada.
N. Mas outro tipo de armamento você vê então?
M. [balançou a cabeça afirmativamente] É uma coisa que na minha concepção,
é uma coisa que já tem data pra terminar [a UPP]. Espero que não termine,
mas na minha opinião, já tem data pra terminar.
N. O que você acha que vai acontecer?
M. Olha só. Eu vi o GPAE. O GPAE chegou aqui com a força total. Armamento,
carro a vontade, tinha uma ambulância que ganhamos da Xuxa, tinha
motorista, tinha tudo. Com o passar do tempo, a coisa foi cedendo, cedendo,
foram se acostumando e voltamo tudo quase como era antes. Você via policia
passando por um caminho, bandido por outro e [bater de mãos]. Não sei o que
191
vai ser, mas meu questionamento é: até quando eles [a UPP] vão ficar nisso
aí? Porque tem a Copa do Mundo e tem as Olimpíadas, até aí eu sei que eu
tenho segurança. Mas depois.
N. Tem segurança? Isso que quero entender, existia algum tipo de segurança
antes da UPP?
M. Da UPP? Tinha o GPAE, isso aqui é antigo, só mudou a sigla. Só mudou a
sigla. Tinha o GPAE anteriormente, agora tem a UPP.
N. Mas é segurança? Entre parênteses...
M. (risos). Olha, você volta depois de 2016 você vai ver.
N. Porque pelo projeto da polícia, e aí eu tô falando da teoria deles, a UPP é
até 2018...
M. Início, meio e fim. Você já sabe quando vai terminar. Viu?
N. Processo de implantação deles vai até 2018.
M. Olha. Torna-se uma coisa difícil, cara...
N. Como assim?
M. Tá na tua porta, todo dia fazendo bagunça na tua porta aqui. Na nossa
porta. Você quer mais o que? Os caras vão ficar fazendo o que aí? Claro, eles
tão ganhando. Acabaram com a nossa estrada, estacionamento agora é
praticamente privativo para o pessoal da UPP. E o morador? Morador (risos)...
Se permanecer depois falam que é crime. Sei lá, acho que os caras vieram pra
cá, tá faltando um investimento maior. Alguma coisa para as crianças. Só tem
repressão e não tem aquela ajuda.
N. Tem repressão?
M. Tem repressão. Olha só, aqui tem um posto médico que não funciona...
N. Não funciona? Porque o que eu escuto das pessoas é que funciona bem.
M. Ah! Bom, pra mim acho que deveria ter uma ambulância aqui, teria que ter
alguém qualificado em caso de acidente grave, fazer a primeira remoção, o
primeiro contato com o doente. As coisas aqui não tá legal, tem que acertar
algumas coisas ainda. Teria que dar mais lazer para essas crianças. Tão de
férias. Qual lazer eles terão aqui? Podia ser feito melhor. Não é um projeto
social? Acho quem um projeto social, eles teriam que pegar o pessoal da
polícia militar, o AfroReggae, o Criança Esperança, não ficar sentado de braços
cruzados. Vir de encontro com a comunidade, não botar uns troço qualquer lá e
aguardar que meia dúzia de criança vá lá e “ó! Interessante”. Quando tá na
192
época da arrecadação, aí eles mandam chamar as criança, bota a camiseta e
eles tão lá aparecendo, depois somem. Não é legal. Pode tá aqui, pode
melhorar muito mais. Pode se aproveitar, que eu acho que pode. A criança que
tem o pai traficante, a probabilidade da criança não ser igual ao pai é de 40%.
N. Você tem filho?
M. Tenho.
N. Mora aqui?
M. Mora. Um é professor de capoeira, outro é jogador de pick soccer, outro é
cozinheiro, a outra é estudante, tá dormindo e ainda tem os meus netos.
N. Mora aqui também?
M. Moram. Um mora comigo o restante mora com os meus filhos. Estão bem,
podiam estar melhor , mas...
