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PIETRO PIZZOFERRATO
O sentido da obrigação: a problemática do dinheiro e da retribuição pelos serviços recebidos dentro do candomblé.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos
Universidade Federal da Bahia Orientador: Prof. Doutor Livio Sansone
SALVADOR, BAHIA Outubro 2008
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Desejo dedicar minha dissertação a Michele d’Agostino e Claudete Santana, em sinal de afeto e gratidão pelo apoio inestimável e o carinho recebidos. Sem eles, este trabalho nunca teria visto a luz.
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AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas contribuíram para realização deste trabalho. Entre elas, quero
agradecer especialmente à dona Cicí de Oxalá, filha-de-santo do terreiro de candomblé
Ilê Axé Opô Aganju, pela disponibilidade e atenção constantes, as preciosas
informações e, acima de tudo, pelas palavras de sabedoria.
Também quero expressar minha gratidão à dona Eulâmpia Santana Rieber, pelo
apoio incessante durante as fases mais complicadas de minha pesquisa e por ter me
honrado de sua amizade durante estes anos de estadia em Salvador.
A todos os professores do CEAO e professores externos, os quais tive o prazer
de conhecer durante os dois anos de curso, pelas aulas proveitosas e o apoio fornecido
durante a pesquisa de campo.
Particularmente, agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Livio Sansone, pelas
sugestões e os valiosos conselhos, além de Prof. Dr. Cláudio Pereira e Prof. Dr. Jéferson
Barcelar, pela riqueza da bibliografia apresentada ao longo do curso de Etnografia dos
Estudos Étnicos e Africanos, que muito contribuiu para o entendimento das várias
facetas do culto religioso afro-brasileiro em questão.
Ao meu amigo e colega Fábio Batista Lima, por ter me orientado durante a fase
de coleta de textos e documentos para a construção da epistemologia referente ao
primeiro capítulo.
A todos os membros do povo-de-santo que entrevistei, àqueles que me
acolheram nos seus axés e disponibilizaram informações e elementos-chave para o
entendimento da forma de circulação de bens econômicos e sagrados nos terreiros de
candomblé.
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Aos funcionários do centro de estudos Afro-Orientais, e individualmente a
Carlos Miranda, pela gentil dedicação e prontidão em todos os meus momentos de
necessidade.
Ao presidente, aos sócios, aos amigos e colegas do CSACA - Centro di Studi
Americanistici “Circolo Amerindiano” de Perugia, Itália, por ter despertado, desde os
primeiros tempos da minha vida acadêmica, o interesse pelo estudo das ciências sociais
e por ter colocado à minha disposição seus conhecimentos e experiências durante as
várias pesquisas de campo que realizei no exterior.
A Eulice, filha de Oxum, esposa, amiga e companheira, pela paciente obra de
revisão textual e, sobretudo, pelo incentivo e pela compreensão com que acompanhou a
realização deste trabalho.
Finalmente, quero exprimir meu imenso agradecimento aos meus pais, em sinal
de amor, afeto e gratidão pelos valores que a mim transmitiram, e por terem me
ensinado que a medida verdadeira de nossos propósitos e intenções cotidianas depende e
se sustenta no grau de sacrifício e de dedicação que estamos dispostos a colocar para
alcançá-los.
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RESUMO O sentido da obrigação: a problemática do dinheiro e da retribuição pelos serviços
recebidos dentro do candomblé.
Pietro Pizzoferrato
Orientador: Livio Sansone
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos
e Africanos
FFCH, UFBA
O presente trabalho enfoca o sentido da obrigação pelos serviços recebidos entre os
adeptos do candomblé, investigando sobre as várias formas de retribuição como garantia
de obtenção de ajuda por parte do universo do sagrado e como meio de sobrevivência
material do axé. Veremos que os conceitos de troca, de cobrança e de ajuda mútua
constituem uma das bases mais sólidas em que se apóia a família-de-santo para cumprir
com os rituais e os preceitos ditados pela religião. Será abordado também o aspecto da
importância da economia dos terreiros, em relação não somente à possibilidade de
utilização de recursos econômicos em âmbitos estritamente religiosos, mas também em
seu uso em trabalhos sociais e de interesse comunitário. Além disso, tentaremos
perceber de que forma são levadas em conta as obrigações, como elas subjazem aos
conceitos de promessa, de ajuda e de garantia, além de explorar a maneira em que os
agentes religiosos investem os recursos econômicos presentes no axé ou lidam com sua
falta em épocas de festas públicas e de trabalhos internos.
Palavras – chave: Candomblé – Dinheiro - Obrigação
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ABSTRACT
The meaning of the obligation: the problems of money and retribution for the
services obtained within the Candomblé.
Pietro Pizzoferrato
Orientador: Livio Sansone
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos
e Africanos
FFCH, UFBA
This work focuses the meaning of the obligation for the services obtained among the
followers of the Candomblé religion through the investigation of the different forms of
retribution, as a guarantee for the obtaining of support from the sacred universe and as a
mean for the surviving of the axé. We’ll find out that the conception of exchanging,
charging and mutual support constitute one of the most reliable bases in which the
família-de-santo depend in order to carry out both the rituals and the precepts imposed
by the religion. It will also be approached the aspect of the importance of economy
within the terreiros, as related not only to the possibility of utilization of incomes in a
strictly religious framework, but also in their use in a social and communitarian contest.
Beyond this, we’ll try to realize how the obligations are considered, how they are
subject to the concepts of promise, support and guarantee; we’ll also investigate in
which way the religious agents invest the axe’s economical resources, and how they
manage with their lack in periods of public feasts and internal works.
Keywords: Candomblé – Money - Obligation
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SUMÁRIO
Introdução 1. O tema_____________________________________________________ p. 9 2. A metodologia_______________________________________________ p. 13
Capítulo I O alicerce teórico A mãe-de-santo e o pai-de-santo como magos e sacerdotes e a questão da cobrança pelos seus trabalhos________________ p. 16 Capítulo II Mitologia da cobrança: duas histórias nagôs II. 1 – Xangô recompensa os favores de Ibeji__________________________ p. 37 II. 2 - Obatalá paga pela sua ousadia_________________________________ p. 41 Algumas considerações___________________________________________ p. 43 Capítulo III A obrigação do pagamento: duas histórias na cidade de Salvador III. 1 – Oxum cobra pela fantasia de carnaval se sua filha_________________ p. 46 III. 2 – O açougueiro das sete portas e o babalorixá do Dique______________ p. 48 Algumas considerações____________________________________________ p. 52
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Capítulo IV A estrutura econômica do terreiro IV. 1 – A sociedade dos ogãs _______________________________________ p. 55 IV. 2 – O custo e o sentido da obrigação: a festa_________________________ p. 60 Conclusões: uma relação de ajuda mútua ______________________________ p. 74
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INTRODUÇÃO
1.1 - O TEMA
Desde que comecei a me interessar por questões antropológicas, sempre fiquei
fascinado pelo estudo das religiões de origem africanas. Logo que ingressei no
Programa de Pós Graduação em Estudos Étnicos e Africanos – CEAO, portanto, com a
ajuda do meu orientador, professor Livio Sansone, procurei encontrar uma temática
relativa ao candomblé que não fosse já amplamente estudada e debatida por parte de
cientistas sociais e/ou simples interessados.
A idéia de desenvolver um trabalho cujo foco fosse o estudo do significado das
relações econômicas dentro dos terreiros de candomblé, veio à tona depois de ter
assistido a uma festa de Obaluaié, em um terreiro localizado no bairro do Garcia. Mais
especificamente, durante a atuação daquela fase do ritual que prevê a distribuição da
comida-de-santo para todos os participantes da festa, no qual foi espontânea a surpresa
com a abundância dos alimentos, a fartura com que se reverenciava o orixá e,
conseqüentemente, com o alto investimento de recursos econômicos para que tal ritual
fosse realizado.
A proposta de estudar este aspecto do candomblé foi aceita pelo meu orientador,
e logo começamos a elaborar uma estratégia para enfrentar um assunto tão particular e
delicado. O primeiro passo feito foi uma busca de documentos literários que tratassem o
tema e, com muita surpresa, tivemos que nos depararmos com uma situação de escassez
de materiais que abordassem de forma bastante específica meu objeto de estudo. Apenas
algumas informações foram encontradas em partes de textos de autores mais recentes
que, mesmo não aprofundando a questão, deram algumas orientações proveitosas para o
prosseguimento do estudo.
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De toda forma, se olharmos atentamente as fontes de informações da produção
cientifica sobre o candomblé – contidas tanto em literatura (livros, ensaios, críticas,
memoriais, investigações jornalísticas, documentos virtuais, etc.), quanto em outros
âmbitos (documentários áudio-visuais, reportagens televisivas, entrevistas via-rádio,
etc.) – facilmente percebemos que há uma lacuna muito grande no que diz respeito às
relações econômicas nos terreiros.
Além disso, quase a maioria absoluta dos autores que dedicaram suas obras ao
entendimento do sentido do dinheiro na época moderna, o reduz a um meio para a
racionalização das relações internas à sociedade. Uma sociedade que funda a
estabilidade de suas relações na base do dinheiro seria, portanto, movida por objetivos
exclusivamente econômicos, nos quais o bem coletivo está submetido aos interesses
pessoais.
Isso acaba criando, de acordo com Georg Simmel1, uma nova forma de pensar a
sociedade, em que os elementos de pura racionalidade, constituindo seu alicerce,
provocam uma ruptura com os padrões de relação tradicional. O resultado é que, por um
lado, o dinheiro torna-se um instrumento de dissolução de laços sociais primordiais; por
outro é que acabam criando, para Simmel, estilos de vida e modelos comportamentais
característicos da modernidade, em que sempre mais frequentemente tende-se a
estabelecer relações através das suas objetivação.
Outro autor que visa à problemática do dinheiro como instrumento de
instrumentalização das relações sociais é Marx, o qual assevera que o produto do
trabalho (qualquer trabalho), quando reduzido à pura mercadoria, produz um efeito de
alienação por parte do trabalhador, provocando um distanciamento entre o manufator e
seu produto, que passa a ser avaliado, desta forma, por um terceiro objeto2. Isso produz
frustração e despersonalização não somente na vida individual do trabalhador, mas
também nos tecidos mais profundos das suas relações com o ambiente social pelo qual é
cercado.
1 Simmel, Georg, 1984, “Filosofia del Denaro”, UTET. 2 Marx, Karl, 1988, “O Capital: Crítica da Economia Política”, São Paulo, Nova Cultura.
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A solução para estes problemas encontrar-se-ia, para os cientistas sociais
Habermas3 e Parsons4, numa abordagem diferente, que levasse em conta o fato que o
dinheiro tem que ser definido com referência às relações sociais e associações culturais
que não podem ser explicadas focalizando-se apenas as atividades econômicas.
Sustentam, além disso, que o dinheiro é significativo não apenas em termos
econômicos, mas também pelo que revela a cerca do tecido normativo da sociedade
moderna. Parece, no entanto, que eles também desenvolvam suas teorias tendo como
referência a visão “tradicional” das funções do dinheiro: 1) Medida do valor; 2) Meio de
troca; 3) Meio de pagamento; 4) Acumulação de riqueza.
Poderíamos trazer mais exemplos do tipo de visão “tradicional” do dinheiro,
concebido como estritamente associado ao mundo do interesse, em que toda a atividade
dos seres humanos está orientada pelo cálculo e pela vantagem individual. Gostaria
porém, de sugerir uma perspectiva alternativa para o estudo do dinheiro na sociedade e,
mais em particular, no candomblé.
Pessoalmente, estou mais propenso em aceitar a definição de dinheiro como
promessa, e não como um bem material, concreto. Como bem expressado por Fini, “...o
dinheiro em si não existe em natureza: é uma abstração. De fato, de qualquer forma que
ele se apresente, o dinheiro é sempre uma promessa. Funciona como meio de troca não
por ser um valor material, mas uma promessa. Se não fosse assim, estaríamos diante de
uma simples troca de uma coisa por outra coisa. Quem possui dinheiro detém uma
promessa quer alguém, até agora desconhecido, lhe fará (lhe fornecerá uma mercadoria,
um serviço, etc.)”5
3 Habermas, Jurgen, 1976 , “Legitimation Crisis”, Heinemann, London. 4 Parsons, Talcott, 1952, The Social System, Tavistock,, London. 5 Fini, Massimo, 1998, “Il Denaro Sterco del Demonio”, Marsilio Editori Spa in Venezia. (Tradução nossa)
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Em outras palavras, o dinheiro é sempre um crédito6, um crédito que torna
explícito o fato de ser uma promessa; a garantia desta promessa é constituída pela
confiança, que assume, em nosso caso específico, um significado bem profundo e
abrangente: as promessas presentes nas relações de ajuda mútua (em que o dinheiro tem
papel importantíssimo) entre um filho-de-santo e sua própria mãe, de fato, não são de
caráter exclusivamente profissional, envolvendo nada mais e nada menos a garantia da
sobrevivência da comunidade religiosa e, consequentemente, um aspecto cultural de
máxima importância dentro da comunidade afro-descendente de Salvador.
O delicado equilíbrio de alguns entre os vários fatores que constituem a base
das relações sociais na família-de-santo como o respeito, a confiança, a palavra,
sustenta-se justamente através da garantia de que as promessas serão mantidas, tanto por
parte de quem dá, quanto por parte de quem retribui.
Estudar o “o dinheiro” no candomblé significa portanto, abrir uma fresta para
observar um contexto religioso nas suas mais variadas expressões, possibilitando
compreender, à partir de um estudo específico, um daqueles aspectos do universo da
família-de-santo permeados de solidariedade, de cooperação, de ajuda mútua, de
irmandade, que permitem o funcionamento material da estrutura religiosa, além de sua
sobrevivência, ao longo dos tempos.
Veremos, de fato, como estes laços de fraternidade e intimidade, fundamentais
dentro do contexto religioso pesquisado, adquirem cada vez mais força através de
relações que se baseiam justamente nos mecanismos de troca econômica; por isso, não
poderíamos deixar de examinar, também, o papel da retribuição pelo serviço recebido a
partir de um ponto de vista cosmogônico, para confirmar novamente que os mecanismos
de troca fazem parte do patrimônio não somente material, mas também
simbólico/metafísico de cada terreiro de candomblé.
6 Schumpeter, para justificar a definição de dinheiro como crédito, afirma que ele não deve ser confuso com a moeda, na qual se encarna sob a forma de instrumento de crédito, “(a moeda é)... um título que fornece o acesso aos únicos meios de pagamento definitivo, isto é, os bens de consumo” – Schumpeter, Joseph A., 1990, “Storia dell’Analisi Economica”, Bollati Boringhieri, Milano – Tradução nossa.
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1.2 – A METODOLOGIA
A maioria das informações obtidas nestes dois anos de pesquisa foram coletadas
com base em um questionário que redigi depois de algumas entrevistas “soltas” com
informantes que pertenciam a diversos axés. Tentei estabelecer, de fato, um
relacionamento com essas pessoas bem antes do começo da pesquisa de campo, para
que não se sentissem “invadidas”, do ponto de vista da privacidade, tanto civil quanto
religiosa, por um desconhecido; acredito que esta postura tenha-se revelado apropriada
também para tentar ganhar a confiança necessária, para enfrentar uma série de perguntas
a respeito de um aspecto tão delicado da própria religião.
De fato, posso afirmar sem a menor dúvida, que a fase mais complicada e, às
vezes constrangedora da minha pesquisa, foi a inicial: a primeira abordagem com o
povo-de-santo. O que constituiu a maior dificuldade foi o assunto em si: o querer
arrecadar informações sobre o papel do dinheiro e seu uso dentro de um terreiro de
candomblé. Isso causou várias incompreensões entre eu e alguns dos membros da
família-de-santo em questão (felizmente, na maioria das vezes só no momento inicial da
minha pesquisa).
Que isso pudesse ocorrer foi, obviamente, previsto: o caráter particular do objeto
de estudo não permitia a entrega e a arrecadação de informações imediatas, e deixava
claro que teria que trabalhar muito para alcançar meu alvo. Diversas vezes, tive a
sensação de que sempre que tentava abordar alguém “de santo”, logo após a
apresentação do meu projeto de pesquisa, me olhavam com um ar que parecia dizer:
“este homem está querendo abrir a carteira dos outros e pedir justificativas sobre seu
conteúdo”. Um pensamento sem dúvida natural, espontâneo e, diria, apropriado, em
circunstâncias similares. Quem seria eu para entrar num terreiro e querer saber qual é
sua movimentação de dinheiro?
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Não posso me furtar, porém, de afirmar que, apesar das dificuldades iniciais,
sempre fui bem recebido pelos representantes dos terreiros em que pesquisei; na maioria
deles, me foi permitido conversar com várias pessoas, cada uma se colocando à
disposição com a paciência necessária para fornecer explicações, informações,
testemunhas, etc. a uma pessoa “intrusa” do ponto de vista do compartilhamento do
mesmo patrimônio religioso e da vida social de seus atores.
O questionário usado nas entrevistas no campo de trabalho foi revisto e
modificado várias vezes durante a minha atividade de pesquisador, especialmente no
número das perguntas e na sua ordem; isto porque, freqüentemente, a abordagem de
determinado assunto abria novas questões, não previstas anteriormente, a serem
debatidas, provocando uma mudança por vezes problemática em termos de tempo de
trabalho de campo e de estrutura do texto.
As informações trazidas pelos atores religiosos que entrevistei foram obtidas
parte nos terreiros de candomblé a que eles pertenciam, parte durante conversas mais
informais com filhos e filhas-de-santo conhecidos; em ambos os casos, tive a
preocupação de comunicar previamente que o conteúdo de nossas entrevistas seria
matéria de uma dissertação de mestrado, para não gerar futuras incompreensões ou
polêmicas.
Pesquisei em terreiros os mais variados, sem prestar particular atenção nas suas
nações, nem no nível de prestígio por eles ocupado dentro do universo da religião afro-
brasileira de Salvador. Isso para não perder o foco da minha pesquisa, que nunca mirou
a estudar especificamente um terreiro ou outro, mas sim tentar entender como é
abordada a questão econômica por parte do povo-de-santo, independente dos padrões
educativo/culturais a que fazem referência.
Também aproveitei a experiência e a disponibilidade de filhos e filhas-de-santo
que me contaram grande número de episódios realmente acontecidos ao longo de suas
vidas, cujos protagonistas estavam envolvidos em situações em que o sentido da
retribuição ia muito além do conceito de dívida ou de troca de favores.
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Isso permitiu uma compreensão mais abrangente e facetada da problemática
interna ao fluxo de recursos econômicos dos terreiros, abrindo várias possibilidades de
discussão relativa à interpretação e a análise dos dados coletados.
