Ingo voese argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

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Argumentação Jurídica

• Teoria• Técnicas• Estratégias

2ª edição — Revista e atualizada

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ISBN: 85-362-1179-2

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CEP: 80.035-000 — Curitiba — Paraná — Brasil

Voese, Ingo.

V875 Argumentação jurídica. 2. ed./ Ingo Voese./ Curitiba:

Juruá, 2006.

118p.

1. Argumentação jurídica. I. Título.

CDD 340.1 CDU 340

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CCONTRAONTRA C CAPAAPA

O Direito caracteriza-se essencialmente por sua atividade

argumentativa, o que implica dizer que a prática jurídica opera

com recursos lingüísticos e discursivos para produzir

determinados efeitos de sentido. E efeitos de sentido orientam

atos e decisões, ou seja, os efeitos de sentido são também

efeitos de poder.

É, portanto, a linguagem o objeto e a ferramenta de trabalho do

profissional do Direito: quando ele interpreta, opera com

referências lingüísticas e quando justifica os sentidos

produzidos, coloca em cena recursos da língua e do discurso.

Estranhamente, porém, os estudos nos cursos de Direito não

contemplam a linguagem, nem quanto à sua especificidade,

nem quanto às suas funções como mediação das relações

sociais.

Argumentação Jurídica vem preencher essa lacuna e, assim,

enriquecer os recursos disponíveis à formação qualificada dos

operadores do Direito.

OORELHASRELHAS DODO L LIVROIVRO

Ingo Voese é Professor de Lingüística e de Análise do Discurso

há mais de 30 anos. Realizou seu Doutorado na PUCRS e o pós-

Doutorado na Unicamp/SP, centrando seus estudos e pesquisas

na temática que aborda a relação de linguagem, indivíduo e

sociedade. De sua atividade, resultaram vários livros e artigos,

dentre os quais destacam-se, na área do Direito: Mediação dos

Conflitos como Negociação de Sentidos e Argumentação

Jurídica. Atualmente exerce suas atividades em cursos de pós-

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graduação da Unisul/SC.

Ingo VoeseDoutor em Lingüística; Professor de Argumentação Jurídica no curso de Mestrado em Direito e de Análise do Discurso no Curso de Mestrado de Ciências da Linguagem da Unisul/SC.

Argumentação Jurídica

• Teoria• Técnicas• Estratégias

2ª edição — Revista e atualizada

Curitiba

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Juruá Editora2006

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Para

Márcia Beatriz, Marcelo

Augusto e Marco Antônio: amores

inesperados (re)motivadores,

imprescindíveis da minha vida.

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PREFÁCIO À 2a EDIÇÃO

Argumentação Jurídica é um texto que foi escrito com o

propósito de preencher uma lacuna no ensino do Direito,

especificamente o que se refere ao domínio dos recursos de

linguagem. A acolhida generosa que teve o livro sinaliza que a

avaliação inicial estava correta e motiva uma nova edição.

Parece-me, porém, que o texto comporta uma rápida re-

flexão sobre o que se poderia chamar de efeitos de

argumentação, de modo que o ensino não deveria omitir e

aprofundar a análise ético-moral da prática jurídica, sob pena de

o Direito transformar-se num mero — mas contundente —

instrumento ideológico.

Por isso, na presente edição, refaço e amplio as conside-

rações finais, detendo-me um pouco mais na avaliação da argu-

mentação jurídica também como ato de responsabilidade.

O autor

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................13

2 LINGUAGEM E DETERMINAÇÕES SOCIAIS.................................19

2.1 A INVENÇÃO DO ANZOL.......................................................192.1.1 A heterogeneidade

social..............................................212.1.2 A heterogeneidade

cultural..........................................212.1.3 A heterogeneidade

referencial......................................222.1.4 A heterogeneidade

lingüística......................................222.1.5 A heterogeneidade

individual.......................................252.1.6 O controle da

heterogeneidade.....................................26

3 A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA..................................29

3.1 A ESPECIFICIDADE DA LÓGICA JURÍDICA.........................353.2 A INDUÇÃO NA ESTRUTURAÇÃO DO SILOGISMO................403.3 A DEDUÇÃO NA EXECUÇÃO DO SILOGISMO......................49

4 TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS.....................................................51

4.1 O ARGUMENTO DA COERÊNCIA.........................................534.2 O ARGUMENTO DA RECIPROCIDADE.................................544.3 O ARGUMENTO DA TRANSITIVIDADE.................................554.4 O ARGUMENTO DA COMPARAÇÃO.....................................564.5 O ARGUMENTO DA INCLUSÃO DA PARTE NO TODO..........564.6 O ARGUMENTO DA DIVISÃO DO TODO EM PARTES...........574.7 O ARGUMENTO AD IGNORANTIUM......................................584.8 OS ARGUMENTOS A PARI EA CONTRARIO...........................584.9 O ARGUMENTO DA ANALOGIA............................................594.10 O ARGUMENTO DA FIXAÇÃO DE UM GRAU........................604.11 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO DE MEIOS E FINS................614.12 O ARGUMENTO DA PROBABILIDADE..................................624.13 O ARGUMENTO DO VÍNCULO CAUSAL................................634.14 O ARGUMENTO PRAGMÁTICO.............................................644.15 O ARGUMENTO DO DESPERDÍCIO......................................654.16 O ARGUMENTO DA DIREÇÃO..............................................654.17 O ARGUMENTO QUE RELACIONA ATO E PESSOA..............654.18 O ARGUMENTO DA AUTORIDADE.......................................664.19 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO ENTRE ATO E ESSÊNCIA.....68

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4.20 O ARGUMENTO DO EXEMPLO............................................684.21 O ARGUMENTO DA ILUSTRAÇÃO........................................69

5 ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS.............................................71

5.1 ESTRATÉGIAS (DES)CONTEXTUALIZADORAS.....................785.1.1 A adaptação do enunciante ao

auditório...................795.1.2 A preparação do

auditório........................................835.2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS..............................................86

5.2.1 A construção de dissociações e a mistificação..............89

5.2.2 A mistificação..............................................................905.2.3 A

implicitação..............................................................915.2.4 A

impessoalização:.......................................................945.2.5 A vaguezização (ou a

ambigüização).............................945.2.6 A

generalização............................................................955.2.7 A

higienização..............................................................965.2.8 A inclusão do ponto de vista do

argumentador.............965.2.9 A (des)focalização de

argumentos.................................985.2.10 A (des)valorização de

argumentos.................................995.2.11 A armação duma

lógica................................................995.2.12 A indicação de um extremo da

escala.........................1005.2.13 A soma de

argumentos..............................................101

6 A ARGUMENTAÇÃO E O ATO RESPONSÁVEL...........................103

REFERÊNCIAS.................................................................................111

ÍNDICE ALFABÉTICO.......................................................................113

Nota da digitalizadora: A numeração de páginas aqui refere-se a edição original, que encontra-se inserida entre colchetes no texto.

Entende-se que o texto que está antes da numeração entre colchetes é o que pertence aquela página e o texto que está após a numeração pertence a página seguinte.

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1

INTRODUÇÃO

Poucos são os cursos de Direito, no Brasil, que abrem, na

sua grade curricular, um espaço para o estudo da argumentação

jurídica, o que pode estar a indicar que ela ainda não está

merecendo a devida atenção precisamente porque ainda não se

abordou a sua especificidade e, em especial, a relação da

prática jurídica com a linguagem.

Mesmo em outros universos culturais como, por exemplo,

na Europa, só recentemente se iniciou um movimento que

formula questões que Atienza (1997) organiza da seguinte

forma:

Puesto que la práctica del Derecho consiste de manera muy

fundamental en argumentar, no tendría por que’ resultar

extravio que los juristas con alguna conciencia profesional

sintieran alguna curiosidad por cuestiones — (...) como las

siguientes: Qué significa argumentar juridicamente? Hasta qué

punto se diferencia la argumentación jurídica de la

argumentación ética o de la argumentación política, o, incluso,

de la argumentación en la vida ordinaria o en la ciencia? (...)

Cuál es el criterio de corrección de los argumentos jurídicos?

Suministra el Derecho una única respuesta corrrecta para cada

caso? (ATIENZA, 1997, p. 9) [pg. 13]

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E ele avança na reflexão quando diz que “Nadie duda que

la práctica del Derecho consiste, de manera muy fundamental,

en argumentar y todos solemos convenir en que la cualidad que

mejor define lo que se entiende por un ‘buen jurista’ tal vez sea

la capacidad para idear y manejar con habilidad argumentos”.

(Op. cit., p. 19).

Atienza reduz o sentido da expressão “bom jurista” aos

limites da dimensão técnica de argumentação e esquece de

enfatizar que o uso de recursos lingüísticos e discursivos não

pode ser desconsiderado quanto ao que eles têm de específico e

determinante, ou seja, é preciso destacar que a argumentação

jurídica só constrói uma característica própria porque pode se

valer de determinadas características da linguagem.

Entende-se, pois, que a abordagem da argumentação

jurídica pressupõe especificidades e complexidades próprias da

prática, dado que elas se originam do fato de que se adotam

modelos lógicos para atuarem sobre sentidos e valores

heterogêneos e conflitivos, e que não pertencem ao universo do

formalismo lógico, mas têm profundo comprometimento com a

construção do que muito vagamente se entende por justiça

social.

O presente trabalho, ao se incluir nos estudos mais

recentes sobre a argumentação jurídica, tem a pretensão de

oferecer alguns subsídios para o estudo, partindo do

entendimento de que há uma especificidade que se pode

abordar, descrevendo a relação da prática com a linguagem em

termos de como ela pode valer-se de determinadas caracte-

rísticas lingüísticas e discursivas para, através de técnicas e

estratégias, não só produzir argumentos como também

minimizar ou maximizá-los na interação.

Para essa tarefa, torna-se então necessário, em primeiro

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lugar, pontuar algumas concepções teóricas de linguagem: elas

são importantes para que se possa melhor compreender tanto

os processos de interpretação, quer seja da lei, quer seja dos

fatos jurídicos — e, por isso, pontos de apoio, — como os

processos e os modos de argumentação, abordados a partir da

concepção de que a argumentação vale-se, ao mesmo tempo,

de técnicas que produzem argumentos e de estratégias que

buscam viabilizar os melhores efeitos de adesão na interação.

O pontuamento teórico deverá, enfim, permitir que se

façam avanços na compreensão do que é específico da lógica

jurídica, ou seja, compreender por que é aceitável considerar

que

Um argumento não é correto e coercivo ou incorreto e sem

valor, mas relevante ou irrelevante, forte ou fraco, consoante

razões que lhe justificam o emprego no caso. E por isso que o

estudo dos argumentos, que nem o direito nem as ciências

humanas nem a filosofia podem dispensar, não se prende a

uma teoria da demonstração rigorosa, concebida a exemplo de

um cálculo mecanizável, mas a uma teoria da argumentação.

(PERELMAN, 1996b, p. 471) [pg. 14]

É preciso, outrossim, incluir, no dimensionamento da

complexidade da argumentação jurídica, a questão da verdade,

para entender que ela

...se preocupa não propriamente com a verdade, mas com

verossimilhança. Não exclui a verdade de suas preocupações,

mas ressalta como fundamental a versão da verdade. Ou seja,

uma decisão não pode negar a verdade factual, aquilo que é

reconhecido e aceito como um evento real (...), mas da verdade

factual nem sempre segue a verossimilhança (...). (BULGARELLI,

1998, p. 71)

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Se, pois, a argumentação jurídica não se nivela a uma

demonstração formal, é porque o que se diz dos fatos é

resultado de interpretações que, pressionadas pela natureza da

linguagem, serão diferenciadas, o que, inclusive, explica por que

o Direito constitui o contraditório como uma presunção fundante

e como garantia da promoção da justiça. Em outros termos, os

argumentos jurídicos não são fruto de um cálculo lógico-formal,

mas de interpretações e de avaliações que incluem, além dos

interesses específicos das partes, também as circunstâncias

históricas, sociais e culturais do fato. Examinar o nível de

desacordo ou de desrespeito à lei requer, por isso, que, na

prática jurídica, as teses e as decisões sejam, porque não se

trabalha com elementos exatos, não só explicadas mas também

justificadas, tanto que

O dispositivo da sentença, a parte que contém a decisão do juiz,

é precedido pelo enunciado dos considerandos, ou seja, das

razões que motivaram essa decisão. O raciocínio judiciário se

apresenta, assim, como o próprio padrão do raciocínio prático,

que visa a justificar uma decisão, uma escolha, uma pretensão,

a mostrar que elas não são arbitrárias ou injustas. (PERELMAN,

1996b, p. 481)

O Direito funda e caracteriza, pois, a sua prática admitindo

o contraditório, ou seja, a heterogeneidade de sentidos que

precisam, todavia, para não deixar de observar a coerência, a

coesão e a congruência necessárias à argumentação, ser

trabalhados sob orientação de modelos de raciocínio das

ciências naturais e matemáticas.

E quando a sociedade não aceita a idéia da arbitrariedade

ou da injustiça, arma-se, para a prática jurídica, o complexo

desafio da promoção da justiça: é preciso, aqui, falar da

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heterogeneidade social e de [pg. 15] sentidos que configuram o

problema que diz respeito à dificuldade de se poder fazer justiça

de modo que atenda às expectativas de todos os segmentos

sociais. Ou seja,

Para que a regra de justiça constitua o fundamento de uma

demonstração rigorosa, os objetos aos quais ela se aplica

deveriam ser idênticos, ou seja, completamente

intercambiáveis. Mas, na verdade, isso nunca acontece. Os

objetos sempre diferem em algum aspecto, e o grande

problema, o que suscita a maioria das controvérsias, é decidir

se as diferenças constatadas são ou não irrelevantes ou, em

outros termos, se os objetos não diferem pelas características

que se consideram essenciais, isto é, os únicos a serem levados

em conta na administração da justiça. (PERELMAN, 1996a, p.

248)

Essas são, pois, as dificuldades para o Direito: as pessoas

produzem, orientadas por diferentes sistemas de referência,

diferentes versões dos fatos jurídicos, ou seja, as interpretações

— que antecedem e sustentam a argumentação — são

diferenciadas porque a pressão das características da linguagem

— produto das determinações sociais — leva a isso.

A compreensão exata dessa complexidade inerente à

prática jurídica aponta, então, para os motivos e explica por que

qualquer decisão jurídica precisa ser justificada, embora

O poder concedido ao juiz de interpretar e, eventualmente, de

completar a lei, de qualificar os fatos, de apreciar, em geral

livremente, o valor das presunções e das provas que tendem a

estabelecê-los, o mais das vezes basta para permitir-lhe

motivar, de forma juridicamente satisfatória, as decisões que

seu senso de eqüidade lhe recomenda como sendo, social e

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moralmente, as mais desejáveis. (PERELMAN, 1996b, p. 489)

A decisão jurídica, pois, embora se apóie em elementos

produzidos e apresentados no embate argumentativo depende

do “senso de eqüidade” do juiz, o que significa, segundo Atienza

(1997) “...estar de acordo com os fatos estabelecidos e com as

normas vigentes.” (p. 133).

A primeira vista, essa orientação para a justificação

obrigatória parece não conter nenhum problema. Analisando,

porém, a questão e observando-a à luz de uma teoria da

linguagem que sustenta a idéia da [pg. 16] heterogeneidade

dos sentidos, as dificuldades para explicar a especificidade da

argumentação jurídica tomam-se mais nítidas, especialmente,

se se considerar que o que o Direito examina não são os fatos

mas as versões deles. Isso fragiliza a possibilidade de um acordo

sobre serem ou não, como quer Atienza, fatos estabelecidos: as

interpretações são forçosamente diferenciadas, produzindo

versões diferentes e conflitantes. É justamente essa fragilidade

e multiplicidade dos sentidos que instituem a argumentação

como processo inerente à prática jurídica e à produção da

justiça.

Além disso, as normas jurídicas, cuja função é orientar a

produção das versões, são verbalizações e, por isso também

suportam a idéia de diferentes interpretações possíveis. Só isso

já desenha a complexidade da função de justificação da

argumentação jurídica, embora ainda existam outras questões

que, por exemplo, se referem a saber quem detém esse poder

de constituir as normas e que tipo de sistema de interpretação e

avaliação, pertencente a que segmento social, determinará se a

justificação é ou não, aceitável.

Retornando a Atienza (1997), entende ele que uma teoria

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da argumentação jurídica deve dar conta dos raciocínios que

resultam da interpretação e da aplicação da lei aos fatos

interpretados, o que reconduz o estudo da especificidade da

prática a questões de linguagem.

E, diante das concepções de linguagem, que apontam para

as questões formuladas, especialmente para o que diz respeito

à heterogeneidade das interpretações e a saber quem a partir

de que determinará o que é ou não correto, Atienza (1997)

constrói a idéia de que a argumentação jurídica deveria ser

entendida como uma mediação ou uma negociação de sentidos,

ou seja, propõe ele que se considere a argumentação jurídica

um ato interativo igual ao que se dá na comunicação ou na

informação, o que, com certeza, é correto e produtivo, mas não

suficiente para abordar questões inerentes à prática e que o

conceito de interação não tem condições de explicar.

Além disso, a idéia de abordar a argumentação jurídica

como interação em que se negociam sentidos, precisa prever —

porque a heterogeneidade de sentidos dentro do atual sistema

social constitui uma das vertentes dos conflitos — como etapa

que antecede as argumentações, um processo de desconstrução

daquilo que hierarquiza lugares sociais e diferenças de sentido,

ou seja, a mediação só pode funcionar quando se criarem

condições de convivência (e não de exclusão) das diferenças1.

1 Chega-se, aqui, à questão a que também se deveria dedicar uma atenção especial: o estudo da argumentação jurídica requer uma base teórica que não aborde a linguagem apenas como instrumento de comunicação, mas também, como condição do exercício de um poder, precisamente, pelos efeitos que produzem as decisões e as sentenças do sistema judiciário. Não é suficiente sustentar que um bom argumento é aquele que resiste à crítica (ou contra-argumentação), mas faz-se necessário também incluir as questões que perguntam pelos lugares sociais de onde emanam as orientações normativas que dizem sobre o valor e a validade dos argumentos o que, evidentemente, se refere ao conflito social enquanto disputa de espaços e de poderes para controlar os sentidos: os diferentes sentidos dos fatos (ou versões) são também as manifestações de diferentes

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formas de interpretar o mundo. E isso tem a ver com o exercício do poder. [pg. 17]

Melhor será considerar, como o faz Sampaio Ferraz Jr.

(1997), a argumentação jurídica um tipo peculiar de interação

discursiva, o que, mais uma vez, leva a linguagem a ser tomada

como objeto importante de observação.

Em vista disso, fica como orientação, para o presente

trabalho, considerar que nem a lógica formal ou a matemática,

nem o conceito de interação comunicativa, podem,

isoladamente, dar conta do que é a argumentação jurídica. Da

mesma forma, não é qualquer teoria da linguagem que poderá

se prestar a explicar as questões que se referem à especifici-

dade da prática: ela deve inscrever no estudo da materialidade

lingüística as determinações de ordem social que atuam com e

sobre a linguagem.

O presente trabalho deverá, por isso, ocupar-se em

descrever uma lógica própria do Direito, quando analisará as

técnicas de produção e as formas de estruturação dos

argumentos, e com a argumentação jurídica enquanto

interação, quando serão abordadas as estratégias interativas

que produzem efeitos argumentativos.

Para finalizar: o fato de os conceitos que relacionam

linguagem e sociedade — e que podem ser considerados

necessários à reflexão — serem abordados de modo pontual,

não deverá ser empecilho para entender como e por que se

produz a heterogeneidade de sentidos (e se acolhe o

contraditório) e como encontrar meios de controlar essa

heterogeneidade.

Essas duas tarefas, diante da especificidade da prática

jurídica, constituem, portanto, uma atividade imprescindível à

abordagem da lógica e interação jurídicas, ou seja, das técnicas

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e das estratégias argumentativas que, embora sejam recursos

úteis em qualquer tipo de argumentação, têm importância

especial na prática jurídica, mormente quando as provas e os

indícios forem frágeis ou não existirem.

E é, por tudo isso (Cf. ATIENZA, 1997), que a

argumentação jurídica pode também ser invocada como objeto

interessante e pertinente ao estudo da teoria da argumentação

em geral, o que se inclui, pois, como parte da justificativa para a

realização do presente trabalho. [pg. 18]

2

LINGUAGEM E DETERMINAÇÕESSOCIAIS

Pode parecer estranho perguntar por que é possível

argumentar, mas a questão conduz a que se especifiquem as

características da linguagem e o tipo de relações que se

estabelecem entre ela e a realidade, como tarefa fundamental

para poder formular de forma razoavelmente segura as

concepções referentes às determinações e as condições que se

põem como possibilidade e orientação da argumentação.

Dito isso, a formulação, de forma pontual, de algumas

concepções teóricas deverá — embora não haja a preocupação

com a exaustividade — construir as condições mínimas para a

reflexão sobre as questões formuladas2.

2 Em outro texto meu — Mediação dos Conflitos como Negociação de

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Sentidos — desenvolvo com mais cuidado as minhas concepções teóricas sobre a linguagem.

2.1 A INVENÇÃO DO ANZOL

Para preparar o terreno da formalização de algumas

concepções teóricas sobre a linguagem, um hipotético caso de

invenção de um objeto poderá ser útil e facilitar o

acompanhamento da exposição.

Imagine-se que em determinado momento histórico

alguém crie um novo instrumento de pesca: o anzol — um

objeto de metal, que tem a [pg. 19] forma de um gancho e

tem, em uma de suas extremidades, um espaço onde se pode

prender um cordão.

O importante a considerar, em primeiro lugar, são as

condições para que se possa produzir esse novo instrumento.

Obviamente, deve existir uma certa tecnologia referente à

produção e ao beneficiamento dos metais. Além disso, a

comunidade em que vive o criador do instrumento deve ter

escolhido, como uma de suas atividades de sobrevivência, a

pesca, e, por isso, também sobre essa atividade deve haver um

conhecimento acumulado.

Ora, a essas condições mínimas, ou seja, a um certo saber

necessário à criação do novo objeto de pesca pode-se dar o

nome de cultura que, por ser ponto de partida, torna-se marco

de referência ou sistema de referência.

Em segundo lugar, é preciso considerar que o objeto

produzido vai ser avaliado pela comunidade em razão do que

significa para as suas necessidades: o objeto passa a ter um

significado e é nomeado anzol.

A nomeação permite que se possa falar do produto do

trabalho humano sem que haja a necessidade de sua presença.

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Ora, o objeto, nesse processo de socialização, quando tem seu

sentido estabelecido de acordo com os interesses e as

necessidades do grupo, escapa dos controles do indivíduo que o

criou: o sentido é, pois, então, um acordo social.

Admita-se que, no exemplo dado, o objeto anzol signifique

instrumento de pesca, o que, se o grupo social centralizar a sua

atividade principal na pesca, representa também instrumento de

sobrevivência ou melhoria dos instrumentos que possibilitam a

sobrevivência do grupo.

Em grupos sociais, porém, que não dependem da pesca, o

anzol pode, além de manter um sentido genérico de instrumento

de pesca, significar instrumento de lazer (para pescadores

esportistas), instrumento que oferece um certo risco (para as

crianças), instrumento de tortura (para defensores da natureza)

etc. o que quer dizer que, a cada diferença cultural, ou seja, de

sistema de referência, variam, em maior ou menor escala, os

sentidos do objeto denominado anzol.

O interessante, porém, é que, apesar das diferenças de

sentido, os diferentes segmentos sociais usam a mesma palavra

(anzol) e podem manter entre si interações verbais

precisamente porque há uma parte do sentido (instrumento de

pesca) que é comum a todos, isto é, o sentido genérico

possibilita, apesar das diferenças, uma interação que, embora

frágil, permite uma certa aproximação dos interlocutores. [pg.

20]

Do exemplo, podem ser retiradas as seguintes concepções

que relacionam linguagem e sociedade:

2.1.1 A heterogeneidade social

A noção de sociedade parece sugerir uma realidade

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monolítica, não-fragmentada. Observando, porém, que, partindo

das noções de economia, raça, religião, gênero, geração etc., é

possível visualizar linhas de cisão do tecido social, a concepção

de sociedade deve acolher a idéia de heterogeneidade. Ou seja,

a realidade social é fragmentada e multifacetada.

Considerando, ainda, que entre os múltiplos segmentos

sociais existem disputas pela ocupação de determinados

espaços, é preciso assumir que o conflito origina-se do fato de

haver valorizações diferenciadas destes espaços sociais. Em

outros termos, os espaços que ocupam os diferentes segmentos

sociais são valorizados diferentemente, de acordo com o poder

que aí se pode exercitar.

E é esse poder que os indivíduos de determinados

segmentos sociais exercem, que produz efeitos que podem,

dependendo das circunstâncias históricas e políticas, conduzir à

radicalização dos conflitos e à violência social.

2.1.2 A heterogeneidade cultural

A concepção de heterogeneidade social conduz a que se

assuma que o trabalho que se realiza nos diferentes segmentos

sociais tem, em maior ou menor grau, diferenças quanto a suas

características, suas funções e seu sentido. São as diferenças de

desejos individuais e de interesses de grupos que levam a que

haja uma produção diferenciada, ou seja, a cada segmento

social e a cada indivíduo correspondem diferenciadas atividades

e diferentes produtos.

Adotando a noção de que o produto do trabalho humano

constitui o que se entende por cultura, constata-se que a

heterogeneidade social conduz à heterogeneidade cultural.

Se, como foi afirmado anteriormente, os espaços sociais

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que ocupam os diversos segmentos sociais são valorizados

diferenciadamente em termos de poder, também o produto

cultural recebe valorizações diferenciadas, sendo considerado,

dependendo de quem o tenha produzido, melhor ou pior, de

nível elevado ou inferior, correto ou incorreto etc. [pg. 21]

2.1.3 A heterogeneidade referencial

A cultura pode, pois, ser entendida como o produto do

trabalho humano socializado através da linguagem, ou seja,

conforme Thompson (1990), ela é um conjunto de formas

simbólicas que se estruturam em contextos históricos e sociais

específicos. Essas formas simbólicas organizam e estruturam-se

como um sistema. Considerando que a atividade dos homens

sempre tem como ponto de partida o que outros já realizaram,

pode-se afirmar que esse conjunto de formas simbólicas que se

chama de cultura, é um marco de referência. Ou seja, a cultura

passa a ser, enquanto sistema simbólico, o que orienta as

atividades, os procedimentos e as condutas dos homens. A

cultura, enfim, é um sistema de referência que qualquer

atividade humana toma em consideração porque isso diz

respeito à orientação que se dá aos desejos e interesses

específicos de indivíduos e de grupos.

