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Argumentação Jurídica
• Teoria• Técnicas• Estratégias
2ª edição — Revista e atualizada
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e-mail:[email protected]
ISBN: 85-362-1179-2
Av. Munhoz da Rocha. 143 — Juvevê
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CEP: 80.035-000 — Curitiba — Paraná — Brasil
Voese, Ingo.
V875 Argumentação jurídica. 2. ed./ Ingo Voese./ Curitiba:
Juruá, 2006.
118p.
1. Argumentação jurídica. I. Título.
CDD 340.1 CDU 340
CCONTRAONTRA C CAPAAPA
O Direito caracteriza-se essencialmente por sua atividade
argumentativa, o que implica dizer que a prática jurídica opera
com recursos lingüísticos e discursivos para produzir
determinados efeitos de sentido. E efeitos de sentido orientam
atos e decisões, ou seja, os efeitos de sentido são também
efeitos de poder.
É, portanto, a linguagem o objeto e a ferramenta de trabalho do
profissional do Direito: quando ele interpreta, opera com
referências lingüísticas e quando justifica os sentidos
produzidos, coloca em cena recursos da língua e do discurso.
Estranhamente, porém, os estudos nos cursos de Direito não
contemplam a linguagem, nem quanto à sua especificidade,
nem quanto às suas funções como mediação das relações
sociais.
Argumentação Jurídica vem preencher essa lacuna e, assim,
enriquecer os recursos disponíveis à formação qualificada dos
operadores do Direito.
OORELHASRELHAS DODO L LIVROIVRO
Ingo Voese é Professor de Lingüística e de Análise do Discurso
há mais de 30 anos. Realizou seu Doutorado na PUCRS e o pós-
Doutorado na Unicamp/SP, centrando seus estudos e pesquisas
na temática que aborda a relação de linguagem, indivíduo e
sociedade. De sua atividade, resultaram vários livros e artigos,
dentre os quais destacam-se, na área do Direito: Mediação dos
Conflitos como Negociação de Sentidos e Argumentação
Jurídica. Atualmente exerce suas atividades em cursos de pós-
graduação da Unisul/SC.
Ingo VoeseDoutor em Lingüística; Professor de Argumentação Jurídica no curso de Mestrado em Direito e de Análise do Discurso no Curso de Mestrado de Ciências da Linguagem da Unisul/SC.
Argumentação Jurídica
• Teoria• Técnicas• Estratégias
2ª edição — Revista e atualizada
Curitiba
Juruá Editora2006
Para
Márcia Beatriz, Marcelo
Augusto e Marco Antônio: amores
inesperados (re)motivadores,
imprescindíveis da minha vida.
PREFÁCIO À 2a EDIÇÃO
Argumentação Jurídica é um texto que foi escrito com o
propósito de preencher uma lacuna no ensino do Direito,
especificamente o que se refere ao domínio dos recursos de
linguagem. A acolhida generosa que teve o livro sinaliza que a
avaliação inicial estava correta e motiva uma nova edição.
Parece-me, porém, que o texto comporta uma rápida re-
flexão sobre o que se poderia chamar de efeitos de
argumentação, de modo que o ensino não deveria omitir e
aprofundar a análise ético-moral da prática jurídica, sob pena de
o Direito transformar-se num mero — mas contundente —
instrumento ideológico.
Por isso, na presente edição, refaço e amplio as conside-
rações finais, detendo-me um pouco mais na avaliação da argu-
mentação jurídica também como ato de responsabilidade.
O autor
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................13
2 LINGUAGEM E DETERMINAÇÕES SOCIAIS.................................19
2.1 A INVENÇÃO DO ANZOL.......................................................192.1.1 A heterogeneidade
social..............................................212.1.2 A heterogeneidade
cultural..........................................212.1.3 A heterogeneidade
referencial......................................222.1.4 A heterogeneidade
lingüística......................................222.1.5 A heterogeneidade
individual.......................................252.1.6 O controle da
heterogeneidade.....................................26
3 A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA..................................29
3.1 A ESPECIFICIDADE DA LÓGICA JURÍDICA.........................353.2 A INDUÇÃO NA ESTRUTURAÇÃO DO SILOGISMO................403.3 A DEDUÇÃO NA EXECUÇÃO DO SILOGISMO......................49
4 TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS.....................................................51
4.1 O ARGUMENTO DA COERÊNCIA.........................................534.2 O ARGUMENTO DA RECIPROCIDADE.................................544.3 O ARGUMENTO DA TRANSITIVIDADE.................................554.4 O ARGUMENTO DA COMPARAÇÃO.....................................564.5 O ARGUMENTO DA INCLUSÃO DA PARTE NO TODO..........564.6 O ARGUMENTO DA DIVISÃO DO TODO EM PARTES...........574.7 O ARGUMENTO AD IGNORANTIUM......................................584.8 OS ARGUMENTOS A PARI EA CONTRARIO...........................584.9 O ARGUMENTO DA ANALOGIA............................................594.10 O ARGUMENTO DA FIXAÇÃO DE UM GRAU........................604.11 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO DE MEIOS E FINS................614.12 O ARGUMENTO DA PROBABILIDADE..................................624.13 O ARGUMENTO DO VÍNCULO CAUSAL................................634.14 O ARGUMENTO PRAGMÁTICO.............................................644.15 O ARGUMENTO DO DESPERDÍCIO......................................654.16 O ARGUMENTO DA DIREÇÃO..............................................654.17 O ARGUMENTO QUE RELACIONA ATO E PESSOA..............654.18 O ARGUMENTO DA AUTORIDADE.......................................664.19 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO ENTRE ATO E ESSÊNCIA.....68
4.20 O ARGUMENTO DO EXEMPLO............................................684.21 O ARGUMENTO DA ILUSTRAÇÃO........................................69
5 ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS.............................................71
5.1 ESTRATÉGIAS (DES)CONTEXTUALIZADORAS.....................785.1.1 A adaptação do enunciante ao
auditório...................795.1.2 A preparação do
auditório........................................835.2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS..............................................86
5.2.1 A construção de dissociações e a mistificação..............89
5.2.2 A mistificação..............................................................905.2.3 A
implicitação..............................................................915.2.4 A
impessoalização:.......................................................945.2.5 A vaguezização (ou a
ambigüização).............................945.2.6 A
generalização............................................................955.2.7 A
higienização..............................................................965.2.8 A inclusão do ponto de vista do
argumentador.............965.2.9 A (des)focalização de
argumentos.................................985.2.10 A (des)valorização de
argumentos.................................995.2.11 A armação duma
lógica................................................995.2.12 A indicação de um extremo da
escala.........................1005.2.13 A soma de
argumentos..............................................101
6 A ARGUMENTAÇÃO E O ATO RESPONSÁVEL...........................103
REFERÊNCIAS.................................................................................111
ÍNDICE ALFABÉTICO.......................................................................113
Nota da digitalizadora: A numeração de páginas aqui refere-se a edição original, que encontra-se inserida entre colchetes no texto.
Entende-se que o texto que está antes da numeração entre colchetes é o que pertence aquela página e o texto que está após a numeração pertence a página seguinte.
1
INTRODUÇÃO
Poucos são os cursos de Direito, no Brasil, que abrem, na
sua grade curricular, um espaço para o estudo da argumentação
jurídica, o que pode estar a indicar que ela ainda não está
merecendo a devida atenção precisamente porque ainda não se
abordou a sua especificidade e, em especial, a relação da
prática jurídica com a linguagem.
Mesmo em outros universos culturais como, por exemplo,
na Europa, só recentemente se iniciou um movimento que
formula questões que Atienza (1997) organiza da seguinte
forma:
Puesto que la práctica del Derecho consiste de manera muy
fundamental en argumentar, no tendría por que’ resultar
extravio que los juristas con alguna conciencia profesional
sintieran alguna curiosidad por cuestiones — (...) como las
siguientes: Qué significa argumentar juridicamente? Hasta qué
punto se diferencia la argumentación jurídica de la
argumentación ética o de la argumentación política, o, incluso,
de la argumentación en la vida ordinaria o en la ciencia? (...)
Cuál es el criterio de corrección de los argumentos jurídicos?
Suministra el Derecho una única respuesta corrrecta para cada
caso? (ATIENZA, 1997, p. 9) [pg. 13]
E ele avança na reflexão quando diz que “Nadie duda que
la práctica del Derecho consiste, de manera muy fundamental,
en argumentar y todos solemos convenir en que la cualidad que
mejor define lo que se entiende por un ‘buen jurista’ tal vez sea
la capacidad para idear y manejar con habilidad argumentos”.
(Op. cit., p. 19).
Atienza reduz o sentido da expressão “bom jurista” aos
limites da dimensão técnica de argumentação e esquece de
enfatizar que o uso de recursos lingüísticos e discursivos não
pode ser desconsiderado quanto ao que eles têm de específico e
determinante, ou seja, é preciso destacar que a argumentação
jurídica só constrói uma característica própria porque pode se
valer de determinadas características da linguagem.
Entende-se, pois, que a abordagem da argumentação
jurídica pressupõe especificidades e complexidades próprias da
prática, dado que elas se originam do fato de que se adotam
modelos lógicos para atuarem sobre sentidos e valores
heterogêneos e conflitivos, e que não pertencem ao universo do
formalismo lógico, mas têm profundo comprometimento com a
construção do que muito vagamente se entende por justiça
social.
O presente trabalho, ao se incluir nos estudos mais
recentes sobre a argumentação jurídica, tem a pretensão de
oferecer alguns subsídios para o estudo, partindo do
entendimento de que há uma especificidade que se pode
abordar, descrevendo a relação da prática com a linguagem em
termos de como ela pode valer-se de determinadas caracte-
rísticas lingüísticas e discursivas para, através de técnicas e
estratégias, não só produzir argumentos como também
minimizar ou maximizá-los na interação.
Para essa tarefa, torna-se então necessário, em primeiro
lugar, pontuar algumas concepções teóricas de linguagem: elas
são importantes para que se possa melhor compreender tanto
os processos de interpretação, quer seja da lei, quer seja dos
fatos jurídicos — e, por isso, pontos de apoio, — como os
processos e os modos de argumentação, abordados a partir da
concepção de que a argumentação vale-se, ao mesmo tempo,
de técnicas que produzem argumentos e de estratégias que
buscam viabilizar os melhores efeitos de adesão na interação.
O pontuamento teórico deverá, enfim, permitir que se
façam avanços na compreensão do que é específico da lógica
jurídica, ou seja, compreender por que é aceitável considerar
que
Um argumento não é correto e coercivo ou incorreto e sem
valor, mas relevante ou irrelevante, forte ou fraco, consoante
razões que lhe justificam o emprego no caso. E por isso que o
estudo dos argumentos, que nem o direito nem as ciências
humanas nem a filosofia podem dispensar, não se prende a
uma teoria da demonstração rigorosa, concebida a exemplo de
um cálculo mecanizável, mas a uma teoria da argumentação.
(PERELMAN, 1996b, p. 471) [pg. 14]
É preciso, outrossim, incluir, no dimensionamento da
complexidade da argumentação jurídica, a questão da verdade,
para entender que ela
...se preocupa não propriamente com a verdade, mas com
verossimilhança. Não exclui a verdade de suas preocupações,
mas ressalta como fundamental a versão da verdade. Ou seja,
uma decisão não pode negar a verdade factual, aquilo que é
reconhecido e aceito como um evento real (...), mas da verdade
factual nem sempre segue a verossimilhança (...). (BULGARELLI,
1998, p. 71)
Se, pois, a argumentação jurídica não se nivela a uma
demonstração formal, é porque o que se diz dos fatos é
resultado de interpretações que, pressionadas pela natureza da
linguagem, serão diferenciadas, o que, inclusive, explica por que
o Direito constitui o contraditório como uma presunção fundante
e como garantia da promoção da justiça. Em outros termos, os
argumentos jurídicos não são fruto de um cálculo lógico-formal,
mas de interpretações e de avaliações que incluem, além dos
interesses específicos das partes, também as circunstâncias
históricas, sociais e culturais do fato. Examinar o nível de
desacordo ou de desrespeito à lei requer, por isso, que, na
prática jurídica, as teses e as decisões sejam, porque não se
trabalha com elementos exatos, não só explicadas mas também
justificadas, tanto que
O dispositivo da sentença, a parte que contém a decisão do juiz,
é precedido pelo enunciado dos considerandos, ou seja, das
razões que motivaram essa decisão. O raciocínio judiciário se
apresenta, assim, como o próprio padrão do raciocínio prático,
que visa a justificar uma decisão, uma escolha, uma pretensão,
a mostrar que elas não são arbitrárias ou injustas. (PERELMAN,
1996b, p. 481)
O Direito funda e caracteriza, pois, a sua prática admitindo
o contraditório, ou seja, a heterogeneidade de sentidos que
precisam, todavia, para não deixar de observar a coerência, a
coesão e a congruência necessárias à argumentação, ser
trabalhados sob orientação de modelos de raciocínio das
ciências naturais e matemáticas.
E quando a sociedade não aceita a idéia da arbitrariedade
ou da injustiça, arma-se, para a prática jurídica, o complexo
desafio da promoção da justiça: é preciso, aqui, falar da
heterogeneidade social e de [pg. 15] sentidos que configuram o
problema que diz respeito à dificuldade de se poder fazer justiça
de modo que atenda às expectativas de todos os segmentos
sociais. Ou seja,
Para que a regra de justiça constitua o fundamento de uma
demonstração rigorosa, os objetos aos quais ela se aplica
deveriam ser idênticos, ou seja, completamente
intercambiáveis. Mas, na verdade, isso nunca acontece. Os
objetos sempre diferem em algum aspecto, e o grande
problema, o que suscita a maioria das controvérsias, é decidir
se as diferenças constatadas são ou não irrelevantes ou, em
outros termos, se os objetos não diferem pelas características
que se consideram essenciais, isto é, os únicos a serem levados
em conta na administração da justiça. (PERELMAN, 1996a, p.
248)
Essas são, pois, as dificuldades para o Direito: as pessoas
produzem, orientadas por diferentes sistemas de referência,
diferentes versões dos fatos jurídicos, ou seja, as interpretações
— que antecedem e sustentam a argumentação — são
diferenciadas porque a pressão das características da linguagem
— produto das determinações sociais — leva a isso.
A compreensão exata dessa complexidade inerente à
prática jurídica aponta, então, para os motivos e explica por que
qualquer decisão jurídica precisa ser justificada, embora
O poder concedido ao juiz de interpretar e, eventualmente, de
completar a lei, de qualificar os fatos, de apreciar, em geral
livremente, o valor das presunções e das provas que tendem a
estabelecê-los, o mais das vezes basta para permitir-lhe
motivar, de forma juridicamente satisfatória, as decisões que
seu senso de eqüidade lhe recomenda como sendo, social e
moralmente, as mais desejáveis. (PERELMAN, 1996b, p. 489)
A decisão jurídica, pois, embora se apóie em elementos
produzidos e apresentados no embate argumentativo depende
do “senso de eqüidade” do juiz, o que significa, segundo Atienza
(1997) “...estar de acordo com os fatos estabelecidos e com as
normas vigentes.” (p. 133).
A primeira vista, essa orientação para a justificação
obrigatória parece não conter nenhum problema. Analisando,
porém, a questão e observando-a à luz de uma teoria da
linguagem que sustenta a idéia da [pg. 16] heterogeneidade
dos sentidos, as dificuldades para explicar a especificidade da
argumentação jurídica tomam-se mais nítidas, especialmente,
se se considerar que o que o Direito examina não são os fatos
mas as versões deles. Isso fragiliza a possibilidade de um acordo
sobre serem ou não, como quer Atienza, fatos estabelecidos: as
interpretações são forçosamente diferenciadas, produzindo
versões diferentes e conflitantes. É justamente essa fragilidade
e multiplicidade dos sentidos que instituem a argumentação
como processo inerente à prática jurídica e à produção da
justiça.
Além disso, as normas jurídicas, cuja função é orientar a
produção das versões, são verbalizações e, por isso também
suportam a idéia de diferentes interpretações possíveis. Só isso
já desenha a complexidade da função de justificação da
argumentação jurídica, embora ainda existam outras questões
que, por exemplo, se referem a saber quem detém esse poder
de constituir as normas e que tipo de sistema de interpretação e
avaliação, pertencente a que segmento social, determinará se a
justificação é ou não, aceitável.
Retornando a Atienza (1997), entende ele que uma teoria
da argumentação jurídica deve dar conta dos raciocínios que
resultam da interpretação e da aplicação da lei aos fatos
interpretados, o que reconduz o estudo da especificidade da
prática a questões de linguagem.
E, diante das concepções de linguagem, que apontam para
as questões formuladas, especialmente para o que diz respeito
à heterogeneidade das interpretações e a saber quem a partir
de que determinará o que é ou não correto, Atienza (1997)
constrói a idéia de que a argumentação jurídica deveria ser
entendida como uma mediação ou uma negociação de sentidos,
ou seja, propõe ele que se considere a argumentação jurídica
um ato interativo igual ao que se dá na comunicação ou na
informação, o que, com certeza, é correto e produtivo, mas não
suficiente para abordar questões inerentes à prática e que o
conceito de interação não tem condições de explicar.
Além disso, a idéia de abordar a argumentação jurídica
como interação em que se negociam sentidos, precisa prever —
porque a heterogeneidade de sentidos dentro do atual sistema
social constitui uma das vertentes dos conflitos — como etapa
que antecede as argumentações, um processo de desconstrução
daquilo que hierarquiza lugares sociais e diferenças de sentido,
ou seja, a mediação só pode funcionar quando se criarem
condições de convivência (e não de exclusão) das diferenças1.
1 Chega-se, aqui, à questão a que também se deveria dedicar uma atenção especial: o estudo da argumentação jurídica requer uma base teórica que não aborde a linguagem apenas como instrumento de comunicação, mas também, como condição do exercício de um poder, precisamente, pelos efeitos que produzem as decisões e as sentenças do sistema judiciário. Não é suficiente sustentar que um bom argumento é aquele que resiste à crítica (ou contra-argumentação), mas faz-se necessário também incluir as questões que perguntam pelos lugares sociais de onde emanam as orientações normativas que dizem sobre o valor e a validade dos argumentos o que, evidentemente, se refere ao conflito social enquanto disputa de espaços e de poderes para controlar os sentidos: os diferentes sentidos dos fatos (ou versões) são também as manifestações de diferentes
formas de interpretar o mundo. E isso tem a ver com o exercício do poder. [pg. 17]
Melhor será considerar, como o faz Sampaio Ferraz Jr.
(1997), a argumentação jurídica um tipo peculiar de interação
discursiva, o que, mais uma vez, leva a linguagem a ser tomada
como objeto importante de observação.
Em vista disso, fica como orientação, para o presente
trabalho, considerar que nem a lógica formal ou a matemática,
nem o conceito de interação comunicativa, podem,
isoladamente, dar conta do que é a argumentação jurídica. Da
mesma forma, não é qualquer teoria da linguagem que poderá
se prestar a explicar as questões que se referem à especifici-
dade da prática: ela deve inscrever no estudo da materialidade
lingüística as determinações de ordem social que atuam com e
sobre a linguagem.
O presente trabalho deverá, por isso, ocupar-se em
descrever uma lógica própria do Direito, quando analisará as
técnicas de produção e as formas de estruturação dos
argumentos, e com a argumentação jurídica enquanto
interação, quando serão abordadas as estratégias interativas
que produzem efeitos argumentativos.
Para finalizar: o fato de os conceitos que relacionam
linguagem e sociedade — e que podem ser considerados
necessários à reflexão — serem abordados de modo pontual,
não deverá ser empecilho para entender como e por que se
produz a heterogeneidade de sentidos (e se acolhe o
contraditório) e como encontrar meios de controlar essa
heterogeneidade.
Essas duas tarefas, diante da especificidade da prática
jurídica, constituem, portanto, uma atividade imprescindível à
abordagem da lógica e interação jurídicas, ou seja, das técnicas
e das estratégias argumentativas que, embora sejam recursos
úteis em qualquer tipo de argumentação, têm importância
especial na prática jurídica, mormente quando as provas e os
indícios forem frágeis ou não existirem.
E é, por tudo isso (Cf. ATIENZA, 1997), que a
argumentação jurídica pode também ser invocada como objeto
interessante e pertinente ao estudo da teoria da argumentação
em geral, o que se inclui, pois, como parte da justificativa para a
realização do presente trabalho. [pg. 18]
2
LINGUAGEM E DETERMINAÇÕESSOCIAIS
Pode parecer estranho perguntar por que é possível
argumentar, mas a questão conduz a que se especifiquem as
características da linguagem e o tipo de relações que se
estabelecem entre ela e a realidade, como tarefa fundamental
para poder formular de forma razoavelmente segura as
concepções referentes às determinações e as condições que se
põem como possibilidade e orientação da argumentação.
Dito isso, a formulação, de forma pontual, de algumas
concepções teóricas deverá — embora não haja a preocupação
com a exaustividade — construir as condições mínimas para a
reflexão sobre as questões formuladas2.
2 Em outro texto meu — Mediação dos Conflitos como Negociação de
Sentidos — desenvolvo com mais cuidado as minhas concepções teóricas sobre a linguagem.
2.1 A INVENÇÃO DO ANZOL
Para preparar o terreno da formalização de algumas
concepções teóricas sobre a linguagem, um hipotético caso de
invenção de um objeto poderá ser útil e facilitar o
acompanhamento da exposição.
Imagine-se que em determinado momento histórico
alguém crie um novo instrumento de pesca: o anzol — um
objeto de metal, que tem a [pg. 19] forma de um gancho e
tem, em uma de suas extremidades, um espaço onde se pode
prender um cordão.
O importante a considerar, em primeiro lugar, são as
condições para que se possa produzir esse novo instrumento.
Obviamente, deve existir uma certa tecnologia referente à
produção e ao beneficiamento dos metais. Além disso, a
comunidade em que vive o criador do instrumento deve ter
escolhido, como uma de suas atividades de sobrevivência, a
pesca, e, por isso, também sobre essa atividade deve haver um
conhecimento acumulado.
Ora, a essas condições mínimas, ou seja, a um certo saber
necessário à criação do novo objeto de pesca pode-se dar o
nome de cultura que, por ser ponto de partida, torna-se marco
de referência ou sistema de referência.
Em segundo lugar, é preciso considerar que o objeto
produzido vai ser avaliado pela comunidade em razão do que
significa para as suas necessidades: o objeto passa a ter um
significado e é nomeado anzol.
A nomeação permite que se possa falar do produto do
trabalho humano sem que haja a necessidade de sua presença.
Ora, o objeto, nesse processo de socialização, quando tem seu
sentido estabelecido de acordo com os interesses e as
necessidades do grupo, escapa dos controles do indivíduo que o
criou: o sentido é, pois, então, um acordo social.
Admita-se que, no exemplo dado, o objeto anzol signifique
instrumento de pesca, o que, se o grupo social centralizar a sua
atividade principal na pesca, representa também instrumento de
sobrevivência ou melhoria dos instrumentos que possibilitam a
sobrevivência do grupo.
Em grupos sociais, porém, que não dependem da pesca, o
anzol pode, além de manter um sentido genérico de instrumento
de pesca, significar instrumento de lazer (para pescadores
esportistas), instrumento que oferece um certo risco (para as
crianças), instrumento de tortura (para defensores da natureza)
etc. o que quer dizer que, a cada diferença cultural, ou seja, de
sistema de referência, variam, em maior ou menor escala, os
sentidos do objeto denominado anzol.
O interessante, porém, é que, apesar das diferenças de
sentido, os diferentes segmentos sociais usam a mesma palavra
(anzol) e podem manter entre si interações verbais
precisamente porque há uma parte do sentido (instrumento de
pesca) que é comum a todos, isto é, o sentido genérico
possibilita, apesar das diferenças, uma interação que, embora
frágil, permite uma certa aproximação dos interlocutores. [pg.
20]
Do exemplo, podem ser retiradas as seguintes concepções
que relacionam linguagem e sociedade:
2.1.1 A heterogeneidade social
A noção de sociedade parece sugerir uma realidade
monolítica, não-fragmentada. Observando, porém, que, partindo
das noções de economia, raça, religião, gênero, geração etc., é
possível visualizar linhas de cisão do tecido social, a concepção
de sociedade deve acolher a idéia de heterogeneidade. Ou seja,
a realidade social é fragmentada e multifacetada.
Considerando, ainda, que entre os múltiplos segmentos
sociais existem disputas pela ocupação de determinados
espaços, é preciso assumir que o conflito origina-se do fato de
haver valorizações diferenciadas destes espaços sociais. Em
outros termos, os espaços que ocupam os diferentes segmentos
sociais são valorizados diferentemente, de acordo com o poder
que aí se pode exercitar.
E é esse poder que os indivíduos de determinados
segmentos sociais exercem, que produz efeitos que podem,
dependendo das circunstâncias históricas e políticas, conduzir à
radicalização dos conflitos e à violência social.
2.1.2 A heterogeneidade cultural
A concepção de heterogeneidade social conduz a que se
assuma que o trabalho que se realiza nos diferentes segmentos
sociais tem, em maior ou menor grau, diferenças quanto a suas
características, suas funções e seu sentido. São as diferenças de
desejos individuais e de interesses de grupos que levam a que
haja uma produção diferenciada, ou seja, a cada segmento
social e a cada indivíduo correspondem diferenciadas atividades
e diferentes produtos.
Adotando a noção de que o produto do trabalho humano
constitui o que se entende por cultura, constata-se que a
heterogeneidade social conduz à heterogeneidade cultural.
Se, como foi afirmado anteriormente, os espaços sociais
que ocupam os diversos segmentos sociais são valorizados
diferenciadamente em termos de poder, também o produto
cultural recebe valorizações diferenciadas, sendo considerado,
dependendo de quem o tenha produzido, melhor ou pior, de
nível elevado ou inferior, correto ou incorreto etc. [pg. 21]
2.1.3 A heterogeneidade referencial
A cultura pode, pois, ser entendida como o produto do
trabalho humano socializado através da linguagem, ou seja,
conforme Thompson (1990), ela é um conjunto de formas
simbólicas que se estruturam em contextos históricos e sociais
específicos. Essas formas simbólicas organizam e estruturam-se
como um sistema. Considerando que a atividade dos homens
sempre tem como ponto de partida o que outros já realizaram,
pode-se afirmar que esse conjunto de formas simbólicas que se
chama de cultura, é um marco de referência. Ou seja, a cultura
passa a ser, enquanto sistema simbólico, o que orienta as
atividades, os procedimentos e as condutas dos homens. A
cultura, enfim, é um sistema de referência que qualquer
atividade humana toma em consideração porque isso diz
respeito à orientação que se dá aos desejos e interesses
específicos de indivíduos e de grupos.