A divisão do texto em vários capítulos foi feita da seguinte forma: no primeiro,
tentei logo enfocar a questão da cobrança dos trabalhos feitos por pais e mães-de-santo,
trazendo alguns aspectos teóricos do papel exercido por estes personagens baseando-me
em alguns dos autores que estudaram profundamente os agentes mediadores da religião,
nas suas específicas atuações.
No segundo capítulo, tratei da mitologia da cobrança, para mostrar como o
dever da retribuição pelos serviços recebidos tenha um significado primordial, que
funciona como linha-guia para orientar os comportamentos dos atores sociais deste
mundo.
No terceiro, relatei duas histórias reais que me foram contadas por uma
experiente filha-de-santo de um terreiro em Lauro de Freitas, na região metropolitana de
Salvador; isso para trazer dois exemplos das conseqüências negativas de
comportamentos errados perante a divindade e seu mediador.
No quarto, enfrentei particularmente a questão da gestão dos recursos
econômicos de que o terreiro dispõe e da problemática da arrecadação de dinheiro
dentro do próprio axé, tendo como referência algumas entrevistas feitas a um ogã de um
terreiro de nação Angola que, naquela época, cobria o cargo de Presidente da Sociedade
dos Ogãs. Além disso, muita importância é conferida também ao significado simbólico
e material das festas internas ao terreiro, e às atividades sociais promovidas em prol do
segmento da sociedade mais carente.
Na parte relativa às conclusões, realcei a conotação sociológica de que o
conceito de retribuição é permeado, de acordo com os preceitos e as obrigações
previstas pelo candomblé, além da necessidade de um estudo mais aprofundado desta
temática por parte dos cientistas sociais.
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CAPÍTULO PRIMEIRO
1. O ALICERCE TEÓRICO
1. A MÃE-DE-SANTO E O PAI-DE-SANTO COMO MAGOS E SACERDOTES E A
QUESTÃO DA COBRANÇA PELOS SEUS TRABALHOS
Para investigar o papel do dinheiro e dos vários recursos econômicos presentes
dentro do candomblé faz-se necessário recorrer ao conceito weberiano de racionalidade
da ação religiosa, isto é, uma ação que, ainda não necessariamente orientada por meios e
fins, orienta-se, pelo menos, pelas regras da experiência. Portanto, a ação ou o
pensamento religioso não pode ser submisso a uma separação das ações cotidianas
ligadas a um fim que, quase sempre, é de natureza econômica.
Weber busca criar, na sua teoria da racionalidade, um nexo entre o que ele
chama de ethos, um sistema teórico de representação (cosmogonia, mitologia,
cosmologia, etc.) e a transformação em uma ética, ou seja, uma sistematização racional
de conduta dos indivíduos; para tal êxito, ele recorre à metodologia dos tipos ideais,
com a proposta de agentes mediadores na administração da graça: o mago, o sacerdote e
o profeta.
O privilegio de poder exercer uma autoridade total e indiscutível sobre a atuação
das ações cotidianas vinculadas à economia de um terreiro de candomblé fica totalmente
nas mãos da yalorixá ou do babalorixá, muitas vezes auxiliados, neste trabalho, por
pessoas de confiança que cuidam da administração e do processo material de
arrecadação de dinheiro, cujo papel analisaremos mais adiante. Do mesmo modo, a
liderança fica a cargo das festas, obrigações internas e manutenção geral do terreiro.
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A autoridade dos chefes dos terreiros está, inteiramente, legitimada pelo
consenso dos filhos-de-santo e sua clientela, da mesma maneira que a confiança e a
obediência que o povo-de-santo lhes atribui, assim como o enorme prestigio de que
gozam dentro do campo religioso afro-brasileiro. É óbvio que estas características só
podem ser atribuídas às pessoas que têm uma capacidade particular e exclusiva para
exercer este tipo de autoridade, ou seja, um carisma pessoal formalmente reconhecido e
legitimado por parte da comunidade.
Pode-se entender o conceito de carisma como um dom que não pode ser
adquirido, mas que está vinculado ao objeto ou à pessoa que o possui por natureza, ou
que pode ser proporcionado à pessoa de modo artificial, por certos meios extra
cotidianos. De acordo com Weber7, a mediação entre essas alternativas consiste no fato
que quem possui este tipo de dom nem sempre tem a capacidade de desperta-lo e aplica-
lo nas práticas cotidianas. Neste caso, ele deve ser estimulado e desenvolvido para não
permanecer oculto e inutilizado.
Além disso, a expressão “carisma” deve ser compreendida em relação a uma
qualidade extraordinária, fora do comum, possuída por uma pessoa, que seja tal
qualidade real, pretensa ou presumida8. A autoridade carismática está estritamente
relacionada a um domínio sobre os “homens comuns”, seja este domínio
predominantemente externo ou interno, à qual os governados se submetem devido à sua
crença na qualidade extraordinária da pessoa específica.
A crença nos poderes mágicos constitui a base da legitimação do domínio
carismático, e a fonte desta crença é a prova das qualidades carismáticas que se
manifestam através de milagres e revelações que asseguram o bem-estar da
comunidade. Conseqüentemente, o prestigio dos líderes carismáticos decai assim que as
suas atuações não geram mais o resultado esperado; a autoridade desaparece, tão logo
falta a prova, e tão logo a pessoa carismática qualificada parece estar esquecida pelos
deuses ou destituída de seu poder mágico. Logo, o pai ou mãe-de-santo se esmera em
7 Weber , Max, 1982, “A psicologia social das religiões mundiais”, in “Ensaios de Sociologia”, Editora Guanabara S.A., Rio de Janeiro. 8 Weber , Max, 1990, “Economia e Sociedade”, Editora UNB, Brasília.
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polir com um verniz a sua performance carismática frente ao corpo dos seguidores de
seus terreiros: acólitos e clientes.
A figura da yalorixá e do babalorixá e, sobretudo, a atuação deles no próprio
âmbito religioso, está estritamente vinculada a um aspecto particular de cosmogonia
típica na maioria das religiões de procedência africana, ou seja, a crença em certos seres
que se ocultam por trás da atuação dos homens carismaticamente qualificados,
constituindo assim a base da mais antiga de todas as profissões – a do mago
profissional9. Desta forma, o conceito de mago como pessoa carismaticamente
qualificada e legitimada pela sociedade no exercício das suas funções típicas e
exclusivas, se aplica em oposição à pessoa comum, o leigo.
Weber assevera que o mago á um funcionário autônomo da sua magia, e possui
as qualidades e as ferramentas – os meios mágicos – para “forçar” os espíritos e fazer
com que estes intervenham no cotidiano para inverter ou determinar certo tipo de
situação. O mago detém um saber específico que é utilizado individualmente e
ocasionalmente: é um agente mediador, não estando submetido a uma empresa
permanente, regular, hierárquica e socialmente organizada. Ele trabalha como pequeno
empresário independente. De acordo com Bourdieu, seus serviços são alugados por
particulares de acordo com a ocasião, e remunerados em tempo parcial, sem que para
isso tenha sido especialmente preparado10.
É justamente esta a característica que o diferencia de outros agentes mediadores
do sagrado, como o sacerdote, que influencia os deuses por meios diferentes, como a
veneração e a adoração, e que opera em contextos e de acordo com regras próprias, e
como o profeta, cujo papel exploraremos mais adiante.
Por outro lado, Weber observa que o sacerdote faz parte de uma empresa
permanente, estruturada em rígidos padrões hierárquicos, e que prevê a existência de
específicos lugares de culto nos quais o profissional exerce sua função a serviço de uma
9 Weber, Ibid. 10 Bourdieu, Pierre, 1982, “A economia das trocas simbólicas”, Editora Perspectiva, São Paulo.
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instituição baseada em relações associativas e preocupada com os interesses de seus
membros.
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Além disso, se os sacerdotes possuem um saber específico e as suas doutrinas
são fixamente reguladas, o que os distingue dos magos é que estes últimos atuam em
virtude de dons pessoais e da prova destes por milagres e outros eventos dificilmente
explicáveis por meios “racionais”.
Naturalmente, nem sempre é possível traçar características específicas a respeito
dos agentes mediadores do sagrado, na medida em que eles são tipos ideais na
perspectiva weberiana; por exemplo, nem todos os sacerdotes são “empregados”, mas
recebem salários da Igreja, isto é, todas as vezes que os seus serviços são requisitados
não diretamente pelos seus supervisores, mas sim por parte de uma comunidade de
leigos.
Da mesma forma, nem todos os magos agem individualmente ou
independentemente de associações, corporações e instituições específicas: raramente os
magos estão organizados em um círculo fechado, numa casta hereditária que tem, em
determinadas comunidades, o monopólio da magia, mas as ações mágicas são
individuais, e eles vivem em concorrência pelo monopólio dos bens sagrados.
As possibilidades de distinção e diferenciação entre o mago e o sacerdote podem
ser feitas, mesmo parcialmente, se tomarmos como traço comum a adaptação de um
círculo especial de pessoas ao exercício regular do culto, sendo ele vinculado a
determinadas normas, características, tempos e lugares e que está direcionado a
determinadas associações.
Tanto na prática do sacerdócio como na prática da magia existem os traços
comuns do noviciado, da doutrina, da aprendizagem continua e constante, da aquisição
de novos conhecimentos e das suas aplicações dentro da comunidade de referência;
porém, o que falta ao mago é o exercício de um culto continuo: mesmo exercendo um
poder muito forte, especialmente em ocasiões particulares, e mesmo que as festas
mágicas ocupem uma posição central na vida do povo, a característica do culto continuo
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não constitui um traço distintivo na sua vida profissional, como naquela de um
sacerdote.
Além disso, não podemos esquecer o fato que as duas figuras profissionais
desenvolvem papeis cujos objetivos são bem diferentes entre si. Por um lado, o
sacerdote está preocupado essencialmente com a salvação das almas dos seus fieis, de
acordo com uma perspectiva de ressurreição e de vida no mundo “do além”, e os orienta
no exercício de uma sistematização racional de conduta, tendo em vista uma
recompensa final – o bem estar na vida eterna. Por outro, o mago está essencialmente
preocupado em questões muito mais materiais e imediatas; o seu interesse não é a cura
da alma e tampouco seu trabalho está direcionado na perspectiva de garantir a quem
precisar da sua ajuda uma provável vida post mortem.
Muito pelo contrario, o trabalho do mago é intra-mundano, “aqui e agora”, em
oposição ao sacerdote, que empenha-se em pautar uma conduta para a salvação, ou seja,
extra-mundana. O mago empenha-se na resolução de problemas deste mundo, sejam
eles os mais variados. Sua atividade funda-se justamente neste aspecto, o de garantir a
proteção do individuo que o procura como “conselheiro espiritual” que possa ajudá-lo
na resolução de suas aflições11.
11 Bourdieu afirma que os traços característicos das práticas mágicas, de acordo com a maioria dos autores, são os seguintes: visam objetivos concretos, específicos, parciais, imediatos (em oposição aos objetivos mais abstratos, genéricos e distantes que seriam os da religião); suas fonte de inspiração consiste na intenção de coerção ou manipulação dos poderes sobrenaturais (em oposição às disposições propiciatórias e contemplativas da “oração”, por exemplo); por último, encontram-se fechadas no ritualismo e no formalismo do toma lá dá cá. “Todos estes traços estão fundados em condições de existência dominadas por uma urgência econômica que impede qualquer distanciamento em face do presente e das necessidades imediatas, sendo ademais pouco favoráveis ao desenvolvimento de competências eruditas em matéria de religião, e por esta razão, têm maiores oportunidades de se manifestar nas sociedades ou nas classes sociais mais desfavorecidas do ponto de vista econômico e, por isso, predispostas a ocupar uma posição dominada nas relações de forças materiais e simbólicas” (Bourdieu, Ibid., p. 45). Além disso, para Bourdieu toda a prática ou crença dominada está fadada a aparecer como profanadora na medida em que, por sua própria existência e na ausência de qualquer intenção de profanação, constitui uma verdadeira contestação objetiva do monopólio do sagrado, isto é, da legitimidade dos detentores deste monopólio. Parecidamente, Durkheim afirma que a magia apresenta uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas santas, e que em seus ritos ela faz o contrário das cerimônias religiosas (Durkheim, 1960).
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21
Tanto o mago quanto o sacerdote administram a resolução das aflições da vida
cotidiana, seja em relação à doença, à pobreza ou à enfermidade, assim como todas as
formas de perigo e sofrimento12.
O sacerdote dos terreiros, os pais-de-santo ou as mães-de-santo, detêm o poder
de dar ordens e orientar o comportamento de toda a comunidade religiosa, baseados em
regras preestabelecidas racionalmente dentro das etiquetas de comportamento do grupo,
por acordo ou por meio da imposição. O aparato simbólico, gestual, ritual, surge em
virtude de uma norma sempre em nome de uma autoridade pura e simplesmente
impessoal; claro que não se pode furtar ao caráter pessoal, mas ele por si só não é o
demarcador.
12 Na sociologia da religião Weber postula que, em oposição ao mago e ao sacerdote, se coloca a figura do profeta. Do ponto de vista sociológico, o profeta é um portador de carisma pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino (Weber, Ibid.). Deixando do lado questões relativas ao tipo de revelação reivindicada por ele (nova ou antiga, de fato ou suposta, tradicional ou inovadora, etc.) e ao tipo dos seus seguidores (se os adeptos estão mais vinculados à doutrina em si ou à pessoa), é fundamental abordar o aspecto da vocação pessoal, pois esta constitui um traço exclusivo que faz com que o profeta assuma uma característica muito diferente dos sacerdotes. Se o sacerdote reclama autoridade devido ao fato de estar a serviço da tradição sagrada, o profeta reivindica a mesma autoridade em virtude de uma revelação pessoal ou de seu carisma: além disso, o sacerdote, diferentemente do profeta, fornece bens de salvação em virtude do seu cargo; é possível, no entanto, que a função sacerdotal esteja estritamente relacionada a um carisma pessoal. Mas mesmo assim, por um lado o sacerdote permanece legitimado por seu cargo, sendo um membro de um empreendimento de salvação com caráter de relação associativa: por outro lado, o profeta atua somente graças ao possuir um dom pessoal, e neste caso ele pode ser comparado a um mago. Outro traço comum entre o profeta e o mago é que os dois exercem seu ofício fora de qualquer instituição (diferente dos sacerdotes) sem alguma proteção, isto é, eles atuam em forma de empresários independentes. Devemos, porém, realçar o fato de que enquanto o profeta funda a sua missão nos mandamentos ou na doutrina, e anuncia revelações substanciais, para o mago a substância da sua missão consiste exclusivamente em magia. Além disso, o mago e o profeta distinguem-se pelas posições diferentes que ocupam na divisão do trabalho religioso: neste caso o alvo e as ambições dos dois são muito diversos, e resultam de origens sociais e formações diferentes: enquanto o profeta afirma sua vontade de exercer legitimamente o poder religioso entregando-se às atividades pelas quais o corpo sacerdotal afirma a especificidade de sua prática e a validade da sua competência, e portanto a legitimidade de seu monopólio, ao interior de uma doutrina cuidadosamente sistematizada por regras e padrões previamente estabelecidos, o mago “responde de modo ininterrupto às demandas parciais e imediatas, lançando mão do discurso como se fosse uma técnica de cura entre outras e não como um instrumento de poder simbólico, vale dizer, de prédica ou de outro fator que nos cura das almas” (Bourdieu, Ibid.) Além disso, interessa muito é que a prática da experiência profética possui um caráter totalmente gratuito: o profeta não espera gratificações ou remunerações provenientes da sua atuação: ele propaga a sua verdade por ela mesma, e somente limita-se a receber benefícios relativos, como por exemplo, a hospitalidade de seus fiéis (quando oferecida). Diferente do sacerdote, ele não faz da sua missão um ofício, mas busca sustentação graças a seu próprio trabalho ou as oferendas que – eventualmente – são-lhe entregues espontaneamente. Da mesma forma, o profeta difere do mago, que pode alugar abertamente seus serviços em troca de remuneração material, isto é, pode assumir explicitamente sal papel na relação vendedor/cliente que constitui a verdade objetiva de toda relação entre especialistas religiosos e leigos. Por outro lado, outra característica exclusiva do profeta é que ele nunca está presente quando não há a anunciação de uma verdade religiosa de salvação em virtude de revelação pessoal. Ele mostra um caminho de salvação através do seu exemplo, sendo ele mesmo, com a sua conduta, quem constitui a referência principal para seus fiéis; este últimos, como já explicado, ajudam, mediante oferendas, presentes e doações, asseguram materialmente o sustento do profeta.
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22
Sendo assim, a autoridade dos pais e mães-de-santo nunca exerce seu poder de
mandar pro direito próprio; o seu poder está constantemente submisso a uma instituição
da qual ela é o porta-voz oficial, o depositário das tradições dos terreiros passadas de
gerações a gerações e regidas por normas e padrões estabelecidos.
Desta maneira, os sacerdotes dos terreiros de candomblé tendem a vivenciar um
conjunto de disposições corporificadas e atualizadas no fluxo da duração. O que
Bourdieu chama habitus também propõe ser gerativo de novas formas de conduzir os
seres-no-mundo13.
O conceito de autoridade, decisivo no âmbito das relações grupais, da entrega de
cargos de prestígio e de poder e da divisão do trabalho religioso e social dentro do
candomblé não foge deste padrão de legitimação.
A autoridade do pai ou mãe-de-santo, absoluta e indiscutível, é legitimada de
acordo com a qualidade, antes examinada, do carisma, que ele ou ela exerce sobre seus
filhos e suas filhas. Revela-se, esta autoridade, por várias formas expressivas, todas
influenciadas pelo assim chamado “principio da senioridade” 14.
Os filhos, ao verem a mãe-de-santo entrar no terreiro, levantam e a reverenciam;
se aproximam dela para pedir a benção todas as vezes que chegam ao terreiro; se
prostram diante dela na ocasião de festas maiores, etc. O pai ou a mãe-de-santo tem o
poder incontestável em todos os aspectos da vida religiosa dentro do terreiro, assim
como fora dele, tendo em vista que os terreiros tendem a criar um estilo de vida
mediante a visão de mundo apresentada15; a eles cabe orientar os filhos-de-santo cada
vez que se verifiquem situações de aflição, tensão e conflito entre os pertencentes ao
terreiro.
Eles tomam conta de todas as atividades as casa, sejam internas ou externas
como, por exemplo, no caso das obras de beneficência; do mesmo modo cabe aos
13 Bourdieu, Ibid. 14 Costa-Lima, Vivaldo, 1977, “A Família de Santo nos Candomblés Jejes-Nagôs”, p. 77, Corrupio, 2 ed., Salvador (2003). 15 Geertz, Clifford, 1989, “A interpretação das Culturas”, Koogan, Rio de Janeiro.
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sacerdotes interpretar para os filhos as vontades dos orixás, além de impor punições
todas as vezes que esta vontade não seja levada em justa consideração; são eles que
cuidam da economia do terreiro em todos seus aspectos, tomando decisões individuais
ou de acordo com o trabalho dos membros da sociedade, cujo papel examinaremos mais
adiante.