Se, agora, se retomar a reflexão proposta de início, chega-

se à conclusão de que à heterogeneidade social corresponde

uma heterogeneidade cultural e referencial, e isso remete à

idéia de heterogeneidade lingüística, pois, se é o sistema de

referência que orienta todo o trabalho que realizam os

indivíduos (movidos por desejos e interesses), ele também

impõe-se como condutor da interpretação, ou seja, o sistema de

referência também fixa os limites e as condições da

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interpretação da realidade, dos fatos, da linguagem etc., isto é,

da produção de sentidos. Não há interpretação que não parta

de concepções e de valores que pertencem a determinado

conjunto de formas simbólicas de um determinado segmento

social, o que quer dizer que as diferenças entre os múltiplos

grupos da sociedade geram diferentes formas de interpretar e

diferentes sentidos, ou seja, aí produzem-se também diferentes

concepções da realidade e da sociedade. E, uma vez produto

socializado ou cultura, essas concepções passam também a

integrar o sistema de referência, num processo histórico sem

fim: o sistema de referência é, pois, aberto e transformável

historicamente.

2.1.4 A heterogeneidade lingüística

Ao estabelecer as relações entre cultura, sistema de

referência e linguagem, constata-se que o produto do trabalho

humano só passa a integrar a cultura de um determinado grupo

social quando assume uma função, um sentido (ou significado)

que se alinhe com os desejos dos indivíduos e com os interesses

dos grupos, de modo que possa contribuir para a [pg. 22]

ampliação das possibilidades de atendimento de necessidades e

da consolidação de poderes.

Compreende-se, pois, por que a palavra que nomeia um

determinado objeto, para que possa circular em diferentes

segmentos sociais — com diferentes sistemas de referência —

precisa despir o seu sentido das singularidades produzidas por

essas diferenças: o sentido tem, pois, um componente genérico

que todos os usuários de uma palavra adotam obrigatoriamente

para poderem se comunicar.

Como, porém, os diferentes sistemas de referência

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produzem diferenças de interpretação, o sentido da palavra

comporta um segundo componente: a singularidade que remete

à noção de heterogeneidade social e dificulta a interação e o

convívio.

E, isso, à medida que circula o sentido genérico, impõe um

processo homogeneizador a todos os falantes e, ao mesmo

tempo, alimenta a heterogeneidade. Por isso, diz-se que ela

reflete e refrata a realidade social.

Isso posto, é possível retornar ao que se disse sobre as

valorações diferenciadas dos espaços sociais e dos diferentes

produtos que ali se elaboram: também a linguagem — porque é

produto da atividade dos homens que dela se utilizam —

apresenta maiores ou menores diferenças de sentido e de

valorações.

Pode-se, pois, afirmar que há algumas linguagens mais e

outras menos valorizadas — sempre em dependência do poder

que se exerce nos diferentes segmentos sociais.3

3 Entende-se, aqui, que as diferentes linguagens que os segmentos sociais utilizam têm diferenciados prestígios em termos de serem consideradas cultas ou não, certas ou erradas etc., o que lhes confere forças diferenciadas para fazer circular os sentidos (também o de sociedade) que interessam ao segmento social hegemônico: impõe-se, via prestigiamento de determinada linguagem, um conjunto de sentidos, ou seja, um de-terminado sistema de referência como o único correto, culto etc., ao mesmo tempo que se impõem formas de interpretar a realidade social. Isso é o que se entende por exercer um poder ao constituir uma hierarquia de linguagens.

Da mesma forma como acontece com o exemplo de anzol,

essa diversidade de sentidos (ou excedentes de sentido) pode

ser observada com os conceitos abstratos produzidos pelos

homens. Assim, por exemplo, o conceito de justiça, embora

mantenha um vago sentido genérico — comum a todos os

segmentos sociais que usam a palavra — apresenta inúmeras

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diferenças que (PERELMAN, 1996b) podem corresponder a:

a) a cada qual a mesma coisa; [pg. 23]

b) a cada qual segundo seus méritos;

c) a cada qual segundo suas obras;

d) a cada qual segundo suas necessidades;

e) a cada qual segundo sua posição social;

f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.

Essas diferenças que, evidentemente, podem se

multiplicar pelo número de segmentos sociais que se valem da

palavra, conduzem a que, no Direito, se mantenha uma

permanente discussão — mesmo porque os conceitos se

modificam de acordo com as mudanças históricas da sociedade

— sobre o conceito de justiça e, conseqüentemente, da relação

de direitos e deveres humanos.

Considere-se, pois, que, pelo fato de não existir um

conceito único de justiça, os procedimentos de acusação e de

defesa deverão, a cada caso em julgamento, construir condições

para que se possa chegar, apesar de todas as dificuldades, à

produção de um sentido para a palavra que se aproxime de uma

concepção que possa ser aceita como apropriada por todas as

partes envolvidas no caso.

Assim, mesmo no julgamento dos delitos mais hediondos,

deverá existir um espaço para a palavra que se oponha à da

acusação, de modo, por exemplo, a que não se diminua a

gravidade do ato, mas, se possa entender e avaliar as condições

em que foi cometido, além de refletir sobre os motivos por que o

autor do ato não se apropriou das orientações sobre o proibido,

o obrigatório e o permitido na sociedade.

Para sustentar essa posição, é preciso recordar que o

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sistema de referência do indivíduo — que orienta a sua conduta,

vale dizer, a sua competência para decidir — é constituído do

exterior para o interior. Isso possibilita, pois, no julgamento de

qualquer ato, perguntar por aquilo que é de responsabilidade

restrita do indivíduo e o que cabe à sociedade assumir.

Aqui, é preciso levar à consideração a questão de se saber

se não são as contradições que se verificam nas condutas

sociais — e de que o sistema de referência se apropria — que,

muitas vezes, subjazem ao delito pelo fato de poderem ter

levado à confusão o que orienta a tomada de decisões do

indivíduo. Parece, pois, necessário considerar, em qualquer tipo

de delito, que, se, de um lado, o instituído social impõe limites

aos desejos e impulsos dos indivíduos, num movimento [pg.

24] contrário, ele os estimula e exacerba, o que não deveria ser

desprezado no Direito, até mesmo para questionar os rumos e

as expectativas da sociedade.

2.1.5 A heterogeneidade individual

O indivíduo, quando constrói o seu sistema de referência,

entra em contato com a heterogeneidade social, o que significa

que ele também se apropria das diferenças de sentido geradas

pelos múltiplos marcos de referência.

A apropriação corresponde, pois, a escolhas que

representam, quase sempre, alinhar-se com o certo ou o justo

de um determinado segmento social, o que pode significar o

errado e o injusto para outro. Na verdade, é possível observar

que as opções de escolha são tão heterogêneas que, apesar das

pressões sociais que as limitam e controlam, elas exigem a

iniciativa e a participação do indivíduo — o que, por isso, o

compromete em termos de responsabilidades sociais.

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A adoção da concepção de que o sistema de referência do

homem se constrói do exterior para o interior poderia parecer

que se estaria tentando minimizar a importância do livre-arbítrio

ou a participação das pessoas na construção dos parâmetros

éticos e morais. Isso, porém, não é o caso. Pelo contrário:

observe-se que as apropriações incluem a heterogeneidade

social, pois, ao mesmo tempo que, na sociedade em que

vivemos, se busca preservar o instituído que diz respeito aos

valores considerados positivos, também se cultiva exatamente o

que se lhes antepõe: não se fala de uma moral na conduta

sexual e, ao mesmo tempo, se estimula, especialmente através

da mídia, a promiscuidade? Não se combate a violência e, ao

mesmo tempo, se sugere (especialmente em determinado

gênero de filme) que a solução dos conflitos se deve fazer pelo

uso da arma? Não conduz o sistema social atual a um número

cada vez maior de excluídos do processo de produção e de

consumo, ao mesmo tempo que a indústria da propaganda

bombardeia os indivíduos com estímulos insistentes para

consumir? Não se insiste em cultivar a honestidade e a

solidariedade quando parte das elites políticas e sociais se

comporta como se esses valores inexistissem? Reforça-se, aí, o

papel fundamental da escolha individual.

Por outro lado, porém, o processo de configuração do

sistema de referência dos indivíduos — na sociedade atual —

sofre um outro tipo de problema e que diz respeito à lei e à sua

aplicação efetiva: se o texto legal diz, por exemplo, que todos

são iguais perante a lei, que todos têm direito a uma vida digna

que implica educação, saúde, alimentação, moradia etc., [pg.

25] o indivíduo que não tem acesso a esses bens sociais e,

observando que outros têm isso facilitado, com certeza, criará

objeções sérias a qualquer tipo de restrição à sua conduta

Page 30: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

inconformada e agressora.

Por isso, um sistema de referência que acolhe, ao mesmo

tempo, a orientação de que é preciso respeitar a lei e o exemplo

de inobservância dado exatamente pelos segmentos

responsáveis pela elaboração da lei orientará de uma forma

confusa o indivíduo, o que, muitas vezes, pode atingir todos os

graus de atos anti-sociais.

Assim, o que interessa especificar quanto à

heterogeneidade dos sistemas de referência que orientam a

conduta dos homens na sociedade, mormente no que diz

respeito às contradições facilmente perceptíveis quanto às

normas de conduta, torna-se importante, em especial, na dis-

cussão sobre as atividades que se realizam na argumentação

jurídica.

2.1.6 O controle da heterogeneidade

Tendo em vista que a heterogeneidade de sistemas de

referência produz uma multiplicidade de sentidos ou excedente

de singularidades que estão na origem de grande parte dos

conflitos sociais, compreende-se que a disputa também

perpassa a linguagem. Não ocorre, porém, a disputa apenas

através da linguagem, mas também pela posse daquela lin-

guagem que está ligada ao exercício do poder. E não só pela

linguagem se luta — luta-se também pelos mecanismos e

procedimentos institucionais que controlam e determinam o

acesso à linguagem do segmento social hegemônico e às

possibilidades de usá-la. Ou seja, através da linguagem, os

indivíduos e os grupos procuram fixar sentidos gerados por seus

sistemas de referência e fazer com que se imponham como

orientadores de condutas e procedimentos. Conseguir a adesão

Page 31: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

do(s) outro(s) significa aumentar o alcance dos efeitos de uma

representação da realidade e consolidar o exercício de um

poder.

Por isso, pode-se afirmar que argumentar — um processo

lingüístico que tem por objetivo conseguir a adesão de outrem

— também diz respeito à disputa de espaços e de lugares, vale

dizer, de poderes para determinar os sentidos convenientes,

corretos ou não, melhores ou piores etc.

E se a heterogeneidade social conduz a que circulem na

sociedade múltiplos sentidos singulares — vale dizer, linguagens

— ela também explica por que é preciso, em primeiro lugar,

atuar sobre a diversidade com o objetivo de possibilitar o

exercício lógico: não se pode armar uma [pg. 26] relação lógica

do tipo se... então ou ora.... logo quando os conceitos com os

quais se construirá a relação não tiverem a singularidade bem

circunscrita, ou seja, a argumentação só poderá se tornar uma

atividade bem sucedida se as diferenças de sentido não criarem

uma vaguidade e uma imprecisão insuportáveis ao exercício

lógico.

Desse modo, quando se fala em formas de controlar a

heterogeneidade, faz-se referência a dois tipos diferentes —

mas interdependentes — de procedimentos:

1. Aquele que visa a, através do domínio especialmente

das instituições, controlar o acesso e a circulação da linguagem

que o segmento social hegemônico usa. Controla-se, aqui, quem

pode falar, de que, em que circunstâncias e com qual

linguagem: são controles externos que, ao instituir um ethos do

discurso, dão-lhe forma e sentidos caracterizantes.

2. Aquele que visa a, através de processos lingüísticos,

determinar os limites significativos das palavras: são os

controles internos.

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Os recursos mais freqüentes para fixar o sentido duma

palavra ou expressão, embora haja outros, são a paráfrase e a

definição.

A paráfrase é uma construção que busca, substituindo uma

frase por outra(s), tornar mais nítidos os contornos dos sentidos,

o que se pode observar no seguinte exemplo: “Diz o ministro da

educação que É preciso acabar com a cultura da repetência. E

isso significa que é preciso... significa que é preciso... significa

que é preciso... etc.”. Outras expressões que, além dos dois

pontos, introduzem a paráfrase são isto é, ou seja, em outros

termos etc. O que se pode observar, na parafrasagem, é que o

enunciante procura fixar os limites que considera interessantes

para os objetivos de sua argumentação: as paráfrases redizem a

expressão cujo sentido se quer controlar e, assim, marcam

limites e revelam os contornos dum sistema de referência.

A definição, por sua vez, não tem o privilégio da amplidão

de espaço e tempo da paráfrase: ela busca, com outras

palavras, uma delimitação rápida do sentido da palavra e,

freqüentemente, inicia por expressões como entendo por essa

palavra o seguinte ou quero usar a expressão com o seguinte

sentido etc.

Enfim, os controles dos limites do sentido têm o objetivo

de, uma vez, possibilitar o exercício lógico inerente à

argumentação e, por outro lado, evitar que a imprecisão e a

vaguidade representem a abertura para a crítica e a

contrapalavra. [pg. 27]

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3

A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO

JURÍDICA

Argumentar é uma atividade através da qual, valendo-se

de recursos lógico-formais e de linguagem, alguém tenta

convencer outrem de que um determinado sentido ou tese é a

melhor alternativa para a solução de um problema ou uma

dificuldade. A base da argumentação, nas disciplinas lógicas e

matemáticas, são os axiomas, entendidos como verdades

irrefutáveis, indiscutíveis ou que não necessitam de provas. A

argumentação jurídica, porém, não trabalha com verdades

irrefutáveis de vez que difere da lógica formal, onde, conforme

Perelman,

O lógico é livre para elaborar como lhe aprouver a linguagem

artificial do sistema que constrói, para determinar os signos e

as combinações de signos que poderão ser utilizados. Cabem a

ele decidir quais são os axiomas, ou seja, as expressões sem

provas consideradas válidas em seu sistema, e dizer quais são

as regras de transformação por ele introduzidas e que

permitem deduzir, das expressões válidas, outras expressões

igualmente válidas no sistema. A única obrigação que se impõe

ao construtor de sistemas axiomáticos formalizados e que torna

as demonstrações coercitivas é a de escolher signos e regras

que evitem dúvidas e ambigüidades. (1996a, p. 5)

Page 34: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

No Direito, esse modelo de atividade não pode ser

adotado, tendo em vista, especialmente, dificuldades que são,

essencialmente, lingüísticas, ou seja: [pg. 29]

1. A escolha de uma base ou ponto de referência (no

Direito, em geral, é a lei) que se aproxime do que representam

os axiomas para as ciências exatas, embora represente uma

certa liberdade para o argumentador, ainda o submete ao que

determina a heterogeneidade social, uma vez que ela não só

fixa os horizontes das escolhas possíveis mas também, ao

mesmo tempo, abre o leque das possibilidades de interpretação

que a fragilizam quanto a uma irrefutabilidade;

2. Uma versão sempre é construída a partir de interesses

específicos e, embora pareça poder garantir os elementos de

apoio e sucesso da sustentação de uma tese, pode, porque é

também linguagem, receber críticas: não são os fatos que serão

apresentados, mas as versões construídas a partir de sistemas

de referência — que, por serem diferentes, podem opor-se

reciprocamente e fragilizar aquilo que deveria criar a consistên-

cia. E, mesmo que se fale de evidências, há, muitas vezes,

possibilidades de fragilizá-las: basta recorrer à noção de

heterogeneidade referencial. Ou seja, os sistemas de

interpretação gerados pela heterogeneidade social apresentam

tal variedade de possibilidades que praticamente qualquer

versão pode, se não for destruída, ao menos ser minimizada

quanto aos efeitos para a sustentação da tese.

Ora, se a argumentação jurídica visa à sustentação de uma

tese (e que se apóia em determinada versão), ela é, de fato, um

processo posterior à produção dos sentidos, ou seja, a

argumentação sucede à interpretação (entendida como

atividade produtora de sentidos). Por isso, pode-se dizer,

também, que a argumentação depende da interpretação porque

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o sistema de referência que é acionado nesta também orienta

aquela, fornecendo, no Direito, inclusive, elementos para a

produção das provas.

Pelo fato, pois, de a linguagem ser instrumento de

produção e de delimitação de sentidos, compreende-se a sua

importância na prática jurídica onde a interpretação realiza-se

tanto em relação aos atos e objetos (incluídos os textos)

produzidos pelo homem como aos fatos. Processa-se partindo,

sempre, de um marco inicial — uma referência — que orienta e

fixa os limites dos sentidos que serão produzidos. A produção do

sentido, quer seja de um texto, quer seja de um fato, nunca

deixa, contudo, de incluir, no processo, a noção de que os

objetos e os fatos são produzidos e ocorrem sempre em

determinado contexto sociocultural e histórico.

Assim, as circunstâncias que cercam fatos e objetos

precisam também ser interpretadas, precisamente, porque elas

são determinações a que se submete a produção de sentidos.

Explique-se: o indivíduo que produz um texto ou um outro objeto

qualquer, no exato momento da [pg. 30] socialização do

produto de seu trabalho, precisa tomar em consideração os ele-

mentos do contexto em que se dá a sua atividade que, por isso,

torna-se objeto e orientação da interpretação que realizam os

receptores do produto. Isso quer dizer que, além do texto, do

objeto ou do fato, as circunstâncias de ordem histórica, social,

cultural, geográfica etc. devem ser consideradas como

importantes para a produção do sentido, isto é, da in-

terpretação.

Em outros termos, quando o indivíduo interpreta um texto

ou um fato (produz uma versão possível), precisa também

orientar-se por elementos do contexto. Pode, porém, acolher —

e isso influirá no sentido — em maior ou menor escala esses

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elementos, ou seja, pode ampliar ou reduzir os limites do

contexto que levará em consideração, precisamente porque a

sua atividade é orientada por um sistema de referência que

também abriga interesses específicos do grupo em que ele está

inserido.

3. O fato de, no Direito, estarem previstas tanto a

atividade da acusação como a da defesa, revela que a prática

respeita a diversidade referencial e, por isso, se diz que ela não

trabalha com verdades, mas com teses. Assim, a argumentação

jurídica, ao admitir que qualquer ato pode e deve ser

interpretado diferenciadamente de modo que as versões tanto

podem levar a que o seu autor seja condenado como, a ser

inocentado, diz que se assume que os conceitos de justiça não

são nem unívocos, nem imutáveis, mas construídos na prática

interativa.

A presunção do contraditório — pode-se afirmar, pois —

submete as interpretações, na prática jurídica, a um tipo de

determinação que impede que se possa propor uma lógica das

verdades: se o ritual jurídico prevê que qualquer delito ou

conflito precisa ser abordado de dois ângulos opostos para que

se possa retirar desse embate os elementos para, se não

produzir a justiça no sentido pleno, pelo menos impedir ou

minimizar a injustiça, as interpretações são orientadas não

apenas por sistemas de referência, mas fundamentalmente por

interesses antagônicos. Por isso, as versões das partes não se

preocupam tanto com a verdade, mas, sim, em garantir que

uma determinada tese, na qual sempre se encontram embutidos

interesses e valores, prepondere sobre a outra.

Embora haja, no Direito, um conjunto de normas cuja

função é orientar as interpretações, ainda assim o polêmico e o

contraditório se manifestam precisamente porque a pressão da

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heterogeneidade é mais forte do que o controle.

Isso explica, em primeiro plano, pois, por que a

argumentação jurídica não é do mesmo nível da que se pratica

nas ciências matemáticas [pg. 31] e naturais — ditas lógicas e

formais — : no Direito, embora se tomem por modelo

procedimentos da lógica, o fato de não se trabalhar com

verdades reveláveis e demonstráveis, mas com teses que

podem ou não ser sustentadas, o processo de argumentação

também pode ser chamado de quase-lógico. Assim, nas ciências

matemáticas e naturais buscam-se verdades; no Direito,

verossimilhanças.

O quadro abaixo pode visualizar melhor o que se disse:

Enfim, uma característica que identifica a argumentação

jurídica é a presunção de que a cada tese é possível construir

uma antítese, o que vai determinar que as escolhas dos

recursos argumentativos visem a superar ou a minimizar as

fragilidades dos sentidos da linguagem e a reforçar os

procedimentos de sustentação da tese. Em outras palavras, isso

quer dizer:

1. que o sentido da palavra justiça é construído a cada

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interação jurídica, o que não quer dizer que a palavra não tenha

nenhum sentido;

2. que é preciso construir um conceito genérico de justiça,

que, embora seja bastante vago e indefinido nos seus

contornos, possa servir de acordo ou ponto de início das

argumentações tanto da acusação como da defesa;

3. que há tantos conceitos singulares de justiça quantos

forem os sistemas de referência em circulação na sociedade;

4. que a imposição de um determinado conceito de justiça

como o único e o melhor é um ato ideológico que intenta

submeter segmentos sociais que se valem de conceitos

diferentes. [pg. 32]

Isso posto, compreende-se que a argumentação jurídica só

se realiza porque há a possibilidade permanente da contradição,

entendida como resultado da multiplicidade de sentidos

possíveis dos fatos, da lei e da forma diferenciada de aplicação

das normas. O Direito, pois, é uma prática do questionamento:

sobre o caráter do conflito, isto é, se ele é ou não, jurídico; sobre

o ato e sobre o autor; sobre se a versão (a interpretação) do ato

é aceitável ou não; sobre como enquadrar a versão do fato na

lei etc.

As argumentações que constroem as partes conflitantes

têm, enfim, — como já se disse — o objetivo de fornecer

elementos que, partindo de um conceito genérico, possibilitem a

produção da justiça num plano singular: a sentença pode, por

isso, incluir sempre justificativas recolhidas das atividades tanto

da acusação como da defesa, precisamente para mostrar que

ela não contém nem arbitrariedades, nem injustiça.

Essas dificuldades ou comprometimentos apontados não

desobrigam, porém, a prática jurídica de organizar o seu

raciocínio de modo a que possa obter o convencimento

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desejado.

E, por isso, uma atividade que se impõe como essencial e

prioritária é o controle da heterogeneidade4, o que demanda

dois procedimentos diferentes, mas interdependentes:

4 É preciso salientar que é a heterogeneidade de sentidos que possibilita que a argumentação jurídica adote modelos lógicos de outras ciências, além das técnicas e das estratégias para a produção e a maxi/minimização de argumentos: ela propicia que. através, Por exemplo, das paráfrases e das definições, o argumentador “fixe” os sentidos que lhe interessam para, depois, preocupar-se com o raciocínio lógico.

a) Recorre-se, em primeiro lugar, à determinação de um

ethos do discurso jurídico, explicitado na forma de

normas orientadoras (ou Hermenêutica Jurídica). E o

controle institucional do Direito que marca quem pode

falar o que, como e em que circunstâncias, ou seja, o

discurso assume formas e conteúdos específicos da

prática jurídica;

b) O segundo tipo de controle — que explicitei em páginas

anteriores — serve para que o Direito possa armar

modelos lógicos para o seu raciocínio.

No Direito, a paráfrase pode, por exemplo, ser empregada

em

frases como Neste caso, importa fazer justiça, o que

significa que... etc. etc... [pg. 33]

A definição, por sua vez — já que ela se ocupa em

esclarecer não tanto uma frase, mas uma determinada palavra

— pode aparecer em exemplos como Utilizarei a palavra justiça

entendida como... etc...

Na prática jurídica, existem ainda, além dos processos da

paráfrase e da definição, outras formas5 de cuidar da construção

de uma linguagem que se aproxime do desejável em termos de

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univocidade:

5 Não considerarei como interessante o recurso às expressões do latim para precisar sentidos, porquanto o processo histórico de qualquer língua altera os sentidos das palavras à medida em que se modificam as circunstâncias socioculturais.

1. Como há a dificuldade de controlar as interpretações

tanto dos fatos como do texto legal, institui-se um conjunto de

normas orientadoras. Elas fixam uma certa orientação para

qualificar, por exemplo, um ato ou como tentativa de homicídio

ou como lesão corporal.

2. Uma outra forma de contornar as dificuldades que a

heterogeneidade social cria para a prática jurídica,

especialmente diante da necessidade da produção das

sentenças e das tomadas de decisão, leva o Direito a trabalhar

com o que se chama de presunções jurídicas.

As presunções jurídicas podem ser consideradas um

acordo que, fixando orientações para a produção de sentidos de

justiça, tem a finalidade de facilitar a produção da sentença ou a

tomada de decisões. Elas não se submetem à discussão

imediata, embora não devam ser consideradas imutáveis e, por

isso, semelhantes às leis das ciências matemáticas e naturais.

Melhor: as presunções não são discutidas no momento imediato,

embora se modifiquem historicamente, adaptando-se ao insti-

tuído social. Elas dizem, enfim, respeito a uma normalidade

aceita pela sociedade e (...) protegem o Estado de coisas

existente (PERELMAN, 1996b, p. 586).

A presunção se explica, na verdade, por motivos de

segurança jurídica, em termos de cuidados e de facilitação da

promoção da justiça, o que inclui, por exemplo, postar-se contra

as possibilidades da calúnia, do abuso de poder, da destruição

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da ordem familiar etc.

Por isso, essa função pode, igualmente, ser considerada

um controle dos sentidos da palavra justiça, pois a presunção

jurídica que propõe, por exemplo, que, em caso de dúvida, se

decida a favor do réu, determina que, no ritual em que atuam

defesa e acusação, somente à segunda é permitido retirar-se do

debate. A defesa sempre se cobrará a presença quer seja para

que não se condene um inocente, quer seja para que não se

puna com maior rigor do que o necessário o autor de delito, ou

[pg. 34] mesmo, para analisar as responsabilidades da

sociedade no fato em julgamento.

O Direito atua, pois, apoiado em algumas presunções entre

as quais são importantes as seguintes:

— a qualidade de um ato manifesta a da pessoa que o

praticou;

— a credulidade natural faz que nosso primeiro movimento

seja acolher como verdadeiro o que nos dizem;

— todo enunciado levado ao nosso conhecimento nos

interessa;

— todo indivíduo é inocente até prova em contrário;

— o pai legal da criança é o marido da mãe dela;

— ninguém pode alegar desconhecimento da lei;

— em caso de dúvida, decide-se a favor do réu etc.

