VIVER E DEIXAR VIVER – BIOGRAFIA SAMUEL KLEIN 5ª EDIÇÃO

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Aos 90 anos de idade, a história de Samuel Klein é uma lição de vida e empreendedorismo. O império comercial construído por ele com a empresa Casas Bahia se confunde com a trajetória do Brasil. A forma de trabalhar, metas e os objetivos do empresário buscaram sempre o desenvolvimento, seja em tempos de crise ou expansão: “Cresci junto com o Brasil, não fiquei parado vendo o país crescer”. O empresário conjugou e praticou em sua trajetória o verbo gerar em todos os tempos, gerando oportunidades, conhecimento, riqueza e a realização de sonhos para milhões de pessoas e lares brasileiros. Samuel Klein faz da sabedoria o principal segredo do sucesso alcançado em sua trajetória, pautando-se pela seguinte frase: “Viver e deixar viver!”.

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VIVER E DEIXAR

VIVER

Como Samuel Klein sobreviveu à

Segunda Guerra Mundial e se tornou o maior varejista do Brasil

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VIVER E DEIXAR

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Como Samuel Klein sobreviveu à

Segunda Guerra Mundial e se tornou o maior varejista do Brasil

Elias Awad

São Paulo/2013

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Copyright © 2013 by Elias Awad

Coordenação Editorial Silvia Segóvia Diagramação Estela Mleetchol Capa Genildo Santana Foto de Capa Ricardo Benichio/ Valor/ Folhapress Preparação de Originais BookImage Projetos Editoriais Revisão Setsuko Araki Vera Lucia Quintanilha Ana Cristina Teixeira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Awad, EliasViver e deixar viver Elias Awad. -- Barueri, SP : Novo SéculoEditora, 2013.

1. Casas Bahia – História 2. Klein, Samuel, 1923 – I. Título.

13-11896 CDD-338.092

Índice para catálogo sistemático:1. Empresários : Vida e obra 338.092

2013Proibida a reprodução total ou parcial.

Os infratores serão processados na forma da lei.Direitos exclusivos para a língua portuguesa cedidos à

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Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer às pessoas que colaboraram tanto na minha formação pessoal quanto profissional. À minha mãe Maria, meu pai Emílio e meu tio Abrão. Aos amigos: Mário Vaisman, fonte consul-tada para filosofia de vida judaica, e Carlos Cardama, pelo incentivo e força. Ao editor Luiz Vasconcelos e sua equipe, por mais uma vez terem acreditado no meu trabalho. Também à família Klein, por con-fiar a mim tal missão.

A todos vocês, muito obrigado.

Dedico este livro às mulheres da minha vida: à minha esposa Lúcia, mãe zelosa e profissional brilhante,

e às minhas filhas Nicole e Camille. Vocês são a adrenalina que impulsiona minha garra.

Amo vocês...

O autor

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Notas ao leitor:Em todas as referências feitas à “Casas Bahia”, o artigo/preposição

foram utilizados no singular, pois o tratamento refere-se à Empresa, e não ao número de lojas.

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Sumário

Prefácio ........................................................................ 9

Samuel Klein: Uma biografia, uma lição de vida ............................... 13

Capítulo IUm sonho, uma realidade .......................................... 15

Capítulo IIA aventura na América ............................................... 79

Capítulo IIIO mascate que se tornou comerciante ....................... 101

Capítulo IVOs planos econômicos e a redemocratização ............. 155

Capítulo VNova perda na virada do milênio ............................... 187

Capítulo VIUm ciclo de oitenta anos............................................ 199

Uma década de crescimento, conquistas e transformações ...................................... 213

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Prefácio

Olá, amigos leitores! Sou Samuel Klein. Muitos me chamam de Samuka. Daqui em diante, vocês irão mergulhar fundo na minha história de vida através desta biografia. Confesso que nunca gostei de grandes promoções, citações ou mesmo homenagens dirigidas à minha pessoa. Autopromoção, então, nem pensar. A ideia de perpe-tuar as minhas experiências de vida nas páginas de um livro nasceu das conversas e até das “pressões” de amigos, que diziam: “Samuel, poucos sobreviveram ao que você passou e ainda teve forças para construir um império”.

Depois do alerta, comecei a prestar atenção na forma como as pessoas reagiam quando contava minha história. Antes e depois do Brasil. Antes e depois da Casas Bahia. Elas realmente se interessavam e até passavam a me questionar ou mesmo pensar de forma diferente sobre determinados aspectos. Até mesmo alguns que eu sequer conhecia me abordavam e contavam fatos da minha vida, ouvidos em conversas com outras pessoas.

Também comecei a perceber que me sentia bem enquanto contava os acontecimentos da minha vida. Era um sentimen to de alívio. Com isso, as sensações de sofrimento e dor ficavam menos pesadas e as alegrias ainda mais empolgantes. Como é bom desabafar – principal-mente quando tudo o que se relata é verdadeiro. Nada é inventado ou forjado. E foram essas verdades que fizeram sorrir e chorar o meu coração. Este sim! Como trabalhou nesses anos todos...

E por falar em trabalho, muito do meu sucesso profissional se deu em função de uma relação mútua de confiança. Em 1952, o Brasil acreditou em mim e me deu condições para que eu pudesse viver

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aqui com a minha família. Também confiei neste jovem país, ainda desconhecido para muitos na época – principalmente na Europa. E é jus tamente essa precocidade do Brasil que o torna extremamente pro - missor. Além disso, houve troca de confiança com os meus funcionários. Todos eles sempre acreditaram nas minhas ações. E vice-versa.