Enfim, dentro do terreiro de candomblé tudo depende da palavra final do
sacerdote, à qual se conferem obediência e respeito absoluto devido às virtudes
carismáticas, ao consenso e à confiança que fazem com que lhe seja confirmada a
legitimação no exercício do próprio ofício.
Nota-se que nos terreiros de candomblé o trabalho exercido pelas lideranças
atende aos dois modelos ideais apresentados pela sociologia da religião weberiana, isto
é, o pai ou a mãe-de-santo têm as características do mago e do sacerdote.
Podemos afirmar que a figura dos pais e mães-de-santo possui tanto algumas
características típicas do mago, quanto outras típicas de um sacerdote. No primeiro
caso, o principal traço comum é constituído pelo caráter mundano da atuação dos dois
profissionais: tanto como o mago, a mãe-de-santo do candomblé, que não é uma religião
preocupada na salvação da alma no mundo do além, está preocupada com o
comportamento moral e espiritual dos seus adeptos no dia-dia, neste mundo; cuida de
problemas imediatos, sejam de saúde, familiares, de relacionamento, econômicos dos
seus adeptos, deixando de lado questões extra-mundanas.
Além disso, é importante realçar que a mãe-de-santo passa por um período de
iniciação e de aprendizagem continua, no qual desenvolve a capacidade de contatar
espíritos dentro de um contexto e uma cosmogonia totalmente diferentes de outra figura
profissional que nomeamos, e que também passa por um período de doutrinamento e de
aprendizagem: o sacerdote. Os meios usados pelos sacerdotes para que um deus ou um
santo possa socorrer quem precisar de ajuda são a adoração, a veneração, o sacrifício
pessoal; nunca um sacerdote poderia atuar como intermediário entre os dois mundos
tentando convocar um espírito, pois isto seria contrário aos mandamentos da sua
doutrina.
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Outra aproximação pode ser feita a respeito da remuneração do trabalho: a
atividade do pai ou mãe-de-santo e a de mago sempre estão sujeitas à cobrança, cujo
valor pode variar de acordo com o tipo de trabalho, do grau de proximidade do cliente
com o profissional, do número de pessoas envolvidas no preparo e na execução dos
rituais, etc.
Além disso, os sacerdotes dos terreiros esperam receber pelos seus trabalhos
satisfações que são encaradas como bens simbólicos conversíveis em bens econômicos;
os pais e mães-de-santo sempre cobram uma remuneração em troca de seus serviços,
mesmo podendo acontecer que esta remuneração não seja material, mas conferida
mediante outras formas (por exemplo, desenvolvendo trabalhos não retribuídos dentro
do axé, ou prestando serviços sociais em comunidades carentes).
Neste caso, a legitimação da mãe-de-santo como chefe indiscutível do terreiro de
candomblé é confirmada através da retribuição não somente em forma de bens
materiais, mas também em forma de dom, expresso na linguagem da obrigação: isto
porque a remuneração, como dizemos, é obrigatória, e isto “produz pessoas obrigadas,
cria, como se costuma dizer, obrigações; institui uma dominação legítima. Porque, entre
outros motivos, ele institui o tempo, ao constituir o intervalo que separa o dom e o
contra-dom com expectativa coletiva do contra-dom ou do reconhecimento, ou ainda, de
forma mais clara, como dominação reconhecida e legítima, como submissão aceita ou
querida”16.
Esta troca não somente produz a confiança no fato de que a generosidade será
recompensada, mas constitui uma forma específica de uma economia de bens
simbólicos que se apresenta sob a forma de um sistema de, citando Mauss,
“expectativas coletivas” com as quais se pode e se deve contar.17
O dom como ato generoso é possível somente para agentes sociais que
adquiriam disposições generosas adaptadas às estruturas objetivas de uma economia
capaz de garantir-lhes recompensa, isto é, um mercado. Podemos entender a economia
16 Bourdieu, Pierre, 1996, “Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom”, vol. 2, em “mana”, PPGAS – Contra Capa, Rio de Janeiro. 17 Mauss, marcel, “Sociologia e Antropologia”, Cosac & Naify, 2003.
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do dom de acordo com a definição de Bourdieu que a descreve como baseada em um
“denegação do econômico”, isto é, uma recusa da lógica do lucro econômico, do
espírito de cálculo e da busca exclusiva do interesse material.
Esta forma de economia visa exclusivamente à acumulação do capital simbólico
como capital de reconhecimento, que só é acessível aos agentes com disposições
adaptadas à lógica do desinteresse. Para que a dominação simbólica se institua, é
necessário que os dominados compartilhem com os dominantes esquemas comuns de
percepção e apreciação através dos quais são percebidos por eles e os percebem, através
dos quais eles se percebem como se os percebe.
Em outras palavras, o reconhecimento encontra seu princípio em disposições
práticas de adesão e submissão que, por não passarem pela deliberação e pela decisão,
escapam à alternativa entre o consentimento e a coerção. O poder simbólico encontra
seu fundamento no fato de constituir um poder que se cria, se acumula e se perpetua
através da troca simbólica, isto é, da comunicação, que só pode se realizar entra agentes
capazes de se compreender e de se comunicar enquanto dotados dos mesmos esquemas
cognitivos e dispostos a se reconhecer mutuamente como interlocutores legítimos.
Isto acontece também dentro dos terreiros de candomblé, onde o mecanismo da
troca simbólica introduz na ordem do conhecimento e do reconhecimento a
comunicação que converte as relações de força bruta, incertas e suscetíveis de serem
suspendidas, em relações duráveis de poder simbólico. A troca simbólica transfigura o
capital econômico em capital simbólico, a dominação econômica (do pai-de-santo e da
mãe-de-santo sobre seus filhos) em dependência pessoal.
O fato que o pai ou mãe-de-santo dirige efetivamente toda a atividade do axé,
cuidando também do lado econômico do terreiro, produz um tipo de relação com seus
filhos que vai muito além do fator econômico propriamente dito: instaura-se, entre o
chefe do terreiro e seus filhos, uma relação comunicativa que tem como objetivo
justamente a perpetuação da estrutura hierárquica dentro do grupo através do
reconhecimento da autoridade como fator determinante na sua estabilidade social,
cultural, religiosa e econômica.
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A relação comunicativa entre as diferentes camadas de poder que constituem a
“família-de-santo”, e especialmente a comunicação entre o pai ou mãe-de-santo e seus
filhos, é frequentemente criada, como bem explicado por Vivaldo da Costa Lima,
“através um verdadeiro código mímico só entendido por seus filhos; isto constitui mais
um elemento do sistema de comunicação próprio e típico de cada terreiro”.18
Enfim, as relações comunicativas dentro do candomblé, sejam de qualquer
forma, têm como objetivo primário manter a coesão interna e evitar casos de tensões e
aflições que possam afetar negativamente o bem-estar comum, além de confirmar o
monopólio da autoridade por parte do chefe do axé.
Sendo assim, também a cobrança de valores materiais e/ou simbólicos como
remuneração do trabalho do pai ou mãe-de-santo, constitui não somente um meio de
sustentação de primaria importância para a sobrevivência do terreiro, mas também
possui características simbólicas voltadas, na maioria das vezes, no reforço das relações
interpessoais ao interior da família-de santo.
As atividades dos pais e mães-de-santo têm seu lugar específico de culto, suas
regras baseadas em padrões de hierarquia e de cargo, recebendo apoio e sustentação
constantes por parte dos fiéis.
Eles têm também um constante comprometimento na vida social,
desenvolvendo, por exemplo, ações de beneficência e ajuda às pessoas mais carentes,
como também podem fazer parte de associações e grupos de trabalho fora do contexto
estritamente religioso.
Este contexto religioso funciona como um princípio de estruturação que constrói
a experiência em termos de lógica em estado prático, e em termos de problemática
implícita, isto é, um sistema de questões indiscutíveis delimitando o campo do que
merece ser discutido em oposição ao que está fora de discussão (conseqüentemente,
admitido sem discussão).
18 Costa-Lima, Vivaldo, Ibid.
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Além disso, consegue submeter o sistema de disposições em relação ao mundo
natural e ao mundo social (graças ao efeito de consagração – ou de legitimação –
realizado pelo simples fato da explicitação) a uma mudança de natureza, em particular
convertendo o ethos enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação
em ética enquanto conjunto sistematizado e racionalizado de normas explícitas.19
O candomblé está muito predisposto a assumir uma visão de mundo que é ao
mesmo tempo prática e política de absolutização do relativo e de legitimação do
arbitrário, que só pode cumprir na medida em que possa prover uma função lógica e
gnosiológica consistente em reforçar a força material ou simbólica possível de ser
mobilizada por um grupo ou uma classe, assegurando a legitimação de tudo que define
socialmente esta classe.
Logo, o candomblé permite a legitimação de todas as propriedades
características de um estilo de vida singular, propriedades arbitrárias que se encontram
associadas a este grupo ou classe na medida em que ele ocupa uma posição determinada
na estrutura social.
Além disso, exerce um efeito de legitimação na vida dos atores sociais e de
consagração sob duas modalidades: primeiramente, através de suas sanções, tabus,
quizilas, ewos; secundariamente, o candomblé inculca um sistema se práticas
consagradas nos adeptos cuja estrutura se reproduz (através dos mitos, das metáforas,
dos rituais, etc.) e se atualiza, na medida em que a visão do mundo, através do corpo
mitológico, pode ser vivida e resemantizada.
Como já afirmado anteriormente, o candomblé constitui uma formação social
baseada em relações sócio-econômicas supervisionadas pelo pai ou mãe-de-santo; a
rígida hierarquia presente dentro da estruturação dos cargos e dos agentes religiosos
deixa pouco espaço para ambigüidades com respeito ao status que cada um ocupa na
estrutura religiosa.
19 Bourdieu, Pierre, Ibid.
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A complexa dinâmica destas relações, nas suas diferentes apresentações, confere
ao chefe do terreiro uma entidade e uma identidade que o mostram como resultado de
suas próprias decisões e ações, mas com a mediatização de uma rede de relações e
circunstâncias muito difíceis a serem controladas.
A conquista máxima do pai ou mãe-de-santo consiste em conseguir “transformar
o voluntário em obrigatório, tornar o terreiro uma instituição que oculte de seus
membros quanto depende deles, reificá-lo”20. O reconhecimento da autoridade do chefe
do terreiro também depende dos resultados alcançados em cumprir com esta tarefa e,
portanto, o principal esforço de legitimação fica a cargo do próprio agente.
Tentando examinar mais detalhadamente este assunto, poderíamos pensar no
candomblé como numa agência que oferece serviços e bens religiosos muito específicos
e claramente diferenciáveis de outros, como por exemplo, os bens de salvação
administrados pela Igreja Católica. Devemos levar em conta que estes serviços e bens
são reconhecidos e valorizados como tais por um extenso segmento da sociedade, mas
cada agente em geral, e muito particularmente o chefe do terreiro de candomblé, devem
conseguir a aceitação de certo número de clientes como provedor destes.
Isto significa dizer que, enquanto para a Igreja Católica, agência, agente e bens
religiosos tendem a uma identificação que isenta o sacerdote de qualquer necessidade de
legitimação adicional, no candomblé a distância entre estes elementos obriga a que o
agente seja constantemente posto à prova. Esta comparação nos leva à discussão em
torno das modalidades de acesso aos bens religiosos, ou seja, à questão do monopólio
dos bens sagrados.
Este tipo de monopólio não é o de uma única fonte religiosa dentro da sociedade,
ou de controle de uma corporação burocrática, mas o do privilégio de agentes
independentes com relação a seus adeptos. Isto faz com que, se analisarmos a unidade
do terreiro, fique claro o fato que qualquer relação interna está marcada por desníveis de
“conhecimento do sagrado”.
20 Brumana, Fernando Obelina, 1991, “Marginalia Sagrada”, p. 150, ed. Unicamp, São Paulo.
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Este conhecimento consiste em um capital simbólico, chamado de
“fundamento”, e aqueles que detêm mais “fundamento” detêm mais controle sobre o
grupo, a exemplo das ebomins e do próprio sacerdote. Dentro do grupo existem
membros que sabem muito e, por isso, podem mais, e membros que sabem menos e, por
isso, podem menos; o pai ou mãe-de-santo ocupa o nível mais alto da estratificação
hierárquica, se instala na cúpula como o mais sábio e, conseqüentemente, o mais
poderoso.
A diferença de níveis de conhecimento constitui o traço mais determinante de
dinâmica interna do grupo, e nos leva a considerar o fato que, por um lado, a vida do
terreiro é marcada pela concentração e monopólio religiosos que têm no chefe seu
máximo expoente (mesmo que este tipo de controle não evite que possam existir
competições internas, muitas vezes estabelecidas pela relação com a fonte de poder,
correlativas com os conflitos que os terreiros muitas vezes sofrem); por outro, nota-se
que a competição externa do terreiro acontece de forma mais virulenta dentro do mesmo
setor do campo religioso e não com agências e agentes de outros setores.
Isto porque as agências e os agentes de outros setores não oferecem o mesmo
tipo de bem religioso, e para os adeptos do candomblé não existe incompatibilidade
entre os serviços oferecidos por eles e os postos à disposição por outro tipo de agência.
O monopólio interno dos terreiros baseia-se nas qualidades carismáticas e na
competência do seu chefe, do mesmo modo a eficácia simbólica dos seus rituais, bori21,
ebos22, limpeza de corpo, assentamento de santo, culminando com a feitura. Essas
21 Assim Julio Braga descreve a cerimônia do bori: “Bori: cerimônia em que se faz oferenda à cabeça. O ritual “da preparação da cabeça” consiste em oferecer alimentos à cabeça preparando-a para receber, por meio do transe místico, a divindade para a qual o indivíduo se inicia. Conhecido pelo nome de bori ou pela expressão mais popular “dar comida à cabeça”, esse ritual marca, numa certa proporção, o acesso do indivíduo ao mundo dos candomblés, mas não o inclui entre os iniciados, propriamente ditos, a menos que o bori faça parte das diversas obrigações que conduzem o postulante aos estágios finais da “feitura do santo”. A rigor, aquele que se submete à cerimônia de “dar comida à cabeça”, de fazer o bori, assume laços mais profundos de religiosidade com o mundo dos candomblés, podendo desfrutar de algumas prerrogativas dentro da estrutura do grupo”. Braga, Julio, 2000, “Oritamejí – O Antropólogo na Encruzilhada”, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, p. 77. 22 Braga fornece uma definição funcional para a descrição do ebó - que expressa a dimensão e os compromissos mágicos existente entre a sua feitura e a comunidade religiosa - da seguinte maneira: “Ebó é qualquer tipo de trabalho que se faz por uma necessidade forçada. Por exemplo, um bori (comida à cabeça) que se faça por uma necessidade forçada é um ebó. Algumas lindas flores postas na água são um ebó. Existem ebós despachados (feitos) para o mal, assim como outros são feitos em benefício de uma
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características compreendem uma série de elementos que têm como centro irradiador
por um lado a força, o axé do sacerdote e, por outro, a profundeza dos conhecimentos
sagrados que o sacerdote detém, seja os que tenham sido transmitidos por outro agente,
ou aqueles conhecimentos produtos pela sua experiência, ou comunicados pelos orixás,
ou adquiridos por um modo de atenção.
Como afirmado por Victoriano, a hierarquia religiosa é entendida na base do
quantum de conhecimento: quanto mais tempo de casa, tarefas realizadas, apego às
obrigações, mais envolvimento, maior o conhecimento. Quanto maior o conhecimento
mais importância internamente. Idealmente todos podem chegar ao conhecimento e,
conseqüentemente, ao prestígio das posições alcançadas, obedecendo aos processos
rituais.23
O fato do pai ou mãe-de-santo gozarem de uma posição privilegiada dentro da
estrutura organizada do terreiro, e que sejam os detentores do monopólio religioso fica
claro e evidente na forma de dirigir-se a eles por parte de seus filhos: a genuflexão, o
beijo na mão, o pedido de benção, o jogar-se de bruços, constituem manifestações
reforçadoras da relação de subordinação.
Este tipo de comportamento, que dá ênfase na existência de laços de
vassallagem, parece estar baseado no esforço de coesão do grupo de acordo com
padrões de relação vertical, no vínculo dominador/dominado; vínculo tão forte e
enraizado que a competição pela simpatia do chefe do terreiro é uma das causas
principais de conflito entre os filhos e as filhas-de-santo, sendo que cada membro do
terreiro vê no seu pai ou na sua mãe-de-santo a proteção contra qualquer forma de
perigo e aflição na vida cotidiana.
pessoa. A direção do ebó (o local onde deve ser colocado) é indicada pelo jogo de búzios, de acordo com a vontade do orixá. O ebó pode ser uma simples vela até o sacrifício de um bicho qualquer. Podem ser postos no mato, na estrada, no lixo, na encruzilhada, no cemitério, dentro do mangue ou enterrado. Os ebós podem ser comidos ou bebidos, tanto para o bem como para o mal. O ebó sempre é ponto de partida para alguma coisa que se tenha de fazer dentro dos candomblés. O ebó tem suas cantigas e palavras apropriadas. É uma das coisas mais sérias”. Braga, Julio, 1988, “O jogo de Búzios. Um estudo da adivinhação no candomblé”, Brasiliense, São Paulo, p. 108. 23 Victoriano, Benedicto Anselmo Domingos, 1998, “O Prestigio Religioso na Umbanda”, ed. Annablume, São Paulo.
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De acordo com Brumana,24 a topologia relacional do terreiro reproduz a
topologia geral do culto: a proteção, a submissão, os castigos e os favores movem-se
num eixo vertical ao qual se recorre para proteger-se dos perigos veiculados no eixo
horizontal da relação entre pares.
Através das funções que o pai ou mãe-de-santo exerce, estabelece-se um
mecanismo de acesso a recursos materiais que são redistribuídos em maior ou menor
medida a seu grupo; desta forma, por meio da religião, tanto o chefe do terreiro quanto
seu grupo conseguem recursos e conexões maiores em termos da rede de influência,
prestigio e clientelismo para sobreviver, garantindo as condições materiais e humanas
para manter a família-de-santo e também para expandir-la, além dos recursos
necessários para melhor servir os Orixás.
Isto pode acontecer de formas as mais variadas, lançando mão de recursos como
o da procura induzida de clientes: a cada trabalho desenvolvido e, sobre tudo, a cada
resultado favorável obtido, o pai ou mãe-de-santo ganha um prestígio que reforça suas
capacidades exclusivas, isto é, seu carisma, fazendo com que novos clientes, sentindo-se
atraídos pelas suas virtudes e pela sua competência, tragam certa quantia de bens
materiais, fundamentais para o sustento e o crescimento do terreiro.
