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SALVADOR TERÇA-FEIRA 7/8/2012 32OUTRAS PALAVRAS “VOU SONHANDO ATÉ EXPLODIR COLORIDO,

NO SOL, NOS CINCO SENTIDOS”Trecho de Superbacana

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MARIANA PAIVA

No início, as notas soavam desor-denadas. Com o tempo, os dedos domenino Caetano e as teclas do pianoalemão foram ganhando intimida-de, até o dia em que, juntos, setransformaram em música. O gostofoi herdado dos irmãos, que toma-vam lições de piano com dona Hay-dil Barros. Caetano foi pegando ca-da vez mais gosto pelo instrumentoque ficava na sala do sobrado ondea família Veloso morava e enchia oambiente com as músicas que iaaprendendo. Na frente da casa, fun-cionava a Agência dos Correios eTelégrafos, porque naquele tempoera assim: os correios eram na casado agente postal telegráfico, queera seu Zeca, pai dos meninos.

Às vezes, Caetano sentava à portade casa para ouvir os sons que vinhamda rua e depois corria para o pianopara tocar, antes que esquecesse damelodia. O som do piano tocado porele então invadia a rua e era ouvidopor quem passava. Um ou outro pa-rava para ouvir.

Sete anos mais nova que Caetano,Maria Mutti era filha de dona Toinha,grande amiga de dona Canô. As fa-mílias moravam perto e, um dia, en-quanto ia para casa, Maria passou eouviu o piano. Não resistiu e deu umaespiadinha pelo buraco da janela: eraCaetano tocando. Mas menina moçanão tomava intimidades de ir sozinhaà casa dos outros e então foi correndochamar a mãe. “Ela foi comigo lá,entramos e vimos que era Nicinha[irmã de Caetano] que estava ensi-nando ele a tocar. Perguntei que mú-sica era, ela me disse que era Re-cuerdos de Ypacarai. Nunca mais es-quecionome, fiquei láumbomtempoouvindo ele tocar”, conta a profes-sora, aos 63 anos.

Trilha sonoraDo outro lado da rua do sobrado,funcionava o posto de saúde onde

trabalhava uma das médicas da ci-dade, Dra. Elvira de Araújo Queiroz. Avida era corrida entre os muitos plan-tões que dava em Santo Amaro e nascidades vizinhas e ela mal tinha tempode visitar os amigos. Conheceu donaCanô antes mesmo de ela casar comseu Zeca e chegou a receitar MariaBethânia, a caçula, por ocasião deuma febre. Mas era Caetano sua prin-cipal ligação com a família Veloso.“Todos os dias eu o ouvia tocar piano,atendia os pacientes com aquelas mú-sicas que vinham da casa em frente”,conta a médica, que continua em ple-na atividade, mesmo agora, aos 92anos.

Pai também ninaAs músicas tocadas eram sempre deoutros artistas e foi meio sem quererque Caetano descobriu que tambémsabia compor, aos 14 anos. Sua irmãMabel dava aulas na sala de casa enestediaensinavaaosalunosumpoe-ma de Martins de Alvarez para o diadas mães. “Caetano sentou ao pianoe disse que ia fazer uma trilha sonorapara o poema. Fez uma canção deninar e ensinou às crianças. As me-ninas estavam balançando suas bo-necas e aí um dos meninos disse quetambém queria uma boneca. Fiqueimeio assim de deixar, mas aí Caetanofalouquepai tambémnina.Deixei.Elesempre dizia umas coisas assim bempra frente”, revela a escritora e pro-fessora Mabel.

A primeira gravação aconteceu látambém, na sala da casa da Rua doAmparo,ondedonaCanôaindamora.Seu Aluízio era amigo da família etinha um aparelho de gravação, coisamoderna para a época, que colocavaos sons nos bolachões, os discos devinil. De um lado, Caetano gravou acanção Mãezinha Querida. Do outro,Parabéns Pra Você. O disco foi enviadopara o Rio de Janeiro e dado de pre-sente de aniversário para Mariinha, aMinha Inha, que cuidava de Caetanona infância.

