Temtica Livre Artigo original DOI - 10.5752/P.2175-5841.2011v9n23p839
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Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 839
O ensino do religioso e as Cincias da Religio Teaching of the religious and Sciences of Religion
Faustino Teixeira
Resumo
Tendo em vista o amplo debate que divide a opinio de pesquisadores hoje no Brasil em
torno da complexa questo do ensino religioso na escola pblica, este artigo busca situar o tema na perspectiva das cincias da religio. Busca-se apontar a possibilidade de um aporte singular desse novo campo disciplinar no ensino do religioso. Sem cair num proselitismo problemtico, busca-se mostrar a pertinncia e plausibilidade de uma reflexo
que favorea a aproximao e o conhecimento por parte dos alunos das distintas
manifestaes do fenmeno religioso, bem como das plurais opes espirituais em curso no cenrio mundial. Trata-se de uma aproximao que vem enriquecida com a dinmica
transversal e multidisciplinar das cincias da religio, movida tambm por uma distinta
sensibilidade ao mundo do outro e da perspectiva dialogal, de forma a superar a dinmica das afirmaes identitrias e a buscar com sinceridade e abertura, o respeito e o
aprendizado diante do patrimnio religioso do outro.
Palavras-chave: Educao; Ensino Religioso; Cincias da Religio; Pluralismo.
Abstract
Taking into account the wider debate that involves opposing views of researchers in Brazil
on the complex issue of religious education at public schools, this essay situates this thematic from the standpoint of sciences of religion. This article reflects on the possibility
of a singular approach to this new problematic concerning the religious education in public schools. It is necessary to show the possibility of a reflection that helps students to
learn about different manifestations of religious phenomenon, as well as the plurality of religious spiritual experiences nowadays available, without falling in a questionable
proselytise. This experience can be enriched by transversal and multidisciplinary
approaches in sciences of religion. This means to take a dialogic perspective with a special sensibility to the others worldview in such a way that allows us to overcome the tendency to affirm ones own identity rather than the identity of the other. In this way, we are sincerely open to respect the religious experience of the other.
Key-words: Education; Religious Education; Sciences of Religion; Pluralism.
Artigo recebido em 04 de outubro de 2011 e aprovado em 30 de novembro de 2011. Nota do Editor: O presente texto retoma verso reduzida publicada em TEIXEIRA, Faustino. Cincias da Religio e ensino do religioso. In: SENA, Luzia (Org.). Ensino religioso e formao docente. 1 ed. So Paulo: Paulinas, 2006. p 63-77. A verso completa do texto, com novas notas, referncias e uma concluso,
tornam sua publicao e seu registro importantes para a acessibilidade ao tema e o seu debate. Doutor em Teologia (Gregoriana Roma), Professor do Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio PPCIR, UFJF. Pesquisador do ISER. Pas de origem: Brasil. E-mail: [email protected]
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Introduo
H em curso hoje no Brasil um acirrado debate em torno da questo do ensino
religioso nas escolas pblicas. um tema extremamente complexo, que envolve uma srie
de variantes para sua abordagem equilibrada. No h como trabalhar essa questo
desconsiderando as conquistas republicanas do Estado Laico, sobretudo a liberdade
religiosa; bem como o reconhecimento de uma afirmao cada vez mais decisiva da
pluralidade religiosa no pas. O Brasil vem passando por importantes mudanas no campo
religioso nestas ltimas dcadas, e isso recondiciona o tratamento da questo do ensino
religioso. H aqueles que insistem na defesa de um ensino religioso confessional nas
escolas pblicas, com garantias do controle doutrinal dos contedos a serem ministrados e a
seleo reservada de seus docentes; e outros que defendem um ensino religioso no
confessional, a ser ministrado por docentes que manifestem conhecimento adequado e
amplo para abordar a histria das religies, suas bases antropolgicas e a fora espiritual
das religies, enquanto inspiradoras de prticas alternativas e conferidoras de um
fundamental horizonte de sentido para as pessoas1 (GIUMBELLI; CARNEIRO, 2004). A
crescente afirmao do campo de estudos em cincias da religio hoje no Brasil vem,
certamente, favorecer uma importante ampliao de visada do fenmeno religioso, de
capacitao de profissionais instrumentados para essa reflexo especfica e de contribuio
efetiva para o enriquecimento pedaggico nesta delicada e fundamental rea. E isso revela-
se novidadeiro num pas onde o estudo mais objetivo da religio enfrentou tanto o
preconceito positivista das tradicionais instituies de ensino como sua desqualificao por
parte de segmentos eclesiais, concentrados na valorizao quase exclusiva dos estudos
teolgicos. O objetivo deste breve artigo situar para o leitor o campo das cincias da
religio, as nfases e desafios presentes nessa rea acadmica, bem como algumas de suas
possveis contribuies para o ensino do religioso.
1 Tendo como referencia o debate realizado no estado do Rio de Janeiro, essa questo foi amplamente apresentada no estudo realizado pelo Instituto de Estudos da Religio (Iser).
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1 Uma rea acadmica em afirmao
As cincias da religio vm se firmando cada vez mais no panorama acadmico
internacional e nacional. Trata-se de campo disciplinar marcado por uma estrutura dinmica
e aberta, cujo estatuto epistemolgico permanece ainda em processo de definio. Como
assinala Luis Felipe Pond, no h ainda nesse campo uma estabilidade epistmica
constituda, o que reflete a instabilidade histrico-filosfica da prpria gnese das
chamadas 'cincias do esprito', ou 'cincias humanas', ou 'cincias da cultura' (POND,
2003)2 As cincias da religio nascem no terreno da modernidade filosfico ps-
cartesiana, e no mbito desta modernidade que se firmam seus pressupostos
epistemolgicos (VAZ, 1992, p. 106).
Em mbito europeu e norte americano, as cincias da religio j gozam de
estabilidade e reconhecimento mais definidos. A gnese da cincia da religio remonta ao
final do sculo XVII e incio do sculo XVIII, no clima de afirmao do desmo e do
iluminismo. Mas sua institucionalizao, propriamente dita, se d no sculo XIX, com a
criao da primeira ctedra da rea na Sua, em 1873. Posteriormente, esse campo de
estudos foi se firmando em outros pases como Holanda, Frana, Blgica e Alemanha
(PYE, 2004, p. 26).