E os problemas e desafios que o destino colocou no meu caminho? Quantos deles eu não tive de superar? Quantas vezes eu não preci-sei tomar atitudes que poderiam colocar em risco tudo o que havia construído até então? Em muitas dessas situações, tive que pensar não só em mim, mas na família, nos milhares de funcionários e na minha empresa. Decisões. Sempre elas: as decisões.

Foi por tudo isso que desenvolvi a vontade de ajudar as pessoas. Fazer o possível para minimizar sofrimentos. Fazer o bem e tratar a todos como verdadeiros seres humanos.

Bem, esses foram alguns dos motivos que me convenceram de que eu realmente tinha uma história para contar, uma vida para regis trar, algumas mensagens para passar. Mensagens sustentadas na perseve-rança, na honestidade e na simplicidade. Na troca do trabalho puro e simples pela produção. Mensagens sustentadas na troca de respeito com o próximo. Foi assim que me tornei um homem rico em todos os aspectos. Tenho riquezas que superam os aspectos financeiros. São riquezas pessoais, emocionais e espirituais.

Espero que, com o livro, a minha filosofia e o meu slogan de vida possam ser propagados, assim como o lema que o expressa: “DEDICAÇÃO TOTAL A VOCÊ”. Para isso, é preciso ser sempre o melhor em tudo o que se faz.

Este livro tem o objetivo de mostrar que a árvore que tenho hoje, bonita e cheia de frutos, foi plantada e cultivada há mais de 50 anos. E isso serve como prova de que, também no aspecto pessoal, tudo é conquistado cultivando-se. É assim que se ganha o respeito da família, dos parentes e dos amigos.

O principal objetivo de aceitar que fosse escrito um livro sobre a minha vida é realmente o de fazer com que cada um de vocês, leitores,

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possa tirar um aprendizado do que vivi. E que esse aprendizado possa ajudá-los na sequência de suas vidas.

Quero ainda registrar que nada do que alcancei seria possível se não tivesse ao meu lado uma família solidificada. A você, Ana, obrigado por ter sido tão maravilhosa. Uma mulher, uma mãe, uma espo sa. Quero também agradecer o carinho dos meus filhos. A você, Michael, obrigado por se mostrar um verdadeiro dirigente, pronto para assumir os negócios, e ainda ser um pai maravilhoso. A você, Saul, obrigado pela sua postura, inteligência e tino comercial, qualidades res pon sáveis pela administração de setores importantes da empresa. A você, Eva, por ser filha e mãe dedicada e atenta – sem esquecer o fato de também ser uma excelente administradora. E por fim, a você, amado Oscar, que nos deixou há mais de 30 anos. Todos sempre di- ziam que você era a verdadeira cópia de Samuel Klein. Saudades. Que falta você faz.

Samuel Klein

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Samuel Klein: Uma biografia, uma lição de vida

Caros leitores, Quando ficou definido que eu faria um livro sobre Samuel Klein,

fiquei entusiasmado. Relataria a vida e os momentos de um empresá-rio importante, conhecido como o “Rei do Varejo”. Bastaram alguns minutos de conversa com o biografado para que aquele entusiasmo se transformasse em euforia.

Uma história de riqueza em todos os aspectos. Um passado forte e repleto de depoimentos tristes, sensíveis e emocionantes. A história de um vencedor. De alguém que transformou uma vida, que mais parecia pesadelo, em conto de fadas. Sobreviveu à guerra. Apagou da me-mória lembranças encontradas somente em documentários exibidos em cinemas e fitas de vídeo. Aceitou o desafio de trocar o “in ferno” por algo que nem ele mesmo conhecia. Uma tal América, em viagem realizada no ano de 1951. Após a chegada, começou a construir um caminho que transformou o “pa tri mônio” de 6 mil dólares em mais de 330 lojas. Percebi ainda um presente sempre ativo em Samuel Klein, um homem apaixonado pela vida aos 80 anos de idade. E um futuro longo, algo desejado por ele próprio e todos que o conhecem.

Em certos dias parava para pensar na grandeza do projeto em que havia me envolvido. Da responsabilidade que tinha nas mãos. E não é que uma das frases do senhor Samuel vinha à mente? “Quanto maior o problema, maior a oportunidade”. A cada dia de conversas e entre-vistas entendia cada vez mais que Samuel Klein realmente merecia um livro. Só mesmo assim para registrar tudo o que passou, fez, pensou e deixou como legado. Samuel Klein!

Quanto mais conversava com aquele homem mais entendia que estar com ele, diária ou semanalmente, era extremamente gratificante. Um privilégio de poucos. Entrevistá-lo causava emoção, entretenimento,

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surpresa, superação e muito... muito aprendizado. Um verdadeiro self-made man, que é a forma como os norte-americanos chamam aqueles homens que vencem por esforço próprio.

Uma história forte e profunda, que deve ser valorizada. Há de se tirar dela lições, aprendizados e uma forma diferente de enxergar a vida. Todos que dela participam, seja o escritor, os leitores ou os personagens, devem usá-la como instrumento de reflexão e motivação.