3.1 A ESPECIFICIDADE DA LÓGICA JURÍDICA

A argumentação jurídica, embora não vise a verdade,

também precisa valer-se de determinados modelos de

raciocínio: uma vez postos em prática os dois tipos de controles

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da heterogeneidade lingüística, criam-se as condições mínimas

necessárias para que se possa submeter a atividade

argumentativa do Direito a uma lógica específica.

E quando se fala de uma lógica específica, incluem-se duas

idéias:

1. que o Direito atua como um sistema lógico, ou seja, que

os enunciados do sistema jurídico podem ser organizados

segundo os princípios e as regras do raciocínio lógico;

2. que há uma especificidade que se organiza segundo

referências e parâmetros próprios.

Ora, das duas idéias contidas na expressão lógica jurídica

cabe, no presente trabalho, aprofundar a segunda, já que a

questão de haver ou não, um sistema jurídico lógico pode ser

remetida a outro tipo de reflexão.

Assim, consentida a idéia de que há um sistema lógico,

pode-se considerar que ele se constrói tendo como suportes dois

tipos de referências: [pg. 35]

1. as de ordem prescritiva que se compõem dos modais

deônticos, é obrigatório — é permitido — é proibido, que dão

lugar a um conjunto de normas que pode ou não estar

materializado na forma de lei;

2. as de ordem descritiva que dizem respeito às normas

que fixam as conseqüências que pode gerar a infração das

prescrições.

A especificidade, pois, duma lógica jurídica se constrói, em

termos gerais, pela adoção dos princípios e das regras do

raciocínio lógico, e, segundo, pela adaptação dos modelos às

referências prescritivas e descritivas que sustentam a prática

jurídica. Há, pois, diferenças na lógica jurídica e que se refletem

no modo de verbalizar as teses, tanto que as ciências em geral

valem-se do verbo ser, e o Direito, da locução dever ser: a

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orientação do que é proibido, é permitido e é obrigatório impõe

que uma tese de julgamento — que sempre é discutível —

afirme que fulano deve ser considerado inocente ou culpado

porque o seu ato deve ser condenado como prejudicial à

sociedade. E é essa característica de linguagem do raciocínio

que pode servir para entender melhor a especificidade da lógica

jurídica, ou seja, a argumentação, no Direito, adota os modelos

lógico-formais, mas atua sob a orientação das três referências

modalizadoras cuja operacionalização, como se pode observar,

depende de acordos sociais, ao contrário das ciências que

buscam verdades independentes do que a sociedade pensa

sobre elas.

Os deônticos, pois, são as referências à luz das quais se

regularão as relações sociais. Elas dão forma e conteúdo às

normas legais e àquelas que não assumem a forma de lei.

Entende-se, pois, assim, que essa característica de

submeter a argumentação jurídica a modelos lógicos, assumindo

o prestígio do rigor lógico, leva à observância obrigatória de três

condições: a coerência, a coesão e a congruência.

A coerência diz respeito à relação de compatibilidade (ou

verossimilhança) entre um ponto de referência que pode ser um

texto (por exemplo, a lei), um dito ou uma concepção da

realidade: a referência impõe que entre ela e a versão de um

fato não haja uma imagem de contradição, o que estabelece a

verossimilhança ou a plausibilidade da tese jurídica. A referência

se faz, pois, necessária como se fosse um foco que iluminasse e

orientasse o que se diz: não contradizer essa referência significa

ter coerência (e credibilidade), contradizê-la representa o

descrédito.

Por coesão entende-se o conjunto de relações que

organizam e sustentam os conceitos e as idéias de uma

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argumentação em termos de [pg. 36] não construírem

contradições e vácuos semânticos que conduzam à negação

umas das outras ou à falta de conexão entre elas. A coesão —

ao contrário da coerência que se refere às não-contradições com

o exterior de uma argumentação — significa a “amarra” lógica

interna das partes de um texto. Ela depende, porém, da

coerência, pois, num texto em que se contradiz a referência,

implode-se a coesão.

A congruência — que depende da coesão e da coerência —

por sua vez, diz respeito à condução e ao direcionamento do

processo argumentativo: ele deve partir de um determinado

espaço significativo e caminhar com segurança e clareza em

direção a um outro. O argumentador, quando dá importância à

congruência, segue uma linha ou um traçado — na busca de

uma conclusão — que deve ficar tão perceptível que não crie

dificuldades desnecessárias para que o auditório acompanhe o

raciocínio.

No Direito, portanto, a coerência, em geral, se constitui

tomando como referência e apoio o que dizem a lei, a

jurisprudência e as presunções, o que, entretanto, não é

suficiente para oferecer garantias de que a argumentação tenha

sucesso, pois, para estabelecer a coerência, pode o

argumentador também valer-se de conceitos que não estão

contidos nestes textos, como, por exemplo, os que se referem a

valores novos que a sociedade adotou como balizadores das

condutas etc. Esses conceitos devem, por conseguinte, fazer

parte do instituído social em termos de não contradizerem os

deônticos adotados pela sociedade.

Enfim, a coerência da argumentação jurídica se constrói na

observância do primeiro tipo de controle da heterogeneidade

lingüística, o institucional: a referência que orienta a

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argumentação jurídica é sempre um sentido genérico submetido

à tríade deôntica institucionalmente garantida.

A coesão e a congruência — diferentemente da coerência

— são conseqüências dos efeitos do segundo tipo de controle da

heterogeneidade: as paráfrases e as definições devem impedir

que haja contradição entre os sentidos que sustentam e que dão

rumo ao raciocínio. Por isso, somente após serem controlados e

delimitados os sentidos da linguagem, pode a argumentação

jurídica dedicar-se à construção de sua lógica que, em geral,

adota a forma de um silogismo, precisamente porque ele se faz

orientação para que se preencham as condições básicas da

argumentação:

1. Estabelece uma referência orientadora do raciocínio;

2. Garante a coesão interna; [pg. 37]

3. Fixa uma orientação segura para o raciocínio linear e

congruente;

4. Vale-se de uma operação lógica eficiente com os pares

ora.. logo ou se... então.

Essa importância do silogismo, como orientador da

argumentação jurídica, pode ser observada em:

Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser

condenado.

Ora, João matou em legítima defesa.

Logo, João não deve ser condenado 6.

6 Não me ocuparei com outras formas de silogismo, mas apenas com o que considero um exemplo clássico, tendo em vista que os objetivos do meu trabalho estão voltados mais às questões que dizem respeito à relação da linguagem com a argumentação jurídica.

Neste modelo de silogismo, o primeiro enunciado —

recortado do texto da lei — constitui-se como referência para o

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raciocínio e deve, observada a correta disposição e conexão das

partes, garantir a coerência da sustentação.

A coesão do raciocínio fica garantida pela presença e

disposição correta dos termos dos três enunciados, em que o

predicado da tese é também o predicado do primeiro enunciado

(premissa maior — PM), o sujeito da tese é o sujeito do segundo

enunciado (premissa menor — Pm) e o sujeito do primeiro

enunciado cobre semanticamente o sujeito do segundo

enunciado e fornece os elementos para o predicado do segundo.

Os pares de operadores argumentativos “ora...logo” ou

“se...então” determinam a congruência do raciocínio.

A argumentação jurídica, porém, embora adote os modelos

das ciências matemáticas e naturais, apresenta uma diferença

fundamental: a relação que constrói entre dois sentidos (ou

dados) não leva em conta a descoberta e a demonstração de

uma verdade, mas, um comprometimento com a noção de

justiça. É uma relação de imputação, ao contrário do que

ocorre nos silogismos das ciências matemáticas e naturais, onde

o objetivo não é imputar, mas: [pg. 38]

1. descobrir uma verdade ou um valor, pois

se x + y = 10

e x = 3

então y = 7

ou

2. demonstrar a irrefutabilidade da hipótese em

Todos os homens são mortais.

Ora, João é homem.

Logo, João é mortal.

A atividade argumentativa, nos dois exemplos acima, vale-

se da relação que se pode estabelecer entre as duas primeiras

Page 47: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

afirmações para descobrir ou demonstrar uma terceira.

O silogismo jurídico também se vale da relação entre os

dois primeiros enunciados, mas tem outro objetivo como se

pode ver no exemplo dado. Ele não visa à descoberta ou à

demonstração de uma verdade na relação entre “matar em

legítima defesa” e “não deve ser condenado”: o objetivo não é

nem demonstrar, nem descobrir, mas sustentar uma tese de

aplicação de um valor, o que também quer dizer imputar e

justificar um julgamento.

As diferenças, assim, entre os exemplos de argumentação

dizem respeito aos objetivos dos raciocínios que trabalham com

sentidos que ou vão ser denominados de verdades científicas ou

de teses, isto é, as primeiras buscam a irrefutabilidade, as

segundas, a verossimilhança.

Outrossim, cabe lembrar que a atividade argumentativa —

agora apoiada no silogismo — parte da tese cujo teor está

comprometido com interesses bem específicos e precisa se

apoiar sempre numa versão (que é resultado de uma

interpretação), ou seja, a defesa dos interesses envolvidos na

argumentação jurídica tem, como ponto de partida, a produção

duma versão que, também comprometida, deve ser verossímil o

suficiente Para sustentar a tese. Depois dessa etapa, a

estruturação do raciocínio — sob a orientação de um silogismo

— parte para a formulação ou a escolha dos outros enunciados

(ou premissas).

A tese, pois, corresponde ao terceiro enunciado do

silogismo, e a versão que a sustentará está contida no

predicado do segundo enunciado. [pg. 39]

A estruturação, então, deste modelo de silogismo,

adotando como exemplo a tese jurídica João não deve ser

condenado, cumpre os seguintes passos:

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1. O predicado da tese (não deve ser condenado) fará

parte do predicado da PM; 2. O sujeito da tese (João) será o

sujeito da Pm; 3. A tarefa mais difícil, em geral, mesmo quando

se busca apoio na lei, é construir o sujeito da PM (Todo aquele

que mata em legítima defesa...) que deve ter um caráter o mais

abrangente possível de maneira que possa ser continente do

sujeito da tese, ou seja, a generalidade (ou universalidade) deve

ter condições de cobrir a singularidade, além de acolher — por-

que, no Direito, uma presunção relaciona a qualidade do ato

com a do autor — a versão que os deônticos permitirem

construir e que corresponde ao predicado da Pm (legítima

defesa). Compõe-se, pois, o sujeito da PM de duas partes (o

continente do sujeito da tese e o predicado da Pm ou versão da

tese). A PM pode apresentar quantificadores como todos, nin-

guém, tudo, nada etc. Não pode, porém, apresentar

quantificadores como alguns, a maioria, apenas etc., pois essas

escolhas negariam o caráter generalizante e impositivo dos

deônticos.

Como se pode observar, a estruturação do silogismo

jurídico parte da tese que se ocupa dum fato singular para,

seguindo etapas e preenchendo espaços, formalizar a premissa

maior. Esse processo é, pois, eminentemente indutivo.

3.2 A INDUÇÃO NA ESTRUTURAÇÃO DO SILOGISMO

A construção da tese é a primeira etapa da estruturação

do silogismo jurídico, cujos limites serão fixados por um objetivo

inicial: a tese vai se postar a favor ou contra uma outra tese, e

deverá, por isso, submeter a sua atividade interpretativa a esses

objetivos fixados pelo ritual jurídico. Essa afirmação implica

dizer, por exemplo, que as interpretações do inquérito policial,

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da versão do autor do fato, das versões das testemunhas

eventuais, dos dados da perícia etc. produzem sentidos que

podem ser diferentes e que, por isso, uma vez, garantem as

atividades de defesa e de acusação e, segundo, requerem que a

argumentação aloque procedimentos de controle e delimitação

de sentidos para, em seguida, poder operar com modelos

lógicos.

O que deverá sustentar, pois, a tese é um conjunto de

interpretações que deve conduzir à produção de uma versão

verossímil porque ela é condição fundamental para o sucesso da

argumentação, [pg. 40] principalmente porque a tese é, em

resumo, uma versão submetida a um julgamento.

Enfim, a produção da tese comporta dois momentos

distintos, mas inseparáveis:

a) a produção do sentido de atos e fatos.7 É uma

interpretação já comprometida ou com a defesa ou com

a acusação que produz esse sentido, o que requer

delimitações e controles que atendam os objetivos

próprios da parte e que possibilitem o rigor do

raciocínio.

7 O ato é, aqui. entendido como uma atividade desenvolvida por um indivíduo, sendo que a contextualização desse ato produz o que se denomina de fato que pode ou não, ser jurídico. Assim, João matou uma pessoa é um ato, mas não necessariamente um tato jurídico porque pode, por exemplo, o ato ter ocorrido na gueixa ou numa batida Policial etc.

A versão de um ato pode ter ou não, concordância das

partes que se enfrentam no debate. Quando, porém, houver

concordância, pode-se falar em verdade fáctica. Essa

concordância em torno de uma versão não impede, entretanto

— porque a interpretação sempre levará em consideração os

Page 50: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

interesses das partes — que as argumentações tanto da acusa-

ção como da defesa apresentem elementos diferenciados

daquilo que envolve imediata ou mediatamente o ato, ou seja, o

contexto do ato será utilizado para a produção da versão do fato

de acordo com os interesses de cada parte envolvida, e, por

isso, as versões (e as teses) obrigatoriamente serão diferentes.

Isso significa, em outros termos, que, na construção da

versão que lhe interessa, o argumentador recorrerá às provas e

aos indícios que julgar importantes na construção da

verossimilhança e convenientes à sustentação da tese, além de,

evidentemente, pensar na referência — por exemplo, a lei — à

luz da qual atuará no enquadramento da versão.

O seguinte exemplo pode esclarecer isso melhor: João

matou uma pessoa. O ato de João (ter matado uma pessoa)

pode ser uma evidência ou verdade fáctica. Os recortes e as

interpretações daquilo que circunscreve, porém, o ato, ou seja,

o contexto, vão compor o fato e produzir versões diferenciadas

porquanto têm orientações de interesses antagônicos. Assim,

uma contextualização menos abrangente do ato pode produzir

uma versão que condene o autor da morte. Construindo, porém,

um contexto mais amplo, o ato de João pode até inocentá-lo:

basta aprovar a tese da legitima defesa ou da do cumprimento

de função (militar, por exemplo) etc. [pg. 41]

Isso mostra que a contextualização de um ato participa da

interpretação dele e é de tal forma importante que pode

condenar ou absolver o autor de uma morte — ou pode até fazer

com que seja considerado um herói.

b) a produção de um julgamento. É a avaliação da versão

do fato produzida pela interpretação, tomando como

referência que pode ser ou a lei vigente, ou a

Page 51: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

jurisprudência formada, ou os valores sociais instituídos.

Esse julgamento se estende ao autor envolvido no fato,

baseado na presunção de que a qualidade do ato revela

a qualidade de seu autor, isto é, uma versão que implica

uma condenação do ato, condena o autor, ou o

contrário, quando o ato não é condenável, o autor é ab-

solvido.

A seleção de indícios e provas é o momento da

argumentação jurídica em que o objetivo é colher e apresentar

os elementos contextualizadores do ato e que se incluem como

elementos que participam da produção da versão do fato, ou

seja, o que, direta ou indiretamente, envolve o ato representa

um apoio importante à interpretação do acontecimento e, por

isso, à sustentação da tese.

As provas mais comuns são as versões de atos e fatos

precedentes e subseqüentes, ou seja, os depoimentos das

partes e das testemunhas, além do laudo pericial. Elas só

interessam, contudo, quando se submetem aos objetivos ou da

defesa ou da acusação e contribuem para a construção da

verossimilhança.

É preciso, aqui, diferenciar os efeitos que podem produzir

as provas e os indícios: enquanto aquelas têm por objetivo

construir uma imagem de certeza, estes têm a finalidade de

sugerir, levantar hipóteses ou conduzir a suspeitas, o que,

quando bem trabalhado, pode ter — quase ao nível das provas

— um forte efeito na construção da verossimilhança.

A possibilidade, contudo, de o argumentador ou levantar

suspeitas ou criar a imagem da certeza, também depende dos

sistemas de referência do auditório: toda e qualquer informação

vai ser interpretada e avaliada pelo referencial que os indivíduos

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receptores do raciocínio trazem da história que viveram dentro

de determinados segmentos sociais. Quer dizer que tanto os

indícios como as provas, no Direito, também se submetem aos

efeitos da heterogeneidade social e referencial, porquanto

podem ser interpretados diferenciadamente. E isso torna a

argumentação jurídica, uma vez, mais complexa — porque mais

frágil do ponto de vista lógico e formal, e, por outra, mais

democrática — porque não se furta a acolher o resultado da

diversidade social. [pg. 42]

Apesar (ou exatamente por isso) da importância das

provas na produção da versão, também elas se submetem a

normas e presunções, porquanto precisam ser avaliadas quanto

a sua qualidade e aos efeitos legais que podem produzir,

conforme se pode depreender do que explica Perelman quando

diz que

A prova dos fatos é às vezes livre, às vezes regulamentada. (...)

Assim é que a prova de certos fatos é inadmissível. O juiz pode

recusar-se a admitir a prova dos fatos irrelevantes, cuja

materialidade em nada influencia o desfecho do processo,

assim como dos fatos cuja prova não é permitida, por exemplo

daqueles que uma difamação aventa, e isto com o intuito de

proteger a reputação das pessoas privadas. E inadmissível

igualmente, a prova dos fatos aos quais se opõe uma presunção

legal irrefragável, tal como a autoridade da coisa julgada. O juiz.

tampouco admitirá a prova de certos fatos cobertos pela pres-

crição. (PERELMAN, 1996b, p. 494-495)

E acrescenta: “A prova judiciária é livre quando as partes

podem recorrer a todos os meios suscetíveis de formar a

convicção do juiz. Contudo, o mais da vezes, a prova é

regulamentada: os meios de prova admitidos são limitados e

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legalmente hierarquizados.” (Op. cit., p. 587).

O juiz pode, pois, manifestar-se sobre o valor das provas,

sobre a propriedade ou a adequação de produzi-las, ao

perguntar-se sobre o que é preciso provar e o que pode ser

provado através de quê. Mais uma vez, a argumentação jurídica

depende dum processo de interpretação, ou seja, dependerá do

que produzirá o sistema de referência do juiz.

Outrossim, o ritual jurídico impõe, como conseqüência de

algumas presunções, que cabe ao acusador oferecer a versão e

as provas por primeiro, cabendo à defesa a tarefa de contestar e

fragilizá-las.

E, por fim, é preciso lembrar que as provas, ou as

informações — tendo em vista novamente a presunção jurídica

— podem dizer respeito tanto ao ato como a seu autor, pois

Duas são as categorias do componente informativo: a)

evidencial — informações diretamente relacionadas com o

crime; e b) não evidencial — informações constituídas pelas

características pessoais do réu. Estas, ao contrário do que se

possa imaginar, são de grande peso nas decisões judiciais.

(CORACINI, 1991, p. 52) [pg. 43]

Aqui é preciso considerar que as informações evidenciais

podem contextualizar e esclarecer mais ou menos o ato,

dependendo da interpretação e da avaliação de quem as

apresenta como importantes.

Isso, por sua vez, permite concluir que uma evidência nem

sempre é tão evidente assim, ou, em outros termos, são poucas

as evidências que podem ser sustentadas como tais devido,

precisamente, às diferenciadas formas de interpretação a que

conduz a heterogeneidade referencial.

Coracini provavelmente quis distinguir entre o que, em

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termos de provas (ou evidências) pode ser sustentado com

maior ou menor êxito: dizer que é evidente que João matou é

mais fácil — dependendo dos elementos informativos — de ser

aceito do que dizer que é evidente que João, por isso, deve ser

considerado um elemento perigoso à sociedade.

De qualquer forma, é possível verificar que a evidenciação

pode tanto ser a produção de uma verdade fática como, uma

estratégia que busca passar por evidente o que

necessariamente não é.

Outrossim, é importante lembrar que as provas e os

indícios são um tipo de argumento, mas não, o único: no caso de

o apoio em provas e indícios ser frágil ou, mesmo, inexistente, a

argumentação jurídica deverá recorrer a determinadas e

apropriadas técnicas, entendidas como produtoras de

argumentos a partir de propriedades de certas relações lógicas,

e de circunstâncias pessoais, temporais, situacionais, sociais

etc., o que, contudo, não tem relação direta com o fato em

julgamento.

Além disso, quando as provas e os indícios forem

considerados frágeis ou inexistentes, ganham importância as

estratégias à medida que, o modo de atuação — que envolve

processos de contextualização, verbalização e disposição dos

argumentos — produz efeitos surpreendentes e que influenciam

as reações do auditório, precisamente porque a argumentação

não deve ser considerada apenas um exercício lógico mas

também, um processo de interação.

A argumentação jurídica vale-se, enfim, de dois tipos de

argumentos: os que se ligam diretamente ao ato e os que são

produtos de técnicas argumentativas. Ambos visam à

construção da verossimilhança da versão do fato, o que, em

última instância, significa estruturar as condições de

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sustentabilidade da tese.

Em resumo:

1. As provas e os indícios também são resultado de

interpretações, o que aumenta as dificuldades de uma lógica

jurídica; [pg. 44]

2. Os procedimentos de alocação de indícios e de provas

se submetem, sempre, à presunção do contraditório, ou seja, as

escolhas e as intervenções ocorrem a partir do objetivo de

sustentar uma tese a favor ou contra o autor de um ato, o que

torna compreensível que o argumentador, no Direito, não pode

ser considerado, nunca, um elemento neutro e que as decisões

que produzem efeitos de justiça e se constroem no processo da

interação verbal, que é a argumentação, dificilmente alcançarão

o que se poderia entender por justiça plena;

3. Na ausência ou no caso de serem frágeis as provas e os

indícios, o argumentador pode recorrer a determinadas técnicas

para produzir os argumentos de que necessita para a produção

da versão que sustentará a tese.

O enquadramento na referência prescritiva

corresponde a uma proposta de julgamento da versão

produzida, ou seja, a sustentação da tese jurídica precisa,

obrigatoriamente, levar em consideração os modais deônticos e

as normas que eles geram, e que são encontradas, em geral,

sob a forma de lei.

O enquadramento da versão do fato jurídico é,

obviamente, orientado pelos objetivos que o argumentador

persegue, e requer uma competência para, apoiado em normas

interpretativas (de que se ocupa a Hermenêutica Jurídica)

escolher a referência prescritiva que melhor se ajusta aos

interesses em jogo. Isso quer dizer, de outra forma, que nem

sempre a lei é a melhor escolha, ou seja, o texto legal, por si só,

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não garante a promoção da justiça, mesmo porque

Dizer que as leis — científicas e jurídicas — constituem a base

da tão desejada ‘verdade objetiva’, equivaleria a afirmar o

caráter estável (regular) e imutável das mesmas. Sabe-se,

porém, que as leis jurídicas, baseadas nos valores morais,

culturais (e até mesmo no regime político de uma sociedade),

variam segundo a cultura, o país, o grupo social. (CORACINI,

1991, p. 48)8

8 A lei só pode ser invocada como reguladora das relações sociais se ela for aplicada indistintamente a todos os indivíduos da sociedade. Estou me referindo, aqui, ao problema da impunidade de que se privilegiam os indivíduos pertencentes a determinados segmentos sociais: é neste momento que o Direito falha eticamente e deixa de preencher satisfatoriamente as suas funções sociais. Além disso, é importante considerar que, se a lei é (ou deveria ser) um acordo social cuja função é orientar a atuação sobre o conflito social, ela também é um produto da atividade do segmento social hegemônico e, por isso, existe a possibilidade de se levantar o questionamento sobre se ela contempla a defesa daqueles que não pertencem a este segmento, o que Heller (1987) aborda como um conflito entre concepções de justiça, ou seja, “(...) a declaração ‘essas normas e regras são injustas’ expressa uma convicção social e política. Os que reivindicam ‘essas normas e regras são injustas’ e os que dizem das mesmas normas e regras ‘essas normas e regras são justas’ param em um conflito social (ou político) um com o outro”. (p. 193) [pg. 45]

O que se diz acima é que, apesar da resistência à

flexibilidade e à mutabilidade, a lei com a qual atua o Direito se

modifica, e é isso que a distingue da das ciências físicas e

naturais. Em outros termos, a presunção do contraditório que

acolhe a heterogeneidade referencial que se origina do tecido

social dimensiona a fragilidade lógica da prática jurídica,

precisamente porque as referências também são frágeis, o que

implica dizer que a interpretação, a argumentação e a produção

da sentença são atividades determinadas, em maior ou menor

escala — como as de qualquer outra prática social — pelo que

ocorre no tecido social, de modo que

Os textos jurídicos, trate-se de leis ou de precedentes

Page 57: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

judiciários, são habitualmente suscetíveis de interpretações

variadas, seja extensivas, por via de analogia, por exemplo, seja

restritivas, mercê das distinções que o intérprete poderia neles

introduzir. As diversas interpretações favorecem um ou outro

interesse, um ou outro valor, que estão em conflito em cada

caso específico. (PERELMAN, 1996b, p. 453)

Constata-se, pois, que, por mais incômodo que seja para a

prática jurídica, a linguagem que serve às interpretações é

comprometida com interesses sociais, de modo que se poderia

dizer que o instrumento destinado a intervir no conflito já está,

na sua origem e natureza, perpassado pelo problema.

Além do que

sabemos que, ao lado de regras de direito que ninguém cogita

em contestar, nem em interpretar à sua maneira, todo sistema

de direito comporta bastantes elementos de incerteza, dá ao

juiz bastante liberdade e depende tanto da convicção íntima do

juiz (...) que a personalidade do juiz sempre cumpre um papel,

às vezes limitado, mas às vezes decisivo, no desenrolar do

processo e em seu desfecho. (PERELMAN, 1996b, p. 493-494)

Quando Perelman fala da importância da personalidade do

juiz, na verdade, aborda o problema da heterogeneidade dos

sistemas de [pg. 46] referência, e que precisa ser controlado

no processo de produção de sentidos: é esse “nem em

interpretar à sua maneira” em confronto com “bastante

liberdade” e “convicção íntima” que configuram a

complexidade, o que explica a importância da Hermenêutica,

entendida na sua especificidade, conforme o faz Bastos (1997):

Faz sentido aqui a diferença posto que hermenêutica e

interpretação levam a atitudes intelectuais muito distintas. Num

primeiro momento, está-se tratando de regras sobre regras

Page 58: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

jurídicas, de seu alcance, sua validade, investigando sua

origem, seu desenvolvimento etc. (...) Já a interpretação não

permite este caráter teórico-jurídico, mas há de ter uma

vertente pragmática, consistente em trazer para o campo de

estudo o caso sobre o qual vai se aplicar a norma. (BASTOS,

1997, p. 21)

Em resumo, os motivos por que a lei pode ser interpretada

diferentemente e, em conseqüência, ser também objeto

polêmico e espaço de argumentação são vários, dentre os quais:

a) A lei é um acordo verbalizado, produto do trabalho dos

homens de alguns (mas não de todos) segmentos

sociais, cuja atividade é conduzida sob as pressões

históricas e sociais, ou seja, sob a pressão dos conflitos

sociais.