Talvez em razo da indefinio epistmica das cincias da religio, ou decorrncia
de sua dinmica multifacetada, esse campo acadmico ganha perspectivas diferenciadas. Na
Gr-Bretanha e Estados Unidos privilegia-se falar em estudos da religio (religious
studies), indicando o acento na variedade das abordagens e uma perspectiva de abertura
reflexiva. Na Alemanha, h uma preponderncia do singular: cincia da religio
(Religionswissenschaft), e uma tendncia crescente em favor da autonomia de seu perfil,
com respeito aos influxos da teologia e da fenomenologia. E tambm a disposio de uma
orientao mais emprica, sob as normas das cincias sociais. Na Frana e Itlia fala-se em
cincias religiosas e histria das religies, de forma a privilegiar a perspectiva de
2 Ver tambm: Vaz (2002). Esse autor fala da cincia das religies como um dos ramos das cincias humanas de contornos ainda indefinidos.
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abordagem histrica dos grandes sistemas religiosas e os enfoques temticos e
comparativos das principais correntes religiosas da humanidade (PYE, 2004, p. 12-17).
No Brasil, a perspectiva dominante a das cincias da religio, ou seja, um campo
de estudos marcado por multidisciplinaridade, tendo como objeto a religio. Mas h
tambm controvrsias a respeito. H aqueles que defendem a cincia da religio, no
singular, no s para marcar sua autonomia disciplinar mas tambm para indicar a
necessidade de um mtodo unificador. E outros que defendem a nomenclatura no plural,
cincias da religio, para enfatizar o seu carter pluridisciplinar e a riqueza da
diversidade metodolgica (CAMURA, 2003, p. 139-155). O que se verifica um esforo
cada dia mais crescente de somar esforos em favor do aperfeioamento da compreenso
do fenmeno religioso em toda a sua pluralidade. O aluno de cincias da religio tem a rica
oportunidade de ampliar o seu conhecimento do fenmeno religioso com os aportes
diferenciados das vrias disciplinas, sem que isso implique o distanciamento de uma
perspectiva especfica que escolheu para firmar sua formao acadmica (seja na rea de
estudos comparados das religies, de cincias sociais da religio, de filosofia da religio
etc.)3. H hoje no Brasil um nmero significativo de cursos de ps-graduao em cincias
da religio recomendados pela Capes, que chegam a ultrapassar o nmero dos cursos de
ps-graduao em teologia tambm recomendados por essa agncia de fomento4. No
campo das cincias da religio existem atualmente no Brasil dez cursos recomendados,
sendo sete em universidades privadas5 e trs em universidades pblicas6.
3 Trata-se de uma peculiaridade das cincias da religio a abertura ao aporte de distintas disciplinas que se inserem no mbito das cincias humanas, mas concentradas no fenmeno religioso. Os alunos de cincias da religio tm a rica oportunidade de aprofundar seu conhecimento especfico com um domnio maior sobre o fenmeno religioso (OLIVEIRA, 1995, p. 106-107). 4 Com base na avaliao trienal de 2010, eram seis as Instituies de Ensino Superior com cursos recomendados de teologia: Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia (BH Mestrado e Doutorado, com nota 6); Escola Superior de Teologia (RS Mestrado e Doutorado, com nota 6 e um Mestrado Profissional, com nota 4); Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (RS Mestrado, com nota 4) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (RJ Mestrado e Doutorado, com nota 5); Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PR Mestrado, com nota 3); Centro Universitrio Assuno (SP Mestrado, com nota 3). 5 Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP Mestrado e Doutorado, com nota 5); Universidade Metodista de So Paulo (Umesp Mestrado e Doutorado, com nota 5); Pontifcia Universidade Catlica de Gois (UCG Mestrado e Doutorado, com nota 4); Universidade Catlica de Pernambuco (Unicap Mestrado, com nota 3); Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM Mestrado, com nota 3), Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC-MG Mestrado, com nota 3); Faculdade Unida de Vitria (FUV Mestrado Profissional, com nota 3). 6 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF Mestrado e Doutorado, com nota 5), Universidade Federal da Paraba (UFPB Mestrado, com nota 3) e Universidade do Estado do Par (UEPA Mestrado, com nota 3). O Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio da UFJF (PPCIR) foi pioneiro em universidade pblica, tendo sido criado em 1991. H que registrar que o departamento de cincia da religio da UFJF nasceu em 1969, tendo sido o primeiro do Brasil a
oferecer um curso de graduao em cincias da religio, na dcada de 1970.
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2 A diversificao do leque de abordagens
Ao longo de sua trajetria, as cincias da religio enfrentaram crises e
redimensionamentos visando ao seu aperfeioamento metodolgico. No nada simples a
tarefa de aproximao do fenmeno religioso e de sensibilizao para a diversidade de suas
abordagens. Como assinalou Luis Henrique Dreher, a marca do estudioso da religio , em
primeiro lugar, isso: o fato de que lida com um objeto de estudo extremamente complexo,
que exige uma formao multifacetada e que resiste a simplificaes (DREHER, 2001, p.
155). Tomando como base a experincia do programa de ps-graduao em cincia da
religio da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR-UFJF), h que reconhecer, apesar
do programa se definir no singular (cincia da religio), a vigncia de uma
polimetodologia e pluridisciplinaridade, tomando as expresses utilizadas por Luis
Dreher em artigo j citado. Isso no significa ausncia de exerccios efetivos de
interdisciplinaridade7, que acontecem em momentos pontuais do processo acadmico dos
alunos, como o caso dos exames de qualificao e seminrios onde as reas se conectam.
Mas de fato, o que se verifica a presena de um campo disciplinar marcado por um
pluralismo metodolgico.
O objeto de estudo das cincias da religio o fenmeno religioso em toda a sua
complexidade. Mas o modo de captar este fenmeno segundo as diversas disciplinas que
compem esse campo tem seus matizes diferenciados. H, por um lado, as disciplinas mais
especulativas, como a filosofia da religio e a teologia da religio, e outras mais positivas e
empricas, como a fenomenologia da religio8, a histria das religies, o estudo comparado
das religies, a psicologia da religio e as cincias sociais da religio (antropologia e
sociologia) (Cf. CANTONE, 1981, p. 5-9).
