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VALENÇA EM QUESTÃO // debate / crítica / opinião ano VII // edição 45 // outubro de 2012 // blogdovq.blogspot.com Pelo contraditório político, mas com civilidade De creches e primaveras nas fábricas // Música: fiel companheira // quadrinhos dos anos 10 // Celeiro de artistas valencianos //Futepoca // Os miseráveis

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Jornal Valença em Questão, edição 45, de outubro de 2012

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VALENÇA EM QUESTÃO // debate / crítica / opinião ano VII // edição 45 // outubro de 2012 // blogdovq.blogspot.com

Pelo contraditório político, mas com civilidade

De creches e primaveras nas fábricas // Música: fiel companheira // quadrinhos dos anos 10 // Celeiro de artistas valencianos //Futepoca // Os miseráveis

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VALENÇA EM QUESTÃO

ano VII // edição 45 // outubro de 2012www.blogdovq.blogspot.com

Endereço:R. Francisco Di Biase 26 Torres HomemValença-RJ CEP [email protected] Tel.: 21-8187-7533

Colaboraram nesta edição:Vitor Castro (30.325 Mtb), André Dahmer, Bebeto, João Júnior, João Paulo Maia, Marianna Araujo, Marilda Vivas, Patrícia Oliveira, Paulo Roberto Figueira Leal e Sérgio Vaz.

Ilustração de capa:João Paulo Maia e Vitor Castro

Projeto Gráfico e Diagramação: Mórula Oficina de Ideiaswww.morulaideias.com.br

Tiragem: 1500 exemplares

Impressão:Gráfica PC Duboc Ltda.

O Valença em Questão circula no município de Valença, arredores e Rio de Janeiro, além de enviado via correio eletrônico e disponibilizado na internet.

Colabore Com o VQ: Banco Itaú – Agência 0380

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QuAnTo CusTA um VErEADor Em VAlEnçA?

Na quarta-feira que antecedeu as eleições municipais, os vereadores valencianos aprovaram um projeto que aumenta seus salários em mais de 60%. O salário de um vereador era de R$ 5.535 e passou para R$ 8.600. Esse sa-lário passa a vigorar em janeiro de 2013, quando os 12 no-vos - mas não tão novos - vereadores assumem o cargo.

Por mês, serão R$ 103.200 só de salários. Em um ano os salários dos vereadores ultrapassa a cifra de 1 milhão de reais (R$ 1.341.600), levando em conta o 13º salário. E se levarmos em conta todo o mandato (4 anos), o custo com salários dos vereadores chega a quase 5,5 milhões de reais (R$ 5.366.400).

QuEm é QuEm nA noVA CâmArA DE VErEADorEs?

Caros leitores, a partir da próxima semana vamos lan-çar um breve perfil com as informações que conseguirmos dos candidados eleitos para a Câmara de Vereadores do período 2013-2016.

O que gostaríamos de vocês, leitores, é que contribuam com informações sobre os candidatos, uma espécie de wi-kipedia sobre essas pessoas, para que pudéssemos agre-gar o máximo de informação possível.

Para colaborar, vocês podem escrever um comentário nessa postagem, ou ainda enviar um email para [email protected]. Em nenhum dos casos - nos comentários ou por email - é preciso se identificar.

ElEIçõEs Em VAlEnçA - rEsulTADo FInAl - PrEFEITo

Fernandinho Graça (PP) - 12417 votosSaulo Corrêa (PSD) - 8941 votosFábio (PR) - 6753 votosRômulo Milagres (PSDB) - 1715 votosChico Lima (Psol) - 400 votosÁlvaro Cabral (PRB) - 12.445 votos (seus votos são conside-rados nulos até o julgamento do TSE sobre o indeferimento de sua candidatura)

ElEIçõEs Em VAlEnçA - rEsulTADo FInAl - VErEADor

Naldo (PMDB) - 1737 votosZan (PT) - 1152 votosFábio Antônio (PTB) - 1128 votosSilvio Graça (PP) - 1006 votosGenaro Rocha (PC do B)- 997 votosCelsinho do Bar (PTB) - 975 votosMarcelo do Didi (PHS) - 947 votosDodô (PSB) - 822 votosBraz Carteiro (PMDB) - 768 votosPaulinho da Farmácia (PSD) - 732 votosFelipe Farias (PT) - 723 votosMichelle Cabral (PRB) - 619 votos

