Especial Caetano 70 - página 3

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SALVADOR TERÇA-FEIRA 7/8/2012 3 2 OUTRAS PALAVRAS “VOU SONHANDO ATÉ EXPLODIR COLORIDO, NO SOL, NOS CINCO SENTIDOS” Trecho de Superbacana Envie o texto ATCULT para o número 50010 e receba informações diárias sobre a agenda cultural. Disponível para as operadoras Claro, Oi, TIM e Vivo. R$ 0,10+imp. por msg (1/dia). Divulgação MARIANA PAIVA No início, as notas soavam desor- denadas. Com o tempo, os dedos do meninoCaetanoeasteclasdopiano alemão foram ganhando intimida- de, até o dia em que, juntos, se transformaram em música. O gosto foi herdado dos irmãos, que toma- vam lições de piano com dona Hay- dil Barros. Caetano foi pegando ca- da vez mais gosto pelo instrumento que ficava na sala do sobrado onde a família Veloso morava e enchia o ambiente com as músicas que ia aprendendo. Na frente da casa, fun- cionava a Agência dos Correios e Telégrafos, porque naquele tempo era assim: os correios eram na casa do agente postal telegráfico, que era seu Zeca, pai dos meninos. Às vezes, Caetano sentava à porta de casa para ouvir os sons que vinham da rua e depois corria para o piano para tocar, antes que esquecesse da melodia. O som do piano tocado por ele então invadia a rua e era ouvido por quem passava. Um ou outro pa- rava para ouvir. Sete anos mais nova que Caetano, Maria Mutti era filha de dona Toinha, grande amiga de dona Canô. As fa- mílias moravam perto e, um dia, en- quanto ia para casa, Maria passou e ouviu o piano. Não resistiu e deu uma espiadinha pelo buraco da janela: era Caetano tocando. Mas menina moça não tomava intimidades de ir sozinha à casa dos outros e então foi correndo chamar a mãe. “Ela foi comigo lá, entramos e vimos que era Nicinha [irmã de Caetano] que estava ensi- nando ele a tocar. Perguntei que mú- sica era, ela me disse que era Re- cuerdos de Ypacarai. Nunca mais es- queci o nome, fiquei lá um bom tempo ouvindo ele tocar”, conta a profes- sora, aos 63 anos. Trilha sonora Do outro lado da rua do sobrado, funcionava o posto de saúde onde trabalhava uma das médicas da ci- dade, Dra. Elvira de Araújo Queiroz. A vida era corrida entre os muitos plan- tões que dava em Santo Amaro e nas cidades vizinhas e ela mal tinha tempo de visitar os amigos. Conheceu dona Canô antes mesmo de ela casar com seu Zeca e chegou a receitar Maria Bethânia, a caçula, por ocasião de uma febre. Mas era Caetano sua prin- cipal ligação com a família Veloso. “Todos os dias eu o ouvia tocar piano, atendia os pacientes com aquelas mú- sicas que vinham da casa em frente”, conta a médica, que continua em ple- na atividade, mesmo agora, aos 92 anos. Pai também nina As músicas tocadas eram sempre de outros artistas e foi meio sem querer que Caetano descobriu que também sabia compor, aos 14 anos. Sua irmã Mabel dava aulas na sala de casa e neste dia ensinava aos alunos um poe- ma de Martins de Alvarez para o dia das mães. “Caetano sentou ao piano e disse que ia fazer uma trilha sonora para o poema. Fez uma canção de ninar e ensinou às crianças. As me- ninas estavam balançando suas bo- necas e aí um dos meninos disse que também queria uma boneca. Fiquei meio assim de deixar, mas aí Caetano falou que pai também nina. Deixei. Ele sempre dizia umas coisas assim bem pra frente”, revela a escritora e pro- fessora Mabel. A primeira gravação aconteceu lá também, na sala da casa da Rua do Amparo, onde dona Canô ainda mora. Seu Aluízio era amigo da família e tinha um aparelho de gravação, coisa moderna para a época, que colocava os sons nos bolachões, os discos de vinil. De um lado, Caetano gravou a canção Mãezinha Querida. Do outro, Parabéns Pra Você. O disco foi enviado para o Rio de Janeiro e dado de pre- sente de aniversário para Mariinha, a Minha Inha, que cuidava de Caetano