No mbito da reflexo sobre o tema h determinados autores que impem
resistncias insero da teologia e filosofia da religio no campo das cincias da religio,
em razo da peculiaridade de seus mtodos, mas, sobretudo, em funo da compreenso
7 Mas Luis Dreher chama a ateno, com razo, para os custos epistemolgicos altos que envolvem um tal exerccio interdisciplinar, o que leva os alunos a preferirem permanecer nos limites fixados por suas cincias estabelecidas (DREHER, 2001, p. 172-173). 8 H, porm, controvrsias quanto caracterizao da fenomenologia da religio. Em estudo sobre o tema, Antnio Gouva Mendona busca sublinhar a filiao filosfica dessa disciplina (MENDONA, 1999, p. 65-89).
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redutora das cincias da religio como empreendimento estritamente emprico
(USARSKI, 2001; FILORAMO; PRANDI, 1999). A resistncia contra a teologia advm de
uma compreenso problemtica do atesmo metodolgico das cincias da religio, ou seja
de um temor contra possveis ingerncias das motivaes de ordem religiosa na
abordagem objetiva do fenmeno religioso. Sem desconhecer a peculiaridade do lugar da
teologia nas cincias da religio, h que reconhecer os grandes avanos que vm ocorrendo
na compreenso da teologia como cincia hermenutica, que leva profundamente a srio a
historicidade no s das expresses escritursticas como tambm dos enunciados
dogmticos. No h como desconhecer hoje a dinmica de cientificidade que anima o
mtodo teolgico, que recorre, necessariamente, s contribuies do mtodo histrico, da
lingustica e da sociologia do conhecimento para a afirmao de seu sistema de
interpretao. E isso ocorre de forma muito particular no campo da teologia das religies.
Na viso de Claude Geffr,
[...] o telogo das religies deve absolutamente recorrer s mais asseguradas
concluses da cincia das religies, de seus enfoques histrico, antropolgico,
lingustico, sociolgico, psicolgico. Trata-se de uma necessria ascese que a
protege dos riscos das aproximaes prematuras e recuperaes facilitadoras. A
este respeito a teologia est submetida s mesmas exigncias que a
fenomenologia das religies que postula muito rapidamente uma essncia comum
subjacente infinita diversidade das formas religiosas (GEFFR, 2006, p. 138)9.
No campo especfico da teologia das religies, firma-se a importncia do recurso ao
mtodo comparativo para favorecer a superao de uma perspectiva apologtica que
dominou o campo teolgico at recentemente e a criao de condies para o
reconhecimento de um pluralismo religioso de direito ou princpio, ou seja, a abertura de
espao para o reconhecimento da positividade das religies no plano salvfico de Deus. Em
lugar de ser uma fase histrica provisria, o pluralismo religioso consolida-se como uma
expresso mesma da vontade de Deus, que necessita da diversidade das culturas e das
religies para melhor manifestar as riquezas da Verdade ltima (GEFFR, 2006, p. 137).
9 Mas Geffr (1997) tambm acrescenta o papel crtico da razo teolgica com respeito ao risco de positivismo ou reducionismo presentes em certas abordagens do fenmeno religioso vigentes nas cincias humanas.
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3 Uma tendncia em curso: o acento no carter emprico do fenmeno religioso
No processo de sua afirmao histrica, houve um momento determinado em que as
cincias da religio, para demarcar uma nova dinmica, deixaram-se orientar pelas normas
das cincias sociais. No que isso tenha sido uma generalidade, mas um dado que ocorreu
em espaos importantes de sua presena, como, por exemplo, na Alemanha. (USARSKI,
2001). A nfase recaiu sobre o carter emprico das cincias da religio, para inclusive
demarcar uma distncia com respeito aos procedimentos habituais da fenomenologia da
religio. Recorreu-se, assim, ao importante aporte das formulaes tericas dos fundadores
da sociologia. De fato, todos os grandes clssicos da sociologia confrontaram-se com a
anlise do religioso e esta anlise ocupa, amide, um lugar no negligencivel no conjunto
de suas obras (HERVIEU-LGER; WILLAIME, 2001, p. 2). Mas ao recorrer a esse
aporte, veio tambm na bagagem o atesmo metodolgico (PRITCHARD, 1986, p. 11-
19)10
. A teoria sociolgica da religio, no mesmo ritmo das disciplinas empricas, trabalhou
sempre o tema da religio sub specie temporis, ou seja, enquanto uma projeo humana
(BERGER, 1985, p. 186). A ateno concentra-se na religio enquanto fenmeno social,
sem indagar o que ela poderia significar sub specie aeternitatis11. E para poder favorecer
a compreenso desse aspecto social presente no fato religioso, recorreu-se ao atesmo
metodolgico, ou seja, suspenso provisria das opinies pessoais do investigador
acerca da existncia e da ao dos seres sobrenaturais, no deixando que tais opinies
penetrem na investigao cientfica com a funo de critrios. Como acentuou Otto
Maduro (1981, p. 46), fazer sociologia da religio ver e estudar as religies (todas da
mesma maneira) como fenmenos sociais. Vale dizer, como fenmenos socialmente
produzidos, socialmente situados, limitados, orientados e estruturados, e com uma
influncia sobre a sociedade em que se encontram.
10 Vale registrar, como lembrou Evans Pritchard, uma tendncia agnstica e positivista entre importantes socilogos e antroplogos contemporneos, entre os quais Frazer, Radcliffe-Brown e Malinowski. E a tendncia predominante no
tratamento dado por eles religio consistia em consider-la uma superstio para a qual era necessria e podia ser oferecida alguma explicao cientfica (PRITCHARD, 1986, p. 11-19). 11 E esse um dado que provoca a resistncia de certos telogos, para os quais o estudo do fato religioso 'de fora' no proporcionaria o acesso verdade religiosa, sendo sua nica porta de entrada a experincia da f (MIRANDA, 2002, p. 12-13).
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Enquanto defensor de uma perspectiva emprica da cincia da religio, Frank
Usarski sustenta uma posio alternativa vigente na fenomenologia da religio, que a seu
ver, aproxima-se do mundo religioso emprico de forma dedutiva e no indutiva12
. Associa-
se a determinados representantes que defendem um paradigma alternativo, em que se
destaca a necessidade de um depsito amplo de conhecimentos empricos sobre o maior
numero possvel de religies singulares como um pr-requisito de uma obra comparativa.
E essa sistematizao no transcende a esfera racional por meio da suposio de uma
dimenso extraemprica da vida onde todas as manifestaes religiosas concretas
encontram sua ltima instancia (USARSKI, 2001, p. 92-93).