Samuel Klein! Uma lenda viva. Um ser em extinção. Que ainda acredita no próximo. Que distribui o que ganha. Que vive e que dei-xa viver. Um vencedor. Que conquistou espaço cativo nos corações daqueles que o conheceram. Escrever a história de Samuel Klein fez com que me aproximasse de pessoas incríveis. Que conhecesse os caminhos, passo a passo, de alguém que desafiou a morte e o precon-ceito. Que alcançou o sucesso.

Defeitos? Erros? Todos nós temos e cometemos. Mas o que os torna imperceptíveis são as nossas virtudes e acertos. Quanto maiores e destacadas as virtudes e os acertos, mais diluídos ficam os defei-tos. Foi exatamente isso que constatei na vida de Samuel Klein pelas andanças e entrevistas que realizei durante o período em que estive mergulhado nessa história.

Difícil será encontrar aquele que, depois de ler a história de Samuel Klein, ainda encontre argumentos para reclamar da vida. Das dificul-dades financeiras, pessoais, familiares, das portas que se fecharam...

A história de Samuel Klein deve ser utilizada por nós como mudan-ça de postura e comportamento de vida. Ao invés de poten cia lizarmos os problemas, vamos minimizá-los. Ao invés de nos culparmos ou mesmo encontrarmos culpados, busquemos a solução. Ao invés de reclamarmos que o dia de hoje foi ruim, péssimo, procuremos ansiar pelo dia seguinte, sempre acreditando que o amanhã será mais pro-dutivo e melhor. Ao invés de enxergarmos todo o azar que nos cerca, esfreguemos os olhos e vejamos como somos pessoas de sorte. Foi por pensar sempre assim que Schmiliale transformou-se no respeitável Samuel Klein. Afinal, se você quer, você pode!

Elias Awad

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Um sonho, uma realidade

Vinte e sete de dezembro de 1951. Aquele rapaz de nome Samuel, estatura mediana, bem vestido – terno liso, escuro e encoberto por um grosso casaco para se aquecer do frio, chapéu de aba –, forte, de aparência simpática e com cabelos lisos penteados para trás, acabava de chegar ao porto de Gênova, na Itália, depois de uma viagem de dez horas de trem vindo da Alemanha, onde morava. Assim que chegou, dirigiu-se ao guichê de venda de passagens. Acompanhado da mulher Ana e do filho Michael, tirou a carteira do bolso e puxou algumas notas. Mas os movimentos eram lentos, e deixavam transparecer certa indecisão. Ainda olhou para Ana na espera de algum tipo de sinal. Ela balançou a cabeça de forma afirmativa. Claro, a partir daquele momento iria se aventurar na América. Aceitara o convite de amigos para instalar-se com a família na Bolívia. Mais precisamente, em La Paz, capital do país. Muitos patrícios já tinham se dado bem na América, mas uma mudança sempre gera indecisões.

Sem falar uma palavra em italiano, Samuel sinalizou com os dedos que queria três passagens e disse: “Tickets. América, Argen-tina”. A bilheteira entregou as passagens reservadas ao setor de terceira classe. Afinal, era dentro do que o bolso podia proporcionar. Ele esticou o braço e segurou os bilhetes com força. Algo dizia que realmente deveria partir. A passos lentos, Samuel andou uns dez metros até onde estavam Ana e Michael. A mulher perguntou quanto tempo tinham até que o navio partisse. Samuel disse que ainda levaria umas quatro horas. Andou mais alguns passos, parou perto de uma grade. De onde estava, conseguia ver o navio. “Ana, Michael, olhem ali o navio. Vejam só. O nome dele está escrito na parte da frente. É

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Provence. E carrega uma bandeira da França!”, disse Samuel, que se manteve em pé, com o braço apontado na direção do navio por alguns instantes. Uma agradável brisa invadia o rosto de Samuel, e trazia extremo conforto para aquele momento. A paz que sentia mais pare-cia um sinal de que o passo a ser dado era o certo. Depois de franzir a testa e apertar os lábios, resolveu dar meia-volta e retornar para o banco onde estava a família. Ana insistia para que Samuel descan-sasse. “Meu querido, ainda temos muito tempo até o embarque. Sei que você não teve uma boa noite de sono. De tão ansioso, acordou várias vezes durante a madrugada. Por que não descansa? Durma um pouco.” Samuel seguiu o conselho. Dobrou três vezes o sobretudo, para tentar fazer uma espécie de travesseiro e, assim, aliviar a dureza do banco. Antes de se recostar, passou a mão pelo rosto do filho e lhe deu, assim como em Ana, um beijo na testa. Virou o corpo e colocou o sobretudo no canto do banco, onde procurou se encaixar. Ainda chegou a ouvir a voz de um homem que parecia falar algo com relação à Segunda Guerra Mundial. Pobre homem. Mal sabia ele das dificuldades que os judeus enfrentavam na Europa. Foi a última lem-brança que teve. Não demorou a dormir. O sono pesado o fez sonhar. Tudo começou com o barulho de um serrote e uma voz ao fundo: “Schmiliale, Schmiliale, onde está você?”. Era a voz do pai e o sinal de que ele estava por perto. O sonho prometia passar um filme da própria vida pela mente de Samuel...