Se, agora, se retomar a reflexão proposta de início, chega-
se à conclusão de que à heterogeneidade social corresponde
uma heterogeneidade cultural e referencial, e isso remete à
idéia de heterogeneidade lingüística, pois, se é o sistema de
referência que orienta todo o trabalho que realizam os
indivíduos (movidos por desejos e interesses), ele também
impõe-se como condutor da interpretação, ou seja, o sistema de
referência também fixa os limites e as condições da
interpretação da realidade, dos fatos, da linguagem etc., isto é,
da produção de sentidos. Não há interpretação que não parta
de concepções e de valores que pertencem a determinado
conjunto de formas simbólicas de um determinado segmento
social, o que quer dizer que as diferenças entre os múltiplos
grupos da sociedade geram diferentes formas de interpretar e
diferentes sentidos, ou seja, aí produzem-se também diferentes
concepções da realidade e da sociedade. E, uma vez produto
socializado ou cultura, essas concepções passam também a
integrar o sistema de referência, num processo histórico sem
fim: o sistema de referência é, pois, aberto e transformável
historicamente.
2.1.4 A heterogeneidade lingüística
Ao estabelecer as relações entre cultura, sistema de
referência e linguagem, constata-se que o produto do trabalho
humano só passa a integrar a cultura de um determinado grupo
social quando assume uma função, um sentido (ou significado)
que se alinhe com os desejos dos indivíduos e com os interesses
dos grupos, de modo que possa contribuir para a [pg. 22]
ampliação das possibilidades de atendimento de necessidades e
da consolidação de poderes.
Compreende-se, pois, por que a palavra que nomeia um
determinado objeto, para que possa circular em diferentes
segmentos sociais — com diferentes sistemas de referência —
precisa despir o seu sentido das singularidades produzidas por
essas diferenças: o sentido tem, pois, um componente genérico
que todos os usuários de uma palavra adotam obrigatoriamente
para poderem se comunicar.
Como, porém, os diferentes sistemas de referência
produzem diferenças de interpretação, o sentido da palavra
comporta um segundo componente: a singularidade que remete
à noção de heterogeneidade social e dificulta a interação e o
convívio.
E, isso, à medida que circula o sentido genérico, impõe um
processo homogeneizador a todos os falantes e, ao mesmo
tempo, alimenta a heterogeneidade. Por isso, diz-se que ela
reflete e refrata a realidade social.
Isso posto, é possível retornar ao que se disse sobre as
valorações diferenciadas dos espaços sociais e dos diferentes
produtos que ali se elaboram: também a linguagem — porque é
produto da atividade dos homens que dela se utilizam —
apresenta maiores ou menores diferenças de sentido e de
valorações.
Pode-se, pois, afirmar que há algumas linguagens mais e
outras menos valorizadas — sempre em dependência do poder
que se exerce nos diferentes segmentos sociais.3
3 Entende-se, aqui, que as diferentes linguagens que os segmentos sociais utilizam têm diferenciados prestígios em termos de serem consideradas cultas ou não, certas ou erradas etc., o que lhes confere forças diferenciadas para fazer circular os sentidos (também o de sociedade) que interessam ao segmento social hegemônico: impõe-se, via prestigiamento de determinada linguagem, um conjunto de sentidos, ou seja, um de-terminado sistema de referência como o único correto, culto etc., ao mesmo tempo que se impõem formas de interpretar a realidade social. Isso é o que se entende por exercer um poder ao constituir uma hierarquia de linguagens.
Da mesma forma como acontece com o exemplo de anzol,
essa diversidade de sentidos (ou excedentes de sentido) pode
ser observada com os conceitos abstratos produzidos pelos
homens. Assim, por exemplo, o conceito de justiça, embora
mantenha um vago sentido genérico — comum a todos os
segmentos sociais que usam a palavra — apresenta inúmeras
diferenças que (PERELMAN, 1996b) podem corresponder a:
a) a cada qual a mesma coisa; [pg. 23]
b) a cada qual segundo seus méritos;
c) a cada qual segundo suas obras;
d) a cada qual segundo suas necessidades;
e) a cada qual segundo sua posição social;
f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.
Essas diferenças que, evidentemente, podem se
multiplicar pelo número de segmentos sociais que se valem da
palavra, conduzem a que, no Direito, se mantenha uma
permanente discussão — mesmo porque os conceitos se
modificam de acordo com as mudanças históricas da sociedade
— sobre o conceito de justiça e, conseqüentemente, da relação
de direitos e deveres humanos.
Considere-se, pois, que, pelo fato de não existir um
conceito único de justiça, os procedimentos de acusação e de
defesa deverão, a cada caso em julgamento, construir condições
para que se possa chegar, apesar de todas as dificuldades, à
produção de um sentido para a palavra que se aproxime de uma
concepção que possa ser aceita como apropriada por todas as
partes envolvidas no caso.
Assim, mesmo no julgamento dos delitos mais hediondos,
deverá existir um espaço para a palavra que se oponha à da
acusação, de modo, por exemplo, a que não se diminua a
gravidade do ato, mas, se possa entender e avaliar as condições
em que foi cometido, além de refletir sobre os motivos por que o
autor do ato não se apropriou das orientações sobre o proibido,
o obrigatório e o permitido na sociedade.
Para sustentar essa posição, é preciso recordar que o
sistema de referência do indivíduo — que orienta a sua conduta,
vale dizer, a sua competência para decidir — é constituído do
exterior para o interior. Isso possibilita, pois, no julgamento de
qualquer ato, perguntar por aquilo que é de responsabilidade
restrita do indivíduo e o que cabe à sociedade assumir.
Aqui, é preciso levar à consideração a questão de se saber
se não são as contradições que se verificam nas condutas
sociais — e de que o sistema de referência se apropria — que,
muitas vezes, subjazem ao delito pelo fato de poderem ter
levado à confusão o que orienta a tomada de decisões do
indivíduo. Parece, pois, necessário considerar, em qualquer tipo
de delito, que, se, de um lado, o instituído social impõe limites
aos desejos e impulsos dos indivíduos, num movimento [pg.
24] contrário, ele os estimula e exacerba, o que não deveria ser
desprezado no Direito, até mesmo para questionar os rumos e
as expectativas da sociedade.
2.1.5 A heterogeneidade individual
O indivíduo, quando constrói o seu sistema de referência,
entra em contato com a heterogeneidade social, o que significa
que ele também se apropria das diferenças de sentido geradas
pelos múltiplos marcos de referência.
A apropriação corresponde, pois, a escolhas que
representam, quase sempre, alinhar-se com o certo ou o justo
de um determinado segmento social, o que pode significar o
errado e o injusto para outro. Na verdade, é possível observar
que as opções de escolha são tão heterogêneas que, apesar das
pressões sociais que as limitam e controlam, elas exigem a
iniciativa e a participação do indivíduo — o que, por isso, o
compromete em termos de responsabilidades sociais.
A adoção da concepção de que o sistema de referência do
homem se constrói do exterior para o interior poderia parecer
que se estaria tentando minimizar a importância do livre-arbítrio
ou a participação das pessoas na construção dos parâmetros
éticos e morais. Isso, porém, não é o caso. Pelo contrário:
observe-se que as apropriações incluem a heterogeneidade
social, pois, ao mesmo tempo que, na sociedade em que
vivemos, se busca preservar o instituído que diz respeito aos
valores considerados positivos, também se cultiva exatamente o
que se lhes antepõe: não se fala de uma moral na conduta
sexual e, ao mesmo tempo, se estimula, especialmente através
da mídia, a promiscuidade? Não se combate a violência e, ao
mesmo tempo, se sugere (especialmente em determinado
gênero de filme) que a solução dos conflitos se deve fazer pelo
uso da arma? Não conduz o sistema social atual a um número
cada vez maior de excluídos do processo de produção e de
consumo, ao mesmo tempo que a indústria da propaganda
bombardeia os indivíduos com estímulos insistentes para
consumir? Não se insiste em cultivar a honestidade e a
solidariedade quando parte das elites políticas e sociais se
comporta como se esses valores inexistissem? Reforça-se, aí, o
papel fundamental da escolha individual.
Por outro lado, porém, o processo de configuração do
sistema de referência dos indivíduos — na sociedade atual —
sofre um outro tipo de problema e que diz respeito à lei e à sua
aplicação efetiva: se o texto legal diz, por exemplo, que todos
são iguais perante a lei, que todos têm direito a uma vida digna
que implica educação, saúde, alimentação, moradia etc., [pg.
25] o indivíduo que não tem acesso a esses bens sociais e,
observando que outros têm isso facilitado, com certeza, criará
objeções sérias a qualquer tipo de restrição à sua conduta
inconformada e agressora.
Por isso, um sistema de referência que acolhe, ao mesmo
tempo, a orientação de que é preciso respeitar a lei e o exemplo
de inobservância dado exatamente pelos segmentos
responsáveis pela elaboração da lei orientará de uma forma
confusa o indivíduo, o que, muitas vezes, pode atingir todos os
graus de atos anti-sociais.
Assim, o que interessa especificar quanto à
heterogeneidade dos sistemas de referência que orientam a
conduta dos homens na sociedade, mormente no que diz
respeito às contradições facilmente perceptíveis quanto às
normas de conduta, torna-se importante, em especial, na dis-
cussão sobre as atividades que se realizam na argumentação
jurídica.
2.1.6 O controle da heterogeneidade
Tendo em vista que a heterogeneidade de sistemas de
referência produz uma multiplicidade de sentidos ou excedente
de singularidades que estão na origem de grande parte dos
conflitos sociais, compreende-se que a disputa também
perpassa a linguagem. Não ocorre, porém, a disputa apenas
através da linguagem, mas também pela posse daquela lin-
guagem que está ligada ao exercício do poder. E não só pela
linguagem se luta — luta-se também pelos mecanismos e
procedimentos institucionais que controlam e determinam o
acesso à linguagem do segmento social hegemônico e às
possibilidades de usá-la. Ou seja, através da linguagem, os
indivíduos e os grupos procuram fixar sentidos gerados por seus
sistemas de referência e fazer com que se imponham como
orientadores de condutas e procedimentos. Conseguir a adesão
do(s) outro(s) significa aumentar o alcance dos efeitos de uma
representação da realidade e consolidar o exercício de um
poder.
Por isso, pode-se afirmar que argumentar — um processo
lingüístico que tem por objetivo conseguir a adesão de outrem
— também diz respeito à disputa de espaços e de lugares, vale
dizer, de poderes para determinar os sentidos convenientes,
corretos ou não, melhores ou piores etc.
E se a heterogeneidade social conduz a que circulem na
sociedade múltiplos sentidos singulares — vale dizer, linguagens
— ela também explica por que é preciso, em primeiro lugar,
atuar sobre a diversidade com o objetivo de possibilitar o
exercício lógico: não se pode armar uma [pg. 26] relação lógica
do tipo se... então ou ora.... logo quando os conceitos com os
quais se construirá a relação não tiverem a singularidade bem
circunscrita, ou seja, a argumentação só poderá se tornar uma
atividade bem sucedida se as diferenças de sentido não criarem
uma vaguidade e uma imprecisão insuportáveis ao exercício
lógico.
Desse modo, quando se fala em formas de controlar a
heterogeneidade, faz-se referência a dois tipos diferentes —
mas interdependentes — de procedimentos:
1. Aquele que visa a, através do domínio especialmente
das instituições, controlar o acesso e a circulação da linguagem
que o segmento social hegemônico usa. Controla-se, aqui, quem
pode falar, de que, em que circunstâncias e com qual
linguagem: são controles externos que, ao instituir um ethos do
discurso, dão-lhe forma e sentidos caracterizantes.
2. Aquele que visa a, através de processos lingüísticos,
determinar os limites significativos das palavras: são os
controles internos.
Os recursos mais freqüentes para fixar o sentido duma
palavra ou expressão, embora haja outros, são a paráfrase e a
definição.
A paráfrase é uma construção que busca, substituindo uma
frase por outra(s), tornar mais nítidos os contornos dos sentidos,
o que se pode observar no seguinte exemplo: “Diz o ministro da
educação que É preciso acabar com a cultura da repetência. E
isso significa que é preciso... significa que é preciso... significa
que é preciso... etc.”. Outras expressões que, além dos dois
pontos, introduzem a paráfrase são isto é, ou seja, em outros
termos etc. O que se pode observar, na parafrasagem, é que o
enunciante procura fixar os limites que considera interessantes
para os objetivos de sua argumentação: as paráfrases redizem a
expressão cujo sentido se quer controlar e, assim, marcam
limites e revelam os contornos dum sistema de referência.
A definição, por sua vez, não tem o privilégio da amplidão
de espaço e tempo da paráfrase: ela busca, com outras
palavras, uma delimitação rápida do sentido da palavra e,
freqüentemente, inicia por expressões como entendo por essa
palavra o seguinte ou quero usar a expressão com o seguinte
sentido etc.
Enfim, os controles dos limites do sentido têm o objetivo
de, uma vez, possibilitar o exercício lógico inerente à
argumentação e, por outro lado, evitar que a imprecisão e a
vaguidade representem a abertura para a crítica e a
contrapalavra. [pg. 27]
3
A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO
JURÍDICA
Argumentar é uma atividade através da qual, valendo-se
de recursos lógico-formais e de linguagem, alguém tenta
convencer outrem de que um determinado sentido ou tese é a
melhor alternativa para a solução de um problema ou uma
dificuldade. A base da argumentação, nas disciplinas lógicas e
matemáticas, são os axiomas, entendidos como verdades
irrefutáveis, indiscutíveis ou que não necessitam de provas. A
argumentação jurídica, porém, não trabalha com verdades
irrefutáveis de vez que difere da lógica formal, onde, conforme
Perelman,
O lógico é livre para elaborar como lhe aprouver a linguagem
artificial do sistema que constrói, para determinar os signos e
as combinações de signos que poderão ser utilizados. Cabem a
ele decidir quais são os axiomas, ou seja, as expressões sem
provas consideradas válidas em seu sistema, e dizer quais são
as regras de transformação por ele introduzidas e que
permitem deduzir, das expressões válidas, outras expressões
igualmente válidas no sistema. A única obrigação que se impõe
ao construtor de sistemas axiomáticos formalizados e que torna
as demonstrações coercitivas é a de escolher signos e regras
que evitem dúvidas e ambigüidades. (1996a, p. 5)
No Direito, esse modelo de atividade não pode ser
adotado, tendo em vista, especialmente, dificuldades que são,
essencialmente, lingüísticas, ou seja: [pg. 29]
1. A escolha de uma base ou ponto de referência (no
Direito, em geral, é a lei) que se aproxime do que representam
os axiomas para as ciências exatas, embora represente uma
certa liberdade para o argumentador, ainda o submete ao que
determina a heterogeneidade social, uma vez que ela não só
fixa os horizontes das escolhas possíveis mas também, ao
mesmo tempo, abre o leque das possibilidades de interpretação
que a fragilizam quanto a uma irrefutabilidade;
2. Uma versão sempre é construída a partir de interesses
específicos e, embora pareça poder garantir os elementos de
apoio e sucesso da sustentação de uma tese, pode, porque é
também linguagem, receber críticas: não são os fatos que serão
apresentados, mas as versões construídas a partir de sistemas
de referência — que, por serem diferentes, podem opor-se
reciprocamente e fragilizar aquilo que deveria criar a consistên-
cia. E, mesmo que se fale de evidências, há, muitas vezes,
possibilidades de fragilizá-las: basta recorrer à noção de
heterogeneidade referencial. Ou seja, os sistemas de
interpretação gerados pela heterogeneidade social apresentam
tal variedade de possibilidades que praticamente qualquer
versão pode, se não for destruída, ao menos ser minimizada
quanto aos efeitos para a sustentação da tese.
Ora, se a argumentação jurídica visa à sustentação de uma
tese (e que se apóia em determinada versão), ela é, de fato, um
processo posterior à produção dos sentidos, ou seja, a
argumentação sucede à interpretação (entendida como
atividade produtora de sentidos). Por isso, pode-se dizer,
também, que a argumentação depende da interpretação porque
o sistema de referência que é acionado nesta também orienta
aquela, fornecendo, no Direito, inclusive, elementos para a
produção das provas.
Pelo fato, pois, de a linguagem ser instrumento de
produção e de delimitação de sentidos, compreende-se a sua
importância na prática jurídica onde a interpretação realiza-se
tanto em relação aos atos e objetos (incluídos os textos)
produzidos pelo homem como aos fatos. Processa-se partindo,
sempre, de um marco inicial — uma referência — que orienta e
fixa os limites dos sentidos que serão produzidos. A produção do
sentido, quer seja de um texto, quer seja de um fato, nunca
deixa, contudo, de incluir, no processo, a noção de que os
objetos e os fatos são produzidos e ocorrem sempre em
determinado contexto sociocultural e histórico.
Assim, as circunstâncias que cercam fatos e objetos
precisam também ser interpretadas, precisamente, porque elas
são determinações a que se submete a produção de sentidos.
Explique-se: o indivíduo que produz um texto ou um outro objeto
qualquer, no exato momento da [pg. 30] socialização do
produto de seu trabalho, precisa tomar em consideração os ele-
mentos do contexto em que se dá a sua atividade que, por isso,
torna-se objeto e orientação da interpretação que realizam os
receptores do produto. Isso quer dizer que, além do texto, do
objeto ou do fato, as circunstâncias de ordem histórica, social,
cultural, geográfica etc. devem ser consideradas como
importantes para a produção do sentido, isto é, da in-
terpretação.
Em outros termos, quando o indivíduo interpreta um texto
ou um fato (produz uma versão possível), precisa também
orientar-se por elementos do contexto. Pode, porém, acolher —
e isso influirá no sentido — em maior ou menor escala esses
elementos, ou seja, pode ampliar ou reduzir os limites do
contexto que levará em consideração, precisamente porque a
sua atividade é orientada por um sistema de referência que
também abriga interesses específicos do grupo em que ele está
inserido.
3. O fato de, no Direito, estarem previstas tanto a
atividade da acusação como a da defesa, revela que a prática
respeita a diversidade referencial e, por isso, se diz que ela não
trabalha com verdades, mas com teses. Assim, a argumentação
jurídica, ao admitir que qualquer ato pode e deve ser
interpretado diferenciadamente de modo que as versões tanto
podem levar a que o seu autor seja condenado como, a ser
inocentado, diz que se assume que os conceitos de justiça não
são nem unívocos, nem imutáveis, mas construídos na prática
interativa.
A presunção do contraditório — pode-se afirmar, pois —
submete as interpretações, na prática jurídica, a um tipo de
determinação que impede que se possa propor uma lógica das
verdades: se o ritual jurídico prevê que qualquer delito ou
conflito precisa ser abordado de dois ângulos opostos para que
se possa retirar desse embate os elementos para, se não
produzir a justiça no sentido pleno, pelo menos impedir ou
minimizar a injustiça, as interpretações são orientadas não
apenas por sistemas de referência, mas fundamentalmente por
interesses antagônicos. Por isso, as versões das partes não se
preocupam tanto com a verdade, mas, sim, em garantir que
uma determinada tese, na qual sempre se encontram embutidos
interesses e valores, prepondere sobre a outra.
Embora haja, no Direito, um conjunto de normas cuja
função é orientar as interpretações, ainda assim o polêmico e o
contraditório se manifestam precisamente porque a pressão da
heterogeneidade é mais forte do que o controle.
Isso explica, em primeiro plano, pois, por que a
argumentação jurídica não é do mesmo nível da que se pratica
nas ciências matemáticas [pg. 31] e naturais — ditas lógicas e
formais — : no Direito, embora se tomem por modelo
procedimentos da lógica, o fato de não se trabalhar com
verdades reveláveis e demonstráveis, mas com teses que
podem ou não ser sustentadas, o processo de argumentação
também pode ser chamado de quase-lógico. Assim, nas ciências
matemáticas e naturais buscam-se verdades; no Direito,
verossimilhanças.
O quadro abaixo pode visualizar melhor o que se disse:
Enfim, uma característica que identifica a argumentação
jurídica é a presunção de que a cada tese é possível construir
uma antítese, o que vai determinar que as escolhas dos
recursos argumentativos visem a superar ou a minimizar as
fragilidades dos sentidos da linguagem e a reforçar os
procedimentos de sustentação da tese. Em outras palavras, isso
quer dizer:
1. que o sentido da palavra justiça é construído a cada
interação jurídica, o que não quer dizer que a palavra não tenha
nenhum sentido;
2. que é preciso construir um conceito genérico de justiça,
que, embora seja bastante vago e indefinido nos seus
contornos, possa servir de acordo ou ponto de início das
argumentações tanto da acusação como da defesa;
3. que há tantos conceitos singulares de justiça quantos
forem os sistemas de referência em circulação na sociedade;
4. que a imposição de um determinado conceito de justiça
como o único e o melhor é um ato ideológico que intenta
submeter segmentos sociais que se valem de conceitos
diferentes. [pg. 32]
Isso posto, compreende-se que a argumentação jurídica só
se realiza porque há a possibilidade permanente da contradição,
entendida como resultado da multiplicidade de sentidos
possíveis dos fatos, da lei e da forma diferenciada de aplicação
das normas. O Direito, pois, é uma prática do questionamento:
sobre o caráter do conflito, isto é, se ele é ou não, jurídico; sobre
o ato e sobre o autor; sobre se a versão (a interpretação) do ato
é aceitável ou não; sobre como enquadrar a versão do fato na
lei etc.
As argumentações que constroem as partes conflitantes
têm, enfim, — como já se disse — o objetivo de fornecer
elementos que, partindo de um conceito genérico, possibilitem a
produção da justiça num plano singular: a sentença pode, por
isso, incluir sempre justificativas recolhidas das atividades tanto
da acusação como da defesa, precisamente para mostrar que
ela não contém nem arbitrariedades, nem injustiça.
Essas dificuldades ou comprometimentos apontados não
desobrigam, porém, a prática jurídica de organizar o seu
raciocínio de modo a que possa obter o convencimento
desejado.
E, por isso, uma atividade que se impõe como essencial e
prioritária é o controle da heterogeneidade4, o que demanda
dois procedimentos diferentes, mas interdependentes:
4 É preciso salientar que é a heterogeneidade de sentidos que possibilita que a argumentação jurídica adote modelos lógicos de outras ciências, além das técnicas e das estratégias para a produção e a maxi/minimização de argumentos: ela propicia que. através, Por exemplo, das paráfrases e das definições, o argumentador “fixe” os sentidos que lhe interessam para, depois, preocupar-se com o raciocínio lógico.
a) Recorre-se, em primeiro lugar, à determinação de um
ethos do discurso jurídico, explicitado na forma de
normas orientadoras (ou Hermenêutica Jurídica). E o
controle institucional do Direito que marca quem pode
falar o que, como e em que circunstâncias, ou seja, o
discurso assume formas e conteúdos específicos da
prática jurídica;
b) O segundo tipo de controle — que explicitei em páginas
anteriores — serve para que o Direito possa armar
modelos lógicos para o seu raciocínio.
No Direito, a paráfrase pode, por exemplo, ser empregada
em
frases como Neste caso, importa fazer justiça, o que
significa que... etc. etc... [pg. 33]
A definição, por sua vez — já que ela se ocupa em
esclarecer não tanto uma frase, mas uma determinada palavra
— pode aparecer em exemplos como Utilizarei a palavra justiça
entendida como... etc...
Na prática jurídica, existem ainda, além dos processos da
paráfrase e da definição, outras formas5 de cuidar da construção
de uma linguagem que se aproxime do desejável em termos de
univocidade:
5 Não considerarei como interessante o recurso às expressões do latim para precisar sentidos, porquanto o processo histórico de qualquer língua altera os sentidos das palavras à medida em que se modificam as circunstâncias socioculturais.
1. Como há a dificuldade de controlar as interpretações
tanto dos fatos como do texto legal, institui-se um conjunto de
normas orientadoras. Elas fixam uma certa orientação para
qualificar, por exemplo, um ato ou como tentativa de homicídio
ou como lesão corporal.
2. Uma outra forma de contornar as dificuldades que a
heterogeneidade social cria para a prática jurídica,
especialmente diante da necessidade da produção das
sentenças e das tomadas de decisão, leva o Direito a trabalhar
com o que se chama de presunções jurídicas.
As presunções jurídicas podem ser consideradas um
acordo que, fixando orientações para a produção de sentidos de
justiça, tem a finalidade de facilitar a produção da sentença ou a
tomada de decisões. Elas não se submetem à discussão
imediata, embora não devam ser consideradas imutáveis e, por
isso, semelhantes às leis das ciências matemáticas e naturais.
Melhor: as presunções não são discutidas no momento imediato,
embora se modifiquem historicamente, adaptando-se ao insti-
tuído social. Elas dizem, enfim, respeito a uma normalidade
aceita pela sociedade e (...) protegem o Estado de coisas
existente (PERELMAN, 1996b, p. 586).
A presunção se explica, na verdade, por motivos de
segurança jurídica, em termos de cuidados e de facilitação da
promoção da justiça, o que inclui, por exemplo, postar-se contra
as possibilidades da calúnia, do abuso de poder, da destruição
da ordem familiar etc.
Por isso, essa função pode, igualmente, ser considerada
um controle dos sentidos da palavra justiça, pois a presunção
jurídica que propõe, por exemplo, que, em caso de dúvida, se
decida a favor do réu, determina que, no ritual em que atuam
defesa e acusação, somente à segunda é permitido retirar-se do
debate. A defesa sempre se cobrará a presença quer seja para
que não se condene um inocente, quer seja para que não se
puna com maior rigor do que o necessário o autor de delito, ou
[pg. 34] mesmo, para analisar as responsabilidades da
sociedade no fato em julgamento.
O Direito atua, pois, apoiado em algumas presunções entre
as quais são importantes as seguintes:
— a qualidade de um ato manifesta a da pessoa que o
praticou;
— a credulidade natural faz que nosso primeiro movimento
seja acolher como verdadeiro o que nos dizem;
— todo enunciado levado ao nosso conhecimento nos
interessa;
— todo indivíduo é inocente até prova em contrário;
— o pai legal da criança é o marido da mãe dela;
— ninguém pode alegar desconhecimento da lei;
— em caso de dúvida, decide-se a favor do réu etc.
3.1 A ESPECIFICIDADE DA LÓGICA JURÍDICA
A argumentação jurídica, embora não vise a verdade,
também precisa valer-se de determinados modelos de
raciocínio: uma vez postos em prática os dois tipos de controles
da heterogeneidade lingüística, criam-se as condições mínimas
necessárias para que se possa submeter a atividade
argumentativa do Direito a uma lógica específica.
