VILLA, Rafael D. a Questão Democrática Na Agenda Da OEA No Pós-Guerra Fria

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55 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20, p. 55-68, jun. 2003 Rafael A. D. Villa Universidade de São Paulo A QUESTÃO DEMOCRÁTICA NA AGENDA DA OEA NO PÓS-GUERRA FRIA O objetivo deste trabalho é examinar de que maneira a Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio de suas Missões de Observadores (MOE-OEA), vem institucionalizando práticas de democracia representativa no sistema interamericano. A partir das eleições peruanas de 2000, o artigo mostra as limitações dos princípios democráticos quando eles confrontam-se com o princípio de não-intervenção sustentado em atuações defensivas de potências médias (caso do Brasil) e pequenos atores estatais. Organizações como a OEA vêm incorporando em sua agenda a democracia com uma intensidade pouco usual na sua história diplomática. O artigo conclui que tal explicitação democrática da OEA nem sempre se traduz em resultados bem-sucedidos. Existem constrangimentos que passam pela própria institucionalização de seus procedimentos de monitoramento, pelos interesses políticos e econômicos das potências regionais e pelo sempre espinhoso problema dos limites entre monitoramento e não- intervenção nos assuntos internos dos países membros. PALAVRAS-CHAVES: Organização dos Estados Americanos; democracia; não-intervenção; missões de observadores. I. A OEA E A GLOBALIZAÇÃO DA POLÍTICA A reemergência de instituições intergoverna- mentais e não-governamentais, com papéis mais ativos na política regional e mundial, é uma ca- racterística marcante na reformulação do quadro institucional internacional do pós-Guerra Fria. Essas organizações, velhas e novas, redefinem papéis de uma forma que poderíamos chamar de alta especialização institucional da política mundial. Essa alta especialização evidentemente não representa nenhuma novidade: a novidade parece residir em que seus papéis tornaram-se mais defi- nidos e, em alguns casos, passaram a ter um poder de coerção, bem seja de natureza diplomática, econômica ou militar. Dessa maneira poderíamos sugerir que hoje em dia, para cada área importante da política mundial, existem instituições especia- lizadas que asseguram um mínimo de “governa- bilidade internacional” ou de good governance. O campo da segurança estratégica internacional vem sendo assumida de maneira mais atuante pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); o campo financeiro pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BIRD); a área comercial pela Organização Mundial do Comércio (OMC), e a área político- diplomática pelo chamado G-7. Paralelamente a um crescente processo de glo- balização e de especialização mundial da política, opera-se também um outro, ascendente, de regionalização da política. Ele é pensado nas suas origens em termos de regionalização econômica (União Européia, NAFTA, Mercosul etc.), portanto como um processo cujo protagonista principal é o Estado, mesmo que o princípio que oriente sua ação de longo prazo possa ser, como no caso da União Européia, a possibilidade de sua transformação numa experiência supranacional, o que certamente implica o enfraquecimento do ator estatal. De outro lado, as transformações do pós-Guerra Fria per- mitiram também a redefinição das funções de instituições intergovernamentais políticas e de segurança mundiais e regionais. Como atenta Gui- marães: “Na área política, a estratégia é definir e negociar compromissos internacionais que incor- porem regras de bom governo – good governance – a serem seguidas pelos países periféricos, tais como a adoção da democracia representativa como único regime aceitável de governo; controle da corrupção; direitos humanos e de minorias; legis- lação social e trabalhista; política de meio ambiente Recebido em 8 de março de 2003. Aprovado em 14 de abril de 2003.

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VILLA, Rafael D. A questão democrática na agenda da OEA no pós-Guerra Fria. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20, p. 55-68, jun. 2003.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 55-68 JUN. 2003

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20, p. 55-68, jun. 2003

Rafael A. D. VillaUniversidade de São Paulo

A QUESTÃO DEMOCRÁTICA NA AGENDADA OEA NO PÓS-GUERRA FRIA

O objetivo deste trabalho é examinar de que maneira a Organização dos Estados Americanos (OEA),por meio de suas Missões de Observadores (MOE-OEA), vem institucionalizando práticas de democraciarepresentativa no sistema interamericano. A partir das eleições peruanas de 2000, o artigo mostra aslimitações dos princípios democráticos quando eles confrontam-se com o princípio de não-intervençãosustentado em atuações defensivas de potências médias (caso do Brasil) e pequenos atores estatais.Organizações como a OEA vêm incorporando em sua agenda a democracia com uma intensidade poucousual na sua história diplomática. O artigo conclui que tal explicitação democrática da OEA nemsempre se traduz em resultados bem-sucedidos. Existem constrangimentos que passam pela própriainstitucionalização de seus procedimentos de monitoramento, pelos interesses políticos e econômicosdas potências regionais e pelo sempre espinhoso problema dos limites entre monitoramento e não-intervenção nos assuntos internos dos países membros.

PALAVRAS-CHAVES: Organização dos Estados Americanos; democracia; não-intervenção; missõesde observadores.