4 A emergncia de novos desdobramentos e horizontes
a. O questionamento de certo atesmo metodolgico
O debate em torno do campo de abrangncia das cincias da religio vem hoje
enriquecido com reflexes significativas que acontecem no mbito da antropologia,
filosofia e fenomenologia da religio. Trabalhos recentes vm advertindo os pesquisadores
para a captao de uma originalidade irredutvel do fenmeno religioso e a essencial
abertura para a dinmica da interdisciplinaridade. Como apontado em outro trabalho,
[...] trata-se de um estudo do fenmeno religioso, considerado em toda a sua
complexidade e que no descarta a singularidade e especificidade do "religioso"
presente no fenmeno, uma condio imprescindvel para o conhecimento e a
apreciao verdadeiramente objetiva do mesmo. Para avizinhar-se ao mundo das
religies, necessrio superar o velho "preconceito racionalista"; para alm de
um simples fair play, exige-se uma "verdadeira aptido religioso-experiencial",
uma capacidade de sintonia com o corao da religio, uma ateno sua
especificidade mais autntica (TEIXEIRA, 2001, p. 317).
O nus da herana de uma tradio objetivadora na antropologia vai ser
problematizado por Otvio Velho em artigo sobre a contribuio da religio para as
cincias sociais. Sem desconsiderar as vantagens que acompanham o cuidado da
objetivao, este autor assinala a absoluta impossibilidade de manter uma tal perspectiva
de mera observao num campo complexo como o do estudo da religio. Assinala o
importante desafio de aperfeioamento do ouvido musical para a religio, e isso implica o
12 Esse autor opta pela designao no singular e no no plural.
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exerccio de uma ousadia nem sempre contemplada benignamente pelos cientistas sociais
mais tradicionais. Uma ousadia que pode ser traduzida pelo esforo de empatia em favor
de uma nova e rica ao comunicativa com os nativos (VELHO, 2001, p. 234-239)13. Em
semelhante linha de reflexo, Rita Segato relativiza o discurso racional da antropologia,
sobretudo no que tange sua aproximao da temtica religiosa. Para essa autora, h que
questionar o trao reducionista que marcou o recorte clssico da teoria da interpretao, que
teria sacrificado uma parte da verdade dos seres humanos retratados nos relatos
etnogrficos. Em casos concretos, tais prticas interpretativas acabaram perdendo de vista
ou mesmo censurando as evidncias que falam de um horizonte ntimo em que ocorre a
experincia humana do transcendente (SEGATO, 1992, p. 114)14. Ainda no campo das
cincias sociais, Pedro Ribeiro de Oliveira aborda a complexa questo da relao entre o
discurso cientfico e o discurso nativo. Ao buscar responder sobre a importncia ou no da
maior aproximao do observador ao grupo a ser estudado, Oliveira assinala vantagens
numa observao que busca maior neutralidade, mas tambm aponta para o risco do
reducionismo. Mostra ser indispensvel ao observador que busca estudar uma religio, o
entendimento de uma linguagem que por metforas e analogias, fala de experincias,
emoes e sentimentos profundos. Para aquele que estuda de fora a experincia como
se lidasse com uma lngua estrangeira, necessitando, assim, de uma traduo, que nem
sempre pode ser fiel. Por sua vez, o risco de quem tem mais familiaridade com o grupo
estudado o de introduzir categorias religiosas no discurso cientfico. Mas diante dessas
duas possibilidades, Oliveira prefere correr o risco da contaminao num conhecimento de
boa qualidade cientfica, do que, de tanto precaver-se contra as interferncias da religio,
no ir alm de trabalhos acadmicos sem qualquer importncia prtica (OLIVEIRA,
1998a, p. 15).
13 O autor recupera em seu artigo a posio de um antroplogo indiano, T. N. Madan, para o qual o antroplogo, ao invs de manter-se como um simples observador deve correr o risco de perder as amarras intelectuais para recuper-las num outro nvel (VELHO, 2001, p. 241). Em outro texto, o autor prope uma antropologia apoftica, que convida atitude de colocar entre parnteses o conhecimento intelectualista prvio, para poder favorecer uma nova familiaridade com o objeto a ser captado em campo, de modo a resguardar o impacto do acaso, da surpresa e da imprevisibilidade. E assinala:
o reconhecimento do outro no pode ser apenas intelectualista e que se assim o for, corremos o risco de a nossa atividade ser atingida no que ela tem de mais precioso (VELHO, 2005, p. 4-9). 14 No h como deixar margem na anlise antropolgica a autoconscincia do ncleo a ser estudado. o que aponta Pierre Sanchis (1998, p. 41) em artigo que aborda, entre outras questes, o tema do dialogo dos antroplogos com os telogos.
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Partindo de uma reflexo epistemolgica, Luiz Felipe Pond levanta decisivos
argumentos contra o posicionamento do atesmo metodolgico, que para ele revela-se
problemtico em termos de consistncia. Em razo de uma postura marcada por uma
espcie de contgio, definido como horror do invisvel, esse procedimento
metodolgico acaba justificando no uma perspectiva de neutralidade objetiva, mas de
militncia antirreligiosa. Como mostra Pond,
[...] o "atesmo metodolgico" tem pavor de adentrar uma regio da experincia
interna humana que simplesmente desconhece, ainda que se diga especialista
nela. No seria a no experincia do "tato religioso" um caso particular e
culturalmente recente de uma "misria" da cognio? (POND, 2001, p. 57)15 .
Na viso de Pond, o argumento que sustentaria um tal procedimento metodolgico,
ou seja, a excluso apriorstica da 'substncia' religiosa seria uma postura
essencialmente antirreligiosa na qual seria trada uma viso da experincia e vida religiosas
como algo necessariamente danoso para a vivencia racional e 'cognitivamente' emancipada
do ser humano [...] (POND, 2001, p. 54 -55).