Na aldeia de Zaklikov

Estamos na Polônia. Ainda início do século XX. No dia 15 de novembro de 1923, em meio a uma Europa já em estado de ebulição, nascia Samuel Klein. O local, uma aldeia chamada Zaklikov, com cerca de 3 mil habitantes, ficava a 80 quilômetros da cidade de Lublin. Schmiliale – forma carinhosa de pronunciar o nome SCHMILE, que é a tradução do nome Samuel em iídiche, idioma da comunidade judaica europeia – era o terceiro filho de Sucher e Szeva Klein. O primeiro se chamava Sloma (que significa Salomão) e tinha nascido em 1919.

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Depois, veio Césia em 1921. A família Klein compunha os 30% de judeus que habitavam Zaklikov. O restante da população era católica. Aliás, o catolicismo imperava em toda a Polônia. O país era extremamente atrasado econômica e culturalmente. Embora vivesse sob forte influência alemã, era um dos menos desenvolvidos da Europa. Os poucos que possuíam terras para o plantio eram considerados a classe privilegiada polonesa. Eram os grandes fazendeiros. No mais, imperava a pobreza.

O continente se via sob constantes ameaças de golpes de estado fascistas, nazistas e comunistas. A tensão ocasionada pela incerteza econômica e social do pós-Primeira Guerra facilitava o surgimento de movimentos que variavam do nazismo alemão ao anarquismo espanhol. Nesse período, por exemplo, houve o golpe de estado de Primo Rivera, na Espanha, instalando-se um regime nos moldes do fascismo italiano. Diante de uma Alemanha humilhada, devastada por uma inflação avassaladora (quando o valor do dinheiro era avaliado pelo peso das notas do marco alemão), o líder do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (apelidado de “nazi”), Adolph Hitler, tenta um golpe de estado em Munique. Em meio a essas conturbações, a medicina pesquisa e descobre a vacina contra a tuberculose (BCG), doença responsável por um grande número de mortes na época.

Na aldeia de Zaklikov, tudo era muito modesto. De clima seco, sol abundante no verão e ar puro em função do bosque de pinheiros que cercava o vilarejo, o lugar atraía muitos turistas. As belas paisagens contrastavam com a simplicidade da vida que ali se levava. Parecia um cartão-postal. Mas, durante o inverno, as temperaturas atingiam níveis baixíssimos, o que dificul-tava a vida dos moradores da região. Os Klein residiam próximo ao centro da cidade e tinham na vizinhança outros judeus. Sucher era um homem de altura mediana, aproximadamente 1,70m, e tinha cabelos escuros. Já a mulher era um pouco mais baixa, com cabelos loiros e olhos bem azuis. Os filhos foram crescendo e havia um deles que se incomodava com tudo aquilo: era o pequeno Samuel. O incômodo maior se dava por causa daquele povo que morava perto. Para ele, era uma gente muito estranha. Eles usavam roupas escuras e quentes, independentemente do clima, nas cores preta, marrom e cinza. Quase todos tinham uma boina na cabeça, que, nos dias de frio, ganhava uma extensão

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até as orelhas. Os mais religiosos cobriam permanentemente a cabeça com o “quipá”, pequeno barrete ou gorro arredondado. Era colocado na parte mais alta da cabeça, e usado também nas atividades religiosas por toda a comuni-dade. O objetivo era o de funcionar como um divisor entre os seres humanos e Deus. O que confortava e dava uma certa explicação para Samuel do motivo que os levava a se apresentarem assim era ver o pai seguindo os mesmos pas-sos. Quanto à mãe, estava sempre com um lenço na cabeça, o que para ele não deixava de ser estranho também.

A barba comprida era outra característica da comunidade judaica de Zaklikov. Identificava o sujeito como sendo de extrema fé, aquele que tinha o hábito de rezar muito na aldeia. Os judeus passavam horas e horas na sinagoga. Havia duas na região, bem próximas uma da outra. Como o pai de Samuel, Sucher, era mais liberal do que religioso, usava a barba mais curta. Mas essa postura era minoritária entre os judeus. A maioria era ortodoxa, ou seja, total-mente dedicada à religião.

A profissão do pai, carpinteiro, fazia-o acordar sempre muito cedo: antes mesmo de o sol nascer. O cantar dos galos servia de sinal para despertar. E pular da cama era com ele mesmo. A vida de Sucher cumpria-se dentro de uma rígida rotina. Depois de acordar, costumava se lavar e ir para a sinagoga. O carpinteiro jamais admitia começar o dia sem uma reza. Ali, ficava aproximadamente uma hora. Pedia bênção e proteção para suportar mais um dia de trabalho, que quase sempre invadia a noite. Isso explicava alguns calos e uma certa aspereza nas pal-mas das mãos do homem. O pequeno Samuel procurava seguir os passos do pai. Assim como ele, acordava, banhava-se e já fazia a primeira reza do dia. Aí, tinha o dedo da mãe, que além de ensiná-lo a rezar sempre o lembrava das obrigações: “Samuelzinho, não se esqueça de rezar todos os dias. Pela manhã, agradeça por ter acordado e poder viver um novo dia. À noite, reze em agradecimento ao dia que se encerra”. Depois da sinagoga, Sucher voltava para casa, onde encontrava a mesa do café da manhã pronta. Os filhos e a mulher ficavam à espera dele para a refeição matinal. Antes de iniciar o café da manhã, todos rezavam, guiados pelas palavras do chefe da família. A última frase diariamente repetida por Sucher costumava ser: “Que tenhamos sempre força e saúde para seguirmos nossas vidas”. Hora, então, de comer. A bebida era invariavelmente leite com cevada,