I. A OEA E A GLOBALIZAÇÃO DA POLÍTICA

A reemergência de instituições intergoverna-mentais e não-governamentais, com papéis maisativos na política regional e mundial, é uma ca-racterística marcante na reformulação do quadroinstitucional internacional do pós-Guerra Fria. Essasorganizações, velhas e novas, redefinem papéis deuma forma que poderíamos chamar de altaespecialização institucional da política mundial.Essa alta especialização evidentemente nãorepresenta nenhuma novidade: a novidade pareceresidir em que seus papéis tornaram-se mais defi-nidos e, em alguns casos, passaram a ter um poderde coerção, bem seja de natureza diplomática,econômica ou militar. Dessa maneira poderíamossugerir que hoje em dia, para cada área importanteda política mundial, existem instituições especia-lizadas que asseguram um mínimo de “governa-bilidade internacional” ou de good governance. Ocampo da segurança estratégica internacional vemsendo assumida de maneira mais atuante peloConselho de Segurança da Organização das NaçõesUnidas (ONU) e pela Organização do Tratado doAtlântico Norte (OTAN); o campo financeiro peloFundo Monetário Internacional (FMI) e pelo BancoMundial (BIRD); a área comercial pela Organização

Mundial do Comércio (OMC), e a área político-diplomática pelo chamado G-7.

Paralelamente a um crescente processo de glo-balização e de especialização mundial da política,opera-se também um outro, ascendente, deregionalização da política. Ele é pensado nas suasorigens em termos de regionalização econômica(União Européia, NAFTA, Mercosul etc.), portantocomo um processo cujo protagonista principal é oEstado, mesmo que o princípio que oriente sua açãode longo prazo possa ser, como no caso da UniãoEuropéia, a possibilidade de sua transformaçãonuma experiência supranacional, o que certamenteimplica o enfraquecimento do ator estatal. De outrolado, as transformações do pós-Guerra Fria per-mitiram também a redefinição das funções deinstituições intergovernamentais políticas e desegurança mundiais e regionais. Como atenta Gui-marães: “Na área política, a estratégia é definir enegociar compromissos internacionais que incor-porem regras de bom governo – good governance– a serem seguidas pelos países periféricos, taiscomo a adoção da democracia representativa comoúnico regime aceitável de governo; controle dacorrupção; direitos humanos e de minorias; legis-lação social e trabalhista; política de meio ambiente

Recebido em 8 de março de 2003.Aprovado em 14 de abril de 2003.

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e desarmamento nuclear e convencional. Essasnormas seriam sancionadas através de organismosregionais ou de organismos multilaterais” (GUI-MARÃES, 1999, p. 113-114).

O caso da Organização dos Estados America-nos (OEA) parece emblemático nesse sentido.Durante a Guerra Fria foi limitada a possibilidadede os Estados Unidos utilizarem o Conselho deSegurança da ONU como uma instância punitivaglobal devido à freqüente utilização do poder deveto soviético. Dessa maneira, a potência do Norteteve que reordenar sua estratégia no sentido de a-proveitar melhor o espaço e as brechas deixadaspela existência de algumas organizações multila-terais regionais (de natureza diplomática e de se-gurança). Nessa estratégia encaixou-se bem aOEA: a organização, em várias oportunidades, agiucomo instância de legitimação dos embates ideoló-gicos, das invasões e da capacidade punitiva (mili-tar ou econômica) desenvolvida pelos EUA contraalguns países da região, como a Guatemala de Ja-cobo Arbenz (1954), a Cuba de Fidel Castro(1962), a República Dominicana de Bosch (1965),a Granada de Hudson Austin (1983) e o Panamáde Noriega (1989). Em outras palavras, não consti-tui nenhuma novidade que organismos multilateraisregionais sejam utilizados como mecanismos delegitimação da ação estatal internacional do atorhegemônico. No período da Guerra Fria, como a-gir de outra maneira quando existia uma outra ideo-logia concorrente com pretensões de universali-dade e o triunfo de qualquer uma delas significavanecessariamente um jogo de soma zero?

Com a queda da União Soviética já não existemais, hoje, tal concorrência ideológica e o que sevem chamando de globalização da política ou degovernabilidade internacional coincide em muitocom uma das grandes tradições e objetivos dapolítica externa americana: a aceitação como valore como prática de sua concepção liberal dedemocracia. Como argumenta Kissinger, “aspeculiaridades que os Estados Unidos se atribuíramao longo da história resultaram em duas posturascontraditórias da política externa. Primeira, a de queos EUA melhor atendem a seus valores aperfei-çoando a democracia em casa e servindo assim defarol para o resto da humanidade; segunda, a doque os valores americanos impõem aos EUA aobrigação de promovê-los no mundo inteiro”(KISSINGER, 1999, p. 14).

Uma pergunta relevante é: caberia pensar emum desmonte de organizações do tipo da OEA,

dado que o concorrente ideológico dos EUA“desmanchou no ar”? Evidentemente a resposta équase necessariamente negativa: nem os estadoshegemônicos possuem uma visão tão conjunturalda política internacional e nem o triunfo da idéiademocrática (para utilizar palavras caras a Fukuya-ma) significa que todos os estados ipso facto ado-taram o modelo da democracia ocidental. Ou, melhordito, aceita-se com facilidade a essência, o valor,porém esse valor ainda está longe de concretizar-se em práticas e instituições democráticas perma-nentes, ao gosto dos Estados Unidos.

