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ESPORTE, ESCOLA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

  Sávio ASSIS DE OLIVEIRA

Mestrando em Educaçãopela UFPE, bolsista CAPES Secretaria Estadual do CBCE / PE

  RESUMO  

 

      O artigo é uma síntese da monografia de conclusão do curso de especialização em Pedagogia do Esporte na UFPE, sob o título "As Dimensões da Reflexão Pedagógica na Obra do Professor Doutor Jorge Olimpio Bento Acerca do Esporte na Escola". O estudo se propôs a identificar: os nexos internos da produção do autor e seus determinantes; o projeto histórico ao qual se vincula; o trato com o conhecimento; a correspondência ou não das proposições diante das necessidades de transformação social. Foram analisadas 7 publicações do autor, utilizando-se o método da análise de conteúdo, buscando-se desvendar seu "conteúdo latente". De posse dos principais conceitos foram analisadas 3 dimensões básicas na obra: a prática esportiva e a questão da saúde; o esporte enquanto fenômeno cultural e a organização das aulas de Educação Física. Verificamos a inadequação das proposições às necessidades e desafios da Educação Física em nosso país, especialmente no Nordeste.

      Palavras-chave:

      Educação Física - Esporte - Escola

      INTRODUÇÃO

A Educação Física no Brasil vem convivendo com grandes polêmicas a respeito de sua legitimação, geradas por diferentes visões de ciência, sociedade, escola, poder e educação. Quando menos, por diferentes leituras das condições políticas e sociais.

No entanto, só mais recentemente tem-se evidenciado maior preocupação no sentido de explicitar as concepções que dão suporte e justificam programas e procedimentos adotados por diferentes vertentes.Nesse estudo analisamos o esporte enquanto tema, enquanto conteúdo que é tratado na escola.

Procuramos analisar como se dá o trato do esporte na escola, na produção de um determinado autor, o Dr. Jorge Olimpio Bento, Professor da Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade do Porto - Portugal. A escolha do autor justifica-se pela influência de suas propostas no Brasil, especialmente em Pernambuco, ao menos na esfera das escolas de formação de professores.

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SITUANDO O TRABALHO DO AUTOR

Do material acessível, selecionamos livros e textos que pudessem nos dar uma visão abrangente da produção do autor e nos permitisse um estudo responsável. São eles:

Desporto "matéria" de ensino (1987)

Para uma Formação Desportivo-Corporal na Escola (1989)

Pedagogia do Desporto: uma disciplina credível da ciência do Desporto (1990)

Profissionalidade, Ciência da Profissão e Competência Profissional na Formação do Pedagogo do Desporto e Educação Física (1991)

Desporto, Saúde, Vida - em defesa do desporto (1991)

Desporto na Escola e o Desporto no Clube (1991)

Novas Motivações, Modelos e Concepções para a Prática Desportiva (1992)

Cabe um esclarecimento inicial quanto ao significado da palavra desporto. No Brasil o termo significa o mesmo que esporte, inclusive na maioria dos dicionários. Nas diferenciações, toma-se"esporte" como o jogo ou a modalidade e "desporto" como o esporte federado (modalidade organizada/praticada a partir das federações).

Em Portugal e na obra sobre a qual nos debruçamos, o termo corrente é desporto. Nos dois primeiros trabalhos o autor utiliza os termos Educação Física e Desporto como distintos. Afirma que não são necessárias rupturas com a terminologia utilizada em Portugal, até então, para se obter um "modelo português" (1989: 42). Nos demais trabalhos toma apenas "Desporto" com uma dimensão plural, utilizando "Educação Física" apenas para referenciar uma teoria ou um período passado. Afirma ainda que, enquanto as outras disciplinas recebem o nome da área a que se encontram ligadas, Educação Física não referencia o domínio cultural de onde extrai os conteúdos de ensino e aprendizagem (1991c: 4)

.Esclarecida essa questão, passamos à abordagem do conteúdo da obra. O material selecionado permitiu uma análise tanto das propostas relacionadas à Educação Física e ao esporte na escola quanto a noções e conceitos acerca da educação, escola, saúde e outros.