// Deu no blog

Contar para os amigos de fora de Valença os últimos acontecimentos da nossa ci-dade chega a parecer piada de tão inacreditável. Em quatro anos, tivemos quatro eleições municipais, duas delas cance-ladas antes mesmo da votação. Agora, mesmo com a eleição terminada, o candidato com o maior número de votos não foi eleito. Mas Fernandinho Graça, o segundo colocado – considerado eleito pela Justiça Eleitoral – também precisa es-perar o resultado do processo contra Álvaro Cabral ser julga-do pelo Tribunal Superior Elei-toral (TSE) para ter certeza de que será o novo prefeito. Isso porque tivemos o prefeito atu-al – Vicente Guedes – cassado e depois de volta ao cargo. Além de parecer piada é confusa a história toda.

Nessas eleições, mais uma vez o que vimos foi a preocupação em atacar os outros candida-tos, em detrimento à discussão de projetos para Valença. Não é à toa que o eleitorado valen-ciano está desgastado. Foram quase 20% de abstenções, um número significativo. Paulo Ro-berto Leal, na análise que fez do processo eleitoral em Valença, indica que o problema não é o contraditório. Ao contrário, o debate e as discussões são bem vindos e necessários. O que não é aceitável é o nível de incivi-lidade, pontua Paulo Roberto. Como ele diz, o que a população valenciana quer é muito pouco, é apenas uma definição da jus-tiça. Os últimos quatro anos de indefinição desgastaram a po-

eDITorIal

pulação.Dando continuidade à me-

mória de nossa cidade – que começou por aqui na edição 43 (agosto) do VQ –, Marilda Vivas, filha de operários, conta um pouco de sua história e das fábricas de Valença, com enfo-que nas creches criadas para os filhos das operárias (Marilda foi uma dessas crianças). Mas mais do que contar sua histó-ria, Marilda contextualiza esse momento com a história do nosso país e da nossa cidade. As memórias de sua infância nos fazem refletir sobre as con-dições trabalhistas. Vale ressal-tar que a ilustração do artigo é de João Paulo Maia.

Complementando a edição, trazemos uma pequena entre-vista com Igor Almeida, voca-lista da banda O Celeiro das Rochas, que fará uma apresen-tação inovadora no dia 10 de no-vembro, no Cine Glória. Além do show dentro de um cinema, ele conta um pouco da história da banda. Falando em música, o vocalista da banda The Black Bullets assina um texto em que se mostra apaixonado pelo que faz. João Júnior diz que nada é mais fiel a nossa companhia do que a música que a gente gosta.

Na nossa última página, a seção Navegando traz a dica de um site que mistura futebol, política e cerveja. A tendência é agradar a gregos e troianos. Na seção de poesia, apresentamos o poeta Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa, na periferia de São Paulo, e complementamos com os Quadrinhos dos anos 10, de André Dahmer.

A disputa pela prefeitura de Valença, diferente da maioria do país, não acaba com as eleições. É preciso ainda esperar o julgamento do TSE para definir o novo prefeito

Mais uma eleição, mais indefinição na política valenciana

2 Outubro de 2012

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// Entrevista // Música

Celeiro de artistas valencianos

Por João Júnior

Mais do que nossos mais próximos amigos, nada é tão fiel à nossa companhia quanto uma música que a gente curte.

Você pode esquecer de pessoas, imagens e situações. A música tem o poder de te fazer lembrar delas, assim como

um perfume. Um déjà vu.Atos nos magoam. A Música não. Palavras nos magoam. A Música não. Está sempre ali disposta a soar nos nossos ouvidos quando

quisermos, sem reclamações, sem obrigações e sem cobranças. Ela nunca nos abandona. É nossa fuga, nosso apoio.Pode o mundo desabar, mas desde que um alto falante vibre

essas ondas, tá tudo bem.Muita gente não valoriza o que se pode ser considerado

“música”, mas todo mundo já chorou ouvindo uma que tocou no rádio e na alma. Acredito que os surdos também ouvem suas músicas.