Não caberia então o desmonte de organizaçõesregionais multilaterais, posto que são importantespara irem constituindo as bases da universalizaçãodemocrática. E como se trata de um princípio noqual todos os atores estatais que formam parte daOrganização apresentam um consenso valorativo,a tarefa parece facilitada. Coerentemente com isso,quase coincidindo com o desmoronamento sovié-tico, a OEA aprovou em 1991 a Resolução n. 1080,ou “cláusula democrática”, que prevê a suspensãoda participação no sistema interamericano daquelespaíses onde exista quebra da ordem constitucionale institucional democrática. Dito de outra maneira,em certas circunstâncias o exercício do poder inter-nacional não privilegia necessariamente seus as-pectos físicos ou materiais porém seus aspectosvalorativos, traduzidos em luta pelo exercício dehegemonia. Certamente, a definição de uma agendainternacional que inclua esse aspecto depende dacorrelação ou distribuição de forças internacionais.A promoção da democracia como forma global degoverno não é fixa mas depende da distribuição dopoder, “São as relações de força que determinam,numa larga medida, a escolha dos problemas [e dosvalores] que convém atacar se se quer manter aordem existente, neutralizando os elementos capa-zes de a lesar” (COX & JACOBSON, 1990, p. 403).

Com a globalização da política, meio do valorda democracia ocidental, trata-se exatamente de“neutralizar” e de reconstruir mas não de destruirordens políticas de países que, em princípio, sãomais amigos que inimigos. Isto é, em um mundopolarizado ideologicamente, como aquele da GuerraFria, valia a definição de Carl Schmidt de que arelação básica da política é a dicotomia amigo-inimigo (SCHMIDT, 1992). Nesse campo de forçasas posições intermediárias ficavam sobrando. Aliás,segundo essa perspectiva analítica, com aglobalização unidimensional da política, baseadada crença no valor universal da democracia

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ocidental, um dos campos da metáfora política deSchmidt (o inimigo) tende a desaparecer. Por essavia também chegaríamos ao fim da política. Foraessa polêmica idéia, o relevante do caso é constatarque os atritos em torno do tema da democraciapassam, atentando sempre à natureza pública doconceito e não a seu caráter privado, a uma luta nocampo dos amigos. Ou, para utilizar uma metáforada linguagem da guerra, os eventuais feridosdesses confrontos estão sendo “atingidos pelofogo amigo” e não pelo fogo inimigo.

Descrito esse panorama conceitual no qual searticula uma organização multilateral regional nopós-Guerra Fria, uma questão de fundo que apareceé: o que leva uma organização a exigir de um deseus membros a adequação de suas instituições, eda sua natureza, aos princípios e regras do jogo dademocracia? Qual é a legitimidade desse procedi-mento de construção exógena de valores e deinstituições? A organização ou reorganização doEstado-nação e de suas instituições e a escolhados valores na base de que se organizam insti-tuições historicamente é um processo endógeno,isto é, sancionado a partir da comunidade políticanacional. Esse procedimento é o que conferelegitimidade à ordem política de qualquer país. Asoberania interna de um pais implica necessaria-mente que a deliberação da agenda política internacorresponda a um processo de legitimação por meiode mecanismos definidos para esse efeito pelacomunidade política nacional.

Poderíamos sugerir três possíveis hipótesespara esses problemas. Primeiro, que os regimes denatureza democrática são menos alentados pelodesejo da guerra ou pelas atitudes belicosas. Deacordo com as conhecidas palavras de Bobbio,regimes de natureza democrática nunca foram àguerra durante o século XX (BOBBIO, 1984). Essahipótese parece desconhecer que, como ensinavaHobbes, a guerra nem sempre consiste no choquedireto dos combatentes mas numa constantedisposição para tal ação. Segundo, a própria idéiade que estamos mesmo numa era do fim dasideologias, como sustenta o refinado argumentode Francis Fukuyama. Sem concorrentes universais,a democracia liberal impõe-se como imperativocategórico, decorrente da superioridade e coerênciaética de seus postulados normativos. Como opróprio Fukuyama reconheceu, o grande problemadesse argumento é que ele tem que ser levado asério sempre que pensemos o mundo em uma

perspectiva racionalista e ideal, porque ainda seestá muito longe de sua realização no mundomaterial. Para ficarmos num exemplo só, a China,que alberga 1/6 da população mundial, não pareceainda muito disposta a aceitar a superioridadematerial da idéia de democracia. Em outras palavras,é inegável que existe uma discrepância suficiente-mente não resolvida entre racionalidade ideal eracionalidade material, entre a verdade efetiva dascoisas e o desejo de que a realidade fosse de outramaneira.

Uma terceira hipótese, que sem dúvida éconseqüência das duas primeiras, é que asorganizações internacionais contemporâneasincorporam cada vez mais a exigência de seusmembros contarem com regimes de naturezademocrática. Entre as cláusulas democráticasaprovadas pela OEA nos anos 1990 encontram-seo respeito ao Estado de Direito, às liberdades civise ao pluralismo. Em outras palavras, os membrosda OEA vêm sendo obrigados pela estrutura jurídicada organização a incorporarem cláusulasdemocráticas de compromisso e de acatamentoobrigatório como um requisito sistêmico deadequação às necessidades normativas deordenamento, equilíbrio e estabilidade da políticainternacional do pós-Guerra Fria. Ou seja, passama ser vinculados e obrigados a democratizar-se apartir de uma certa racionalidade formal não decaráter nacional mas exógena, internacional.