Alguns conceitos ou idéias, sustentados pelo autor, que julgamos importantes para a nossa análise:

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- a educação é um fenômeno social que transporta um caráter nacional. As ciências e disciplinas que têm como objeto a educação se constróem, também em cada país, com base na elaboração de respostas às respectivas necessidades, iluminadas por dados, princípios e experiências do campo internacional (1989:107);

- a escola é um espaço de ciência, cultura e vida (1989:105). Um local de formação multilateral e de realização das possibilidades naturais e sociais de desenvolvimento e aperfeiçoamento do homem como ser bio-social (1989:77);

- o ensino deve ser caracterizado pela relação ciência e disciplina escolar e pela orientação e justeza dos conteúdos em relação à concretização do objetivo da formação (1987:79);

- a aprendizagem é um processo que está profundamente inscrito na esfera da socialização, assumindo-se como um dos fatores principais do desenvolvimento de cada ser. O desenvolvimento não é uma sequência linear de pontos sempre mais altos, mas sim um processo como um espiral (1987: 67/74);

- a Educação Física tem por objetivo o aperfeiçoamento físico no que diz respeito à apropriação do mínimo, socialmente necessário, em capacidade de rendimento corporal (1989: 35);

- a Educação Física tem a função de iniciação, a tarefa de criar o fundamento sobre o qual se desenvolvem o interesse e o sentido de iniciativa e autonomia dos alunos em relação à atividade esportiva. Tem o papel de contribuir para que a prática desportiva se transforme numa necessidade vital e motivar, simultaneamente, para um estilo de vida fomentador de saúde (1989: 40/43/47);

-a Educação Física é uma disciplina predominantemente orientada para a competência desportivo-motora, para a formação da capacidade de rendimento corporal (1989:88);

- o rendimento e a capacidade de render são as categorias didáticas mais importantes para a estruturação do ensino em Educação Física e para a prática desportiva em geral (1989:18);

- o desporto não existe mais apenas no singular. Ele é plural no que diz respeito a motivações, intenções, finalidades, condições e modelos (1991a:53);

- o desporto pode ser como um modelo de pensamento e ação representativo dos princípios e valores da sociedade de rendimento industrial, como um campo privilegiado de socialização e exercitação para uma vida nela (1992:17);

- o desporto é um sistema humano, social e moralmente bom (1992:133);um sistema educativo que não garanta a revelação e - o estímulo de talentos de todos os

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alunos não está à altura de sua função e obrigação social, moral e humana (1991b:71);

- recusar o desporto é recusar uma fatia integrante, significativa e representativa da cultura mundial supranacional (1991b:74);

- o desporto na escola não deve sofrer simplificação adulterante e mistificadora do seu sentido e significado (1991c:13);

- o rendimento desportivo faz parte da filosofia de vida da sociedade democrática ocidental (1991c 14);

- a saúde não é nenhum estado dado, não é algo fixo ou imutável, mas sim algo que deve ser constantemente adquirido e mantido. A saúde é treinável. Sem contemplar as condições de vida não é possível apreender e esclarecer adequadamente os fenômenos da saúde e da doença na moderna sociedade industrial. A saúde deve ser entendida como sinônimo de qualidade individual de vida (1989: 26/27/37); e

- o caminho do desporto afasta-nos sem dúvida do caminho para o médico (1991b: 46). Da leitura e destaque de conceitos, identificamos três dimensões que se sobressaem na reflexão pedagógica da obra e que passam a representar as categorias básicas da nossa análise: a) a prática esportiva e a questão da saúde; b) o esporte enquanto fenômeno, a sua gênese, evolução e princípios orientadores; e c) a organização das aulas de educação física e a prática esportiva na escola.