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* O rabino era considerado o personagem mais importante da comunidade, com as missões de cumprir junto à mesma as funções de conselheiro moral e espiritual, além de educador.

acompanhada de pão de alho ou cebola, acrescido de uma pitada de sal; isso era ideia da criançada. Às vezes, o cardápio incluia ovos mexidos e leite, já que o ovo era um alimento caro e, por isso, não podia ser consumido todos os dias. Depois da refeição, Sucher se enfiava naquela marcenaria e se dedicava ao trabalho, que normalmente ia até tarde. Quando tinha um tempo de folga, gostava de ficar admirando, a distância, as brincadeiras dos filhos, que se divertiam com jogos de bola – improvisada com pano – ou brincadeiras como queimada, pega-pega, cabra-cega, entre outras.

A primeira vez em que frequentou uma escola, Samuel tinha cerca de 5 anos. Não era uma escola comum, daquelas onde se ensinam matemática, geo-grafia ou história. Nela, os ensinamentos não eram passados por um professor e sim por um rabino*. Como temas das aulas, eram ensinados os mistérios da criação, as histórias dos antigos hebreus e a sabedoria do homem. O pequeno Samuel chegou à escola com os ensinamentos que adquiriu do pai, um homem calmo, paciente e, ao mesmo tempo, enérgico. Não era chegado em conversa fiada. Era determinado, gostava de ter as ordens obedecidas. Quando isso não acontecia, costumeiramente Sucher aplicava castigos na criançada. Curio-samente, os irmãos eram tão unidos que se um estava de castigo os outros também ficavam em solidariedade.

Mas Samuel convivia, apesar da pouca idade, com algo que o perturbava. Se ele tinha um nome, por que ninguém o chamava assim? Isso o incomodava, mas preferia manter o segredo a perguntar algo sobre o assunto aos pais. Para os patrícios judeus, ele era o “filho do carpinteiro”; para os outros integrantes da aldeia, era o “judeu” ou “judeuzinho”. É claro que era muito difícil cobrar de uma criança que entendesse haver discriminação naquilo tudo; que os camponeses poloneses, sempre cristãos, não chamavam a qualquer outro judeu pelo nome por não considerarem que merecessem esse “privilégio”. Para eles, os judeus não eram poloneses. A convicção era tamanha que muitos judeus

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passavam a acreditar nisso e não assumiam a própria descendência. Muitos, na verdade, também não a revelavam por medo de represálias.

A feira-livre era outro exemplo da divisão entre judeus e cristãos. Casais e mulheres que circulavam mal se olhavam ou dirigiam a palavra uns aos outros. Compravam e saíam sem deixar nenhum tipo de rastro. Samuel não entendia o motivo daquilo tudo. Apenas observava e aceitava como sendo da forma que deveria ser. E ponto final.

Assim se passavam os dias de Samuel em Zaklikov. Sempre divididos entre tristezas, pela dureza da vida que levavam e pelo tratamento recebido, e as alegrias, originadas pela vida familiar e naquilo que Samuel considerava “trabalho”: ajudar o pai na marcenaria. Entre os momentos felizes que deixa-vam saudades estavam as comemorações sagradas do Pessach, celebração da libertação do povo judeu do Egito por Moisés. O Pessach também é a Páscoa judaica. Nessas datas, eram organizadas festas grandiosas que pareciam dis-farçar as dificuldades vividas no dia a dia da família. Nessas ocasiões, até a rotina mudava: Sucher se trancava em casa com a mulher e os filhos. Todos ficavam trabalhando duro na reforma da casa para receber amigos e fazer da data algo inesquecível. As sinagogas ficavam cheias de pessoas da comunidade. A confraternização era total. Rezavam, cumprimentavam-se e abraçavam-se. O pequeno Samuel curtia como se nada daquilo tivesse fim. Mas é claro que tinha. E, quando o Pessach estava para terminar, batia uma angústia no coraçãozinho do menino Samuel. Sempre se sentava naquele mesmo degrau, que ficava na entrada da casa, onde gostava de “refletir” sobre determinados assuntos, e pensava: “E agora, como será nossa vida até o próximo Pessach?”. Era mais uma pergunta, das tantas que ele tinha, que ficaria sem resposta.

Em 1930, Samuel estava com 7 para 8 anos. “Schmiliale, Schmiliale, cuidado com esse serrote!” Era a voz do pai e carpinteiro Sucher. A família tinha aumentado bastante. Ao todo, sete filhos. O garoto ainda não era alto e forte o suficiente para lidar com o serrote na mesa de carpinteiro do pai, a quem começou a ajudar cedo. O menino gostava de estar sempre em atividade. Nos dias escuros de inverno na aldeia, vestia-se com roupa pesada e quente, e animava-se em seguir a pé por alguns quilômetros. Andava sobre a neve para chegar a um lugar onde havia um enorme bosque de pinheiros. Era como se dali pudesse ser

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tirada a melhor imagem da Polônia. O menino ainda carregava uma corda e não desgrudava os olhos do chão. Andava como um caçador em busca da presa, que para ele eram galhos e raízes secas. Catava um a um. A boca do fogão à lenha da casa parecia insaciável. Era preciso deixá-lo aceso vinte e quatro horas por dia, para aliviar o intenso frio a que o inverno expunha a população do lugarejo. Samuel reunia e amarrava aqueles galhos e raízes. Achava que assim ficava mais fácil para transportar. Colocava tudo em cima de um trenó e voltava para casa feliz da vida. Tinha a sensação do dever cumprido.