É fundamental realçar que este processo é sempre explicado em termos místicos,
e nunca em termos de sua importância econômica. A força do pai ou mãe-de-santo tem
origem no fato de que é uma pessoa criativa, que utiliza com sabedoria os recursos a
que já tem acesso, ao mesmo tempo procurando criar condições favoráveis para tornar
disponíveis outros recursos úteis para o terreiro.
O chefe do terreiro possui, portanto características políticas que o possibilitam
atuar no mundo não somente como figura religiosa cuja única ou principal função seja
cumprir as atividades rituais dentro de um lugar fundado por este propósito.
Para sobreviver, tem de criar uma rede de relações com pessoas,
preferencialmente influentes dentro da sociedade, que garantem a imissão de recursos
24 Brumana, Ibid.
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materiais necessários ao desenvolvimento de todas as práticas internas ao grupo
religioso: a mãe-de-santo usa sabiamente a esfera doméstica para atingir e influenciar a
esfera econômica e política.25
O compromisso e a participação nos bens espirituais justificam para os
envolvidos que taxas específicas do terreiro, impostos, mensalidades, manutenção da
parte física da casa estejam sob a responsabilidade de todos os associados e
participantes, e não somente do pai ou mãe-de-santo; como uma administração de bens
sagrados a organização do terreiro exige resultados tanto em relação ao cumprimento
dos fundamentos do axé quanto às obrigações das receitas e despesas a serem cotizadas
entre aqueles que aderiram às trocas religiosas.
A manutenção física – gastos de energia, água, lavagem de roupa-de-santo,
consertos em geral etc. – e espiritual do terreiro constitui o conjunto de controles que,
além de criar responsabilidades, reforçam as redes de relações (que podem ser
convergentes ou divergentes) entre o chefe do terreiro e seus submissos e entre adeptos
mais novos e adeptos mais antigos.
A questão do circuito econômico interno do terreiro é bastante complexa,
problemática e, em certos casos, produtora de conflitos e tensões; no caso da
remuneração dos serviços prestados pelo pai ou mãe-de-santo, como bem especificado
por Brumana,26 é preciso realçar que o ato de cobrar ou não pelos serviços religiosos
oferecidos pode ser tanto fonte de legitimação como objeto de acusações (embora não
de fonte unívoca). Cobrar caro por um trabalho tanto pode ser motivo de acusações que
identificam a não gratuidade do bem com sua falsidade, como, pelo contrário, ser
garantia do seu valor e, portanto, do agente que o vende.
O caráter de gratuidade do serviço é, em geral, apresentado como garantia de
desinteresse e, por conseguinte, de genuinidade do bem, mas não raramente acontece
que sob uma aparente gratuidade se dê um pagamento mais ou menos encoberto do
25 Silverstein, Leni M., 1979, “Mãe de Todo Mundo: Modos de Sobrevivência nas Comunidades de Candomblé na Bahia”, Revista Religião e Sociedade n. 4, Civilização Brasileira. 26 Brumana, Ibid.
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serviço; de qualquer modo, o funcionamento do terreiro implica numa série de gastos
além daqueles advindos do sustento total ou parcial do seu chefe.
O leque de possibilidades para se fazer frente a estes gastos é ampla: em
terreiros mais estruturados, até inclui a constituição de uma sociedade de membros que
periodicamente cotizam uma certa soma previamente concordada, além da colaboração
espontânea dos clientes, a cobrança fixada por consultas, o desembolso do próprio
chefe, o trabalho dos ogãs no arrecadamento de dinheiro, e mecanismos extraordinários
de arrecadação (festivais, rifas, vendas de produtos artesanais27, etc.), etc.
Uma coisa resta clara: a relação de compra e venda de serviços religiosos é uma
coisa naturalmente aceita pelos membros da família-de-santo, e este traço é constitutivo
do universo moral de todos os terreiros de candomblé. Além disso, lembramos que as
relações que envolvem o uso de dinheiro dentro do axé se criam graças à presença de
dois tipos de cliente: o “filho de santo” e o “cliente comum”, isto é, o cliente que não
tem papel ativo dentro da comunidade, e que desfruta dos serviços do pai ou mãe-de-
santo independente de qualquer vínculo religioso.
Como asseverado por Baptista, é também preciso destacar que as noções de
“clientela” ou de “cliente do terreiro” e de “ajuda” definem formas específicas de
colaboração na vida econômica do terreiro baseadas em princípios distintos: enquanto o
“cliente do terreiro” possui um tipo de relação com o agente baseada no mecanismo de
compra/venda de serviços, o “filho de santo” participa no terreiro através de um tipo de
relação baseada na “ajuda” material ou financeira.
27 Um exemplo deste tipo de atividade é bem explicado por Carneiro, quando faz referência à cerimônia da quitanda das iaôs: depois da festa do Orunkó, o dia em que as iaôs recebem o nome do próprio orixá (sendo que cada filha-de-santo tem caráter pessoal e, portanto, deve ter um nome pessoal que o identifique), “(...) tem lugar a quitanda das iaôs. No chão da sala, alinham-se panelas de mungunzá e de vatapá, latas de aluá, pratos de acarajé, abará, pipocas, amendoim, acaçá, cocada, queijadas, feijão de azeite, cestos de roletas de cana, gamelas de fubá, caxixis, bananas, laranjas, pinhas (frutas-de-conde), pedaços de coco, etc. Uma pequena feira livre. Sentadas em pequenos bancos, as iaôs, ainda de cabeça raspada, são as vendedoras. Os presentes vão comprando as gulodices ali expostas, que nesse dia custam mais caro do que nunca. O barulho é infernal: as iaôs estão, quase sempre, possuídas por êrês e uma delas, mesmo, deve vir fazer pilhérias, antes da quitanda, com os assistentes”. – Carneiro, Ibid., pp. 98-99.
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Isto denota tipologias diferentes de vinculação ao terreiro, estabelecendo por um
lado laços temporários e momentâneos, por outro, laços duradouros e movidos por
“sentimentos” mais intensos. Sendo assim, é lícito pensar que os laços de filiação sejam
mais constantes e íntimos, enquanto a relação de clientela funda-se na idéia de eficácia
do trabalho do sacerdote.28
A relação de clientela e, por conseqüência, a relação de troca comercial, faz com
que os terreiros de candomblé estabeleçam a constituição de um fundo econômico que
sustenta a infra-estrutura material do culto. Este fundo econômico é de propriedade
privada do pai ou mãe-de-santo, como um microempresário do setor de serviços, dos
quais ele vive ao mesmo tempo em que é líder de uma comunidade de adeptos.29
A gestão dos recursos dentro da família-de-santo opera numa condição em que o
pai ou mãe-de-santo é o detentor absoluto e indiscutível do controle da família; logo, a
gestão e a distribuição destes recursos ficam por conta exclusiva do chefe do terreiro,
justificada pelo principio de legitimação do seu cargo e na confiança total dos adeptos,
mesmo ignorando as informações a respeito da modalidade de gasto do dinheiro
arrecadado.
O que é importante definir, para nosso propósito, é a questão do agente depender
ou não diretamente da contratação de serviços para seu sustento parcial ou total. Um dos
pólos que delimitam este eixo é representado pelo agente que não negocia seus serviços,
mas sim os administra livremente, mesmo em casos em que depende dos membros do
axé para sua sobrevivência; outro, em que o agente negocia seus serviços para objetivos
e fins particulares do cliente, obtendo com eles um benefício econômico pessoal, exista
ou não uma sociedade de membros do terreiro que supra os gastos gerais e os seus em
particular.
Entre estes dois eixos se desdobra uma complexa e ambígua gama de
possibilidades, mas quais estão em jogo várias questões que precisam ser levantadas:
28 Baptista, José Renato de Carvalho, 2006, “Os Deuses vendem quando dão: um estudo sobre os sentidos do dinheiro nas relações de troca no candomblé”, Dissertação de Mestrado, UFRJ. 29 Prandi, Reginaldo, 1991, “Os candomblés de São Paulo”, Hucitec, São Paulo.
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primeiramente, a questão do o que é lícito cobrar, sendo que não raramente acontece
que determinados tipos de trabalho não podem ser sujeitos à cobrança.
Este critério divide os objetivos dos clientes entre aqueles nos quais se busca
simplesmente uma proteção espiritual e outros que implicam a obtenção de algum
benefício (que, às vezes, significa o prejuízo de um terceiro).
No primeiro caso, estamos diante de uma apelação para a caridade do agente e,
obviamente, de seus orixás, base da justificativa da prática do culto; nesta
eventualidade, a exigência de pagamento pelo serviço oferecido está excluída, pelo
menos teoricamente. Em termos práticos, isso significa dizer que uma consulta, uma
limpeza ou um passe não obrigam a uma compensação econômica, embora qualquer
trabalho que o orixá consultado ordene fazer possa ser objeto de cobrança.
No segundo caso, o agente pode se recusar a realizar esse tipo de trabalho ou
admitir encarregar-se dele; nesta segunda possibilidade também está implícito o
reconhecimento de aceitar remuneração. A questão é particularmente problemática,
sendo que a realização de certos tipos de encargos místicos pode ser estigmática, mas
sua recusa em fazê-los pode ser tomada como sinal de fraqueza.
Além disso, precisa-se debater o problema de “de quem é lícito cobrar”, e isso
dá origem a uma dupla classificação de clientela: por um lado, de acordo com o grau de
proximidade com o terreiro, de seus membros estáveis e conhecidos ao cliente ocasiona;
por outro, segundo a sua posição econômica. Estes dois critérios abrem uma série de
possibilidades impossíveis a serem decodificadas, sendo que existem respostas
específicas conforme cada caso e cada terreiro.
De toda forma, a regra geral, embora quase nunca admitida, é que o cliente rico
seja cobrado, mesmo a nível inconsciente e indiretamente, de bancar não somente os
trabalhos feitos para ele, mas também os feitos para um cliente pobre; da mesma
maneira, o cliente distante do terreiro gastará muito mais dinheiro do que o cliente
próximo que pede o mesmo tipo de trabalho.
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O cuidado que o pai ou mãe-de-santo no momento da cobrança pelo trabalho
feito baseia-se essencialmente nestas duas diferentes tipologias de cliente; lógico que
isso não impede aos chefes a possibilidade de fornecer serviços gratuitos naquelas
ocasiões em que eles reputam necessário não cobrar, mesmo que o cliente tenha
condições para efetuar o pagamento; da mesma forma, como já previamente asseverado,
o trabalho para uma pessoa com escassos recursos econômicos pode prever certa forma
de cobrança, seja em forma de retribuição material, seja através de serviços prestados
para o axé de forma gratuita.
Uma vez superados os discursos de autolegitimação que tendem a negar ou
minimizar a cobrança dos serviços prestados, os agentes individuam duas linhas
distintas de justificativa da obtenção de benefícios econômicos; a primeira aponta para o
custo pessoal, até físico, do serviço (certo tipo de ritual pode requerer o uso do corpo e
das suas expressões por parte do pai ou mãe-de-santo); a outra, para a equivalência entre
o serviço prestado por eles e outros cuja cobrança é socialmente aceita (o trabalho do
chefe do terreiro é submisso à cobrança tanto como o de um sacerdote que cobra por
uma missa).
No primeiro caso, a venda do serviço é encarada como uma transação pessoal
entre alguém que sacrifica algo e outro que tem a obrigação de compensá-lo por isso; no
segundo, a venda do serviço é nada mais nada menos de um mecanismo institucional.
Enquanto uma reflete a condição da qual nenhum agente consegue desprender-se plena
e totalmente, a outra assinala um limite inatingível.
Podemos concluir que no âmbito da retribuição pelo serviço oferecido vemos
reproduzir-se a dicotomia estabelecida por Weber, a partir daquela mais geral entre o
mago e o sacerdote, entre o agente a serviço de uma associação e o agente que exerce
uma profissão livre, oposição esta isomórfica à existente entre a ação permanente de um
e a ação caso a caso do outro.30
30 Brumana, Ibid.
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CAPÍTULO SEGUNDO II. MITOLOGIA DA COBRANÇA: DUAS HISTÓRIAS NAGÔS II. 1 - XANGÔ RECOMPENSA OS FAVORES DE IBEJI
Em certo dia de quarta-feira, dia consagrado a Xangô de acordo com a tradição
Nagô, o orixá estava reunido com todos seus ministros no seu palácio, discutindo sobre
questões de ordem política. A reunião foi interrompida para que os participantes
pudessem finalmente almoçar. Foram, então, para sala de jantar, tomaram lugar à mesa
e esperaram o primeiro prato ser servido, o amalá, comida predileta do rei de Oyó,
senhor da justiça, dos raios e dos trovões.
Assim que a comida foi servida, Xangô puxou o prato para si, querendo logo
comer, pois, como todos seus ministros, estava com muita fome depois de várias horas
de trabalho. Porém, lembrou-se que já fazia certo tempo em que, no dia a ele
consagrado, não conseguia comer devido à intromissão de Exu. De fato, toda vez que
Xangô tentava pegar a gamela dentro da qual estava o amalá, no dia de quarta-feira,
aparecia de repente Exu, tirava a gamela da sua frente e engolia o amalá numa bocada
só.
Xangô esperou que isso não acontecesse também agora que estava reunido com
os ministros, pois seria muito constrangedor perante seus hóspedes. Contudo as coisas
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não procederam da forma que o orixá queria: o rei tentou várias vezes chegar mais
rápido que Exu à comida, mas as tentativas dele sempre fracassavam.
Começou então, a se sentir muito acanhado diante dos seus ministros. Afinal, ele
era o rei de Oyo, respeitado e temido por seus súditos e servidores, e agora, pela
primeira vez, estava acontecendo algo que ameaçava minar sua indiscutível autoridade.
Como enfrentar aquela falta de deferência? Era inadmissível aceitar esse
comportamento, sobretudo porque ninguém esperava a chegada de Exu, que não estava
entre os convidados.
Além disso, Xangô sentia-se muito preocupado porque estava completamente
ciente do fato que, livrar-se de Exu era tarefa difícil e delicada, sendo um dos orixás
mais vingativos e temíveis.
Xangô não podia suportar aquela ousadia de Exu, especialmente diante de seus
ministros! Enquanto o rei tentava achar uma solução para enfrentar este inconveniente,
entraram na sala de jantar os seus filhos, Ibeji. Estes logo perceberam que o pai andava
zangado e chateado, e lhe perguntaram o que o deixava daquele jeito; Xangô respondeu
que não conseguia comer por causa de Exu, que roubava sua comida toda vez que
tentava servir-se.
Ibeji então disseram para o pai, que sabiam como fazer para que Exu não
incomodasse mais o almoço, e lhe perguntaram: “Onde o senhor gosta de se sentar para
comer seu amalá?” Xangô mostrou o seu lugar predileto na mesa, e questionou porque
eles fizeram aquela pergunta inesperada. As crianças não responderam ao pai,
chamaram um servidor do palácio e mandaram colocar um tambor batá no lugar
indicado por Xangô.
Sem fornecer outras explicações, Ibeji falaram para o pai: “nós vamos resolver o
problema que tanto lhe incomoda, porém o senhor deve prometer que nos dará o que
vamos pedir, em troca desse favor”. Xangô imediatamente prometeu cumprir o trato, e
deixou que as crianças trabalhassem para que nunca mais Exu pudesse atrapalhar seus
almoços de quarta-feira.
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Na quarta-feira seguinte, como de hábito, foi servido o amalá para o rei; e na
hora em que ele quis comer, eis que, de novo, Exu entrou na sala e logo comentou:
“hoje o prato está muito mais cheiroso do que nos outros dias”. Porém, assim que tentou
aproximar-se da gamela para saborear o amalá, os Ibeji apareceram e falaram: “toda
quarta-feira o senhor atrapalha o almoço de nosso pai Xangô, mas hoje o senhor não
poderá comer”.
Exu sentiu-se ofendido e desrespeitado, e logo respondeu: “tão pequenos e tão
ousados! Quem são vocês para ordenarem o que eu posso ou não posso fazer?” Ibeji
responderam: “temos uma proposta a fazer para o senhor; vamos fazer um trato para
resolver esta questão para sempre”.
Curioso, Exu quis saber rapidamente que tipo de trato àquelas crianças queriam
fazer. Eles falaram: “o senhor vai comer o amalá somente se conseguir dançar até o
final uma música que nós vamos tocar”. Exu, que amava a música e que sempre foi um
ótimo dançarino, aceitou o trato até com certa satisfação afinal, não parecia tarefa
difícil, tratava-se simplesmente de praticar uma atividade agradável e que sempre o
deixava de bom humor.
Ibeji mostraram-lhe então o tambor batá, pediram licença para se arrumarem e
saíram da sala. Voltaram minutos depois vestidos com roupas idênticas - tão idênticas
que Exu não conseguia distinguir quem era o menino e quem a menina - e perguntaram
a Exu se estava pronto para começar a dançar. A menina introduziu então a batucada do
agabi, o ritmo predileto de Ogum, e Exu começou dançar; toda vez que o toque ficava
mais baixo, aparecia o menino que começava a tocar um ritmo mais enérgico.
Os meninos alternavam-se continuamente, sem conceder pausas para que Exu
pudesse descansar. Com o passar das horas, o ritmo tornava-se mais intenso, mais
rápido e, conseqüentemente, mais difícil de dançar, até que Exu, tomado pela fadiga,
desistiu e caiu no chão morto de cansaço. Assim que conseguiu se levantar, reconheceu
sua derrota, prometeu nunca mais chegar ao palácio na hora das refeições de Xangô e
deixou os meninos a sós.
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O rei agradeceu aos seus filhos e chamou Exu para conversar; ordenou-lhe para
não aparecer nunca mais no palácio a menos que não fosse especificadamente
convidado, e prometeu-lhe que, a próxima vez que fosse convidá-lo, mandaria preparar
sua comida predileta. Depois pediu para ele se afastar, pois tinha que receber seus filhos
para pagar a recompensa prometida. Mas, antes disso, Xangô sentou-se na mesa e pode
finalmente saborear o amalá; assim que tentou levar a comida na boca, duas gotas
caíram do prato e foram parar no chão, onde Exu as lambeu e sumiu definitivamente.
Assim que Xangô terminou sua refeição, pediu a um servidor para avisar aos
filhos que já estava pronto para pagar sua promessa. Perguntou-lhes então, o que eles
queriam em troca do favor recebido; Ibeji responderam que, a partir daquele dia,
queriam participar do amalá do pai. E Xangô disse que mandaria os cozinheiros
separarem o amalá especialmente para eles.
Todavia Ibeji falaram que pretendiam que os cozinheiros preparassem o prato
deles tomando certos cuidados especiais, como por exemplo, a ausência de pimenta no
prato e o acréscimo de outras comidas. Xangô prometeu que, daquele dia em diante, o
amalá de Ibeji seria preparado de acordo com seus gostos.