Em favor de uma compreenso mais integral do fenmeno religioso posicionam-se
autores da rea de fenomenologia da religio, para os quais urge recuperar e valorizar
outras dimenses da razo que no conseguem ser apreendidas ou reconhecidas pelos
aportes de uma restrita racionalidade cientfica. Como indica Giovanni Magnani, no s
no mbito da fenomenologia da religio, como tambm nos campos da psicologia,
sociologia e antropologia da religio toma-se cada vez mais distncia de posicionamentos
reducionistas. E aponta como uma das tarefas singulares da fenomenologia histrico-
comparada a de desbastar o campo dos preconceitos que obstaculizam a anlise objetiva
do fenmeno religioso (MAGNANI, 1999, p. 147).
b. Uma nova aproximao do fenmeno religioso
Apesar de reconhecer que o tradicional princpio regulador no contrato
epistemolgico das cincias da religio recuse o contedo do tato religioso, h que
sustentar com pertinncia a plausibilidade de uma aproximao distinta com respeito ao
15 O autor continua sua provocante interrogao: Ser que a misria de nosso 'tato religioso' ocidental no poderia mudar de registro epistemolgico e passar a ser demanda de mitigao da misria cognitiva dos 'sem tato'? (POND, 2001, p. 57).
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fenmeno religioso, que inclua uma sensibilidade nova. No h como enriquecer a
cognio desse fenmeno complexo descartando a priori o tato religioso. Tem razo
Pond ao indagar sobre o significado da ausncia de um exerccio em favor dessa
aproximao. No poderia revelar, na prtica, uma carncia epistemolgica altamente
prejudicial quando no letal? (POND, 2001, p. 55).
As indagaes levantadas por Pond resultam tambm de suas pesquisas na rea da
mstica, considerada um ncleo duro da experincia religiosa. Nesse mbito, revela-se
fundamental o toque da experincia, de um saber que experimentado. Os relatos
msticos falam da presena de um livro da experincia cujo acesso s revelado para
aqueles que se dispem a um movimento distinto de aproximao. Como fala Bernardo de
Claraval, a inteligncia humana no compreende nada alm, seno mediante o
aprendizado da experincia (CHIARAVALLE, 1996, p. 230). Pond chama, assim, a
ateno para este dado, sinalizado pelos msticos, do primado da experincia para o
conhecimento, e esta experincia mstica um evento do 'tato interno' da religio
(POND, 2001, p. 57)16
. H que registrar, no mbito das cincias da religio no Brasil, a
crescente afirmao dos estudos, dissertaes e teses na rea de mstica ou mstica
comparada, a publicao de pesquisas em curso, bem como a realizao de seminrios de
pesquisa envolvendo as instituies de ensino17
.
No tarefa fcil para o pesquisador da religio abrigar na sua reflexo a
especificidade do religioso vivido. H que ampliar o olhar, aperfeioar a escuta e alargar
o conceito de verificao18. Para Henrique Cludio de Lima Vaz, nem as filosofias da
religio, nem as cincias da religio, enquanto saberes gestados na modernidade ps-
cartesiana, esto plenamente instrumentadas para traar a hermenutica do vivido
religioso. No h como reduzir, para ele, a figura do fato religioso a um fato de cultura.
16 Os relatos msticos sugerem a presena de um outro lado, de um mundo alm das palavras. E os estudos da mstica, como observa Vitria Peres, se constituem em geral em torno deste 'algo alm do que se pode observar'. Sem ter que necessariamente tomar partido, os estudiosos do tema encontram como uma das possibilidades de compreenso do
fenmeno mstico, levar a srio o que dizem os msticos, e isto significa destinar um lugar especial experincia, sem a qual no h conhecimento possvel para os msticos (OLIVEIRA, 2006). 17 Dentre as publicaes, pode-se registrar: Teixeira (2004; 2006; prelo). 18 Vitria Peres de Oliveira lanou o desafio desse alargamento do conceito de verificao, de forma a envolver tambm a experincia espiritual daqueles que esto sendo analisados. Na arena das controvrsias presentes no campo das cincias da religio, essa autora defendeu a plausibilidade de novos olhares que possibilitem ir alm das regras impostas pelo jogo cientfico e filosfico (OLIVEIRA, 2006, p. 170).
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Em sua anlise, Vaz chama a ateno para a singularidade da experincia da santidade,
que habita no espao de um universo espiritual em cujas fronteiras parecem emudecer as
filosofias e as cincias da religio. No h como proceder sua interpretao autntica
seno no mbito da teologia mstica (VAZ, 1992). Encontra-se aqui um importante desafio
para as cincias da religio, em seu dilogo com a teologia: de buscar captar esta
especificidade do religioso, de somar esforos para avanar neste terreno cujas dimenses
so pontuadas por insondvel profundidade.
5. Ensino do religioso e Cincias da Religio
A presena do ensino religioso vem sendo garantida pela Constituio brasileira
desde 1934. A posio a esse respeito na Constituio de 1988 bem clara, como reza o art.
210 1 na Seo I sobre a educao: O ensino religioso, de matrcula facultativa,
constituir disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de ensino fundamental
(BRASIL, 1988). Tambm a Lei das Diretrizes e Bases da Educao Nacional estabelece
diretrizes a respeito, na nova redao do art. 33 da Lei 9.394 (BRASIL, 1996):
O ensino religioso, de matrcula facultativa, parte integrante da formao bsica
do cidado e constitui disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de
ensino fundamental, assegurado o respeito diversidade cultural religiosa do
Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
Com a crescente diversificao religiosa no Brasil e a afirmao de um pluralismo
religioso insupervel, h, certamente, que lanar novas bases para a reflexo do ensino da
religio na escola pblica. No h como manter posicionamentos que defendam em mbito
pblico um ensino confessional, embora no Brasil ainda persistam em casos especficos
modelos de ensino religioso nesta direo, cuja plausibilidade vem reforada por fortes
lobbies confessionais19
. Pode-se tambm levantar questes sobre a pertinncia de posies
19 Veja-se, por exemplo a situao do estado do Rio de Janeiro, com a aprovao da Lei n. 3459/2000 promulgada pelo governador Anthony Garotinho, que marca a confessionalidade do ensino religioso nas escolas da rede pblica de ensino. Ela retoma, com algumas modificaes, o projeto de lei apresentado em 1999, pelo deputado Carlos Dias, com o apoio da Arquidiocese local. De acordo com esta Lei, os professores de ensino religioso devero ser credenciados pela autoridade religiosa competente, que dever exigir do professor, formao religiosa obtida em Instituio por ela mantida ou reconhecida (art. 2 II). Em defesa dessa Lei pronunciou-se o ento bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Filippo Santoro, responsvel no ocasio pela pastoral da educao do Leste 1: Justamente os contedos no podem ser definidos por uma autoridade que no tem essa competncia; quem ensina a doutrina e a dimenso tica so as autoridades religiosas que deram corpo s vrias tradies culturais do Pas (GIUMBELLI; CARNEIRO, 2004, p. 31-32).