* *

A família Klein sempre viveu com dificuldades. Morou unicamente nas aldeias polonesas. Primeiro, em Zaklikov, e depois em Lipa. As casas eram de madeira. As habilidades do pai como carpinteiro ajudaram na fabricação de to - dos os móveis da casa. Aliás, a cama de casal era o único móvel que destoa va do restante da mobília, pois havia sido construída pelo próprio Sucher com a melhor madeira existente. Mas, naquele tempo, uma cama de madeira era

Samuel e Sloma Klein. Um brinde aos velhos tempos. Nova York, 1986.

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considerada luxo e privilégio. O colchão também era uma obra caseira, rechea do de trigo colhido e seco pela própria família. Era nele que, em dias gelados, as crianças se deitavam e encostavam umas nas outras, para ajudar a espantar o frio. A cada dia, era um que tinha que contar a história. Enquanto o pai trabalhava, a mãe de Samuel, Szeva, tratava de cuidar da casa, dos filhos e da alimentação da família. Além disso, tocava um pequeno comércio, impro-visado na própria sala da casa. Ali, vendia alguns alimentos. Samuel era o encarregado de buscar o açúcar de beterraba. Andava cerca de dez quilômetros para comprar um quilo que, depois, era dividido em várias porções. Eram cem gramas de açúcar de beterraba para um, dois ovos para outro, um pouco de manteiga e assim por diante. O olhar tímido e os lábios finos de Szeva deixavam-na com aparência de certo sofrimento pelas dificuldades enfrentadas. Na cozinha, ela procurava fazer sempre o melhor, embora não tivesse muitas opções. Os ingredientes eram basicamente repolho, batata e beterraba, que viravam borsht, uma sopa vermelha muito apreciada pelos Klein. A sopa era raramente acrescida de carnes de segunda ou terceira, comuns nos açougues da Polônia e de outros países da Europa oriental.

No dia a dia dos Klein, os alimentos eram contados e feitos para o gasto. Não havia exagero ou desperdício. Até os fósforos Samuel partia ao meio: passava a faca pela cabeça do fósforo e dividia o palito em duas partes. Assim, além de não queimar os dedos na hora de acender o fogo, conseguia dobrar a quantidade de uso. Apenas aos sábados, no Shabath, dia que, segundo o Shulham Aruh – Código Oficial do Povo de Israel, os judeus devem reservar ao repouso, é que eles tinham alimentos em abundância. O Shabath representa o sinal e a aliança criados por Deus, com o objetivo de recordar que o Senhor criou em seis dias o Céu e a Terra, assim como tudo que nela existe e vive, e que descansou e se reanimou no sétimo dia. No judaísmo, respeitar o Shabath equivale ao cumprimento dos demais mandamentos.

Assim, Szeva trabalhava pesado no fogão para, no sábado, poder pro-porcionar ao marido e a toda família uma farta e deliciosa mesa. Era comum encontrar frango e doces para os filhos no cardápio. De acordo com as tradi-ções ortodoxas do judaísmo, o Shabath é um dia sagrado. Dia de dedicação a Deus, à meditação e à família, e não ao trabalho. Dessa forma, tudo o que

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se preparava na cozinha era feito na véspera, ou seja, às sextas-feiras até o início da tarde. Daí em diante, ficavam à espera do dia sagrado, simbolizado pelo aparecimento da primeira estrela no céu. Nesse momento, a mulher (que significa a referência da família), Szeva, acendia duas velas e o filho mais velho, Sloma, ou o patrono da casa, Sucher, rezava para abençoar o vinho e o pão, para que nunca faltassem alimentos naquele lar. Sloma gostava de presentear o mano Samuel, quatro anos mais novo, com o doce reservado para ele. O caçula, então, retribuía com trabalho: lustrava os sapatos de Sloma até ficarem como um espelho. Na rotina do Shabath, havia um ritual: o pai sempre se sentava à cabeceira da mesa e repetia algumas palavras sobre a ideologia do povo judaico. No encerramento, ele lembrava a hierarquia familiar, em que os filhos obedecem aos pais e os irmãos mais novos aos mais velhos. Esse era o sinal de que iria começar a refeição. Nela, poderiam comer de tudo e o quanto quisessem.

Mas essa não era a realidade da maioria das famílias judaicas da Polônia. A vida delas era repleta de dificuldades. O mais comum eram famílias cujas panelas recebiam apenas repolho, ervilha e beterraba. Batata, um dos alimen-tos mais caros, era coisa rara. Os alimentos eram cozidos numa única panela. Os integrantes se sentavam, cada um com uma colher, e usavam o talher para retirar a comida da própria panela e levá-la à boca. Só se encontravam pratos, garfos e facas nas casas de famílias ricas e representadas, em geral, por fazen-deiros católicos. Aliás, ter um pedaço de terra era privilégio de poucos. Entre as famílias judaicas, então, pouquíssimas a possuíam.

Em meio a tudo isso e tanta pobreza, o futuro e as ambições de vida das crianças e dos jovens judeus ficavam comprometidos. As escolas ajudavam a reforçar tal situação.