A PRÁTICA ESPORTIVA E A QUESTÃO DA SAÚDE

Sem dúvida há uma estreita relação entre a prática esportiva e a questão da saúde. No entanto, não podemos tomar o esporte ou a Educação Física como "remédio" ou como "o caminho que nos afasta do médico". A prática esportiva está diretamente relacionada e dependente de outras determinações. Isto nos remete a uma discussão sobre qual dimensão de saúde a que nos referimos.

O autor aponta a relevância das condições de vida para que se possa apreender e compreender os fenômenos da saúde e da doença. Diz ainda que a saúde deve ser entendida como sinônimo de qualidade individual da vida, ao alcance de cada um através do confronto ativo com exigências de sua vida

.Essa postura, embora importante, ainda é restrita do ponto de vista de um amplo e necessário conceito de saúde. Parece-nos que o autor apenas avançou do entendimento de saúde como ausência de doença para aquele definido pela Organização Mundial de Saúde em que saúde é o bem estar físico,mental e social. Ou seja, define os parâmetros mas não aponta as condições e os caminhos. Daí pode-se ter o social sob o ponto de vista apenas do indivíduo sem apontar para a necessária compreensão do social como condição coletiva.

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Concordamos com um entendimento mais amplo, como o expresso na Carta de Ottawa, produzida pela I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em 1986, no Canadá, que aponta como requisitos fundamentais para a saúde: paz, educação, habitação, alimentação, renda, ecossistema estável, conservação dos recursos naturais, justiça social e equidade.

Entendimento semelhante também é assegurado no Brasil pela Constituição Federal e pela Lei 8.080 de 19/09/90 que em seu artigo 2º, parágrafo 3º, afirma: " A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais"

.Aí sim, temos a Educação Física ou a prática esportiva como parte de uma complexa rede de necessidades e/ou condições necessárias para a garantia da saúde.

O ESPORTE ENQUANTO O FENÔMENO CULTURAL O esporte (desporto) aparece com destacada importância nos planos da educação e da saúde. Aparece como fenômeno cultural, como um sistema humano, social e moralmente bom e também como "expressão máxima das tecnologias do corpo" (1992: 137). Aparece ainda como meio para a formação de disposições de comportamento e rendimento e como cultura a descobrir e explorar.

Quanto às críticas dirigidas ao esporte e ao rendimento, o autor admite e concorda com algumas, mas as toma como perfeitamente superáveis e, quanto a maioria delas, explica como sendo uma "...recusa da evolução social tanto no plano geral como nos domínios setoriais" (1991b: 65). E questiona: que outra cultura temos à mão para substituir esta? Que outra cultura corporal pode desempenhar a função de integração mundial que o desporto cumpre?

O esporte assume uma grande importância porque permite a abordagem do rendimento que é um dos elementos centrais defendidos na proposta do autor. Ao rendimento é dado o status de uma das categorias didáticas mais importantes para a estruturação do ensino da Educação Física. A ele é dado o status de filosofia de vida e uma vinculação com a democracia.

Não há dúvidas da relevância do esporte nos cenários nacional e internacional. Não há questionamentos quanto a validade do seu tratamento na escola. A questão é saber: De que esporte estamos falando? Que princípios regem o esporte e de que princípios queremos dotá-lo? Será possível (re)construí-lo em outras bases?

Precisamos sim tratar o esporte de uma forma mais ampla. Precisamos tratá-lo como fenômeno cultural e como conhecimento histórico e socialmente construído pelo homem e que traz, desde a sua gênese, significados e sentidos, códigos e valores extremamente ligados à estrutura da sociedade. Uma visão limitada, simplista ou "supostamente neutra" não nos permite compreender o esporte em sua totalidade

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.Bento propõe uma ofensiva para acentuar e atualizar as tarefas sociais do desporto. Acreditando que o desporto influencia a vida social, afirma a necessidade dele expressar de forma bem visível os princípios de comportamento, pensamento e vida, considerados relevantes para a sociedade. Como exemplo de alguns princípios cita:

- o do rendimento: o rendimento desportivo é uma escola de auto-rendimento; e

- o da igualdade: igualdade nas condições de acesso à prática desportiva e de realização de competições. Igualdades de oportunidades é um princípio importante das sociedades democráticas. Atenta contra o caráter do desporto orientá-lo majoritariamente por dinheiro e lucro.