E quando se fala de uma lógica específica, incluem-se duas
idéias:
1. que o Direito atua como um sistema lógico, ou seja, que
os enunciados do sistema jurídico podem ser organizados
segundo os princípios e as regras do raciocínio lógico;
2. que há uma especificidade que se organiza segundo
referências e parâmetros próprios.
Ora, das duas idéias contidas na expressão lógica jurídica
cabe, no presente trabalho, aprofundar a segunda, já que a
questão de haver ou não, um sistema jurídico lógico pode ser
remetida a outro tipo de reflexão.
Assim, consentida a idéia de que há um sistema lógico,
pode-se considerar que ele se constrói tendo como suportes dois
tipos de referências: [pg. 35]
1. as de ordem prescritiva que se compõem dos modais
deônticos, é obrigatório — é permitido — é proibido, que dão
lugar a um conjunto de normas que pode ou não estar
materializado na forma de lei;
2. as de ordem descritiva que dizem respeito às normas
que fixam as conseqüências que pode gerar a infração das
prescrições.
A especificidade, pois, duma lógica jurídica se constrói, em
termos gerais, pela adoção dos princípios e das regras do
raciocínio lógico, e, segundo, pela adaptação dos modelos às
referências prescritivas e descritivas que sustentam a prática
jurídica. Há, pois, diferenças na lógica jurídica e que se refletem
no modo de verbalizar as teses, tanto que as ciências em geral
valem-se do verbo ser, e o Direito, da locução dever ser: a
orientação do que é proibido, é permitido e é obrigatório impõe
que uma tese de julgamento — que sempre é discutível —
afirme que fulano deve ser considerado inocente ou culpado
porque o seu ato deve ser condenado como prejudicial à
sociedade. E é essa característica de linguagem do raciocínio
que pode servir para entender melhor a especificidade da lógica
jurídica, ou seja, a argumentação, no Direito, adota os modelos
lógico-formais, mas atua sob a orientação das três referências
modalizadoras cuja operacionalização, como se pode observar,
depende de acordos sociais, ao contrário das ciências que
buscam verdades independentes do que a sociedade pensa
sobre elas.
Os deônticos, pois, são as referências à luz das quais se
regularão as relações sociais. Elas dão forma e conteúdo às
normas legais e àquelas que não assumem a forma de lei.
Entende-se, pois, assim, que essa característica de
submeter a argumentação jurídica a modelos lógicos, assumindo
o prestígio do rigor lógico, leva à observância obrigatória de três
condições: a coerência, a coesão e a congruência.
A coerência diz respeito à relação de compatibilidade (ou
verossimilhança) entre um ponto de referência que pode ser um
texto (por exemplo, a lei), um dito ou uma concepção da
realidade: a referência impõe que entre ela e a versão de um
fato não haja uma imagem de contradição, o que estabelece a
verossimilhança ou a plausibilidade da tese jurídica. A referência
se faz, pois, necessária como se fosse um foco que iluminasse e
orientasse o que se diz: não contradizer essa referência significa
ter coerência (e credibilidade), contradizê-la representa o
descrédito.
Por coesão entende-se o conjunto de relações que
organizam e sustentam os conceitos e as idéias de uma
argumentação em termos de [pg. 36] não construírem
contradições e vácuos semânticos que conduzam à negação
umas das outras ou à falta de conexão entre elas. A coesão —
ao contrário da coerência que se refere às não-contradições com
o exterior de uma argumentação — significa a “amarra” lógica
interna das partes de um texto. Ela depende, porém, da
coerência, pois, num texto em que se contradiz a referência,
implode-se a coesão.
A congruência — que depende da coesão e da coerência —
por sua vez, diz respeito à condução e ao direcionamento do
processo argumentativo: ele deve partir de um determinado
espaço significativo e caminhar com segurança e clareza em
direção a um outro. O argumentador, quando dá importância à
congruência, segue uma linha ou um traçado — na busca de
uma conclusão — que deve ficar tão perceptível que não crie
dificuldades desnecessárias para que o auditório acompanhe o
raciocínio.
No Direito, portanto, a coerência, em geral, se constitui
tomando como referência e apoio o que dizem a lei, a
jurisprudência e as presunções, o que, entretanto, não é
suficiente para oferecer garantias de que a argumentação tenha
sucesso, pois, para estabelecer a coerência, pode o
argumentador também valer-se de conceitos que não estão
contidos nestes textos, como, por exemplo, os que se referem a
valores novos que a sociedade adotou como balizadores das
condutas etc. Esses conceitos devem, por conseguinte, fazer
parte do instituído social em termos de não contradizerem os
deônticos adotados pela sociedade.
Enfim, a coerência da argumentação jurídica se constrói na
observância do primeiro tipo de controle da heterogeneidade
lingüística, o institucional: a referência que orienta a
argumentação jurídica é sempre um sentido genérico submetido
à tríade deôntica institucionalmente garantida.
A coesão e a congruência — diferentemente da coerência
— são conseqüências dos efeitos do segundo tipo de controle da
heterogeneidade: as paráfrases e as definições devem impedir
que haja contradição entre os sentidos que sustentam e que dão
rumo ao raciocínio. Por isso, somente após serem controlados e
delimitados os sentidos da linguagem, pode a argumentação
jurídica dedicar-se à construção de sua lógica que, em geral,
adota a forma de um silogismo, precisamente porque ele se faz
orientação para que se preencham as condições básicas da
argumentação:
1. Estabelece uma referência orientadora do raciocínio;
2. Garante a coesão interna; [pg. 37]
3. Fixa uma orientação segura para o raciocínio linear e
congruente;
4. Vale-se de uma operação lógica eficiente com os pares
ora.. logo ou se... então.
Essa importância do silogismo, como orientador da
argumentação jurídica, pode ser observada em:
Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser
condenado.
Ora, João matou em legítima defesa.
Logo, João não deve ser condenado 6.
6 Não me ocuparei com outras formas de silogismo, mas apenas com o que considero um exemplo clássico, tendo em vista que os objetivos do meu trabalho estão voltados mais às questões que dizem respeito à relação da linguagem com a argumentação jurídica.
Neste modelo de silogismo, o primeiro enunciado —
recortado do texto da lei — constitui-se como referência para o
raciocínio e deve, observada a correta disposição e conexão das
partes, garantir a coerência da sustentação.
A coesão do raciocínio fica garantida pela presença e
disposição correta dos termos dos três enunciados, em que o
predicado da tese é também o predicado do primeiro enunciado
(premissa maior — PM), o sujeito da tese é o sujeito do segundo
enunciado (premissa menor — Pm) e o sujeito do primeiro
enunciado cobre semanticamente o sujeito do segundo
enunciado e fornece os elementos para o predicado do segundo.
Os pares de operadores argumentativos “ora...logo” ou
“se...então” determinam a congruência do raciocínio.
A argumentação jurídica, porém, embora adote os modelos
das ciências matemáticas e naturais, apresenta uma diferença
fundamental: a relação que constrói entre dois sentidos (ou
dados) não leva em conta a descoberta e a demonstração de
uma verdade, mas, um comprometimento com a noção de
justiça. É uma relação de imputação, ao contrário do que
ocorre nos silogismos das ciências matemáticas e naturais, onde
o objetivo não é imputar, mas: [pg. 38]
1. descobrir uma verdade ou um valor, pois
se x + y = 10
e x = 3
então y = 7
ou
2. demonstrar a irrefutabilidade da hipótese em
Todos os homens são mortais.
Ora, João é homem.
Logo, João é mortal.
A atividade argumentativa, nos dois exemplos acima, vale-
se da relação que se pode estabelecer entre as duas primeiras
afirmações para descobrir ou demonstrar uma terceira.
O silogismo jurídico também se vale da relação entre os
dois primeiros enunciados, mas tem outro objetivo como se
pode ver no exemplo dado. Ele não visa à descoberta ou à
demonstração de uma verdade na relação entre “matar em
legítima defesa” e “não deve ser condenado”: o objetivo não é
nem demonstrar, nem descobrir, mas sustentar uma tese de
aplicação de um valor, o que também quer dizer imputar e
justificar um julgamento.
As diferenças, assim, entre os exemplos de argumentação
dizem respeito aos objetivos dos raciocínios que trabalham com
sentidos que ou vão ser denominados de verdades científicas ou
de teses, isto é, as primeiras buscam a irrefutabilidade, as
segundas, a verossimilhança.
Outrossim, cabe lembrar que a atividade argumentativa —
agora apoiada no silogismo — parte da tese cujo teor está
comprometido com interesses bem específicos e precisa se
apoiar sempre numa versão (que é resultado de uma
interpretação), ou seja, a defesa dos interesses envolvidos na
argumentação jurídica tem, como ponto de partida, a produção
duma versão que, também comprometida, deve ser verossímil o
suficiente Para sustentar a tese. Depois dessa etapa, a
estruturação do raciocínio — sob a orientação de um silogismo
— parte para a formulação ou a escolha dos outros enunciados
(ou premissas).
A tese, pois, corresponde ao terceiro enunciado do
silogismo, e a versão que a sustentará está contida no
predicado do segundo enunciado. [pg. 39]
A estruturação, então, deste modelo de silogismo,
adotando como exemplo a tese jurídica João não deve ser
condenado, cumpre os seguintes passos:
1. O predicado da tese (não deve ser condenado) fará
parte do predicado da PM; 2. O sujeito da tese (João) será o
sujeito da Pm; 3. A tarefa mais difícil, em geral, mesmo quando
se busca apoio na lei, é construir o sujeito da PM (Todo aquele
que mata em legítima defesa...) que deve ter um caráter o mais
abrangente possível de maneira que possa ser continente do
sujeito da tese, ou seja, a generalidade (ou universalidade) deve
ter condições de cobrir a singularidade, além de acolher — por-
que, no Direito, uma presunção relaciona a qualidade do ato
com a do autor — a versão que os deônticos permitirem
construir e que corresponde ao predicado da Pm (legítima
defesa). Compõe-se, pois, o sujeito da PM de duas partes (o
continente do sujeito da tese e o predicado da Pm ou versão da
tese). A PM pode apresentar quantificadores como todos, nin-
guém, tudo, nada etc. Não pode, porém, apresentar
quantificadores como alguns, a maioria, apenas etc., pois essas
escolhas negariam o caráter generalizante e impositivo dos
deônticos.
Como se pode observar, a estruturação do silogismo
jurídico parte da tese que se ocupa dum fato singular para,
seguindo etapas e preenchendo espaços, formalizar a premissa
maior. Esse processo é, pois, eminentemente indutivo.
3.2 A INDUÇÃO NA ESTRUTURAÇÃO DO SILOGISMO
A construção da tese é a primeira etapa da estruturação
do silogismo jurídico, cujos limites serão fixados por um objetivo
inicial: a tese vai se postar a favor ou contra uma outra tese, e
deverá, por isso, submeter a sua atividade interpretativa a esses
objetivos fixados pelo ritual jurídico. Essa afirmação implica
dizer, por exemplo, que as interpretações do inquérito policial,
da versão do autor do fato, das versões das testemunhas
eventuais, dos dados da perícia etc. produzem sentidos que
podem ser diferentes e que, por isso, uma vez, garantem as
atividades de defesa e de acusação e, segundo, requerem que a
argumentação aloque procedimentos de controle e delimitação
de sentidos para, em seguida, poder operar com modelos
lógicos.
O que deverá sustentar, pois, a tese é um conjunto de
interpretações que deve conduzir à produção de uma versão
verossímil porque ela é condição fundamental para o sucesso da
argumentação, [pg. 40] principalmente porque a tese é, em
resumo, uma versão submetida a um julgamento.
Enfim, a produção da tese comporta dois momentos
distintos, mas inseparáveis:
a) a produção do sentido de atos e fatos.7 É uma
interpretação já comprometida ou com a defesa ou com
a acusação que produz esse sentido, o que requer
delimitações e controles que atendam os objetivos
próprios da parte e que possibilitem o rigor do
raciocínio.
7 O ato é, aqui. entendido como uma atividade desenvolvida por um indivíduo, sendo que a contextualização desse ato produz o que se denomina de fato que pode ou não, ser jurídico. Assim, João matou uma pessoa é um ato, mas não necessariamente um tato jurídico porque pode, por exemplo, o ato ter ocorrido na gueixa ou numa batida Policial etc.
A versão de um ato pode ter ou não, concordância das
partes que se enfrentam no debate. Quando, porém, houver
concordância, pode-se falar em verdade fáctica. Essa
concordância em torno de uma versão não impede, entretanto
— porque a interpretação sempre levará em consideração os
interesses das partes — que as argumentações tanto da acusa-
ção como da defesa apresentem elementos diferenciados
daquilo que envolve imediata ou mediatamente o ato, ou seja, o
contexto do ato será utilizado para a produção da versão do fato
de acordo com os interesses de cada parte envolvida, e, por
isso, as versões (e as teses) obrigatoriamente serão diferentes.
Isso significa, em outros termos, que, na construção da
versão que lhe interessa, o argumentador recorrerá às provas e
aos indícios que julgar importantes na construção da
verossimilhança e convenientes à sustentação da tese, além de,
evidentemente, pensar na referência — por exemplo, a lei — à
luz da qual atuará no enquadramento da versão.
O seguinte exemplo pode esclarecer isso melhor: João
matou uma pessoa. O ato de João (ter matado uma pessoa)
pode ser uma evidência ou verdade fáctica. Os recortes e as
interpretações daquilo que circunscreve, porém, o ato, ou seja,
o contexto, vão compor o fato e produzir versões diferenciadas
porquanto têm orientações de interesses antagônicos. Assim,
uma contextualização menos abrangente do ato pode produzir
uma versão que condene o autor da morte. Construindo, porém,
um contexto mais amplo, o ato de João pode até inocentá-lo:
basta aprovar a tese da legitima defesa ou da do cumprimento
de função (militar, por exemplo) etc. [pg. 41]
Isso mostra que a contextualização de um ato participa da
interpretação dele e é de tal forma importante que pode
condenar ou absolver o autor de uma morte — ou pode até fazer
com que seja considerado um herói.
b) a produção de um julgamento. É a avaliação da versão
do fato produzida pela interpretação, tomando como
referência que pode ser ou a lei vigente, ou a
jurisprudência formada, ou os valores sociais instituídos.
Esse julgamento se estende ao autor envolvido no fato,
baseado na presunção de que a qualidade do ato revela
a qualidade de seu autor, isto é, uma versão que implica
uma condenação do ato, condena o autor, ou o
contrário, quando o ato não é condenável, o autor é ab-
solvido.
A seleção de indícios e provas é o momento da
argumentação jurídica em que o objetivo é colher e apresentar
os elementos contextualizadores do ato e que se incluem como
elementos que participam da produção da versão do fato, ou
seja, o que, direta ou indiretamente, envolve o ato representa
um apoio importante à interpretação do acontecimento e, por
isso, à sustentação da tese.
As provas mais comuns são as versões de atos e fatos
precedentes e subseqüentes, ou seja, os depoimentos das
partes e das testemunhas, além do laudo pericial. Elas só
interessam, contudo, quando se submetem aos objetivos ou da
defesa ou da acusação e contribuem para a construção da
verossimilhança.
É preciso, aqui, diferenciar os efeitos que podem produzir
as provas e os indícios: enquanto aquelas têm por objetivo
construir uma imagem de certeza, estes têm a finalidade de
sugerir, levantar hipóteses ou conduzir a suspeitas, o que,
quando bem trabalhado, pode ter — quase ao nível das provas
— um forte efeito na construção da verossimilhança.
A possibilidade, contudo, de o argumentador ou levantar
suspeitas ou criar a imagem da certeza, também depende dos
sistemas de referência do auditório: toda e qualquer informação
vai ser interpretada e avaliada pelo referencial que os indivíduos
receptores do raciocínio trazem da história que viveram dentro
de determinados segmentos sociais. Quer dizer que tanto os
indícios como as provas, no Direito, também se submetem aos
efeitos da heterogeneidade social e referencial, porquanto
podem ser interpretados diferenciadamente. E isso torna a
argumentação jurídica, uma vez, mais complexa — porque mais
frágil do ponto de vista lógico e formal, e, por outra, mais
democrática — porque não se furta a acolher o resultado da
diversidade social. [pg. 42]
Apesar (ou exatamente por isso) da importância das
provas na produção da versão, também elas se submetem a
normas e presunções, porquanto precisam ser avaliadas quanto
a sua qualidade e aos efeitos legais que podem produzir,
conforme se pode depreender do que explica Perelman quando
diz que
A prova dos fatos é às vezes livre, às vezes regulamentada. (...)
Assim é que a prova de certos fatos é inadmissível. O juiz pode
recusar-se a admitir a prova dos fatos irrelevantes, cuja
materialidade em nada influencia o desfecho do processo,
assim como dos fatos cuja prova não é permitida, por exemplo
daqueles que uma difamação aventa, e isto com o intuito de
proteger a reputação das pessoas privadas. E inadmissível
igualmente, a prova dos fatos aos quais se opõe uma presunção
legal irrefragável, tal como a autoridade da coisa julgada. O juiz.
tampouco admitirá a prova de certos fatos cobertos pela pres-
crição. (PERELMAN, 1996b, p. 494-495)
E acrescenta: “A prova judiciária é livre quando as partes
podem recorrer a todos os meios suscetíveis de formar a
convicção do juiz. Contudo, o mais da vezes, a prova é
regulamentada: os meios de prova admitidos são limitados e
legalmente hierarquizados.” (Op. cit., p. 587).
O juiz pode, pois, manifestar-se sobre o valor das provas,
sobre a propriedade ou a adequação de produzi-las, ao
perguntar-se sobre o que é preciso provar e o que pode ser
provado através de quê. Mais uma vez, a argumentação jurídica
depende dum processo de interpretação, ou seja, dependerá do
que produzirá o sistema de referência do juiz.
Outrossim, o ritual jurídico impõe, como conseqüência de
algumas presunções, que cabe ao acusador oferecer a versão e
as provas por primeiro, cabendo à defesa a tarefa de contestar e
fragilizá-las.
E, por fim, é preciso lembrar que as provas, ou as
informações — tendo em vista novamente a presunção jurídica
— podem dizer respeito tanto ao ato como a seu autor, pois
Duas são as categorias do componente informativo: a)
evidencial — informações diretamente relacionadas com o
crime; e b) não evidencial — informações constituídas pelas
características pessoais do réu. Estas, ao contrário do que se
possa imaginar, são de grande peso nas decisões judiciais.
(CORACINI, 1991, p. 52) [pg. 43]
Aqui é preciso considerar que as informações evidenciais
podem contextualizar e esclarecer mais ou menos o ato,
dependendo da interpretação e da avaliação de quem as
apresenta como importantes.
Isso, por sua vez, permite concluir que uma evidência nem
sempre é tão evidente assim, ou, em outros termos, são poucas
as evidências que podem ser sustentadas como tais devido,
precisamente, às diferenciadas formas de interpretação a que
conduz a heterogeneidade referencial.
Coracini provavelmente quis distinguir entre o que, em
termos de provas (ou evidências) pode ser sustentado com
maior ou menor êxito: dizer que é evidente que João matou é
mais fácil — dependendo dos elementos informativos — de ser
aceito do que dizer que é evidente que João, por isso, deve ser
considerado um elemento perigoso à sociedade.
De qualquer forma, é possível verificar que a evidenciação
pode tanto ser a produção de uma verdade fática como, uma
estratégia que busca passar por evidente o que
necessariamente não é.
Outrossim, é importante lembrar que as provas e os
indícios são um tipo de argumento, mas não, o único: no caso de
o apoio em provas e indícios ser frágil ou, mesmo, inexistente, a
argumentação jurídica deverá recorrer a determinadas e
apropriadas técnicas, entendidas como produtoras de
argumentos a partir de propriedades de certas relações lógicas,
e de circunstâncias pessoais, temporais, situacionais, sociais
etc., o que, contudo, não tem relação direta com o fato em
julgamento.
Além disso, quando as provas e os indícios forem
considerados frágeis ou inexistentes, ganham importância as
estratégias à medida que, o modo de atuação — que envolve
processos de contextualização, verbalização e disposição dos
argumentos — produz efeitos surpreendentes e que influenciam
as reações do auditório, precisamente porque a argumentação
não deve ser considerada apenas um exercício lógico mas
também, um processo de interação.
A argumentação jurídica vale-se, enfim, de dois tipos de
argumentos: os que se ligam diretamente ao ato e os que são
produtos de técnicas argumentativas. Ambos visam à
construção da verossimilhança da versão do fato, o que, em
última instância, significa estruturar as condições de
sustentabilidade da tese.
Em resumo:
1. As provas e os indícios também são resultado de
interpretações, o que aumenta as dificuldades de uma lógica
jurídica; [pg. 44]
2. Os procedimentos de alocação de indícios e de provas
se submetem, sempre, à presunção do contraditório, ou seja, as
escolhas e as intervenções ocorrem a partir do objetivo de
sustentar uma tese a favor ou contra o autor de um ato, o que
torna compreensível que o argumentador, no Direito, não pode
ser considerado, nunca, um elemento neutro e que as decisões
que produzem efeitos de justiça e se constroem no processo da
interação verbal, que é a argumentação, dificilmente alcançarão
o que se poderia entender por justiça plena;
3. Na ausência ou no caso de serem frágeis as provas e os
indícios, o argumentador pode recorrer a determinadas técnicas
para produzir os argumentos de que necessita para a produção
da versão que sustentará a tese.
O enquadramento na referência prescritiva
corresponde a uma proposta de julgamento da versão
produzida, ou seja, a sustentação da tese jurídica precisa,
obrigatoriamente, levar em consideração os modais deônticos e
as normas que eles geram, e que são encontradas, em geral,
sob a forma de lei.
O enquadramento da versão do fato jurídico é,
obviamente, orientado pelos objetivos que o argumentador
persegue, e requer uma competência para, apoiado em normas
interpretativas (de que se ocupa a Hermenêutica Jurídica)
escolher a referência prescritiva que melhor se ajusta aos
interesses em jogo. Isso quer dizer, de outra forma, que nem
sempre a lei é a melhor escolha, ou seja, o texto legal, por si só,
não garante a promoção da justiça, mesmo porque
Dizer que as leis — científicas e jurídicas — constituem a base
da tão desejada ‘verdade objetiva’, equivaleria a afirmar o
caráter estável (regular) e imutável das mesmas. Sabe-se,
porém, que as leis jurídicas, baseadas nos valores morais,
culturais (e até mesmo no regime político de uma sociedade),
variam segundo a cultura, o país, o grupo social. (CORACINI,
1991, p. 48)8
8 A lei só pode ser invocada como reguladora das relações sociais se ela for aplicada indistintamente a todos os indivíduos da sociedade. Estou me referindo, aqui, ao problema da impunidade de que se privilegiam os indivíduos pertencentes a determinados segmentos sociais: é neste momento que o Direito falha eticamente e deixa de preencher satisfatoriamente as suas funções sociais. Além disso, é importante considerar que, se a lei é (ou deveria ser) um acordo social cuja função é orientar a atuação sobre o conflito social, ela também é um produto da atividade do segmento social hegemônico e, por isso, existe a possibilidade de se levantar o questionamento sobre se ela contempla a defesa daqueles que não pertencem a este segmento, o que Heller (1987) aborda como um conflito entre concepções de justiça, ou seja, “(...) a declaração ‘essas normas e regras são injustas’ expressa uma convicção social e política. Os que reivindicam ‘essas normas e regras são injustas’ e os que dizem das mesmas normas e regras ‘essas normas e regras são justas’ param em um conflito social (ou político) um com o outro”. (p. 193) [pg. 45]
O que se diz acima é que, apesar da resistência à
flexibilidade e à mutabilidade, a lei com a qual atua o Direito se
modifica, e é isso que a distingue da das ciências físicas e
naturais. Em outros termos, a presunção do contraditório que
acolhe a heterogeneidade referencial que se origina do tecido
social dimensiona a fragilidade lógica da prática jurídica,
precisamente porque as referências também são frágeis, o que
implica dizer que a interpretação, a argumentação e a produção
da sentença são atividades determinadas, em maior ou menor
escala — como as de qualquer outra prática social — pelo que
ocorre no tecido social, de modo que
Os textos jurídicos, trate-se de leis ou de precedentes
judiciários, são habitualmente suscetíveis de interpretações
variadas, seja extensivas, por via de analogia, por exemplo, seja
restritivas, mercê das distinções que o intérprete poderia neles
introduzir. As diversas interpretações favorecem um ou outro
interesse, um ou outro valor, que estão em conflito em cada
caso específico. (PERELMAN, 1996b, p. 453)
Constata-se, pois, que, por mais incômodo que seja para a
prática jurídica, a linguagem que serve às interpretações é
comprometida com interesses sociais, de modo que se poderia
dizer que o instrumento destinado a intervir no conflito já está,
na sua origem e natureza, perpassado pelo problema.
Além do que
sabemos que, ao lado de regras de direito que ninguém cogita
em contestar, nem em interpretar à sua maneira, todo sistema
de direito comporta bastantes elementos de incerteza, dá ao
juiz bastante liberdade e depende tanto da convicção íntima do
juiz (...) que a personalidade do juiz sempre cumpre um papel,
às vezes limitado, mas às vezes decisivo, no desenrolar do
processo e em seu desfecho. (PERELMAN, 1996b, p. 493-494)
Quando Perelman fala da importância da personalidade do
juiz, na verdade, aborda o problema da heterogeneidade dos
sistemas de [pg. 46] referência, e que precisa ser controlado
no processo de produção de sentidos: é esse “nem em
interpretar à sua maneira” em confronto com “bastante
liberdade” e “convicção íntima” que configuram a
complexidade, o que explica a importância da Hermenêutica,
entendida na sua especificidade, conforme o faz Bastos (1997):
Faz sentido aqui a diferença posto que hermenêutica e
interpretação levam a atitudes intelectuais muito distintas. Num
primeiro momento, está-se tratando de regras sobre regras
jurídicas, de seu alcance, sua validade, investigando sua
origem, seu desenvolvimento etc. (...) Já a interpretação não
permite este caráter teórico-jurídico, mas há de ter uma
vertente pragmática, consistente em trazer para o campo de
estudo o caso sobre o qual vai se aplicar a norma. (BASTOS,
1997, p. 21)
Em resumo, os motivos por que a lei pode ser interpretada
diferentemente e, em conseqüência, ser também objeto
polêmico e espaço de argumentação são vários, dentre os quais:
a) A lei é um acordo verbalizado, produto do trabalho dos
homens de alguns (mas não de todos) segmentos
sociais, cuja atividade é conduzida sob as pressões
históricas e sociais, ou seja, sob a pressão dos conflitos
sociais.