Não é só arte. Não é só um discurso.Nem uma simples tendência ou moda, muito

menos só para dançar. A música vai além.Nada como um jazz pra te relaxar.Nada como um metal pra te encorajar.Nada como um hino pra te inspirar.Nada como um hard core pra te pirar.E eles vão estar lá, na prateleira do cantinho da sua estante

arquivados em CD, vazando pelo furo que seu “dial” der no ra-dio de pilha, registrados nas bolachas de vinil ou digitalmente num pequeno mp3 player. Ou ainda, vindo das cordas, sejam elas de nilon, aço ou vocais. Ou de metais ou tambores.

Sempre que qualquer motivo alterar nosso equilíbrio emo-cional, quantos “plays” forem precisos dar, nós daremos, pra que o silêncio sempre se renda ao som, e deixe a música passar por dentro de nós, pra aliviar ou encher a alma de algum sen-timento.

João é músico e vocalista da banda The Black Bullets

Formada pelos valencianos Igor Almeida (vocal e guitarra), Fred Ielpo (contra-baixo e violão), Daniel Barbosa (bateria) e João Maia (guitarra), o Celeiro das Rochas pretende inovar. No dia 10 de novembro a banda realiza, no Cine Glória – é isso mesmo! – o show “O som da cor”, que mistura imagem e o som da banda. Como diz Igor Almeida, quem pensou esse projeto, a ideia era mesmo fazer algo “totalmente diferente do que já foi apresentado pela banda e também em Valença”. Para assistir ao espetáculo, os inte-ressados devem entrar no site da banda e fazer sua reserva. O detalhe é que a lotação é de 150 pessoas. A seguir leia trechos da conversa com Igor Almeida sobre a banda e o show que vão realizar no próximo dia 10 de novembro.

IntegrantesEu e Daniel tocamos muito tempo juntos na igreja e resolvemos começar a tocar as com-

posições que eu fazia e umas versões de clássicos da MPB que a gente gostava. Mas foi só em 2010 que a gente resolveu atacar com força: procuramos um produtor, o Paulo Grua, e fomos atrás de um estúdio e gravamos nosso EP (um CD com menos músicas) intitula-do “Capítulo I”. Nesse EP, três canções eram minhas e duas fiz em parceria com o Daniel Barbosa.

o Celeiro das rochasChegar a esse nome é uma história complexa. Foi a forma que achamos para repre-

sentar Southern Rock em outras palavras, que é um estilo um tanto quanto caipira, lá da América do Norte, que mistura Country, Blues, Jazz e Rock. Celeiro representa o Country e Rochas representa o Rock. O problema é que hoje muita coisa do nosso som mudou: o puro Southern Rock já deu as mãos pro Indie Rock e pra muita coisa de Progressivo. E sendo sincero: o significado do nome a gente inventou depois da banda já formada, justamente pra ter o que responder em entrevistas!

PrêmiosO Celeiro das Rochas foi 1° Colocado e Melhor Arranjo no 3° FIM de Rio das Flores, 2°

Colocado no 2° Festival de Música da Associação Balbina Fonseca, a Banda Revelação de Valença em 2010 e Melhor Letra (com a música “Fim de Jogo”) pelo Zine Mundo Under-ground. A música “Fim de jogo” integra duas coletâneas: Southern Rock Brasil Collection Volume 2 (2012) e no Killinf for metal volume 1 (2010). Pra fechar, a canção “Balada pros dias de incerteza” entrou esse mês na coletânea Southern Rock Brasil volume 3.

o som da corSeremos a primeira banda de Rock valenciana a fazer um som dentro do Cine Glória.