Mas, será mesmo o desporto um sistema humano, social e moralmente bom?

Bracht (1989) define o esporte moderno como uma "atividade corporal de movimento com caráter competitivo surgida no âmbito da cultura européia por volta do século XVIII, e que com esta, expandiu-se para todos os cantos do planeta. No seu desenvolvimento consequente no interior desta cultura, assumiu o esporte suas características básicas, que podem ser sumariamente resumidas em: competição, rendimento físico-técnico, record, racionalização e cientifização do treinamento".Essa é uma abordagem do esporte que não nos autoriza atribuir-lhe valores ou sentidos humanistas ou humanizantes como naturais, a não ser por concepções diferenciadas de homem.

De fato, hoje não existe esporte apenas no singular, mas há princípios que acompanham toda e qualquer regulamentação e organização interna dos esportes. São princípios básicos do esporte de rendimento, determinante quase que absoluto das práticas esportivas em qualquer dimensão ou local.Kunz (1989: 12), descreve esses princípios da seguinte forma:

- o da sobrepujança: idéia de que qualquer um tem possibilidade de vencer em confrontos esportivos. Busca-se a vitória, o sobrepujar o adversário; e

- o das comparações objetivas: chances iguais para todos nas disputas esportivas. A padronização dos espaços e o desenvolvimento de normas universais para os esportes, etc. Condiciona-se a prática esportiva nesses locais condicionando também as atividades do movimento a um automatismo.

Esses dados nos permitem retomar a idéia que o esporte não tem uma existência autônoma nem é desprovido de história. E sua história e existência estão profundamente ligadas às estruturas e valores da sociedade capitalista. Por isso mesmo não nos permitimos dizer que é ele, o esporte, "um sistema humano, social e moralmente bom"

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.Não se trata, no entanto, de recusar o esporte. Está correto o autor quando afirma que "recusar o desporto é recusar uma fatia significativa e representativa da cultura mundial supranacional". Diríamos mais: recusar o esporte é abrir mão de desmistificá-lo

.Destacamos aqui algumas proposições que trilham o caminho da desmistificação do esporte (Escobar, 1989; Soares, 1992):

 -sendo o esporte uma produção histórico-cultural, está subordinado aos códigos /sentido /significado que lhe imprime a sociedade capitalista, não podendo ser afastado das condições a ela inerentes, sobretudo quando ao esporte são atribuídos valores educativos para justificá-lo no currículo escolar;  

- as características do esporte revelam que o processo educativo-socializante por ele provocado, reproduz as desigualdades sociais, podendo ser considerado uma forma de controle social pela adaptação de quem o pratica aos valores e normas dominantes;

- a aceitação do esporte como fenômeno social requer uma postura de questionamento de suas normas, suas condições de adaptação à realidade social e cultural da comunidade que o pratica, cria e recria;

- a desmistificação do esporte se dá com a sua oferta, permitindo a sua crítica, tratando-o no contexto sócio-econômico-político-cultural e compreendendo a prática esportiva a partir de um sentido/significado de valores que a assegurem como bem social; e

- é preciso buscar no esporte valores que realmente socializam, tais como: o privilégio do coletivo sobre o individual, o compromisso com a solidariedade e o respeito humano, a compreensão de que o jogo se faz a dois e que se joga com o outro e não contra o outro.

A ORGANIZAÇÃO DAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA (o esporte na escola)

Trata-se agora de abordar como o autor propõe a abordagem do esporte na escola. O referencial maior se encontra nas obras "Desporto `matéria' de ensino" e "Para uma Formação Desportivo-Corporal na Escola". Tomaremos aqui os termos Educação Física para referenciar as aulas curriculares e Desporto (esporte) para referenciar o conteúdo em si, bem como aquela atividade extra-curricular baseada em treinos e competições.