E — porque é linguagem — a lei, necessariamente,
reflete essa realidade e, como conseqüência, assume um
caráter o mais genérico possível: apresenta, pois,
espaços vazios e incompletudes de sentidos que as
diferentes interpretações e argumentações deverão
tomar como objeto de trabalho;
b) Embora a interpretação da lei seja orientada por um
conjunto de normas jurídicas, as dificuldades não
desaparecem, pois as normas também são linguagem,
ou seja, também são interpretáveis de forma
diferenciada pelos diversos sistemas de referência
ligados a diferentes segmentos sociais. Por isso, o poder
do juiz pode — e deve — ser questionado
permanentemente pela sociedade, precisamente,
porque as suas decisões submetem-se, sem dúvida
nenhuma, a interesses de segmentos sociais aos quais
ele está vinculado histórica e culturalmente.
c) O objetivo que orienta a atividade do advogado, visando
à acusação ou à defesa, i.é, as diferenças de objetivos,
leva a [pg. 47] diferentes recortes da lei, o que mostra
que o enquadramento pode ser diferenciado;
d) A lei, por função, tem um caráter mais conservador ou
estático, o que impede que acompanhe as
transformações sociais que, pela sua dinamicidade,
caminham sempre à frente dos acordos legais.
Desse modo, percebe-se a importância do processo de
interpretação na prática jurídica, o que acarreta uma série de
dificuldades que se originam da heterogeneidade social e
referencial. São, pois, questões de linguagem que levam a que
O raciocínio jurídico, mesmo sendo sujeito a regras e a
prescrições que limitam o poder de apreciação do juiz na busca
da verdade e na determinação do que é justo — pois o juiz deve
amoldar-se à lei —, não é uma mera dedução que se ateria a
aplicar regras gerais a casos particulares. (PERELMAN, 1996b, p.
489)
Observa-se, portanto, que, na sustentação da tese, há uma
nítida diferença entre produzir uma versão e justificar um
julgamento: é preciso lembrar que há um procedimento
comprometido com interesses sob cuja pressão se interpreta o
fato, e outro que busca justificar uma decisão ou uma sentença
em relação ao resultado dessa interpretação. É essa fragilidade
que faz Perelman (1996a) considerar a argumentação jurídica
como uma atividade “quase-lógica”.
A justificação, pois, se, de um lado, configura o objetivo
mais importante da argumentação jurídica, de outro, revela que
a atividade que se desenvolve na prática — porque ela aciona a
todo o momento os procedimentos de interpretação — é uma
atividade essencialmente lingüística. E, por isso — para que o
raciocínio jurídico possa se apoiar em modelos lógico-formais —
precisa recorrer, como uma atividade obrigatoriamente
precedente, a determinados processos de controle da hetero-
geneidade de sentidos para poder obter sucesso na consecução
de interesses específicos, ou seja, recorre-se, primeiro, à
Hermenêutica jurídica e, depois, à paráfrase e à definição,
processos que, mais uma vez, justificam o estudo da linguagem
no Direito, porquanto são processos que se originam do que ela
é devido a suas relações com a realidade social. Em outros
termos, poder-se-ia dizer que a prática jurídica é uma atividade
que tem a sua especificidade determinada pelo modo como se
vale da linguagem para poder interferir na complexidade das
relações sociais: [pg. 48] os efeitos de justiça podem, pois,
também ser entendidos como efeitos de linguagem.
3.3 A DEDUÇÃO NA EXECUÇÃO DO SILOGISMO
Se a estruturação do silogismo jurídico sempre inicia pela
tese que resulta dos interesses que se opõem no julgamento
dum fato, a argumentação — uma vez concluído o modelo lógico
que orientará o raciocínio — obedecerá, de maneira geral, a um
processo dedutivo, mesmo que se possa aventar que, pela
ausência do caráter de irrefutabilidade da PM, a dedução não
seja semelhante à que se verifica na lógica das ciências ma-
temáticas e naturais: a precariedade do apoio que oferece a PM
não impede que o silogismo oriente e estabeleça uma linha de
raciocínio.
A eficiência do silogismo depende, em primeiro plano, do
que diz a PM: o seu caráter genérico garantirá, enquanto
referência, a coerência, desde que se possa promover a
inserção do singular da Pm no geral da PM.
Convém, ainda, lembrar que a PM só faz referência
importante quando se submete aos limites que a sociedade
estabelece com base nos deônticos é permitido, é proibido e é
obrigatório, isto é, a PM deve respeitar o instituído socialmente,
conste ele ou não no texto da lei.
Uma PM, todavia, que não toma a lei como referência, mas
um valor instituído que não consta no texto legal apresenta, em
geral, grandes dificuldades para a sustentação da tese,
conforme se pode observar nos dois seguintes exemplos:
1. PM: Todo aquele que age sob pressão das
determinações sociais não deve ser condenado.
Pm: Ora, João agiu sob pressão das determinações sociais.
Tese: Logo, João não deve ser condenado.
Neste tipo de silogismo, o argumentador terá duas tarefas,
ambas difíceis: convencer o auditório de que a PM é uma
referência aceita pela sociedade e de que João agiu sob pressão
das determinações sociais.
O apelo à lei, à jurisprudência ou às presunções pode, pois,
facilitar a sustentação da tese, porquanto é um instituto social
que, de certa forma, não se discute. Não garante, porém, o
sucesso: apenas garante a construção mais tranqüila da
coerência do raciocínio. [pg. 49]
2. PM: Todo político é corrupto e deve ser condenado.9
PM: Ora, João é político.
Tese: Logo, João deve ser condenado.
9 O enunciado de cunho ideológico sempre revela uma generalização falsa, porquanto “Todo político é corrupto” deveria — para não ser ideológico — tomar a forma de “Todo político que é corrupto’”.
Observe-se que, quando a PM é de cunho ideológico
(como, por exemplo, em outros enunciados, tais como Todo
homem é infiel por natureza, A mulher é inferior ao homem, O
branco é superior ao negro etc.), as dificuldades de sustentação
da tese se localizam em fazer passar por verossímil a PM, o que,
em determinadas circunstâncias históricas e culturais, pode ser
mais ou menos difícil.
A escolha de uma presunção jurídica como PM também
pode orientar a argumentação, como nos casos em que é
importante reforçar a relação entre qualidade do ato e qualidade
do caráter do autor, ou quando o argumentador que, atuando na
defesa, busca valer-se das vantagens da dúvida para beneficiar
o acusado.
Na argumentação jurídica, realizam-se, pois, após a
estruturação do silogismo — e que inclui a escolha das
referências — que servirá de apoio, várias atividades
(especialmente de parafrasagem e de definição) que podem ser
mais insistentes e trabalhosas ora num, ora em outra parte do
raciocínio, compreendendo ora a construção de uma versão
verossímil, (para o que se recorre a provas, indícios e técnicas
argumentativas), ora a utilização de técnicas argumentativas
apropriadas, além da alocação de estratégias cujos efeitos
intervirão no estabelecimento das melhores condições de
sucesso.
Enfim, resumindo: o silogismo orienta a estruturação lógica
do raciocínio, fixando uma combinação de lugares e relações
entre as partes de modo que haja coerência, coesão e
congruência, ou seja, o modelo lógico é orientação para a
sustentação de uma justificativa, para o que é fundamental ter
argumentos que produzam os efeitos desejados.
Quando, porém, as provas e os indícios que se referem ao
fato em julgamento forem insuficientes para a construção da
versão desejada, como se pode alocar os argumentos
necessários à sustentação duma tese? [pg. 50]
4
TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS
Entende-se por técnica argumentativa a produção de
argumentos que tomam como orientação não o que é pertinente
ao fato em avaliação, mas, relações lógicas, circunstâncias e
situações de outras esferas das atividades humanas e que, por
pressuposição, têm condições para exercer força de
convencimento: é quase como se as técnicas argumentativas
representassem um recurso que empresta prestígio e valores
duma determinada prática para transformá-los em argumentos
— no caso do Direito — jurídicos.
Assim, por exemplo, considera-se como verdadeiro, dentro
da lógica, que, se a = b, então também é verdade que b = a;
ou, então, se a = b e b = c, então, a = c. Os efeitos que
produzem os dois tipos de relações lógicas (reciprocidade e
transitividade) serão aproveitados, devido ao prestígio que tem
o saber lógico, pela argumentação jurídica, especialmente no
caso de fragilidade de provas e indícios: a construção de uma
versão que interesse à sustentação da tese requer a
substituição das incógnitas a, b e c por valores que serão
trabalhados como se pudessem estabelecer as mesmas relações
lógicas. Mais: as inferências e as deduções que resultam das
propriedades que têm as relações lógicas serão utilizadas e
aplicadas aos valores sociais e aceitas como argumentos impor-
tantes no julgamento jurídico.
Outras técnicas para produzir argumentos, e que podem
servir de exemplo ilustrativo para explicar o processo, são as
que buscam apoio, quer seja no pressuposto de que o ponto de
vista da pessoa de prestígio social é importante, quer seja na
concepção de que a comparação de fatos Pode ajudar a
interpretar e julgá-los melhor, quer seja, ainda, na definição
[pg. 51] da importância da história, da educação e das
emoções na conduta dos indivíduos etc.
As técnicas podem, pois, ser consideradas recursos que se
justificam a partir de pressuposições que devem ter aceitação
acadêmica e/ou social, o que, no Direito, se torna por demais
importante e sublinha o cuidado que o argumentador deve ter
na escolha da técnica e das estratégias interativas que visam a
estabelecer um acordo acerca das pressuposições
subentendidas nos argumentos produzidos e utilizados.
Em outras palavras, a construção da versão de um fato
jurídico pode, quando apoiada em provas e indícios frágeis,
valer-se de técnicas argumentativas, o que, na verdade, não
envolve, num primeiro plano, o que está sendo julgado e
permite dizer que provas e indícios são argumentos produzidos
através da pesquisa e da interpretação do fato, ao contrário dos
argumentos que são resultado das técnicas argumentativas e
que apenas são aceitos como tais devido à pressuposição de
que os “empréstimos” são possíveis e úteis.
A argumentação jurídica, embora difira dos conteúdos dos
raciocínios formais, busca pois, aproximar-se ou orientar-se por
eles porque se pressupõe que a coerência, a coesão e a
congruência possam contribuir com o poder de convencimento,
de forma que, por exemplo, na argumentação jurídica, “Quem
critica um argumento tenderá a pretender que o que tem à sua
frente depende da lógica; a acusação de cometer uma falta de
lógica é, em geral, por sua vez, uma argumentação quase-
lógica. A pessoa se prevalece, com essa acusação, do prestígio
do raciocínio rigoroso”. (PERELMAN, 1996 a, p. 220)
No presente trabalho, a distinção entre argumentos lógicos
e quase-lógicos que faz Perelman não receberá, porém,
considerações mais demoradas, porquanto se entende que, na
prática jurídica, especialmente quando se trata de valores, isso
se torna bastante complexo, precisamente porque a
argumentação jurídica, onde o objetivo não é nem demonstrar,
nem descobrir verdades ou testar hipóteses, mas justificar
teses, pode ser caracterizada, em grandes traços, sempre como
quase-lógica.
O que importa, todavia, é observar que um raciocínio
jurídico, para poder usufruir do prestígio do rigor lógico, precisa
adotar procedimentos que deverão dar consistência e
credibilidade à prática, e que podem ser de diferentes níveis:
1. realizar interpretações que sejam aceitáveis e
defensáveis, o que exige do argumentador um sistema de
referência competente e abrangente; [pg. 52]
2. procurar controlar a heterogeneidade lingüística, o que
exige, por sua vez, habilidades do argumentador para definições
e delimitações dos sentidos das palavras;
3. adotar um modelo lógico como orientação.
O estudo, pois, de diferentes técnicas argumentativas que
podem ser úteis à prática jurídica enfatizará sempre os aspectos
relacionados à atividade lingüística e à orientação lógica, e
destaca os seguintes:
4.1 O ARGUMENTO DA COERÊNCIA
Esse primeiro tipo de técnica vale-se do prestígio do rigor
lógico e requer, por isso, uma atividade intensa com e sobre a
linguagem — mais precisamente, de controle e de delimitação
dos sentidos — para, assim, utilizar a coerência como
argumento.
A coerência — como já se enfatizou — é uma qualidade
considerada imprescindível a qualquer argumentação, pois não
se aceita a contradição dentro de um raciocínio, ou seja, não se
deve afirmar algo e depois assumir uma outra idéia que negue a
primeira afirmação. Para manter a coerência e utilizá-la como
argumento, é preciso que se assuma um comprometimento com
uma referência socialmente aceita e tomá-la como orientação
rigorosa para a produção de sentidos que não apresentem
contradições.
E isso tem seus motivos: o prestígio do rigor lógico leva a
que a contradição possa ser interpretada, uma vez, como falta
de convicções claras e incapacidade para escolher com
segurança a referência que orienta a atividade, e, por outro
lado, como um desrespeito com o auditório em termos de não
lhe facilitar a compreensão dos objetivos da argumentação,
precisamente por não haver uma organização lógica correta e
rigorosa das relações entre referência e sentidos verbalizados.
Entende-se, por isso, que a falta de coerência, uma vez
denunciada, expõe o argumentador à condenação e ao
insucesso: a frouxidão referencial e a contradição denunciam a
incapacidade de produzir boas interpretações dos fatos, vale
dizer, de construir boas teses. Perde, pois, o argumentador uma
das qualidades — se não a mais importante — que a interação
cobra dos participantes, ou seja, a da credibilidade.
Ser coerente diz, desse modo, respeito à competência
tanto para escolher os conceitos que serão referência para o
raciocínio, como para organizar os argumentos sem que haja
contradição com a referência escolhida. [pg. 53]
Na argumentação jurídica, a referência quase obrigatória é
a lei. Pode, porém, também ser uma jurisprudência ou um
conceito que tenha aceitação social ou uma presunção jurídica,
— desde, porém, que se enquadre nos limites dos modais
deônticos. De qualquer modo, o importante é considerar que a
coerência só poderá ser invocada como argumento quando
determinada referência tem — ou poderá vir a ter — prestígio
junto ao auditório, ou seja, ao invocar a coerência como
argumento, o argumentador se vê diante de duas importantes
tarefas:
1. fazer com que a referência escolhida seja aceita pelo
auditório, o que implica saber fazer avaliações preliminares
corretas quanto ao universo referencial aceito pela sociedade e
determinar com competência o sentido desta referência, tendo
em vista o que interessa à argumentação;
2. conduzir o raciocínio de modo a que não haja
contradições em relação à referência, o que representa dominar
os processos de manutenção da coerência, da coesão e da
congruência.
Enfim, a técnica que produz o argumento da coerência é
essencialmente uma atividade lingüística que visa à utilização
do prestígio do rigor lógico, ou seja, um recurso em que o
argumentador se ocupa ou em observar o rigor da relação não-
contraditória entre uma referência e as interpretações e
justificativas que por ela se orientam, ou em denunciar a falta
dessa condição na argumentação adversária.
4.2 O ARGUMENTO DA RECIPROCIDADE
Essa técnica argumentativa apóia-se também no prestígio
do rigor lógico, especificamente na propriedade das relações
para construir uma aproximação ou simetria entre dois fatos ou
idéias (ou mesmo valores) de modo a que a semelhança de
características implique que se possa aplicar o mesmo
tratamento ou julgamento a ambos, mesmo se houver uma
inversão de situações ou de posições da simetria inicial.
A atividade do argumentador, nessa técnica de raciocínio,
exige, principalmente, saber interpretar e construir o contexto
das situações, ou seja, é preciso que a aproximação de dois
fatos diferentes se faça pelo que se pode localizar de
semelhante neles e nos elementos contextualizadores. Isso
requer, sobremodo, saber produzir interpretações apropriadas, o
que, mais uma vez, enfatiza a importância de um sistema de
referência produtivo e competente, e, por isso, da linguagem:
[pg. 54] para poder aproveitar uma correlação lógica como se a
= b, então b = na argumentação jurídica, a primeira atividade
refere-se à delimitação conceitual que deverá dar condições
para que o raciocínio se beneficie da relação lógica.
Assim, por exemplo, adotando essa técnica, o argumento
sustentará que, se cabe aos pais dar proteção e abrigo aos filhos
enquanto estes puderem ser considerados dependentes, da
mesma forma caberá aos filhos a responsabilidade de prover as
condições de sobrevivência dos pais quando estes,
eventualmente, atravessarem uma situação em que se puder
considerá-los dependentes. O raciocínio precisa definir,
obrigatoriamente, o que se entende por dependência para que o
caráter de reciprocidade da relação entre pais e filhos possa ser
sustentado com apoio no modelo lógico.
4.3 O ARGUMENTO DA TRANSITIVIDADE
A técnica que permite à argumentação jurídica produzir
determinados argumentos que mantém uma relação de
transitividade, toma como motivação, segundo Perelman (1996),
“(...) uma propriedade formal de certas relações que permite
passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os
termos a e b e entre os termos b e c, à conclusão de que ela
existe entre os termos a e c: as relações de igualdade, de
superioridade, de inclusão, de ascendência são relações
transitivas”. (p. 257)
Isso significa que a argumentação jurídica pode buscar
como apoio relações formais de transitividade, desde que se
controle a heterogeneidade lingüística: o objetivo de construir
uma relação de transitividade que não deixe de apresentar o
rigor lógico exige interpretar e demarcar com a precisão
possível os sentidos que substituirão as incógnitas a, b e c.
Por exemplo, embora seja discutível sustentar que “Os
amigos de nossos amigos são nossos amigos”, a idéia pode ser
trabalhada, insistindo que a verdadeira amizade deveria ser
assim. O enunciado pode servir de referência a um raciocínio, o
que quer dizer que este tem fundamento no modelo que
sustenta a transitividade, pois a implicação é uma das mais
importantes relações transitivas e pode ser avaliada
socialmente em diferentes áreas ou práticas sociais.
Assim, o seguinte silogismo se constrói pela relação de
transitividade: [pg. 55]
Não deve ser condenado (= a) aquele que mata em
legítima defesa (= b); ora, João (= c) matou em legítima defesa
(= b); logo, João (= c) não deve ser condenado (= a).
A dificuldade de ordem lingüística reside, em primeiro
lugar, na delimitação do sentido da expressão legítima defesa e,
segundo, adotar a referência para interpretar o ato de João.
4.4 O ARGUMENTO DA COMPARAÇÃO
A técnica que faz da comparação um argumento tem o
objetivo de comparar enquadrando uma imagem (do réu ou da
vítima, por exemplo) ou a versão de um fato (um delito, por
exemplo) dentro duma seqüência hierarquizadora que inclui
outras imagens ou versões.
Cabe ao argumentador a tarefa de fazer as escolhas das
imagens ou versões com as quais organizará a seqüência
escalar que servirá de parâmetro de avaliação, o que, de certa
forma, corresponde à escolha das referências com as quais ele
estruturará o raciocínio. A comparação passa, portanto, a
produzir argumentos, quer seja a favor, quer seja contra o que
está sendo julgado: se se quiser condenar, a escolha, para fazer
o cotejo, deverá privilegiar aquelas imagens (referências) que
têm um conceito elogiável no instituído social. E o inverso
ocorrerá quando o objetivo for o de defender: o cotejo do que
está sendo julgado será feito com o que houver de condenável
no imaginário do auditório.
4.5 O ARGUMENTO DA INCLUSÃO DA PARTE NO TODO
Uma outra técnica de argumentação consiste em apoiar-se
na presunção de que o que vale para o todo também vale para
as partes, o que significa, mais uma vez, a utilização do modelo
lógico-formal (se... então) e o trabalho com o sentido das
palavras, i. é, a técnica, inclui o controle da heterogeneidade de
sentidos.
A técnica exige, pois, além da orientação da estrutura
“se... então”, uma intensa atividade de produção de sentidos
(ou controle de sentidos) para a sustentação do “se” porque é
preciso conseguir a adesão à idéia de que a inclusão da parte
num todo em que as partes mantêm um determinado tipo de
relações faz com que cada uma se submeta ao que vale para o
todo. [pg. 56]
A produção ou o controle de sentidos refere-se, pois, a
definir o que é o todo, quais são as suas partes e quais são as
relações que elas mantêm entre si de modo a que se submetam
ao todo.
Por exemplo, na argumentação jurídica, é freqüente
encontrar a tese de que, se a lei vale (ou não) para o todo,
também vale (ou não) para cada parte. Parte-se do pressuposto
de que o todo se compõe de partes que têm entre si uma
relação de igualdade, o que, especialmente no Direito, necessita
de uma série de procedimentos interpretativos dos fatos, de
modo a que se convença o auditório de que essa relação lógica
é sustentável. Qualquer deslize ou impropriedade interpretativa
fragilizará a argumentação.
4.6 O ARGUMENTO DA DIVISÃO DO TODO EM PARTES
Trata-se, agora, ao contrário da técnica anterior, não de
tentar demonstrar a inclusão e o submetimento da parte ao
todo, mas de que o todo é a soma das partes: o argumentador
busca, aqui, quando constrói o sentido do todo, apoio no sentido
da parte e no pressuposto de que a soma é a relação que
sustenta o todo. O recurso da definição e da delimitação
conceitual ocupa-se, em primeiro lugar, da parte, para, num se-
gundo momento, baseado no resultado da atividade inicial,
ocupar-se do todo como, por exemplo, ocorre na relação entre
gênero e espécie em que, segundo Perelman (1996), “Para
poder afirmar algo do gênero, cumpre que esse algo se confirme
numa das espécies: o que não faz parte de nenhuma espécie
não faz parte do gênero.” (p. 265).
Essa técnica pode, por isso, produzir argumentos positivos,
valendo-se de todos os efeitos que se pode tirar, primeiro, das
interpretações realizadas, e, depois, das operações de soma, de
subtração e de suas combinações como, por exemplo, tentar
sustentar que uma comunidade está à mercê das drogas (ou de
bandidos etc.), alistando e quantificando exaustivamente os
bairros que acusam o fato, ou que alguém apresenta uma boa
(ou má) conduta social produzindo versões boas (ou más) de
atos isolados seus.
É evidente que, neste tipo de técnica, o argumentador
tende a valer-se especialmente do tratamento estatístico e da
formulação de tabelas, o que significa, novamente, que, após a
atividade que produz e fixa sentidos, atua-se sobre uma
pressuposição, ou seja, a de que a soma, o tratamento
estatístico e as tabelas — pelo prestígio de que desfrutam —
podem dar à versão a imagem da verdade. [pg. 57]
4.7 O ARGUMENTO AD IGNORANTIUM
O argumentador pode, numa situação em que as
condições para uma ampla e demorada discussão estejam
prejudicadas, valer-se da técnica que consiste em formular os
argumentos convenientes à tese, ao mesmo tempo em que
desafia — devido ou à exigüidade de tempo ou a dificuldades
momentâneas — o auditório a apresentar os que se possam
contrapor a eles.
No Direito, particularmente, o uso dessa técnica pode ser
muito eficaz, porquanto há, em momentos de análise e
intervenção nos conflitos, situações de impasse ou de
dificuldades que entravam o avanço do julgamento no exato
momento em que elas requerem uma decisão urgente.
4.8 OS ARGUMENTOS A PARI E A CONTRARIO
A concepção de relações ou de inclusão ou de exclusão
orienta essa técnica argumentativa: parte-se, mais uma vez, de
uma característica das ciências lógico-formais onde um
elemento pode, a depender de suas características, ser ou não
incluído num conjunto mais amplo, do que se retira a
pressuposição de que essa inclusão (ou exclusão) que permite
hierarquizações e classificações contribui para uma
aproximação do que é do nível do verdadeiro. Essa técnica que
constitui os argumentos a pari e a contrario é muito utilizada na
prática jurídica, como, por exemplo, no caso em que a lei fala
dos direitos dos filhos herdeiros: pelo argumento a pari tenta-se
estender os mesmos às filhas, precisamente porque a inter-
pretação de filhos diz que a palavra não se refere, neste caso,
somente aos indivíduos do sexo masculino, mas que o sentido
deve ser considerado genérico e, por isso, inclui os indivíduos de
ambos os sexos, o que quer dizer que a interpretação produziu
uma relação de inclusão.10
10 No Brasil, o exemplo dado pode até causar estranheza porque os direitos de herança estão garantidos tanto para filhos como para filhas. Em algumas comunidades da Ásia, porém, esse a pari não ocorre: prevalece o a contrario.
Pelo argumento a contrario, porém, pode-se contestar uma
inclusão ou igualdade, a depender da interpretação da lei, e que
permitirá, então, construir uma relação de exclusão.
Novamente, nos dois tipos de argumentos, a atividade
lingüística é fundamental: a sustentação de uma relação de
inclusão ou de [pg. 58] exclusão só pode ser feita uma vez
determinado um campo semântico onde se cotejam dois (ou
mais) conceitos. A atividade interpretativa — sempre orientada
por interesses bem específicos no caso do Direito — visa a in-
cluir ou excluir um conceito menos amplo num de maior
amplitude, atendendo ao prestígio que se confere ao processo
de sistematização e de classificação.
Uma conseqüência, pois, interessante (e absurda) é o que
pode acontecer, por exemplo, no julgamento dum estuprador:
caso o seu defensor conseguir definir o conceito de sexualidade
humana como sendo igual (o que significa inclusão) ao de
sexualidade dos animais em geral, é bem possível que — se a
acusação não for competente para desarmar a inclusão — o
estuprador seja absolvido e a vítima passe por culpada por ter
estimulado a que o macho (como na natureza) se tornasse
agressivo e incontrolável na conduta sexual.
4.9 O ARGUMENTO DA ANALOGIA
Uma das relações de igualdade da lógica formal é a
analogia em termos de a = b assim como c = d, o que pode
servir como um recurso para a argumentação jurídica sobre o
que Perelman se manifesta como segue:
Ninguém negou a importância da analogia na conduta da
inteligência. Todavia, reconhecida por todos como um fator
essencial de invenção, foi olhada com desconfiança assim que
se queria transformá-la num meio de prova. (...) Longe de nós a
idéia de que uma analogia não possa servir de ponto de partida
para verificações posteriores; mas nisso ela não se distingue de
nenhum outro raciocínio, pois as conclusões de todos eles
sempre podem ser submetidas a uma nova prova. (...) Todo
estudo global da argumentação deve, pois, incluí-la enquanto
elemento de prova. (PERELMAN, 1996a, p. 423-24)
Na verdade, a analogia é uma comparação que não visa a
diferenciar, mas a estabelecer as semelhanças, o que, de certa
forma, na prática jurídica, aponta para uma igualdade de
relações entre os indivíduos.