Montamos um filme que vai rodar sem parar no telão do cinema, com cenas, clipes e músicos que a gente achou que combinava com nosso som. Dai o show se desdobra em vários concei-tos diferentes. Em partes do show, colocamos vídeos de músicos como Lenine, Zé Ramalho, Paulinho Moska, Lô Borges, David Gilmour, entre outros tocando voz e violão. E por cima deles vamos desmontar e remontar novos arranjos. Ou seja, aonde era só voz e violão, vai ser colocada guitarra, baixo, bateria, outra voz... Em outras cenas do filme optamos por usar imagens que melhor representassem aquela canção, ou entrevistas sobre aquela canção. Em outras, fizemos uso de vídeos que a gente gravou exclusivamente para esse show. No fundo é um baita trabalhão de semiótica.

música: fiel companheira

www.oceleirodasrochas.com.br

3Outubro de 2012

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// Política

Por Paulo Roberto Figueira Leal

Muitos assuntos poderiam ser dominantes numa avaliação crítica das últimas eleições valencianas: a controvér-sia jurídica que nos impede de saber, nesse exato momento, quem exatamente assumirá a prefeitura em janeiro; a pouca re-novação efetiva da Câmara; o recorrente uso (e, infelizmente, o eventual sucesso) do poder econômico na campanha, de forma explícita ou velada – vide a exploração de trabalhadores segu-rando bandeiras horas a fio (em troca de quanto mesmo?).

Mas outro aspecto merece atenção: a profunda e arraigada dificuldade das elites políticas valencianas em travarem uma disputa sem apelar para a total e completa desqualificação dos adversários (que, curiosamente, nem sempre foram adversários – aliás, podem ter sido aliados até anteontem, como ressaltei num artigo anterior publicado pelo VQ - edição 42, de julho de 2012).

Chamam a atenção os excessos verbais, reverberando a tese de que a vitória de um ou de outro será inaceitável; os papelu-chos distribuídos na calada da noite, todos eles não recomendá-veis para menores de idade; as falas agressivas, bélicas mesmo, com que uns se referem aos outros. Enfim, chama a atenção o nível de incivilidade que tem marcado as últimas eleições no município.

Longe de se defender aqui a ingênua tese de que a dispu-ta política pode ser feita sem a explicitação das diferenças. Ao contrário, a política precisa do contraditório para fazer sentido: deixar claras as divergências, mostrar à sociedade os distintos rumos que se oferecem pelos distintos partidos e candidaturas, acentuar criticamente questões públicas que merecem discus-são na trajetória política ou nas propostas dos adversários... Tudo isso é compreensível e legítimo.

Quando passa a valer tudo para derrubar o oponente, pode até existir ganho eleitoral de curto prazo. A longo prazo, contudo, há perdas para o processo político e para a própria democracia

Pelo contraditório político, mas com civilidade

4 Outubro de 2012

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Que o eleito governeEsse acirramento, em qualquer lugar do mun-

do, tende a se acentuar no final das campanhas. Em primeiro lugar, porque a cada momento di-minui o número total de indecisos; em segundo, porque a proximidade da votação amplia natu-ralmente o calor das discussões e as torna mais

emocionais; e, em terceiro, porque a posição de cada um dos candidatos depende da posição dos outros – em linguagem de Teoria dos Jogos, tra-ta-se de um jogo de soma zero, no qual o que cada um conquista provém em grande medida do que o adversário perdeu.

O contraditório político é salutar: afinal, a de-mocracia só se sustenta se os eleitores de fato se virem diante de escolhas – e marcar diferenças é fundamental no processo de tomada de decisão. Mas há limites (éticos e civilizatórios) que devem ser respeitados. O problema é que as eleições em Valença, há tempos, vêm deixando de respeitar esses marcos.

Quando passa a valer tudo para derrubar o oponente, pode até existir ganho eleitoral de cur-to prazo. A longo prazo, contudo, há perdas para o processo político e para a própria democracia. Por que será que Valença foi a cidade da região com maior taxa de abstenção (quase 20% dos eleitores nem foram votar)? Não é coincidência: é sintoma do fastio do eleitorado, cansado de qua-tro eleições – duas realizadas (2008 e 2012), duas canceladas (2010 e 2011) – com um nível de viru-lência, de ódio e de jogo baixo acima da média.

A hipocrisia de anunciar o iminente fim do mundo se fulano ganhar, a estratégia de demo-nizar beltrano, o rumo de desqualificar pesso-almente sicrano: tudo isso só faz afastar impor-tantes segmentos da sociedade da participação política. Se a política parece ser isso, quantos não desejam por esse motivo se distanciar dela?