Novamente, o problema aqui de novo é que nosregimes do que se costumou chamar de TerceiroMundo, em que se inclui a maior parte dos paíseslatino-americanos, existe uma discrepância bastantesignificativa entre racionalidade formal e racionali-dade material. E isso significa que o problema jánão é de direito mas de política. Dito de uma outramaneira, o problema com que se defrontam aquelasinstituições é que ainda se está longe de superar adistância entre o modelo ideal de democracia quese quer e aquele que realmente existe. A poucaeficácia da atuação da OEA, como vêm demons-trando os casos peruano e haitiano, parece nãolevar em conta o diagnóstico que teria por base aseguinte pergunta: de que tipo de democraciaestamos falando no caso da América Latina? Certa-mente essa pergunta aponta na direção de sugerira existência de democracias (no plural) e não dedemocracia (no singular). Então a questão passapela resposta à pergunta: qual é a democracia quese pratica nos países latino-americanos?

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II. CONDICIONANTES POLÍTICOS DAATUAÇÃO DA OEA

A resposta a essa pergunta também passa pelaconstatação de que a exigência da aplicação daracionalidade formal aos sujeitos (chamem-secidadãos ou estados) exige que, para atingir umcerto grau de eficácia, a norma exige como condiçãoa priori sua aplicação a sujeitos que agem e queexistem em condições de igualdade. Como exigirracionalidade na escolha dos melhores governantesa um eleitor que não possui o mesmo nível ouacesso à informação quando comparado com umsegundo que possui essas condições? O mesmopodemos dizer do exercício da democracia naAmérica Latina. Como exigir a prática universal domodelo de democracia euro-americano nos paísesda região quando as condições geradas por fatoresculturais (tradição autoritária), pelas profundasdesigualdades sociais ou pelo baixo grau deinstitucionalização das chamadas regras do jogoimpossibilitam um mínimo de congruência entre aracionalidade formal (exprimida juridicamente emconstituições, cláusulas ou decretos) e a práticaefetiva da democracia?

Numa rápida enumeração de suas caracterís-ticas, o modelo de democracia representativa euro-americano caracteriza-se por uma alta institucionali-zação de suas práticas democráticas, o respeito peloformação da vontade política por meio da regra damaioria, o funcionamento do mecanismo deaccountability ou de prestação de contas (dosgovernantes para o demos ou dos principaispoderes entre si), a incorporação dos gruposorganizados e representativos de interesses sociaisna definição e discussão da agenda política e a altainstitucionalização dos mecanismos eleitorais queexprimem os desejos da maioria e da minoria naeleição de seus representantes. Esse tipo ideal, nãoé difícil concluir, está longe de ser o modelo dedemocracia prevalecente na América Latina. Seucontraponto é caracterizado na região pelo queGuillermo O’Donnell chamou de “democraciadelegativa”, que corresponde a um modelo maisrealista de democracia: baixas definição e institucio-nalização das práticas democráticas e poucatransparência no exercício das regras do jogoeleitoral. Outro elemento notável desse arranjodemocrático é o mito de que o Presidente, dadoque foi eleito por uma maioria, pode fazer discri-cionariamente tudo, bastando para isso invocar erelembrar sempre qual foi o percentual de milhõesde votos com que foi eleito. Também formam parte

desse modelo real de democracia a ausência de ummecanismo ao mesmo tempo vertical e horizontal(entre os poderes públicos) de accountability e adefinição unilateral da agenda pelo Presidente daRepública e seus principais assessores, sem levarem conta a voz de grupos de interesses e de outrossegmentos públicos como partidos e o Parlamento.Acrescente-se a isso as constantes acusaçõestrocadas entre Presidente e Congresso Nacionalsobre o tema de a quem corresponde a responsa-bilidade pelas crises. O produto da soma desseselementos políticos é uma imensa solidão no poderpor parte do Presidente da República, o que podetransformar-se em vazio de poder, resultando emperda de legitimidade do mandato popular algumasvezes ainda na metade do mandato. “Comoinstitucionalizar uma democracia que faz direta-mente o oposto daquilo que foi prometido?”(O’DONNELL, 1991).

A esses elementos teria que se adicionar umoutro, evidenciado pela recente experiência perua-na: o continuum de certas estruturas vigilantistas(caso dos corpos de segurança ou de inteligênciaestatal) do período autoritário, que, incrustadas nonúcleo duro do Estado, usurpam a formação davontade política de seus representantes. Oparadoxo é que essas estruturas continuam agindodentro do mesmo padrão autoritário e repressivodas ditaduras militares do passado, agora emcondições políticas democráticas. Esse paradoxoevidencia o que O’Donnell chamou de segundatransição (aquele período que se inicia logo após ofim dos governos ditatoriais), que se temprolongado e tem sido mais complexo e delicadodo que podia prever-se. Indica também, novamente,a fragilidade ou a inexistência de accountabilityhorizontal. A não-existência dessa condição dademocracia moderna decorre de um insulamentosem controle do poder público, que se traduz naaparição de feudos de poder no interior do Estadoque imprimem uma dinâmica autônoma (fora detodo controle) a suas ações.