Assim, se o argumentador escolher um enunciado como,
por exemplo, “Agredir a mulher é como agredir o membro
central da família e, por isso, a célula da sociedade”, estará
construindo uma relação de [pg. 59] semelhança que, ao fazer
a valorização do instituído social, cria condições de valorizar a
família e a mulher, ao mesmo tempo que reforça a acusação
contra um eventual agressor.
Outro efeito interessante da analogia se dá quando o
argumentador quer desqualificar alguém Comparando-o com o
que é desprezível aos olhos do auditório: cria-se uma associação
entre o indivíduo e o que é desqualificante — efeito da relação
de igualdade que a técnica cultiva como pressuposição.
Ainda um outro aspecto da técnica diz respeito ao cuidado
na construção da analogia, pois
A escolha dos termos de comparação adaptados ao auditório
pode ser um elemento essencial da eficácia de um argumento,
mesmo quando se trata da comparação numericamente
especificável: haverá vantagem, em certos casos, em descrever
um país como tendo nove vezes o tamanho da França em vez
de descrevê-lo como tendo a metade do Brasil. (PERELMAN,
1996a, p. 278)
A escolha dos termos (por exemplo, dos números) é
importante porque cada alteração produz diferentes efeitos de
convencimento, podendo inclusive criar — especialmente no
caso das estatísticas — uma imagem de credibilidade que, como
se sabe, nem sempre se justifica, mas se torna decisiva para o
argumentador conseguir a adesão do auditório.
De qualquer forma, a construção de uma analogia, apesar
de todos os cuidados do argumentador na avaliação do
auditório, sempre revela um caráter de instabilidade ou de
fragilidade, precisamente porque basta alguém não aceitar uma
semelhança estabelecida para que todas as conclusões que dela
se retiraram sejam também rejeitadas.
4.10 O ARGUMENTO DA FIXAÇÃO DE UM GRAU
O recurso a esse argumento permite, através do processo
de comparação, um cotejo entre vários objetos para avaliá-los
um em relação ao outro e estabelecer as diferenças de grau de
qualidades ou de características. A técnica difere do argumento
de identificação como o da analogia porque atua ou com uma
oposição (justo x injusto) ou de ordenamento (mais justo que
etc.), mas mantém a pressuposição de que o ordenamento
hierárquico pode facilitar o acesso ao que é verdadeiro. [pg.
60]
A atividade é essencialmente lingüística, o que pode ser
observado tomando, como exemplo, a disposição bipolar das
cores, onde num extremo da escala se suponha estar o azul e
noutro o amarelo: a mistura das cores pode ser feita partindo de
um ou outro ponto da escala e faz com que, querendo nomear
as cores intermediárias, e partindo do amarelo em direção ao
azul, possam ser utilizadas indistintamente as expressões verde
mais amarelado e verde menos azulado. Tomando como
referência o outro extremo, as expressões que designarão as
aproximações deverão ser verde mais azulado e verde menos
amarelado.
Isso quer dizer que as escolhas parecem equivalentes,
mas, na verdade, produzem efeitos diferenciados: o verde é
classificado a partir ou do amarelo ou do azul, o que quer dizer
que a escolha do ex-tremo definidor corresponde, na verdade, à
escolha da referência interpretativa.
Ora, isso leva a que se constate que a argumentação, ao
valer-se dessa técnica, atua, em primeiro lugar, com linguagem
porque, substituindo as cores por outros pares de expressões
como correto e incorreto, justo e injusto, bom e mau, social e
anti-social etc., é necessário definir e delimitar as referências
para, depois, proceder às classificações que, embora contenham
os quantificadores mais e menos, se fazem pela expressão
utilizada, ou seja, correto ou incorreto, justo ou injusto etc.
Os efeitos que os qualificadores produzem são,
evidentemente, diferenciados e explicam tanto a sutileza como
a força do argumento, ainda mais quando o argumentador, ao
trabalhar a escala de mais e menos, se valer da situação e
demarcar o lugar de um superlativo em termos de o verde mais
amarelado ou o verde menos azulado, o verde mais azulado e o
verde menos amarelado, ou, no caso do Direito, o mais justo
etc.: o uso do superlativo produzirá um argumento bastante
agressivo que pode, em determinadas circunstâncias, causar
efeitos mais eficientes do que a simples comparação.
4.11 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO DE MEIOS E FINS
Essa técnica pode ser considerada como um processo que,
de certo modo, também — como as técnicas anteriores — utiliza
a comparação, pois realiza o cotejo entre duas realidades, não
visando, porém, a estabelecer semelhanças ou, a hierarquizar
qualidades, mas, a avaliar os sacrifícios ou meios que a
obtenção de um resultado estaria exigindo. [pg. 61]
Um exemplo típico de argumento que é resultado do
acolhimento da relação entre meio e fim é o contrato de compra
e venda: a proposta de aquisição de um bem requer um
determinado sacrifício (pagamento etc.), ou seja, o fim explica
(ou justifica) a alocação de determinados meios.
Na argumentação jurídica, a invocação de meios
necessários pode tanto servir à acusação como, à defesa, e
produz efeitos importantes como, por exemplo, ocorre com
frases como só acredito em quem sabe respeitar as leis, só
acredito em quem sabe perdoar, só acredito em justiça quando
houver rigor na aplicação da lei, só acredito em diminuição da
violência com a implantação da pena de morte, o que quer dizer
que, para conseguir credibilidade, os meios necessários são
saber respeitar as leis, saber perdoar, ser rigoroso na aplicação
lei ou implantar a pena de morte: o argumentador toma como
referência um fim — credibilidade, por exemplo — que mereça a
aprovação do auditório e que, por isso, deve dar condições a
que os meios propostos também sejam aprovados.
Observa-se, pois, nesta técnica, também a necessidade de
intensa atividade lingüística — interpretar, delimitar, definir etc.
—, o que destaca a sua importância para a argumentação
jurídica, principalmente quando se sabe que a técnica pode
gerar argumentos como Os fins sempre justificam os meios e
que, na tentativa de promover a justiça, criarão, com certeza,
empecilhos indesejáveis e desastrosos, porquanto a
pressuposição contida no enunciado constitui, dentro da
heterogeneidade social e da desigualdade de forças e poderes,
a possibilidade de implantação do autoritarismo e do abuso de
poder.
4.12 O ARGUMENTO DA PROBABILIDADE
Uma técnica de argumentação muito usada, mesmo (ou
especialmente) para realidades não-quantificáveis, é a que
busca o modelo lógico-formal para valer-se das estatísticas e do
cálculo de probabilidades que, se nas ciências matemáticas e
naturais, têm sua importância, no Direito, só devem a sua
utilização ao status do procedimento, pois a realidade a ser
abordada dificilmente permite quantificações e cálculos
probabilísticos.
Assim, por exemplo, num julgamento, o uso da estatística
em relação ao comportamento humano para determinar a
probabilidade do percentual de responsabilidade ou do indivíduo
ou da sociedade na ocorrência do delito, pode facilitar a tarefa
do argumentador, especialmente [pg. 62] pela imagem de
credibilidade que os números constroem. Trata-se, porém, da
instituição de um tratamento uniforme para uma realidade que
é heterogênea, o que indica os múltiplos usos (e abusos) a que
essa técnica pode servir.
Além disso, não se deve esquecer que qualquer fato —
jurídico ou não — pode ser abordado a partir de diferentes
variáveis ou conceitos operacionais, ou seja, os números e as
estatísticas vão dar “credibilidade” àquilo a que o argumentador
quiser dar, mas não são capazes de produzir, no Direito, as
“verdades” que aparentam produzir, ou seja, a realidade
analisada nos tratamentos estatísticos nunca é uma totalidade,
mas um recorte produzido pela intervenção do analista ao se
valer de categorias operacionais escolhidas por ele: conceitos e
sentidos adotados e produzidos podem e devem, pois, no caso
de um debate — especialmente no Direito — ser relativizados,
embora sejam eficientes como argumentos, desde que a
pressuposição de que a técnica seja válida tenha acolhida pelo
auditório.
4.13 O ARGUMENTO DO VÍNCULO CAUSAL
Uma argumentação pode escolher por estabelecer um
vínculo causal entre:
a) dois acontecimentos sucessivos;
b) um acontecimento e uma causa determinante;
c) um acontecimento e seus efeitos prováveis;
No primeiro caso, a argumentação visará à sustentação da
tese de que um acontecimento que sucede imediatamente a
outro tem com este um vínculo causal, ou seja, é conseqüência:
se não houvesse o primeiro, não haveria o segundo.
Já é diferente a relação causal que se pretende sustentar
no segundo caso: um fato ocorrido não tem necessariamente a
sua origem num outro imediatamente anterior, mas num ponto
qualquer que depende da escolha do argumentador. Por isso,
determinar uma causa de um ato permite que o argumentador,
valendo-se da riqueza de seu sistema de referência, construa
argumentos extremamente fortes como, por exemplo, no
Direito, o da necessidade ou inexigibilidade de conduta
diferente. [pg. 63]
Pode, porém, como no último caso, o argumentador
construir uma relação causal entre o fato ocorrido e uma
situação futura.
No caso da argumentação jurídica, a técnica que se vale
de determinados procedimentos das ciências lógico-formais,
precisa — como todas as demais técnicas — cuidar da atividade
lingüística, pois fica evidente que um vínculo causal, qualquer
que seja, necessita de interpretações que produzam sentidos
que possam suportar essa relação de causalidade,
especialmente, tomando em consideração que se atua com
valorações diferenciadas que se originam da heterogeneidade
referencial.
4.14 O ARGUMENTO PRAGMÁTICO
O argumento pragmático aprecia um acontecimento pelas
conseqüências favoráveis ou desfavoráveis que poderá provocar
nos acontecimentos e na vida prática. Na verdade, “Esse
argumento desempenha um papel a tal ponto essencial na
argumentação que certos autores quiseram ver nele o esquema
único da lógica dos juízos de valor”. (PERELMAN, 1996a, p. 303)
A técnica, pois, através da qual se tomam elementos do
nível pragmático como argumentos é valorizada sobremodo na
prática jurídica porque as atividades referem-se a questões que
dizem respeito quase sempre a problemas das relações sociais e
que envolvem valores.
Por isso, por exemplo, a condenação (ou a absolvição) do
réu pode ser construída, sustentando o que a sentença poderá
significar para o bem-estar da sociedade. Ao propor o sucesso
(ou a felicidade, bem-estar etc.) como critério de avaliação, o
argumentador vale-se da técnica para apoiar-se em
determinada hierarquia de valores que, obviamente, não precisa
ser considerada a única e a melhor, mas que é sempre produto
de uma atividade interpretativa que visa à defesa de interesses
específicos e atua sobre a heterogeneidade referencial.
A força do argumento pragmático está, pois, no fato de ele
dizer respeito aos sentidos da vida, do cotidiano das pessoas,
dos projetos pessoais etc., elementos que pertencem ao nível
imediato do contexto do fato em julgamento e que, às vezes,
podem, tendo em vista os sistemas de referência do auditório,
produzir maiores efeitos do que aquilo que se coloca num
horizonte mais distante como, por exemplo, concepções
ideológicas. [pg. 64]
4.15 O ARGUMENTO DO DESPERDÍCIO
A técnica em dizer que uma vez que já se começou a fazer
algo (obra etc.) seria um desperdício não continuá-la, na prática
jurídica, pode significar, por exemplo, que não se deve perder
uma oportunidade de condenar ou de absolver alguém porque já
existem meios para atender os efeitos da decisão/sentença.
Haveria, pois, um desperdício de meios produzidos pela
sociedade e seria inaceitável, por isso, não aplicá-los ou utilizá-
los, o que possibilita que a criação e a manutenção da polícia,
do exército, do sistema carcerário etc. possam ser invocadas
como argumentos para sustentar a idéia de que é um
desperdício de custos querer, num dado momento, por razões
diversas, desativar ou desconsiderar o emprego do que já foi
criado.
4.16 O ARGUMENTO DA DIREÇÃO
Basear-se na concepção que pressupõe que os fatos e a
realidade se constituem por etapas que mantêm entre si uma
relação de causa e efeito, refere-se à técnica da qual resultam,
como argumentos, as considerações contra ou a favor da
sucessão de etapas (prováveis) que um fato poderá gerar: é o
que orienta o argumento da direção.
Por exemplo, no Direito, quando estiver em discussão o
controle da violência, o argumento pode dizer que, se nós
vamos ceder desta vez, deveremos ceder um pouco mais na
próxima, e sabe Deus onde vamos parar.
Enfim, o argumento da direção concebe a História como
uma linearidade que se sustenta por relações lógicas e
desconsidera a possibilidade de que, fora da seqüência de
etapas, possa existir algo que explique melhor um determinado
acontecimento.
4.17 O ARGUMENTO QUE RELACIONA ATO E PESSOA
Esse tipo de argumento tem especial importância no
Direito, porque caracteriza uma presunção jurídica que diz que o
valor de um ato revela o valor da pessoa (diferente da
presunção religiosa, por exemplo, que considera que cada
pessoa vale mais do que o pior de seus atos). [pg. 65]
A dificuldade da invocação ou da sustentação dessa
relação entre ato e pessoa diz respeito à questão da
subjetividade, isto é, saber o que é social e o que é de ordem
pessoal nas motivações e determinações dos atos que os
indivíduos realizam.
Por exemplo, se o valor do ato determina apenas o valor
da pessoa quer-se dizer que a responsabilidade do ato é
inteiramente de seu autor. A sociedade, nessa concepção, não
exerce nenhuma pressão sobre as condutas, o que,
evidentemente, é questionável. A concepção inversa igualmente
deve ser considerada um equívoco porque significa afirmar que
o indivíduo não tem nenhuma responsabilidade por seus atos.
A complexidade reside, evidentemente, em conseguir
demonstrar ou quantificar o grau de responsabilidade do
indivíduo e da sociedade, o que representa, contudo, a condição
para que a técnica possa ser utilizada para a produção de
argumentos tanto para a defesa como para a acusação do réu.
4.18 O ARGUMENTO DA AUTORIDADE
O instituído social prevê, entre os valores que protege, um
destaque especial para as falas de autoridade, ou seja, valoriza
as falas de acordo com o prestígio do lugar social que os
indivíduos ocupam.
Esse prestígio pode estar ligado não só à força e poder de
determinados segmentos sociais, mas também, à importância
que se dá a certas atividades acadêmicas e profissionais.
O argumento da autoridade parte, assim, do pressuposto
de que a citação de outrem possibilita usar o prestígio e a
autoridade do enunciante citado, valorizando o citado como
argumento. Para conseguir a adesão a uma tese, o
argumentador busca, pois, dar à própria fala o prestígio e a
autoridade de outrem, citando o que entende como conveniente
à sustentação que está fazendo.
Para Perelman, “...existe uma série de argumentos cujo
alcance é totalmente condicionado pelo prestígio. A palavra de
honra, dada por alguém como única prova de uma asserção,
dependerá da opinião que se tem dessa pessoa como homem
de honra...”. (1996a, p. 347)
Por isso, investir no prestígio ou na autoridade da fala de
outrem pode até ser criticado como procedimento que busca
sustentar uma tese, [pg. 66] mas isso leva Perelman, quando
se refere à estratégia muito utilizada no Direito, a afirmar:
Mas não é uma ilusão deplorável crer que os juristas se ocupam
unicamente com a verdade, e não com justiça nem com paz
social? Ora, a busca da justiça, a manutenção de uma ordem
eqüitativa, da confiança social, não podem deixar de lado as
considerações fundamentadas na existência de uma tradição
jurídica, a qual se manifesta tanto na doutrina quanto na
jurisprudência. Para atestar a existência de semelhante
tradição, o recurso ao argumento de autoridade é inevitável.
(Op. cit., p. 349)
A citação, contudo, não serve apenas para valer-se do
prestígio de outrem mas também pode ter por objetivo
desautorizar e desvalorizar determinados argumentos de
alguém a quem se busque imputar uma falta de autoridade: a
técnica pode, pois, tanto servir para reforçar como desvalorizar
uma atividade argumentativa e requer, por isso, que o indivíduo
citante saiba não só interpretar mas também avaliar corre-
tamente as valorizações sociais das falas ou linguagens, fazer os
recortes convenientes e integrá-los de modo a que eles
produzam os melhores efeitos.
Para Maingueneau (1989), “Aí reside toda a ambigüidade
do distanciamento: o locutor citado aparece, ao mesmo tempo,
como o não-eu, em relação ao qual o locutor se delimita, e como
‘autoridade’ que protege a asserção. Pode-se tanto dizer que ‘o
que enuncio é verdade porque não sou eu que o digo’, quanto o
contrário”, (p. 86)11.
11 Além dos trabalhos de Maingueneau, existem inúmeros outros estudos interessantes (BAKHTIN, 1986, por exemplo) que se ocupam dessa relação entre uma fala citante e outra citada, o que deve ser entendido como sinal de que as formas e os efeitos são variados e ricos.
O recurso da citação, no Direito, busca — quase sempre —
trabalhar com a exemplificação: toma-se um julgamento já
ocorrido como orientação para a interpretação e avaliação duma
nova situação. Isso pode ser interessante até o limite em que se
puder sustentar que a distância histórica não torna imprópria a
comparação dos dois momentos e, por isso, será problemático,
por exemplo, considerar uma jurisprudência sempre atualizada,
em especial, quando se sabe que houve época em que a defesa
de alguns tipos de crimes acolhia a justificativa de crime contra
a honra masculina. Ou seja, as interpretações e os julgamentos
dos fatos não são [pg. 67] estáticos e, por isso, nem sempre a
citação auxilia o argumentador na produção da versão e na
sustentação da tese.
4.19 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO ENTRE ATO E
ESSÊNCIA
Um modo de explicar (ou de interpretar) a realidade busca
associar e explicar fatos particulares como manifestações de
uma essência, como se determinados acontecimentos
pudessem ser agrupados a partir de uma semelhança ou um
ponto comum. Isso pode servir de base, especialmente na
argumentação jurídica — onde a essência equivale ao que é
considerado normal e legal — para construir, por exemplo, a
noção de que o delito se opõe a uma essência, ou é um abuso
que se faz contra ela: o que é normal é de acordo com a
essência, e o delito é um abuso porque coloca-se contra o
normal.
Na verdade, a pressuposição que dá lugar a essa técnica
argumentativa pode também servir à utilização duma estratégia
mistificadora, como se poderá observar no próximo capítulo.
4.20 O ARGUMENTO DO EXEMPLO
O exemplo é um argumento, mas não uma prova: é um
recurso para sustentar uma tese, especialmente na construção
de uma generalização e, “Seja qual for a maneira pela qual o
exemplo é apresentado, em qualquer área que se desenvolva a
argumentação, o exemplo invocado deverá, para ser tomado
como tal, usufruir estatuto de fato, pelo menos provisoriamente;
a grande vantagem de sua utilização é dirigir a atenção a esse
estatuto”. (PERELMAN, 1996a, p. 402)
O estatuto, pois, do argumento do exemplo deve-se a uma
pressuposição, ou seja, a que diz que, para os exemplos
conduzirem a uma generalização convincente, é preciso que
eles suportem, além de uma vinculação estreita entre si, a idéia
de que da generalização que eles possibilitam se pode extrair
uma verdade.
A generalização é, pois, um processo em que o
argumentador, valendo-se de versões (sentidos) de fatos e
situações particulares, constrói uma idéia geral, como se,
através desse processo, pudesse alcançar uma verdade
irrefutável. Em outros termos, ela é o processo que agrupa
várias [pg. 68] singularidades numa categoria mais ampla e
geral, para o que elimina, por abstração, os traços
singularizantes e mantém apenas os traços genéricos.
Embora no raciocínio formal isso até possa ser admitido,
na prática jurídica a generalização assume enormes riscos, pois
ela se realiza em função da heterogeneidade social: como
superar o conflito dos inúmeros sistemas de referência sem
incorrer num processo de hierarquização e valoração dos
segmentos sociais — vale dizer, acionar o processo ideológico?
Como recurso, numa disputa jurídica, pode, contudo, a
generalização apresentar — especialmente se o argumentador
fizer corretas avaliações do auditório — efeitos favoráveis
porque,
Em direito, notadamente, enquanto se reserva às vezes o nome
de precedente à primeira decisão tomada segundo certa
interpretação à lei, o alcance desse julgamento pode só ser
depreendido aos poucos, depois de decisões posteriores. Assim,
o fato de contentar-se com um único exemplo na argumentação
parece indicar que não se percebe nenhuma dúvida quanto ao
modo de generalizar. (Op. cit., p. 404)
Isso quer dizer que a maior dificuldade da exemplificação
diz respeito ao trabalho com a linguagem: os sentidos extraídos
dos exemplos devem servir à aprovação da generalização
proposta, o que, em qualquer raciocínio e, sobremodo no
Direito, é fundamental.
4.21 O ARGUMENTO DA ILUSTRAÇÃO
Diferente do argumento do exemplo, onde se busca
agrupar diferentes versões de fatos de modo a construir uma
regra, a técnica da ilustração tem a função de reforçar a adesão
a uma regra conhecida e já aceita — escolhida como referência
para a sustentação duma tese.
A atividade consiste em enriquecer o que resultou dum
processo de generalização com a exposição de fotos, filmes,
gravações, quadros etc. que não só esclarecem a regra mas
também demonstram a sua aplicabilidade, o que leva a que se
considere a ilustração um tipo de argumento. [pg. 69]
O argumento da ilustração pode até ser duvidoso, mas, ao
impressionar a imaginação, provoca efeitos de convencimento
muito fortes, porquanto oferece singularidades ilustrativas, isto
é, elementos de reforço a concepções ou regras que já
pertencem ao instituto social.
Para finalizar, é preciso ter claro que, apesar da força e
da diversidade de argumentos, só eles não garantem a adesão
do auditório a teses e o acolhimento de justificativas que as
decisões e as sentenças exigem no Direito: há, ainda, um outro
conjunto de atividades que o argumentador precisa realizar, e
que dizem respeito a preencher as condições necessárias para
que a argumentação possa realizar-se enquanto interação, e,
assim, possam ser produzidos os efeitos desejados. É preciso,
abordar, neste momento, as estratégias de argumentação
entendidas como estratégias de interação. [pg. 70]
5
ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS
Todo ato de fala — e, por isso, também a argumentação —
pode ser entendido como uma atividade interativa porque
envolve ações diferenciadas, mas interdependentes, de um
enunciante e de um auditório. Em outros termos, na interação, a
cada ação corresponde uma reação, o que implica dizer que, em
grande parte, as ações de quem fala são determinadas pelas
reações efetivas ou prováveis do auditório, embora não se deva
desconsiderar os privilégios de delimitação dos sentidos de que
usufrui o enunciante: ele dispõe de espaço e tempo para alocar
inúmeros recursos, sejam eles lingüísticos, discursivos ou
lógicos, para orientar e influir na produção dos sentidos que lhe
interessa fixar como válidos. E como há objetivos e/ou
interesses envolvidos na argumentação, cabe imaginar disputas
e confrontos, o que implica falar em estratégias
argumentativas, entendidas como procedimentos que podem
facilitar o convencimento e a adesão.
Nestes termos, a crítica que Sampaio Ferraz Jr. (1997) faz a
Perelman, dizendo que a argumentação jurídica, assim como é
abordada por ele, dá a falsa impressão de que todos os efeitos
do ato argumentativo parecem se originar da atividade do
enunciante, é pertinente: é preciso considerar a argumentação
jurídica um processo que, embora mantenha semelhanças com
outros processos interativos, tem peculiaridades que a
diferenciam dos demais tipos de interações.
Conceber a argumentação jurídica como interação resulta
numa compreensão mais ampla não só do processo em si, mas
também, da especificidade da atividade, porquanto o
enunciante obrigatoriamente devera dar atenção especial não
ao interlocutor com quem faz as alternâncias de atividade, mas
a um terceiro elemento a quem caberá recolher das [pg. 71]
atividades dos primeiros dois atores os elementos necessários
para a formulação da sentença.
Assim, em primeiro lugar, é preciso considerar que o
enunciante atua orientado por um sistema de referência que
tem dimensões sociais, sim, mas também individuais, motivo
por que é único. Através dele produzir-se-ão, pois, sentidos que,
embora tenham marcas das determinações sociais, têm
dimensões pessoais e singulares.
O auditório, por sua vez, no momento em que se apropria
do que é enunciado, processa os enunciados com sistemas de
referência próprios e únicos, o que implica retomar o que se
disse sobre a heterogeneidade lingüística: em qualquer tipo de
interação discursiva é preciso atuar sobre a diversidade para
que haja uma aproximação dos sistemas de referência e, com
isso, o ato obtenha sucesso.
Outrossim, é imprescindível lembrar o que se disse sobre a
importância do contexto na determinação das interpretações
possíveis: qualquer tipo de interação requer dos participantes
produção e/ou conhecimento do contexto em que se dará o ato.
Ora, como os sistemas de referência apresentam sempre
dimensões sociais e individuais, a argumentação precisa, em
todas as suas etapas, considerar também os dois níveis do
contexto em que se vai dar a interação: no plano imediato
tornar-se-á em consideração o auditório, e no mediato, o
universo social, o que quer dizer que as estratégias
argumentativas deverão atuar não apenas sobre a diversidade
individual mas também sobre o horizonte mais amplo em que se
inscrevem as ideologias que têm, como vertente, os conflitos
sociais.
Em outros termos, o que se disse implica incluir também
os valores sociais no contexto em que se dão as interações, o
que leva a que tanto o enunciante como o auditório realizem
suas ações sempre valorizadas dentro do que determinado
segmento social considera aceitável e verossímil.
Por isso, não só nas verbalizações da interação
argumentativa instalam-se, manifestações ou sinais de
posicionamentos ideológicos e de julgamento, mas também nas
interpretações do auditório, conforme se pode encontrar no
texto de Bakhtin que diz: “Toda a essência da apreensão
apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser
ideologicamente significativo tem sua expressão do discurso
interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um
ser mudo, privado de palavra, mas, ao contrário, um ser cheio
de palavras interiores”. (BAKHTIN, 1986, p. 147) [pg. 72]
Compreende-se, pois, baseado em Bakhtin, que o sistema
de referência do indivíduo também se apropria do contexto mais
amplo — o ideológico, por exemplo — dentro de cujos limites
orientadores se realizam as interpretações e as avaliações que,
por sua vez, destacam a importância de determinadas
estratégias de atuação no processo interativo: elas. diante do
conflito de sistemas de referência, precisam desobstruir
obstáculos e construir pontes onde os indivíduos se encontram e
precisam conviver com as suas diferenças.