Valença não pede muito. Que o eleito (quem quer que a Justiça determine ser o eleito) governe, que a oposição fiscalize e se oponha, que os cida-dãos concordem ou critiquem, que outras eleições venham e premiem ou punam o grupo que esti-ver no poder. Sem drama, sem fim do mundo, sem apelação. Numa palavra: normalidade – o que im-plica contraditório, disputa política, crítica, mas não incivilidade nem jogo baixo para derrotar o adversário a qualquer custo.

Paulo Roberto é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), autor de diversos livros, entre eles “O PT e o dilema da representação política” (FGV), “Identidades políticas e personagens televisivas” (Corifeu); e “Mídia e identificação política” (Multifoco).

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A política precisa do contraditório para fazer sentido: deixar claras as divergências, acentuar criticamente questões públicas que merecem discussão na trajetória política ou nas propostas dos adversários

5Outubro de 2012

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Aos meus pais, Maury e Alzira, em memória, e aos meus irmãos Maury, Mauro, Marcilio, Getúlio e Marlene, em respeito ao que me possibilitaram ser

Por Marilda Vivas

É interessantes dar sequência ao resgate da me-mória das indústrias têxteis valencianas, como forma de bus-car compreender uma parte daquilo que é fundamental na for-mação de alguns milhares de valencianos. É um tema amplo e que comporta múltiplas facetas.

Nesse caso, sendo filha de operários, o que proponho é res-gatar aspectos políticos e sociais ligados às construções de cre-ches nas indústrias fabris. A motivação está no fato de termos sido, minha irmã e eu, “acolhidas” em uma delas, a da Cia. Pro-gresso de Valença, em meados da década de 1950, no horário correspondente ao turno de trabalho de nossa mãe.

Foi em 1993, durante o curso de Metodologia do Ensino Su-perior, na FAA, que despertei interesse por estudar as raízes da industrialização no país e, particularmente, o sentido real da presença de creches no interior das fábricas. Até então desco-nhecia que dentro da realidade brasileira, as creches foram sur-gindo afinadas com a evolução da economia capitalista no país, em cujo rastro veio desabrochar os processos de urbanização e a expansão das atividades industriais e do setor de serviços, por essas paragens. E, também, que foi em função desse desen-volvimento e da consequente inserção feminina no mercado de trabalho que surgiu, por assim dizer, a necessidade de se criar locais onde as crianças pudessem ficar durante o período em que os pais se dedicavam ao trabalho.

Da parte do Estado, o que se tinha era uma completa omis-são sobre essa questão. As poucas creches que existiam fora das indústrias, nas décadas de 1920 a 1950, eram de responsabilida-de de entidades filantrópicas laicas e principalmente religiosas. Em sua maioria, estas entidades foram, com o tempo, passando a receber ajuda governamental para desenvolver seu trabalho, além de donativos doados por famílias mais ricas.

Embora mamãe reconhecesse nesse atendimento um aspec-

Em 1993 despertei o interesse em estudar as raízes da industrialização no país, particularmente a presença de creches no interior das fábricas. A motivação está no fato de ser filha de operários e no resgate dos aspectos políticos e sociais ligados a essa iniciativa

to vantajoso de seu trabalho, a verdade é que onde ela via cuida-do, o capital industrial obtinha lucro através de uma produção mais eficaz de sua parte, visto que ela podia se dedicar mais e melhor ao trabalho sabendo que suas filhas estavam próximas de si, cuidadosamente “assistidas” pela mesma empresa que a empregara! Não havia como entender, em uma época de par-cos estudos e de grandes privações, que sua inserção contra-ditória no mercado de trabalho respondia, tão somente, a uma situação criada pelo próprio sistema econômico? Isso era coisa que nem de longe se percebia. Não só ela como todas as demais mulheres e homens que se viram imersos nessa mesma situa-ção. Não havia muito como entender (ou perceber) que o foco patronal estava em impedir a construção espontânea do pro-letariado enquanto classe e que a prática dos patrões consistia em criar e conceder benefícios sociais como meio de disciplinar e de controlar suas vidas, dentro e fora do ambiente de traba-lho. E que, tal como as creches, pelos mesmos motivos foram sendo construídas, no entorno das fábricas, as vilas operárias, algumas com creches e escolas maternais (para seus filhos), os clubes esportivos (para seus pais) e as atividades festivas, como os piqueniques, para toda a família.