N. Qual o objetivo da Associação? Qual o trabalho de vocês?
M. Nosso trabalho em si?
N. É.
M. É o apoio né? Não deixa a peteca cair pra comunidade. Sem a Associação,
nada acontece direito. O cara vem aqui te pedir um comprovante de residência,
o cara vem aqui porque falta energia, o cara vem aqui com n reclamações, o
cara vem por briga de vizinho, por ajuda por alguém que tá doente e não tem
documentação, fornecimento, enfim, de tudo a Associação faz um pouco.
N. E vocês tem algum tipo de diálogo com a Prefeitura ou com a UPP?
M. Olha só. Se falecer dentro de casa, nós vamos até a UPP e dependendo do
plantão, os caras vão vir de imediato, mas quando eles não sabem mais ou
menos o que é que é, você, até, tentar mostrar o trabalho que eles tem que
fazer. Antes você ligava pra delegacia, o bombeiro vinha. Agora não, tem que ir
na casa do morador pra ver o corpo, aí fazer a ocorrência. Eles estão
aprendendo. Os antigos já sabiam, os mais antigo sabe melhor que os novatos
que estão aí. Estão aprendendo e aí... A Prefeitura, nós temos o que? Temos o
pouso, temos uma crechezinha aí, a iluminação pública, o postinho que falta
melhorar (risos). A creche são duas, tem a Tia Elza e a Fundação João XIII. É.
Tá bom assim.
N. Posso fazer só uma última pergunta?
M. Faça.
193
N. O que você acha que tem que melhorar, idealmente, assim, como que seria
o Cantagalo ideal?
M. Cantagalo ideal? Todo mundo com casa, menos aluguel, e que o governo
termine essas obras faraônicas que não terminaram.
N. O PAC?
M. É. O PAC é jogar dinheiro fora.
N. Tá aí uns bons anos já né?
M. Pô! Nós estamos, não é nem PAC, tá o governo Lula todo, agora tá na
Dilma e não fizeram nada. Nós tínhamos a Prefeitura, a Favela-Bairro, aqui
tava caminhando, aí lançaram o PAC, aí desenterraram um processo lá que
tava muito bem guardado pra fazer o PAC. Eu mesmo calculava que seria um
troço rápido e não foi uma coisa rápida.
N. Porque o projeto era pavimentar...
M. Olha só, o projeto original seria pavimentação e abertura da rua Manuel
Viário, ele iria até o elevador. Segundo paço ele ia até o cantão do morro que é
próximo a parte baixa que você vê o Brizolão de cima. Pô, os caras vieram, só
fizeram remoção, construíram um, dois, quatro blocos. Paga um aluguel social
pra galera e prometeram fazer uma coisa que não tão cumprindo. Tá
terminando o mandato da Dilma, já era pra tá pronto isso aí cara. Não está.
Caminho quebrado, casa destruída. Fizeram isso pra ganhar dinheiro, só isso,
não tem beneficio nenhum. Nunca vi um prédio sem cisterna, nunca vi uma
coisa dessas, você construir um prédio e não colocar cisterna. É difícil. (risos).
Os caras vem pra cá, não sabe de nada, bota o rei na barriga e diz que eles
estão certo e você errado, e aí? O cara fez com tanto sacrifício e você destruiu
rápido. Isso não existe. Isso é triste. Você sai daqui e sobe pra você ver o que
eu tô te falando. Pode bater uma foto ali, a estrada. É triste.
(pausa e risos)
Ô meu Deus!
N. Obrigada. Se quiser dizer mais alguma coisa?
M. Não filha! (risos) Se não eu apanho.
[Fim da entrevista]
194
Entrevista com o Deputado Estadual (PSOL-RJ) Marcelo Freixo.
Rio de Janeiro, 7 de junho de 2013 – Assembléia Legislativa do Rio de
Janeiro.
Natalia Iorio: Eu costumo dizer que o que acontece aqui no Rio nunca é
passado da mesma forma para quem está de fora, para quem não é daqui.
Costumo até dizer que o Rio é para turista ver. Então, queria saber qual a
política de segurança pública hoje, no Rio de Janeiro?