na infância. INFÂNCIA Artista passou seus primeiros anos entre a casa e a rua. Brincava com as outras crianças da vizinhança, mas preferia o piano e os desenhos Caetano e o piano ou o menino que fazia a trilha sonora da rua inteira Memórias de uma infância pacata vivida às margens do Rio Subaé As crianças brincavam perto de casa, cada uma do que gostava mais: fu- tebol, picula, esconde-esconde, ama- relinha. As meninas passeavam suas bonecas, enquanto os pais, sentados à porta de casa, conversavam com os vizinhos. Era assim em Santo Amaro na década de 1950. Vizinho de Caetano, Raimundo Ar- thur era um ano mais novo que ele. Conheceram-se brincando na Rua do Amparo, onde moravam. “Ele parti- cipava das atividades, mas não era muito de jogar bola”, conta o pro- fessor aposentado de 69 anos. Nos finais de semana, a turma, composta por várias crianças que mo- ravam na rua, ia até o rio comprar manga nos saveiros que chegavam. “Caetano ia também com a gente. Eu ficava na frente para comprar e outros meninos atrás. Aí, quando o rapaz do saveiro não estava olhando, eu pe- gava uma manga a mais e passava adiante”, revela Arthur, rindo. Lágrima de Vênus O menino Caetano era quieto. Brin- cava na rua com os vizinhos, mas gos- tava também de ficar sentado à porta de casa, onde cresciam as mais di- versas plantas. “Tinha uma que se chamava Lágrima de Vênus, e todo dia, no finzinho da tarde, ela abria a flor e caía uma lágrima. Ficava todo mundo chamando Caetano para brin- car e ele, sentado numa cadeirinha de vime, dizia que ia ficar lá esperando a lágrima cair. Isso ele tinha uns quatro anos”, o irmão Rodrigo conta. O trem das cores do cantor: desenho, pintura e outras artes emolduradas Nas mãos, Caetano não guardava so- mente a vontade de fazer música. Ain- da criança, ele começou a desenhar o que via ao seu redor. Mariinha ficava até tarde costurando, enquanto ele, que não gostava de dormir, desenha- va. “Primeiro era nos papéis, depois começou a desenhar no chão da va- randa com carvão. Fazia pássaros, flo- res, pessoas. Fazia muito retrato meu. Minha irmã Clara perguntou por que ele não a desenhava, ele disse que era porque os traços dela eram muito fi- nos. Imagina isso”, revela Mabel. Foi assim que, um dia, Caetano de- cidiu desenhar a vizinha, Diva, moça bem bonita. “Ela chegou na janela e falou: ‘É meu desenho!’. E era mes- mo”, conta dona Canô, rindo da arte do filho que, tempos depois, levou um cavalete para a Praça da Purificação e pintou a cidade. Até hoje, o quadro está na parede de sua casa. Em 1961, o irmão Rodrigo ganhou um quadro de Caetano. “Vi um que ele pintou e pedi: ‘Ô, Cate, pinte um desse pra mim’!, e ele fez”, conta. No mesmo ano, aconteceu a pri- meira exposição das pinturas, no Co- légio Teodoro Sampaio, em Santo Amaro. “Foi a primeira mostra de qua- dros dele e do artista plástico Emanoel Araújo. Comprei os dois quadros há alguns anos, porque achei errado que eles não ficassem em Santo Amaro, que é a terra deles”, diz Maria Mutti, que na época era pequena demais para ir à exposição. FÃ DA MÚSICA E DA PINTURA Quando foi avisada por Emanoel Araújo de que o quadro exposto por Caetano em 1961 estava à venda, imediatamente Maria Mutti decidiu comprá-lo. A tela foi direto para a parede de sua casa, para decorar a sala de jantar. Ao lado, Rodrigo Veloso com o quadro pintado para ele pelo irmão Caetano. O RIO SUBAÉ, ANTES E DEPOIS Na década de 1950, a grande aventura dos finais de semana para Caetano e os outros meninos da rua era correr até o porto para comprar manga nos saveiros que chegavam pelo rio Subaé. Nas fotografias, dois momentos do lugar: naquela época, durante a infância do cantor, e atualmente (ao lado) Fotos Marco Aurélio Martins / Ag. A TARDE Ao lado, piano no qual Caetano e seus irmãos aprenderam a tocar