É nessas condições internas descritas pelo tipoideal de democracia delegativa que agem asorganizações como a OEA nos processos eleitoraispor meio de suas missões de observadores, ouMOE-OEA, como também são conhecidas. Para aatuação da OEA em relação a alguns de seus países-membros, essas condições internas de funciona-mento da democracia real constituem um primeiroconstrangimento ou limitação, ou, diríamos de outraforma, uma limitação estrutural, que não cabe ser

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superada por via da racionalidade formal. Inclusivea própria necessidade da existência de talinstrumento de observação dos processoseleitorais já indica, senão uma desconfiança a priorida lisura dos processos eleitorais em alguns paísesda região, ao menos sugere, sim, que aeventualidade de “comportamentos impróprios”não pode ser descartada. Ante essa limitação detipo estrutural, qual é a possibilidade de umaatuação eficaz das missões de observadores daOEA nos processos eleitorais? Isso depende devários fatores. Depende, em primeiro lugar, de umacondição ad hoc: a vontade dos governantes edas elites locais em colaborar. A disposição para acolaboração, por sua vez, depende da maior oumenor sustentação popular das elites governantes.É oportuno lembrar que as democracias delegativasfuncionam na base da afirmação de que o mandatooutorgado pelo demos dá o direito de governardiscricionariamente. Essa discricionariedade noexercício do poder vê-se reforçada pelo fato de quealguns desses governantes têm sido eficazes nocombate a certos males (altas taxas de inflação,insegurança, terrorismo, narcotráfico etc.), razão porque, em uma reprodução do velho estilo paternalistada política latino-americana, os governados, ou umaparcela deles, sentem-se altamente gratos pelo“favor recebido”. Isso explicaria que alguns gover-nantes, como o paradigmático caso de Fujimori noPeru, ainda conservem boa aceitação popular adespeito de seus desaforos autoritários.

Da mesma maneira, essa disposição paracolaborar pode basear-se em um cálculo dasvantagens para as elites governantes. Aliás, issonem sempre lhes significa desvantagens: a presençadas missões de observadores pode transformar-seem um instrumento que transfere legitimidade aoprocesso em si, na medida em que suas avaliaçõespositivas, a priori e a posteriori, podem servir comoparâmetro de aceitação e referência para outrosestados e organizações internacionais de naturezaeconômica e política. Porém, a disposição para acolaboração está muito condicionada pelacorrelação de forças internas à situação e àspróprias forças opositoras: a intransigência defacções, de ambos os lados, polarizadas nasmetáforas de “linhas dura” ou “branda”, hard ousoft, “falcões” e “pombas”, podem determinar tantoo rumo de uma eleição quanto a própria eficácia dapresença dos observadores1.

Uma segunda limitação com que se defrontamas missões de observadores é de caráter sistêmico,isto é, o reconhecimento de que as agênciasestatais, governamentais, a oposição e as própriasmissões de observadores (enquanto organizaçõesinternacionais) têm uma autonomia de atuaçãolimitada pelas demandas e pressões do ambienteexterno. “Em outras palavras, na noção de sistemanão se contempla a possibilidade de que um dosatores atue sem que isso venha a provocar reaçõesno entorno” (VILANOVA, 1995, p. 40). As reaçõesà atuação de um ator podem ser de ordem local ouglobal. Tais deslocamentos, a favor ou contra ainiciativa do ator, manifestam-se em constrangi-mentos ou limitações à iniciativa dos quais um atorcoletivo e multilateral como a OEA dificilmenteescapa.

A isso se acrescenta uma terceira limitaçãorotineira referida à própria natureza de organizaçãointernacional como a OEA: a constituiçãopredominantemente estatal da organização. Dadasua natureza, corresponde aos estados desem-penhar o papel principal, o que traz a conseqüênciaquase óbvia de que no seu funcionamento essetipo de organização apresenta a dupla característicade representante de interesses estatais e de organis-mo que procura agir com um mínimo de identidadeprópria. Porém, a evidente tensão que se gera emtorno de ambas funções acaba resolvendo-se emfavor da primeira. Não se deve esquecer que essetipo de organização e atuação corresponde àquiloque Cox e Jacobson classificam na categoria desubsistemas representativos, “que são compostospelas instâncias dos diferentes países, cujas intera-ções (essencialmente nos próprios países) determi-nam a política perseguida pelos representantes deseus país no seio da organização em questão” (COX& JACOBSON, 1990, p. 392). Atentando-se para anatureza estatal da OEA, chega-se a explicar-se,em parte, porque os esforços de democratizaçãofeitos por seus próprios subsistemas organizacio-nais (exemplificados por suas missões de observa-dores) acabam condicionados pela e limitados àdefinição dos interesses nacionais dos principais

1 No caso do segundo turno das eleições peruanas, um dos

fatores determinantes no fracasso da negociação entre ogoverno, a oposição e a missão de observadores da OEA foia atitude intransigente adotada pela ala dos “falcões” docandidato Alejandro Toledo, que não aceitava uma data mínimade realização do segundo turno que não fosse o 18 de junhode 2000, quando a data que estava atingindo o consenso era odia 11 de junho de 2000.

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estados que compõem a organização.