E — porque é linguagem — a lei, necessariamente,

reflete essa realidade e, como conseqüência, assume um

caráter o mais genérico possível: apresenta, pois,

espaços vazios e incompletudes de sentidos que as

diferentes interpretações e argumentações deverão

tomar como objeto de trabalho;

b) Embora a interpretação da lei seja orientada por um

conjunto de normas jurídicas, as dificuldades não

desaparecem, pois as normas também são linguagem,

ou seja, também são interpretáveis de forma

diferenciada pelos diversos sistemas de referência

ligados a diferentes segmentos sociais. Por isso, o poder

do juiz pode — e deve — ser questionado

permanentemente pela sociedade, precisamente,

porque as suas decisões submetem-se, sem dúvida

nenhuma, a interesses de segmentos sociais aos quais

Page 59: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

ele está vinculado histórica e culturalmente.

c) O objetivo que orienta a atividade do advogado, visando

à acusação ou à defesa, i.é, as diferenças de objetivos,

leva a [pg. 47] diferentes recortes da lei, o que mostra

que o enquadramento pode ser diferenciado;

d) A lei, por função, tem um caráter mais conservador ou

estático, o que impede que acompanhe as

transformações sociais que, pela sua dinamicidade,

caminham sempre à frente dos acordos legais.

Desse modo, percebe-se a importância do processo de

interpretação na prática jurídica, o que acarreta uma série de

dificuldades que se originam da heterogeneidade social e

referencial. São, pois, questões de linguagem que levam a que

O raciocínio jurídico, mesmo sendo sujeito a regras e a

prescrições que limitam o poder de apreciação do juiz na busca

da verdade e na determinação do que é justo — pois o juiz deve

amoldar-se à lei —, não é uma mera dedução que se ateria a

aplicar regras gerais a casos particulares. (PERELMAN, 1996b, p.

489)

Observa-se, portanto, que, na sustentação da tese, há uma

nítida diferença entre produzir uma versão e justificar um

julgamento: é preciso lembrar que há um procedimento

comprometido com interesses sob cuja pressão se interpreta o

fato, e outro que busca justificar uma decisão ou uma sentença

em relação ao resultado dessa interpretação. É essa fragilidade

que faz Perelman (1996a) considerar a argumentação jurídica

como uma atividade “quase-lógica”.

A justificação, pois, se, de um lado, configura o objetivo

mais importante da argumentação jurídica, de outro, revela que

a atividade que se desenvolve na prática — porque ela aciona a

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todo o momento os procedimentos de interpretação — é uma

atividade essencialmente lingüística. E, por isso — para que o

raciocínio jurídico possa se apoiar em modelos lógico-formais —

precisa recorrer, como uma atividade obrigatoriamente

precedente, a determinados processos de controle da hetero-

geneidade de sentidos para poder obter sucesso na consecução

de interesses específicos, ou seja, recorre-se, primeiro, à

Hermenêutica jurídica e, depois, à paráfrase e à definição,

processos que, mais uma vez, justificam o estudo da linguagem

no Direito, porquanto são processos que se originam do que ela

é devido a suas relações com a realidade social. Em outros

termos, poder-se-ia dizer que a prática jurídica é uma atividade

que tem a sua especificidade determinada pelo modo como se

vale da linguagem para poder interferir na complexidade das

relações sociais: [pg. 48] os efeitos de justiça podem, pois,

também ser entendidos como efeitos de linguagem.

3.3 A DEDUÇÃO NA EXECUÇÃO DO SILOGISMO

Se a estruturação do silogismo jurídico sempre inicia pela

tese que resulta dos interesses que se opõem no julgamento

dum fato, a argumentação — uma vez concluído o modelo lógico

que orientará o raciocínio — obedecerá, de maneira geral, a um

processo dedutivo, mesmo que se possa aventar que, pela

ausência do caráter de irrefutabilidade da PM, a dedução não

seja semelhante à que se verifica na lógica das ciências ma-

temáticas e naturais: a precariedade do apoio que oferece a PM

não impede que o silogismo oriente e estabeleça uma linha de

raciocínio.

A eficiência do silogismo depende, em primeiro plano, do

que diz a PM: o seu caráter genérico garantirá, enquanto

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referência, a coerência, desde que se possa promover a

inserção do singular da Pm no geral da PM.

Convém, ainda, lembrar que a PM só faz referência

importante quando se submete aos limites que a sociedade

estabelece com base nos deônticos é permitido, é proibido e é

obrigatório, isto é, a PM deve respeitar o instituído socialmente,

conste ele ou não no texto da lei.

Uma PM, todavia, que não toma a lei como referência, mas

um valor instituído que não consta no texto legal apresenta, em

geral, grandes dificuldades para a sustentação da tese,

conforme se pode observar nos dois seguintes exemplos:

1. PM: Todo aquele que age sob pressão das

determinações sociais não deve ser condenado.

Pm: Ora, João agiu sob pressão das determinações sociais.

Tese: Logo, João não deve ser condenado.

Neste tipo de silogismo, o argumentador terá duas tarefas,

ambas difíceis: convencer o auditório de que a PM é uma

referência aceita pela sociedade e de que João agiu sob pressão

das determinações sociais.

O apelo à lei, à jurisprudência ou às presunções pode, pois,

facilitar a sustentação da tese, porquanto é um instituto social

que, de certa forma, não se discute. Não garante, porém, o

sucesso: apenas garante a construção mais tranqüila da

coerência do raciocínio. [pg. 49]

2. PM: Todo político é corrupto e deve ser condenado.9

PM: Ora, João é político.

Tese: Logo, João deve ser condenado.

9 O enunciado de cunho ideológico sempre revela uma generalização falsa, porquanto “Todo político é corrupto” deveria — para não ser ideológico — tomar a forma de “Todo político que é corrupto’”.

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Observe-se que, quando a PM é de cunho ideológico

(como, por exemplo, em outros enunciados, tais como Todo

homem é infiel por natureza, A mulher é inferior ao homem, O

branco é superior ao negro etc.), as dificuldades de sustentação

da tese se localizam em fazer passar por verossímil a PM, o que,

em determinadas circunstâncias históricas e culturais, pode ser

mais ou menos difícil.

A escolha de uma presunção jurídica como PM também

pode orientar a argumentação, como nos casos em que é

importante reforçar a relação entre qualidade do ato e qualidade

do caráter do autor, ou quando o argumentador que, atuando na

defesa, busca valer-se das vantagens da dúvida para beneficiar

o acusado.

Na argumentação jurídica, realizam-se, pois, após a

estruturação do silogismo — e que inclui a escolha das

referências — que servirá de apoio, várias atividades

(especialmente de parafrasagem e de definição) que podem ser

mais insistentes e trabalhosas ora num, ora em outra parte do

raciocínio, compreendendo ora a construção de uma versão

verossímil, (para o que se recorre a provas, indícios e técnicas

argumentativas), ora a utilização de técnicas argumentativas

apropriadas, além da alocação de estratégias cujos efeitos

intervirão no estabelecimento das melhores condições de

sucesso.

Enfim, resumindo: o silogismo orienta a estruturação lógica

do raciocínio, fixando uma combinação de lugares e relações

entre as partes de modo que haja coerência, coesão e

congruência, ou seja, o modelo lógico é orientação para a

sustentação de uma justificativa, para o que é fundamental ter

argumentos que produzam os efeitos desejados.

Quando, porém, as provas e os indícios que se referem ao

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fato em julgamento forem insuficientes para a construção da

versão desejada, como se pode alocar os argumentos

necessários à sustentação duma tese? [pg. 50]

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4

TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS

Entende-se por técnica argumentativa a produção de

argumentos que tomam como orientação não o que é pertinente

ao fato em avaliação, mas, relações lógicas, circunstâncias e

situações de outras esferas das atividades humanas e que, por

pressuposição, têm condições para exercer força de

convencimento: é quase como se as técnicas argumentativas

representassem um recurso que empresta prestígio e valores

duma determinada prática para transformá-los em argumentos

— no caso do Direito — jurídicos.

Assim, por exemplo, considera-se como verdadeiro, dentro

da lógica, que, se a = b, então também é verdade que b = a;

ou, então, se a = b e b = c, então, a = c. Os efeitos que

produzem os dois tipos de relações lógicas (reciprocidade e

transitividade) serão aproveitados, devido ao prestígio que tem

o saber lógico, pela argumentação jurídica, especialmente no

caso de fragilidade de provas e indícios: a construção de uma

versão que interesse à sustentação da tese requer a

substituição das incógnitas a, b e c por valores que serão

trabalhados como se pudessem estabelecer as mesmas relações

lógicas. Mais: as inferências e as deduções que resultam das

propriedades que têm as relações lógicas serão utilizadas e

aplicadas aos valores sociais e aceitas como argumentos impor-

tantes no julgamento jurídico.

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Outras técnicas para produzir argumentos, e que podem

servir de exemplo ilustrativo para explicar o processo, são as

que buscam apoio, quer seja no pressuposto de que o ponto de

vista da pessoa de prestígio social é importante, quer seja na

concepção de que a comparação de fatos Pode ajudar a

interpretar e julgá-los melhor, quer seja, ainda, na definição

[pg. 51] da importância da história, da educação e das

emoções na conduta dos indivíduos etc.

As técnicas podem, pois, ser consideradas recursos que se

justificam a partir de pressuposições que devem ter aceitação

acadêmica e/ou social, o que, no Direito, se torna por demais

importante e sublinha o cuidado que o argumentador deve ter

na escolha da técnica e das estratégias interativas que visam a

estabelecer um acordo acerca das pressuposições

subentendidas nos argumentos produzidos e utilizados.

Em outras palavras, a construção da versão de um fato

jurídico pode, quando apoiada em provas e indícios frágeis,

valer-se de técnicas argumentativas, o que, na verdade, não

envolve, num primeiro plano, o que está sendo julgado e

permite dizer que provas e indícios são argumentos produzidos

através da pesquisa e da interpretação do fato, ao contrário dos

argumentos que são resultado das técnicas argumentativas e

que apenas são aceitos como tais devido à pressuposição de

que os “empréstimos” são possíveis e úteis.

A argumentação jurídica, embora difira dos conteúdos dos

raciocínios formais, busca pois, aproximar-se ou orientar-se por

eles porque se pressupõe que a coerência, a coesão e a

congruência possam contribuir com o poder de convencimento,

de forma que, por exemplo, na argumentação jurídica, “Quem

critica um argumento tenderá a pretender que o que tem à sua

frente depende da lógica; a acusação de cometer uma falta de

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lógica é, em geral, por sua vez, uma argumentação quase-

lógica. A pessoa se prevalece, com essa acusação, do prestígio

do raciocínio rigoroso”. (PERELMAN, 1996 a, p. 220)

No presente trabalho, a distinção entre argumentos lógicos

e quase-lógicos que faz Perelman não receberá, porém,

considerações mais demoradas, porquanto se entende que, na

prática jurídica, especialmente quando se trata de valores, isso

se torna bastante complexo, precisamente porque a

argumentação jurídica, onde o objetivo não é nem demonstrar,

nem descobrir verdades ou testar hipóteses, mas justificar

teses, pode ser caracterizada, em grandes traços, sempre como

quase-lógica.

O que importa, todavia, é observar que um raciocínio

jurídico, para poder usufruir do prestígio do rigor lógico, precisa

adotar procedimentos que deverão dar consistência e

credibilidade à prática, e que podem ser de diferentes níveis:

1. realizar interpretações que sejam aceitáveis e

defensáveis, o que exige do argumentador um sistema de

referência competente e abrangente; [pg. 52]

2. procurar controlar a heterogeneidade lingüística, o que

exige, por sua vez, habilidades do argumentador para definições

e delimitações dos sentidos das palavras;

3. adotar um modelo lógico como orientação.

O estudo, pois, de diferentes técnicas argumentativas que

podem ser úteis à prática jurídica enfatizará sempre os aspectos

relacionados à atividade lingüística e à orientação lógica, e

destaca os seguintes:

4.1 O ARGUMENTO DA COERÊNCIA

Esse primeiro tipo de técnica vale-se do prestígio do rigor

Page 67: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

lógico e requer, por isso, uma atividade intensa com e sobre a

linguagem — mais precisamente, de controle e de delimitação

dos sentidos — para, assim, utilizar a coerência como

argumento.

A coerência — como já se enfatizou — é uma qualidade

considerada imprescindível a qualquer argumentação, pois não

se aceita a contradição dentro de um raciocínio, ou seja, não se

deve afirmar algo e depois assumir uma outra idéia que negue a

primeira afirmação. Para manter a coerência e utilizá-la como

argumento, é preciso que se assuma um comprometimento com

uma referência socialmente aceita e tomá-la como orientação

rigorosa para a produção de sentidos que não apresentem

contradições.

E isso tem seus motivos: o prestígio do rigor lógico leva a

que a contradição possa ser interpretada, uma vez, como falta

de convicções claras e incapacidade para escolher com

segurança a referência que orienta a atividade, e, por outro

lado, como um desrespeito com o auditório em termos de não

lhe facilitar a compreensão dos objetivos da argumentação,

precisamente por não haver uma organização lógica correta e

rigorosa das relações entre referência e sentidos verbalizados.

Entende-se, por isso, que a falta de coerência, uma vez

denunciada, expõe o argumentador à condenação e ao

insucesso: a frouxidão referencial e a contradição denunciam a

incapacidade de produzir boas interpretações dos fatos, vale

dizer, de construir boas teses. Perde, pois, o argumentador uma

das qualidades — se não a mais importante — que a interação

cobra dos participantes, ou seja, a da credibilidade.

Ser coerente diz, desse modo, respeito à competência

tanto para escolher os conceitos que serão referência para o

raciocínio, como para organizar os argumentos sem que haja

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contradição com a referência escolhida. [pg. 53]

Na argumentação jurídica, a referência quase obrigatória é

a lei. Pode, porém, também ser uma jurisprudência ou um

conceito que tenha aceitação social ou uma presunção jurídica,

— desde, porém, que se enquadre nos limites dos modais

deônticos. De qualquer modo, o importante é considerar que a

coerência só poderá ser invocada como argumento quando

determinada referência tem — ou poderá vir a ter — prestígio

junto ao auditório, ou seja, ao invocar a coerência como

argumento, o argumentador se vê diante de duas importantes

tarefas:

1. fazer com que a referência escolhida seja aceita pelo

auditório, o que implica saber fazer avaliações preliminares

corretas quanto ao universo referencial aceito pela sociedade e

determinar com competência o sentido desta referência, tendo

em vista o que interessa à argumentação;

2. conduzir o raciocínio de modo a que não haja

contradições em relação à referência, o que representa dominar

os processos de manutenção da coerência, da coesão e da

congruência.

Enfim, a técnica que produz o argumento da coerência é

essencialmente uma atividade lingüística que visa à utilização

do prestígio do rigor lógico, ou seja, um recurso em que o

argumentador se ocupa ou em observar o rigor da relação não-

contraditória entre uma referência e as interpretações e

justificativas que por ela se orientam, ou em denunciar a falta

dessa condição na argumentação adversária.

4.2 O ARGUMENTO DA RECIPROCIDADE

Essa técnica argumentativa apóia-se também no prestígio

Page 69: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

do rigor lógico, especificamente na propriedade das relações

para construir uma aproximação ou simetria entre dois fatos ou

idéias (ou mesmo valores) de modo a que a semelhança de

características implique que se possa aplicar o mesmo

tratamento ou julgamento a ambos, mesmo se houver uma

inversão de situações ou de posições da simetria inicial.

A atividade do argumentador, nessa técnica de raciocínio,

exige, principalmente, saber interpretar e construir o contexto

das situações, ou seja, é preciso que a aproximação de dois

fatos diferentes se faça pelo que se pode localizar de

semelhante neles e nos elementos contextualizadores. Isso

requer, sobremodo, saber produzir interpretações apropriadas, o

que, mais uma vez, enfatiza a importância de um sistema de

referência produtivo e competente, e, por isso, da linguagem:

[pg. 54] para poder aproveitar uma correlação lógica como se a

= b, então b = na argumentação jurídica, a primeira atividade

refere-se à delimitação conceitual que deverá dar condições

para que o raciocínio se beneficie da relação lógica.

Assim, por exemplo, adotando essa técnica, o argumento

sustentará que, se cabe aos pais dar proteção e abrigo aos filhos

enquanto estes puderem ser considerados dependentes, da

mesma forma caberá aos filhos a responsabilidade de prover as

condições de sobrevivência dos pais quando estes,

eventualmente, atravessarem uma situação em que se puder

considerá-los dependentes. O raciocínio precisa definir,

obrigatoriamente, o que se entende por dependência para que o

caráter de reciprocidade da relação entre pais e filhos possa ser

sustentado com apoio no modelo lógico.

4.3 O ARGUMENTO DA TRANSITIVIDADE

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A técnica que permite à argumentação jurídica produzir

determinados argumentos que mantém uma relação de

transitividade, toma como motivação, segundo Perelman (1996),

“(...) uma propriedade formal de certas relações que permite

passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os

termos a e b e entre os termos b e c, à conclusão de que ela

existe entre os termos a e c: as relações de igualdade, de

superioridade, de inclusão, de ascendência são relações

transitivas”. (p. 257)

Isso significa que a argumentação jurídica pode buscar

como apoio relações formais de transitividade, desde que se

controle a heterogeneidade lingüística: o objetivo de construir

uma relação de transitividade que não deixe de apresentar o

rigor lógico exige interpretar e demarcar com a precisão

possível os sentidos que substituirão as incógnitas a, b e c.

Por exemplo, embora seja discutível sustentar que “Os

amigos de nossos amigos são nossos amigos”, a idéia pode ser

trabalhada, insistindo que a verdadeira amizade deveria ser

assim. O enunciado pode servir de referência a um raciocínio, o

que quer dizer que este tem fundamento no modelo que

sustenta a transitividade, pois a implicação é uma das mais

importantes relações transitivas e pode ser avaliada

socialmente em diferentes áreas ou práticas sociais.

Assim, o seguinte silogismo se constrói pela relação de

transitividade: [pg. 55]

Não deve ser condenado (= a) aquele que mata em

legítima defesa (= b); ora, João (= c) matou em legítima defesa

(= b); logo, João (= c) não deve ser condenado (= a).

A dificuldade de ordem lingüística reside, em primeiro

lugar, na delimitação do sentido da expressão legítima defesa e,

segundo, adotar a referência para interpretar o ato de João.

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4.4 O ARGUMENTO DA COMPARAÇÃO

A técnica que faz da comparação um argumento tem o

objetivo de comparar enquadrando uma imagem (do réu ou da

vítima, por exemplo) ou a versão de um fato (um delito, por

exemplo) dentro duma seqüência hierarquizadora que inclui

outras imagens ou versões.

Cabe ao argumentador a tarefa de fazer as escolhas das

imagens ou versões com as quais organizará a seqüência

escalar que servirá de parâmetro de avaliação, o que, de certa

forma, corresponde à escolha das referências com as quais ele

estruturará o raciocínio. A comparação passa, portanto, a

produzir argumentos, quer seja a favor, quer seja contra o que

está sendo julgado: se se quiser condenar, a escolha, para fazer

o cotejo, deverá privilegiar aquelas imagens (referências) que

têm um conceito elogiável no instituído social. E o inverso

ocorrerá quando o objetivo for o de defender: o cotejo do que

está sendo julgado será feito com o que houver de condenável

no imaginário do auditório.

4.5 O ARGUMENTO DA INCLUSÃO DA PARTE NO TODO

Uma outra técnica de argumentação consiste em apoiar-se

na presunção de que o que vale para o todo também vale para

as partes, o que significa, mais uma vez, a utilização do modelo

lógico-formal (se... então) e o trabalho com o sentido das

palavras, i. é, a técnica, inclui o controle da heterogeneidade de

sentidos.

A técnica exige, pois, além da orientação da estrutura

“se... então”, uma intensa atividade de produção de sentidos

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(ou controle de sentidos) para a sustentação do “se” porque é

preciso conseguir a adesão à idéia de que a inclusão da parte

num todo em que as partes mantêm um determinado tipo de

relações faz com que cada uma se submeta ao que vale para o

todo. [pg. 56]

A produção ou o controle de sentidos refere-se, pois, a

definir o que é o todo, quais são as suas partes e quais são as

relações que elas mantêm entre si de modo a que se submetam

ao todo.

Por exemplo, na argumentação jurídica, é freqüente

encontrar a tese de que, se a lei vale (ou não) para o todo,

também vale (ou não) para cada parte. Parte-se do pressuposto

de que o todo se compõe de partes que têm entre si uma

relação de igualdade, o que, especialmente no Direito, necessita

de uma série de procedimentos interpretativos dos fatos, de

modo a que se convença o auditório de que essa relação lógica

é sustentável. Qualquer deslize ou impropriedade interpretativa

fragilizará a argumentação.

4.6 O ARGUMENTO DA DIVISÃO DO TODO EM PARTES

Trata-se, agora, ao contrário da técnica anterior, não de

tentar demonstrar a inclusão e o submetimento da parte ao

todo, mas de que o todo é a soma das partes: o argumentador

busca, aqui, quando constrói o sentido do todo, apoio no sentido

da parte e no pressuposto de que a soma é a relação que

sustenta o todo. O recurso da definição e da delimitação

conceitual ocupa-se, em primeiro lugar, da parte, para, num se-

gundo momento, baseado no resultado da atividade inicial,

ocupar-se do todo como, por exemplo, ocorre na relação entre

gênero e espécie em que, segundo Perelman (1996), “Para

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poder afirmar algo do gênero, cumpre que esse algo se confirme

numa das espécies: o que não faz parte de nenhuma espécie

não faz parte do gênero.” (p. 265).

Essa técnica pode, por isso, produzir argumentos positivos,

valendo-se de todos os efeitos que se pode tirar, primeiro, das

interpretações realizadas, e, depois, das operações de soma, de

subtração e de suas combinações como, por exemplo, tentar

sustentar que uma comunidade está à mercê das drogas (ou de

bandidos etc.), alistando e quantificando exaustivamente os

bairros que acusam o fato, ou que alguém apresenta uma boa

(ou má) conduta social produzindo versões boas (ou más) de

atos isolados seus.

É evidente que, neste tipo de técnica, o argumentador

tende a valer-se especialmente do tratamento estatístico e da

formulação de tabelas, o que significa, novamente, que, após a

atividade que produz e fixa sentidos, atua-se sobre uma

pressuposição, ou seja, a de que a soma, o tratamento

estatístico e as tabelas — pelo prestígio de que desfrutam —

podem dar à versão a imagem da verdade. [pg. 57]

4.7 O ARGUMENTO AD IGNORANTIUM

O argumentador pode, numa situação em que as

condições para uma ampla e demorada discussão estejam

prejudicadas, valer-se da técnica que consiste em formular os

argumentos convenientes à tese, ao mesmo tempo em que

desafia — devido ou à exigüidade de tempo ou a dificuldades

momentâneas — o auditório a apresentar os que se possam

contrapor a eles.

No Direito, particularmente, o uso dessa técnica pode ser

muito eficaz, porquanto há, em momentos de análise e

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intervenção nos conflitos, situações de impasse ou de

dificuldades que entravam o avanço do julgamento no exato

momento em que elas requerem uma decisão urgente.

4.8 OS ARGUMENTOS A PARI E A CONTRARIO

A concepção de relações ou de inclusão ou de exclusão

orienta essa técnica argumentativa: parte-se, mais uma vez, de

uma característica das ciências lógico-formais onde um

elemento pode, a depender de suas características, ser ou não

incluído num conjunto mais amplo, do que se retira a

pressuposição de que essa inclusão (ou exclusão) que permite

hierarquizações e classificações contribui para uma

aproximação do que é do nível do verdadeiro. Essa técnica que

constitui os argumentos a pari e a contrario é muito utilizada na

prática jurídica, como, por exemplo, no caso em que a lei fala

dos direitos dos filhos herdeiros: pelo argumento a pari tenta-se

estender os mesmos às filhas, precisamente porque a inter-

pretação de filhos diz que a palavra não se refere, neste caso,

somente aos indivíduos do sexo masculino, mas que o sentido

deve ser considerado genérico e, por isso, inclui os indivíduos de

ambos os sexos, o que quer dizer que a interpretação produziu

uma relação de inclusão.10

10 No Brasil, o exemplo dado pode até causar estranheza porque os direitos de herança estão garantidos tanto para filhos como para filhas. Em algumas comunidades da Ásia, porém, esse a pari não ocorre: prevalece o a contrario.

Pelo argumento a contrario, porém, pode-se contestar uma

inclusão ou igualdade, a depender da interpretação da lei, e que

permitirá, então, construir uma relação de exclusão.

Novamente, nos dois tipos de argumentos, a atividade

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lingüística é fundamental: a sustentação de uma relação de

inclusão ou de [pg. 58] exclusão só pode ser feita uma vez

determinado um campo semântico onde se cotejam dois (ou

mais) conceitos. A atividade interpretativa — sempre orientada

por interesses bem específicos no caso do Direito — visa a in-

cluir ou excluir um conceito menos amplo num de maior

amplitude, atendendo ao prestígio que se confere ao processo

de sistematização e de classificação.

Uma conseqüência, pois, interessante (e absurda) é o que

pode acontecer, por exemplo, no julgamento dum estuprador:

caso o seu defensor conseguir definir o conceito de sexualidade

humana como sendo igual (o que significa inclusão) ao de

sexualidade dos animais em geral, é bem possível que — se a

acusação não for competente para desarmar a inclusão — o

estuprador seja absolvido e a vítima passe por culpada por ter

estimulado a que o macho (como na natureza) se tornasse

agressivo e incontrolável na conduta sexual.

4.9 O ARGUMENTO DA ANALOGIA

Uma das relações de igualdade da lógica formal é a

analogia em termos de a = b assim como c = d, o que pode

servir como um recurso para a argumentação jurídica sobre o

que Perelman se manifesta como segue:

Ninguém negou a importância da analogia na conduta da

inteligência. Todavia, reconhecida por todos como um fator

essencial de invenção, foi olhada com desconfiança assim que

se queria transformá-la num meio de prova. (...) Longe de nós a

idéia de que uma analogia não possa servir de ponto de partida

para verificações posteriores; mas nisso ela não se distingue de

nenhum outro raciocínio, pois as conclusões de todos eles

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sempre podem ser submetidas a uma nova prova. (...) Todo

estudo global da argumentação deve, pois, incluí-la enquanto

elemento de prova. (PERELMAN, 1996a, p. 423-24)

Na verdade, a analogia é uma comparação que não visa a

diferenciar, mas a estabelecer as semelhanças, o que, de certa

forma, na prática jurídica, aponta para uma igualdade de

relações entre os indivíduos.