Este amalá sem pimenta passou a ser chamado de caruru, e todos os anos, no dia
da festa de Ibeji, sincretizados com os santos católicos Cosme e Damião, os terreiros de
candomblé homenageiam os santos gêmeos com seu prato típico, o caruru das sete
crianças.
Particularmente respeitoso da tradição é o caruru das sete crianças que se faz na
cidade de Cachoeira, no recôncavo baiano, também chamado de “caruru de quatro
coisas”, que visa homenagear não somente Ibeji, mas também outras divindades do
panteão africano. Este caruru é servido da seguinte forma:
- Caruru, para homenagear Ibeji
- Farofa, para homenagear Exu
- Xinxim de galinha, apreciada por todos os orixás
- Arroz branco, para homenagear Obatalá e Yemanjá.
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II. 2 – OBTALÁ PAGA PELA SUA OUSADIA
Conta uma antiga lenda nagô que um dia Nanã, a Deusa das Águas, primeira esposa
mítica de Obatalá, deu uma massa a seu marido para criar o Homem. Porém, Obatalá
preocupou-se antes de tudo de criar o espírito, para que pudesse guiar o caminho do
Homem neste mundo. Só depois de ter criado o espírito, então, Obatalá foi pegar a
massa das mãos de sua esposa.
Assim que Nanã entregou a massa, pediu várias vezes à seu marido para que a
devolvesse logo depois de ter-la usada, pois somente a Nanã pertence o conhecimento
do segredo da morte do corpo do homem, simbolizado justamente pela massa. Mesmo
Obatalá sendo responsável da origem do universo, e do principio vital de todas as coisas
presentes neste mundo, não tinha direito algum de invadir a esfera de atuação da Deusa
da Água.
Mas Obatalá, uma vez terminado seu trabalho, logo ficou curioso de saber por
que Nanã recomendou a devolução imediata da massa com tanta insistência, e começou-
se a perguntar o que ela iria fazer com ela; mas em vez de perguntar a sua esposa por
que a queria de volta, achou melhor tentar um truque para que Nanã pudesse revelar seu
segredo espontaneamente e sem saber que o revelaria ao próprio Obatalá: pensou em
colocar uma roupa de mulher para disfarçar sua identidade, e foi visitar sua esposa
vestido de rainha.
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Quando os dois orixás se encontraram, Obatalá se apresentou dizendo que vinha
de um País muito longe para encontrar Nanã para que, por meio da sabedoria que a fazia
famosa entre sua gente, o ajudasse em esclarecer algumas dúvidas que tinha sobre o
Orum (o mundo do além) e o Ilê (este mundo). Nanã logo mostrou-se interessada em
conversar sobre as questões levantadas pela rainha, e começou responder às perguntas
sem desconfiar à respeito do real interesse do seu interlocutor.
Mas assim que Obatalá perguntou cerca do lugar aonde vai o corpo na hora da
morte, enquanto o espírito vai para Orum, um golpe de vento levanta seu filã (lenço
para esconder o rosto) deixando a barba e os bigodes do orixá à mostra e revelando,
assim, a verdadeira identidade da falsa rainha.
Logo Nanã ficou zangada com Obatalá e começou questionar o porquê daquele
comportamento e de tanto atrevimento; encarou a postura de seu marido como um
enorme desaforo, algo que sem dúvida alguma devia ser severamente punido. Por isso,
acusando-o de arrogância por querer conhecer um segredo que não lhe pertencia,
avisou-o que de hora em diante iria cobrá-lhe dinheiro como forma de retribuição não
somente por ter sido enganada, mas também pelo desrespeito e pela ousadia com que foi
tratada.
Mas, sendo que Obatalá não tinha condições de retribuir Nanã desta forma, a
deusa das Águas exigiu que todos os filhos de Obatalá, tanto as mulheres quanto os
homens, deveriam começar a se vestirem de saia, para que se lembrassem do
acontecimento para sempre e, sobretudo, para que a soberba de seu pai pudesse ser
paga.
Podemos afirmar, então, que os filhos de Obatalá até hoje pagam a dívida de
honra que o orixá contraiu perante sua esposa Nanã, tendo a obrigação de vestir uma
saia branca durante o ciclo das festas e/o das obrigações internas a seu próprio terreiro
de candomblé.
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES As duas histórias acima contadas, patrimônio cultural oral da tradição nagô, nos podem
fornecer uma orientação, talvez parcial, mas ao mesmo tempo suficientemente
esclarecedora, para o entendimento do nível de importância, dentro do candomblé, da
obrigação da retribuição.
Em ambos os casos, os mitos nos apresentam uma situação em que os orixás,
embora por motivos diferentes, acabam contraindo uma dívida que, como foi me foi
dito por uma experiente filha-de-santo do terrerio Ilê Axé Opó Aganju de Lauro de
Freitas, é a pior de todas, porque nunca chega a ser definitivamente paga.
Deixando de lado questões estritamente mitológicas, podemos relacionar as duas
histórias às trocas de favores que normalmente acontecem no dia-dia dos terreiros de
candomblé, para que possamos entender o significado autêntico do mito. De acordo
com todos meus informantes, caso um filho-de-santo peça a intervenção da yalorixá ou
do babalorixá para ser ajudado na resolução de questões pessoais, e ao mesmo tempo
afirme não possuir dinheiro para retribuir o favor, os chefes dos terreiros não recusam,
de norma, proporcionar ajuda.
Mesmo assim, o serviço precisa ser cobrado e, por isso, torna-se preciso
estabelecer qual será a forma de sua retribuição; com já afirmado, a gratuidade do
serviço, entendida em termos de dinheiro não gasto, representa uma garantia de
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desinteresse, mas sobre esta aparente gratuidade muito frequentemente se da uma
retribuição encoberta do serviço.
Caso dita situação aconteça, o chefe do terreiro costuma cobrar quem se
beneficiou de seus favores através de uma presença mais constante e efetiva dentro do
axé, isto é, uma exigência de prestação de serviço em beneficio de toda a família-de-
santo. Mais especificadamente, muitas vezes cobra-se, em troca do favor recebido, sua
disponibilidade em enfrentar trabalhos, físicos e não, dentro do axé, seja relacionados a
boa atuação das obrigações internas e públicas, seja a tarefas externas ao âmbito
estritamente religioso (trabalhos de manutenção, consertos gerais, busca de materiais,
organização e/o participação às atividades sociais, etc.)
Obviamente, este nível de exigência está relacionado ao tipo de favor
proporcionado: quanto maior o trabalho do pai ou mãe-de-santo, maior será o cargo de
obrigações para o filho, para que tenha a possibilidade de demonstrar sua gratidão pelo
serviço recebido.
É este o tipo de dívida que, a meu ver, nos fornece o exemplo mais claro da
importância e da obrigação de retribuição pelos favores recebidos: uma dívida que não
pode ser quantificada em termos de dinheiro ou de outros bens materiais e, por isso, sem
previsão de ser completa e definitivamente satisfeita, é sem dúvida uma forma de dívida
desgastante do ponto de vista do trabalho físico e muito severa do ponto de vista
estritamente psicológico. Mesmo assim, uma dívida que nenhum filho-de-santo deixa
de pagar.
Como vemos, o conceito de obrigação da retribuição, tem um significado mítico
e primordial, que justifica a dívida sem fim cobrada a todos aqueles que não possuem
condições financeiras suficientes para pagar pelo serviço recebido. É o próprio mito,
neste caso, que orienta e influencia os modelos comportamentais tanto por parte do
credor, quanto por parte do devedor; além disso, é possível evidenciar numerosas
analogias entre a história mítica e a situação real dos terreiros de candomblé.
De fato, o pai ou mãe-de-santo cobra o pagamento de seu trabalho de forma tão
imperativa quanto Ibeji da primeira história; tanto o cliente sem dinheiro quanto Xangô
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sabem que, mesmo que a dívida que contraíram nunca será completamente extinta,
devem aceita-la humildemente; finalmente, o chefe do terreiro sabe, por sua parte, que é
preciso cobrar, enquanto o devedor sabe que é preciso pagar.
Este último conceito é fundamental para que possamos entender o nível de
comprometimento de todos os membros da família-de-santo para que o próprio axé
possa enfrentar dignamente as dificuldades econômicas do dia-dia. Fazer frente à
precária situação financeira em que se encontra a maioria dos terreiros de Salvador e
região metropolitana, também significa por um lado cobrar por cada tipo de trabalho,
por outro aceitar as conseqüências da falta de recursos econômicos.
Vale lembrar, a este propósito, que os terreiros de candomblé, diferente de outras
grandes congregações religiosas que atuam na cidade, não têm o privilégio de contar
com apoios financeiros concedidos por parte das instituições governamentais, buscando
seu sustento exclusivamente através da oferta de serviços religiosos e de trabalhos
internos.31
Ao mesmo tempo, nem todos os chefes do terreiro podem cobrar aos seus filhos
uma tarifa mensal fixa com que enfrentar as várias despesas: em dois dos terreiros
pesquisados, fui informado de que às vezes é preciso recorrer à disponibilidade
financeira de simpatizantes ou da própria família biológica para que se possa arrecadar
dinheiro suficiente para garantir o pagamento dos gastos vivos do axé e para cumprir
com as numerosas obrigações religiosas.
Uma filha-de-santo de um terreiro pesquisado, situado no bairro do Alto do
Coquerinho, certa vez afirmou que, devido às dificuldades econômicas em que o terreiro
encontrava-se, a própria mãe-de-santo teve que gastar todas as suas economias para
31 Como bem esclarecido por Julio Braga, “(...) essas pessoas sobrevivem, e Deus sabe como, dos resultados de suas ações religiosas, diante de uma clientela cada vez mais restrita, tão é grande, hoje, a disputa por esse mercado simbólico, não somente de seus pares mas também de outras organizações religiosas que concorrem numa situação bastante desigual dispondo, essas últimas, de meios altamente sofisticados e altamente eficientes de acesso à população”. – Braga, Julio, 1988, “Fuxico de Candomblé”, p.43, UEFS, Feira de Santana. Para uma descrição minuciosa sobre as dificuldades econômicas e estruturais à que estavam submetidos os candomblés da primeira metade do século XX, veja-se Carneiro, Edison, Ibid., pp.43-46.
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reformar a estrutura do barracão, e que conseguia-se organizar as festas com tamanha
dificuldade chegando mesmo a duvidar da continuação da sobrevivência do axé.
Quando questionada sobre o pagamento pelos serviços oferecidos, respondeu
que, sendo tão pobres os clientes do axé, a mãe-de-santo nem chegava a perguntar à
pessoa necessitada se tinha dinheiro para recompensá-la pelo seu trabalho, resolvendo
cobrar um pagamento da forma que descrevemos nas páginas precedentes.
CAPÍTULO TERCEIRO III. A OBRIGAÇÃO DO PAGAMENTO: DUAS HISTÓRIAS NA CIDADE DE SALVADOR III. 1 – OXUM COBRA PELA FANTASIA DE CARNAVAL DE SUA FILHA Em torno de cinqüenta anos atrás, existia no bairro da Cidade de Palha, perto do Largo
de Roma, na cidade baixa de Salvador, um terreiro de candomblé que pertencia a um
pai-de-santo da nação Congo. Além de cobrir o mais alto cargo na escada hierárquica do
terreiro, o babalorixá que também trabalhava como alfaiate, era considerado um artista
no campo da criação de roupas e adereços.
Ele tinha uma filha-de-santo, que era de Oxum, muito irresponsável, “vaidosa,
mas não caprichosa”, de acordo com as palavras que pronunciou minha informante. O
pai-de-santo tinha muito gosto para a Oxum desta mulher, que ele julgava linda, e
trabalhava com dedicação e capricho para a costura das roupas que o orixá usaria
durante as festas do terreiro.
Durante a época de carnaval, a mulher quis sair para desfilar numa escola de
samba, hoje desaparecida, chamada “Escola Diplomata de Amaralina”. Como era muito
apegada a seu aspecto estético, começou cuidar da roupa que iria vestir para o desfile, e
escolheu vestimenta composta de uma saia, um banté, e dois ojas; fez uma fantasia de
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luxo, que chamava a atenção de todos os participantes da festa e se divertiu muito
dançando e desfilando.
Porém a roupa que tanto foi admirada durante o desfile, era na realidade, a roupa
costurada pelo pai-de-santo para a Oxum desta mulher, e ela não tinha direito nenhum
de vesti-la, pois este privilégio era exclusivo do orixá. Alguns dias depois do carnaval, a
Oxum dela baixou e levou a mulher para a roça do pai-de-santo que, naquele momento,
estava reunido em conversação com muitas pessoas.
Ela entrou na roça em estado de transe, segurando uma fronha na mão; logo
ajoelhou-se para o pai-de-santo e falou que estava muito preocupada, mas que não
conseguia entender a razão daquela sensação de incomodo que estava sentindo.
Assim que terminou de relatar os fatos ao pai-de-santo, colocou a fronha no chão
e escutou os conselhos dele. Mas enquanto o pai-de-santo falava, ela começou a tirar de
dentro da fronha toda a fantasia que tinha usado para o carnaval, e abriu a saia em cima
do colo do pai-de-santo. Então ele falou que perdoaria a insolência e a falta de
responsabilidade da mulher só depois que ela pagasse certa quantia em dinheiro
referente a cada laçada feita no tecido.
Desta forma a mulher, que até então podia contar com recursos econômicos
suficientes apenas para o próprio sustento e o das filhas, viu-se obrigada a pagar uma
dívida enorme, fora do seu alcance. Começou, então, arrecadar dinheiro para acabar
logo com a dívida, abrindo mão de despesas que, embora necessárias, a afastavam do
seu objetivo primário. Por isso, acabou ficando sozinha, pois as suas filhas, devido à
falta de dinheiro, tiveram que mudar-se para casa dos avós, enquanto ela, mesmo
fazendo um grande esforço para quitar a dívida contraída, nunca conseguiu juntar o
dinheiro a ser pago pelo desrespeito ao orixá.
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II. 2 – O AÇOUGUEIRO DAS SETE PORTAS E O BABALORIXÁ DO DIQUE
Na década de 60 o bairro de Sete Portas, na cidade do Salvador, contava com grande
número de açougues, todos concentrados numa mesma área, e cada um deles tentava
fazer o possível para tomar conta da concorrência, podendo assegurar um lucro que
pudesse sustentar sua própria família.
Em certo momento, um dos açougueiros que atuavam na região começou a
enfrentar uma época de crise nos seus negócios. Embora até pouco tempo antes pudesse
contar numa freguesia fixa e fiel, que conseguia satisfazê-lo economicamente mais do
que precisasse, o fluxo de clientes começou de repente a diminuir, de forma tão
constante que em poucos meses o açougueiro sentiu a necessidade de recorrer à ajuda de
alguém que pudesse resolver aquela situação tão preocupante e constrangedora em que
se encontrava.
Tentou então contatar algumas pessoas do bairro que tinham fama de
conhecedores de grandes babalorixá, famosos na cidade toda por terem capacidades de
resolver situações complicadas, especialmente no âmbito da queda de freguesia dos
donos de lojas e artesãos, contudo, suas tentativas iniciais fracassaram. Parecia que
ninguém estava disposto a indicar uma pessoa apta para aquele propósito, até o dia que
encontrou uma menina que lhe disse conhecer a pessoa certa de acordo com aquela
situação.
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Ela afirmou que no bairro do Dique do Tororó, não longe das Sete Portas,
morava um pai-de-santo muito afamado pela sua sabedoria e por sua capacidade de
resolver questões parecidas com a do açougueiro. Além disso, a menina alegou ter certa
intimidade com o pai-de-santo, pois ela própria já o tinha contatado para desfazer
situações complicadas internas á sua família.
Assim, propôs ao açougueiro de aproveitar da experiência deste tal senhor sábio
para fazer com que recuperasse o fluxo de clientes antigos, voltando os negócios a
serem prósperos e constantes.
O açougueiro aceitou a proposta da menina e, não tendo a possibilidade de
deslocar-se para o Dique do Tororó, a encarregou de procurar o pai-de-santo e explicar-
lhe qual era o problema a ser resolvido; também declarou que estava disposto a pagar
qualquer quantia de dinheiro, caso o trabalho do babalorixá desse os frutos esperados.
Logo a menina direcionou-se para a casa do famoso babalorixá e, assim que o
encontrou, relatou o pedido do açougueiro. Ele por sua vez, mostrou-se disposto em
ajudá-lo, afirmando que faria de tudo para que rapidamente os negócios voltassem a
prosperar, desde que, o açougueiro o recompensasse pelo trabalho fornecido. Também
falou que nem exigia o dinheiro devido logo após o término do trabalho, querendo
recebê-lo somente depois que os resultados tivessem sido alcançados.
A menina despediu-se do pai-de-santo e voltou para a loja do açougueiro para
contar-lhe o conteúdo da conversa com o babalorixá. O açougueiro aceitou as condições
estabelecidas e se botou à espera dos resultados do trabalho do pai-de-santo. Depois de
alguns dias, não somente os clientes antigos, que estavam comprando em outros
açougues, voltaram à loja do homem, mas também outra freguesia, antes desconhecida,
começou a aparecer e a fazer compras muito grandes.
Em poucos dias, o açougueiro tinha recuperado a fama antiga e ganhado grande
quantia de dinheiro; sua loja estava sempre cheia de clientes, os fornecedores de carne
apareciam toda hora para abastecer as geladeiras e tinha até fila de espera frente à porta
do açougue. O trabalho era tão volumoso que o açougueiro estava completamente
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tomado por ele e, na correria do dia-dia, acabou esquecendo a obrigação que tinha
assumido perante o pai-de-santo.
Este último, porém, não recebendo notícias a cerca dos resultados do seu
trabalho, e estando há vários dias à espera da sua recompensa, resolveu visitar
pessoalmente o estabelecimento do açougueiro para conferir a situação. Assim que
passou frente à loja, viu um grande número de fregueses esperando em fila para serem
atendidos, e ouviu inúmeros comentários de elogio a respeito do corte das carnes e da
qualidade do atendimento. Então, para não atrapalhar as atividades do profissional,
resolveu ir embora para voltar mais tarde, perto do horário de fechamento.
Várias horas depois, o pai-de-santo voltou para receber a dívida contraída pelo
açougueiro. Este, entretanto, assim que o viu, pediu-lhe para esperar mais um dia, pois
naquele momento estava muito ocupado estocando as carnes a serem vendidas no dia
seguinte.
O pai-de-santo respondeu que voltaria então o dia depois, e o açougueiro
prometeu pagá-lo logo após o horário de fechamento da loja. Mas também no dia depois
o açougueiro falou para o pai-de-santo que estava no meio de uma atividade de trabalho,
e que não podia atendê-lo.