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O primeiro piano de Caetano e outras histórias contadas pela família Veloso Especial publicado no caderno 2+ do jornal A Tarde, em 2012 Textos de Mariana Paiva, fotografias de Marco Aurélio Martins, design de Marcelo campos

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SALVADOR TERÇA-FEIRA 7/8/2012 32OUTRAS PALAVRAS “VOU SONHANDO ATÉ EXPLODIR COLORIDO,

NO SOL, NOS CINCO SENTIDOS”Trecho de Superbacana

Envie o texto ATCULT para o número 50010 e receba informaçõesdiárias sobre a agenda cultural. Disponível para as operadoras Claro,Oi, TIM e Vivo. R$ 0,10+imp. por msg (1/dia). Divulgação

MARIANA PAIVA

No início, as notas soavam desor-denadas. Com o tempo, os dedos domenino Caetano e as teclas do pianoalemão foram ganhando intimida-de, até o dia em que, juntos, setransformaram em música. O gostofoi herdado dos irmãos, que toma-vam lições de piano com dona Hay-dil Barros. Caetano foi pegando ca-da vez mais gosto pelo instrumentoque ficava na sala do sobrado ondea família Veloso morava e enchia oambiente com as músicas que iaaprendendo. Na frente da casa, fun-cionava a Agência dos Correios eTelégrafos, porque naquele tempoera assim: os correios eram na casado agente postal telegráfico, queera seu Zeca, pai dos meninos.

Às vezes, Caetano sentava à portade casa para ouvir os sons que vinhamda rua e depois corria para o pianopara tocar, antes que esquecesse damelodia. O som do piano tocado porele então invadia a rua e era ouvidopor quem passava. Um ou outro pa-rava para ouvir.

Sete anos mais nova que Caetano,Maria Mutti era filha de dona Toinha,grande amiga de dona Canô. As fa-mílias moravam perto e, um dia, en-quanto ia para casa, Maria passou eouviu o piano. Não resistiu e deu umaespiadinha pelo buraco da janela: eraCaetano tocando. Mas menina moçanão tomava intimidades de ir sozinhaà casa dos outros e então foi correndochamar a mãe. “Ela foi comigo lá,entramos e vimos que era Nicinha[irmã de Caetano] que estava ensi-nando ele a tocar. Perguntei que mú-sica era, ela me disse que era Re-cuerdos de Ypacarai. Nunca mais es-quecionome, fiquei láumbomtempoouvindo ele tocar”, conta a profes-sora, aos 63 anos.

Trilha sonoraDo outro lado da rua do sobrado,funcionava o posto de saúde onde

trabalhava uma das médicas da ci-dade, Dra. Elvira de Araújo Queiroz. Avida era corrida entre os muitos plan-tões que dava em Santo Amaro e nascidades vizinhas e ela mal tinha tempode visitar os amigos. Conheceu donaCanô antes mesmo de ela casar comseu Zeca e chegou a receitar MariaBethânia, a caçula, por ocasião deuma febre. Mas era Caetano sua prin-cipal ligação com a família Veloso.“Todos os dias eu o ouvia tocar piano,atendia os pacientes com aquelas mú-sicas que vinham da casa em frente”,conta a médica, que continua em ple-na atividade, mesmo agora, aos 92anos.

Pai também ninaAs músicas tocadas eram sempre deoutros artistas e foi meio sem quererque Caetano descobriu que tambémsabia compor, aos 14 anos. Sua irmãMabel dava aulas na sala de casa enestediaensinavaaosalunosumpoe-ma de Martins de Alvarez para o diadas mães. “Caetano sentou ao pianoe disse que ia fazer uma trilha sonorapara o poema. Fez uma canção deninar e ensinou às crianças. As me-ninas estavam balançando suas bo-necas e aí um dos meninos disse quetambém queria uma boneca. Fiqueimeio assim de deixar, mas aí Caetanofalouquepai tambémnina.Deixei.Elesempre dizia umas coisas assim bempra frente”, revela a escritora e pro-fessora Mabel.

A primeira gravação aconteceu látambém, na sala da casa da Rua doAmparo,ondedonaCanôaindamora.Seu Aluízio era amigo da família etinha um aparelho de gravação, coisamoderna para a época, que colocavaos sons nos bolachões, os discos devinil. De um lado, Caetano gravou acanção Mãezinha Querida. Do outro,Parabéns Pra Você. O disco foi enviadopara o Rio de Janeiro e dado de pre-sente de aniversário para Mariinha, aMinha Inha, que cuidava de Caetanona infância.