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sintonizadas com uma perspectiva mais laicista, que excluem qualquer possibilidade do
ensino da religio na escola pblica20
. Outros modelos vm sendo apresentados, numa linha
de maior respeito ao pluralismo religioso, como o vigente no Estado de Santa Catarina, com
a aprovao do Decreto 3.883, em dezembro de 2005, que regula o ensino religioso nas
escolas pblicas. E tambm o projeto defendido por Carlos Minc no Rio de Janeiro, a
proposta apresentada por uma equipe da Unicamp e a perspectiva defendida pelo Frum
Permanente do Ensino Religioso (FONAPER, 2006). No Estado de Santa Catarina foi
aprovado em dezembro de 2005 um decreto aprovando a adoo do ensino religioso na rede
pblica estadual, com contedos que abrangem as diversas religies, sem discriminao de
crena21
. Em linha semelhante, pode-se apontar o projeto de lei defendido por Carlos Minc,
em reao legislao vigente no Estado do Rio de Janeiro sobre o ensino confessional, e
que foi aprovado em 2003 pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, mas que recebeu
o veto da governadora Rosinha Garotinho. Em seu projeto, Carlos Minc dava prioridade
aos contedos de histria das religies e as bases antropolgicas da religio e atribua ao
Sistema Educacional de Ensino tanto a definio dos contedos curriculares, 'ouvida a
entidade civil constituda pelas diferentes denominaes religiosas', quanto o
estabelecimento das normas para a habilitao, admisso e a capacitao dos professores
religiosos (GIUMBELLI, 2004, p. 54)22. Apostando tambm num modelo de ensino
religioso que privilegia a interveno acadmica posicionou-se uma equipe de especialistas
do departamento de ps-graduao em Histria da Unicamp, que realizou um trabalho em
parceria com a Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, em 2001, visando
produo de material de apoio didtico para alunos da 8 srie. A abordagem apresentada
visava a oferecer uma viso sobre o 'fenmeno religioso' considerado na sua pluralidade e
no vnculo indissocivel entre textos e prticas. Nessa proposta, as religies deveriam ser
apresentadas como parte de um patrimnio cultural histrico coletivo e como constitutivas
das identidades pessoais. E abria-se igualmente espao para a discusso de valores e
20 o caso de Roseli Fischmann, que participou em 1995 de uma Comisso Especial sobre o Ensino Religioso em Escolas Pblicas, criada por iniciativa do governo do Estado de So Paulo. Em texto sobre a questo, pronunciou-se tanto contra o ensino confessional como contra o ensino religioso interreligioso ou ecumnico, voltado para um denominador comum entre as religies e denominaes, ver Fischmann (2006). 21 Em adequao com a LDB, o modelo implantado em Santa Catarina, no final de 2005, estabelece a criao de uma disciplina especfica de ensino religioso na rede pblica estadual, mas de carter optativo. Cf. Bela Santa Catarina (2006). 22 Nesse artigo, o autor comenta as vrias posies em jogo sobre o tema.
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princpios ticos (GIUMBELLI, 2004, p. 55). Vale tambm registrar o importante trabalho
que vem sendo realizado pelo Frum Nacional Permanente do Ensino Religioso
(FONAPER, 2006), desde 1995, em favor da constituio do ensino religioso como
disciplina escolar, da criao de espao e condies para a formao de profissionais do
ensino religioso em bases mais abertas e plurais e seu amplo empenho em favor da
construo de parmetros curriculares nacionais de ensino religioso23
.
Esse debate sobre o ensino da religio na escola pblica vem ocorrendo tambm em
mbito internacional. Na realidade francesa, marcada pelo forte acento da laicidade, tem-se
defendido no o ensino religioso, mas o ensino do religioso (l'enseignement du religieux),
como pode ser observado no interessante relatrio de Regis Debray (2002), sobre o
ensinamento do fato religioso na escola pblica, datado de fevereiro de 2002. O desafio
apontado por Debray refere-se incultura religiosa que envolve o estudante das escolas
pblicas, decorrente da ruptura dos canais de transmisso da memria religiosa na tradio
secular francesa. Esse desconhecimento, a seu ver, acaba gerando uma dificuldade singular
na compreenso de fenmenos histricos ou culturais, como o 11 de setembro de 2001, a
realidade do jazz e a figura de personagens como Martin Luther King; bem como o
favorecimento de fenmenos religiosos patolgicos ligados acerbao identitria24
. Esse
modelo francs, distinto de outros vigentes em pases como Irlanda, Grcia, Espanha,
Portugal, Dinamarca e Alemanha, visa a reforar o estudo do religioso na escola pblica,
mediante uma aproximao descritiva, factual e nocional das religies em sua
pluralidade, sem privilgios e exclusividades. um modelo que opta por um enfoque
sensvel, transversal e interdisciplinar dos fenmenos religiosos. E o seu
encaminhamento no se d mediante uma disciplina especfica, mas pela ampliao do
campo visual de disciplinas j existentes, como letras e lnguas, filosofia, artes, histria e
geografia. E, para isso, os professores receberiam uma preparao especfica, profissional e
intelectual, de forma a manejarem com maior competncia a questo da religio, que incide
de forma substantiva na identidade mais profunda dos alunos e sua famlias. A insero do
estudo do religioso no significaria romper com a tradio da laicidade francesa, mas
23 Contedo disponvel em , acesso em 6 jun. 2006. 24 Como sublinha o relatrio Debray (2002, p. 26), a relegao do fato religioso para fora das muralhas da transmisso racional e publicamente controlada dos conhecimentos favorece a patologia do terreno em vez de sane-lo.
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passar de uma laicidade de incompetncia (o religioso, por construo, no nos interessa)
a uma laicidade de inteligncia ( nosso dever compreend-lo). A posio defendida por
Debray e pela Comisso sobre a Laicidade, criada pela Presidncia da Repblica francesa25
,
implantada parcialmente na Frana, no deixa de enfrentar resistncias tanto do lado laico
para o qual a proposta pode refletir um clericalismo camuflado -, como do lado
eclesistico ou crente, que reage contra o que consideram uma abordagem de fora, que
pode favorecer tanto um confusionismo ou relativismo. So objees que tm sua
validade, reconhece o prprio Debray, mas ele sublinha a pertinncia de sua proposta, que
no pode ser confundida com um ensino religioso. Trata-se de uma oferta de saber, no
de catequese ou proposio de f; de um aperfeioamento e afinao do conhecimento e
no de uma afinao da f.