Essa hipótese pode ser compreendida demaneira mais ampla quando atentamos para umoutro constrangimento que decorre do fato de sera OEA constituída por países com dimensões depoder das mais variadas, dado que é composta depaíses com objetivos de política internacionalmarginais, de alcance médio e aqueles de objetivosestruturais. No primeiro caso estariam localizadosa maior parte dos países integrantes da OEA. Umsegundo grupo de países corresponde àquilo queHuntington chamaria de potências regionaisprincipais (Brasil) e secundárias (Canadá, Méxicoe Argentina) (HUNTINGTON, 1999). Finalmente, aOEA apresenta na sua composição não só umapotência mas uma superpotência multidimensional.Evidentemente os conflitos mais sérios acabamdando-se entre a superpotência e a potênciaregional principal. Esses conflitos têm na sua origemo desejo de afirmação de autonomia local por parteda potência regional principal visando à afirmaçãode seu interesse nacional face região.

É inegável que esses conflitos frios têm suarepercussão na atuação de um organismomultilateral como a OEA. A origem desses conflitosrelaciona-se ao desejo de liderança regional, nemsempre manifestado de maneira clara, porém semprelatente. E nesse ponto a questão deixa de serdiplomática para transformar-se em um problemade geopolítica: a afirmação da liderança da potênciaregional principal poderia resultar em um dese-quilíbrio do quadro clássico e histórico do meca-nismo de balança de poder. Em relação a isso énecessário relembrar que o que se questiona noconceito de balança de poder não é sua procurapor parte dos estados ou mesmo sua vigênciahistórica; o que se questiona em tal conceito,sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, se éum dispositivo eficaz para atingir a paz no sistemainternacional. E de alguma forma o sucessivofracasso tanto da Liga das Nações como dasNações Unidas em implementar um mecanismo desegurança coletivo eficaz revigora esse instrumentocomo mecanismo para compreender-se a ação dosestados. Dessa maneira, a afirmação da liderançaregional do Brasil na região é percebida tanto pelasuperpotência como pela potência regionalsecundária (Argentina) como um caso de dese-quilíbrio da balança regional de poder. Os pressu-postos desse desequilíbrio estariam encarnados emtemas como o processo de integração econômicaregional, sob uma hipotética liderança brasileira, e

também pela possibilidade de o mesmo Brasil passara ocupar uma cadeira permanente no Conselho deSegurança da ONU. Nesse quadro, é tentadorafirmar que uma forma de compensação doexcedente de poder projetado do Brasil (isto é,potencial e não-real) passaria por um movimentono qual a potência regional secundária (Argentina)acompanhe, tanto por princípios quanto porpragmatismo, os deslocamentos ou contrafreios dasuperpotência em relação à potência regionalprincipal. Certamente isso não significa que apotência regional secundária tenha sua políticaexterna sempre atrelada à superpotência. Porémtambém é certo que nas últimas décadas (indiferentedo governo ser de natureza militar ou democrática)houve pouca autonomia da política externa argen-tina em relação aos Estados Unidos. Colocadasassim as coisas, é possível pensar que a atuaçãoargentina no caso das eleições peruanas, na qualacompanhou a posição dos Estados Unidos, reflitaessa preocupação com a balança de poder. A ques-tão aqui é: esse jogo regional de poder não acabade maneira clara limitando a eficácia da atuaçãodas missões de observadores? Ou, formulada aquestão de outra maneira: a eficácia desse meca-nismo não tem por limite o interesse nacional dosestados principais da organização?

III. NÃO-INTERVENÇÃO E DEMOCRACIANA AGENDA DA OEA

Uma resposta melhor delimitada dessa questãoleva-nos ao espinhoso tema da soberania em tem-pos de globalização. Um dos mitos popularizadosna passagem de um século para outro é que osconceitos de globalização e de soberania sãodiametralmente antagônicos; a idéia subjacente atal argumento é que o primeiro realiza-se emdetrimento do segundo. Como afirmam Hirst eThompson, o depositário da soberania (o Estado)ficaria assim relegado ao papel de gestor deassuntos relacionados à “política fria”, tais comodireitos humanos, direitos de minorias ou criaçãode serviços públicos necessários ao bom funcio-namento dos agentes principais da globalização,os grandes conglomerados econômicos (HIRST &THOMPSON, 1998). Sem dúvida os fluxos finan-ceiros e as mudanças introduzidas pela era dainformática e das telecomunicações ajudam a sus-tentar esse argumento. Ora, tal idéia deve ser consi-derada como uma premissa que é correta no queafirma, porém incorreta naquilo que nega. A glo-balização não significa necessariamente a dimi-nuição da importância do conceito de soberania. E

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nem sempre aparecem como elementosantagônicos. Dois exemplos bastam para isso: 1) épossível constatar que quantitativamente o númerode estados nos últimos anos tem aumentado:passou-se de 143 representados na AssembléiaGeral da ONU em 1991 para quase 200 em 1999.Poder-se-ia argumentar que a maior parte dessesestados, tanto antigos como aqueles que acabamde nascer como produto das implosões políticas,geográficas e étnicas do período pós-Guerra Fria,tem peso insignificante quanto a suas capacidadesde poder no sistema internacional. Essa afirmaçãonão é incorreta. Porém, como sustentado porHobsbawm, por que os nacionais desses territóriosnão procuram agrupar-se sob novas formas deorganização? Simplesmente porque continuamenxergando o Estado como o principal locus deidentidade coletiva (HOBSBAWN et alii, 2000); 2)nem tudo o que é produzido pela globalização éoposto ao objetivo dos estados de afirmarem suasoberania: o desenvolvimento da informática e dastelecomunicações permitiu ao Estado um maiorcontrole técnico-burocrático sobre as atividadesde seus cidadãos. Os modernos sistemas dearrecadação de impostos, utilizando-se dosmecanismos da internet, são um exemplo pertinentedisso. Aliás, como vêm mostrando os positivosresultados da introdução do mecanismo de urnasinformatizadas em eleições de países da regiãolatino-americana, os desenvolvimentos materiais daglobalização podem resultar em uma condiçãonecessária, embora não suficiente, para assegurarpadrões razoáveis de transparência eleitoral.Observadas as coisas a partir desses desdobra-mentos, podemos pensar em complementaridade enão em antagonismo entre globalização e soberania.