INFÂNCIA Artista passou seusprimeiros anos entre a casa ea rua. Brincava com as outrascrianças da vizinhança, maspreferia o piano e os desenhos

Caetano e o piano ou o menino quefazia a trilha sonora da rua inteira

Memórias de uma infância pacatavivida às margens do Rio Subaé

As crianças brincavam perto de casa,cada uma do que gostava mais: fu-tebol, picula, esconde-esconde, ama-relinha. As meninas passeavam suasbonecas, enquanto os pais, sentadosà porta de casa, conversavam com osvizinhos. Era assim em Santo Amarona década de 1950.

Vizinho de Caetano, Raimundo Ar-thur era um ano mais novo que ele.Conheceram-se brincando na Rua doAmparo, onde moravam. “Ele parti-cipava das atividades, mas não eramuito de jogar bola”, conta o pro-fessor aposentado de 69 anos.

Nos finais de semana, a turma,composta por várias crianças que mo-ravam na rua, ia até o rio comprarmanga nos saveiros que chegavam.“Caetano ia também com a gente. Eu

ficava na frente para comprar e outrosmeninos atrás. Aí, quando o rapaz dosaveiro não estava olhando, eu pe-gava uma manga a mais e passavaadiante”, revela Arthur, rindo.

Lágrima de VênusO menino Caetano era quieto. Brin-cava na rua com os vizinhos, mas gos-tava também de ficar sentado à portade casa, onde cresciam as mais di-versas plantas. “Tinha uma que sechamava Lágrima de Vênus, e tododia, no finzinho da tarde, ela abria aflor e caía uma lágrima. Ficava todomundo chamando Caetano para brin-car e ele, sentado numa cadeirinha devime, dizia que ia ficar lá esperando alágrima cair. Isso ele tinha uns quatroanos”, o irmão Rodrigo conta.

O trem das cores do cantor: desenho,pintura e outras artes emolduradas

Nas mãos, Caetano não guardava so-mente a vontade de fazer música. Ain-da criança, ele começou a desenhar oque via ao seu redor. Mariinha ficavaaté tarde costurando, enquanto ele,que não gostava de dormir, desenha-va. “Primeiro era nos papéis, depoiscomeçou a desenhar no chão da va-randa com carvão. Fazia pássaros, flo-res, pessoas. Fazia muito retrato meu.Minha irmã Clara perguntou por queele não a desenhava, ele disse que eraporque os traços dela eram muito fi-nos. Imagina isso”, revela Mabel.

Foi assim que, um dia, Caetano de-cidiu desenhar a vizinha, Diva, moçabem bonita. “Ela chegou na janela efalou: ‘É meu desenho!’. E era mes-mo”, conta dona Canô, rindo da arte

do filho que, tempos depois, levou umcavalete para a Praça da Purificação epintou a cidade. Até hoje, o quadroestá na parede de sua casa.

Em 1961, o irmão Rodrigo ganhouumquadrodeCaetano.“Viumqueelepintou e pedi: ‘Ô, Cate, pinte um dessepra mim’!, e ele fez”, conta.

No mesmo ano, aconteceu a pri-meira exposição das pinturas, no Co-légio Teodoro Sampaio, em SantoAmaro. “Foi a primeira mostra de qua-dros dele e do artista plástico EmanoelAraújo. Comprei os dois quadros háalguns anos, porque achei errado queeles não ficassem em Santo Amaro,que é a terra deles”, diz Maria Mutti,que na época era pequena demaispara ir à exposição.

FÃ DA MÚSICA E DA PINTURA

Quando foi avisada por Emanoel Araújode que o quadro exposto por Caetanoem 1961 estava à venda, imediatamenteMaria Mutti decidiu comprá-lo. A tela foidireto para a parede de sua casa, paradecorar a sala de jantar. Ao lado,Rodrigo Veloso com o quadro pintadopara ele pelo irmão Caetano.

O RIO SUBAÉ, ANTES E DEPOIS

Na década de 1950, a grande aventurados finais de semana para Caetano e osoutros meninos da rua era correr até oporto para comprar manga nos saveirosque chegavam pelo rio Subaé. Nasfotografias, dois momentos do lugar:naquela época, durante a infância docantor, e atualmente (ao lado)

Fotos Marco Aurélio Martins / Ag. A TARDE

Ao lado, pianono qual Caetanoe seus irmãosaprenderam a tocar