Desse modo, se se considerar a heterogeneidade de
sentidos como uma das vertentes dos conflitos sociais,
compreende-se por que tudo que se diz implica, de certa forma,
a obrigação de ter credibilidade ou de ser possível de ser
provado, o que, na argumentação jurídica, é fundamental
porquanto se tem como objetivo a adesão do auditório.
Quando se trata da argumentação jurídica, pois, a questão
da heterogeneidade de sentidos e a necessidade de provar
criam para o processo interativo dimensões bem específicas, já
que o ritual prevê a oposição de versões, na presunção de que,
dessa oposição, se possam retirar os elementos suficientes para
formular uma sentença que promova a justiça, o que,
evidentemente, representa maiores complexidades — pelos
efeitos que produz — do que ocorre em qualquer outro tipo de
interação.
Aliás, a própria expressão promover a justiça, pela
heterogeneidade de sentidos que comporta, dimensiona as
complexidades: se, nas situações comunicativas em geral, há
uma espécie de negociação de sentidos, na interação jurídica os
sentidos se opõem por determinação do ritual e as diferenças
que apresentam entre si não devem ser minimizadas, mas
garantidas para que o distanciamento possa abrir um leque de
alternativas e, assim, melhores condições da promoção de
justiça.
Sampaio Ferraz Jr. (1997) qualifica toda a questão que
acolhe alternativas como um dubium, dizendo:
Qualificar uma questão como dubium significa, pois, concebê-la
como complexidade, isto é, possibilidades em alternativa,
variação, ausência de consenso. Essa complexidade,
entretanto, ocorre apenas em relação a uma conexão
compreensiva já existente, mas que, dada a participação do
ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre um
leque de soluções. (p. 17)
Isso quer dizer que as alternativas, na produção da
sentença que resulta da interação argumentativa, não são em
número infinito: as teses [pg. 73] não só podem ser
questionadas como também podem ser consideradas
inadequadas, impróprias, improcedentes, fora do imaginário
social etc., o que permite entender que tudo isso,
(...) faz da situação comunicativa jurídica uma relação insegura
e instável. Essa insegurança e instabilidade é incômoda e tende
a ser reduzida. O discurso jurídico revela-se, assim, como um
instrumento básico dessa redução. Por meio dele são
estabelecidas as regras do tipo ‘se você puxar da espada eu
também puxo’, que vão, então, regular os comportamentos
permitidos. Essas regras permitem que as partes estabeleçam
entre si modalidades diversas de ação e reação em termos de
que toda ação lingüística é questionável, mas, ao mesmo
tempo, garantem que isso possa ocorrei: (FERRAZ JR., 1997, p.
62)
O Direito, pois, promove e garante o contraditório, ou seja,
a diversidade de sentidos não é um obstáculo, no processo
interativo, mas uma condição de promoção da justiça. E isso é
peculiar da interação jurídica: as partes que representam o
conflito não atuam uma para a outra, mas têm sua atenção
voltada, enquanto atuam, para um terceiro elemento — aquele
a quem caberá a produção da sentença.
O que se diz aqui é que, diferente do que ocorre nas
interações discursivas que visam à informação e à comunicação,
na argumentação jurídica, as regras prevêem alternância nos
turnos de atuação das partes, onde as ações e as reações têm
objetivos bem precisos e peculiares: ao enunciante não
interessa conseguir a adesão de seu interlocutor direto (o
defensor da outra parte envolvida no conflito), mas da parte do
auditório que não participa na alternância dos turnos de
argumentação. É esse auditório — que não manifesta, no
primeiro momento do ritual, as suas reações — que requer a
atenção especial e cuidadosa, precisamente porque é ele quase
que só escuta, pois o resultado de suas reações apenas se mani-
festa no ato da produção da sentença.
Em outros termos, o recurso aos modelos lógicos, se pode
ser considerado imprescindível à estruturação do raciocínio
jurídico, não e, contudo, suficiente para garantir o sucesso da
argumentação: porque o ato argumentativo é interação
discursiva, faz-se necessário destacar a importância de alguns
procedimentos — entre os quais se incluem a avaliação, a
adaptação, a persuasão e a sedução — que uma interação
requer para ser bem-sucedida.
Interessa, pois, considerar, como parte mais importante da
interação jurídica, o auditório, esse terceiro elemento, embora
não se deva, [pg. 74] evidentemente, perder de vista o
adversário, pois é dele que partem os atos que visam a fragilizar
as teses e os argumentos apresentados.
Ora, isso representa a necessidade de se considerar como
estratégias uma série de atividades que antecedem a
argumentação propriamente dita, pois o enunciante não pode
desconhecer
(...) uma constelação de relacionamentos em que as táticas do
discurso configuram estratégias por meio das quais cada parte
está obrigada não só a levar em conta a estratégia da outra
mas também a planejar o seu comportamento, não apenas em
função de cada procedimento singular, mas, sobretudo, em
função de procedimentos futuros. (FERRAZ JR.. 1997, p. 66)
Enfim, parece útil para o estudioso, pelos motivos
expostos, abordar a argumentação jurídica também como
interação, mormente, conforme Sampaio Ferraz Jr.
Quando nos perguntamos em que sentido, de que modo e em
que limites a participação dos diversos interessados na
discussão jurídica ocorre, parece-nos inadmissível que, em
referência a qualquer deles, trate-se de juizes, advogados,
funcionários administrativos, cidadãos em geral etc., aquela
participação seja, em princípio, a de um ouvinte passivo.
Concepções dessa espécie, se é que são ainda radicalmente
defendidas, constituem uma constante ilusão. (1997, p. 68)
Em resumo:
A atividade argumentativa só é possível porque há, como
conseqüência da heterogeneidade social, múltiplos sistemas de
referência que podem conduzir a diferentes interpretações que
geram as diferenças de sentido.
Considerando que há diferenças de interpretação e, por
isso, de sentidos, tanto de ordem pessoal como de, social, que,
por um lado, constituem o conflito e, por outro, abrem as
possibilidades de se argumentar, é Preciso também levar em
conta que, forçosamente, existirão atividades que antecedem a
argumentação e cujo objetivo é afastar ou minimizar o que
poderia, eventualmente, dificultar o sucesso do ato. Melhor: se o
uso da linguagem tem uma relação muito consistente com o
exercício de um poder, é preciso não só falar em conflito de
sentidos mas também em disputa [pg. 75] pelos procedimentos
e lugares sociais que fixam os sentidos e, por isso, em
avaliações preliminares da situação e das circunstâncias da
disputa.
Conseguir a adesão dos indivíduos e dos grupos sociais a
uma determinada idéia ou tese representa, pois, também a
possibilidade de intervenção na hierarquização de sistemas de
referência, na distribuição de poderes e na valorização
diferenciada de lugares sociais. Argumentar, pois, é uma
interação cuja motivação são as diferenças que resultam de
diferentes sistemas de referência e requer, além de uma
atividade lógica, concebê-la como uma disputa, o que significa
que as dificuldades de convencimento aumentam ou diminuem
de acordo com as proporções do conflito de sistemas de
referência.
Assim, diante do que representa a interação, o
argumentador deve dominar estratégias que não se resumem
apenas a conseguir a atenção do auditório mas que também
dizem respeito à criação duma imagem positiva de si mesmo e à
produção de efeitos que atuem sobre a força dos argumentos
selecionados para a sua atividade.
Todo esse cuidado com as estratégias argumentativas
depende, porém, de avaliações preliminares que resultam de
perguntas como as seguintes:
— quem sou eu para atuar assim?
— quem é meu auditório para que eu atue assim?
— que pensará o meu auditório de mim quando eu atuar
assim?
— que argumentos e artimanhas poderá usar meu
adversário para eu atuar assim?
— quais são as circunstâncias sociais, históricas, culturais
etc. que me levam a atuar assim?
As perguntas, conforme se pode verificar, dizem respeito à
necessidade de se dominar — porque se visa ao sucesso da
atividade — não só aquilo que se diz mas também as estratégias
argumentativas e que correspondem ao “assim” das perguntas,
o que quer dizer que, além dos argumentos, a argumentação faz
do modo como se atua um outro recurso para produzir os efeitos
desejados: são as estratégias argumentativas.
Além disso, as perguntas apontam para a necessidade de o
argumentador conhecer também os sistemas de referência do
auditório, tendo em vista que a sua atividade deve levar em
conta as possíveis diferenças e considerá-las obstáculos a serem
superados. [pg. 76]
Como, porém, descobrir um sistema de referência se ele
não é verbalizado ou denunciado explicitamente?
Se o que se disse em termos de pressão das
determinações sociais sobre o sistema que orienta as
interpretações (e julgamentos) do indivíduo é sustentável, então
a atividade de reconhecimento do auditório obrigatoriamente
deve contemplar uma pesquisa sobre os lugares sociais que os
indivíduos freqüentam e ocupam. Isso deve — se o
argumentador tiver conhecimentos suficientes sobre como são
as condutas sociais nestes espaços — fornecer elementos para
construir os contornos dos sistemas de referência do auditório.
A avaliação ficará enriquecida se houver condições de se
apropriar, eventualmente, dos textos — orais e/ou escritos —
que o auditório produziu, porque a linguagem — pela presença
de determinados conceitos e valores — revela o sistema de
referência do enunciante.
Em outros termos, o argumentador precisa:
— conhecer-se a si próprio, não só no que diz respeito às
capacidades como também, em relação às deficiências.
Outrossim, o argumentador precisa, além de ter os
argumentos apropriados à situação, saber onde e como
atua melhor na atividade de convencer o seu auditório,
o que implica conhecer a sua competência para,
valendo-se da linguagem, produzir os efeitos que
interessam à sustentação;
— fazer uma avaliação correta dos sistemas de referência
dos que compõem o auditório, o que, no caso do
Direito, significa saber avaliar condutas e
procedimentos do juiz, do adversário e dos jurados.
Essa avaliação requer, em especial, ter conhecimentos
sobre as orientações ou as referências dos diferentes
segmentos sociais e que se configuram a partir de
profissão, gênero, raça, religião, idade, costumes,
imaginário social etc.;
— ter capacidade para, feitas as avaliações preliminares,
desobstruir eventuais bloqueios ou obstáculos do
auditório. Em outros termos, o argumentador precisa
dominar procedimentos que possam levar à
aproximação ou à convivência de diferentes sistemas
de referência;
— ter capacidade de prever — até onde for possível — os
argumentos (e também os truques e as artimanhas) de
que poderá se valer o adversário. No caso do Direito,
por exemplo, seria [pg. 77] recomendável — já que
não é possível fazer uma previsão exata de como o
adversário atuará — que o argumentador estivesse
preparado para utilizar diferentes estratégias, de
acordo com o que o embate viesse a exigir em termos
de maior ou menor grau de agressividade ou
ponderação etc.;
— dominar conhecimentos sobre a situação, tanto imediata
como mediata, em que ocorre a argumentação,
precisamente porque as determinações históricas,
sociais e culturais valorizam ora uma, ora outra
estratégia.
O resultado dessas avaliações preliminares — que também
são resultado de processos interpretativos — é, pois,
extremamente importante porque orientará a atividade do
indivíduo em termos de como atuar, contra quem, sobre o que,
para quem e em que circunstâncias.
E isso diz respeito à escolha de estratégias para uma
atuação mais ou menos radicalizadora, mais ou menos
agressiva/concessiva, mais ou menos formal, mais ou menos
emocional etc., na interação.
Essas estratégias, embora todas se valham de recursos
lingüísticos, se diferenciam a partir das avaliações e podem ser
agrupadas como segue:
1. estratégias de contextualização que dizem respeito
à atuação sobre os contextos imediato e mediato que envolvem
a interação;
2. estratégias discursivas que se organizam a partir de
escolhas lingüísticas (itens lexicais, modalizadores e operadores
argumentativos) e de estruturação do discurso para produzir
determinados (e desejados) efeitos de sentido.
5.1 ESTRATÉGIAS (DES)CONTEXTUALIZADORAS
As atividades de contextualização são estratégias que
visam a observar e a construir ou adaptar o contexto que
influenciará a interpretação que fará o auditório do fato em
julgamento. Por isso, a contextualização deverá ser considerada
fundamental à sustentação duma tese, já que, num primeiro
momento, exige-se do argumentador uma atuação voltada
sobre si mesmo, em termos de avaliação das escolhas da versão
do fato, dos argumentos e das estratégias, em relação ao
universo referencial em que se inserirá a argumentação: é a
adaptação do enunciante ao contexto, de modo a que sua
atuação tenha aceitação junto ao auditório. [pg. 78]
A segunda atividade de contextualização ocupa-se com a
preparação do auditório com o propósito de desobstruir e
afastar dificuldades para o sucesso da argumentação.
Outrossim, ao contrário da contextualização, há
procedimentos que propositadamente procuram afastar
elementos do contexto, ou seja, há também estratégias de
descontextualização.
Considerando-se que toda e qualquer versão implica, além
da interpretação do ato, alocar elementos contextualizadores,
existem procedimentos estratégicos que minimizam os efeitos
de versões contrárias aos interesses que defende o
argumentador, contextualizando ou descontextualizando essas
versões, o que se observa freqüentemente nas reportagens
jornalísticas: os recortes e as omissões de elementos do
contexto redesenham o fato e interferem na produção dos
sentidos e seus efeitos.
Na prática jurídica, por exemplo, contextualizar ou
descontextualizar a afirmação de que “João matou uma pessoa”
representa produzir efeitos de sentido absolutamente diferentes
junto ao auditório, isto é, a contextualização pode levar à
interpretação de que o ato foi de legítima defesa e desarmar o
que o enunciado, descontextualizado, produz de efeitos
negativos.
Para compreender, porém, melhor as dimensões do que se
entende por contexto, e, por conseguinte, as estratégias de
contextualização, é preciso lembrar, mais uma vez, que os
sistemas de referência têm determinações que se põem em dois
planos distintos e interdependentes: um, diz do contexto
histórico, social e cultural, e o outro, das dimensões pessoais e
singulares. Tal concepção leva a entender que as atividades
contextualizadoras que realiza o enunciante em função do
auditório também obedecerá a essa dupla dimensão: no plano
imediato, o sistema de referência do argumentador fará as
concessões estratégicas possíveis e, no contexto mediato, a
partir do conhecimento das determinações históricas, sociais e
culturais — e que pressupõe conhecimento da gênese dos
conflitos e das ideologias — demarcará os limites dos universos
possíveis em que poderá se dar a argumentação.
5.1.1 A adaptação do enunciante ao auditório
A primeira estratégia contextualizadora se constrói
tomando como referência a avaliação feita pelo argumentador
sobre como a sua atuação deverá se dar em relação ao
contexto que diz respeito ao universo histórico, social e
referencial do auditório, e visa a, através de uma [pg. 79] série
de procedimentos adaptativos, construir um clima de
confiabilidade e de espontaneidade, ou seja, o argumentador
atuará, preliminarmente, de modo a que a versão do fato e os
argumentos que utilizará na sustentação da tese, encontrem um
contexto favorável em termos de condições de aceitabilidade e
de credibilidade, o que quer dizer que a concretização dos
objetivos do ato interativo só ocorrerá se se conseguir inspirar
credibilidade12 junto ao auditório.
12 A credibilidade de um discurso é uma qualidade desejada e que resulta, primeiro, da coerência entre o que o indivíduo diz e os outros atos seus. Em segundo lugar, a credibilidade do argumentador também depende da clareza e da coerência das referências que orientam todos os seus atos,
incluído o uso da linguagem.
O que se quer enfatizar é que a verossimilhança que deve
dar força à versão que apoiará a tese depende, em grande
parte, da competência do argumentador para construir,
orientando-se pelo referencial que compõe o instituído social de
que o auditório é representante, uma imagem de si que sugira
confiança e seriedade. Em outros termos, o sucesso da
interação argumentativa depende, fundamentalmente, do clima
de confiabilidade em que se realizam as atividades dos
participantes.13
13 A importância do clima de credibilidade que gera uma imagem pode-se observar com mais clareza no processo de sedução, onde o sedutor só consegue aproximar-se de quem deve ser seduzido, se se apresentar como pessoa em que se pode depositar a maior confiança. Os artifícios do sedutor constroem, contudo, uma credibilidade precária, pois, consumada a sedução, acaba o jogo de se fazer passar por merecedor de confiança.
A atividade interativa preparatória visa, enfim, através de
uma série de estratégias, à construção da garantia de que a
proposta das delimitações conceituais das referências
escolhidas pelo enunciante podem ser aceitas porque ele parece
ser confiável e capaz de apresentar provas ou argumentos
convincentes.
Em outros termos, o argumentador deve partir do
pressuposto de que não são quaisquer tipos de interpretação e
de julgamento que serão acolhidos como verossímeis e
aceitáveis, mesmo que os argumentos e a estruturação lógica
do raciocínio sejam irretocáveis do ponto de vista técnico: trata-
se, na argumentação jurídica, de valores gerados pelos
deônticos que fixam o proibido, o permitido e o obrigatório, o
que explica os cuidados iniciais que deve ter o argumentador
tanto com o horizonte histórico e social como, com o auditório
imediato onde, necessariamente se reflete o contexto mediato.
Na verdade, a inobservância dos dois planos de contexto
criará riscos enormes para o argumentador porque poderá
destruir a imagem de [pg. 80] credibilidade e criar bloqueios de
difícil transposição, ou mesmo a rejeição do auditório.
Por exemplo, se, no plano mediato do contexto, o
argumentador não souber avaliar o tipo e as dimensões do
horizonte ideológico que envolve o fato em julgamento, também
não saberá entender as razões por que seus argumentos não
têm acolhida junto ao auditório.
É importante, aqui, lembrar a postura de Bakhtin (1986)
quando afirma que a palavra é “marcada pelo horizonte social
de uma época e de um grupo social determinados” (p. 44),
motivo por que não se pode “separar a ideologia da realidade
material do signo” (p. 44), ou seja, “o sentido da palavra é
totalmente determinado por seu contexto” (p. 106).
Assim, essas estratégias de contextualização que têm por
objetivo principal fazer com que o argumentador tenha
credibilidade comportam, sempre, cuidados de adaptação aos
dois níveis do contexto, mesmo porque a confiança representa
um crédito para a aceitação também de outras estratégias,
além dos argumentos, evidentemente.
Ora, como o modo de argumentação é importante para
maximizar ou minimizar os efeitos dos argumentos
apresentados, entende-se por que se exige competência do
argumentador para a execução das diferentes estratégias de
contextualização: quanto ao contexto mediato, é importante
construir um horizonte conceitual e avaliativo que não se
oponha ao que envolve e determina os sistemas de referência
do auditório — atividade que deverá conduzir-se de modo a que,
por exemplo, as determinações ideológicas que (Cf. BAKHTIN,
1986) se fazem presentes em qualquer tipo de discurso, sejam
minimizadas ao máximo como obstáculo.
Já no plano imediato, uma das estratégias diz que, para
criar a imagem de credibilidade e seriedade, deve, no Direito,
haver o cuidado com a apresentação pessoal: a roupa deve ser
formal e discreta e a aparência geral não deve sugerir desleixo
ou falta de cuidados — aliás, essa é uma orientação
fundamental que faz parte do ethos da prática jurídica.
Além disso, é preferível trabalhar com uma linguagem não
muito agressiva, e onde estejam presentes mais a insinuação, a
reticência, o eufemismo, a moderação etc., porque uma postura
radical e extremada sempre pode dar a entender que o
enunciante é arrogante ou inseguro, e, por isso, suas avaliações
e interpretações não merecem crédito, ou seja, a agressividade
exagerada pode sugerir que ela resulta da incapacidade de
provar. [pg. 81]
É evidente que haverá auditórios, fatos e circunstâncias
que poderão exigir uma imagem de revolta e de radicalização,
quando então é recomendável trabalhar com uma linguagem
recheada de hipérboles.
Outra adaptação que o argumentador deve fazer em
relação ao auditório é a da linguagem, em termos de escolha do
grau de (in)formalidade e registro: não adianta dirigir-se a
alguém se o repertório lingüístico escolhido exige um esforço
demasiado grande, pois poderá haver não só dificuldades de
compreensão como também prejudicará a atenção desejada
pelo enunciante.
E há, ainda, outros aspectos, muitas vezes
desconsiderados e menosprezados, a que o argumentador
precisa dar atenção como, por exemplo, no caso do texto
escrito, a distribuição formal das idéias na folha, a correção
ortográfica e, inclusive, o tipo e a cor do papel, e, na ar-
gumentação oral, a postura corporal tranqüila e firme, a voz que
não seja nem muito baixa, nem tão forte, mas adequada ao
ambiente.
É preciso, enfim, lembrar que, na argumentação oral, os
argumentos terão melhor acolhida quando a sua verbalização
vier acompanhada de uma linguagem corporal que não revele
insegurança ou arrogância, descontrole emocional ou
insensibilidade, ansiedade ou frieza, radicalidade ou indiferença,
timidez ou menosprezo.
Esse cuidado é tão importante que Coelho (1997)
considera a imagem um recurso retórico quando afirma que
É claro que a aparência, por si só, não é garantia de nada, mas
não pode ser ignorada, porque é fator que interfere em
diferentes graus no processo de convencimento jurídico. Um
corpo retórico, que mobilize as emoções do interlocutor no
sentido de fazê-lo assumir pelo menos uma atitude receptiva,
simpática, em relação ao orador: o profissional do direito que
descuida desse aspecto, deixa de manusear importante recurso
retórico. (p. 113)
E, por fim, uma vez afastadas as possíveis rejeições à
imagem do enunciante e ao que ele vai apresentar, uma última
— e importante — condição deve ser, ainda, preenchida: não
exigir do(s) interlocutor(es) mais esforço do que o necessário
para acompanhar e entender o que está sendo exposto. É
preciso, por isso, cuidar da coerência, da coesão e da
congruência do raciocínio.
Esses três aspectos do raciocínio dizem que o
argumentador precisa respeitar o auditório no que se refere à
clareza da argumentação, [pg. 82] para o que, em primeiro
lugar, deve ter convicções claras, oriundas de referências
aceitáveis e de atividades interpretativas apropriadas e bem
conduzidas (do fato, das provas etc.) Em outros termos, é muito
difícil alguém receber a atenção do auditório sem ser e parecer
confiável e sem ele próprio estar convicto do que está
afirmando, o que também quer dizer que, se a primeira
estratégia for bem executada, a que busca preparar o auditório
fica bastante facilitada.
5.1.2 A preparação do auditório
Outro tipo de contextualização refere-se aos
procedimentos que têm por objetivo preparar o auditório e que
precisam traduzir uma competência para desconstruir bloqueios
e dificuldades que as diferenças referenciais poderiam produzir.
Isso quer dizer que deverão ser utilizadas diferentes
estratégias para aproximar os sistemas de referência — incluída
a ideologia — do argumentador e do auditório, ou então, quando
essa aproximação for impossível, para construir um acordo
sobre os limites conceituais do universo referencial. O
argumentador pode controlar, dessa forma, eventuais reações
negativas em relação tanto ao raciocínio e aos argumentos
escolhidos, como ao modo de apresentá-los, precisamente
porque as diferenças referenciais foram trabalhadas.
Cabe, então, ao argumentador, em primeiro lugar, a
dificílima tarefa de, se não desideologizar o problema, ao menos
minimizar os bloqueios dessa ordem. Isso se refere à atuação
sobre o contexto mediato (ou circunstâncias sociais, históricas e
culturais), e envolve, necessariamente, abordar questões
polêmicas como racismo, machismo, radicalismos religiosos,
relações entre capital e trabalho etc.
Já que se trata, aqui, de temas polêmicos, origem de
grande parte dos conflitos sociais, é recomendável uma
estratégia que não exacerbe os antagonismos que se geram no
confronto ideológico, mas, pelo contrário, que promova, através
da verbalização e da configuração conceitual dos universos
mediatos que se opõem, a compreensão da complexidade e dos
prejuízos que o conflito — ideologizado — traz para ambas as
partes.
Cabe, aqui, lembrar, novamente, a palavra de Coelho
(1997) quando aborda a questão da ideologia:
O profissional do direito não deve renunciar aos seus valores,
adulterar sua ideologia, para tentar convencer o seu
interlocutor. Deve, isto [pg. 83] sim, sopesar o quanto a falta
de identificação ideológica no caso em questão, poderá influir
negativamente no convencimento do interlocutor, para, então,
procurar compensar esse desequilíbrio com outros recursos
retóricos. Em todo caso, é conveniente saber em que terreno se
trava o embate argumentativa. (p. 109)
É preciso, quando o contexto ideológico apresentar
diferenças acentuadas, escolher a melhor estratégia, assim que,
“quando não for possível a identidade ideológica com o
interlocutor, o orador pode procurar neutralizar a ideologização
da discussão. Ao contrário, se há condições da identidade
ideológica, o orador deve acentuá-la”. (Op. cit., p. 109)
A atuação sobre as referências do contexto imediato do
auditório faz parte de uma atividade posterior à que se ocupa
com o plano mediato, e vale-se de estratégias que podem
recorrer, por exemplo, ao elogio ou à crítica do instituído, ao uso
da noção de utopia ou o apelo ao pragmático etc., como
procedimentos preparatórios, sempre entendidos como uma
atividade que resulta das avaliações preliminares.
Se se pensar em termos de construção do silogismo
jurídico, os procedimentos de preparação do auditório
conduzem, de certa forma, à construção e à aceitação da
referência — que será premissa maior do silogismo — sob cujas
coordenadas semânticas se conduzirá o raciocínio.
Na verdade, a preparação do auditório corresponde a
estratégias que são interações preliminares onde, embora
também se argumente, o ato a ser julgado propositadamente
não é abordado, pois, sem a contextualização, com certeza, as
versões dele que produziria o auditório seriam tão diversificadas
que, conclusas, representariam dificuldades quase insuperáveis
e irremovíveis.
A atividade que visa à aproximação das referências do
enunciante e do auditório deve, igualmente, ser entendida como
um controle da heterogeneidade referencial e dos sentidos, pois,
é fundamental, para o sucesso da argumentação, que a
parafrasagem e a definição, aliadas a determinadas estratégias
interativas, reduzam as distâncias semânticas.
Há, portanto, atividades interativas preliminares a que o
tipo de interação que é a argumentação jurídica deve dar
atenção, e dentre as quais são interessantes:
1. O elogio ou a crítica ao instituído é uma atividade
indicada, especialmente, para aproximar sistemas de referência
e conseguir a adesão do auditório. [pg. 84]
Antes, porém, de escolher entre o elogio ou a crítica ao
instituído, o argumentador deve conhecer as características do
auditório para, ao elogiar ou criticar, possa dar ênfase às
referências que serão úteis à sua argumentação: as referências,
uma vez trabalhadas de tal forma que passam a ser aceitas pelo
auditório, garantem a coerência da atividade de sustentação.