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Como vimos, o autor aponta o rendimento como uma das categorias didáticas mais importantes para estruturar o ensino em Educação Física. E isso se materializa nas seguintes indicações:

a) a escola deve visar o desenvolvimento da personalidade do aluno, o que está sempre ligado a rendimentos, a um contexto de relações entre exigências, empenho, esforço, exercitação, rendimento, sucesso e personalidade. É preciso um entendimento claro das relações entre desenvolvimento multilateral e afirmação expressiva da individualidade inconfundível (1991b:70/71);

b) a ausência de procura de rendimento retira credibilidade humana, cultural e moral à Educação Física e ao Desporto Escolar (1991c:15);

c) a capacidade de rendimento corporal tem um quádruplo significado para o desenvolvimento multilateral da personalidade, a saber: como condição do desenvolvimento da personalidade; como componente da personalidade; como resultado do desenvolvimento anterior; e como critério de maturação da personalidade (1987: 27);

d) no domínio escolar o rendimento apresenta uma hierarquização de 3 perspectivas inter-relacionadas: uma centrada no objeto/conteúdo da atividade - "consegui/fiz bem"; uma centrada no indivíduo - "fui melhor que ontem"; e uma socialmente orientada - "sou tão bom, melhor ou pior que os outros" (1987: 50); e

e) a Educação Física e Desportiva tem que ser assumida como área, campo de conhecimento e investigação e não apenas como disciplina (1989: 42/43). Calcado no rendimento como categoria prioritária para a estruturação do ensino, o autor propõe a seguinte organização:

- a disciplina Educação Física exerce uma função de iniciação, mas é insuficiente para assegurar a função de base atribuída à escola, sendo necessários outros complementos, coerente e harmonicamente organizados e direcionados (1987: 77);

- as formas fundamentais para a garantia da formação desportivo-corporal na escola são (1989: 43/44):

* ensino do desporto/Educação Física: ajustada a normas fixas, orientada por objetivos de aprendizagem, mas respeitando a essência do desporto, com medidas de opção e diferenciação, mas com caráter vinculativo ao desporto; * desporto escolar: ação orientada e organizada, atividades autônomas e espontâneas, competições internas e interescolares, formação especializada.

- é necessário implementar progressivamente no ensino básico o princípio da atividade física diária (1989: 45);

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-como forma de garantir que cada criança encontre as melhores condições para o desenvolvimento de sua personalidade, acentuando e reforçando seus pontos fortes, é necessário (1989: 45/46):

* uma ação de identificação de talentos e insuficiências motoras e orgânicas;

* garantir formas variadas de prática desportiva extra-curricular tendo em vista os interesses, os motivos e os anseios dos alunos.

- deve-se garantir uma diferenciação na carga horária da atividade desportiva-motora, de acordo com as idades correspondentes aos diferentes ciclos de ensino (1989: 46);

- deve-se garantir aulas suplementares, obrigatórias, para alunos com fraquezas orgânicas e com insuficiências no desenvolvimento motor. Os grupos devem ser diferenciados segundo a idade, sexo, estado de saúde e formação motora (1989: 46/47/48);

- com a preocupação de otimizar a carga nas aulas de Educação Física (1989: 46):

* é desaconselhável, a partir do 7º ano, a constituição de turmas mistas, sob pena de alteração radical nos objetivos da disciplina;

* deve-se procurar constituir turmas menos heterogêneas.

- o conhecimento deve ser intimamente relacionado com a matéria em questão, necessário para melhorar o efeito e os padrões de execução dos exercícios, para facilitar a comunicação, a cooperação e a entreajuda, além de estimular a atividade no tempo livre (1989: 99); e

- o desporto escolar organiza-se basicamente sob as formas de treino e competição. É uma atividade extra-curricular, complementar das aulas de Educação Física. Contribui no plano do desenvolvimento integral dos alunos e é garantido com base na adesão e na dimensão cultural da escola.