Tendo em vista os vrios posicionamentos apresentados, tanto no Brasil como na
Frana, o caminho apontado neste artigo busca uma perspectiva equidistante seja com
respeito proposta de um ensino religioso confessional, como de uma rigidez laicista que
simplesmente exclui qualquer possibilidade do ensino da religio na escola pblica.
Levando-se em considerao a perspectiva das cincias da religio, h que se posicionar em
favor da criao de condies para o aperfeioamento do estudo do religioso na escola
pblica. Opta-se, aqui, pela terminologia adotada por Regis Debray no artigo j assinalado,
sem com isso significar a admisso de todos os desdobramentos da perspectiva por ele
defendida. Levando-se em conta a importncia do fator religio na sociedade brasileira e de
sua relevncia para a compreenso da prpria cultura, no h como excluir a possibilidade
do acesso sua apropriada reflexo na escola pblica. E as cincias da religio constituem
um canal importante para possibilitar este exerccio reflexivo: de aperfeioamento da
compreenso do religioso como objeto de cultura26, ou fenmeno de cultura.
25 Essa Comisso tambm elaborou um relatrio sobre o tema e apontou trs dados como diagnstico sobre a presena da religio na sociedade francesa, que foram sintetizados por Giumbelli: a) a constatao do pluralismo do campo religioso e espiritual; b) o reconhecimento de uma desigualdade no modo como essas diferentes expresses religiosas e espirituais esto presentes na Frana; c) a denncia do 'comunitarismo', termo que pretende designar dinmicas sociais que exacerbam a identidade cultural (GIUMBELLI, 2004, p. 49-50). O texto do relatrio foi publicado no jornal Le Monde, em sua edio de 12 de dezembro de 2003, p. 17-24. 26 Privilegia-se, como lembra Debray, a tica do conhecimento, sendo a dinmica do aprimoramento da adeso religiosa, da religio como objeto de culto, uma tarefa especfica da famlia e da comunidade religiosa onde o aluno pode estar inserido.
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Dentre as diversas contribuies das cincias da religio para o ensino do
religioso, algumas merecem destaque. Em primeiro lugar, pode-se apontar a pista do
aperfeioamento do olhar e da escuta do mundo da alteridade. H aqui uma importante
contribuio advinda da antropologia da religio, no trabalho de campo, que privilegia de
forma singular o ver e o escutar. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira, a afinao das
faculdades de ver e ouvir constitui um dos traos mais caractersticos do trabalho
antropolgico: ambas complementam-se e servem para o pesquisador como duas muletas
[...] que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimento.
(OLIVEIRA, 1998b, p. 21)27
. O outro sempre um enigma extremamente complexo, que
resiste a qualquer apreenso simplificadora. Nesse sentido, compreender o outro , antes de
tudo, uma arte que exige uma atitude de grande abertura e despojamento, e, sobretudo,
uma sensibilidade hermenutica, na medida em que a relao com o outro envolve sempre a
possibilidade efetiva de uma apropriao de outras possibilidades (TRACY, 1997, p.
141)28
. Na viso de Gadamer (2000, p. 23),
[...] compreender no , em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se
compreende. Tal igualdade seria utpica. Compreender significa que eu posso
pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razo com o que diz e com o que propriamente quer dizer29.
H aqui uma responsabilidade muito grande do educador em sua tarefa de
apresentar o fenmeno religioso. Dele se exige no apenas um aprimoramento de
conhecimentos tericos sobre as religies, mas um aperfeioamento de sua sensibilidade
face ao enigma das religies.
H que abrir espao no mbito da escola para uma abordagem honesta e digna do
fenmeno religioso, que exige do quadro acadmico responsvel uma formao rica e
multifacetada. As tradies religiosas so portadoras de um rico patrimnio espiritual, e
sua justa avaliao pressupe no apenas o aprimoramento no campo do conhecimento,
27 Na verdade, como diz esse autor, o ouvir complementa o ver, favorecendo a eliminao de todos os rudos que interditam o acesso ao conhecimento do outro. 28 Para esse autor, em toda autntica conversao entre pessoa e pessoa, ou entre pessoa e texto, existe uma abertura mtua transformao [...]. Qualquer interpretao de algum 'outro' constitui uma apropriao de uma possibilidade que j no exatamente a mesma que era em sua forma original (TRACY, 1997, p. 141). 29 mediante a virtude da hermenutica que se abre o caminho de acesso ao mistrio do outro, da possibilidade da convivncia com ele e de uma possvel solidariedade com a sua causa. Mas h que reconhecer a realidade de
especificidades e singularidades de uma estranheza intransponvel no mundo (GADAMER, 2000, p. 25).
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mas tambm o exerccio de uma maior aproximao existencial, um contato mais estreito
com elas. E isso deve ser feito com especial sensibilidade. H que reconhecer, como lembra
Dalai Lama (1999, p. 52), que um dos melhores mtodos para aprimorar a compreenso e o
respeito para com as outras tradies religiosas manter um contato estreito e fazer
intercmbios entre as diferentes formas de f (cf., tambm, LELOUP, 2002). E, para isso,
faz-se necessrio tambm o aperfeioamento do tato religioso, que favorece a superao
de certa mentalidade que resiste adentrar-se em esferas particulares da experincia humana,
limitando-se a reduzir o engajamento vivido pelo outro a uma mera rapsdia de
observaes exteriores e frias. No h como compreender o contexto histrico das
religies desconectando-o da espiritualidade que o anima.
tambm necessrio criar condies para o reconhecimento da alteridade e o
respeito sua dignidade. O estudo do fenmeno religioso deve possibilitar o exerccio de
uma dinmica que seja marcada por um profundo respeito s diversas convices
religiosas. H que respeitar profundamente o destino espiritual que marca a trajetria de
cada ser humano, que tem o direito de procurar a verdade em matria religiosa30. Da a
fundamental importncia do respeito liberdade religiosa. Deve-se, assim, evitar na prtica
pedaggica todo proselitismo e utilizao de linguagem exclusivista, que transmita
preconceitos ou viso de superioridade de uma determinada tradio sobre as outras.