Ainda com 7 anos, Samuel foi estudar numa escola que não era judaica. Ficava a uns vinte minutos de sua casa. Era esse o tempo que o menino levava para percorrer o caminho a pé. Logo no primeiro dia, sentiu como era difícil para um judeu ser aceito na sociedade – mesmo entre as crianças. Desde a infância, os cristãos já tinham o hábito de não chamar um judeu pelo nome. Com isso, Samuel já estava acostumado. Mas de “judeuzinho”, ele passou a ser chamado de “judeuzinho sujo”. Outros adjetivos pejorativos também lhe

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eram atribuídos, o que o deixava ainda mais constrangido. Assim foram os quatro anos em que permaneceu nessa escola, em Zaklikov, sempre com medo de que as ameaças das outras crianças, de que ele seria espancado, fossem cum-pridas. O medo fazia com que ele utilizasse alguns atalhos para chegar à escola e saísse antes do final da aula para não ser abordado pelos “colegas”. O medo aumentava ainda mais quando, nas conversas do pai com os amigos em casa, ficava sabendo que havia acontecido um progom. Essa era a palavra secreta para informar que, nas redondezas ou em algum outro lugar da Polônia, jovens, geralmente vindos do campo, tinham invadido bairros judeus para cometer barbaridades. Samuel só sabia que aquilo era algo ruim contra os judeus, mas não conhecia a dimensão real da situação. Esses jovens quebravam tudo o que podiam e batiam sem dó no maior número possível de judeus, além de repetir insistentemente que “os judeus eram os assassinos de Cristo”, conforme o que era pregado nas igrejas católicas. Pedir para um polonês não bater em um judeu não ajudava em nada. Dizer “Ei, não bata nele!” era uma espécie de senha para iniciar ou intensificar a agressão.

Pelo menos em casa Samuel buscava esquecer um pouco da tensão vivida nas ruas. O que mais o divertia era quando percebia que a água já estava se esgotando. Ele levava os vasilhames até a fonte pública para enchê-los. Depois, voltava para casa e os escondia. Hora, então, de pregar a peça. Dizia ele: “Mamãe, mamãe, estamos sem água. O que vamos fazer?” A mãe, Szeva, fingia acreditar que ele não tinha ainda solucionado o problema e entrava na encenação: “E agora, Samuel, o que vamos fazer? Quem irá nos salvar? Preci-samos de água!”. Era quando Samuelzinho – como a irmã mais velha, Césia, gostava de chamá-lo – estufava o peito e com as bochechas coradas falava: “Mamãe, não se preocupe. Já fui buscar água. Jamais vou deixar faltar nada nesta casa”, e caía na gargalhada. A mãe, como recompensa, emendava: “O que seria de mim sem você?”.

No início da década de 1930, aos 8 anos, Samuel já era um amante do trabalho. Além de cuidar para que não faltasse nada em casa, como prometera inocentemente à mãe, o menino já sabia manusear bem o serrote e mostrava habilidade com a madeira. Seguia a vocação hereditária. Como não alcançava a mesa de trabalho, pediu ao pai para que serrasse alguns pedaços de madeira

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e com eles fez uma base, que servia como uma espécie de suporte para os pés. Com os centímetros que ganhava em altura, podia fazer o trabalho sem grandes problemas. Mas com toda essa energia, o Shabath, que trazia muita comida, ao mesmo tempo o proibia de trabalhar. Ele nunca deixava transparecer, mas isso lhe causava certa angústia. De tanta dedicação e empenho ao trabalho, o garoto tinha até calos e bolhas nas mãos.

Em um desses sábados, o pai viu Samuel sentado num degrau na entrada da casa. “O que é que você faz aí parado, olhando para o alto, Samuel?”, perguntou Sucher. O menino, pego de surpresa, disse em tom de suspense: “Calma, papai, quando acontecer o que quero, vou avisar”. O pai entrou em casa. Momentos depois, Samuel descobriu que, quando apareciam as três primeiras estrelas no céu, elas traziam o sinal de que havia começado um novo dia e, assim, de que logo poderia retomar o trabalho. Foi quando se levantou e entrou em casa esbaforido: “Papai, papai, venha comigo. Vamos ver as estrelas. Elas estão no céu. Isso significa que já podemos trabalhar!”, disse euforicamente. Só então o carpinteiro Sucher entendeu por que o menino ficava tanto tempo sentado naqueles degraus, olhando para o céu. “Esse garoto tem uma energia e vibração diferentes”, pensou alto o pai.

Dos 7 aos 14 anos, a vida de Samuel não teve nenhuma grande trans-formação. Ficava restrita à escola, aos trabalhos de casa e a ajudar o pai na marcenaria. Nada mudava, a não ser o crescimento do antissemitismo.