Distingue-se da formação de base, própria das aulas de Educação Física, pelo fato de assumir a incumbência de aprofundamento, de consolidação e diferenciação da formação geral (1989: 49-51).

A partir dos princípios da sobrepujança e das comparações objetivas descritos no item anterior, Kunz (1989: 13-14) descreve algumas tendências, cujas definições ajudam a entender melhor as posições sustentadas por Bento. São elas:

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a) a de selecionamento: os alunos, na Educação Física, são, de forma consciente ou inconsciente, selecionados, classificados pelas suas habilidades/inabilidades esportivas. Utilizam-se também critérios de sexo, idade e biotipo físico;

b) a da especialização : exigência de uma boa técnica esportiva, um alto grau de rendimento esportivo, reduzindo o repertório de ofertas em relação às modalidades esportivas; e

c) a da instrumentalização: regras e métodos que levam ao sucesso esportivo ou melhor rendimento.

Esses elementos conformam um quadro que nos permite identificar, pelos nexos internos da proposta do autor (Bento), que concepção ou perspectiva de Educação Física é sustentada.

Pela forma como é tratado o rendimento, como são expressos os objetivos da Educação Física e do esporte, como são encarados os valores/princípios do esporte e como é proposta a organização das atividades na escola, podemos afirmar que a proposta do autor integra e sustenta uma perspectiva de desenvolvimento da aptidão física.

Depreende-se, do seu conteúdo latente, que a proposta do autor, embora recheada de apelos humanistas, busca educar o homem forte, empreendedor, ágil, apto e capaz para, numa sociedade "democrática" (igualdade de oportunidades), disputar uma posição social privilegiada (Coletivo de Autores, 1992: 36).

Merecem destaque duas questões. A primeira diz respeito ao conhecimento. O autor coloca-o como uma categoria auxiliar do rendimento, da execução de um exercício. Trata-se de uma crítica implícita ao que ele denomina de "verbalismos" ou "pedagogismos", ou ainda, "intelectualização" das aulas de Educação Física.

A outra questão diz respeito à proposta de composição das turmas. Baseado no rendimento e dando relevância a aspectos de ordem fisiológica (princípio de carga e sobrecarga próprio do treinamento desportivo) o autor propõe a composição de turmas menos heterogêneas, recorrendo a critérios de maturação, desenvolvimento e sexo.

Além de levantar o problema do sentido sexista de determinadas atividades e do rendimento, o autor cria um problema para a própria coerência da sua proposta quanto ao papel da escola e do sistema educativo. Em certo momento Bento defende a importância de que "...o desenvolvimento global do indivíduo seja apoiado de modo que ele se possa desenvolver, salientar e comprovar sobretudo na área ou áreas onde consegue obter rendimentos particularmente relevantes, susceptíveis de lhe granjearem reconhecimento no coletivo dos colegas" (1991b: 71).

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Perguntamos então: como combinar dentro da escola, da seriação ou dos ciclos, diferentes talentos em diferentes crianças? Para as aulas de Educação Física seriam formados determinados grupos. Para as aulas de matemática outros grupos. Para as aulas de história, nova divisão. Talvez não seja assim tão absurdo mas certamente ainda não é essa a realidade nem a perspectiva de organização do sistema educativo, nem aqui nem em Portugal.

CONCLUSÕES PROVISÓRIAS

As conclusões comportam sempre um duplo sentido: uma certeza, o resultado de uma análise e também a dúvida da provisoriedade, do permitir-se discutir, rever, ampliar, acrescer.

Chegamos aqui com certezas e respostas àquelas questões que nos propusemos investigar. Entretanto, são necessários aprofundamentos para conformar um quadro mais completo que permita uma crítica mais profunda e consistente e aponte alternativas.