Marcelo Freixo: O problema é que muita gente do Rio acredita no que é
passado pra fora (risos), mas enfim, a política de segurança no Rio tem a ver
com um projeto de cidade que se constrói hoje no Rio de Janeiro. O Rio é um
laboratório de um projeto de cidade e que é pensado no mundo, né? Não à toa
o Rio tem o grande calendário mundial, não só esportivo; o Rio hoje é pensado
como uma cidade-negócio, uma cidade-investimento e esse modelo de cidade
de empreendimento tem no Rio o seu maior símbolo no mundo inteiro. É… Isso
traz uma quantidade de transformação para cidade, pro dia-a-dia dos seus
moradores muito forte e, é muito da cidade mesmo, tanto é que o governo do
Estado, mesmo sendo governo dos 92 municípios, o Estado do Rio tem 92
municípios, muitas vezes parece o governo de uma cidade. Te dou um
exemplo concreto das UPPs: todas as UPPs estão na cidade do Rio de
Janeiro, não tem nenhuma UPP em outra cidade de que não a cidade do Rio e,
a UPP é do Governo do Estado e, existem diversas cidades que têm índices de
violência muito maior que a cidade do Rio de Janeiro, como por exemplo, as
cidades da Baixada Fluminense e da região metropolitana. Por que não tem
nenhuma outra UPP na cidade, somente na cidade do Rio de Janeiro? Caxias?
195
Belfort Roxo… Se você pegar as taxas de criminalidade da Baixada
Fluminense são muito mais elevadas do que a da cidade do Rio de Janeiro,
né? Principalmente da zona sul do Rio de Janeiro, aí então nem se compara.
Os índices de criminalidade da zona sul são baixíssimas. O IDH da Gávea, do
Jardim Botânico, Ipanema, Leblon, Copacabana é um IDH superior a muito
país europeu, né? Pega o número de policiais por habitantes que tem na
cidade do Rio de Janeiro ou nos bairros da zona sul e o que tem no resto. É…
Então, tem um projeto de cidade e, esse projeto de cidade, envolve uma série
de coisas. Envolve uma política de remoções que nunca foi tão forte no Rio,
supera a conhecida e antiga Prefeitura de Pereira Passos no início do século;
você tem uma política de grandes investimentos imobiliários e uma alta de
preços muito grande, o Rio de Janeiro, hoje, é uma das cidades mais caras do
mundo, você tem um projeto de gestão privada sobre a gestão pública, então
vou te dar… porque que eu tô te falando isso tudo? Porque isso tem a ver com
segurança no final das contas, né? Então se você pegar o modelo dos portos
do Rio de Janeiro, você vai ver que quem tem a gestão do transporte do Rio é
toda a iniciativa privada e, mais que isso, as empreiteiras. As empreiteiras
numa cidade-negócio, numa cidade de empreendimento como o Rio, as
empreiteiras não são mais empresas a serem contratadas pra obras, elas
assumem a gestão da cidade. Então, por exemplo, elas não ganharam só o
Maracanã de presente, né? O trem, a SuperVia quem administra é a
Odebrecht, a barca Rio-Niterói quem administra é a CCR Camargo Corrêa, a
ponte quem administra é a Camargo Corrêa, o metro quem administra é a OAS
que é uma outra empreiteira, então as empreiteiras, elas tem a gestão do
transporte da cidade, elas não são contratadas. Então, os interesses privados
196
se sobrepõem aos interesses públicos numa cidade-empreendimento. Como a
segurança entra nesse projeto de cidade? A segurança precisa viabilizar essa
cidade. Então o projeto de segurança pública não é um projeto de
enfrentamento à criminalidade, é um projeto de viabilidade de um projeto de
cidade-empreendimento, de uma cidade-negócio. Então, você tem um mapa da
cidade das áreas que precisam ser controladas militarmente, então, todas as
favelas… porque o Rio de Janeiro tem uma particularidade. O Rio é diferente
da sua São Paulo. São Paulo tem favela e periferia quase como sinônimos, as
favelas paulistas são periféricas. O Rio não. O Rio você tem as favelas no
coração de todos os bairros, no coração da cidade. Que, aliás, no meu
entendimento que traz ao Rio de Janeiro um dos aspectos urbanos mais
interessantes exatamente a sua capacidade de mistura, né? O Rio tem na
mistura a sua grande riqueza urbana e, isso tá de alguma maneira, ameaçado
hoje. No meu entendimento. Porque há um projeto de cidade que enfrenta essa