Propôs-lhe então, voltar no dia seguinte: sem dúvida, iria pagá-lo pelos favores
recebidos. De novo, porém, o açougueiro falou que não podia pagá-lo naquele
momento, pois o dinheiro do caixa tinha sido já levado. Propôs-lhe, de novo, voltar no
outro dia. O pai-de-santo não lhe disse uma palavra sequer, virou as costas ao
açougueiro, pegou o caminho de casa e nunca mais apareceu para receber o dinheiro do
seu credor.
O açougue continuou prosperando por vários meses graças aos favores do
babalorixá. O dono da loja teve até que contratar novo pessoal para fazer frente aos
pedidos sempre maiores que lhe eram encaminhados, tanto pelos clientes antigos quanto
pelos novos que tinha acabado de conquistar e nunca mais procurou o pai-de-santo para
entregar-lhe o dinheiro devido.
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Um dia, logo após ter recebido grande quantidade de carne, como de hábito, saiu
da loja para poder despedaçar as carcaças dos animais e, para este propósito, mandou
trazer um tronco onde apoiar o bicho a ser feito em pedaços. Pegou um machado para
partir o bicho em duas partes e, assim que deu o primeiro golpe, um estilhaço da
madeira do tronco no qual trabalhava, soltou-se e o atingiu à altura da coxa, causando-
lhe um ferimento.
O açougueiro nem deu importância ao acidente e, sem pensar nas possíveis
conseqüências, continuou a despedaçar o bicho. O dia depois, logo ao acordar, percebeu
que a ferida provocada pelo estilhaço tinha provocado uma infecção, tornando-se roxa e
cheia de pus. Mais uma vez, não deu importância a este fato e foi imediatamente para o
açougue onde, como sempre, grande número de clientes estava esperando sua chegada
para fazer compras.
Os negócios continuavam grandes, muito dinheiro entrava no caixa e não parecia
haver nenhum risco dos fregueses diminuírem. O açougueiro ficou inteiramente tomado
pelo sentimento de avidez, nada lhe importava mais do que ganhar a maior quantidade
possível de dinheiro, nem mesmo cuidar da própria saúde.
Mas, com o passar dos dias, o ferimento que tinha levado andou piorando,
começou a doer e, não dando sinais de cicatrização, preocupou enfim o açougueiro, que
decidiu tentar resolver a situação. Procurou um médico especialista neste tipo de
ferimento e tomou remédios que o mesmo havia prescrito; mas nada adiantou, pois a
infecção espalhou-se por corpo todo do açougueiro, levando-o ao falecimento em
poucas semanas.
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
O episódio da filha-de-santo desrespeitosa perante o seu orixá e o do açougueiro
desrespeitoso do trabalho do babalorixá nos apresenta situações diferentes em
comparação com as duas histórias contadas logo no início deste capítulo. O tipo de
cobrança exigida pelos pais-de-santo, de fato, nos leva a questionar sobre duas formas
diferentes de dívida.
No caso da menina desrespeitosa do seu orixá, é preciso enfrentar um aspecto
muito delicado da relação de assistência recíproca entre o filho-de-santo e seu próprio
orixá, ou seja, os cuidados constantes que o fiel tem que ter perante a entidade
sobrenatural pela qual é protegido.
Em muitos casos, de fato, tive a possibilidade de assistir a conversas entre filhos-
de-santo em que se debatia e se comentava a questão da preocupação constante com a
satisfação do próprio orixá. Como sabemos, todos os orixás têm características divinas e
características humanas: se, por um lado, o orixá é visto como um Deus capaz de
influenciar profundamente o curso da vida dos homens, determinando às vezes seu
destino individual neste mundo (pense-se, a título de exemplo, ao orixá Obaluaié, que
pode tanto provocar quanto tirar as doenças do corpo humano), por outro ele é visto
como possuidor de características muito parecidas com as humanas: os sentimentos de
vaidade, rancor, vingança, modéstia, soberba, fazem parte dos aspectos da
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personalidade exclusiva e distintiva de cada orixá, e devem ser muito bem cuidados por
parte dos filhos e filhas-de-santo.
Comentava-se, ao interior da família-de-santo, o fato de muitos fiéis não serem
bastante zelosos para garantir uma boa disposição de seus orixás, o fato deles
simplesmente tomarem os cuidados básicos devidos dentro do axé, para depois estarem
convictos de ter cumprido com suas obrigações32 perante o orixá de forma suficiente e
satisfatória.
Comentavam os filhos-de-santo, que muitos fiéis esquecem que o orixá está
presente em cada instante de suas vidas, e que a maior tarefa a ser cumprida é a de
tomar, no seu cotidiano, uma postura adequada para que os eles fiquem satisfeitos com
elas.
De acordo com um dos meus informantes: “quando algo dá errado na nossa vida,
apesar de nós acharmos que fizemos tudo direitinho, logo pensamos que foi por causa
da má sorte, ou da ação negativa de alguém que quer que nossos objetivos não sejam
alcançados, mas, muitas vezes não é assim. Na correria do dia-dia é fácil esquecer-se de
quem mais cuida da nossa existência, tornando simples o que nos parece de difícil
alcance, ou possível o que nos parece impossível; não podemos, nem devemos esquecer
de nossos antepassados e de nossos orixás, porque são justamente eles que determinam
o bom êxito de nossos propósitos.
Se hoje algo dá errado, é porque ontem não agradamos na medida suficiente os
favores recebidos pelos santos, ou porque, quando fazemos os trabalhos para que os
orixás nos propiciem uma boa intervenção, deixamos de serem atenciosos, cuidadosos,
carinhosos; eles não perdem a ocasião de nos lembrarem que a reverência e a
recompensa pelos favores recebidos são deveres a que ninguém se pode subtrair. E –
sobretudo - é preciso respeitá-los sempre, porque muitas vezes o orixá pode chamar, de
forma traumática ou muito severa, a atenção daqueles que não o tratam devidamente.
32 Rituais e obrigações constituem dois dos principais meios para manter e reafirmar o vínculo sagrado entre este mundo e o do além, entre os homens e as divindades; neste contesto, a ascensão na carreira espiritual de um adepto do candomblé está sempre submissa ao cumprimento de obrigações que, de acordo com Cacciatore, consistem no conjunto de oferendas rituais com objetivos propiciatórios ou invocatórios às divindades, que, se não praticadas, podem trazer transtornos e sofrimento para os faltosos. Cacciatore, Olga Gudolle, 1977, “Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros”, Forense Universitária, SEEC-RJ, Rio de Janeiro
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Por isso, quando enfrentamos situações difíceis ou desagradáveis, devemos nos
perguntar se por acaso não estamos devendo algo ao nosso orixá, se faltamos em
agradá-lo, de agradecê-lo pelos favores recebidos, se não cumprimos com nossas
promessas, ou se por fim não o reverenciamos de maneira apropriada”.
As expressões usadas pelo informante, “agradar, agradecer, cumprir as
promessas”, podem ser traduzidas aqui como “quitar a dívida que contraímos com o
orixá no momento em que pedimos sua intervenção por fins pessoais”. Esta regra é tão
válida no relacionamento entre o fiel e seu orixá, quanto ao cliente e o seu pai ou mãe-
de-santo.
É o que a segunda história, a do babalorixá e o açougueiro, nos ensina: enquanto
a filha-de-santo devia uma recompensa ao próprio orixá, agora estamos em presença de
uma situação que nos mostra a obrigação da recompensa “de homem para homem”.
Também a situação em que o açougueiro se encontrou, a meu ver, traz muitos
dos indícios recorrentes em situações parecidas, que tornam-se necessários para a
compreensão da importância do pagamento e das conseqüências negativas do não
cumprimento da promessa de retribuição.
Realmente, notamos que também nesta história estão presentes elementos como
a necessidade (de um homem frente à sua péssima condição financeira); a preocupação
(trazida pela queda repentina de negócios que garantiam o sustento da família); o
recurso à proteção divina mediada pelo babalorixá; a cobrança e a sucessiva garantia de
pagamento; o não cumprimento da promessa e, finalmente, a conseqüência negativa
deste comportamento, nesta circunstância representada pelo elemento-morte como
punição máxima dada por graves faltas perante o “divino”, cujo mediador neste mundo
é representado, em nosso caso, pelo pai-de-santo.
Mesmo que partindo de perspectivas diferentes, o significado das duas histórias
é idêntico: contrair uma dívida, seja perante um orixá, seja perante um pai ou mãe-de-
santo, constitui um comprometimento do qual não é possível abrir mão, a menos que
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não se queira enfrentar conseqüências tão terríveis de resultar, de acordo com os casos
relatados, em dívidas infinitas e até mesmo a morte física.
CAPÍTULO QUARTO IV. A ESTRUTURA ECONÔMICA DO TERREIRO IV. 1 - A SOCIEDADE DOS OGÃS Dentro das hierarquias de mando nos terreiros de candomblé, um papel importantíssimo
é conferido aos ogãs33. É um cargo honorário que prevê, em suas formas mais aparentes,
envolvimentos particulares de acordo com o papel específico de cada ogã, cuja atuação
dentro do axé é considerada indispensável pelo mantimento de sua estrutura política;
não é por acaso, de fato, que os ogãs de cada terreiro são, geralmente, escolhidos entre
aqueles fiéis que têm mais intimidade com o pai ou a mãe-de-santo, ou entre os filhos
ou parentes próximos de filhos-de-santo do axé.
Os três cargos referentes aos ogãs considerados de importância fundamental para
a estrutura da família-de-santo são o de pejigã, de axogum e de alabê. A função de
33 Assim Herskovits define os ogãs: “...homens que desempenham um papel importante como consultores, protetores e auxiliares do grupo de culto e participantes de duas atividades. Aqueles que se interessam em ser um seguidor e que seguem os passos ritualísticos requeridos, devem aprender as práticas do culto e a teologia, tão completamente como qualquer outro membro do grupo (...) e podem também elevar-se na hierarquia executiva”. Herskovits, M.J, The New World Negro, in Selected papers in Afro-American Studies, ed. France S. Herskovits. Bloomington, Indiana University Press, 1966
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pejigã, (literalmente: “senhor do santuário”34) é a de guardião do peji, e suas atuações
consistem em cuidar do altar, da sua limpeza, da sua ordem; às vezes, o pejigã pode até
sugerir modificações na estrutura do peji, para torná-lo mais conforme ao prestígio da
casa, conforme Costa-Lima.
O axogum desenvolve outro papel ao interior da hierarquia executiva dos ogãs: é
ele que faz a matança de animais a serem oferecidos aos orixás e, por isso, é também
chamado de “ogã-de-faca”35. É um cargo muito importante e delicado, pois implica no
desenvolvimento de um ato extremamente simbólico e expressivo dentro do culto,
sendo que o sangue dos animais tem um papel indispensável em todos os ritos mais
significativos do candomblé. Em geral, para o cargo de axogum o chefe do terreiro
escolhe um filho de Ogum, sendo que este orixá está associado ao ferro e outros metais,
como o aço da faca usada para os sacrifícios animais.
O posto do último dos ogãs com funções determinadas é ocupado pelo alabê,
que representa um personagem de grande importância na hierarquia dos terreiros de
candomblé, pois é a ele que cabe a função de cuidar da orquestra do candomblé. A ele é
requerido o conhecimento de todas as cantigas da nação do axé, além, obviamente, dos
toques específicos para convocar cada orixá. Sua atuação realmente, é indispensável
tanto em ocasião de obrigações internas na casa, quanto nas cerimônias públicas, ambas
requerendo a necessidade da orquestra de percussionistas.
Paralelamente aos cargos acima mencionados, outra figura de destaque é
representada pelo ogã-de-sala, que assume este título honorífico para exercer as funções
de ogã que cuida da reverência que se deve aos adeptos e simpatizantes antes do início
das cerimônias públicas. A ele se deve o mantimento de bons relacionamentos entre o
pessoal do axé e seus visitantes, para que o terreiro adquira um prestigio sempre maior
graças à freqüência de pessoas “externas” à família-de-santo.
34 “Pejigã é termo de origem jeje – e o sufixo gã em fon traduz o “senhor”, “pessoa de importância”, como ogã, e é empregado em outros compostos hierárquicos de estrutura social dos fons”. Costa-Lima, Vivaldo, Ibid. 35 Costa-Lima, Vivaldo, Ibid.
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Geralmente, para ocupar este cargo, é escolhido um filho-de-santo antigo da
casa, muito próximo ao pai ou a mãe-de-santo, para que possa garantir uma boa
recepção de acordo com cada momento do ritual, desfrutando o conhecimento das
tradições e das regras da casa.
Em muitos dos terreiros pesquisados, é justamente o ogã-de-sala que cobre,
além de seu serviço durante as cerimônias, outro cargo extremamente importante e, às
vezes, fundamental, para a sobrevivência do terreiro: a de presidente da “Sociedade dos
Ogãs”. Esta sociedade cuida especificamente tanto da arrecadação de dinheiro
proveniente de doações particulares (por parte de simpatizantes, pesquisadores,
repórteres, etc.), além de “taxas fixas” a serem pagas por todos os componentes da
própria família-de-santo etc., quanto da administração destas entradas.
Mas o papel de Presidente da Sociedade, que se compõe por todos os ogãs
atuantes dentro do terreiro, não se limita apenas à arrecadação de fundos: podemos
afirmar, com certeza, que o lado mais delicado do trabalho do Presidente da Sociedade
consiste em decidir a cerca da utilização do dinheiro arrecadado. É também por esta
razão que, para decidir quem tem que cuidar de um aspecto tão delicado dentro dos
terreiros, é preciso fazer eleições periódicas, que assegurem o comprometimento do
futuro Presidente e o aval da comunidade.
Entretanto, a menos que o presidente atualmente em cargo não se recuse a
continuar desenvolvendo seu trabalho, a regra geral é a sua confirmação em cada
eleição; isso para um dúplice objetivo: primeiro, porque o presidente antigo, de acordo
com sua experiência, pode melhor enxergar as necessidades mais urgentes pelas quais
se requer investir o dinheiro; segundo, para que, posteriormente à eleição de outro
presidente, não surjam polêmicas relativas à utilização de recursos em épocas passadas,
que podem criar atritos e desavenças dentro da própria Sociedade.
Em todos os terreiros pesquisados, o Presidente da Sociedade possui uma
caderneta para anotar as despesas mensais que são necessárias para o axé, e também
para registrar as entradas, catalogando-as de acordo com o gênero. É dever do
presidente constantemente atualizar o chefe do terreiro em relação à situação econômica
em que a instituição se encontra, além de pedir sua permissão para efetuar qualquer tipo
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de despesa. A caderneta do presidente é, de regra, consultável por parte de todos os
membros da família-de-santo, para que estes possam conferir em detalhes o fluxo de
dinheiro que o axé dispõe e talvez contribuir para sua boa gestão, através de conselhos e
sugestões.
Uma das tarefas de maior responsabilidade que cabe à Sociedade dos Ogãs é
sem dúvida a de decidir o valor das taxas mensais cobradas a todos os membros do
terreiro, para que se possa contar com uma base econômica que, mesmo que modesta,
assegure o pagamento das despesas básicas para a sobrevivência do axé.
Para tomar este tipo de decisão, a Sociedade convoca reuniões periódicas através
das quais se debate em torno das possibilidades econômicas sobre as quais o terreiro
poderá contar naquele mês específico, tendo em vista o fato que raramente é possível
cobrar a mesma quantidade de dinheiro do mês anterior.
O valor da taxa mensal, de fato, costuma variar periodicamente - em geral de
mês em mês - e isto ocorre basicamente por duas razões: primeiro, porque nem todos os
membros da família-de-santo têm uma renda fixa que possa contar para contribuir com
um valor específico em benefício do axé; segundo, porque freqüentemente o terreiro
precisa arcar com custos cujos valores são imprevisíveis, como acontece, por exemplo,
em épocas de “feitura de santo”.
Nessa ocasião, os fiéis que precisam ser submetidos às várias obrigações
internas na casa de candomblé onde pretendem obter a feitura de santo, precisam
permanecer recolhidos dentro do axé por muitos dias para cumprir os preceitos que os
introduzirão a condição permanente de filhos ou filhas-de-santo. Muitas vezes acontece
que estes neófitos, por pertencerem a uma classe social desfavorecida, não tenham
condição de enfrentar gastos relativos a custodia e a alimentação de suas crianças
durante o período de ausência do próprio lar, e acabam tomando a decisão de levá-las ao
terreiro para que, o pessoal da casa cuide de suas necessidades básicas por todo o tempo
da iniciação.
Antes de tomar qualquer decisão relativa á cobrança de filhos e filhas-de-
santo, então, prefere-se pesquisar entre os componentes do terreiro e informá-los das
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atividades a serem cumpridas, para sondar qual seria o valor justo a ser cobrado, de
acordo com as necessidades individuais e as urgências do axé.
Obviamente, nem sempre o dinheiro arrecadado dentro da família-de-santo
provém da contribuição de cada um de seus membros: quando isso ocorre, o fiel que
não teve a possibilidade de doar sua parte no tempo devido, empenha-se em juntar o
dinheiro e entregá-lo posteriormente, ou, caso não possa contribuir por falta de recursos,
prestará serviços para a comunidade, sempre de acordo com as disposições do pai ou da
mãe-de-santo.
Vale dizer que a presença de uma estrutura como a da Sociedade dos Ogãs não
se encontra em todos os terreiros de candomblé; especialmente nas casas menores, onde
é mais fácil administrar os recursos econômicos, o papel da Sociedade é exercido pelo
próprio chefe, que conta com a ajuda de toda sua família religiosa para tomar decisões
relativas aos recursos arrecadados e as despesas a serem feitas.
Caso a casa de candomblé encontre-se em condições financeiras tão graves, ao
ponto de não poder garantir o desenvolvimento de suas atividades, ou, caso pior, se sua
existência estiver posta em risco, é possível lançar mão da ajuda dos assim chamados
terreiros irmãos, isto é, aqueles terreiros que participam do cumprimento do ritual de
acordo com as regras e os padrões culturais originários da mesma nação religiosa36.
Como em outros contextos sociais, também os grupos religiosos de matriz
africana tendem a entrelaçar uma densa rede de relações de amizade e ajuda recíproca,
muitas vezes tendo uma atenção especial para os que compartilham das mesmas
tradições.
O terreiro necessitado, desta forma, pode contar com um apoio financeiro
externo que permite enfrentar as despesas mais urgentes, prometendo devolver o valor
da dívida contraída assim que possível. Como popularmente, mas ao mesmo tempo
determinadamente me disse uma velha filha-de-santo, a regra comum, em caso de
36 Costa-Lima, Vivaldo, Ibid.
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necessidade de gasto de dinheiro, pode ser circunscrita ao ditado: “quem pode faz, quem
não pode pede”.
IV. 2 - O CUSTO E O SENTIDO DA OBRIGAÇÃO: A FESTA
Como todas as religiões, o candomblé também prevê a atuação de uma série de
atividades (normas, preceitos, obrigações, tarefas, rituais que constituem seu marco
distintivo) que, para serem desenvolvidas, requerem a disponibilidade de tempo por
parte de seus adeptos, uma infra-estrutura adequada e certa quantia de dinheiro a ser
investido.