Nossas conclusões são no sentido de que a proposições de Bento não se adequam às necessidades e desafios da Educação Física em nosso país, especialmente no Nordeste. A Educação Física assentada no desenvolvimento da aptidão física é sustentada por um projeto histórico incapaz de reverter o quadro de miséria reinante, até porque é ele próprio o responsável por isso. Sob essa perspectiva não é possível identificar relevância na Educação Física, a não ser na defesa dos interesses da classe no poder, na manutenção da estrutura de sociedade de classes. É de se registrar que nas propostas do autor há uma preocupação com a cientificidade dessa área de conhecimento, com a legitimação da Educação Física/Esportes na sociedade e na escola e com a formação dos professores. Destaca o autor uma preocupação com que a abordagem do esporte seja pedagógica não só na escola, mas em todos os lugares em que ele se manifeste. Aponta para a recusa do espontaneísmo biológico e do adestramento em nome da consciência social no domínio motor. Mas apenas preocupar-se pode até indicar necessidades de mudanças mas não necessariamente no sentido de transformação e de ruptura.

Segundo Taffarel (1993), "o que vai dar o referencial para relevância da Educação Física e Esportes é sua possibilidade histórica de interferir politicamente para a construção de novas mentalidades, novas sensibilidades e uma nova sociedade". E isto não implica em fazermos de nossas aulas proselitismo político ou ato de doutrinamento. Significa a abordagem do conhecimento numa perspectiva diferenciada, de modo a ser compreendido como provisório, produzido historicamente e passível de redimensionamento e transformação. Significa favorecer uma leitura da realidade que estabeleça ligações com projetos políticos de mudanças na sociedade.

Do ponto de vista das necessidades imediatas, mediatas e históricas de transformação social, podemos dizer que:

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1.o alcance imediato da proposta de Bento é limitado. Um possível avanço na qualidade da aula remete a sua melhor estruturação em termos das categorias tradicionais da didática e de uma intervenção mais organizada do professor. Não é um avanço na perspectiva de uma reflexão pedagógica comprometida com os interesses das camadas populares, com um esporte desmistificado, vivido e recriado na dimensão de uma didática transformada/transformadora. Também são limitadas as possibilidades de produção de conhecimento numa linha que amplie as possibilidades de compreensão;

2. do ponto de vista do alcance a médio prazo as indicações defendidas não conformam a preocupação com a construção de um projeto pedagógico referenciado na luta dos trabalhadores. Quando faz referências às mudanças em curso na Europa não aponta qualquer visão crítica em relação à questão do Estado, da idéia do "Estado mínimo" nem à desprivatização do mesmo; e

3. quanto ao alcance histórico, a indicação é no sentido da humanização do capitalismo. Não há qualquer indicação, seja como postulado teórico, seja como elemento da ação política-pedagógica, no sentido de superação da sociedade estruturada em classes antagônicas. Pelo contrário, a defesa do rendimento como filosofia de vida das sociedades democráticas e como categoria didática estruturadora do ensino indica um compromisso com a manutenção do estado de coisas vigente.

Com os elementos aqui explicitados acerca da reflexão pedagógica apontada por Bento, podemos identificar seu diagnóstico sobre a realidade atual e o papel da Educação Física. Podemos reconhecer ainda com quais interesses de classe tal proposição se aproxima ao definir tais finalidades para a Educação Física e o esporte na escola.

Diante da crise orgânica (hegemônica ou histórica), que tem no seu bojo evidências das dramáticas consequências da ordem social capitalista, a proposta pedagógica de Bento não nos apresenta indicadores de uma pedagogia emergente. Como nos diz Souza (1987: 27), identificar e elaborar subsídios para uma pedagogia emergente é um problema teórico colocado pelo substrato da crise atual e da exaustão das propostas hegemônicas, que não respondem às perspectivas históricas da classe trabalhadora.

Esse é um desafio colocado para a reflexão de todos nós e que aponta para novas possibilidades de estudos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Retirado de: http://www.upe.br/corporis3/artigo3.html

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