mistura, que torna uma cidade mais segregada, mais concentrada, não só da
riqueza, mas da oportunidade. Então, o modelo de segurança vem da conta
desse projeto de cidade. Por exemplo, você tem as Unidades de Polícia
Pacificadora, as UPPs, todas as favelas da zona sul do Rio de Janeiro, a última
foi a Cerro Corá em Laranjeiras, todas as favelas, 100% das favelas do Rio de
Janeiro, da zona sul, tem UPP. Do Vidigal ao Chapéu-Mangueira, passando
por toda a orla, passando pelo Santa Marta, por todos os bairros da zona sul,
todos os bairros onde se concentra riqueza pelo Rio, estão ocupadas
militarmente. As favelas estão ocupadas militarmente, né? Tirando a zona sul,
você tem o entorno do Maracanã, por razões óbvias, você tem a zona portuária
que é o lugar de investimento do capital privado no Porto Maravilha. O Porto
197
Maravilha que é um consórcio de empreiteiras, as mesmas, né? São eles que
administram o centro da cidade, o Porto, toda a região do Porto, que é uma
região maior que Copacabana. Não é o porto, porto para navios, então a região
do Porto é uma região maior que Copacabana. O chamado projeto Porto
Maravilha que é a modernização do porto é acompanhado de remoções, é
acompanhado de UPP e de elitização do centro da cidade que é a contramão
de que uma série de outras cidades estão pensando, que é a possibilidade de
você garantir moradias populares junto à proximidade do centro por razões
óbvias de viabilidade de emprego, né? Então, você tem uma UPP na zona
portuária, você tem as UPPs na grande Tijuca em torno do Maracanã, você tem
as UPPs em toda a zona sul, na região hoteleira, e você tem UPP na região do
Sambódromo, né? Então a cidade-espetáculo é a cidade-investimento.
Turística mesmo, né?
F. Turística e de investimento, de negócios, né? Então ela é pensada, há um
projeto de cidade, que é elitista, que é concentrador e que é violenta. Violenta
contra essa população que tá fora e que não serve pra uma cidade-negócio, e
aí as remoções explicam o que vem acontecendo, né? Não são poucas. Você
tem as barreiras acústicas do aeroporto. Pega a Linha Vermelha e pega a
Linha Amarela, você tem as chamadas barreiras acústicas, você já viu isso?
Aquelas placas que tem na Linha Vermelha?
N. Vi. Vi.
F. Aquilo é chamado barreiras acústicas que, na verdade, é pra esconder a
favela. Não há nenhum outro objetivo acústico ali, né? Ali é um objetivo
estético, então… Então, você tem ali, um projeto de cidade que as UPPs
198
respondem a isso. Projeto de segurança, que é a tua pergunta original, acabei
falando um monte de coisa, esse projeto de segurança, é um projeto de cidade.
Se lugares muito mais violentos se tornaram mais violentos com a política da
UPP porque houve um deslocamento do crime. Então, como o município de
São Gonçalo, que era um município já com uma taxa de criminalidade alta,
aumentou muito porque houve um deslocamento do crime das regiões de UPP
para São Gonçalo, para Niterói, para região dos Lagos e, principalmente, pra
Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis, Belfort Roxo, os municípios da Baixada
Fluminense…
N. Ou seja, as UPPs se concentram na zona sul …
F. Há um corredor de segurança. Não só na zona sul, em torno do Maracanã,
na zona portuária, né? Há um… Onde tem o capital privado tem interesse, você
tem uma garantia de segurança militarizada das áreas pobres. A UPP não é
feita para esse… É claro que o morador da favela, você vai constatar isso lá no
Cantagalo, é claro que o morador da favela ele compara com o tráfico. Antes
era um tráfico armado, tinha tiroteio, tinha guerra entre as facções e guerra
com a polícia. Não tem mais isso. Melhorou? Claro. Claro que sim, né? Não
tem mais isso, não tem mais o tráfico armado, não tem mais o tiroteio. Com o
tempo, a UPP deixa de ter como referência esse tráfico armado e ela passa a
ter que responder por ela mesma, então quando você não pode mais ter as
festas, quando você não tem a chegada da saúde, quando não tem a chegada
da educação, quando você não tem o saneamento … Só tem a presença da
polícia, você tem uma série de contradições criadas ali. Isso já começa a
199
aparecer. Os conflitos nas áreas de UPP já começam a aparecer. Não são
poucos.