Ora, uma coisa é a globalização de fatoresmateriais (capital, tecnologia e mão-de-obra) e outraé a globalização dos valores e dos princípios (leia-se dos princípios de democracia liberal). Nesseterreno tanto a globalização dos valores quanto asoberania medem força e, ao contrário do quepoderia ser sustentado pelos globalistas, oresultado nem sempre é nefasto para o Estado, comodemonstrou o exemplo das eleições peruanas. Aassimetria entre universalização dos valores(assimilação dos princípios democrático-liberais),práticas reais e funcionamento efetivo das institui-ções democráticas acham seu maior empecilho nolegado histórico do princípio de não-intervenção(talvez o maior legado da ordem estatista que seiniciou em Vestfália) que continua a ser invocado

por qualquer Estado, independentemente do pesode suas capacidades de poder. E uma reflexão maisatenta sugere contradições latentes e reais entre alógica estatal e a universalização ético-normativada democracia liberal ocidental.

A maneira como os estados da região latino-americana fazem uso do princípio de não-interven-ção sugere duas estratégias. Uma primeira é de tiponormativa: trata-se de um princípio consagrado pelaprática histórica iniciada em Vestfália, cujaobservância possibilitou e contribuiu para dar umarelativa estabilidade, ou paz relativa, ao sistemainternacional e aos subsistemas internacionaisregionais. Além disso, em uma lembrança àintrodução do Leviatã (HOBBES, 1997, p. 27), aalma do Estado é a soberania, e seu núcleo duro,na atuação frente a outras comunidades políticas,é o princípio de não-intervenção. Como resultante,temos, a partir dessa primeira perspectiva, umacolisão de dois princípios: o princípio democráticoglobalizado com o princípio de não-intervenção,intrínseco ao Estado nacional. Esse esclarecimentoteórico é útil porque nesse conflito tende a confun-dir-se, às vezes, a invocação do princípio de não-intervenção como uma atitude realista ou pragmá-tica por parte do Estado. Assim, a postura da diplo-macia brasileira no seio da OEA, de não consideraras eleições peruanas no segundo turno como umprocesso ilegítimo, foi catalogada como um aban-dono, ou no mínimo um efeito suspensivo, dosprincípios em favor de uma atitude que, visando aointeresse nacional, seria realista. Na verdade,tratou-se de uma escolha entre dois princípios, oque leva então a uma hierarquia de princípios,optando-se pelo princípio de não-intervenção. Deum ponto de vista estritamente normativo, o critérioque um Estado aplica para fazer essa escolha estáancorado no fato histórico da universalidade e daeficácia do princípio de não-intervenção comoelemento gerador de estabilidade dos subsistemasinternacionais. Aliás, a opção por esse princípioacha uma justificativa normativa no fato de seracolhido pelo direito internacional da ONU.

Uma segunda estratégia é, agora sim, de caráterrealista e já não de caráter principista: os cálculossobre as conseqüências de uma atitude atrelada àretórica do princípio da universalidade democrática.Qual seria o ganho para a diplomacia brasileira oupara outros países da região (como a Venezuela) epara seus respectivos interesses nacionais, casoacompanhassem os pedidos de punição ao Peru,feitos pelos Estados Unidos, Canadá e Costa Rica?

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Na verdade, a conhecida saída diplomática brasi-leira, acompanhada por outros países da regiãocomo a Venezuela, o México e o Chile, de que eranecessário guardar-se o devido “equilíbrio entredemocracia e não-intervenção”, exprimia uma instru-mentalização do princípio de não-intervenção. Ditode outra maneira, o princípio serviu para solapar aprocura (em perspectiva) de macro-interesses regio-nais, como no caso brasileiro, ou serviu como umguarda-chuva diplomático (o que também podería-mos chamar de “diplomacia preventiva”), como nocaso da Venezuela, contra futuras intervençõesveladas dos Estados Unidos. Nas novas condições,essas intervenções já não assumem, como nopassado, a forma-base hard dos marines americanose sim a forma soft dos princípios democráticos.

Essa reação de alguns países da região por viada instrumentalização do princípio de não-inter-venção reveste-se de importância na medida emque é parâmetro para algumas constatações. A pri-meira tem a ver com o fato de que diferentementedos dias da Guerra Fria, as posições dos EstadosUnidos no seio da OEA já não atingem os consen-sos quase automáticos que antes atingiam. O con-texto ideológico internacional agia como um meca-nismo de pressão importante para atingir os pactosquase lockeanos de consentimento. Aqui voltamosa uma idéia já esboçada em páginas anteriores: jánão se trata mais de punir países com inclinaçõespor uma opção ideológica comunista mas de punirpaíses que aceitam princípios de governabilidadeinternacionais idênticos mas com enormes dificul-dades para colocá-los em prática. É claro que nissotambém influi a tradição pragmática da potênciaregional primária da região, o Brasil. A partir dosanos trinta do século XX tem existido um conti-nuum, raramente interrompido, no qual deixar dereconhecer ou de se relacionar diplomaticamentecom países de regimes políticos autoritários ou deopções ideológicas diferentes da democracia liberalnão tem sido um ponto de honra para a políticaexterna brasileira.