Assim, se o argumentador escolher um enunciado como,

por exemplo, “Agredir a mulher é como agredir o membro

central da família e, por isso, a célula da sociedade”, estará

construindo uma relação de [pg. 59] semelhança que, ao fazer

a valorização do instituído social, cria condições de valorizar a

família e a mulher, ao mesmo tempo que reforça a acusação

contra um eventual agressor.

Outro efeito interessante da analogia se dá quando o

argumentador quer desqualificar alguém Comparando-o com o

que é desprezível aos olhos do auditório: cria-se uma associação

entre o indivíduo e o que é desqualificante — efeito da relação

de igualdade que a técnica cultiva como pressuposição.

Ainda um outro aspecto da técnica diz respeito ao cuidado

na construção da analogia, pois

A escolha dos termos de comparação adaptados ao auditório

pode ser um elemento essencial da eficácia de um argumento,

mesmo quando se trata da comparação numericamente

especificável: haverá vantagem, em certos casos, em descrever

um país como tendo nove vezes o tamanho da França em vez

de descrevê-lo como tendo a metade do Brasil. (PERELMAN,

1996a, p. 278)

A escolha dos termos (por exemplo, dos números) é

importante porque cada alteração produz diferentes efeitos de

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convencimento, podendo inclusive criar — especialmente no

caso das estatísticas — uma imagem de credibilidade que, como

se sabe, nem sempre se justifica, mas se torna decisiva para o

argumentador conseguir a adesão do auditório.

De qualquer forma, a construção de uma analogia, apesar

de todos os cuidados do argumentador na avaliação do

auditório, sempre revela um caráter de instabilidade ou de

fragilidade, precisamente porque basta alguém não aceitar uma

semelhança estabelecida para que todas as conclusões que dela

se retiraram sejam também rejeitadas.

4.10 O ARGUMENTO DA FIXAÇÃO DE UM GRAU

O recurso a esse argumento permite, através do processo

de comparação, um cotejo entre vários objetos para avaliá-los

um em relação ao outro e estabelecer as diferenças de grau de

qualidades ou de características. A técnica difere do argumento

de identificação como o da analogia porque atua ou com uma

oposição (justo x injusto) ou de ordenamento (mais justo que

etc.), mas mantém a pressuposição de que o ordenamento

hierárquico pode facilitar o acesso ao que é verdadeiro. [pg.

60]

A atividade é essencialmente lingüística, o que pode ser

observado tomando, como exemplo, a disposição bipolar das

cores, onde num extremo da escala se suponha estar o azul e

noutro o amarelo: a mistura das cores pode ser feita partindo de

um ou outro ponto da escala e faz com que, querendo nomear

as cores intermediárias, e partindo do amarelo em direção ao

azul, possam ser utilizadas indistintamente as expressões verde

mais amarelado e verde menos azulado. Tomando como

referência o outro extremo, as expressões que designarão as

Page 78: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

aproximações deverão ser verde mais azulado e verde menos

amarelado.

Isso quer dizer que as escolhas parecem equivalentes,

mas, na verdade, produzem efeitos diferenciados: o verde é

classificado a partir ou do amarelo ou do azul, o que quer dizer

que a escolha do ex-tremo definidor corresponde, na verdade, à

escolha da referência interpretativa.

Ora, isso leva a que se constate que a argumentação, ao

valer-se dessa técnica, atua, em primeiro lugar, com linguagem

porque, substituindo as cores por outros pares de expressões

como correto e incorreto, justo e injusto, bom e mau, social e

anti-social etc., é necessário definir e delimitar as referências

para, depois, proceder às classificações que, embora contenham

os quantificadores mais e menos, se fazem pela expressão

utilizada, ou seja, correto ou incorreto, justo ou injusto etc.

Os efeitos que os qualificadores produzem são,

evidentemente, diferenciados e explicam tanto a sutileza como

a força do argumento, ainda mais quando o argumentador, ao

trabalhar a escala de mais e menos, se valer da situação e

demarcar o lugar de um superlativo em termos de o verde mais

amarelado ou o verde menos azulado, o verde mais azulado e o

verde menos amarelado, ou, no caso do Direito, o mais justo

etc.: o uso do superlativo produzirá um argumento bastante

agressivo que pode, em determinadas circunstâncias, causar

efeitos mais eficientes do que a simples comparação.

4.11 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO DE MEIOS E FINS

Essa técnica pode ser considerada como um processo que,

de certo modo, também — como as técnicas anteriores — utiliza

a comparação, pois realiza o cotejo entre duas realidades, não

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visando, porém, a estabelecer semelhanças ou, a hierarquizar

qualidades, mas, a avaliar os sacrifícios ou meios que a

obtenção de um resultado estaria exigindo. [pg. 61]

Um exemplo típico de argumento que é resultado do

acolhimento da relação entre meio e fim é o contrato de compra

e venda: a proposta de aquisição de um bem requer um

determinado sacrifício (pagamento etc.), ou seja, o fim explica

(ou justifica) a alocação de determinados meios.

Na argumentação jurídica, a invocação de meios

necessários pode tanto servir à acusação como, à defesa, e

produz efeitos importantes como, por exemplo, ocorre com

frases como só acredito em quem sabe respeitar as leis, só

acredito em quem sabe perdoar, só acredito em justiça quando

houver rigor na aplicação da lei, só acredito em diminuição da

violência com a implantação da pena de morte, o que quer dizer

que, para conseguir credibilidade, os meios necessários são

saber respeitar as leis, saber perdoar, ser rigoroso na aplicação

lei ou implantar a pena de morte: o argumentador toma como

referência um fim — credibilidade, por exemplo — que mereça a

aprovação do auditório e que, por isso, deve dar condições a

que os meios propostos também sejam aprovados.

Observa-se, pois, nesta técnica, também a necessidade de

intensa atividade lingüística — interpretar, delimitar, definir etc.

—, o que destaca a sua importância para a argumentação

jurídica, principalmente quando se sabe que a técnica pode

gerar argumentos como Os fins sempre justificam os meios e

que, na tentativa de promover a justiça, criarão, com certeza,

empecilhos indesejáveis e desastrosos, porquanto a

pressuposição contida no enunciado constitui, dentro da

heterogeneidade social e da desigualdade de forças e poderes,

a possibilidade de implantação do autoritarismo e do abuso de

Page 80: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

poder.

4.12 O ARGUMENTO DA PROBABILIDADE

Uma técnica de argumentação muito usada, mesmo (ou

especialmente) para realidades não-quantificáveis, é a que

busca o modelo lógico-formal para valer-se das estatísticas e do

cálculo de probabilidades que, se nas ciências matemáticas e

naturais, têm sua importância, no Direito, só devem a sua

utilização ao status do procedimento, pois a realidade a ser

abordada dificilmente permite quantificações e cálculos

probabilísticos.

Assim, por exemplo, num julgamento, o uso da estatística

em relação ao comportamento humano para determinar a

probabilidade do percentual de responsabilidade ou do indivíduo

ou da sociedade na ocorrência do delito, pode facilitar a tarefa

do argumentador, especialmente [pg. 62] pela imagem de

credibilidade que os números constroem. Trata-se, porém, da

instituição de um tratamento uniforme para uma realidade que

é heterogênea, o que indica os múltiplos usos (e abusos) a que

essa técnica pode servir.

Além disso, não se deve esquecer que qualquer fato —

jurídico ou não — pode ser abordado a partir de diferentes

variáveis ou conceitos operacionais, ou seja, os números e as

estatísticas vão dar “credibilidade” àquilo a que o argumentador

quiser dar, mas não são capazes de produzir, no Direito, as

“verdades” que aparentam produzir, ou seja, a realidade

analisada nos tratamentos estatísticos nunca é uma totalidade,

mas um recorte produzido pela intervenção do analista ao se

valer de categorias operacionais escolhidas por ele: conceitos e

sentidos adotados e produzidos podem e devem, pois, no caso

Page 81: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

de um debate — especialmente no Direito — ser relativizados,

embora sejam eficientes como argumentos, desde que a

pressuposição de que a técnica seja válida tenha acolhida pelo

auditório.

4.13 O ARGUMENTO DO VÍNCULO CAUSAL

Uma argumentação pode escolher por estabelecer um

vínculo causal entre:

a) dois acontecimentos sucessivos;

b) um acontecimento e uma causa determinante;

c) um acontecimento e seus efeitos prováveis;

No primeiro caso, a argumentação visará à sustentação da

tese de que um acontecimento que sucede imediatamente a

outro tem com este um vínculo causal, ou seja, é conseqüência:

se não houvesse o primeiro, não haveria o segundo.

Já é diferente a relação causal que se pretende sustentar

no segundo caso: um fato ocorrido não tem necessariamente a

sua origem num outro imediatamente anterior, mas num ponto

qualquer que depende da escolha do argumentador. Por isso,

determinar uma causa de um ato permite que o argumentador,

valendo-se da riqueza de seu sistema de referência, construa

argumentos extremamente fortes como, por exemplo, no

Direito, o da necessidade ou inexigibilidade de conduta

diferente. [pg. 63]

Pode, porém, como no último caso, o argumentador

construir uma relação causal entre o fato ocorrido e uma

situação futura.

No caso da argumentação jurídica, a técnica que se vale

de determinados procedimentos das ciências lógico-formais,

precisa — como todas as demais técnicas — cuidar da atividade

Page 82: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

lingüística, pois fica evidente que um vínculo causal, qualquer

que seja, necessita de interpretações que produzam sentidos

que possam suportar essa relação de causalidade,

especialmente, tomando em consideração que se atua com

valorações diferenciadas que se originam da heterogeneidade

referencial.

4.14 O ARGUMENTO PRAGMÁTICO

O argumento pragmático aprecia um acontecimento pelas

conseqüências favoráveis ou desfavoráveis que poderá provocar

nos acontecimentos e na vida prática. Na verdade, “Esse

argumento desempenha um papel a tal ponto essencial na

argumentação que certos autores quiseram ver nele o esquema

único da lógica dos juízos de valor”. (PERELMAN, 1996a, p. 303)

A técnica, pois, através da qual se tomam elementos do

nível pragmático como argumentos é valorizada sobremodo na

prática jurídica porque as atividades referem-se a questões que

dizem respeito quase sempre a problemas das relações sociais e

que envolvem valores.

Por isso, por exemplo, a condenação (ou a absolvição) do

réu pode ser construída, sustentando o que a sentença poderá

significar para o bem-estar da sociedade. Ao propor o sucesso

(ou a felicidade, bem-estar etc.) como critério de avaliação, o

argumentador vale-se da técnica para apoiar-se em

determinada hierarquia de valores que, obviamente, não precisa

ser considerada a única e a melhor, mas que é sempre produto

de uma atividade interpretativa que visa à defesa de interesses

específicos e atua sobre a heterogeneidade referencial.

A força do argumento pragmático está, pois, no fato de ele

dizer respeito aos sentidos da vida, do cotidiano das pessoas,

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dos projetos pessoais etc., elementos que pertencem ao nível

imediato do contexto do fato em julgamento e que, às vezes,

podem, tendo em vista os sistemas de referência do auditório,

produzir maiores efeitos do que aquilo que se coloca num

horizonte mais distante como, por exemplo, concepções

ideológicas. [pg. 64]

4.15 O ARGUMENTO DO DESPERDÍCIO

A técnica em dizer que uma vez que já se começou a fazer

algo (obra etc.) seria um desperdício não continuá-la, na prática

jurídica, pode significar, por exemplo, que não se deve perder

uma oportunidade de condenar ou de absolver alguém porque já

existem meios para atender os efeitos da decisão/sentença.

Haveria, pois, um desperdício de meios produzidos pela

sociedade e seria inaceitável, por isso, não aplicá-los ou utilizá-

los, o que possibilita que a criação e a manutenção da polícia,

do exército, do sistema carcerário etc. possam ser invocadas

como argumentos para sustentar a idéia de que é um

desperdício de custos querer, num dado momento, por razões

diversas, desativar ou desconsiderar o emprego do que já foi

criado.

4.16 O ARGUMENTO DA DIREÇÃO

Basear-se na concepção que pressupõe que os fatos e a

realidade se constituem por etapas que mantêm entre si uma

relação de causa e efeito, refere-se à técnica da qual resultam,

como argumentos, as considerações contra ou a favor da

sucessão de etapas (prováveis) que um fato poderá gerar: é o

que orienta o argumento da direção.

Por exemplo, no Direito, quando estiver em discussão o

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controle da violência, o argumento pode dizer que, se nós

vamos ceder desta vez, deveremos ceder um pouco mais na

próxima, e sabe Deus onde vamos parar.

Enfim, o argumento da direção concebe a História como

uma linearidade que se sustenta por relações lógicas e

desconsidera a possibilidade de que, fora da seqüência de

etapas, possa existir algo que explique melhor um determinado

acontecimento.

4.17 O ARGUMENTO QUE RELACIONA ATO E PESSOA

Esse tipo de argumento tem especial importância no

Direito, porque caracteriza uma presunção jurídica que diz que o

valor de um ato revela o valor da pessoa (diferente da

presunção religiosa, por exemplo, que considera que cada

pessoa vale mais do que o pior de seus atos). [pg. 65]

A dificuldade da invocação ou da sustentação dessa

relação entre ato e pessoa diz respeito à questão da

subjetividade, isto é, saber o que é social e o que é de ordem

pessoal nas motivações e determinações dos atos que os

indivíduos realizam.

Por exemplo, se o valor do ato determina apenas o valor

da pessoa quer-se dizer que a responsabilidade do ato é

inteiramente de seu autor. A sociedade, nessa concepção, não

exerce nenhuma pressão sobre as condutas, o que,

evidentemente, é questionável. A concepção inversa igualmente

deve ser considerada um equívoco porque significa afirmar que

o indivíduo não tem nenhuma responsabilidade por seus atos.

A complexidade reside, evidentemente, em conseguir

demonstrar ou quantificar o grau de responsabilidade do

indivíduo e da sociedade, o que representa, contudo, a condição

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para que a técnica possa ser utilizada para a produção de

argumentos tanto para a defesa como para a acusação do réu.

4.18 O ARGUMENTO DA AUTORIDADE

O instituído social prevê, entre os valores que protege, um

destaque especial para as falas de autoridade, ou seja, valoriza

as falas de acordo com o prestígio do lugar social que os

indivíduos ocupam.

Esse prestígio pode estar ligado não só à força e poder de

determinados segmentos sociais, mas também, à importância

que se dá a certas atividades acadêmicas e profissionais.

O argumento da autoridade parte, assim, do pressuposto

de que a citação de outrem possibilita usar o prestígio e a

autoridade do enunciante citado, valorizando o citado como

argumento. Para conseguir a adesão a uma tese, o

argumentador busca, pois, dar à própria fala o prestígio e a

autoridade de outrem, citando o que entende como conveniente

à sustentação que está fazendo.

Para Perelman, “...existe uma série de argumentos cujo

alcance é totalmente condicionado pelo prestígio. A palavra de

honra, dada por alguém como única prova de uma asserção,

dependerá da opinião que se tem dessa pessoa como homem

de honra...”. (1996a, p. 347)

Por isso, investir no prestígio ou na autoridade da fala de

outrem pode até ser criticado como procedimento que busca

sustentar uma tese, [pg. 66] mas isso leva Perelman, quando

se refere à estratégia muito utilizada no Direito, a afirmar:

Mas não é uma ilusão deplorável crer que os juristas se ocupam

unicamente com a verdade, e não com justiça nem com paz

social? Ora, a busca da justiça, a manutenção de uma ordem

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eqüitativa, da confiança social, não podem deixar de lado as

considerações fundamentadas na existência de uma tradição

jurídica, a qual se manifesta tanto na doutrina quanto na

jurisprudência. Para atestar a existência de semelhante

tradição, o recurso ao argumento de autoridade é inevitável.

(Op. cit., p. 349)

A citação, contudo, não serve apenas para valer-se do

prestígio de outrem mas também pode ter por objetivo

desautorizar e desvalorizar determinados argumentos de

alguém a quem se busque imputar uma falta de autoridade: a

técnica pode, pois, tanto servir para reforçar como desvalorizar

uma atividade argumentativa e requer, por isso, que o indivíduo

citante saiba não só interpretar mas também avaliar corre-

tamente as valorizações sociais das falas ou linguagens, fazer os

recortes convenientes e integrá-los de modo a que eles

produzam os melhores efeitos.

Para Maingueneau (1989), “Aí reside toda a ambigüidade

do distanciamento: o locutor citado aparece, ao mesmo tempo,

como o não-eu, em relação ao qual o locutor se delimita, e como

‘autoridade’ que protege a asserção. Pode-se tanto dizer que ‘o

que enuncio é verdade porque não sou eu que o digo’, quanto o

contrário”, (p. 86)11.

11 Além dos trabalhos de Maingueneau, existem inúmeros outros estudos interessantes (BAKHTIN, 1986, por exemplo) que se ocupam dessa relação entre uma fala citante e outra citada, o que deve ser entendido como sinal de que as formas e os efeitos são variados e ricos.

O recurso da citação, no Direito, busca — quase sempre —

trabalhar com a exemplificação: toma-se um julgamento já

ocorrido como orientação para a interpretação e avaliação duma

nova situação. Isso pode ser interessante até o limite em que se

puder sustentar que a distância histórica não torna imprópria a

Page 87: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

comparação dos dois momentos e, por isso, será problemático,

por exemplo, considerar uma jurisprudência sempre atualizada,

em especial, quando se sabe que houve época em que a defesa

de alguns tipos de crimes acolhia a justificativa de crime contra

a honra masculina. Ou seja, as interpretações e os julgamentos

dos fatos não são [pg. 67] estáticos e, por isso, nem sempre a

citação auxilia o argumentador na produção da versão e na

sustentação da tese.

4.19 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO ENTRE ATO E

ESSÊNCIA

Um modo de explicar (ou de interpretar) a realidade busca

associar e explicar fatos particulares como manifestações de

uma essência, como se determinados acontecimentos

pudessem ser agrupados a partir de uma semelhança ou um

ponto comum. Isso pode servir de base, especialmente na

argumentação jurídica — onde a essência equivale ao que é

considerado normal e legal — para construir, por exemplo, a

noção de que o delito se opõe a uma essência, ou é um abuso

que se faz contra ela: o que é normal é de acordo com a

essência, e o delito é um abuso porque coloca-se contra o

normal.

Na verdade, a pressuposição que dá lugar a essa técnica

argumentativa pode também servir à utilização duma estratégia

mistificadora, como se poderá observar no próximo capítulo.

4.20 O ARGUMENTO DO EXEMPLO

O exemplo é um argumento, mas não uma prova: é um

recurso para sustentar uma tese, especialmente na construção

de uma generalização e, “Seja qual for a maneira pela qual o

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exemplo é apresentado, em qualquer área que se desenvolva a

argumentação, o exemplo invocado deverá, para ser tomado

como tal, usufruir estatuto de fato, pelo menos provisoriamente;

a grande vantagem de sua utilização é dirigir a atenção a esse

estatuto”. (PERELMAN, 1996a, p. 402)

O estatuto, pois, do argumento do exemplo deve-se a uma

pressuposição, ou seja, a que diz que, para os exemplos

conduzirem a uma generalização convincente, é preciso que

eles suportem, além de uma vinculação estreita entre si, a idéia

de que da generalização que eles possibilitam se pode extrair

uma verdade.

A generalização é, pois, um processo em que o

argumentador, valendo-se de versões (sentidos) de fatos e

situações particulares, constrói uma idéia geral, como se,

através desse processo, pudesse alcançar uma verdade

irrefutável. Em outros termos, ela é o processo que agrupa

várias [pg. 68] singularidades numa categoria mais ampla e

geral, para o que elimina, por abstração, os traços

singularizantes e mantém apenas os traços genéricos.

Embora no raciocínio formal isso até possa ser admitido,

na prática jurídica a generalização assume enormes riscos, pois

ela se realiza em função da heterogeneidade social: como

superar o conflito dos inúmeros sistemas de referência sem

incorrer num processo de hierarquização e valoração dos

segmentos sociais — vale dizer, acionar o processo ideológico?

Como recurso, numa disputa jurídica, pode, contudo, a

generalização apresentar — especialmente se o argumentador

fizer corretas avaliações do auditório — efeitos favoráveis

porque,

Em direito, notadamente, enquanto se reserva às vezes o nome

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de precedente à primeira decisão tomada segundo certa

interpretação à lei, o alcance desse julgamento pode só ser

depreendido aos poucos, depois de decisões posteriores. Assim,

o fato de contentar-se com um único exemplo na argumentação

parece indicar que não se percebe nenhuma dúvida quanto ao

modo de generalizar. (Op. cit., p. 404)

Isso quer dizer que a maior dificuldade da exemplificação

diz respeito ao trabalho com a linguagem: os sentidos extraídos

dos exemplos devem servir à aprovação da generalização

proposta, o que, em qualquer raciocínio e, sobremodo no

Direito, é fundamental.

4.21 O ARGUMENTO DA ILUSTRAÇÃO

Diferente do argumento do exemplo, onde se busca

agrupar diferentes versões de fatos de modo a construir uma

regra, a técnica da ilustração tem a função de reforçar a adesão

a uma regra conhecida e já aceita — escolhida como referência

para a sustentação duma tese.

A atividade consiste em enriquecer o que resultou dum

processo de generalização com a exposição de fotos, filmes,

gravações, quadros etc. que não só esclarecem a regra mas

também demonstram a sua aplicabilidade, o que leva a que se

considere a ilustração um tipo de argumento. [pg. 69]

O argumento da ilustração pode até ser duvidoso, mas, ao

impressionar a imaginação, provoca efeitos de convencimento

muito fortes, porquanto oferece singularidades ilustrativas, isto

é, elementos de reforço a concepções ou regras que já

pertencem ao instituto social.

Para finalizar, é preciso ter claro que, apesar da força e

da diversidade de argumentos, só eles não garantem a adesão

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do auditório a teses e o acolhimento de justificativas que as

decisões e as sentenças exigem no Direito: há, ainda, um outro

conjunto de atividades que o argumentador precisa realizar, e

que dizem respeito a preencher as condições necessárias para

que a argumentação possa realizar-se enquanto interação, e,

assim, possam ser produzidos os efeitos desejados. É preciso,

abordar, neste momento, as estratégias de argumentação

entendidas como estratégias de interação. [pg. 70]

Page 91: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

5

ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS

Todo ato de fala — e, por isso, também a argumentação —

pode ser entendido como uma atividade interativa porque

envolve ações diferenciadas, mas interdependentes, de um

enunciante e de um auditório. Em outros termos, na interação, a

cada ação corresponde uma reação, o que implica dizer que, em

grande parte, as ações de quem fala são determinadas pelas

reações efetivas ou prováveis do auditório, embora não se deva

desconsiderar os privilégios de delimitação dos sentidos de que

usufrui o enunciante: ele dispõe de espaço e tempo para alocar

inúmeros recursos, sejam eles lingüísticos, discursivos ou

lógicos, para orientar e influir na produção dos sentidos que lhe

interessa fixar como válidos. E como há objetivos e/ou

interesses envolvidos na argumentação, cabe imaginar disputas

e confrontos, o que implica falar em estratégias

argumentativas, entendidas como procedimentos que podem

facilitar o convencimento e a adesão.

Nestes termos, a crítica que Sampaio Ferraz Jr. (1997) faz a

Perelman, dizendo que a argumentação jurídica, assim como é

abordada por ele, dá a falsa impressão de que todos os efeitos

do ato argumentativo parecem se originar da atividade do

enunciante, é pertinente: é preciso considerar a argumentação

jurídica um processo que, embora mantenha semelhanças com

outros processos interativos, tem peculiaridades que a

Page 92: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

diferenciam dos demais tipos de interações.

Conceber a argumentação jurídica como interação resulta

numa compreensão mais ampla não só do processo em si, mas

também, da especificidade da atividade, porquanto o

enunciante obrigatoriamente devera dar atenção especial não

ao interlocutor com quem faz as alternâncias de atividade, mas

a um terceiro elemento a quem caberá recolher das [pg. 71]

atividades dos primeiros dois atores os elementos necessários

para a formulação da sentença.

Assim, em primeiro lugar, é preciso considerar que o

enunciante atua orientado por um sistema de referência que

tem dimensões sociais, sim, mas também individuais, motivo

por que é único. Através dele produzir-se-ão, pois, sentidos que,

embora tenham marcas das determinações sociais, têm

dimensões pessoais e singulares.

O auditório, por sua vez, no momento em que se apropria

do que é enunciado, processa os enunciados com sistemas de

referência próprios e únicos, o que implica retomar o que se

disse sobre a heterogeneidade lingüística: em qualquer tipo de

interação discursiva é preciso atuar sobre a diversidade para

que haja uma aproximação dos sistemas de referência e, com

isso, o ato obtenha sucesso.

Outrossim, é imprescindível lembrar o que se disse sobre a

importância do contexto na determinação das interpretações

possíveis: qualquer tipo de interação requer dos participantes

produção e/ou conhecimento do contexto em que se dará o ato.

Ora, como os sistemas de referência apresentam sempre

dimensões sociais e individuais, a argumentação precisa, em

todas as suas etapas, considerar também os dois níveis do

contexto em que se vai dar a interação: no plano imediato

tornar-se-á em consideração o auditório, e no mediato, o

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universo social, o que quer dizer que as estratégias

argumentativas deverão atuar não apenas sobre a diversidade

individual mas também sobre o horizonte mais amplo em que se

inscrevem as ideologias que têm, como vertente, os conflitos

sociais.

Em outros termos, o que se disse implica incluir também

os valores sociais no contexto em que se dão as interações, o

que leva a que tanto o enunciante como o auditório realizem

suas ações sempre valorizadas dentro do que determinado

segmento social considera aceitável e verossímil.