N. Então, eu acredito que o ideal de polícia comunitária não exista também…
Ou exista minimamente…
F. Eu defendo o policiamento comunitário ou a polícia de aproximação, sempre
defendi, tem vídeos meus de cinco, dez anos que eu tô defendendo isso.
Agora, o problema é que esse projeto das UPPs não é uma simples política de
aproximação. É um projeto de cidade e é um projeto de produção de silêncio,
de produção de obediência coletiva nas áreas estratégicas. É muito
interessante ver o mapa de segurança e ver o mapa de saneamento. Existe um
projeto de cidade que é a Barra-Zona portuária. A cidade, os investimentos
caminham pra Barra da Tijuca e aí tem toda uma lógica de transportes, a Linha
4 do metro, por exemplo, que se intensificou, que vai pra Barra, então, você
tem uma lógica de Barra da Tijuca, os investimentos … Campo de golfe,
especulação imobiliária vai pra Barra da Tijuca; há um projeto de cidade pra
Barra da Tijuca e de zona portuária e há um processo. A Barra da Tijuca é a
zona oeste rica e há um projeto de remoção da população pobre pra zona
oeste pobre, né? Que é Bangu, Realengo, enfim…
N. E é onde que tá a milícia…
F. É. E aí é um outro capítulo porque a UPP não é um instrumento de
enfrentamento das milícias e as milícias vem crescendo. Única favela de
(milícia)… Que tem UPP é o Batan por um efeito simbólico, foi lá que os
jornalistas foram torturados. Coisa que o filme (Tropa de Elite 2) retrata,
200
inclusive, eles não foram mortos na vida real, eles foram torturados. A favela do
Batan tem e é um simbólico, né? Todas as outras, a UPP não é um instrumento
de enfrentamento da milícia e, é essa que vem crescendo no Rio de Janeiro.
Em números né? Não em poder político, eles perderam isso, mas, em número,
em quantidade, sim.
N. Agora, é… o que não é visível pra mim é, por exemplo, Cidade de Deus, o
próprio Alemão…
F. Cidade de Deus era a única favela que tinha tráfico em toda aquela região…
N. E então, agora tem uma UPP lá…
F. Claro! Claro que tem. Porque é o único lugar… Porque o entorno da Cidade
de Deus, Gardênia Azul, alí é tudo milícia. Pra esse projeto de segurança, de
cidade, a milícia não é um incômodo, tanto quanto o tráfico. O tráfico é. A maior
resistência que eu enfrentei para investigar a milícia era a ideia de que a milícia
era um mau menor. Esse era o discurso muito forte. Tá no relatório da CPI das
milícias. Os discursos das autoridades da época era: a milícia é um mau
menor. “Freixo, você vai investigar a milícia? Cuidado! Você vai acabar
ajudando o tráfico.” Isso foi o que eu mais ouvi. Ouvi de comandante de
batalhões, de secretários de segurança, de delegados, de autoridades da área
policial. E eu falei: “mas são dois modelos de crime. Os dois têm que ser
enfrentados.”. E a milícia é crime organizado, que tá dentro do Estado, tem
projeto de poder. Ao contrário do tráfico. O tráfico tem que ser enfrentado
porque ele é brutal e violento. O crime organizado aqui é a milícia, que cria
crime dentro do Estado, não é fora. Milícia elegeu deputado, aqui. Era
deputado junto comigo. Elegeu vereadores, vários, né? Tem projeto de poder.