Olha, foi um choque tremendo para ela quando conversa-mos sobre isso. Até então, todos esses “benefícios” foram tidos como sendo um aspecto positivo surgido em meio a tantas e tantas privações pelas quais passavam a classe operária no Bra-sil. E não deixou de ser. Tanto assim que sempre me agradou a ideia de saber que, mesmo no trabalho, ela estava sempre por perto. E ai, quando senti, pela sua reação, que eu havia metido os pés pelas mãos, tratei logo de amaciar a conversa, pondo um fim no assunto, embora saiba que alguma coisa se rompeu.

Curioso é que quando tivemos essa conversa, as reivindica-ções por creches já haviam se solidificado como um direito do trabalhador e um dever do Estado. E tudo graças, justamente, à entrada das mulheres no mercado de trabalho a partir da ex-pansão do capitalismo e da industrialização. Hoje, por exemplo, muitos dos avanços que observamos na Educação de crianças de zero a seis anos foram conquistas dos movimentos de operários

// Memória

6 Outubro de 2012

De creches e primaveras nas fábricas

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e de mulheres, que lutaram por melhorias nas cre-ches e pré-escolas e para que as mesmas passas-sem a ter um atendimento educacional e não mais assistencial, como no tempo de minha mãe.

rupturas no sitemaSabemos que o ano de 1968 é tido como aque-

le que trouxe a possibilidade histórica da ruptu-ra com os valores e mecanismos da reprodução social, próprios do capitalismo. Por essa ocasião, cursava o terceiro ano Ginasial já com a certeza de que não seguiria os passos de meus pais e de alguns de meus irmãos. Lá atrás, esse determinis-mo fora rompido a poder de lutas históricas nas-cidas no interior do movimento operário brasilei-ro (tecelões, alfaiates, portuários, mineradores, carpinteiros, ferroviários, gráficos, alimentícios, entre outros, botavam pra quebrar). Lutas que tiveram desdobramentos em meados da década de 1970, contra as dificílimas condições de vida e a constante e espoliante exploração da força de trabalho do operário, que nunca deixou de existir.

Quando penso em tantos acontecimentos, me-nos arredo o pé da certeza de que esses surtos de lembranças são importantes e vale a pena o regis-tro. Minimamente porque são eles que nos levam a revisitar a história e nos impedem de burlar o DNA de uma cidade que tem os pés nas fábricas.

Foram, e continuaram a ser, as lutas operárias a prova cabal de que Capital e Trabalho são irre-conciliáveis. E são essas mesmas lutas que levam à confirmação de que a Primavera brota de onde menos se espera: das verdadeiras causas que nos marcam e nos distinguem.

A fábrica Progresso: registro de infânciaGostaria, ainda, de registrar algumas lem-

branças da Progresso, construídas ainda na mi-nha primeira infância. Morávamos na Rua 27 de Novembro, na Santa Cruz. Bastava subir as Pitei-ras (Rua Tanguara) e já estávamos, praticamente, no portão da fábrica, pois era hábito nosso es-perar mamãe na saída do turno – muitos faziam isso. Ficávamos ansiosos do lado de fora do por-tão. As lembranças surgem a partir do momento em que ela pede e consegue do porteiro da fábrica, permissão para nos mostrar o local onde a creche fora construída. Na ocasião, o que vi foi um enor-me pátio povoado por gigantescos fardos de algo-dão e de bobinas. Tudo ao seu redor me impres-sionou. Grande era a vontade de entrar lá dentro e ver as máquinas funcionando. Mas isso nunca nos foi permitido.

Com o tempo, eu e meus irmãos convencemos o porteiro a nos deixar esperar a saída pelo lado de dentro, sentados no alpendre da varanda que