Por isso, não só nas verbalizações da interação

argumentativa instalam-se, manifestações ou sinais de

posicionamentos ideológicos e de julgamento, mas também nas

interpretações do auditório, conforme se pode encontrar no

texto de Bakhtin que diz: “Toda a essência da apreensão

apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser

ideologicamente significativo tem sua expressão do discurso

interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um

ser mudo, privado de palavra, mas, ao contrário, um ser cheio

de palavras interiores”. (BAKHTIN, 1986, p. 147) [pg. 72]

Compreende-se, pois, baseado em Bakhtin, que o sistema

de referência do indivíduo também se apropria do contexto mais

amplo — o ideológico, por exemplo — dentro de cujos limites

orientadores se realizam as interpretações e as avaliações que,

por sua vez, destacam a importância de determinadas

estratégias de atuação no processo interativo: elas. diante do

conflito de sistemas de referência, precisam desobstruir

obstáculos e construir pontes onde os indivíduos se encontram e

precisam conviver com as suas diferenças.

Desse modo, se se considerar a heterogeneidade de

sentidos como uma das vertentes dos conflitos sociais,

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compreende-se por que tudo que se diz implica, de certa forma,

a obrigação de ter credibilidade ou de ser possível de ser

provado, o que, na argumentação jurídica, é fundamental

porquanto se tem como objetivo a adesão do auditório.

Quando se trata da argumentação jurídica, pois, a questão

da heterogeneidade de sentidos e a necessidade de provar

criam para o processo interativo dimensões bem específicas, já

que o ritual prevê a oposição de versões, na presunção de que,

dessa oposição, se possam retirar os elementos suficientes para

formular uma sentença que promova a justiça, o que,

evidentemente, representa maiores complexidades — pelos

efeitos que produz — do que ocorre em qualquer outro tipo de

interação.

Aliás, a própria expressão promover a justiça, pela

heterogeneidade de sentidos que comporta, dimensiona as

complexidades: se, nas situações comunicativas em geral, há

uma espécie de negociação de sentidos, na interação jurídica os

sentidos se opõem por determinação do ritual e as diferenças

que apresentam entre si não devem ser minimizadas, mas

garantidas para que o distanciamento possa abrir um leque de

alternativas e, assim, melhores condições da promoção de

justiça.

Sampaio Ferraz Jr. (1997) qualifica toda a questão que

acolhe alternativas como um dubium, dizendo:

Qualificar uma questão como dubium significa, pois, concebê-la

como complexidade, isto é, possibilidades em alternativa,

variação, ausência de consenso. Essa complexidade,

entretanto, ocorre apenas em relação a uma conexão

compreensiva já existente, mas que, dada a participação do

ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre um

leque de soluções. (p. 17)

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Isso quer dizer que as alternativas, na produção da

sentença que resulta da interação argumentativa, não são em

número infinito: as teses [pg. 73] não só podem ser

questionadas como também podem ser consideradas

inadequadas, impróprias, improcedentes, fora do imaginário

social etc., o que permite entender que tudo isso,

(...) faz da situação comunicativa jurídica uma relação insegura

e instável. Essa insegurança e instabilidade é incômoda e tende

a ser reduzida. O discurso jurídico revela-se, assim, como um

instrumento básico dessa redução. Por meio dele são

estabelecidas as regras do tipo ‘se você puxar da espada eu

também puxo’, que vão, então, regular os comportamentos

permitidos. Essas regras permitem que as partes estabeleçam

entre si modalidades diversas de ação e reação em termos de

que toda ação lingüística é questionável, mas, ao mesmo

tempo, garantem que isso possa ocorrei: (FERRAZ JR., 1997, p.

62)

O Direito, pois, promove e garante o contraditório, ou seja,

a diversidade de sentidos não é um obstáculo, no processo

interativo, mas uma condição de promoção da justiça. E isso é

peculiar da interação jurídica: as partes que representam o

conflito não atuam uma para a outra, mas têm sua atenção

voltada, enquanto atuam, para um terceiro elemento — aquele

a quem caberá a produção da sentença.

O que se diz aqui é que, diferente do que ocorre nas

interações discursivas que visam à informação e à comunicação,

na argumentação jurídica, as regras prevêem alternância nos

turnos de atuação das partes, onde as ações e as reações têm

objetivos bem precisos e peculiares: ao enunciante não

interessa conseguir a adesão de seu interlocutor direto (o

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defensor da outra parte envolvida no conflito), mas da parte do

auditório que não participa na alternância dos turnos de

argumentação. É esse auditório — que não manifesta, no

primeiro momento do ritual, as suas reações — que requer a

atenção especial e cuidadosa, precisamente porque é ele quase

que só escuta, pois o resultado de suas reações apenas se mani-

festa no ato da produção da sentença.

Em outros termos, o recurso aos modelos lógicos, se pode

ser considerado imprescindível à estruturação do raciocínio

jurídico, não e, contudo, suficiente para garantir o sucesso da

argumentação: porque o ato argumentativo é interação

discursiva, faz-se necessário destacar a importância de alguns

procedimentos — entre os quais se incluem a avaliação, a

adaptação, a persuasão e a sedução — que uma interação

requer para ser bem-sucedida.

Interessa, pois, considerar, como parte mais importante da

interação jurídica, o auditório, esse terceiro elemento, embora

não se deva, [pg. 74] evidentemente, perder de vista o

adversário, pois é dele que partem os atos que visam a fragilizar

as teses e os argumentos apresentados.

Ora, isso representa a necessidade de se considerar como

estratégias uma série de atividades que antecedem a

argumentação propriamente dita, pois o enunciante não pode

desconhecer

(...) uma constelação de relacionamentos em que as táticas do

discurso configuram estratégias por meio das quais cada parte

está obrigada não só a levar em conta a estratégia da outra

mas também a planejar o seu comportamento, não apenas em

função de cada procedimento singular, mas, sobretudo, em

função de procedimentos futuros. (FERRAZ JR.. 1997, p. 66)

Page 97: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

Enfim, parece útil para o estudioso, pelos motivos

expostos, abordar a argumentação jurídica também como

interação, mormente, conforme Sampaio Ferraz Jr.

Quando nos perguntamos em que sentido, de que modo e em

que limites a participação dos diversos interessados na

discussão jurídica ocorre, parece-nos inadmissível que, em

referência a qualquer deles, trate-se de juizes, advogados,

funcionários administrativos, cidadãos em geral etc., aquela

participação seja, em princípio, a de um ouvinte passivo.

Concepções dessa espécie, se é que são ainda radicalmente

defendidas, constituem uma constante ilusão. (1997, p. 68)

Em resumo:

A atividade argumentativa só é possível porque há, como

conseqüência da heterogeneidade social, múltiplos sistemas de

referência que podem conduzir a diferentes interpretações que

geram as diferenças de sentido.

Considerando que há diferenças de interpretação e, por

isso, de sentidos, tanto de ordem pessoal como de, social, que,

por um lado, constituem o conflito e, por outro, abrem as

possibilidades de se argumentar, é Preciso também levar em

conta que, forçosamente, existirão atividades que antecedem a

argumentação e cujo objetivo é afastar ou minimizar o que

poderia, eventualmente, dificultar o sucesso do ato. Melhor: se o

uso da linguagem tem uma relação muito consistente com o

exercício de um poder, é preciso não só falar em conflito de

sentidos mas também em disputa [pg. 75] pelos procedimentos

e lugares sociais que fixam os sentidos e, por isso, em

avaliações preliminares da situação e das circunstâncias da

disputa.

Conseguir a adesão dos indivíduos e dos grupos sociais a

Page 98: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

uma determinada idéia ou tese representa, pois, também a

possibilidade de intervenção na hierarquização de sistemas de

referência, na distribuição de poderes e na valorização

diferenciada de lugares sociais. Argumentar, pois, é uma

interação cuja motivação são as diferenças que resultam de

diferentes sistemas de referência e requer, além de uma

atividade lógica, concebê-la como uma disputa, o que significa

que as dificuldades de convencimento aumentam ou diminuem

de acordo com as proporções do conflito de sistemas de

referência.

Assim, diante do que representa a interação, o

argumentador deve dominar estratégias que não se resumem

apenas a conseguir a atenção do auditório mas que também

dizem respeito à criação duma imagem positiva de si mesmo e à

produção de efeitos que atuem sobre a força dos argumentos

selecionados para a sua atividade.

Todo esse cuidado com as estratégias argumentativas

depende, porém, de avaliações preliminares que resultam de

perguntas como as seguintes:

— quem sou eu para atuar assim?

— quem é meu auditório para que eu atue assim?

— que pensará o meu auditório de mim quando eu atuar

assim?

— que argumentos e artimanhas poderá usar meu

adversário para eu atuar assim?

— quais são as circunstâncias sociais, históricas, culturais

etc. que me levam a atuar assim?

As perguntas, conforme se pode verificar, dizem respeito à

necessidade de se dominar — porque se visa ao sucesso da

atividade — não só aquilo que se diz mas também as estratégias

Page 99: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

argumentativas e que correspondem ao “assim” das perguntas,

o que quer dizer que, além dos argumentos, a argumentação faz

do modo como se atua um outro recurso para produzir os efeitos

desejados: são as estratégias argumentativas.

Além disso, as perguntas apontam para a necessidade de o

argumentador conhecer também os sistemas de referência do

auditório, tendo em vista que a sua atividade deve levar em

conta as possíveis diferenças e considerá-las obstáculos a serem

superados. [pg. 76]

Como, porém, descobrir um sistema de referência se ele

não é verbalizado ou denunciado explicitamente?

Se o que se disse em termos de pressão das

determinações sociais sobre o sistema que orienta as

interpretações (e julgamentos) do indivíduo é sustentável, então

a atividade de reconhecimento do auditório obrigatoriamente

deve contemplar uma pesquisa sobre os lugares sociais que os

indivíduos freqüentam e ocupam. Isso deve — se o

argumentador tiver conhecimentos suficientes sobre como são

as condutas sociais nestes espaços — fornecer elementos para

construir os contornos dos sistemas de referência do auditório.

A avaliação ficará enriquecida se houver condições de se

apropriar, eventualmente, dos textos — orais e/ou escritos —

que o auditório produziu, porque a linguagem — pela presença

de determinados conceitos e valores — revela o sistema de

referência do enunciante.

Em outros termos, o argumentador precisa:

— conhecer-se a si próprio, não só no que diz respeito às

capacidades como também, em relação às deficiências.

Outrossim, o argumentador precisa, além de ter os

argumentos apropriados à situação, saber onde e como

Page 100: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

atua melhor na atividade de convencer o seu auditório,

o que implica conhecer a sua competência para,

valendo-se da linguagem, produzir os efeitos que

interessam à sustentação;

— fazer uma avaliação correta dos sistemas de referência

dos que compõem o auditório, o que, no caso do

Direito, significa saber avaliar condutas e

procedimentos do juiz, do adversário e dos jurados.

Essa avaliação requer, em especial, ter conhecimentos

sobre as orientações ou as referências dos diferentes

segmentos sociais e que se configuram a partir de

profissão, gênero, raça, religião, idade, costumes,

imaginário social etc.;

— ter capacidade para, feitas as avaliações preliminares,

desobstruir eventuais bloqueios ou obstáculos do

auditório. Em outros termos, o argumentador precisa

dominar procedimentos que possam levar à

aproximação ou à convivência de diferentes sistemas

de referência;

— ter capacidade de prever — até onde for possível — os

argumentos (e também os truques e as artimanhas) de

que poderá se valer o adversário. No caso do Direito,

por exemplo, seria [pg. 77] recomendável — já que

não é possível fazer uma previsão exata de como o

adversário atuará — que o argumentador estivesse

preparado para utilizar diferentes estratégias, de

acordo com o que o embate viesse a exigir em termos

de maior ou menor grau de agressividade ou

ponderação etc.;

— dominar conhecimentos sobre a situação, tanto imediata

como mediata, em que ocorre a argumentação,

Page 101: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

precisamente porque as determinações históricas,

sociais e culturais valorizam ora uma, ora outra

estratégia.

O resultado dessas avaliações preliminares — que também

são resultado de processos interpretativos — é, pois,

extremamente importante porque orientará a atividade do

indivíduo em termos de como atuar, contra quem, sobre o que,

para quem e em que circunstâncias.

E isso diz respeito à escolha de estratégias para uma

atuação mais ou menos radicalizadora, mais ou menos

agressiva/concessiva, mais ou menos formal, mais ou menos

emocional etc., na interação.

Essas estratégias, embora todas se valham de recursos

lingüísticos, se diferenciam a partir das avaliações e podem ser

agrupadas como segue:

1. estratégias de contextualização que dizem respeito

à atuação sobre os contextos imediato e mediato que envolvem

a interação;

2. estratégias discursivas que se organizam a partir de

escolhas lingüísticas (itens lexicais, modalizadores e operadores

argumentativos) e de estruturação do discurso para produzir

determinados (e desejados) efeitos de sentido.

5.1 ESTRATÉGIAS (DES)CONTEXTUALIZADORAS

As atividades de contextualização são estratégias que

visam a observar e a construir ou adaptar o contexto que

influenciará a interpretação que fará o auditório do fato em

julgamento. Por isso, a contextualização deverá ser considerada

fundamental à sustentação duma tese, já que, num primeiro

momento, exige-se do argumentador uma atuação voltada

Page 102: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

sobre si mesmo, em termos de avaliação das escolhas da versão

do fato, dos argumentos e das estratégias, em relação ao

universo referencial em que se inserirá a argumentação: é a

adaptação do enunciante ao contexto, de modo a que sua

atuação tenha aceitação junto ao auditório. [pg. 78]

A segunda atividade de contextualização ocupa-se com a

preparação do auditório com o propósito de desobstruir e

afastar dificuldades para o sucesso da argumentação.

Outrossim, ao contrário da contextualização, há

procedimentos que propositadamente procuram afastar

elementos do contexto, ou seja, há também estratégias de

descontextualização.

Considerando-se que toda e qualquer versão implica, além

da interpretação do ato, alocar elementos contextualizadores,

existem procedimentos estratégicos que minimizam os efeitos

de versões contrárias aos interesses que defende o

argumentador, contextualizando ou descontextualizando essas

versões, o que se observa freqüentemente nas reportagens

jornalísticas: os recortes e as omissões de elementos do

contexto redesenham o fato e interferem na produção dos

sentidos e seus efeitos.

Na prática jurídica, por exemplo, contextualizar ou

descontextualizar a afirmação de que “João matou uma pessoa”

representa produzir efeitos de sentido absolutamente diferentes

junto ao auditório, isto é, a contextualização pode levar à

interpretação de que o ato foi de legítima defesa e desarmar o

que o enunciado, descontextualizado, produz de efeitos

negativos.

Para compreender, porém, melhor as dimensões do que se

entende por contexto, e, por conseguinte, as estratégias de

contextualização, é preciso lembrar, mais uma vez, que os

Page 103: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

sistemas de referência têm determinações que se põem em dois

planos distintos e interdependentes: um, diz do contexto

histórico, social e cultural, e o outro, das dimensões pessoais e

singulares. Tal concepção leva a entender que as atividades

contextualizadoras que realiza o enunciante em função do

auditório também obedecerá a essa dupla dimensão: no plano

imediato, o sistema de referência do argumentador fará as

concessões estratégicas possíveis e, no contexto mediato, a

partir do conhecimento das determinações históricas, sociais e

culturais — e que pressupõe conhecimento da gênese dos

conflitos e das ideologias — demarcará os limites dos universos

possíveis em que poderá se dar a argumentação.

5.1.1 A adaptação do enunciante ao auditório

A primeira estratégia contextualizadora se constrói

tomando como referência a avaliação feita pelo argumentador

sobre como a sua atuação deverá se dar em relação ao

contexto que diz respeito ao universo histórico, social e

referencial do auditório, e visa a, através de uma [pg. 79] série

de procedimentos adaptativos, construir um clima de

confiabilidade e de espontaneidade, ou seja, o argumentador

atuará, preliminarmente, de modo a que a versão do fato e os

argumentos que utilizará na sustentação da tese, encontrem um

contexto favorável em termos de condições de aceitabilidade e

de credibilidade, o que quer dizer que a concretização dos

objetivos do ato interativo só ocorrerá se se conseguir inspirar

credibilidade12 junto ao auditório.

12 A credibilidade de um discurso é uma qualidade desejada e que resulta, primeiro, da coerência entre o que o indivíduo diz e os outros atos seus. Em segundo lugar, a credibilidade do argumentador também depende da clareza e da coerência das referências que orientam todos os seus atos,

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incluído o uso da linguagem.

O que se quer enfatizar é que a verossimilhança que deve

dar força à versão que apoiará a tese depende, em grande

parte, da competência do argumentador para construir,

orientando-se pelo referencial que compõe o instituído social de

que o auditório é representante, uma imagem de si que sugira

confiança e seriedade. Em outros termos, o sucesso da

interação argumentativa depende, fundamentalmente, do clima

de confiabilidade em que se realizam as atividades dos

participantes.13

13 A importância do clima de credibilidade que gera uma imagem pode-se observar com mais clareza no processo de sedução, onde o sedutor só consegue aproximar-se de quem deve ser seduzido, se se apresentar como pessoa em que se pode depositar a maior confiança. Os artifícios do sedutor constroem, contudo, uma credibilidade precária, pois, consumada a sedução, acaba o jogo de se fazer passar por merecedor de confiança.

A atividade interativa preparatória visa, enfim, através de

uma série de estratégias, à construção da garantia de que a

proposta das delimitações conceituais das referências

escolhidas pelo enunciante podem ser aceitas porque ele parece

ser confiável e capaz de apresentar provas ou argumentos

convincentes.

Em outros termos, o argumentador deve partir do

pressuposto de que não são quaisquer tipos de interpretação e

de julgamento que serão acolhidos como verossímeis e

aceitáveis, mesmo que os argumentos e a estruturação lógica

do raciocínio sejam irretocáveis do ponto de vista técnico: trata-

se, na argumentação jurídica, de valores gerados pelos

deônticos que fixam o proibido, o permitido e o obrigatório, o

que explica os cuidados iniciais que deve ter o argumentador

tanto com o horizonte histórico e social como, com o auditório

Page 105: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

imediato onde, necessariamente se reflete o contexto mediato.

Na verdade, a inobservância dos dois planos de contexto

criará riscos enormes para o argumentador porque poderá

destruir a imagem de [pg. 80] credibilidade e criar bloqueios de

difícil transposição, ou mesmo a rejeição do auditório.

Por exemplo, se, no plano mediato do contexto, o

argumentador não souber avaliar o tipo e as dimensões do

horizonte ideológico que envolve o fato em julgamento, também

não saberá entender as razões por que seus argumentos não

têm acolhida junto ao auditório.

É importante, aqui, lembrar a postura de Bakhtin (1986)

quando afirma que a palavra é “marcada pelo horizonte social

de uma época e de um grupo social determinados” (p. 44),

motivo por que não se pode “separar a ideologia da realidade

material do signo” (p. 44), ou seja, “o sentido da palavra é

totalmente determinado por seu contexto” (p. 106).

Assim, essas estratégias de contextualização que têm por

objetivo principal fazer com que o argumentador tenha

credibilidade comportam, sempre, cuidados de adaptação aos

dois níveis do contexto, mesmo porque a confiança representa

um crédito para a aceitação também de outras estratégias,

além dos argumentos, evidentemente.

Ora, como o modo de argumentação é importante para

maximizar ou minimizar os efeitos dos argumentos

apresentados, entende-se por que se exige competência do

argumentador para a execução das diferentes estratégias de

contextualização: quanto ao contexto mediato, é importante

construir um horizonte conceitual e avaliativo que não se

oponha ao que envolve e determina os sistemas de referência

do auditório — atividade que deverá conduzir-se de modo a que,

por exemplo, as determinações ideológicas que (Cf. BAKHTIN,

Page 106: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

1986) se fazem presentes em qualquer tipo de discurso, sejam

minimizadas ao máximo como obstáculo.

Já no plano imediato, uma das estratégias diz que, para

criar a imagem de credibilidade e seriedade, deve, no Direito,

haver o cuidado com a apresentação pessoal: a roupa deve ser

formal e discreta e a aparência geral não deve sugerir desleixo

ou falta de cuidados — aliás, essa é uma orientação

fundamental que faz parte do ethos da prática jurídica.

Além disso, é preferível trabalhar com uma linguagem não

muito agressiva, e onde estejam presentes mais a insinuação, a

reticência, o eufemismo, a moderação etc., porque uma postura

radical e extremada sempre pode dar a entender que o

enunciante é arrogante ou inseguro, e, por isso, suas avaliações

e interpretações não merecem crédito, ou seja, a agressividade

exagerada pode sugerir que ela resulta da incapacidade de

provar. [pg. 81]

É evidente que haverá auditórios, fatos e circunstâncias

que poderão exigir uma imagem de revolta e de radicalização,

quando então é recomendável trabalhar com uma linguagem

recheada de hipérboles.

Outra adaptação que o argumentador deve fazer em

relação ao auditório é a da linguagem, em termos de escolha do

grau de (in)formalidade e registro: não adianta dirigir-se a

alguém se o repertório lingüístico escolhido exige um esforço

demasiado grande, pois poderá haver não só dificuldades de

compreensão como também prejudicará a atenção desejada

pelo enunciante.

E há, ainda, outros aspectos, muitas vezes

desconsiderados e menosprezados, a que o argumentador

precisa dar atenção como, por exemplo, no caso do texto

escrito, a distribuição formal das idéias na folha, a correção

Page 107: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

ortográfica e, inclusive, o tipo e a cor do papel, e, na ar-

gumentação oral, a postura corporal tranqüila e firme, a voz que

não seja nem muito baixa, nem tão forte, mas adequada ao

ambiente.

É preciso, enfim, lembrar que, na argumentação oral, os

argumentos terão melhor acolhida quando a sua verbalização

vier acompanhada de uma linguagem corporal que não revele

insegurança ou arrogância, descontrole emocional ou

insensibilidade, ansiedade ou frieza, radicalidade ou indiferença,

timidez ou menosprezo.

Esse cuidado é tão importante que Coelho (1997)

considera a imagem um recurso retórico quando afirma que

É claro que a aparência, por si só, não é garantia de nada, mas

não pode ser ignorada, porque é fator que interfere em

diferentes graus no processo de convencimento jurídico. Um

corpo retórico, que mobilize as emoções do interlocutor no

sentido de fazê-lo assumir pelo menos uma atitude receptiva,

simpática, em relação ao orador: o profissional do direito que

descuida desse aspecto, deixa de manusear importante recurso

retórico. (p. 113)

E, por fim, uma vez afastadas as possíveis rejeições à

imagem do enunciante e ao que ele vai apresentar, uma última

— e importante — condição deve ser, ainda, preenchida: não

exigir do(s) interlocutor(es) mais esforço do que o necessário

para acompanhar e entender o que está sendo exposto. É

preciso, por isso, cuidar da coerência, da coesão e da

congruência do raciocínio.

Esses três aspectos do raciocínio dizem que o

argumentador precisa respeitar o auditório no que se refere à

clareza da argumentação, [pg. 82] para o que, em primeiro

Page 108: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

lugar, deve ter convicções claras, oriundas de referências

aceitáveis e de atividades interpretativas apropriadas e bem

conduzidas (do fato, das provas etc.) Em outros termos, é muito

difícil alguém receber a atenção do auditório sem ser e parecer

confiável e sem ele próprio estar convicto do que está

afirmando, o que também quer dizer que, se a primeira

estratégia for bem executada, a que busca preparar o auditório

fica bastante facilitada.

5.1.2 A preparação do auditório

Outro tipo de contextualização refere-se aos

procedimentos que têm por objetivo preparar o auditório e que

precisam traduzir uma competência para desconstruir bloqueios

e dificuldades que as diferenças referenciais poderiam produzir.

Isso quer dizer que deverão ser utilizadas diferentes

estratégias para aproximar os sistemas de referência — incluída

a ideologia — do argumentador e do auditório, ou então, quando

essa aproximação for impossível, para construir um acordo

sobre os limites conceituais do universo referencial. O

argumentador pode controlar, dessa forma, eventuais reações

negativas em relação tanto ao raciocínio e aos argumentos

escolhidos, como ao modo de apresentá-los, precisamente

porque as diferenças referenciais foram trabalhadas.

Cabe, então, ao argumentador, em primeiro lugar, a

dificílima tarefa de, se não desideologizar o problema, ao menos

minimizar os bloqueios dessa ordem. Isso se refere à atuação

sobre o contexto mediato (ou circunstâncias sociais, históricas e

culturais), e envolve, necessariamente, abordar questões

Page 109: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

polêmicas como racismo, machismo, radicalismos religiosos,

relações entre capital e trabalho etc.

Já que se trata, aqui, de temas polêmicos, origem de

grande parte dos conflitos sociais, é recomendável uma

estratégia que não exacerbe os antagonismos que se geram no

confronto ideológico, mas, pelo contrário, que promova, através

da verbalização e da configuração conceitual dos universos

mediatos que se opõem, a compreensão da complexidade e dos

prejuízos que o conflito — ideologizado — traz para ambas as

partes.

Cabe, aqui, lembrar, novamente, a palavra de Coelho

(1997) quando aborda a questão da ideologia:

O profissional do direito não deve renunciar aos seus valores,

adulterar sua ideologia, para tentar convencer o seu

interlocutor. Deve, isto [pg. 83] sim, sopesar o quanto a falta

de identificação ideológica no caso em questão, poderá influir

negativamente no convencimento do interlocutor, para, então,

procurar compensar esse desequilíbrio com outros recursos

retóricos. Em todo caso, é conveniente saber em que terreno se

trava o embate argumentativa. (p. 109)

É preciso, quando o contexto ideológico apresentar

diferenças acentuadas, escolher a melhor estratégia, assim que,

“quando não for possível a identidade ideológica com o

interlocutor, o orador pode procurar neutralizar a ideologização

da discussão. Ao contrário, se há condições da identidade

ideológica, o orador deve acentuá-la”. (Op. cit., p. 109)

A atuação sobre as referências do contexto imediato do

auditório faz parte de uma atividade posterior à que se ocupa

com o plano mediato, e vale-se de estratégias que podem

recorrer, por exemplo, ao elogio ou à crítica do instituído, ao uso

Page 110: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

da noção de utopia ou o apelo ao pragmático etc., como

procedimentos preparatórios, sempre entendidos como uma

atividade que resulta das avaliações preliminares.

Se se pensar em termos de construção do silogismo

jurídico, os procedimentos de preparação do auditório

conduzem, de certa forma, à construção e à aceitação da

referência — que será premissa maior do silogismo — sob cujas

coordenadas semânticas se conduzirá o raciocínio.

Na verdade, a preparação do auditório corresponde a

estratégias que são interações preliminares onde, embora

também se argumente, o ato a ser julgado propositadamente

não é abordado, pois, sem a contextualização, com certeza, as

versões dele que produziria o auditório seriam tão diversificadas

que, conclusas, representariam dificuldades quase insuperáveis

e irremovíveis.