É claro que nem todas as atividades religiosas praticadas pela família-de-santo
comportam o mesmo investimento: no caso das festas, por exemplo, há de que ater-se
aos padrões da nação a quem o terreiro faz parte, e cada orixá é reverenciado de forma
diferente; além disso, de um ponto de vista estritamente litúrgico, existem festas para
cuja atuação é preciso arrecadar sumas de dinheiro muito ingentes, e festas que
requerem custos inferiores.
Sendo assim, o fluxo de dinheiro que circula no axé é sempre de caráter
inconstante e variável: o volume de recursos que entram no terreiro para a realização de
uma festa é direitamente proporcional ao custo a ser enfrentado para a atuação daquela
festa específica.
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Além disso, é importante realçar que, conforme a fala de uma filha-de-santo que
entrevistei, “o dinheiro nunca sobra: se entrar certa quantia, ela toda é utilizada para
aprontar a festa; se entrar o dobro, também. Mais não pode-se deixar de fazer a festa,
mesmo se houver só um copo de mungunzá para oferecer. Festa é obrigação para com
os orixás, isto traz tanto desgaste do ponto de vista econômico, quanto coisas boas
trazidas pelos orixás”.
Vale ressaltar que o conceito de obrigação, porém, conforme Baptista37, não
responde necessariamente a uma equação direta entre o custo e o beneficio envolvidos
na relação de troca, mas se funda na ética do sacrifício, que não se sustenta, ou o faz só
minimamente, na idéia de recompensa pelos favores recebidos ou a do castigo devido à
negligência, mas sim numa etiqueta própria das relações com o universo do sagrado; é
justamente através desta ética do sacrifício que o adepto consegue evitar o infortúnio,
porque lhe é permitido reconhecer a sua relação com a divindade e, conseqüentemente,
com a comunidade que compartilha os mesmos valores.
Isto faz com que o comportamento do indivíduo em relação ao seu universo
religioso seja voltado a se preocupar constantemente com suas obrigações, para não
incorrer em desgraças que não seriam atribuíveis aos deuses, mas à ruptura dos laços
entre os fiéis e os orixás.
O cumprimento das obrigações, baseado na idéia de sacrifício, consiste num
meio de ligação entre o ser humano e a divindade através do ato religioso, onde estão
presentes uma vítima sacrifical a ser consagrada e a satisfação moral do indivíduo em
ter conseguido agradar seus próprios protetores; por isso, neste momento de troca de
favores, frequentemente nos deparamos com uma situação de “maximização da
oferenda” para os deuses, que testemunha que não existe nada melhor para provar o
nível de reverência que a abundância do sacrifício. Estar dispostos a investir recursos
para o orixá constitui, então, a principal porta de ingresso para a busca e a construção de
um elo sólido e duradouro entre mundo material e mundo do sagrado.
37 Baptista, José Renato de Carvalho, Ibid.
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Por isso, desde os meses anteriores à época das festas, a família-de-santo
costuma planejar os gastos a serem feitos naquela ocasião, e a estudar medidas de
arrecadação de dinheiro a ser investido para homenagear os orixás, tentando de todas as
formas, evitar encontrar-se numa situação de indigência no dia estabelecido para a
celebração do culto.
Vale dizer que nesta época, não é raro a família-de-santo encontrar-se em
situações delicadas e constrangedoras, que geram atritos internos relativo ao mau
planejamento dos recursos econômicos a serem investidos na festa por parte de alguns
membros da comunidade religiosa, atitude esta que acaba prejudicando o desempenho
específico no campo de trabalho, e até afetando o sistema de relacionamento entre os
indivíduos da mesma comunidade.
Testemunhei alguns episódios de acusações recíprocas de falta de
comprometimento e de responsabilidade perante esta obrigação, e cada vez que isto
aconteceu, sempre foi colocado de forma abrupta e severa, com a evidente intenção de
fazer com que o indivíduo acusado se percebesse sua falha e pudesse tentar remediar à
atitude errada que tomou. Como me disse uma filha-de-santo durante uma entrevista:
“A festa em ato é um momento de grande alegria para nós, mas seu planejamento requer
muito trabalho, é uma dor de cabeça ter que chamar alguém toda hora para suas
responsabilidades”.
Portanto, sendo a festa um dos pontos mais alto da expressão religiosa dos
adeptos do candomblé, seu planejamento e sua preparação constituem uma das
atividades mais tensas e zelosas a serem enfrentadas, e as tarefas necessárias para este
propósito são desenvolvidas com todo o cuidado e a minúcia necessária para a
administração dos recursos econômicos por parte da família-de-santo.
Obviamente, os preparativos tornam-se cada vez mais intensos durante os dias
imediatamente anteriores à festa: durante esta época, de fato, é preciso lançar mão da
disponibilidade de quantas mais pessoas possíveis para deixar o barracão pronto,
organizar as atividades da cozinha, tomar conta das roupas-de-santo, contatar os
fornecedores de toda a infra-estrutura necessária (gás, comidas, bebidas), etc.
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As energias gastas para a preparação da festa chegam a seu ápice no dia da
véspera, quando todo o pessoal da casa deve estar a completa e total disposição do pai
ou mãe-de-santo; quem não cuida das novas tarefas cobradas por ele, se encarrega de
aprimorar o trabalho desenvolvido nos dias anteriores, e cada membro da comunidade
tem um papel específico de acordo com a sua experiência, sua “idade de santo”, seu
nível nos padrões hierárquicos do terreiro.
A atividade mais trabalhosa, no dia da véspera da festa, é provavelmente a da
arrumação da cozinha para o preparo das comidas: conforme Baptista, “... a cozinha não
pára nunca. De manhã, café, fim do café, em seguida a preparação do almoço, fim do
almoço, na seqüência a preparação da janta e de uma sopa que é servida em toda
véspera de festa. Com o fim do jantar inicia-se imediatamente a preparação do café da
manhã do dia seguinte. Um ciclo interminável que se interrompe com os dias entre uma
festa e outra” 38.
A explicação de tamanha preocupação e atenção se deve também a outro aspecto
importantíssimo a ser realçado: embora o objetivo único do ritual seja o de homenagear
o santo para quem a festa é organizada, outros fatores entram em jogo a respeito da
busca da perfeição nesta atividade.
De fato, como em qualquer âmbito da sociedade, também no candomblé existem
questões ligadas à honra, ao prestigio do grupo e ao ciúme de axés “outros”; várias
vezes ouvi falar por filhos e filhas-de-santo elogios para as atividades do próprio
candomblé, especialmente se comparadas às mesmas cerimônias de outros terreiros.
Tudo isto é normal especialmente se considerarmos que a festa constitui um
exemplo do que Mauss chamou de fato social total, ou seja, um fenômeno que envolve
e compreende numa única situação instituições diferentes, cada uma com seu próprio
aspecto ético, econômico, político, social.
Também, não raro apresenta-se o caso em que os comentários referentes às
festas de outros axés consistem em críticas severíssimas não somente a respeito da
38 Baptista, José Renato de Carvalho, Ibid.
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performance ritual em si, mas também a recepção dos participantes (adeptos,
simpatizantes, turistas, filhos e filhas-de-santo de outros terreiros, etc.) por parte do
pessoal da “casa”, a oferta de comidas e bebidas, a organização da festa.
Como afirmado por uma das minhas informantes, adepta de um candomblé
Nagô da região metropolitana de Salvador: “Às vezes tem terreiros que não tem
capricho, isto a gente percebe, e os Orixás também percebem”. E ainda, referindo-se à
comida: “Camarão, por exemplo: camarão não pode comprar barato não, tem que ser de
primeira, daquele de 25 reais o quilo, para que os orixás fiquem satisfeitos; e o azeite de
dendê? Deve ser do bom, porque se alguém sair da festa passando mal, logo a notícia de
uma festa mal feita se espalha, levando o axé a cair na avaliação de adeptos, hóspedes e
simpatizantes externos”.
Isto nos leva a questionar sobre outro aspecto da vida do grupo religioso: o do
contraste entre a frugalidade que marca a vida cotidiana do terreiro (talvez não
percebida a um primeiro olhar, mas observável em poucos dias de presença no axé) e a
suntuosidade na representação das cerimônias públicas.
A realidade do dia a dia dos terreiros, as lutas constantes para um maior
reconhecimento social, as precárias condições estruturais às quais é preciso fazer frente
mesmo com tamanha falta de recursos, magistralmente descritas por Carneiro39,
refletem sem dúvida a condição de um cenário social bastante humilde e carente, mas
também a determinação do povo-de-santo em continuar e aprimorar seu próprio
exercício religioso.
De fato, mesmo perante estas dificuldades, a grande maioria dos recursos de que
se beneficiam os terreiros é investida nos dias de festa. Vale lembrar que, conforme já
asseverado, a festa constitui uma obrigação à qual não é permitido subtrair-se; por isso,
podemos considerar este momento como um elemento-chave que representa a
convergência de esforços, objetivos e ambições da comunidade de santo ao interno da
sua atividade.
39 Carneiro, Edison, Ibid.
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Logo, uma celebração da festa digna e aprimorada se traduz no resultado último
e definitivo de tanto cuidado e dedicação e, por um lado, na dúplice convicção de ter
trabalhado da forma melhor possível para homenagear os orixás, por outro na certeza da
obtenção do beneficio trazido por tamanha preocupação.
Por isso, conforme a fala de uma filha-de-santo: “O nosso objetivo é dar; dar
para o orixá. Orixá é sempre em primeiro lugar. Orixá nos dá coisa boa se nós dermos
coisa boa para ele, é como entre pai e um filho, entre dois amigos, entre dois colegas:
ninguém pode pretender de receber algo de alguém se aquele alguém não recebe nada
por nós. A moeda de troca é sempre a mesmo”.
Um dos momentos mais significativos da liturgia das festas nos terreiros de
candomblé é constituído pelo sacrifício de animais, cerimônia cuja participação é
restrita exclusivamente ao povo-de-santo; a matança dos bichos a serem sacrificados por
mão do axogum envolve um padrão rígido e uma seqüência bastante rigorosa, em que
são usadas facas especialmente destinadas a este uso, separadas das demais facas da
casa.
É nesta ocasião específica que o axogum demonstra toda sua habilidade no
exercício de suas funções e todo seu conhecimento do ritual: alguns animais, por
exemplo, não podem ser abatidos com a faca, devido à exigência do orixá ao qual é
oferecido o sacrifício; além disso, existem casos em que os animais solicitados por
alguns orixás de gosto mais sofisticados impliquem uma técnica de abatimento bastante
aprimorada, como no caso da matança de cágados, tatus, pavões, etc.
Por isso, o cargo de axogum é conferido diretamente pelo pai ou mãe-de-santo,
que colocam toda sua confiança na mão do sacrificador para que consiga agradar os
deuses a serem homenageados em cada situação particular.
Geralmente, os animais destinados ao sacrifício são patos, pombos, galinhas-de-
Angola, além dos assim chamados bichos de quatro pernas, definição que se refere aos
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animais de quatro patas, na maioria das vezes bodes, carneiros, porcos, e cabritos e
bois40.
Se fizermos um elenco dos itens e da mão de obra necessários para uma festa
que requer grande investimento de recursos econômicos, por exemplo, a de Olubaiê41,
no terreiro Ilê Axé Opô Aganju, podemos nos dar conta do enorme esforço que a
comunidade deve enfrentar para assegurar seu desenvolvimento, especialmente levando
em consideração o fato que os quitutes preparados para esta festa devem compreender
também as comidas prediletas de outros dois santos, Nanã e Oxumaré.
Acho interessante, para este propósito, relatar a lista dos animais a serem
sacrificados, e seu custo, necessários para o preparo da comida a ser oferecida em
ocasião desta festa, lista que me foi fornecida por uma filha-de-santo do terreiro acima
nomeado, situado em Lauro de Freitas.
Animais a serem sacrificados para Nanã:
• 1 cabra (80 R$)
• 8 galinhas (15 R$ cada)
• 2 Patos (15 R$ cada)
• 2 Pombos (15 R$ cada)
• 2 Galinhas-e-Angola (20 R$ cada)
Animais a serem sacrificados para Oxumaré:
40 No ato de oferecer um animal de quatro pernas, costuma-se cuidar também do seu “acompanhamento”, que consiste no sacrifício de animais de duas pernas que “calçam” as patas do bicho, ou seja, constituem seu complemento. 41A festa de Obaluaiê é sem dúvida uma das mais sugestivas e fartas do candomblé: o “banquete do rei” consiste na oferenda de vários quitutes servidos em folhas de mamona (Ricinus Comunis) tanto ao orixá quanto aos participantes. Por uma descrição mais aprofundada desta cerimônia, ver Barros, J.P.F., 2000, “O banquete do rei – Olubajé: uma introdução à música sacra afro-brasileira”, Pallas: EDUERJ, Rio de Janeiro.
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• 1 Bode (80 R$)
• 8 Galos (20 R$ cada)
• 2 Galinhas-de-Angola (20 R$ cada)
• 2 Patos (15 R$ cada)
• 2 Pombos (15 R$ cada)
Animais a serem sacrificados para Omolu:
• 1 Porco ou 1 Bode (80 R$)
• 8 Galos (20 R$ cada)
• 2 Galinhas-de-Angola (20 R$ cada)
• 2 Patos (15 R$ cada)
• 2 Pombos (15 R$ cada)
A “comida seca”:
• 8 pedras de rapadura
• gengibre
• 20 orobó
• 10 litros de azeite de dendê
• 3 kg. de feijão fradinho
• 3 kg. de milho branco
• 3 kg. de feijão preto
• 5 kg. de camarão seco
• 5 kg. de milho de pipoca
• 3 kg. de farinha de guerra
• 3 kg. de farinha de acaçá
Outros gastos a serem enfrentados, além dos para as bebidas, são os relativos à
mão de obra: é preciso, de fato, contratar cozinheiras, procurar carregadores, alugar
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meios de transporte de mercadoria (com conseqüente investimento para o combustível),
comprar gás, guardanapos, pratos e copos descartáveis, materiais de limpeza, lançar
mão de transporte particular (táxi, micro-ônibus para o transporte noturno, etc.).
Isso sem considerar o aumento do valor das contas em época de festas: o terreiro
pode ficar continuamente iluminado, especialmente no caso das festas mais longas, e
hospedar filhos e filhas de santo por vários dias, para que preparem com antecedência
tudo que for preciso para o dia da celebração.
Por esta razão, freqüentemente a arrecadação de dinheiro para este objetivo
começa bem antes da época das festas. Uma filha-de-santo que entrevistei me disse que,
no terreiro dela, a festa de Oxalá, uma das mais longas dentro do calendário das
festividades, começa a ser planejada com três meses de antecedência: “Porque temos
que enfrentar um gasto muito alto, de que não se pode abrir mão”.
As atividades dos terreiros, portanto, resultam ser bem maiores do que seriam se
as avaliássemos a um olhar superficial: se é verdade que a impressão mais marcante de
um terreiro fixa-se no momento-auge da sua liturgia, isto é, a festa, não se deve
esquecer que o seu planejamento requer cuidados e preocupações que são levadas ao
longo do ano todo, por parte do pessoal da casa.
Em épocas anteriores às festas, por exemplo, muitos filhos e filhas-de-santo
empenham-se em executar trabalhos de costura, pintura, forjamento de patuás,
amuletos, braceletes, correntes a serem vendidos para “ajudar o axé”; além disso, outros
objetos são produzidos para serem usados em ocasião de festas cuja atuação prevê,
como obrigação, o ato de entrega de um presente (geralmente um objeto pequeno, um
chaveiro, uma toalhinha com doces, um prendedor de cabelo, uma corrente, etc.) e após
sua conclusão, funcione tanto de lembrança, quanto como meio de proteção divina para
os participantes.42
42 As “lembranças de candomblé” são postas, nos dias anteriores à festa, aos pés do santo a ser reverenciado, e o povo-de-santo reza para que o orixá as abençoe e garante prosperidade para seu possuidor.
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Como se vê, a celebração desta festa implica a necessidade de arrecadação de
ingente quantia de dinheiro, cujo investimento, porém, não deve ser visto
exclusivamente como meio de obtenção de favores por parte dos orixás, mas também
como a demonstração mais imediata e evidente da estrutura econômica do terreiro de
candomblé, além de um meio para a comprovação da capacidade de mobilização de
recursos econômicos por parte da comunidade perante os espectadores “externos”.
Por isso, não devemos esquecer que a celebração da festa constitui uma porta
aberta para o mundo externo, e o pessoal da casa está completamente ciente do fato de
que um bom desempenho contribui a formar uma opinião positiva sobre as atividades da
casa aos olhos de observadores leigos que podem fazer uma propaganda positiva dos
atos religiosos ali executados.
Por esta e outras razões, a festa representa a “prova do nove” da habilidade e do
prestigio do pai ou da mãe-de-santo, tanto ao interior da própria comunidade religiosa,
quanto ao olhar atento de participantes externos.
De toda forma, é evidente a primeira vista uma diferença substancial entre os
candomblés mais estruturados e organizados, que quase sempre conseguem homenagear
os orixás de forma farta e requintada, além de prestigiar os participantes com presentes,
lembranças da festa, etc. e os candomblés mais desprovidos de recursos econômico-
estruturais, que, enfrentando situações de permanente risco de sobrevivência, nunca têm
a certeza do cumprimento de seus preceitos religiosos.
Trata-se de assunto bastante delicado, que muitas vezes provoca, por parte dos
adeptos de axés com condições mínimas de sobrevivência, queixas e reclamações
endereçadas hora aos fieis do próprio axé, hora aos dirigentes das maiores instituições
políticas, hora aos representantes de instituições e associações que cuidam da
preservação das raízes negras na cidade, etc.
Esta situação de tensão e de penúria de recursos pode chegar até ao ponto de
fazer com que o terreiro suspenda temporariamente, ou, no pior dos casos, cesse
definitivamente sua atividade; frente à gravidade desta eventualidade, é fácil entender o
porquê de tanta preocupação.
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Dentro da série de reclamações e reivindicações freqüentes que foram relatadas
pelos meus informantes, a maioria se referia aos seguintes problemas: a dificuldade de
acesso ao terreiro, que impede a visibilidade e, consequentemente, a divulgação e a
participação às cerimônias por parte de fieis e simpatizantes; a falta de interesse da
classe política e das instituições sócio-culturais perante o universo da religião afro-
brasileira, que faz com que muitos terreiros, não tendo a possibilidade de criar contatos
com seus membros, se encontrem numa posição de desvantagem no ato de reivindicar
algum benefício; a falta de possibilidade de ter garantida a sobrevivência do terreiro, por
parte das instituições, através de doações e benefits em caso de escassez de recursos
econômicos.