Novas aventuras: Lipa

Em 1937, aconteceu a primeira mudança drástica na vida dos Klein: decidiram abandonar a pequena, pacata e tão judaica Zaklikov para se aventurarem na ainda menor Lipa. A nova cidade em nada lembrava a anterior. A presença de judeus era rara, o que tornava o ambiente pouco hospitaleiro e familiar, ou seja, mais um obstáculo a ser superado. Nesse sentido, o pior de todos os problemas era o fato de que, em Lipa, sequer havia uma sinagoga. Os encontros entre os patrícios no Shabath, ou em outras celebrações como o Yom Kipur (considerada a data mais sagrada do judaísmo por representar o Dia do Perdão, quando a comunidade se entrega

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ao sacrifício de jejuar durante 25 horas para pedir a Deus perdão pelos pró-prios pecados), ou no próprio Pessach, aconteciam em meio a muitas rezas, consolos e lamentações nas casas das famílias judaicas. Foi uma mudança estratégica e provocada pelo fato de o pai, Sucher, começar a trabalhar e ter cada vez mais clientes em Lipa do que em Zaklikov, onde havia muitos carpinteiros. Curiosamente, na nova cidade não existia nenhum concorrente. Em Lipa, era o trabalho que procurava Sucher e não o contrário. Antes da mudança definitiva, Sucher foi amadurecendo a ideia. Primeiro, conciliou o serviço nas duas aldeias. Depois, durante algum tempo, morou só em Lipa, deixando a família em Zaklikov, para onde voltava às sextas-feiras. Assim teria tempo de aproveitar o Shabath ao lado da esposa e dos filhos. Nessa época, Sloma, o mais velho, passou a acompanhar o pai na maratona de trabalho, que exigia ir e vir entre as duas aldeias.

Viver em Lipa não trazia alegria alguma para Samuel. Era, sim, motivo de tristeza. Os amigos eram escassos e a vida social quase inexistente. O medo e a incerteza tomavam conta de seu coração, tão apertado como quando era criança. Aliás, o desconforto lembrava uma daquelas brincadeiras da infância, mas que ele levou a sério. Certa vez, aos 4 anos, ouviu da mãe (na época grávida de Isaac, um dos nove filhos que o casal teve e que morreria anos mais tarde num campo de extermínio) a seguinte frase: “Samuel, se o bebê que nascer for um homenzinho, o primeiro irmão a ter nascido antes dele deverá sair de casa, e esse irmão é você”. Ele percebia que a mãe falava num tom de voz que em nada parecia ser sério ou em que se pudesse acreditar, mas sustentava a questão. Aquilo parecia realmente ter sentido, já que dois anos após o seu nascimento a mãe havia dado à luz uma menina chamada Esther. Para bagunçar de vez a cuca de Schmiliale, o menino saiu batendo de porta em porta pela vizinhança para saber se a história tinha um fundo de verdade. Todos confirmaram e entraram na brincadeira, enquanto ele ficava cada vez mais angustiado. O momento mais marcante aconteceu quando, em casa, Samuel recebeu a notícia de que a criança que acabara de nascer era realmente do sexo masculino. Um irmão. O que seria dele? Assim que o pai e a mãe entraram em casa com o bebê, Samuel saiu em disparada e agarrou-se à saia de Szeva, dizendo: “Por favor, me deixem ficar. Não tenho para onde ir.

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Amo vocês e meus irmãos. Não quero abandoná-los”. Foi aí que a mãe per-cebeu a gravidade do que até então considerava brincadeira. Primeiro, ela acomodou o bebê. Depois, pegou Samuel pela mão e o levou a um dos cômodos: “Desculpe, meu filho. Você acreditou mesmo nessa bobagem?”, disse, quase em prantos. “Claro, mamãe, sempre acredito em tudo o que a senhora fala”, respondeu Samuel, também com o rosto cheio de lágrimas. Recebeu da mãe um forte abraço. Que sensação de segurança Samuel sentiu naquela hora. “Olha, para um pai e uma mãe, o filho é o que há de mais importante na vida. Jamais permitiria que você saísse de casa. Foi tudo uma brincadeira. Amo demais você, meu filho”, disse Szeva, segurando os braços de Samuel e olhando-o de frente. Samuel balançou a cabeça e, com a manga da camisa, enxugou as lágrimas. “Vamos esquecer isso tudo, meu amor, e comemorar com uma grande festa a chegada de Isaac”, disse Szeva, para encerrar o assunto.

Mas voltemos aos novos ares: o coração de Samuel ficava ainda mais apertado quando tinha que ir para as aulas. No passado, o medo já o incomo-dava na escola. Agora, com um número menor de judeus na cidade, os riscos seriam maiores. A sala de aula tinha mais um judeu além dele. Estavam sempre juntos e conversavam bastante. Os dois chegaram a combinar que em hipótese alguma iriam chamar a atenção do restante do grupo ou mesmo dos professores. Buscariam sempre o anonimato. Jamais abririam a boca. Suportavam calados as provocações e insinuações de que eram burros. Às vezes, Samuel até tinha vontade de repetir o que tinha feito nos primeiros anos de escola, quando a professora perguntou: “Quem gostaria de ir lá na frente responder quanto é cinco mais três?”. Samuel sabia e ficou com as bochechas vermelhas. Sempre foi bom em matemática. Esperou alguns segundos, mas ninguém se prontificou. Timidamente, levantou o braço. “Que bom, Schmiliale, vá lá na frente e diga a resposta para todos nós.” Puxa vida, um judeu, ainda no primário, daria a resposta: “Professora, cinco mais três é igual a oito”, disse Samuel com uma voz que mal se conseguia ouvir. E ele foi muito festejado – “Parabéns, Schmiliale, você acertou. Crianças, façam como ele. Estudem para que possam ir bem nas aulas”, aconselhou a professora. Samuel sorria, muito mais por dentro do que por fora, e voltou para a cadeira tão feliz e fortalecido quanto um verdadeiro herói.

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