Assim, por exemplo, abordando o tema da impunidade, é
possível construir os limites conceituais de justiça, que interessa
ao argumentador precisamente porque, no desenvolvimento do
raciocínio, determinada concepção de justiça poderá facilitar a
defesa dos interesses em questão.
2. Uma outra atividade interativa preliminar que pode
facilitar o processo é a abordagem de temas que tenham
relação com o imaginário social em termos de desejos e
interesses: novamente pode haver uma aproximação de
sistemas de referência e a possibilidade de enfatizar aquelas
referências que são consideradas importantes.
A dificuldade reside, contudo, em saber, com uma certa
margem de segurança, que tipo de utopia acolherá o auditório,
já que a heterogeneidade social também conduz à
heterogeneidade de desejos e interesses. Na verdade, o
enunciante, quando recorre à construção duma utopia, trabalha,
de certa forma, ao nível da sedução: primeiro, é necessário
conhecer (ouvir, auscultar, pesquisar) o que diz respeito aos
desejos e interesses do(s) outro(s), para, então, iniciar o
processo de conquista.
Embora se verifique essa dificuldade, no Direito, há um
tema sempre interessante que movimenta desejos e interesses:
é o da promoção de relações sociais justas que possibilitem uma
vida melhor e mais feliz etc. Há, aqui, condições muito boas
para preparar e aproximar diferentes sistemas de referência.
3. A opção por abordar o que é da ordem do pragmático —
com o objetivo de preparar o auditório — é outra estratégia que
requer que o enunciante se ocupe com questões que dizem
respeito ao cotidiano das pessoas, como as que falam de
sucesso, de felicidade e de bem-estar.
Por exemplo, em um julgamento em que a argumentação
se apoiará nas contradições encontradas nos depoimentos,
pode-se discorrer sobre o que significam, no cotidiano das
pessoas as falas contraditórias: deverão ser elas entendidas
como indícios de mentiras, e, por conseguinte, como indícios de
confissão de culpa? [pg. 85]
O que estará em julgamento será, pois, abordado a partir
do resultado da interação que teve o cotidiano como tema, e
que deverá facilitar a argumentação porquanto o argumentador
construiu um acordo referencial com o auditório.
A importância do apelo ao pragmático resulta,
principalmente do interesse e da facilidade com que qualquer
auditório discute temas como sucesso, felicidade, honestidade
etc.
4. A dramatização — porque pode estabelecer um vínculo
emocional com o fato que está sendo analisado — é um
processo interativo de preparação do auditório que, embora
eficiente, requer qualidades do enunciante que envolvem a
capacidade de criação de expectativas, de “suspense”, de
teatralização etc.
Esse recurso tem sua importância porque pode criar
estímulos emocionais e, por isso, condições psicológicas que
favoreçam a interação argumentativa pois,
... parece comprovada a hipótese segundo a qual os jurados
elaboram o seu veredicto não apenas com base nos fatos mas
também (e, por vezes, sobretudo) com base na impressão
causada pelo texto pronunciado por ambas as partes (acusação
e defesa), que funciona como importante estímulo psicológico
ao lado dos demais componentes situacionais como:
questionamento das testemunhas, desempenho dos advogados.
(CORACIN1, 1991, p. 51)
5.2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS
A estratégia discursiva é a que diz respeito à escolha
cuidadosa — pelos efeitos de sentido que produz — tanto dos
elementos da língua, como de determinadas formas de
estruturação do discurso, para que os argumentos selecionados
possam, na interação, ser otimizados, e os contrários,
minimizados.
A língua — porque nela se reflete a heterogeneidade social
— apresenta uma particularidade interessante: as palavras
agregam a seu significado valorações dos diferentes segmentos
sociais, o que vai determinar que elas se organizem em
hierarquias ou escalas de força argumentativa. Ou seja, as
palavras agregam os heterogêneos interesses sociais a seus
sentidos e, por isso, têm a força de produzir efeitos de [pg. 86]
sentido que atuam sobre o auditório de modo a facilitar ou a
dificultar a sua adesão: à escolha da palavra o auditório reagirá
positiva ou negativamente, dependendo dos interesses a ela
ligados e que interferem na interpretação.
Assim, por exemplo, um menino de rua pode ser nomeado
diferentemente, dependendo da pressão de diferentes sistemas
de referência, agrupando-se as palavras designativas, por
exemplo, da seguinte forma:
a) moleque, bandido, mau elemento, marginal etc.; ou
b) menor abandonado, desfavorecido, marginalizado,
inocente etc.
Da mesma forma, alguém pode ser chamado de ladrão ou
cleptomaníaco, dependendo do segmento social a que pertence
e de quem nomeia.
Verifica-se, pois, em primeiro lugar, uma oposição radical
de sistemas de referência e que tem origem no plano mediato
do contexto e diz respeito às diferenças de ordem ideológica: é
uma diferença “horizontal”.
Há, contudo, a possibilidade de organizar as palavras
também numa escala vertical, o que quer dizer que, mesmo
dentro de um mesmo universo ideológico, os sentidos das
palavras têm maior ou menor força de julgamento como se pode
verificar nas disposições seguintes:
a) bandido b) inocente
marginal marginalizado
mau elemento desfavorecido
moleque menor abandonado
A escolha, pois, que faz o enunciante, para nomear quer
seja uma pessoa, um fato ou um objeto, tem força
argumentativa porquanto os efeitos de cada item lexical são
diferenciados e têm força para intervir no convencimento do
interlocutor.14
14 Evidentemente estão incluídas nessas escolhas a possibilidade de recorrer às figuras de linguagem, especialmente à metáfora, à metonímia e à sinédoque, que, contudo, não recebem uma atenção maior no presente trabalho pelo fato de ampliarem demasiadamente os limites em que se pretende abordar a argumentação jurídica. [pg. 87]
Perelman (1996) esclarece, apropriadamente que, “Os
diferentes tipos de objetos de acordo usufruem, como sabemos,
privilégios diferentes. Presume-se que alguns deles se
beneficiam do acordo do auditório universal: são os fatos, as
verdades, as presunções. Outros se beneficiam apenas do
acordo de auditórios particulares: são os valores, as hierarquias,
os lugares”. (p. 203)
Os juízos de valor e, mesmo, sentimentos podem, contudo,
com a utilização de certas estratégias de escolhas lingüísticas,
ser apresentados como juízo de fato, pois
Substituindo a qualificação “mentiroso” por “pessoa com uma
disposição para induzir cientemente em erro”, ter-se-á a
impressão de haver transformado o juízo de valor, no qual
aparece essa qualificação, em juízo de fato, porque o
enunciado, em sua nova forma, parece mais preciso, pois se
insiste em suas condições de verificação. A não-utilização do
termo “mentiroso” salienta, aliás, a intenção de evitar uma
apreciação desfavorável. (Op. cit., p. 204)
O que Perelman está destacando como importante diz
respeito ao que foi dito sobre as avaliações preliminares e a
criação de uma imagem de credibilidade: se o argumentador
escolher itens lexicais que se localizam nos pontos extremos das
escalas, os seus enunciados vão revelar ou uma fragilidade ou
uma agressividade que nem sempre é a indicada para
determinados tipos de auditório, o que faz entender que nem
sempre o ataque é a melhor estratégia. O que decide a adoção
de uma estratégia mais agressiva são as avaliações
preliminares à interação, pois só se pode optar por ir ao ataque
de uma forma mais contundente se há argumentos sólidos e
convincentes à disposição.
Um cuidado, pois, que é preciso ter na construção do
raciocínio jurídico refere-se à escolha das palavras, em especial,
pelo fato de escolher, numa disposição escalar, aquelas que
estão nos pontos extremos representa sempre uma
radicalização que tanto pode levar, quando resultado de uma
interpretação bem conduzida, ao sucesso, como, em função de
uma atividade interpretativa equivocada ou forçada, ao insu-
cesso. Chamar alguém, por exemplo, de marginal no lugar de
errado ou corrupto requer necessariamente graus diferenciados
de provas, pois, a radicalização pode levar ao descrédito e ao
insucesso. Da mesma forma, entender que alguém é um santo
ou um marginalizado exigirá uma atividade intensa de
sustentação. [pg. 88]
5 2.1 A construção de dissociações e a mistificação
Essa estratégia prevê escolhas lingüísticas ou categorias
que determinam uma polarização ou dicotomização em que se
propõe reconhecer apenas os extremos conceituais e
desconsiderar o que é intermediário, como se isso não existisse
ou não fosse importante, ou como se, entre os dois extremos, a
linha divisória fosse sempre nítida e perfeitamente perceptível.
As dissociações são, pois, pares de conceitos que se
constroem em forma de oposição como, por exemplo, aparência
x realidade, natural x cultural, versão x fato etc., pares em que
se imagina poder encontrar elementos para abordar o par
mutável x imutável.
O objetivo, ao utilizar as valorizações de determinados
conceitos como se estivessem ligados ao que é imutável e
verdadeiro, é produzir o efeito da mistificação que consiste em
apresentar uma versão de um fato, sem, todavia, explicar as
referências e os procedimentos que a produziram. O
apagamento ou a omissão da referência protege contra a crítica,
sendo, pois, uma estratégia, e sugere que a revelação do
referencial é desnecessária, como se a versão apresentada
fosse obviamente a única possível.
Desse modo, no caso de se trabalhar a dissociação natural
x cultural, o caráter de imutabilidade — e, por isso, de
verdadeiro — está ligado à natural, e o de transitoriedade, à
cultural: o emprego de qualquer uma das duas categorias, sem
explicar e justificar a escolha, via de regra, caracteriza um
processo de mistificação, ou seja, conseguir fazer passar por
natural um traço ou uma característica humana num julgamento
de um réu, produz efeitos de convencimento muito fortes como,
por exemplo, no caso de um delito em que se analise a
fidelidade do homem e da mulher, trabalhar a idéia de que é
natural o homem ser infiel/polígamo/ promíscuo etc. pode
produzir efeitos que livram o réu de uma série de acusações de
conduta inconveniente.
Outros empregos mistificadores de natural podem ocorrer
em exemplos como É natural haver ricos e pobres ou O estupro
é ato da natureza humana etc.
A dissociação aparência x realidade também pode
confundir Porque se constrói sobre um terreno semântico (ou
teórico) frágil, especialmente quando se sabe que o instrumento
de conhecimento de uma realidade é a linguagem.
Assim, pode-se construir uma defesa do réu a partir da
afirmação de que só na aparência o delito é de responsabilidade
do [pg. 89] indivíduo, pois, na realidade, ele é resultado da
desestruturação da sociedade etc.
O uso da dissociação subjetivo x objetivo igualmente deve
ser considerado um recurso que pode produzir os efeitos
desejados para a sustentação duma tese, precisamente porque
existem diferentes concepções teóricas em relação a ela,
inclusive a que nega a possibilidade de dicotomização: se o
auditório não domina as reflexões teóricas que podem ser feitas
em torno desse par de conceitos, qualquer versão ou argumento
pode ser classificado como subjetivo ou como objetivo,
dependendo dos efeitos benéficos que a escolha produzirá para
a argumentação.
Além dessas dissociações, é fundamental, no Direito, a
dissociação pessoal x social, pelos efeitos que gera no
julgamento de um delito: as responsabilidades do ato cabem a
quem? Em que termos o indivíduo deve ser responsabilizado a
partir de que tipo de concepção de determinação social? Ou
melhor: quanto de um delito é de responsabilidade individual e
quanto cabe à sociedade assumir?15
15 Essa dissociação gera, pois, pela oposição de sistemas de referência, qualificações como “marginal” x ‘“marginalizado”.
Sabendo-se, porém, que nem sempre é fácil distinguir os
limites entre os conceitos que compõem a dissociação, podem,
dependendo da maior ou menor competência do argumentador,
conduzir tanto à adesão a argumentos não necessariamente
verdadeiros (desde que a dissociação consiga produzir o efeito
de confundir o interlocutor) como a bloqueios intransponíveis
(quando a versão é desmistificada).
Outras dissociações são pares como meio x fim, individual
x universal, particular x geral, singular x genérico, linguagem x
realidade — todas potencialmente mistificadoras porque ligadas
às idéias de verdadeiro ou falso.
5.2.2 A mistificação
Outra estratégia interessante — diferente da mistificação
— vale-se da escolha de determinadas expressões cristalizadas
pela repetição insistente, pois, esses enunciados, precisamente
porque estão cristalizados, são aceitos como verdadeiros.
É dessa maneira que expressões como A justiça tarda, mas
não falha, A justiça é cega, O juiz é neutro etc. podem passar
por verdadeiras [pg. 90] porque, pela repetição, se
consolidaram e, por isso, tornaram-se quase imunes à crítica.
São, pois, mitificações que, pelas relações que a linguagem tem
com o exercício de certos poderes, estão ligadas aos interesses
de determinados segmentos sociais e devem ser consideradas
como parte do instituto social.
5.2.3 A implicitação
A estratégia da implicitação configura uma atividade que,
com a escolha de determinadas palavras e estruturações do
discurso, consegue produzir efeitos como, por exemplo, de
ridicularizar e de condenar o sentido (uma tese) ou uma conduta
especialmente quando elas ferem o que está instituído ou o
imaginário social.
O importante a observar é que a implicitação cria um tipo
de cumplicidade entre o argumentador e o auditório, o que pode
representar que uma contrapalavra se veja constrangida a não
poder dar a réplica, porquanto teria que se dirigir não apenas
contra o enunciante mas também contra aqueles que já tenham
estabelecido uma cumplicidade com ele.
1. No caso da ironização, por exemplo, a estratégia
consiste em escolher, para determinado fato, pessoa,
circunstância ou situação, uma palavra cujo sentido é
inadequado. Ao mesmo tempo, porém, que constrói o
inadequado, o enunciante oferece pistas ou sinais de que isso
foi proposital, e o que quis dizer é o oposto.
Serve como exemplo de ironia, classificar alguém como
extremamente honesto ou exemplo de honestidade quando os
termos mais adequados à sua conduta seriam corrupto, ladrão
etc.
A ironização, enfim, envolve a crítica e a ridicularização e,
pelo fato de implicitar e convidar à cumplicidade, é uma
estratégia que agride e, ao mesmo tempo, protege o autor da
agressão (ele sempre pode negar que tenha querido agredir).
2. A pressuposição pode ser considerada uma estratégia
argumentativa porque caracteriza um sentido implícito
obrigatório que certas expressões lingüísticas agregam, ou seja,
para que determinadas Palavras possam ser empregadas devem
estar preenchidas condições sem as quais se criam confusões e
mal-entendidos. Essas condições são chamadas de
pressuposições cujo alcance para produzir efeitos pode ser
observado, especialmente, quando, num interrogatório (num
inquérito, por exemplo), forem exigidas respostas em termos de
sim ou [pg. 91] não16: à pergunta Você deixou de bater na
mulher! está pressuposto de que o interrogado bateu em algum
momento e, por isso, tanto o sim como o não confirmam a
pressuposição, mesmo que a agressão sugerida nunca tenha
ocorrido.
16 Na verdade, a limitação das respostas a “sim” ou “não” deve ser considerada uma intervenção redutora do contexto, ou seja, a descontextualização do fato significa um controle da produção dos sentidos e interfere profundamente nas condições de julgamento.
São, pois, certos verbos, como deixar, parar, continuar etc.
que implicitam sentidos obrigatórios que o argumentador pode
utilizar para produzir os efeitos de sentido que ajudam a
sustentar a sua tese.
Segundo Koch (1992), os verbos que indicam
pressuposição podem ser organizados em 3 grupos:
1. “verbos que indicam mudança ou permanência de
estado, como ficar, começar, deixar de, continuar,
permanecer etc.”.
Assim, João deixou de bater na mulher pressupõe que ele
batia, assim como João começou a bater na mulher pressupõe
que antes ele não batia.
2. “Verbos denominados ‘factivos’, isto é, que são
complementados pela enunciação de um fato (...) como
lamentar, lastimar, sentir etc.”.
Assim, Lamento que João tenha batido na mulher
pressupõe que João bateu na mulher e em Sabia que João bate
na mulher pressupõe que seja verdadeira a informação de que
João bate na mulher.
3. A implicação é uma forma diferente da ironia e da
pressuposição, embora também possa agredir e, por isso, atingir
e (de)formar a imagem de alguém ou o dito de outrem através
de um conjunto de palavras que não poderão ser — como nos
dois outros tipos — consideradas inadequadas ou condições
necessárias, mas que, pela manipulação hábil podem produzir
efeitos devastadores. É, pois, uma estratégia que não se apóia
em sentidos subentendidos, mas na armação de uma lógica de
conseqüências possíveis que o emprego de determinada palavra
ou expressão pode gerar.
Assim, um enunciado como João é um sábio implica que a
sua conduta não deverá apresentar nada que negue o sentido
de sábio, o que, na prática jurídica, pode ocorrer com
enunciados como João é uma pessoa de conduta ilibada etc.
[pg. 92]
4. A insinuação deve ser entendida como uma outra
importante forma de deformar sentidos sem que o
argumentador se exponha à contrapalavra, pois, de forma
ardilosa escolhe sentidos que não são nem inadequados, nem
pressupostos, nem implicações, mas que funcionam como
sugestões ou suspeitas, e até como indícios, como se pode ver
em Voese (1998):
Um exemplo de como, aparentando manter o compromisso com
a informação verdadeira, a imprensa não deixa de incluir um
julgamento nos seus textos (mesmo nos de aparência mais
inocente) é uma nota publicada em uma coluna de um jornal
brasileiro, na época em que P. C. Farias (personagem do
processo de cassação do mandato do presidente Fernando
Collor) estava foragido no exterior e a polícia brasileira tinha
dificuldades em localizá-lo. Dizia a nota:
(O SOL QUE NOS PROTEGE. PC EVITE O CARIBE. O chefe da
Interpol no Brasil, Edson Oliveira, e o vice-presidente mundial
da Interpol, Romeu Tuma, participam de um congresso do órgão
em Aruba. Estão no Hotel América. Aquele que tem um
cassino.)
Aparentemente, o texto poderia remeter à idéia de tentar
construir algo como uma brincadeira, (...) a seleção e a
disposição das informações em relação aos personagens
citados cria [porém] um efeito que não tem nada de inocente.
(p. 25)
A insinuação é como que construída por acaso, e, por isso,
permite uma certa proteção para quem a formulou, pois quem
explicita os sentidos que produzirão efeitos argumentativos é o
auditório.
5. A implicitação oral e a escrita dizem respeito não à
escolha de elementos lingüísticos ou discursivos, mas à
alocação de recursos ou da oralidade ou da escrita, e que
interferem na produção de sentidos e seus efeitos.
Na fala, os enunciados apresentam entoações ou
seqüências de entoações que são padronizadas e correspondem
a uma certa tipologia. A quebra, porém, desses padrões
entonacionais das frases pode introduzir sentidos implícitos que
se tornam importantes na argumentação como se pode verificar
em Ele disse que não é corrupto.
No padrão de frase conclusiva, observa-se um aclive de
tom, seguido de queda onde ele tem tom baixo. Modificando a
entoação e pronunciando ele com tom alto, pode-se estar
dizendo que a afirmação de inocência é só do personagem e não
é acolhida por quem diz “Ele disse que...”. [pg. 93]
Outrossim, escolhendo, alternadamente, o tom alto (que
produz o destaque) para as outras palavras, o sentido que se
implícita varia a cada vez.
A escrita, para poder produzir tais efeitos de implicitação,
vale-se de recursos gráficos como o negrito, as aspas, o itálico,
o sublinhar, as maiúsculas etc.
5.2.4 A impessoalização
A impessoalização é uma estratégia argumentativa que
procede à escolha de itens lexicais indefinidos ou genéricos para
referir-se a determinados indivíduos, e pode produzir efeitos de
sentido capazes de levar a duas conseqüências distintas:
a) quando o enunciante se esconde sob o uso da terceira
pessoa, cria-se a idéia de impessoalização e, por isso,
um efeito de indefinição e de neutralidade que protege
contra uma réplica;
b) quando o enunciante se refere a um oponente através
de expressões como ele, essa gente, certos indivíduos
etc., produz-se um outro tipo de efeito — o de
desvalorização do interlocutor: se o indivíduo não é
identificado é porque não o merece.
Dois exemplos podem explicar a força da estratégia da
impessoalização:
a. Dizem que João foi visto cometendo o crime.
b. A sociedade sempre soube lidar com essa gente.
5.2.5 A vaguezização (ou a ambigüização)
A estratégia que visa a dar um caráter de vaguidade,
ambigüidade ou de indefinição (ou seja, explorar e exacerbar
uma característica da linguagem) a um enunciado pode criar
fortes efeitos, em termos de suspeição e de desconfiança em
relação a fatos e pessoas, ou se prestar à defesa de interesses
específicos. A estratégia pode consolidar a posição do
enunciante e conduzir à adesão do auditório, como se pode
observar, por exemplo, quando se cita de forma vaga a origem
dos recursos que sustentam o movimento dos sem-terra: O
MST... recebe contribuições do Brasil e do exterior. [pg. 94]
Ora, Brasil e exterior não são itens lexicais que fornecem
uma localização precisa quanto à origem das contribuições,
pois, com certeza, não é o Estado brasileiro, nem nações
estrangeiras que sustentam o movimento: a afirmação sugere,
assim, que as fontes não são bem conhecidas porque não há
intenção de revelá-las etc.
A vaguidade da informação quanto à origem dos recursos
financeiros que mantêm o MST pode, pois, levantar suspeitas
até mesmo de ilegalidade a depender do contexto histórico e
social em que o enunciado é produzido.
Da mesma forma, com enunciados como Todos têm direito
à propriedade, o argumentador pode valer-se da ambigüidade
para manipular os efeitos de vaguidade em defesa de interesses
de grupos sociais que ou já têm propriedade ou pretendem ter.
5.2.6 A generalização
O processo de generalização ocorre tanto nos limites das
atividades corriqueiras do cotidiano como nos procedimentos
científicos, e tem o objetivo de fixar, através do processo de
abstração, o que é de caráter geral nas individualidades, ou
seja, a generalização desconsidera o que é singular e leva em
conta apenas o que é comum ou geral.
A generalização permite o estabelecimento de regras e
normas de conduta ou de leis de funcionamento da realidade
em que vive o homem, de modo que encontrar os traços gerais
que as individualidades têm em comum representa uma
possibilidade de conhecimento e de organização social.
Nas ciências naturais e matemáticas há controles rígidos
dos procedimentos de generalização, o que não ocorre, contudo,
no cotidiano e é difícil de estabelecer em práticas que não se
ocupam com a demonstração de verdades, como é o caso, por
exemplo, do Direito.
Por esse motivo, a generalização, pelos efeitos de verdade
que produz junto ao auditório, é uma estratégia que precisa ser
observada com atenção, pois, se no Direito não se visa à
demonstração de verdades, mas, à produção de justificativas e
de sentenças, encontrar generalidades torna-se uma tarefa
extremamente complexa.
E, devido a essa complexidade de se garantir como
verdadeira uma generalização, ela se presta a funcionar como
recurso para produzir efeitos de adesão e, se objetiva pela
presença de palavras como todos, [pg. 95] tudo, ninguém,
nada etc. Isso faz que, especialmente no silogismo, o raciocínio
se apóie em enunciados como Todos são iguais perante a lei,
Todos os políticos são corruptos, Todos os homens são infiéis,
Nada recomenda o réu etc.
Quando se trata, pois, de generalizações de valores, a
atividade se dá no plano ideológico e não, lógico, porquanto se
sabe que os sistemas de referência que circulam na sociedade
produzem a diversidade de valores que os segmentos sociais
buscam homogeneizar através das ideologias.
E, nesse caso, o que determina a aceitação das
generalizações é a credibilidade ou a autoridade do
argumentador. Isso reforça a importância das estratégias
interativas e, por outro, mostra a complexidade da prática
jurídica em promover a justiça quando atua sempre no limite
das determinações ideológicas.
5.2.7 A higienização
A heterogeneidade de sistemas de referência se reflete na
estrutura da língua de modo que a realidade sempre pode ser
nomeada de diversas maneiras, nenhuma das quais deve ser
considerada neutra, mas sempre comprometida com um
julgamento positivo ou negativo.
É essa característica da língua que se presta a que
determinadas escolhas possam produzir uma versão mais
amena ou higienizada de um fato.
Um enunciado, como, por exemplo, Cumprir ordens, pode,
aparentemente, não ter nenhum poder de influenciar uma
posição ou um ponto de vista de alguém. Produzido, porém, em
função de minimizar a responsabilidade de alguém que matou
em determinadas circunstâncias, o enunciado higieniza o fato e,
por isso, não deve ser desconsiderado como uma importante
estratégia argumentativa.
A escolha de enunciados como cumprir ordens ou agir em
nome da lei pode, em determinadas circunstâncias, silenciar
outras, como, por exemplo, assassinar, violentar, torturar,
abusar de autoridade etc.
5.2.8 A inclusão do ponto de vista do argumentador
Há, ainda, na língua, recursos que permitem a inclusão
sutil do julgamento do argumentador, o que pode não parecer
importante, [pg. 96] mas, considerando que o enunciante
usufrua de uma imagem de credibilidade, o conhecimento de
seu ponto de vista influenciará a adesão do auditório.
É preciso lembrar, aqui, que, quando alguém inspira
confiança ou se reveste de autoridade, a exposição de seus
pontos de vista atua ao nível de uma produção de argumentos
como se pode verificar no capítulo das técnicas argumentativas.
Manifesta-se, pois, assim, em algumas escolhas
lingüísticas, a posição do argumentador, ou seja, a certeza, a
probabilidade ou a dúvida do enunciante, uma vez verbalizadas,
podem direcionar ou influenciar o julgamento do auditório.
Os exemplos seguintes revelam posições diversas do
enunciante a respeito da inocência de João:
a) É necessário considerar João inocente.
b) É possível considerar João inocente.
c) É certo que João é inocente.
d) É provável que João seja inocente.
Um caso interessante ocorre com o verbo dever, cujo
emprego tanto pode remeter a é necessário como a é provável
em:
a) João deve ser considerado inocente.
Também com o verbo poder ocorre uma orientação
ambígua, como, por exemplo, em João pode ser considerado
inocente. O enunciado tanto acolhe a idéia de é possível como a
de é facultativo.