Mais ainda, adeptos e simpatizantes desta religião afro-brasileira destacam,
dentro do conjunto das próprias queixas e reclamações, a questão antiga da falta de
suficiente mobilização dos representantes da sociedade civil para que o culto aos orixás
deixe de ser objeto de intolerância, sobretudo entre os representantes de outras crenças
religiosas, ainda amarradas aos conceitos de “superioridade religiosa”, “superioridade
cultural”, “cultos primitivos”, “religião diabólica”, e outros julgamento de matriz
evidentemente discriminatória.
Tanto o sentimento de recusa deste tipo de postura, quanto a vontade de se tornar
vivíveis aos olhos da sociedade civil são testemunhadas pelas várias iniciativas que
continuam a ser tomadas ao longo dos anos pelos representantes dos vários terreiros,
simpatizantes, membros de entidades negras, grupos estudantis, organizações não
governamentais, etc., com o objetivo der fazer com que o povo-de-santo consiga ganhar
o respeito que merece e para melhor conscientizar a população baiana a respeito deste
assunto43.
43 A última, em sentido cronológico, destas ações de conscientização e reivindicação aconteceu na cidade do Salvador em 19 de Setembro de 2008, e foi chamada de “Alvorada dos Ojás”. Representantes de terreiros e de entidades negras cortaram em pedaços mais de três mil metros de pano, cada um simbolizando paz e utilizado no enfeite das ruas, amarrados no tronco das árvores nas principais avenidas da capital. Assim o jornal “Correio da Bahia” explica o significado da manifestação: “O ato constituiu uma resposta pacífica do povo-de-santo aos casos de intolerância religiosa que os praticantes do candomblé têm sofrido em Salvador” (“Resposta à Intolerância”, em Correio da Bahia, nr. 9481 do 20/09/2008).
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Entre o leque destas iniciativas, estão presente não somente as ações de
reivindicação de direitos iguais para os representantes de todas as religiões, mas
também as ações de divulgação do próprio trabalho e de beneficência a nível social,
como a implantação de cursos de artesanato, música, capoeira, pintura, línguas
estrangeiras, etc.
Estes cursos, direcionadas principalmente às crianças e aos adultos pertencentes
às camadas sociais mais humildes da sociedade, são ministrados, na maioria das vezes,
por profissionais membros ou íntimos da família-de-santo (isto é, prestadores de
serviços voluntário, simpatizantes do axé, pesquisadores, etc.).
No entanto, frequentemente apresenta-se o caso em que, para desenvolver
algumas das atividades acima descritas, seja necessário investir em ferramentas de
trabalho, por exemplo, instrumentos musicais, cadernos para anotações, material básico
para manipulação, etc. Nesta ocasião, é o axé que disponibiliza seus recursos para a
compra destas ferramentas, não podendo contar com a ajuda dos aprendizes.
O resultado destes atos de generosidade perante as comunidades carentes se
traduz em efeitos positivos principalmente em dois sentidos: o primeiro beneficio
trazido por estas atividades é que os alunos de tais cursos desfrutam a possibilidade de
aumentar seu nível de formação através de uma dádiva, um ato de generosidade sem o
qual muito dificilmente teriam acesso a estes meios de aprimoramento cultural; a maior
parte dos canais oficiais de demanda de formação, de fato, requer a possibilidade de
investimentos que, em nosso caso, seriam bastante onerosos se levarmos em conta a
condição sócio-econômica em que estas famílias se encontram.
A segunda conseqüência é que as crianças, que constituem o alvo principal
destes trabalhos, ficam menos vulneráveis à tentação de ganho fácil à qual estariam
submissos se não tivessem a possibilidade de se afastarem, pelo menos
temporariamente, das ruas de seu bairro, que, geralmente, sendo habitado por famílias
com condições econômicas desfavoráveis, constitui uma isca perigosíssima para o
ingresso no mundo da criminalidade juvenil.
A este respeito, quero relatar a testemunha de dois freqüentadores assíduos de
candomblé, de terreiros diferentes, que, embora não terem chegado à condição de
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filhos-de-santo, assumiram algumas obrigações para com seus orixás, e vez em quando
contribuem economicamente para seus axés, além de prestar serviços de manutenção
geral todas as vezes que for preciso e dentro das próprias capacidades.
Ambos contaram que foi graças ao trabalho social oferecido pelo povo-de-santo
que conseguiram se tornar profissionais, abrir seus próprios negócios e deixar o mundo
da criminalidade à qual estavam amarrados por não terem por trás nenhum tipo de guia
que indicasse o caminho a ser seguido para adquirir educação, consciência civil e
conscientização.
Também, como já asseverado, existe grande preocupação com a problemática da
divulgação dos próprios preceitos religiosos e do significado de duas manifestações;
para este propósito, freqüentemente são organizadas atividades culturais das mais
variadas: venda de objetos religiosos e quitutes da culinária tradicional de cada terreiro,
apresentações e lançamento de livros e documentos sobre os representantes mais ilustres
do universo religioso afro-brasileiro, caminhadas nas principais avenidas da cidade,
organizações de mesas redondas e eventos, etc.
Além disso, as freqüentes parcerias com as instituições acadêmicas e escolares
principalmente da cidade, mas às vezes também de outros estados e Países (palestras,
seminários, encontros de representantes de outras religiões, debates, etc.), onde os
representantes do povo-de-santo, enfocando aspectos específicos do próprio patrimônio
religioso e discutindo com a platéia a respeito de assuntos os mais variados,
possibilitam o entendimento da religião por parte de participantes leigos e de outras
crenças, contribuem para a criação de laços de respeito e de reconhecimento identidário
entre os representantes de diversos universos culturais.
Paralelamente a esta realidade áspera e problemática, de continua busca de
visibilidade e reconhecimento, encontramos as dificuldades e as preocupações
cotidianas para o sustento material do terreiro e, sobretudo, como já dito, para fazer com
que todas as obrigações previstas para o desenvolvimento do culto possam ser
realizadas.
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Por isso, vale lembrar de novo que o nível de legitimação e o prestigio de um pai
ou mãe-de-santo estão submissos a critérios que levam em conta não somente o grau de
conhecimento dos fundamentos de sua religião, mas também sua capacidade de
arrecadação e mobilização de recursos para festas e celebrações públicas, atividade que
se traduz em outra prova de competência e capacidade do chefe do terreiro, e em objeto
constante de discussão entre o povo-de-santo e entre os simpatizantes do terreiro em que
atua.
De fato, saber cuidar do estabelecimento de laços de amizade e intimidade com
o “mundo de fora”, ter a capacidade suficiente para manter-los ao longo do tempo,
desfrutar da maneira melhor os recursos colocados à disposição pela rede de doações,
ofertas, presentes, contribuições, etc., faz parte do conjunto das qualidades carismáticas
que determinam e mantêm o consenso que permite ao pai ou mãe-de-santo não somente
de continuar exercendo suas funções44, mas também de tornar-se cada vez mais
conhecido e apreciado mesmo em âmbitos não estritamente religioso.
44 A medida de arrecadação de dinheiro para o desenvolvimento de atos religiosos pode gerar situações de desconfiança ou até ciúme; cabe ao pai ou mãe-de-santo estabelecer um equilíbrio harmonioso entre as atitudes humanas e o universo do sagrado, às vezes a custo de polêmicas e discussões provocadas por visões diferentes relativas a este assunto específico.como explicado por Batista, “Há uma economia própria que caracteriza os gestos e as ações ligadas às coisas sagradas, que guarda largas distinções das atitudes humanas perante as coisas mundanas. Essa economia do sagrado leva os indivíduos a agirem de modo escrupuloso diante de certos fatos ou situações, seguindo uma espécie de etiqueta do sagrado, que orienta as ações, criando universos separados onde o que é de “Mammon” não pode estar misturado às coisas de Deus”. Baptista, José Renato de carvalho, Ibid., p. 102.
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CONCLUSÕES: UMA RELAÇÃO DE AJUDA MÚTUA
Ao longo da minha pesquisa de campo, procurei encontrar uma explicação,
embora obviamente parcial, do sentido assumido pelo dinheiro nas relações pessoais
entre o pai ou mãe-de-santo e seu cliente e, de forma mais geral, nas relações sociais
entre o grupo religioso e a sociedade “externa”, explorando, para este propósito, um dos
pontos mais altos da liturgia do candomblé, a festa.
Vimos como a obrigação da cobrança pelo serviço fornecido a um cliente por
parte do chefe do terreiro não pode ser vista como um ato impessoal, em que estão
envolvidos simplesmente mecanismos de demanda e oferta baseados na lógica do
dinheiro como “medida de valor” e “intermediário na troca”; em nosso caso, estamos
perante de uma situação em que o dinheiro assume significados muito mais complexos e
facetados do que geralmente estamos acostumados a considerar, significados relativos a
seu papel social como agente de preservação do relacionamento entre o universo do
sagrado e o mundo material.
A diferença mais imediata entre a visão clássica e a visão social do dinheiro
reside no fato que as transações econômicas, em nosso caso, não se realizam
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exclusivamente por meio de utilização de notas e moedas em troca de trabalho; em
outras palavras, o dinheiro não é algo indispensável pela obtenção de serviços: é
possível remunerar o fornecedor do serviço (o pai ou mãe-de-santo) através de atos e
gestos que não prevêem deslocamento de dinheiro, isto é, os conceitos de dom e de
graça, de que se lança mão em ausência de dinheiro, representam uma forma de
retribuição permeada de igual importância dentro da família-de-santo.
Por isso, abordei a relação entre o pai ou mãe-de-santo e seu cliente levando em
conta vários aspectos que entram em jogo no ato da demanda e no da cobrança,
procurando explicar que fatores como a relação filial (nos casos em que o requerente
seja filho-de-santo), a intimidade entre os dois atores sociais, o simples conhecimento
recíproco, o nível de proximidade do cliente com o terreiro, ou a mais fria relação entre
profissional e cliente, etc. jogam um papel decisivo para o estudo destas relações de
troca.
No caso de trabalhos requeridos por filhos ou filhas-de-santo, vimos que sempre
estamos em presença de fatores muito complexos e abrangentes, que não entram em
jogo nas relações econômicas entre o chefe do terreiro e seu cliente externo.
Nesta última eventualidade, de fato, o agente mediador, o pai ou mãe-de-santo,
pode tanto aceitar quanto recusar de fornecer um serviço, mas é preciso levar em conta
elementos que contribuem a reforçar ou enfraquecer o prestigio que ele goza dentro da
família-de-santo: a não aceitação de um encargo místico pode levantar suspeitas de
fraqueza ou de conhecimento limitado de funções específicas, abalando o nível de
consideração do profissional dentro do próprio grupo. Obviamente, no conceito de
remuneração está implícito o reconhecimento de aceitar a remuneração.
Se, por outro lado, o trabalho for requerido por um membro da comunidade,
estamos diante de uma situação completamente diferente: o ato místico está estritamente
ligado a um universo religioso que prevê formas de retribuição alternativas ao
pagamento em dinheiro; de fato, é comum operar uma distinção entre os fiéis que
“podem” ou “não podem” efetuar o pagamento, e esta problemática abre outra
perspectiva de questionamento: a questão relativa a quem é lícito cobrar, geralmente
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resolvida levando em conta dois fatores principais: o nível de proximidade do cliente
com o terreiro e suas condições econômicas.
Embora raramente admitida, a norma geral é que o cliente mais rico pague
também pelos trabalhos feitos para outros clientes com condições econômicas
reduzidas, mas é importante realçar que não é possível estabelecer uma regra fixa,
existindo respostas específicas conforme cada caso e cada terreiro.
De toda forma, nunca é possível evitar a obrigação de retribuição pelo trabalho
do pai ou mãe-de-santo; mesmo não tendo recursos a serem investidos em troca de
serviços religiosos, o cliente estará submisso a uma retribuição em forma de prestação
de serviços os mais variados para a comunidade, cujo nível de responsabilidade e
dificuldade é estabelecido de acordo com os mandamentos do chefe do terreiro.
É aqui que entra em jogo mais evidentemente a questão de ajuda mútua nas
relações de troca: a forma de pagamento não se traduz em simples compra de um
serviço, mas numa contrapartida obrigatória dos benefícios recebidos, que garante o
equilíbrio nas relações do individuo com o universo do sagrado45.
O fornecimento de serviços sagrados, tanto recebidos pelo trabalho do pai ou
mãe-de-santo, quanto diretamente dos orixás, e sua retribuição constituem então o meio
através do qual é possível apertar os laços entre os indivíduos e seus santos protetores,
num mecanismo de troca em que nenhuma das partes ganha nem perde mais do que a
outra, mas ambas se fortalecem e re-geram continuamente graças à responsabilidade do
cuidado recíproco entre elas.
Isto nos leva a refletir sobre o caráter da participação do filho ou filha-de-santo
em relação a seu terreiro: cada ato de contribuição e de participação nas atividades do
axé está sempre submisso a uma ética do sacrifício, em que é possível notar a dimensão
do agradecimento pelos benefícios trazidos pela atuação do sagrado através do volume
45 De acordo com Bastide, cada vez que efetuamos um pagamento para a obtenção de favores por parte dos orixás, “... isso não é compra, é a contrapartida obrigatória do excesso de ser, de força, de vida que em troca recebemos. E mesmo essa palavra troca não convém muito aqui, porque se manipula o sagrado e essa manipulação necessita de um equilíbrio de forças na atuação; o que chamamos de troca não é, no fundo, mais que o equilíbrio de forças e a prova está em que não é, em geral, o dinheiro que intervém, mas a troca. (...) Não há lucro, busca de vantagem, vontade de receber mais do que se dá. O equilíbrio nunca é perturbado. Bastide, Roger, “Religiões Africanas no Brasil”, Pioneira, São Paulo, 1971 (p. 318).
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das ofertas, especialmente em ocasião das festas, onde “o ethos ostentatório atinge seu
paroxismo” (Baptista, 2002).
É justamente através do estudo das festas que percebemos qual é o nível de
apego da família-de-santo com seus deuses protetores: a festa constitui o demarcador
entre austeridade da vida cotidiana no axé e a fartura às vezes esbanjadora de sua
atuação, como forma de deferência e agradecimento pelos favores obtidos: em outras
palavras, os fiéis se esmeram na atuação de sinais de reverência e de gratidão porquê é
isto que lhes dá a garantia da proteção divina.
No ato da obrigação, vale o principio de que quanto mais é dado, mais é
recebido, seja com referência à relação filial entre o pai ou mãe-de-santo ou o orixá e
seu filho, quanto à relação mais “anônima” entre o chefe do terreiro e seu cliente
ocasional, não comprometido com os preceitos da religião, porém cuidadoso em quanto
ao cumprimento dos mandamentos dos agentes mediadores do sagrado.
Além disso, reforcei o conceito de festa como “fresta para o mundo externo”,
como ocasião para a demonstração, por parte do pai ou mãe-de-santo, de sua capacidade
de arrecadar e mobilizar recursos, levantando seu prestígio e garantindo a prática do
exercício de autoridade sobre a comunidade.
A habilidade na administração de recursos, o manuseio com critério e sabedoria
do dinheiro arrecadado, de fato, significa por um lado a possibilidade de fazer e desfazer
laços de proximidade com os participantes externos, por outro a de fortalecer ou
afrouxar os vínculos preexistentes com o pessoal da casa, sempre visando um melhor
desempenho na prática de atividades não exclusivamente religiosas, mas também
beneficência, todas apreciadas pelos orixás e garantidas pelo seu apoio.
Por isso, paralelamente a realização de rituais previstos pela liturgia do
candomblé, achei necessário destacar a pratica comum, dentro da comunidade religiosa,
de atuação de trabalhos de inclusão social e de aprimoramento profissional, investindo
em recursos estruturais e instrumentais, para que a comunidade possa por um lado
estabelecer laços de solidariedade perante sujeitos carentes e com poucas possibilidades
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de desenvolvimento pessoal, por outro ganhar visibilidade aos olhos da sociedade
“externa”.
Neste trabalho procurei, então, investigar o sentido da retribuição e as formas
possíveis de sua atuação, de acordo com uma linha teórica de estudo que fugisse dos
padrões clássicos de referência, quase sempre descritores de uma realidade fria e
baseada meramente no cálculo de interesses entre o fornecedor do serviço e seu cliente,
e que levasse em conta as idéias de dom, de graça e de fortalecimento dos elos que não
somente unem os indivíduos de uma mesma comunidade religiosa, mas que também
representam uma ligação mística entre este mundo e o além.
Por isso, é minha convicção que o significado último da retribuição não pode ser
visado nos termos exclusivos da objetivação, mas sobre tudo tanto como um ato
produtivo a nível social e sociológico, gerador de atenções particulares e impregnado de
características e nuances peculiares de acordo com cada caso específico, quanto como
meio de estabelecimento, expansão e até ruptura das relações humanas à qual está
submisso.
Dentro dos limites e das imperfeições “fisiológicas” de um trabalho quase
pioneiro, tentei implantar uma investigação sobre o significado último da retribuição
nas relações de troca no candomblé através de minha participação às atividades dos
terreiros pesquisados, além de um estudo de materiais bibliográficos referentes à visão
cosmológica dos adeptos da religião; isto fez com que pudesse perceber que a idéia de
remuneração está presente em mitos, lendas e contos de episódios que tem por
protagonistas tanto as relações entre orixás, quanto as entre eles e seus filhos.
Procurei também sustentar minhas considerações com o relato de episódios
realmente acontecidos na cidade do Salvador, que nos fornecem a comprovação do
caráter de obrigatoriedade da remuneração na vida material dos personagens envolvidos
em atividades religiosas.
O resultado foi a obtenção de dados, elementos e testemunhas que, com certeza,
merecem um aprofundamento das questões levantadas, e que podem nos fornecer outras
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perspectivas de estudo e reflexão a cerca de um assunto tão delicado e, muitas vezes,
revestido de caráter marcadamente particular.
Por isso, não quis abordar este trabalho em termos de absolutização do objeto de
estudo e seu significado último, nem chegar a conclusões definitivas a respeito dos
vários assuntos tratados, mas tentar abrir uma brecha para novas análises e
interpretações que estimulem a reflexão sobre um dos aspectos mais obscuros e
controversos da religião afro-brasileira como o do significado material e místico de
termos como “obrigação”, “dinheiro”, “pagamento”, retribuição”, etc. que aparecem nas
relações econômicas dentro família-de-santo.
É neste sentido que espero que este trabalho possa constituir uma contribuição,
embora naturalmente parcial, para os estudiosos de ciências sociais; além disso, espero
que possa significar um estímulo para que seja possível estabelecer e incentivar um
diálogo mais abrangente com outras tradições religiosas, de modo que possamos nos dar
conta da importância da análise dos os diferentes contextos em que se realizam relações
de troca e de como elas acabem determinando modelos comportamentais tão
importantes de resultar em garantia da sobrevivência material do grupo religioso.
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