tarefa importante o favorecimento da percepo da riqueza e do valor de um
mundo plural e diversificado. As religies no so apenas genuinamente diferentes, mas
tambm autenticamente preciosas. H que honrar essa alteridade, em sua especificidade
peculiar, reconhecendo o valor e a plausibilidade de um pluralismo religioso de direito ou
princpio. A diversidade religiosa deve ser reconhecida, no como expresso da limitao
humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como trao de riqueza e
valor, um valor que irredutvel e irrevogvel. A abertura ao pluralismo constitui um
imperativo humano e religioso. Trata-se de uma das experincias mais enriquecedoras
realizadas pela conscincia humana. Assegurar o respeito diversidade religiosa garantir
30 Cf. Declarao Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, n.3, 1968. Em singular reflexo, Paul Ricoeur chamou a ateno para o risco de uma espcie de violncia que se insinua no corao da convico; o risco de algo potencialmente intolerante na convico, ou seja, o impulso de querer impor aos outros uma convico alheia. O desafio que se coloca para todo educador o de reconhecer o trao fundamental de que a adeso do outro s suas crenas , ela mesma, livre. Para Ricoeur, s mediante esta liberdade que a crena vem situada sob a categoria da pessoa e no da coisa e, ao mesmo tempo, a torna digna de respeito (RICOEUR, 1995, p. 183).
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a integridade das diferentes tradies religiosas e potencializar a perspectiva dialogal. Os
telogos que vm trabalhando o tema do pluralismo religioso insistem em dizer que no h
como compreender o enigma do Mistrio maior excluindo as mltiplas expresses do
fenmeno religioso, que ao longo da histria vm concorrendo para a sua manifestao.
Aqueles que no conseguem reconhecer a positividade das outras tradies religiosas
enquanto contextos autnticos de salvao/libertao acabam por operar com uma
concepo de Deus distante da criao (HAIGHT, 2003, p. 479; cf., tambm, GEFFR,
2004).
E, por fim, uma outra contribuio a ser elencada refere-se recuperao da fora
espiritual das religies (KNG; KUSCHELL, 1995, p. 24). Num tempo marcado por
tantos conflitos, tambm inter-religiosos, de afirmao de tantos dogmatismos e arrogncias
identitrias, h que desentranhar as foras de renovao espiritual em suas mltiplas formas
de expresso. So foras espirituais que vm conferindo vida humana uma fidelidade de
fundo e um horizonte de sentido essenciais, e que despontam para as pessoas a
viabilidade de caminhos alternativos, marcados pelos valores da compaixo, cortesia e o
cuidado com todas as formas de vida.
Concluso
As atuais reflexes em torno da laicidade podem servir de apoio para situar de
forma pertinente a questo do ensino do religioso na escola pblica. Embora mais
recorrentes no cenrio europeu, essas discusses revelam-se tambm pertinentes para o
debate no Brasil, sobretudo nesse momento onde o debate torna-se vivo e caloroso. Em
tempos de pluralismo religioso, no h mais lugar, em mbito pblico, para um ensino
religioso confessional que acaba por desconsiderar a singularidade, o significado e a
originalidade das diferentes tradies religiosas. H que honrar a alteridade no que ela tem
de mais fundamental. O pensador francs, Henri Pena-Ruiz (1998, p. 102), um dos grandes
estudiosos do tema da laicidade, sinaliza que a laicidade requer a rejeio de toda
discriminao na interpretao das doutrinas e das crenas31. Isso no significa deixar de
31 Cf., tambm, Pena-Ruiz (2003).
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lado a considerao e o estudo das diversas tradies religiosas e dos encaminhamentos
espirituais. Eles tambm se revelam fundamentais para o entendimento do horizonte
cultural. Nada mais equivocado hoje em dia, nesse tempo de efervescncia religiosa, do que
propugnar uma laicidade de excluso, que acaba se revelando uma laicidade de
incompetncia. As religies e opes espirituais merecem, antes, um estrito e rigoroso
respeito, enquanto sinalizam encaminhamentos particulares que procedem do destino de
cada ser humano, no seu livre direito de procurar a verdade em matria religiosa (DH 3).
No h como negar aos alunos a possibilidade de acesso inteligente ao fato
religioso, bem como compreenso das grandes referncias espirituais. E isso pode
acontecer de forma transversal e interdisciplinar, como o tem demonstrado o caminho
favorecido pelas cincias da religio. E a aproximao a esse complexo fenmeno deve
acontecer de forma aberta e sensvel, sem que a reflexo se reduza a uma rapsdia de
observaes exteriores e frias.
A sociloga francesa Danile Hervieu-Lger tem defendido a ideia de uma
laicidade mediadora, pontuada pela tnica amistosa e no mais de combate. Trata-se de
uma proposta cooperativa entre o Estado e as diferentes famlias espirituais. Enquanto a
perspectiva tradicional na Frana acabava suscitando ou legitimando uma incultura
religiosa dos alunos, a nova perspectiva abre espao para a insero na escola pblica do
ensino das diferentes culturas religiosas. Rompendo com um regime de neutralidade,
abre-se caminho para uma cooperao razovel em matria de produo das referncias
ticas, de preservao da memria e de construo do vnculo social (HERVIEU-LGER,
2008, p. 226). Esse reconhecimento da contribuio das distintas famlias espirituais
significa, na verdade, um enriquecimento da laicidade, e igualmente um potencial vetor de
mediao nos conflitos que traduzem e expressam a normatividade republicana
(HERVIEU-LGER, 2008, p. 230).
tambm um importante trabalho a ser realizado pelas cincias da religio,
relativizar a ideia recorrente de que as religies so portadoras de fanatismo e legitimadoras
de agresses e conflitos violentos. No h dvida de que isso tambm acontece, em razo
da ambiguidade das religies, mas as tradies religiosas propiciam tambm outras
possibilidade e perspectivas. Elas podem igualmente favorecer a renovao espiritual de
que a humanidade tanto carece nesses tempos da disperso do sentido. Como apontou com
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acerto o Parlamento das Religies Mundiais, em sua Declarao em favor de uma tica
mundial, as foras espirituais das religies encontram-se em condio de conferir vida
dos homens uma fidelidade de fundo, um horizonte de sentido e uma ptria espiritual
(KNG; KUSCHELL, 1995, p. 24). E isso possvel quando a perspectiva dialogal
prepondera sobre a dinmica das afirmaes identitrias arrogantes, e se busca, com
sinceridade e abertura, o respeito e o aprendizado diante do patrimnio religioso do outro.
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