A atividade que visa à aproximação das referências do

enunciante e do auditório deve, igualmente, ser entendida como

um controle da heterogeneidade referencial e dos sentidos, pois,

é fundamental, para o sucesso da argumentação, que a

parafrasagem e a definição, aliadas a determinadas estratégias

interativas, reduzam as distâncias semânticas.

Há, portanto, atividades interativas preliminares a que o

tipo de interação que é a argumentação jurídica deve dar

atenção, e dentre as quais são interessantes:

1. O elogio ou a crítica ao instituído é uma atividade

indicada, especialmente, para aproximar sistemas de referência

e conseguir a adesão do auditório. [pg. 84]

Antes, porém, de escolher entre o elogio ou a crítica ao

instituído, o argumentador deve conhecer as características do

auditório para, ao elogiar ou criticar, possa dar ênfase às

referências que serão úteis à sua argumentação: as referências,

Page 111: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

uma vez trabalhadas de tal forma que passam a ser aceitas pelo

auditório, garantem a coerência da atividade de sustentação.

Assim, por exemplo, abordando o tema da impunidade, é

possível construir os limites conceituais de justiça, que interessa

ao argumentador precisamente porque, no desenvolvimento do

raciocínio, determinada concepção de justiça poderá facilitar a

defesa dos interesses em questão.

2. Uma outra atividade interativa preliminar que pode

facilitar o processo é a abordagem de temas que tenham

relação com o imaginário social em termos de desejos e

interesses: novamente pode haver uma aproximação de

sistemas de referência e a possibilidade de enfatizar aquelas

referências que são consideradas importantes.

A dificuldade reside, contudo, em saber, com uma certa

margem de segurança, que tipo de utopia acolherá o auditório,

já que a heterogeneidade social também conduz à

heterogeneidade de desejos e interesses. Na verdade, o

enunciante, quando recorre à construção duma utopia, trabalha,

de certa forma, ao nível da sedução: primeiro, é necessário

conhecer (ouvir, auscultar, pesquisar) o que diz respeito aos

desejos e interesses do(s) outro(s), para, então, iniciar o

processo de conquista.

Embora se verifique essa dificuldade, no Direito, há um

tema sempre interessante que movimenta desejos e interesses:

é o da promoção de relações sociais justas que possibilitem uma

vida melhor e mais feliz etc. Há, aqui, condições muito boas

para preparar e aproximar diferentes sistemas de referência.

3. A opção por abordar o que é da ordem do pragmático —

com o objetivo de preparar o auditório — é outra estratégia que

requer que o enunciante se ocupe com questões que dizem

respeito ao cotidiano das pessoas, como as que falam de

Page 112: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

sucesso, de felicidade e de bem-estar.

Por exemplo, em um julgamento em que a argumentação

se apoiará nas contradições encontradas nos depoimentos,

pode-se discorrer sobre o que significam, no cotidiano das

pessoas as falas contraditórias: deverão ser elas entendidas

como indícios de mentiras, e, por conseguinte, como indícios de

confissão de culpa? [pg. 85]

O que estará em julgamento será, pois, abordado a partir

do resultado da interação que teve o cotidiano como tema, e

que deverá facilitar a argumentação porquanto o argumentador

construiu um acordo referencial com o auditório.

A importância do apelo ao pragmático resulta,

principalmente do interesse e da facilidade com que qualquer

auditório discute temas como sucesso, felicidade, honestidade

etc.

4. A dramatização — porque pode estabelecer um vínculo

emocional com o fato que está sendo analisado — é um

processo interativo de preparação do auditório que, embora

eficiente, requer qualidades do enunciante que envolvem a

capacidade de criação de expectativas, de “suspense”, de

teatralização etc.

Esse recurso tem sua importância porque pode criar

estímulos emocionais e, por isso, condições psicológicas que

favoreçam a interação argumentativa pois,

... parece comprovada a hipótese segundo a qual os jurados

elaboram o seu veredicto não apenas com base nos fatos mas

também (e, por vezes, sobretudo) com base na impressão

causada pelo texto pronunciado por ambas as partes (acusação

e defesa), que funciona como importante estímulo psicológico

ao lado dos demais componentes situacionais como:

questionamento das testemunhas, desempenho dos advogados.

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(CORACIN1, 1991, p. 51)

5.2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS

A estratégia discursiva é a que diz respeito à escolha

cuidadosa — pelos efeitos de sentido que produz — tanto dos

elementos da língua, como de determinadas formas de

estruturação do discurso, para que os argumentos selecionados

possam, na interação, ser otimizados, e os contrários,

minimizados.

A língua — porque nela se reflete a heterogeneidade social

— apresenta uma particularidade interessante: as palavras

agregam a seu significado valorações dos diferentes segmentos

sociais, o que vai determinar que elas se organizem em

hierarquias ou escalas de força argumentativa. Ou seja, as

palavras agregam os heterogêneos interesses sociais a seus

sentidos e, por isso, têm a força de produzir efeitos de [pg. 86]

sentido que atuam sobre o auditório de modo a facilitar ou a

dificultar a sua adesão: à escolha da palavra o auditório reagirá

positiva ou negativamente, dependendo dos interesses a ela

ligados e que interferem na interpretação.

Assim, por exemplo, um menino de rua pode ser nomeado

diferentemente, dependendo da pressão de diferentes sistemas

de referência, agrupando-se as palavras designativas, por

exemplo, da seguinte forma:

a) moleque, bandido, mau elemento, marginal etc.; ou

b) menor abandonado, desfavorecido, marginalizado,

inocente etc.

Da mesma forma, alguém pode ser chamado de ladrão ou

cleptomaníaco, dependendo do segmento social a que pertence

e de quem nomeia.

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Verifica-se, pois, em primeiro lugar, uma oposição radical

de sistemas de referência e que tem origem no plano mediato

do contexto e diz respeito às diferenças de ordem ideológica: é

uma diferença “horizontal”.

Há, contudo, a possibilidade de organizar as palavras

também numa escala vertical, o que quer dizer que, mesmo

dentro de um mesmo universo ideológico, os sentidos das

palavras têm maior ou menor força de julgamento como se pode

verificar nas disposições seguintes:

a) bandido b) inocente

marginal marginalizado

mau elemento desfavorecido

moleque menor abandonado

A escolha, pois, que faz o enunciante, para nomear quer

seja uma pessoa, um fato ou um objeto, tem força

argumentativa porquanto os efeitos de cada item lexical são

diferenciados e têm força para intervir no convencimento do

interlocutor.14

14 Evidentemente estão incluídas nessas escolhas a possibilidade de recorrer às figuras de linguagem, especialmente à metáfora, à metonímia e à sinédoque, que, contudo, não recebem uma atenção maior no presente trabalho pelo fato de ampliarem demasiadamente os limites em que se pretende abordar a argumentação jurídica. [pg. 87]

Perelman (1996) esclarece, apropriadamente que, “Os

diferentes tipos de objetos de acordo usufruem, como sabemos,

privilégios diferentes. Presume-se que alguns deles se

beneficiam do acordo do auditório universal: são os fatos, as

verdades, as presunções. Outros se beneficiam apenas do

acordo de auditórios particulares: são os valores, as hierarquias,

os lugares”. (p. 203)

Os juízos de valor e, mesmo, sentimentos podem, contudo,

Page 115: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

com a utilização de certas estratégias de escolhas lingüísticas,

ser apresentados como juízo de fato, pois

Substituindo a qualificação “mentiroso” por “pessoa com uma

disposição para induzir cientemente em erro”, ter-se-á a

impressão de haver transformado o juízo de valor, no qual

aparece essa qualificação, em juízo de fato, porque o

enunciado, em sua nova forma, parece mais preciso, pois se

insiste em suas condições de verificação. A não-utilização do

termo “mentiroso” salienta, aliás, a intenção de evitar uma

apreciação desfavorável. (Op. cit., p. 204)

O que Perelman está destacando como importante diz

respeito ao que foi dito sobre as avaliações preliminares e a

criação de uma imagem de credibilidade: se o argumentador

escolher itens lexicais que se localizam nos pontos extremos das

escalas, os seus enunciados vão revelar ou uma fragilidade ou

uma agressividade que nem sempre é a indicada para

determinados tipos de auditório, o que faz entender que nem

sempre o ataque é a melhor estratégia. O que decide a adoção

de uma estratégia mais agressiva são as avaliações

preliminares à interação, pois só se pode optar por ir ao ataque

de uma forma mais contundente se há argumentos sólidos e

convincentes à disposição.

Um cuidado, pois, que é preciso ter na construção do

raciocínio jurídico refere-se à escolha das palavras, em especial,

pelo fato de escolher, numa disposição escalar, aquelas que

estão nos pontos extremos representa sempre uma

radicalização que tanto pode levar, quando resultado de uma

interpretação bem conduzida, ao sucesso, como, em função de

uma atividade interpretativa equivocada ou forçada, ao insu-

cesso. Chamar alguém, por exemplo, de marginal no lugar de

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errado ou corrupto requer necessariamente graus diferenciados

de provas, pois, a radicalização pode levar ao descrédito e ao

insucesso. Da mesma forma, entender que alguém é um santo

ou um marginalizado exigirá uma atividade intensa de

sustentação. [pg. 88]

5 2.1 A construção de dissociações e a mistificação

Essa estratégia prevê escolhas lingüísticas ou categorias

que determinam uma polarização ou dicotomização em que se

propõe reconhecer apenas os extremos conceituais e

desconsiderar o que é intermediário, como se isso não existisse

ou não fosse importante, ou como se, entre os dois extremos, a

linha divisória fosse sempre nítida e perfeitamente perceptível.

As dissociações são, pois, pares de conceitos que se

constroem em forma de oposição como, por exemplo, aparência

x realidade, natural x cultural, versão x fato etc., pares em que

se imagina poder encontrar elementos para abordar o par

mutável x imutável.

O objetivo, ao utilizar as valorizações de determinados

conceitos como se estivessem ligados ao que é imutável e

verdadeiro, é produzir o efeito da mistificação que consiste em

apresentar uma versão de um fato, sem, todavia, explicar as

referências e os procedimentos que a produziram. O

apagamento ou a omissão da referência protege contra a crítica,

sendo, pois, uma estratégia, e sugere que a revelação do

referencial é desnecessária, como se a versão apresentada

fosse obviamente a única possível.

Desse modo, no caso de se trabalhar a dissociação natural

x cultural, o caráter de imutabilidade — e, por isso, de

verdadeiro — está ligado à natural, e o de transitoriedade, à

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cultural: o emprego de qualquer uma das duas categorias, sem

explicar e justificar a escolha, via de regra, caracteriza um

processo de mistificação, ou seja, conseguir fazer passar por

natural um traço ou uma característica humana num julgamento

de um réu, produz efeitos de convencimento muito fortes como,

por exemplo, no caso de um delito em que se analise a

fidelidade do homem e da mulher, trabalhar a idéia de que é

natural o homem ser infiel/polígamo/ promíscuo etc. pode

produzir efeitos que livram o réu de uma série de acusações de

conduta inconveniente.

Outros empregos mistificadores de natural podem ocorrer

em exemplos como É natural haver ricos e pobres ou O estupro

é ato da natureza humana etc.

A dissociação aparência x realidade também pode

confundir Porque se constrói sobre um terreno semântico (ou

teórico) frágil, especialmente quando se sabe que o instrumento

de conhecimento de uma realidade é a linguagem.

Assim, pode-se construir uma defesa do réu a partir da

afirmação de que só na aparência o delito é de responsabilidade

do [pg. 89] indivíduo, pois, na realidade, ele é resultado da

desestruturação da sociedade etc.

O uso da dissociação subjetivo x objetivo igualmente deve

ser considerado um recurso que pode produzir os efeitos

desejados para a sustentação duma tese, precisamente porque

existem diferentes concepções teóricas em relação a ela,

inclusive a que nega a possibilidade de dicotomização: se o

auditório não domina as reflexões teóricas que podem ser feitas

em torno desse par de conceitos, qualquer versão ou argumento

pode ser classificado como subjetivo ou como objetivo,

dependendo dos efeitos benéficos que a escolha produzirá para

a argumentação.

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Além dessas dissociações, é fundamental, no Direito, a

dissociação pessoal x social, pelos efeitos que gera no

julgamento de um delito: as responsabilidades do ato cabem a

quem? Em que termos o indivíduo deve ser responsabilizado a

partir de que tipo de concepção de determinação social? Ou

melhor: quanto de um delito é de responsabilidade individual e

quanto cabe à sociedade assumir?15

15 Essa dissociação gera, pois, pela oposição de sistemas de referência, qualificações como “marginal” x ‘“marginalizado”.

Sabendo-se, porém, que nem sempre é fácil distinguir os

limites entre os conceitos que compõem a dissociação, podem,

dependendo da maior ou menor competência do argumentador,

conduzir tanto à adesão a argumentos não necessariamente

verdadeiros (desde que a dissociação consiga produzir o efeito

de confundir o interlocutor) como a bloqueios intransponíveis

(quando a versão é desmistificada).

Outras dissociações são pares como meio x fim, individual

x universal, particular x geral, singular x genérico, linguagem x

realidade — todas potencialmente mistificadoras porque ligadas

às idéias de verdadeiro ou falso.

5.2.2 A mistificação

Outra estratégia interessante — diferente da mistificação

— vale-se da escolha de determinadas expressões cristalizadas

pela repetição insistente, pois, esses enunciados, precisamente

porque estão cristalizados, são aceitos como verdadeiros.

É dessa maneira que expressões como A justiça tarda, mas

não falha, A justiça é cega, O juiz é neutro etc. podem passar

por verdadeiras [pg. 90] porque, pela repetição, se

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consolidaram e, por isso, tornaram-se quase imunes à crítica.

São, pois, mitificações que, pelas relações que a linguagem tem

com o exercício de certos poderes, estão ligadas aos interesses

de determinados segmentos sociais e devem ser consideradas

como parte do instituto social.

5.2.3 A implicitação

A estratégia da implicitação configura uma atividade que,

com a escolha de determinadas palavras e estruturações do

discurso, consegue produzir efeitos como, por exemplo, de

ridicularizar e de condenar o sentido (uma tese) ou uma conduta

especialmente quando elas ferem o que está instituído ou o

imaginário social.

O importante a observar é que a implicitação cria um tipo

de cumplicidade entre o argumentador e o auditório, o que pode

representar que uma contrapalavra se veja constrangida a não

poder dar a réplica, porquanto teria que se dirigir não apenas

contra o enunciante mas também contra aqueles que já tenham

estabelecido uma cumplicidade com ele.

1. No caso da ironização, por exemplo, a estratégia

consiste em escolher, para determinado fato, pessoa,

circunstância ou situação, uma palavra cujo sentido é

inadequado. Ao mesmo tempo, porém, que constrói o

inadequado, o enunciante oferece pistas ou sinais de que isso

foi proposital, e o que quis dizer é o oposto.

Serve como exemplo de ironia, classificar alguém como

extremamente honesto ou exemplo de honestidade quando os

termos mais adequados à sua conduta seriam corrupto, ladrão

etc.

A ironização, enfim, envolve a crítica e a ridicularização e,

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pelo fato de implicitar e convidar à cumplicidade, é uma

estratégia que agride e, ao mesmo tempo, protege o autor da

agressão (ele sempre pode negar que tenha querido agredir).

2. A pressuposição pode ser considerada uma estratégia

argumentativa porque caracteriza um sentido implícito

obrigatório que certas expressões lingüísticas agregam, ou seja,

para que determinadas Palavras possam ser empregadas devem

estar preenchidas condições sem as quais se criam confusões e

mal-entendidos. Essas condições são chamadas de

pressuposições cujo alcance para produzir efeitos pode ser

observado, especialmente, quando, num interrogatório (num

inquérito, por exemplo), forem exigidas respostas em termos de

sim ou [pg. 91] não16: à pergunta Você deixou de bater na

mulher! está pressuposto de que o interrogado bateu em algum

momento e, por isso, tanto o sim como o não confirmam a

pressuposição, mesmo que a agressão sugerida nunca tenha

ocorrido.

16 Na verdade, a limitação das respostas a “sim” ou “não” deve ser considerada uma intervenção redutora do contexto, ou seja, a descontextualização do fato significa um controle da produção dos sentidos e interfere profundamente nas condições de julgamento.

São, pois, certos verbos, como deixar, parar, continuar etc.

que implicitam sentidos obrigatórios que o argumentador pode

utilizar para produzir os efeitos de sentido que ajudam a

sustentar a sua tese.

Segundo Koch (1992), os verbos que indicam

pressuposição podem ser organizados em 3 grupos:

1. “verbos que indicam mudança ou permanência de

estado, como ficar, começar, deixar de, continuar,

permanecer etc.”.

Page 121: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

Assim, João deixou de bater na mulher pressupõe que ele

batia, assim como João começou a bater na mulher pressupõe

que antes ele não batia.

2. “Verbos denominados ‘factivos’, isto é, que são

complementados pela enunciação de um fato (...) como

lamentar, lastimar, sentir etc.”.

Assim, Lamento que João tenha batido na mulher

pressupõe que João bateu na mulher e em Sabia que João bate

na mulher pressupõe que seja verdadeira a informação de que

João bate na mulher.

3. A implicação é uma forma diferente da ironia e da

pressuposição, embora também possa agredir e, por isso, atingir

e (de)formar a imagem de alguém ou o dito de outrem através

de um conjunto de palavras que não poderão ser — como nos

dois outros tipos — consideradas inadequadas ou condições

necessárias, mas que, pela manipulação hábil podem produzir

efeitos devastadores. É, pois, uma estratégia que não se apóia

em sentidos subentendidos, mas na armação de uma lógica de

conseqüências possíveis que o emprego de determinada palavra

ou expressão pode gerar.

Assim, um enunciado como João é um sábio implica que a

sua conduta não deverá apresentar nada que negue o sentido

de sábio, o que, na prática jurídica, pode ocorrer com

enunciados como João é uma pessoa de conduta ilibada etc.

[pg. 92]

4. A insinuação deve ser entendida como uma outra

importante forma de deformar sentidos sem que o

argumentador se exponha à contrapalavra, pois, de forma

ardilosa escolhe sentidos que não são nem inadequados, nem

pressupostos, nem implicações, mas que funcionam como

sugestões ou suspeitas, e até como indícios, como se pode ver

Page 122: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

em Voese (1998):

Um exemplo de como, aparentando manter o compromisso com

a informação verdadeira, a imprensa não deixa de incluir um

julgamento nos seus textos (mesmo nos de aparência mais

inocente) é uma nota publicada em uma coluna de um jornal

brasileiro, na época em que P. C. Farias (personagem do

processo de cassação do mandato do presidente Fernando

Collor) estava foragido no exterior e a polícia brasileira tinha

dificuldades em localizá-lo. Dizia a nota:

(O SOL QUE NOS PROTEGE. PC EVITE O CARIBE. O chefe da

Interpol no Brasil, Edson Oliveira, e o vice-presidente mundial

da Interpol, Romeu Tuma, participam de um congresso do órgão

em Aruba. Estão no Hotel América. Aquele que tem um

cassino.)

Aparentemente, o texto poderia remeter à idéia de tentar

construir algo como uma brincadeira, (...) a seleção e a

disposição das informações em relação aos personagens

citados cria [porém] um efeito que não tem nada de inocente.

(p. 25)

A insinuação é como que construída por acaso, e, por isso,

permite uma certa proteção para quem a formulou, pois quem

explicita os sentidos que produzirão efeitos argumentativos é o

auditório.

5. A implicitação oral e a escrita dizem respeito não à

escolha de elementos lingüísticos ou discursivos, mas à

alocação de recursos ou da oralidade ou da escrita, e que

interferem na produção de sentidos e seus efeitos.

Na fala, os enunciados apresentam entoações ou

seqüências de entoações que são padronizadas e correspondem

a uma certa tipologia. A quebra, porém, desses padrões

entonacionais das frases pode introduzir sentidos implícitos que

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se tornam importantes na argumentação como se pode verificar

em Ele disse que não é corrupto.

No padrão de frase conclusiva, observa-se um aclive de

tom, seguido de queda onde ele tem tom baixo. Modificando a

entoação e pronunciando ele com tom alto, pode-se estar

dizendo que a afirmação de inocência é só do personagem e não

é acolhida por quem diz “Ele disse que...”. [pg. 93]

Outrossim, escolhendo, alternadamente, o tom alto (que

produz o destaque) para as outras palavras, o sentido que se

implícita varia a cada vez.

A escrita, para poder produzir tais efeitos de implicitação,

vale-se de recursos gráficos como o negrito, as aspas, o itálico,

o sublinhar, as maiúsculas etc.

5.2.4 A impessoalização

A impessoalização é uma estratégia argumentativa que

procede à escolha de itens lexicais indefinidos ou genéricos para

referir-se a determinados indivíduos, e pode produzir efeitos de

sentido capazes de levar a duas conseqüências distintas:

a) quando o enunciante se esconde sob o uso da terceira

pessoa, cria-se a idéia de impessoalização e, por isso,

um efeito de indefinição e de neutralidade que protege

contra uma réplica;

b) quando o enunciante se refere a um oponente através

de expressões como ele, essa gente, certos indivíduos

etc., produz-se um outro tipo de efeito — o de

desvalorização do interlocutor: se o indivíduo não é

identificado é porque não o merece.

Dois exemplos podem explicar a força da estratégia da

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impessoalização:

a. Dizem que João foi visto cometendo o crime.

b. A sociedade sempre soube lidar com essa gente.

5.2.5 A vaguezização (ou a ambigüização)

A estratégia que visa a dar um caráter de vaguidade,

ambigüidade ou de indefinição (ou seja, explorar e exacerbar

uma característica da linguagem) a um enunciado pode criar

fortes efeitos, em termos de suspeição e de desconfiança em

relação a fatos e pessoas, ou se prestar à defesa de interesses

específicos. A estratégia pode consolidar a posição do

enunciante e conduzir à adesão do auditório, como se pode

observar, por exemplo, quando se cita de forma vaga a origem

dos recursos que sustentam o movimento dos sem-terra: O

MST... recebe contribuições do Brasil e do exterior. [pg. 94]

Ora, Brasil e exterior não são itens lexicais que fornecem

uma localização precisa quanto à origem das contribuições,

pois, com certeza, não é o Estado brasileiro, nem nações

estrangeiras que sustentam o movimento: a afirmação sugere,

assim, que as fontes não são bem conhecidas porque não há

intenção de revelá-las etc.

A vaguidade da informação quanto à origem dos recursos

financeiros que mantêm o MST pode, pois, levantar suspeitas

até mesmo de ilegalidade a depender do contexto histórico e

social em que o enunciado é produzido.

Da mesma forma, com enunciados como Todos têm direito

à propriedade, o argumentador pode valer-se da ambigüidade

para manipular os efeitos de vaguidade em defesa de interesses

de grupos sociais que ou já têm propriedade ou pretendem ter.

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5.2.6 A generalização

O processo de generalização ocorre tanto nos limites das

atividades corriqueiras do cotidiano como nos procedimentos

científicos, e tem o objetivo de fixar, através do processo de

abstração, o que é de caráter geral nas individualidades, ou

seja, a generalização desconsidera o que é singular e leva em

conta apenas o que é comum ou geral.

A generalização permite o estabelecimento de regras e

normas de conduta ou de leis de funcionamento da realidade

em que vive o homem, de modo que encontrar os traços gerais

que as individualidades têm em comum representa uma

possibilidade de conhecimento e de organização social.

Nas ciências naturais e matemáticas há controles rígidos

dos procedimentos de generalização, o que não ocorre, contudo,

no cotidiano e é difícil de estabelecer em práticas que não se

ocupam com a demonstração de verdades, como é o caso, por

exemplo, do Direito.

Por esse motivo, a generalização, pelos efeitos de verdade

que produz junto ao auditório, é uma estratégia que precisa ser

observada com atenção, pois, se no Direito não se visa à

demonstração de verdades, mas, à produção de justificativas e

de sentenças, encontrar generalidades torna-se uma tarefa

extremamente complexa.

E, devido a essa complexidade de se garantir como

verdadeira uma generalização, ela se presta a funcionar como

recurso para produzir efeitos de adesão e, se objetiva pela

presença de palavras como todos, [pg. 95] tudo, ninguém,

nada etc. Isso faz que, especialmente no silogismo, o raciocínio

se apóie em enunciados como Todos são iguais perante a lei,

Todos os políticos são corruptos, Todos os homens são infiéis,

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Nada recomenda o réu etc.

Quando se trata, pois, de generalizações de valores, a

atividade se dá no plano ideológico e não, lógico, porquanto se

sabe que os sistemas de referência que circulam na sociedade

produzem a diversidade de valores que os segmentos sociais

buscam homogeneizar através das ideologias.

E, nesse caso, o que determina a aceitação das

generalizações é a credibilidade ou a autoridade do

argumentador. Isso reforça a importância das estratégias

interativas e, por outro, mostra a complexidade da prática

jurídica em promover a justiça quando atua sempre no limite

das determinações ideológicas.

5.2.7 A higienização

A heterogeneidade de sistemas de referência se reflete na

estrutura da língua de modo que a realidade sempre pode ser

nomeada de diversas maneiras, nenhuma das quais deve ser

considerada neutra, mas sempre comprometida com um

julgamento positivo ou negativo.

É essa característica da língua que se presta a que

determinadas escolhas possam produzir uma versão mais

amena ou higienizada de um fato.

Um enunciado, como, por exemplo, Cumprir ordens, pode,

aparentemente, não ter nenhum poder de influenciar uma

posição ou um ponto de vista de alguém. Produzido, porém, em

função de minimizar a responsabilidade de alguém que matou

em determinadas circunstâncias, o enunciado higieniza o fato e,

por isso, não deve ser desconsiderado como uma importante

estratégia argumentativa.

A escolha de enunciados como cumprir ordens ou agir em

Page 127: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

nome da lei pode, em determinadas circunstâncias, silenciar

outras, como, por exemplo, assassinar, violentar, torturar,

abusar de autoridade etc.

5.2.8 A inclusão do ponto de vista do argumentador

Há, ainda, na língua, recursos que permitem a inclusão

sutil do julgamento do argumentador, o que pode não parecer

importante, [pg. 96] mas, considerando que o enunciante

usufrua de uma imagem de credibilidade, o conhecimento de

seu ponto de vista influenciará a adesão do auditório.

É preciso lembrar, aqui, que, quando alguém inspira

confiança ou se reveste de autoridade, a exposição de seus

pontos de vista atua ao nível de uma produção de argumentos

como se pode verificar no capítulo das técnicas argumentativas.