Uma outra forma de produzir efeitos que sugerem o ponto
de vista do argumentador diz respeito à escolha do tempo dos
verbos: o presente e o futuro do presente sugerem que o
enunciante se compromete com o que diz, ou seja, tem
segurança para assumir como verdadeiro o enunciado
produzido. O efeito que o uso do presente (ou do futuro do
presente) produz pode ser observado confrontando João
deve(rá) ser considerado inocente com João deveria ser
considerado inocente ou Se João devesse ser considerado
inocente...: no primeiro exemplo, perpassa a idéia de certeza do
enunciante e, nos outros, a de dúvida.
A escolha, pois, de verbos e tempo/modo é
importantíssima por vários motivos: a) os verbos ser e estar, no
presente e no futuro, dão uma [pg. 97] idéia de
inquestionabilidade ao enunciado. Conduzem, pois, a uma argu-
mentação agressiva e contundente. Utilizados, porém, em
afirmações questionáveis e discutíveis, produzem um efeito
contrário: a argumentação, devido à radicalização da
modalização, torna-se frágil; b) a escolha de uma modalização
menos extremada ou mais concessiva — por exemplo, com o
verbo poder ou outro tempo/modo para ser e estar — pode
significar uma argumentação não tão contundente, mas
ampliará as possibilidades de negociação como poderia requerer
um caso como o da fixação de atenuantes para um delito, por
exemplo.
Se a inclusão do ponto de vista do argumentador — com
uma imagem de credibilidade, convém lembrar — é uma
estratégia importante, maiores efeitos podem realizar as
escolhas que, além dum julgamento, apontam para sentimentos
e emoções.
A estratégia, então, se situa no plano emocional ou
psicológico quando se fazem presentes palavras como
lamentavelmente, (in)felizmente, incrivelmente e semelhantes.
5.2.9 A (des)focalização de argumentos
Focalizar, através da alocação de recursos lingüísticos e
discursivos, os argumentos que interessam à sustentação duma
tese é uma outra estratégia que deve merecer toda a atenção,
mesmo porque, segundo Perelman,
Quando dispomos de certo número de dados, oferecem-se-nos
amplas possibilidades quanto aos vínculos que estabeleceremos
entre eles. O problema da coordenação ou da subordinação dos
elementos se prende em geral à hierarquia dos valores aceitos;
todavia, no âmbito dessas hierarquias de valores, podemos
formular ligações entre os elementos do discurso que
modificarão consideravelmente as premissas: operamos entre
esses vínculos possíveis uma escolha tão importante como a
que operamos pela classificação ou pela qualificação.
(PERELMAN, 1996a, p.176)
Efetivamente há determinados elementos da gramática da
língua que têm a capacidade de indicar o argumento que deverá
ter predominância sobre outros, ou, então, auxiliar o
argumentador na condução da sua atividade de construção e
sustentação de uma tese: é o que ocorre com o efeito da
(des)focalização que corresponde à estratégia de [pg. 98]
maximizar um argumento e, ao mesmo tempo, minimizar um
outro. Neste caso, atua-se com operadores que contrapõem
argumentos orientados para conclusões contrárias: mas
(porém, contudo, todavia etc.)
Exemplo: João matou, mas foi em legítima defesa. No
enunciado, o mas opera minimizando a força de João matou e
maximiza foi em legítima defesa. Da mesma forma, em João
agiu em legítima defesa, mas matou, o argumento que soma
mais força, em oposição a um contrário, é matou.
A (des)focalização é um procedimento do enunciante que
visa a desviar a atenção do interlocutor daquilo que não lhe
interessa, ou seja, trata-se de uma estratégia para deslocar a
atenção de um determinado foco a outro, de tal forma que os
efeitos de sentido facilitem a adesão em relação ao que é de
interesse de quem enuncia.
Na prática jurídica, a (des)focalização torna-se sobremodo
interessante porque permite que o argumentador consiga não
só minimizar os efeitos dos argumentos do adversário, mas
também, desqualificar (v. o argumento da coerência) o sistema
de referência que ilumina os focos indesejáveis. Assim, além da
(des)focalização, cria-se o efeito de desconfiança sobre a
argumentação contrária.
5.2.10 A (des)valorização de argumentos
Com o operador embora, a orientação argumentativa
difere em relação a mas no que se refere à estratégia: em
Embora João tenha matado, foi em legítima defesa, há uma
antecipação de argumentos contrários, ou seja, verbaliza-se o
que deve ser desconsiderado ou minimizado (podem ser os
argumentos reais ou prováveis do adversário). Se com o mas se
cria uma expectativa e um espaço possível para o silêncio que
motiva a atenção, com embora ocorre, concomitantemente,
uma aceitação dos eventuais argumentos contrários, e há uma
desvalorização de sua importância: o fato de estarem sendo
citados pode dar a entender que isso não representa um risco
para os próprios argumentos.
5.2.11 A armação duma lógica
Há, na língua, operadores que conduzem a uma
conclusão relativa a argumentos de enunciados
anteriores, tais como portanto, logo, pois etc.; ou pares como
se...então, ora...logo. [pg. 99]
Os exemplos dos seguintes silogismos podem esclarecer a
força diferenciada dos operadores:
1. Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser
condenado.
Ora, João agiu em legítima defesa.
Logo, João não deve ser condenado.
No silogismo acima o par de operadores ora...logo conduz
rapidamente a uma tese: a chegada a uma conclusão é linear e
não admite negociações. Já com o outro par — se... então — ,
embora também oriente para uma congruência, apresenta uma
alteração de estratégia argumentativa conforme se pode ver
em:
2. Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser
condenado.
Se João agiu em legítima defesa.
Então João não deve ser condenado.
É interessante observar que, nesse silogismo, parece
residir uma fragilidade de convicção do argumentador, enquanto
que em ora... logo se dá o contrário, porque ora impõe como
que uma evidência, enquanto se permite a dúvida.
Em termos de estratégia argumentativa, porém, o par
se...então pode produzir excelentes resultados, especialmente
quando o argumentador tem convicção e finge que tem dúvidas,
porque, ao apresentar a sua versão dos fatos e as provas da
forma como lhe interessa, convida o(s) interlocutor(es) a
dirimir(em) a dúvida sugerida e confirmar(em) a tese. O convite
à negociação que faz o argumentador em se...então se dá
porque ele finge abrir mão da atividade de construção da tese, o
que pode desarmar o interlocutor e ampliar as possibilidades de
sua adesão.
5.2.12 A indicação de um extremo da escala
A língua, precisamente por pressão da heterogeneidade
social, permite que as coisas, os fatos etc. possam ser
verbalizados de diferentes [pg. 100] maneiras, o que abre a
possibilidade para a valoração escalar. A estratégia com
operadores que apontam o argumento que, numa escala
de forcas, fica no ponto extremo como até, inclusive etc.,
visam, ao indicar o argumento a ser considerado de maior
impacto, levar o auditório a aderir à tese.
Se, por exemplo, numa escala de argumentos, temos
cometeu diversos assassinatos, cometeu outros delitos, teve
problemas de conduta social, o operador até aponta para aquele
que tem mais força. Assim, João deve ser condenado — até
porque (inclusive) já cometeu diversos assassinatos — ...
5.2.13 A soma de argumentos
Há, ainda, outro tipo de operador que possibilita uma
estratégia argumentativa: é o que possibilita a cooptação dos
argumentos do adversário, ou seja, a construção permite que o
argumentador possa atuar sobre o dito de quem o antecedeu no
debate, assumindo os argumentos contrários, mas
acrescentando a eles outros que deverão fazer a diferença.
Trata-se de operadores argumentativos que somam
argumentos à tese, tais como, e, também, não só... mas
também etc.
Assim, por exemplo, quando se avalia se alguém tem ou
não, direito à pensão alimentícia, pode a discussão centrar-se
em torno do argumento que sustenta ou nega a capacidade
para trabalhar do requerente.
Ora, se entender capacidade para trabalhar como
condições físicas para trabalhar, é possível construir a
contraposição, recorrendo ao operador argumentativo de forma
a incluir condições físicas e acrescentar-lhe outros argumentos:
“capacidade para trabalhar não deve significar não só condições
físicas, mas também...”. [pg. 101]
6
A ARGUMENTAÇÃO E O ATORESPONSÁVEL
Os estudos que tomam a linguagem como objeto só
recentemente passaram a incluir como referência teórica os
textos do filósofo russo Mikhail Bakhtin. E, embora as suas
principais formulações sobre o discurso tenham sido feitas no
início do século passado, ainda se prestam a operacionalizações
interessantes e ricas.
A argumentação jurídica, por operar sobre valores, tem no
texto Para uma filosofia do ato (Bakhtin, s.d.) um excelente
ponto de ancoragem para alimentar a reflexão sobre não só sua
natureza, mas, e especialmente, quanto a seu caráter de
mediação das relações sociais.
Para Bakhtin, todo ato deve ser analisado como ação
responsável que emerge da oposição entre o ato realmente
ocorrido e o sentido que lhe confere uma interpretação. Isto é:
todo e qualquer ato pode receber diferentes interpretações que
produzem diferentes sentidos. Os sentidos, por sua vez,
multiplicam-se e libertam-se de seus autores, passando a
produzir efeitos que, se, em parte, são circunscritos, também
podem fugir, devido à heterogeneidade social e referencial, a
uma previsibilidade. Por isso, o sentido dado a um ato orienta
novas interpretações de novos atos, ou seja, é responsável
pelos sentidos que humanizam ou não, as relações sociais.
Essa dimensão do ato descreve o discurso — também ato
enquanto mediação — como permanentemente centrado em
valores, pois as interpretações da realidade dependem das
categorias (ou referências) colocadas em cena e que, por sua
vez, resultam de escolhas orientadas por [pg. 103] valores-
guia, ou seja, “[...] toda categoria orientadora de valor tem um
uso adequado ao objeto, um adequado ao sujeito e um
adequado à situação. Tais categorias podem ser usadas,
portanto, ‘em conformidade com a coisa, com a tarefa’, ‘em
conformidade com a situação’ e ‘em conformidade com a
pessoa’”. (HELLER, 1983, p. 60)
É, por isso, que todo ato humano contém uma dose de
responsabilidade pessoal e que condiciona a produção do
discurso a se comprometer com uma coerência entre um dizer e
um fazer, entre o dito e a coisa. O indivíduo, ao agir, emancipa-
se responsavelmente.
O discurso jurídico, particularmente no que se refere à
argumentação, deve, portanto, chamar a si, quer seja no plano
institucional, quer seja no pessoal, a responsabilidade tanto
como ato enunciativo materializado, como pelos efeitos que o
ato pode produzir.
Assim, institucionalmente, a responsabilidade da prática
jurídica lembra, entre outras referências, que:
1. A preservação institucional do contraditório na
argumentação jurídica é garantia da manifestação de
diferentes interpretações possíveis para um
determinado ato.
2. A escolha de valores-guia que orientam os
procedimentos e os rituais jurídicos, por serem
linguagem, são discutíveis.
3. A avaliação permanente da relação entre os valores-guia
adotados e os valores sociais vigentes requer um
profundo envolvimento e conhecimento social.
4. O zelo pelos acordos sociais construídos historicamente
implica uma vigilância e uma competência para atuar
sobre direitos e deveres.
Quanto ao comprometimento pessoal, é possível — apesar
da distribuição dos lugares “contraditórios” de argumentação —
responsabilizar o indivíduo por motivos tais como:
1. As escolhas das técnicas e estratégias argumentativas
resultam de uma interpretação do fato.
2. A interpretação do fato aciona sempre categorias
operacionais específicas comprometidas com valores
sociais. (Exemplo: liberdade).
3. Os valores, por serem linguagem, são polissêmicos e
dependem de outros atos interpretativos. (Que é
liberdade?) [pg. 104]
4. Os atos interpretativos encontram-se irremediavelmente
ancorados em vozes de lugares sociais que, por serem
diferenciados, instalam um conflito de sentidos.
5. Os conflitos de sentidos podem gerar condutas sociais
conflitantes que, potencialmente, implicam o risco de
ruptura social.
6. A argumentação jurídica tem como objetivo fundamental
operar sobre esse risco social. E, por isso, pode assumir
um caráter paradoxal de (des)humanização.
7. O indivíduo que atua na argumentação jurídica, pela
liberdade de que faz uso ao realizar as escolhas, pela
singularização da interpretação do fato, pelo poder de
fala que exerce e pelos efeitos que disso resultam, é
também responsável.
A argumentação jurídica é, pois, discurso responsável que
avalia e avaliza responsabilidades tanto pessoais como sociais.
Isto é: o fato de o enunciante poder, apesar da distribuição dos
papéis a partir da observação do contraditório, fazer escolhas
não o exime da responsabilidade como participante responsável
do ritual que busca promover a justiça.
O presente estudo da argumentação jurídica —
desenvolvido com o propósito de ser introdutório — várias vezes
também abordou a relação da linguagem, ou da argumentação
mais especificamente, com o exercício do poder.
Para a argumentação jurídica esse tema se reveste de
particular importância, porque ela se propõe, como objetivo
final, promover a justiça, o que envolve também a discussão das
relações de força que mantêm entre si os diferentes segmentos
sociais e a análise dos conflitos que se originam dessas
relações. E isso implica falar de ideologia.
A ideologia pode ser definida como um projeto de
socialidade, ou seja, um sistema de sentidos que correspondem
a ideais de sociedade. Esses ideais, obviamente, na medida em
que orientam condutas, valorizam as referências que se ligam a
interesses específicos de grupo.
Desse modo, no embate das forças sociais, a ideologia,
além de orientar e consolidar um determinado segmento, pode,
através de recursos lingüísticos e discursivos, fazer circular, de
forma não-explícita, a idéia de que o sistema de referência de
um determinado grupo é o melhor e o mais indicado, não só
para o próprio grupo, mas também, para toda a sociedade. E, ao
executar a sua função, a ideologia — porque precisa [pg. 105]
construir uma hierarquia de sistemas de referências em cujo
extremo se localiza o que abriga os interesses do grupo que a
ela se liga — homogeneiza fazendo passar por verdadeiros
apenas os sentidos gerados pelo sistema de referência
hegemônico, mascarando, dessa forma, os objetivos de do-
minação.
Em outros termos, a ideologia não é, por natureza, um
meio de dominação, mas de organização social. Quando, porém,
se instalar, no meio social, a disputa de poderes, a ação
ideológica produzirá hierarquizações dos enunciados dos
sistemas de referência dos diferentes segmentos sociais. E, só
então, quando anula tudo que se lhe opõe, o sistema de
referência hegemônico, enquanto ideologia, é também
instrumento de luta.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com as comunidades de
descendentes de imigrantes alemães no Brasil: evidentemente,
organizaram suas atividades produtivas tendo como orientação
um determinado sistema de referência. No momento, em que,
durante a 2a Guerra Mundial, o Brasil se pronunciou a favor dos
aliados e contra a Alemanha, as comunidades de língua alemã
no País passaram a ser hostilizadas como se fossem inimigos.
Isso produziu efeitos ideológicos tais que os sistemas de
referência produziram verdades ou axiomas como Todo alemão
é nazista/inimigo ou Todos os que não são ou falam o alemão
são inferiores/negros etc.
Do mesmo modo, enunciados como E natural que haja
ricos e pobres. O homem é, por natureza, infiel. É óbvio que
mulher (o negro, o índio, o jovem etc.) é inferior ao homem (o
branco, o adulto etc.). Dinheiro não traz felicidade. O catolicismo
é a única religião cristã. Deus castiga quem não respeitar os
mandamentos. Todos são iguais perante a lei etc. podem, de um
ponto de vista lógico, ser considerados discutíveis. No entanto,
enquanto enunciados nos quais os indivíduos passam a crer
como se fossem verdades irrefutáveis, eles produzem efeitos de
poder que vão determinar resultados que, numa disputa de
forças, podem levar à dominação. O enunciado ideológico, pois,
sempre esconde interesses de grupos: não é, pois, de ordem do
indivíduo, embora ninguém — precisamente porque todos se
submetem às determinações sociais que se originam do conflito
— consiga livrar-se inteiramente de uma orientação ideológica.
Ora, a argumentação também atua em função da
heterogeneidade referencial e social, mas nela se exercita
primordialmente o raciocínio lógico e se questionam insistente e
rigorosamente os sentidos das palavras, as teses, os axiomas,
as afirmações e os procedimentos que podem [pg. 106]
conduzir à produção de novos enunciados/sentidos. A diferença
entre a atividade ideológica e a argumentativa, no sentido
restrito, diz respeito à forma como se pretende alcançar a
prevalência de um sistema de referência: na primeira, busca-se
conseguir o domínio (ou a dominação) pela instalação da
crença, isto é, no universo ideológico, o processo interativo não
oferece acolhida à réplica, à crítica e ao exame lógico; na
interação jurídica, quer-se a adesão que deve se realizar como
conseqüência de um raciocínio que visa a sustentar e justificar
uma tese.17
17 Por isso, a relação entre meios e fim, no Direito, é diferente dos da Política: se nessa — por força da ideologia — se pode até permitir a idéia de que o fim justifica os meios, na prática jurídica, isso é inadmissível.
A ação ideológica, na verdade, quando se faz meio de luta,
é a negação da dimensão democratizante, porquanto busca
silenciar os outros sistemas de referência da sociedade, e a
argumentação — entendida como interação — ao contrário,
preestabelece condições de alternância de turnos para a
manifestação dos diferentes argumentos.
A constatação de que a interpretação sempre implica
também orientar-se por categorias ideológicas, revela, pois,
para a argumentação jurídica, a importância de um acordo que
defenda a possibilidade da manifestação da discordância, não só
no que diz respeito ao contexto imediato do que está sendo
julgado, mas também ao mediato — e que se refere ao universo
ideológico — porque, se assim não se fizer, a interpretação do
fato pode ser prejudicada, já que o universo mais amplo — e
que é determinante do imediato — não foi considerado.
Os argumentos, pois, tanto quanto for possível, deveriam
trazer à discussão elementos dos dois contextos, principalmente
para permitir a desconstrução ideológica das referências.
Por outro ângulo, entender a argumentação como
interação implica dizer que há a necessidade de se prestar
especial atenção também ao ato de ouvir, em termos de dever e
de poder ouvir, mormente na prática jurídica porque, aí,
conforme Perelman,
Mesmo no plano da deliberação íntima, existem condições
prévias para a argumentação: a pessoa deve, notadamente,
conceber-se como dividida em pelo menos dois interlocutores
que participam da deliberação. E nada nos autoriza a considerar
essa divisão necessária. Ela parece constituída com base no
modelo da deliberação com outrem. (PERELMAN, 1966a, p. 16)
[pg. 107]
E continua:
Não basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido.
Não é pouco ter a atenção de alguém, ter larga audiência, ser
admitido a tomar a palavra em certas circunstâncias, em certas
assembléias, em certos meios. Não esqueçamos que ouvir
alguém é mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o
ponto de vista. (Op. cit. p. 19)
Desconstrói-se, pois, a idéia de que, na argumentação, o
enunciante tem a sua tarefa comprometida apenas com a
formulação e a organização de argumentos que sirvam à
acusação ou à defesa: ele precisa submeter-se a um acordo que
garante aos interlocutores a alternância das atividades de
ambos, sem o que não adiantam os argumentos mais brilhantes
e o raciocínio mais bem estruturado. E preciso, enfim, que o
acordo gerencie o confronto argumentativo porque, na verdade,
são sistemas de referência diferenciados que se batem pela
construção de um sentido possível de justiça. E esse embate é
de ordem ideológica.
O ato de ouvir, por essa razão, não significa apenas uma
necessidade para saber o que se constrói na oposição, mas
parte de um acordo que propõe o silêncio e a fala em processos
alternados entre interlocutores, sem que a correlação signifique
a hierarquização de sistemas de referência e a imposição
ideológica.
Parece, pois, à primeira vista, que o Direito, pelo fato de
acolher a presunção do contraditório, estaria, ao garantir as
diferenças de interpretação, inibindo a ação ideológica e, com
isso, a manipulação, o jogo de poderes. Na verdade, porém, o
contraditório, na prática jurídica, refere-se, em geral, ao que
constitui o contexto imediato do ato em julgamento. O fato
jurídico, pois, na grande maioria dos casos, não inclui dimensões
que fazem parte do contexto mediato e, por isso, as diferenças
que sustentam a acusação e a defesa podem estar fazendo
parte dum mesmo universo ideológico.
O fato, contudo, de os enunciados se submeterem à
avaliação e à crítica, permite que, na interação argumentativa,
se possa localizar e desconstruir aquilo que assume uma nítida
função ideológica que desconsidera e anula as diferenças de
sentidos produzidos pela heterogeneidade social. E por que os
múltiplos segmentos sociais mantêm uma relação conflitante,
todo o sentido produzido pelo processo de interpretação abriga
a possibilidade de se tornar um instrumento de dominação
ideológica — [pg. 108] basta que os processos sociais
conduzam a uma hierarquização das diferenças de sentido que
gera a heterogeneidade referencial.
O ponto de vista valorativo ou o julgamento, portanto, em
termos de bom ou mau, útil ou inútil, correto ou incorreto, que
pode se agregar a qualquer sentido, embora revele uma adesão
pessoal, está profundamente comprometido com o que é de
nível social porque a hierarquização valorativa dos atos pode,
em função dos conflitos sociais, ter como referência a ideologia
de um determinado segmento social.
Ora, toda vez que se escolhe e insiste que os atos dos
indivíduos e as relações que sustentam a sociedade devem ser
avaliados pelo sistema de referência de um dos segmentos
envolvidos no conflito, configura-se uma intervenção ideológica,
o que também quer dizer — porque a imposição e o
cerceamento reconduzem ao conflito — que se realizou uma
pseudojustiça: faz-se necessário, para intervir no conflito,
encontrar uma referência que, em termos gerais, seja aceita por
todas as partes envolvidas.
É, por isso, que se pode afirmar que a argumentação —
sobremodo, a jurídica — ao zelar pela alternância das
manifestações das partes conflitantes, tem uma
responsabilidade ética: só pode o Direito fugir das armadilhas de
se ver reduzido a instrumento ideológico de um segmento social
— em geral, do hegemônico — garantindo os turnos de
argumentação no ritual interativo.
O que se quer dizer é que, embora toda e qualquer
interpretação esteja comprometida com determinado sistema
de referência, a prática jurídica — porque se constrói sobre a
possibilidade do contraditório — encontra no ritual
argumentativo a melhor forma para não acolhê-la como a única
ou a melhor. O problema, pois, que diz respeito à ideologia
situa-se no nível de condução das interpretações em termos de
realizá-las, apoiadas em referências sabidamente
comprometidas com um ou outro segmento social.
Vê-se, pois, que a argumentação jurídica comporta uma
dimensão ética que diz respeito à correlação entre o direito e
dever de falar e o direito e o dever de ouvir18: se cada indivíduo
pode (e deve) invocar o direito de expor e defender a tese que
entende ser válida para uma determinada situação, ele também
assume, neste preciso momento, o compromisso de que seu
interlocutor terá o mesmo direito, além de fixar, para [pg. 109]
ambos, o dever de ouvir. Ou, então, ao invocar o direito de
poder ouvir ou apropriar-se do que é exposto, o indivíduo
constrói também a noção de dever de enunciação para ambos:
sem o acordo ético não há o direito, precisamente porque lhe
falta apoio no seu correlato, o dever, o que, forçosamente, leva
o Direito a perder força na atuação sobre os conflitos sociais.
18 Isso quer dizer que artimanhas e recursos que visem a obstaculizar ou prejudicar a atividade argumentativa, especialmente no Direito, devem receber a condenação como atividade antiética.
A dimensão ética da argumentação jurídica tem, enfim,
relação com o que diz Perelman:
Pode-se, de fato, tentar obter um mesmo resultado seja pelo
recurso à violência, seja pelo discurso que visa à adesão dos
espíritos. É em função dessa alternativa que se concebe com
mais clareza a oposição entre liberdade espiritual e coação. O
uso da argumentação implica que se tenha renunciado a
recorrer unicamente à força, que se dê apreço à adesão do
interlocutor, obtida graças a uma persuasão racional, que este
não seja tratado como um objeto, mas que se apele à sua
liberdade de juízo. O recurso à argumentação supõe o estabele-
cimento de uma comunidade dos espíritos que, enquanto dura,
exclui o uso da violência. (1996a, p. 61)
A argumentação jurídica, portanto, como discurso que
realiza a mediação dos conflitos sociais, leva o Direito a
posicionar-se frente ao desafio permanente de avaliar-se como
prática responsável, tendo em vista que “A responsabilidade do
ato realmente desempenhado é o levar-em-conta nele todos os
fatores — um levar-em-conta tanto a sua validade de sentido
como a sua realização em toda a sua concreta historicidade e
individualidade”. (BAKHTIN, s.d., p. 46)
E o indivíduo, alçado a um lugar social, ao mesmo tempo,
privilegiado e comprometido, mesmo atuando ao amparo da
instituição, não pode ser desresponsabilizado pois “[...] um ser
humano não tem direito a um álibi — a uma evasão dessa
responsabilidade única que é constituída pela sua atualização de
seu “lugar” único, irrepetível no Ser”. (Op. cit., p. 16).
Assim, o ensino e o domínio de técnicas e estratégias de
argumentação jurídica abrem o paradoxal — mas vivificante —
processo dialógico entre uma liberdade e um compromisso,
entre uma fragilidade do fazer-justiça e uma competência lógica
e interativa, entre um direito e um dever. [pg. 110]
REFERÊNCIAS
ATIENZA, M. Las Razones del Derecho. Teorias de la Argumentación Jurídica. Madrid: Fareso, 1997.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.
_____. Para uma filosofia do ato. Trad. Carlos A. Faraco e Cristóvão Tezza. Curitiba: UFPR, xerox s.d.
BASTOS, C. R. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo: CBastos, 1997.
BULGARELLI, W. Problemas do Direito Brasileiro Atual. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
CARNEIRO, M; SEVERO, F.G.; ÉLER, K. Teoria e Prática da Argumentação Jurídica. Curitiba: Juruá, 1999.
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._____. A Interação pela Linguagem. São Paulo: Contexto, 1992.
MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Unicamp, 1989.
PERELMAN, C. Teoria da Argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996a.
_____. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996b.
_____. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes. 1998.
THOMPSON, J. P. Ideologia e Cultura Moderna. Petrópolis:
Vozes, 1995.
VOESE. I. O Movimento dos Sem-Terra: um exercício de Análise do Discurso. Ijuí: Unijuí. 1998.
_____. Mediação dos Conflitos como Negociação de Sentidos. Curitiba: Juruá, 2000. [pg. 111]
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