INFÂNCIA Artista passou seusprimeiros anos entre a casa ea rua. Brincava com as outrascrianças da vizinhança, maspreferia o piano e os desenhos

Caetano e o piano ou o menino quefazia a trilha sonora da rua inteira

Memórias de uma infância pacatavivida às margens do Rio Subaé

As crianças brincavam perto de casa,cada uma do que gostava mais: fu-tebol, picula, esconde-esconde, ama-relinha. As meninas passeavam suasbonecas, enquanto os pais, sentadosà porta de casa, conversavam com osvizinhos. Era assim em Santo Amarona década de 1950.

Vizinho de Caetano, Raimundo Ar-thur era um ano mais novo que ele.Conheceram-se brincando na Rua doAmparo, onde moravam. “Ele parti-cipava das atividades, mas não eramuito de jogar bola”, conta o pro-fessor aposentado de 69 anos.

Nos finais de semana, a turma,composta por várias crianças que mo-ravam na rua, ia até o rio comprarmanga nos saveiros que chegavam.“Caetano ia também com a gente. Eu

ficava na frente para comprar e outrosmeninos atrás. Aí, quando o rapaz dosaveiro não estava olhando, eu pe-gava uma manga a mais e passavaadiante”, revela Arthur, rindo.

Lágrima de VênusO menino Caetano era quieto. Brin-cava na rua com os vizinhos, mas gos-tava também de ficar sentado à portade casa, onde cresciam as mais di-versas plantas. “Tinha uma que sechamava Lágrima de Vênus, e tododia, no finzinho da tarde, ela abria aflor e caía uma lágrima. Ficava todomundo chamando Caetano para brin-car e ele, sentado numa cadeirinha devime, dizia que ia ficar lá esperando alágrima cair. Isso ele tinha uns quatroanos”, o irmão Rodrigo conta.

O trem das cores do cantor: desenho,pintura e outras artes emolduradas

Nas mãos, Caetano não guardava so-mente a vontade de fazer música. Ain-da criança, ele começou a desenhar oque via ao seu redor. Mariinha ficavaaté tarde costurando, enquanto ele,que não gostava de dormir, desenha-va. “Primeiro era nos papéis, depoiscomeçou a desenhar no chão da va-randa com carvão. Fazia pássaros, flo-res, pessoas. Fazia muito retrato meu.Minha irmã Clara perguntou por queele não a desenhava, ele disse que eraporque os traços dela eram muito fi-nos. Imagina isso”, revela Mabel.

Foi assim que, um dia, Caetano de-cidiu desenhar a vizinha, Diva, moçabem bonita. “Ela chegou na janela efalou: ‘É meu desenho!’. E era mes-mo”, conta dona Canô, rindo da arte

do filho que, tempos depois, levou umcavalete para a Praça da Purificação epintou a cidade. Até hoje, o quadroestá na parede de sua casa.

Em 1961, o irmão Rodrigo ganhouumquadrodeCaetano.“Viumqueelepintou e pedi: ‘Ô, Cate, pinte um dessepra mim’!, e ele fez”, conta.

No mesmo ano, aconteceu a pri-meira exposição das pinturas, no Co-légio Teodoro Sampaio, em SantoAmaro. “Foi a primeira mostra de qua-dros dele e do artista plástico EmanoelAraújo. Comprei os dois quadros háalguns anos, porque achei errado queeles não ficassem em Santo Amaro,que é a terra deles”, diz Maria Mutti,que na época era pequena demaispara ir à exposição.

FÃ DA MÚSICA E DA PINTURA

Quando foi avisada por Emanoel Araújode que o quadro exposto por Caetanoem 1961 estava à venda, imediatamenteMaria Mutti decidiu comprá-lo. A tela foidireto para a parede de sua casa, paradecorar a sala de jantar. Ao lado,Rodrigo Veloso com o quadro pintadopara ele pelo irmão Caetano.

O RIO SUBAÉ, ANTES E DEPOIS

Na década de 1950, a grande aventurados finais de semana para Caetano e osoutros meninos da rua era correr até oporto para comprar manga nos saveirosque chegavam pelo rio Subaé. Nasfotografias, dois momentos do lugar:naquela época, durante a infância docantor, e atualmente (ao lado)

Fotos Marco Aurélio Martins / Ag. A TARDE

Ao lado, pianono qual Caetanoe seus irmãosaprenderam a tocar