Manifesta-se, pois, assim, em algumas escolhas

lingüísticas, a posição do argumentador, ou seja, a certeza, a

probabilidade ou a dúvida do enunciante, uma vez verbalizadas,

podem direcionar ou influenciar o julgamento do auditório.

Os exemplos seguintes revelam posições diversas do

enunciante a respeito da inocência de João:

a) É necessário considerar João inocente.

b) É possível considerar João inocente.

c) É certo que João é inocente.

d) É provável que João seja inocente.

Um caso interessante ocorre com o verbo dever, cujo

emprego tanto pode remeter a é necessário como a é provável

em:

a) João deve ser considerado inocente.

Também com o verbo poder ocorre uma orientação

ambígua, como, por exemplo, em João pode ser considerado

Page 128: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

inocente. O enunciado tanto acolhe a idéia de é possível como a

de é facultativo.

Uma outra forma de produzir efeitos que sugerem o ponto

de vista do argumentador diz respeito à escolha do tempo dos

verbos: o presente e o futuro do presente sugerem que o

enunciante se compromete com o que diz, ou seja, tem

segurança para assumir como verdadeiro o enunciado

produzido. O efeito que o uso do presente (ou do futuro do

presente) produz pode ser observado confrontando João

deve(rá) ser considerado inocente com João deveria ser

considerado inocente ou Se João devesse ser considerado

inocente...: no primeiro exemplo, perpassa a idéia de certeza do

enunciante e, nos outros, a de dúvida.

A escolha, pois, de verbos e tempo/modo é

importantíssima por vários motivos: a) os verbos ser e estar, no

presente e no futuro, dão uma [pg. 97] idéia de

inquestionabilidade ao enunciado. Conduzem, pois, a uma argu-

mentação agressiva e contundente. Utilizados, porém, em

afirmações questionáveis e discutíveis, produzem um efeito

contrário: a argumentação, devido à radicalização da

modalização, torna-se frágil; b) a escolha de uma modalização

menos extremada ou mais concessiva — por exemplo, com o

verbo poder ou outro tempo/modo para ser e estar — pode

significar uma argumentação não tão contundente, mas

ampliará as possibilidades de negociação como poderia requerer

um caso como o da fixação de atenuantes para um delito, por

exemplo.

Se a inclusão do ponto de vista do argumentador — com

uma imagem de credibilidade, convém lembrar — é uma

estratégia importante, maiores efeitos podem realizar as

escolhas que, além dum julgamento, apontam para sentimentos

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e emoções.

A estratégia, então, se situa no plano emocional ou

psicológico quando se fazem presentes palavras como

lamentavelmente, (in)felizmente, incrivelmente e semelhantes.

5.2.9 A (des)focalização de argumentos

Focalizar, através da alocação de recursos lingüísticos e

discursivos, os argumentos que interessam à sustentação duma

tese é uma outra estratégia que deve merecer toda a atenção,

mesmo porque, segundo Perelman,

Quando dispomos de certo número de dados, oferecem-se-nos

amplas possibilidades quanto aos vínculos que estabeleceremos

entre eles. O problema da coordenação ou da subordinação dos

elementos se prende em geral à hierarquia dos valores aceitos;

todavia, no âmbito dessas hierarquias de valores, podemos

formular ligações entre os elementos do discurso que

modificarão consideravelmente as premissas: operamos entre

esses vínculos possíveis uma escolha tão importante como a

que operamos pela classificação ou pela qualificação.

(PERELMAN, 1996a, p.176)

Efetivamente há determinados elementos da gramática da

língua que têm a capacidade de indicar o argumento que deverá

ter predominância sobre outros, ou, então, auxiliar o

argumentador na condução da sua atividade de construção e

sustentação de uma tese: é o que ocorre com o efeito da

(des)focalização que corresponde à estratégia de [pg. 98]

maximizar um argumento e, ao mesmo tempo, minimizar um

outro. Neste caso, atua-se com operadores que contrapõem

argumentos orientados para conclusões contrárias: mas

(porém, contudo, todavia etc.)

Page 130: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

Exemplo: João matou, mas foi em legítima defesa. No

enunciado, o mas opera minimizando a força de João matou e

maximiza foi em legítima defesa. Da mesma forma, em João

agiu em legítima defesa, mas matou, o argumento que soma

mais força, em oposição a um contrário, é matou.

A (des)focalização é um procedimento do enunciante que

visa a desviar a atenção do interlocutor daquilo que não lhe

interessa, ou seja, trata-se de uma estratégia para deslocar a

atenção de um determinado foco a outro, de tal forma que os

efeitos de sentido facilitem a adesão em relação ao que é de

interesse de quem enuncia.

Na prática jurídica, a (des)focalização torna-se sobremodo

interessante porque permite que o argumentador consiga não

só minimizar os efeitos dos argumentos do adversário, mas

também, desqualificar (v. o argumento da coerência) o sistema

de referência que ilumina os focos indesejáveis. Assim, além da

(des)focalização, cria-se o efeito de desconfiança sobre a

argumentação contrária.

5.2.10 A (des)valorização de argumentos

Com o operador embora, a orientação argumentativa

difere em relação a mas no que se refere à estratégia: em

Embora João tenha matado, foi em legítima defesa, há uma

antecipação de argumentos contrários, ou seja, verbaliza-se o

que deve ser desconsiderado ou minimizado (podem ser os

argumentos reais ou prováveis do adversário). Se com o mas se

cria uma expectativa e um espaço possível para o silêncio que

motiva a atenção, com embora ocorre, concomitantemente,

uma aceitação dos eventuais argumentos contrários, e há uma

desvalorização de sua importância: o fato de estarem sendo

Page 131: Ingo voese   argumentação jurídica(2ª ed.- 2006)(doc)(rev)

citados pode dar a entender que isso não representa um risco

para os próprios argumentos.

5.2.11 A armação duma lógica

Há, na língua, operadores que conduzem a uma

conclusão relativa a argumentos de enunciados

anteriores, tais como portanto, logo, pois etc.; ou pares como

se...então, ora...logo. [pg. 99]

Os exemplos dos seguintes silogismos podem esclarecer a

força diferenciada dos operadores:

1. Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser

condenado.

Ora, João agiu em legítima defesa.

Logo, João não deve ser condenado.

No silogismo acima o par de operadores ora...logo conduz

rapidamente a uma tese: a chegada a uma conclusão é linear e

não admite negociações. Já com o outro par — se... então — ,

embora também oriente para uma congruência, apresenta uma

alteração de estratégia argumentativa conforme se pode ver

em:

2. Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser

condenado.

Se João agiu em legítima defesa.

Então João não deve ser condenado.

É interessante observar que, nesse silogismo, parece

residir uma fragilidade de convicção do argumentador, enquanto

que em ora... logo se dá o contrário, porque ora impõe como

que uma evidência, enquanto se permite a dúvida.

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Em termos de estratégia argumentativa, porém, o par

se...então pode produzir excelentes resultados, especialmente

quando o argumentador tem convicção e finge que tem dúvidas,

porque, ao apresentar a sua versão dos fatos e as provas da

forma como lhe interessa, convida o(s) interlocutor(es) a

dirimir(em) a dúvida sugerida e confirmar(em) a tese. O convite

à negociação que faz o argumentador em se...então se dá

porque ele finge abrir mão da atividade de construção da tese, o

que pode desarmar o interlocutor e ampliar as possibilidades de

sua adesão.

5.2.12 A indicação de um extremo da escala

A língua, precisamente por pressão da heterogeneidade

social, permite que as coisas, os fatos etc. possam ser

verbalizados de diferentes [pg. 100] maneiras, o que abre a

possibilidade para a valoração escalar. A estratégia com

operadores que apontam o argumento que, numa escala

de forcas, fica no ponto extremo como até, inclusive etc.,

visam, ao indicar o argumento a ser considerado de maior

impacto, levar o auditório a aderir à tese.

Se, por exemplo, numa escala de argumentos, temos

cometeu diversos assassinatos, cometeu outros delitos, teve

problemas de conduta social, o operador até aponta para aquele

que tem mais força. Assim, João deve ser condenado — até

porque (inclusive) já cometeu diversos assassinatos — ...

5.2.13 A soma de argumentos

Há, ainda, outro tipo de operador que possibilita uma

estratégia argumentativa: é o que possibilita a cooptação dos

argumentos do adversário, ou seja, a construção permite que o

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argumentador possa atuar sobre o dito de quem o antecedeu no

debate, assumindo os argumentos contrários, mas

acrescentando a eles outros que deverão fazer a diferença.

Trata-se de operadores argumentativos que somam

argumentos à tese, tais como, e, também, não só... mas

também etc.

Assim, por exemplo, quando se avalia se alguém tem ou

não, direito à pensão alimentícia, pode a discussão centrar-se

em torno do argumento que sustenta ou nega a capacidade

para trabalhar do requerente.

Ora, se entender capacidade para trabalhar como

condições físicas para trabalhar, é possível construir a

contraposição, recorrendo ao operador argumentativo de forma

a incluir condições físicas e acrescentar-lhe outros argumentos:

“capacidade para trabalhar não deve significar não só condições

físicas, mas também...”. [pg. 101]

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6

A ARGUMENTAÇÃO E O ATORESPONSÁVEL

Os estudos que tomam a linguagem como objeto só

recentemente passaram a incluir como referência teórica os

textos do filósofo russo Mikhail Bakhtin. E, embora as suas

principais formulações sobre o discurso tenham sido feitas no

início do século passado, ainda se prestam a operacionalizações

interessantes e ricas.

A argumentação jurídica, por operar sobre valores, tem no

texto Para uma filosofia do ato (Bakhtin, s.d.) um excelente

ponto de ancoragem para alimentar a reflexão sobre não só sua

natureza, mas, e especialmente, quanto a seu caráter de

mediação das relações sociais.

Para Bakhtin, todo ato deve ser analisado como ação

responsável que emerge da oposição entre o ato realmente

ocorrido e o sentido que lhe confere uma interpretação. Isto é:

todo e qualquer ato pode receber diferentes interpretações que

produzem diferentes sentidos. Os sentidos, por sua vez,

multiplicam-se e libertam-se de seus autores, passando a

produzir efeitos que, se, em parte, são circunscritos, também

podem fugir, devido à heterogeneidade social e referencial, a

uma previsibilidade. Por isso, o sentido dado a um ato orienta

novas interpretações de novos atos, ou seja, é responsável

pelos sentidos que humanizam ou não, as relações sociais.

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Essa dimensão do ato descreve o discurso — também ato

enquanto mediação — como permanentemente centrado em

valores, pois as interpretações da realidade dependem das

categorias (ou referências) colocadas em cena e que, por sua

vez, resultam de escolhas orientadas por [pg. 103] valores-

guia, ou seja, “[...] toda categoria orientadora de valor tem um

uso adequado ao objeto, um adequado ao sujeito e um

adequado à situação. Tais categorias podem ser usadas,

portanto, ‘em conformidade com a coisa, com a tarefa’, ‘em

conformidade com a situação’ e ‘em conformidade com a

pessoa’”. (HELLER, 1983, p. 60)

É, por isso, que todo ato humano contém uma dose de

responsabilidade pessoal e que condiciona a produção do

discurso a se comprometer com uma coerência entre um dizer e

um fazer, entre o dito e a coisa. O indivíduo, ao agir, emancipa-

se responsavelmente.

O discurso jurídico, particularmente no que se refere à

argumentação, deve, portanto, chamar a si, quer seja no plano

institucional, quer seja no pessoal, a responsabilidade tanto

como ato enunciativo materializado, como pelos efeitos que o

ato pode produzir.

Assim, institucionalmente, a responsabilidade da prática

jurídica lembra, entre outras referências, que:

1. A preservação institucional do contraditório na

argumentação jurídica é garantia da manifestação de

diferentes interpretações possíveis para um

determinado ato.

2. A escolha de valores-guia que orientam os

procedimentos e os rituais jurídicos, por serem

linguagem, são discutíveis.

3. A avaliação permanente da relação entre os valores-guia

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adotados e os valores sociais vigentes requer um

profundo envolvimento e conhecimento social.

4. O zelo pelos acordos sociais construídos historicamente

implica uma vigilância e uma competência para atuar

sobre direitos e deveres.

Quanto ao comprometimento pessoal, é possível — apesar

da distribuição dos lugares “contraditórios” de argumentação —

responsabilizar o indivíduo por motivos tais como:

1. As escolhas das técnicas e estratégias argumentativas

resultam de uma interpretação do fato.

2. A interpretação do fato aciona sempre categorias

operacionais específicas comprometidas com valores

sociais. (Exemplo: liberdade).

3. Os valores, por serem linguagem, são polissêmicos e

dependem de outros atos interpretativos. (Que é

liberdade?) [pg. 104]

4. Os atos interpretativos encontram-se irremediavelmente

ancorados em vozes de lugares sociais que, por serem

diferenciados, instalam um conflito de sentidos.

5. Os conflitos de sentidos podem gerar condutas sociais

conflitantes que, potencialmente, implicam o risco de

ruptura social.

6. A argumentação jurídica tem como objetivo fundamental

operar sobre esse risco social. E, por isso, pode assumir

um caráter paradoxal de (des)humanização.

7. O indivíduo que atua na argumentação jurídica, pela

liberdade de que faz uso ao realizar as escolhas, pela

singularização da interpretação do fato, pelo poder de

fala que exerce e pelos efeitos que disso resultam, é

também responsável.

A argumentação jurídica é, pois, discurso responsável que

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avalia e avaliza responsabilidades tanto pessoais como sociais.

Isto é: o fato de o enunciante poder, apesar da distribuição dos

papéis a partir da observação do contraditório, fazer escolhas

não o exime da responsabilidade como participante responsável

do ritual que busca promover a justiça.

O presente estudo da argumentação jurídica —

desenvolvido com o propósito de ser introdutório — várias vezes

também abordou a relação da linguagem, ou da argumentação

mais especificamente, com o exercício do poder.

Para a argumentação jurídica esse tema se reveste de

particular importância, porque ela se propõe, como objetivo

final, promover a justiça, o que envolve também a discussão das

relações de força que mantêm entre si os diferentes segmentos

sociais e a análise dos conflitos que se originam dessas

relações. E isso implica falar de ideologia.

A ideologia pode ser definida como um projeto de

socialidade, ou seja, um sistema de sentidos que correspondem

a ideais de sociedade. Esses ideais, obviamente, na medida em

que orientam condutas, valorizam as referências que se ligam a

interesses específicos de grupo.

Desse modo, no embate das forças sociais, a ideologia,

além de orientar e consolidar um determinado segmento, pode,

através de recursos lingüísticos e discursivos, fazer circular, de

forma não-explícita, a idéia de que o sistema de referência de

um determinado grupo é o melhor e o mais indicado, não só

para o próprio grupo, mas também, para toda a sociedade. E, ao

executar a sua função, a ideologia — porque precisa [pg. 105]

construir uma hierarquia de sistemas de referências em cujo

extremo se localiza o que abriga os interesses do grupo que a

ela se liga — homogeneiza fazendo passar por verdadeiros

apenas os sentidos gerados pelo sistema de referência

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hegemônico, mascarando, dessa forma, os objetivos de do-

minação.

Em outros termos, a ideologia não é, por natureza, um

meio de dominação, mas de organização social. Quando, porém,

se instalar, no meio social, a disputa de poderes, a ação

ideológica produzirá hierarquizações dos enunciados dos

sistemas de referência dos diferentes segmentos sociais. E, só

então, quando anula tudo que se lhe opõe, o sistema de

referência hegemônico, enquanto ideologia, é também

instrumento de luta.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com as comunidades de

descendentes de imigrantes alemães no Brasil: evidentemente,

organizaram suas atividades produtivas tendo como orientação

um determinado sistema de referência. No momento, em que,

durante a 2a Guerra Mundial, o Brasil se pronunciou a favor dos

aliados e contra a Alemanha, as comunidades de língua alemã

no País passaram a ser hostilizadas como se fossem inimigos.

Isso produziu efeitos ideológicos tais que os sistemas de

referência produziram verdades ou axiomas como Todo alemão

é nazista/inimigo ou Todos os que não são ou falam o alemão

são inferiores/negros etc.

Do mesmo modo, enunciados como E natural que haja

ricos e pobres. O homem é, por natureza, infiel. É óbvio que

mulher (o negro, o índio, o jovem etc.) é inferior ao homem (o

branco, o adulto etc.). Dinheiro não traz felicidade. O catolicismo

é a única religião cristã. Deus castiga quem não respeitar os

mandamentos. Todos são iguais perante a lei etc. podem, de um

ponto de vista lógico, ser considerados discutíveis. No entanto,

enquanto enunciados nos quais os indivíduos passam a crer

como se fossem verdades irrefutáveis, eles produzem efeitos de

poder que vão determinar resultados que, numa disputa de

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forças, podem levar à dominação. O enunciado ideológico, pois,

sempre esconde interesses de grupos: não é, pois, de ordem do

indivíduo, embora ninguém — precisamente porque todos se

submetem às determinações sociais que se originam do conflito

— consiga livrar-se inteiramente de uma orientação ideológica.

Ora, a argumentação também atua em função da

heterogeneidade referencial e social, mas nela se exercita

primordialmente o raciocínio lógico e se questionam insistente e

rigorosamente os sentidos das palavras, as teses, os axiomas,

as afirmações e os procedimentos que podem [pg. 106]

conduzir à produção de novos enunciados/sentidos. A diferença

entre a atividade ideológica e a argumentativa, no sentido

restrito, diz respeito à forma como se pretende alcançar a

prevalência de um sistema de referência: na primeira, busca-se

conseguir o domínio (ou a dominação) pela instalação da

crença, isto é, no universo ideológico, o processo interativo não

oferece acolhida à réplica, à crítica e ao exame lógico; na

interação jurídica, quer-se a adesão que deve se realizar como

conseqüência de um raciocínio que visa a sustentar e justificar

uma tese.17

17 Por isso, a relação entre meios e fim, no Direito, é diferente dos da Política: se nessa — por força da ideologia — se pode até permitir a idéia de que o fim justifica os meios, na prática jurídica, isso é inadmissível.

A ação ideológica, na verdade, quando se faz meio de luta,

é a negação da dimensão democratizante, porquanto busca

silenciar os outros sistemas de referência da sociedade, e a

argumentação — entendida como interação — ao contrário,

preestabelece condições de alternância de turnos para a

manifestação dos diferentes argumentos.

A constatação de que a interpretação sempre implica

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também orientar-se por categorias ideológicas, revela, pois,

para a argumentação jurídica, a importância de um acordo que

defenda a possibilidade da manifestação da discordância, não só

no que diz respeito ao contexto imediato do que está sendo

julgado, mas também ao mediato — e que se refere ao universo

ideológico — porque, se assim não se fizer, a interpretação do

fato pode ser prejudicada, já que o universo mais amplo — e

que é determinante do imediato — não foi considerado.

Os argumentos, pois, tanto quanto for possível, deveriam

trazer à discussão elementos dos dois contextos, principalmente

para permitir a desconstrução ideológica das referências.

Por outro ângulo, entender a argumentação como

interação implica dizer que há a necessidade de se prestar

especial atenção também ao ato de ouvir, em termos de dever e

de poder ouvir, mormente na prática jurídica porque, aí,

conforme Perelman,

Mesmo no plano da deliberação íntima, existem condições

prévias para a argumentação: a pessoa deve, notadamente,

conceber-se como dividida em pelo menos dois interlocutores

que participam da deliberação. E nada nos autoriza a considerar

essa divisão necessária. Ela parece constituída com base no

modelo da deliberação com outrem. (PERELMAN, 1966a, p. 16)

[pg. 107]

E continua:

Não basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido.

Não é pouco ter a atenção de alguém, ter larga audiência, ser

admitido a tomar a palavra em certas circunstâncias, em certas

assembléias, em certos meios. Não esqueçamos que ouvir

alguém é mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o

ponto de vista. (Op. cit. p. 19)

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Desconstrói-se, pois, a idéia de que, na argumentação, o

enunciante tem a sua tarefa comprometida apenas com a

formulação e a organização de argumentos que sirvam à

acusação ou à defesa: ele precisa submeter-se a um acordo que

garante aos interlocutores a alternância das atividades de

ambos, sem o que não adiantam os argumentos mais brilhantes

e o raciocínio mais bem estruturado. E preciso, enfim, que o

acordo gerencie o confronto argumentativo porque, na verdade,

são sistemas de referência diferenciados que se batem pela

construção de um sentido possível de justiça. E esse embate é

de ordem ideológica.

O ato de ouvir, por essa razão, não significa apenas uma

necessidade para saber o que se constrói na oposição, mas

parte de um acordo que propõe o silêncio e a fala em processos

alternados entre interlocutores, sem que a correlação signifique

a hierarquização de sistemas de referência e a imposição

ideológica.

Parece, pois, à primeira vista, que o Direito, pelo fato de

acolher a presunção do contraditório, estaria, ao garantir as

diferenças de interpretação, inibindo a ação ideológica e, com

isso, a manipulação, o jogo de poderes. Na verdade, porém, o

contraditório, na prática jurídica, refere-se, em geral, ao que

constitui o contexto imediato do ato em julgamento. O fato

jurídico, pois, na grande maioria dos casos, não inclui dimensões

que fazem parte do contexto mediato e, por isso, as diferenças

que sustentam a acusação e a defesa podem estar fazendo

parte dum mesmo universo ideológico.

O fato, contudo, de os enunciados se submeterem à

avaliação e à crítica, permite que, na interação argumentativa,

se possa localizar e desconstruir aquilo que assume uma nítida

função ideológica que desconsidera e anula as diferenças de

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sentidos produzidos pela heterogeneidade social. E por que os

múltiplos segmentos sociais mantêm uma relação conflitante,

todo o sentido produzido pelo processo de interpretação abriga

a possibilidade de se tornar um instrumento de dominação

ideológica — [pg. 108] basta que os processos sociais

conduzam a uma hierarquização das diferenças de sentido que

gera a heterogeneidade referencial.

O ponto de vista valorativo ou o julgamento, portanto, em

termos de bom ou mau, útil ou inútil, correto ou incorreto, que

pode se agregar a qualquer sentido, embora revele uma adesão

pessoal, está profundamente comprometido com o que é de

nível social porque a hierarquização valorativa dos atos pode,

em função dos conflitos sociais, ter como referência a ideologia

de um determinado segmento social.

Ora, toda vez que se escolhe e insiste que os atos dos

indivíduos e as relações que sustentam a sociedade devem ser

avaliados pelo sistema de referência de um dos segmentos

envolvidos no conflito, configura-se uma intervenção ideológica,

o que também quer dizer — porque a imposição e o

cerceamento reconduzem ao conflito — que se realizou uma

pseudojustiça: faz-se necessário, para intervir no conflito,

encontrar uma referência que, em termos gerais, seja aceita por

todas as partes envolvidas.

É, por isso, que se pode afirmar que a argumentação —

sobremodo, a jurídica — ao zelar pela alternância das

manifestações das partes conflitantes, tem uma

responsabilidade ética: só pode o Direito fugir das armadilhas de

se ver reduzido a instrumento ideológico de um segmento social

— em geral, do hegemônico — garantindo os turnos de

argumentação no ritual interativo.

O que se quer dizer é que, embora toda e qualquer

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interpretação esteja comprometida com determinado sistema

de referência, a prática jurídica — porque se constrói sobre a

possibilidade do contraditório — encontra no ritual

argumentativo a melhor forma para não acolhê-la como a única

ou a melhor. O problema, pois, que diz respeito à ideologia

situa-se no nível de condução das interpretações em termos de

realizá-las, apoiadas em referências sabidamente

comprometidas com um ou outro segmento social.

Vê-se, pois, que a argumentação jurídica comporta uma

dimensão ética que diz respeito à correlação entre o direito e

dever de falar e o direito e o dever de ouvir18: se cada indivíduo

pode (e deve) invocar o direito de expor e defender a tese que

entende ser válida para uma determinada situação, ele também

assume, neste preciso momento, o compromisso de que seu

interlocutor terá o mesmo direito, além de fixar, para [pg. 109]

ambos, o dever de ouvir. Ou, então, ao invocar o direito de

poder ouvir ou apropriar-se do que é exposto, o indivíduo

constrói também a noção de dever de enunciação para ambos:

sem o acordo ético não há o direito, precisamente porque lhe

falta apoio no seu correlato, o dever, o que, forçosamente, leva

o Direito a perder força na atuação sobre os conflitos sociais.

18 Isso quer dizer que artimanhas e recursos que visem a obstaculizar ou prejudicar a atividade argumentativa, especialmente no Direito, devem receber a condenação como atividade antiética.

A dimensão ética da argumentação jurídica tem, enfim,

relação com o que diz Perelman:

Pode-se, de fato, tentar obter um mesmo resultado seja pelo

recurso à violência, seja pelo discurso que visa à adesão dos

espíritos. É em função dessa alternativa que se concebe com

mais clareza a oposição entre liberdade espiritual e coação. O

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uso da argumentação implica que se tenha renunciado a

recorrer unicamente à força, que se dê apreço à adesão do

interlocutor, obtida graças a uma persuasão racional, que este

não seja tratado como um objeto, mas que se apele à sua

liberdade de juízo. O recurso à argumentação supõe o estabele-

cimento de uma comunidade dos espíritos que, enquanto dura,

exclui o uso da violência. (1996a, p. 61)

A argumentação jurídica, portanto, como discurso que

realiza a mediação dos conflitos sociais, leva o Direito a

posicionar-se frente ao desafio permanente de avaliar-se como

prática responsável, tendo em vista que “A responsabilidade do

ato realmente desempenhado é o levar-em-conta nele todos os

fatores — um levar-em-conta tanto a sua validade de sentido

como a sua realização em toda a sua concreta historicidade e

individualidade”. (BAKHTIN, s.d., p. 46)

E o indivíduo, alçado a um lugar social, ao mesmo tempo,

privilegiado e comprometido, mesmo atuando ao amparo da

instituição, não pode ser desresponsabilizado pois “[...] um ser

humano não tem direito a um álibi — a uma evasão dessa

responsabilidade única que é constituída pela sua atualização de

seu “lugar” único, irrepetível no Ser”. (Op. cit., p. 16).

Assim, o ensino e o domínio de técnicas e estratégias de

argumentação jurídica abrem o paradoxal — mas vivificante —

processo dialógico entre uma liberdade e um compromisso,

entre uma fragilidade do fazer-justiça e uma competência lógica

e interativa, entre um direito e um dever. [pg. 110]

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