dava acesso ao escritório e demais dependências da fábrica (pode ser que haja imprecisão nessas imagens, mas é assim que elas me ocorrem). Se em princípio comportados, com o tempo (sem-pre o tempo) a farra já corria solta naquele pátio. Por vezes escapulíamos da vigilância (pouco se-vera sobre nós) e nos escondíamos no escritório, onde disputávamos, entre e risos e empurrões, a cadeira giratória do chefe do setor. No começo era só ele sair que a gente corria pra lá. Depois, nem isso. Já íamos chegando, mesmo. Mexíamos em tudo: carimbos, papel carbono, elásticos, lápis... Foram muitas as estripulias. Só mesmo o apito da fábrica para por um ponto final no nosso compor-tamento. Não me recordo de haver outras crian-ças, além de nós, com tão grande “influência” no pedaço. Mas é quase certo que sim, como certo é o fato de termos sido, de alguma forma, incorpo-rados como sendo “os filhos da Alzira”. Cheguei mesmo a conquistar o direito de fazer soar o apito

da fábrica, uma única vez! Talvez por ser a caçula, entre todos. Nesses instantes, muito me impres-sionava a quantidade de homens e mulheres que entravam e saiam durante a troca de turnos. Al-guns operários carregavam no bolso traseiro das calças, uma garrafinha de vidro, arrolhada e chei-nha de café. Rostos cansados, cabelos de algodão, mãos e roupas manchadas... apenas um ou outro se dispunha a fazer algum gracejo. Se brilho hou-vesse seria o meu, extasiada por tudo.

A volta pra casa era quase sempre muito fes-tiva. Tirando o medo de passar diante da fábrica de fazer sabão (para onde podiam ir os maus me-ninos), havia um cruzeiro, logo adiante, passando a Ponte das Piteiras, bem no alto de um barranco e onde sempre parávamos para rezar às Santas Almas Benditas. O resto da festa ficava por conta do que fôssemos encontrando pelo caminho. Um bicho, uma pedra lançada contra um passarinho (para espantar, somente) ou alguma coisa, menos ou tão esquisita que pudesse atravessar aquela es-trada de chão batido.

Como se vê, sou alguém que teve infância.

Marilda é professora da rede estadual de educação, aposentada

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7Outubro de 2012

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// navegando

A dica deste mês junta uma tríade que agradará a muitos:

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O nome do blog é uma sigla para seus temas: fute-bol, política e cachaça. O endereço é praticamente um bal-cão de boteco, aquele em que se discute os principais pro-blemas nacionais, a rodada do Brasileirão e ainda pode-se tomar algumas doses.

No ar desde 2006, o blog, que é escrito por 8 jornalistas, tem um acervo divertidíssimo - para os três temas. Boas entrevistas, comentários de jogos marcantes e matérias que não lemos por aí. Um bom exemplo é o texto sobre o deputado que iria propor uma emenda limitando a 20% os convocados da seleção brasileira que jogam no exterior! Ou ainda, o decreto publicado em Diário Oficial que “legaliza” os tipos de bebida alcólica comercializadas no Brasil. Diz o texto, baseado na lei: “se a base do produto contiver zimbro, o embriagado há de pedir por ‘genebra’ ou gim ou steinhae-ger. Vodca é a branquinha extraída de destilados alcoólicos simples de cereais ou pelo álcool etílico potável”.

As resenhas dos jogos nacionais e da seleção formam a parte mais ativa do site. Uma pena é que a cobertura fica muito restrita ao eixo Rio x São Paulo e times da primeira divisão. Mas o blog é aberto a colaboradores. Se você, lei-tor, é torcedor do Botafogo da Paraíba ou do Volta Redonda, quem sabe possa escrever umas resenhas?

www.futepoca.com.br

8 Outubro de 2012

Por Sérgio Vaz

Vitor nasceu no jardim das margaridasErva-daninha nunca teve primaveraCresceu sem pai sem mãe sem norte sem [setaPés no chão, nunca teve bicicleta

Já Hugo não nasceu, estreouPele branquinha, nunca teve invernotinha pai, mãe, caderno e fada-madrinha

Vitor virou ladrãoHugo salafrárioUm roubava por pãoO outro para reforçar o salárioUm usava capuzO outro gravata

Um roubava na luzO outro em noite de serenataUm vivia de cativeiroO outro de negócioUm não tinha amigo, parceiroO outro sócio

Retrato falado Vitor tinha cara na notíciaEnquanto Hugo fazia pose pra revistaO da pólvora apodrece impenitenteO da caneta enriquece impunementeA um só resta virar crenteO outro é candidato a presidente

[colecionadordepedras1.blogspot.com.br]

Osmiseráveis

// Poesia