201
Então, não é uma coisa simples. Aí, eu, a gente conseguiu fazer a CPI, mas
esse projeto de segurança, eles não dizem mais isso, eles não dizem que
milícia é um mau menor mais, não dizem … é que depois da CPI, tudo que a
CPI conseguiu fazer … Ninguém assume esse discurso mais; mas, na prática,
a milícia é tratada, ainda, como mau menor. Não à toa a milícia vem crescendo
e deixou de ser notícia. Na época que eu investiguei, foi 2008, tinham 170
áreas dominadas por milícia, hoje são mais de 300. Aumentou o número das
milícias. Eles não elegem mais ninguém, eles perderam visibilidade, mas o
número de áreas dominadas por eles é enorme e, isso não é visto como uma
ameaça ao projeto de cidade olímpica, de cidade-negócio, porque a milícia não
faz estardalhaço, porque a milícia trabalha com a lógica da ordem, o discurso
da milícia é da ordem porque é institucionalizado, porque são membros do
Estado. É máfia, mas eles trabalham com a lógica da ordem, é diferente do
tráfico. Então, o projeto de UPP prioriza o enfrentamento do tráfico pela lógica
da ordem. Não tô dizendo que eles ganham em grana da milícia, ou sejam
milicianos, não é isso; mas tratam a milícia como mau menor, ainda. E aí o que
que acontece? Aí você entende a Cidade de Deus. Por que (que) em toda
aquela área de Jacarepaguá, só tem UPP na Cidade de Deus? Por quê?
Porque ela é a única área com tráfico. Todo o restante é milícia, né? É claro
que a visão pra fora, de quem tá fora do Rio é difícil enxergar isso, é difícil
entender essa dinâmica, entendeu? Olha a milícia, lembra do filme e fala
“foram presos e acabou!”, e o governo faz esse discurso. Se você conversar
com o (Sérgio) Cabral, ele vai me elogiar, né? Vai fazer isso sorrindo e vai dizer
o seguinte: “não! Nós enfrentamos as milícias, nós prendemos os milicianos.”.
É verdade. Prenderam depois que a gente investigou e denunciou, mas
202
prenderam. Tem centenas de milicianos presos, mas não tirou deles o domínio
territorial e o poder econômico e, que são propostas da CPI que eles nunca
cumpriram né? Mas o discurso é “enfrentamos a milícia, a milícia é crime e tal”,
você vai olhar a prática …
N. Continua lá.
F. Continua lá.
N. E muito maior.
F. Entendeu?
Agora, e a propaganda da UPP: “tomamos de volta o território, devolvemos a
paz. Agora fulana de tal namora o sicrano de tal… Olha que lindo! Eles saem
de ônibus, né ... E se encontram, tão namorando … É quase um Romeu e
Julieta dos tempos ...entendeu?
N. É muito a ideia do combate de que “estamos em guerra e…
F. Não… isso valeu pro Rio de Janeiro e vale. É… durante muitos anos. Eu
trabalho com esse tema há quase 20 anos. A lógica da guerra é a lógica do
inimigo. Toda guerra produz o inimigo e toda guerra o inimigo tem que ser
destruído. Isso prevaleceu… O Morro do Alemão, o Complexo do Alemão em
2007, eles entraram no Morro do Alemão, mataram 19 pessoas, saíram e a
lógica era a da guerra, né? Foi muita porrada, tomaram muita porrada e aí,
depois, veio o discurso da UPP um ano depois. Veio o discurso da UPP.
Porque, né, mudou. Mas, hoje, o que prevalece ainda em 90% dos territórios
do Rio de Janeiro é a lógica da guerra. Essas cenas recentes do helicóptero da
polícia civil, que eu denunciei. Você deve ter visto. Saiu no Fantástico, no
Jornal Nacional, mostra que essa lógica da guerra, da eliminação do inimigo,
203
né … Da favela como o território da guerra, ainda prevalece, hoje. O que são
os helicópteros da polícia civil fuzilando as casas, executando as pessoas,
mudando os corpos de local… É a lógica da guerra. No mesmo Rio de Janeiro
pacificado. É porque tem o lugar da cidade-negócio e o lugar do tradicional Rio
de Janeiro da guerra que vale pra 90%. As UPPS hoje não chegam a 10% das
favelas. Das favelas! Não tô nem falando do território. Nem 10% das favelas
estão cobertas com UPP.
N. Então, no fim, o lugar, não tem nenhum território pacificado? Não existe
essa ideia?
F. O termo pacificação tem que ser pensado, né? O termo pacificação ele é um
termo militar. Só pra você ter uma ideia, na época da ditadura militar, a
principal medalha do mérito entregue pela ditadura era a medalha do
pacificador. O termo pacificação, ele é um termo militar. Sempre foi. O
Caveirão que é um carro da polícia utilizado no Rio de Janeiro, muito temido
nas favelas que é um carro blindado, que dá tiro pra todo lado, que tem um
alto-falante que fala coisas absurdas. É… O Caveirão, a polícia chamava de
pacificador. Então, o termo pacificação, pacificador, ele é um termo militar. Na
história do Brasil ele é um termo militar. A Unidade de Polícia Pacificadora é
isso, é o controle militar do terreno que era do inimigo, né? Isso significa mais,
que na cidadania não há mediação civil. Não há mediação civil. O policial da
UPP, ele na prática é um xerife norte-americano. Sabe aquele cargo do xerife?
Porque o xerife ele é uma mistura de delegado, prefeito e polícia. Não é isso?
O xerife é um pouco dessa mistura. O cara da UPP é o xerife, porque ele
resolve o lixo, ele resolve a coleta de lixo, ele resolve os problemas pessoais,
204
ele resolve os conflitos, ele decide se tem festa, se não tem festa. Tá muito
além de uma ação policial.
N. E pra mim, eu posso tá vendo de uma forma errada, mas pra mim se
assemelha muito ao traficante, ao dono da favela de antigamente…
F. É… A diferença é que ele é do Estado. E ele não resolve as coisas matando
ninguém, né? Tem diferenças substanciais nesse sentido, mas ele é o gerente
daquele lugar, é o xerife e, não existe esse cargo constitucionalmente. Então é
um problema, porque ... E isso com o tempo tende a gerar desgaste. Claro! Já
tá acontecendo. Nós temos várias imagens aí de conflito nas áreas de UPP
entre a população e a polícia, porque não tem mediação e, porque não tem a
chegada… O Mariano Beltrame diz isso. O Beltrame fala isso. O que eu tô
dizendo aqui, nesse sentido, é muito parecido com o que o Beltrame fala. Ele
falou “outros setores do Estado tem que chegar.”. Por que ele diz isso? Porque
ele sabe que a polícia lá sozinha não se sustenta por muito tempo, mas a
impressão que se tem é que o governo quer que isso valha até 2016, depois
vâmo ver o que vai acontecer.
N. E você acha que a polícia vai continuar lá? Uma projeção...
F. Ninguém sabe. Ninguém sabe. Eu acho que é muito ruim se sair. Acho que a
polícia sair e voltar o tráfico é uma tragédia pro Rio de Janeiro. Agora, se a
polícia ficar não pode ficar só a polícia, né? Você tem que construir uma cultura
de autonomia dos moradores, os moradores não tem autonomia. Aliás, o
Vidigal, por exemplo, os moradores tradicionais do Vidigal tão indo embora
porque tá caro morar. Você imagina, quem não quer morar… A vista do Vidigal
205
é a mais bonita do Rio de Janeiro. A vista do Chapéu-Mangueira é uma das
mais bonitas do Rio de Janeiro. Quem não gostaria de morar numa casa que
você abre de manhã, abre a janela tem o mar de Copacabana, de Ipanema, do
Leblon na sua frente. Você tem uma laje, que você tem… Quem não gostaria?
Você desceu a favela tá no Leblon, né? Então, você tem um processo de
remoção branca, pelo encarecimento da vida nessas favelas, com a chegada
das UPPs. Tem a remoção „remoção‟ e tem a remoção branca pelo
encarecimento das favelas. Isso também tá acontecendo. E não há política
pública pra fazer com que aqueles moradores que construíram a histórias
daquele lugar, possam ter sua vida viabilizada ali; porque não há uma política
de emprego, porque não há uma política de assistência social. Nada disso
chegou na UPP, com cinco anos de UPP. Deu tempo já né?
N. Já.
F. Pois é …
N. A meu ver, (a UPP) era pra ser uma política de segurança intermediária…
F. Claro.
N. Tá lá, mas vamos fazendo o resto…
F. Claro. Porque não adianta você dizer: “você é contra ou a favor da UPP”.
Não é essa a pergunta, entendeu? Essa é uma armadilha. Não é isso. Não é
contra ou a favor da UPP. Sou favorável a uma política de proximidade, uma
política de polícia comunitária que seja pra proteger e garantir direitos daquele
morador da favela e não para controlá-los. Essa é a questão. Qual o objetivo?
Essa é a questão.
206
N. E os próprios policiais não estão sendo treinados…
F. Olha, você não faz polícia igual pipoca, né? Não dá. Não tem. O efetivo da
polícia quando essa política de UPP começou era de 40 mil policiais. Você tem
mais de mil favelas, entendeu? Então, assim, não se faz mágica. Você não vai
ter no Rio de Janeiro, todas as favelas com UPP; isso é… Não dá! Isso não é
real. O Cabral mente descaradamente quando ele fala isso. Porque não dá por
uma razão matemática, são mais de mil favelas na cidade do Rio. Como é que
você vai ter uma UPP pra cada…? Entendeu? Isso não é real. Isso não existe.
Então, assim, não pode ser essa a solução. Você tem que ter outras coisas e
tem que ter estratégia, planejamento. O planejamento da área de segurança
hoje é a viabilidade de uma cidade negócio. Não é a garantia de direitos, não é
uma cidade mais igual. Quais dos valores que norteiam essas políticas? Aí que
tem a disputa. Aí é que tem a divergência.
N. E qual poderia ser… Uma solução?
F. Não. Eu acho é que você pode ter ocupação, eu acho que você tem que ter
um planejamento de ocupação que seja um planejamento de redução do papel
do tráfico e isso tem que ser acompanhado de um melhor controle do tráfico de
armas e munições, que é uma segunda CPI que eu fiz, porque, na verdade,
não há controle do que… Enfim, tem tráfico de armas e munições, não tem só
tráfico de drogas, né? A grande questão não é nem a droga. A grande questão
é que as pessoas não morrem de overdose, as pessoas morrem de tiro. Então,
tem uma série de políticas que tem que acompanhar. Você tem que ter um
planejamento. Você não pode dizer que a zona sul tá toda protegida, o Rio de
Janeiro tá ótimo. Tem a baixada Fluminense tendo problemas seriíssimos,
207
então tem que ter um planejamento para você ter o Rio de Janeiro como um
todo, primeiro lugar. Você tem que ter, na polícia, três fatores decisivos, que
qualquer polícia do mundo avançou com isso: tem que ter uma formação
adequada, que você não tem hoje; tem que ter formação adequada com
valorização, com pagamento decente; policial no Rio de Janeiro hoje ganha um
absurdo, os piores salários do Brasil; tem que ter o controle sobre essa polícia,
né? Você não tem. Hoje, todos os sistemas de corregedoria, de ouvidoria são
muito falhos. A punição é exclusiva aos praças, os oficiais nunca são punidos.
Não chega. E a proximidade. Essas são as três coisas: a proximidade, a polícia
se aproximar mais do direito do cidadão; o controle sobre essa polícia e a sua
formação e valorização. Esse tripé é fundamental pra uma outra polícia e para
uma outra política de segurança. Isso não tá garantido no Rio de Janeiro. Isso
não tem.
N. Isso é meio geral do Brasil, né?
F. Sim. Não existe uma outra política de segurança no Rio de Janeiro, existe
ocupação militar de áreas que antes não eram ocupadas, mas não há uma
nova política de segurança porque não tem uma nova polícia.
N. E essa política é uma continuidade do que já foi feito…
F. Nós já tínhamos essa experiência aqui do GPAE e de outras experiências
aqui que…
N. Anos 70…
F. Até antes. O GPAE foi mais recente, foi bem mais recente.
208
[Fim da entrevista]
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