Uma segunda constatação relaciona-se ao fatode os Estados Unidos não parecem ter percebidoque nem todos os aspectos colocados na agendada democracia global têm os mesmos efeitos e amesma aceitação no sistema internacional. Asreações são diferenciadas. Por exemplo, tomemosum tema dessa agenda: os direitos humanos. Pou-cos duvidam hoje em dia de que a universalizaçãoda democracia está ligada à universalização dedireitos humanos que transcendam os particularis-

mos e os parâmetros antropológicos do relativismocultural. Isso forma parte de uma tendência dentrodo sistema internacional que aceita com menosrestrição a intervenção em alguns aspectos ou cam-pos relacionados ao conceito de democracia global.Assim, ninguém duvida de que a intervenção militarfeita no Cosovo em nome de direitos humanosgenéricos, e não só específicos de uma etnia, temmais possibilidades de ser aceita que a intervençãoem um processo eleitoral, por mais ilegítimo queele seja. Aliás, a redefinição da soberania estataltendo por pano de fundo a questão dos direitoshumanos é algo que já vem sendo constatado, des-de os anos 1970, pela atuação humanitária de urgên-cia de algumas organizações não-governamentaisinternacionais como os Médicos sem fronteiras eMedicina do mundo. Como sustenta Vilanova, co-mentando a atuação dessas organizações não-governamentais (ONGs): “O resultado final é sem-pre o mesmo: vem-se aceitando que o dever de aju-da humanitária leva diretamente ao direito de inger-ência por motivos humanitários nos assuntos inter-nos de um Estado. Isto é provavelmente uma dasmaiores conquistas da ação humanitária de urgên-cia de nosso tempo” (VILANOVA, 1995, p. 97).

O item da agenda democrática globalista rela-cionado aos processos eleitorais é mais delicado.No caso da OEA, a dinâmica que justifica umaintervenção fica limitada à ruptura dos processosdemocráticos por meio da força. Não se podeesquecer que um dos argumentos utilizados poralguns países latino-americanos para o caso daseleições peruanas foi que medidas retaliatórias nãose justificariam dado que não houve rupturainstitucional, via uso da força. Falando de maneirarealista, essa base de sustentação do argumento ébastante frágil. Na verdade, o argumento é nova-mente instrumentalizado. É uma forma solapada dealguns países da região fazerem um ajuste de contasem relação à atitude intervencionista estadunidensedo passado, utilizando-se do guarda-chuva doscomplexos e tortos caminhos do direito internacio-nal. Dessa forma, os mecanismos da OEA paramonitorar as eleições acabam reféns dos cálculosde interesses de seus membros e das interpretaçõesjurídicas que se depreendem da legislação elabo-rada por ela mesma sobre a matéria.

De outro lado, nas atuais condições, a possibili-dade de intervenção nos processos de democrati-zação da região acabam tendo uma outra limitaçãona questão seguinte: como uma ação mais decididae incisiva dos principais atores da OEA podem

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desestabilizar o posicionamento e a ação dessesmesmos atores frente a outras questões relevantese problemáticas na região? Tomando de novo porexemplo o caso peruano: seria conveniente para osEstados Unidos insistir no pedido de retaliação ena qualificação de legitimidade do processoeleitoral peruano quando o país mostra-se, e tem-se mostrado, estratégico para os planos de combateao narcotráfico e ao terrorismo na região? Argumen-tando, novamente com base no realismo, bem feitasas contas, não seria preferível conviver com umaliado incômodo a deixar de contar com ele emfuturas empreitadas, que podem compreender ocombate à guerrilha, como no caso da Colômbia,ou neutralizar as ações de países com poucassimpatias na atualidade pelos Estados Unidos,como é o caso da Venezuela? Cabe muito bem aquirecordar a diferença entre a lógica de uma açãomoralista e uma ação baseada na política. A res-peito, Aron lembra que a política compreende porsua natureza a dualidade amigo-inimigo e que osEstados Unidos “[...] podem influenciar os paísesaliados no sentido desejável; mas não podem ir atéo fundo da lógica do moralista [...]. Trata-se de umaquestão de oportunidade, isto é, de prudência, enão de princípios, meter-se ou não nos negóciosde outro país [...]. Nenhum ‘monstro frio’ obedecesempre aos direitos das gentes ou à moral” (ARON,1987, p. 16-17).

Em outras palavras, a globalização dosprincípios democráticos não estão isentos deescapar da lógica, muitas vezes inevitável, daRealpolitik. Como a Realpolitik ainda goza de boaaceitação na ação interestatal e como a natureza deorganizações como a OEA é estatal, suas ações“moralizantes” dos processos democráticos naregião evidentemente acham uma limitação conside-rável em sua eficácia nas relações de poder estabe-lecidas entre seus membros e nos desdobramentosque resultam das interações entre as peças princi-pais do sistema internacional.

O reconhecimento da interação das partes dosistema internacional não se coloca em questão.Assim como também não se coloca em questão apremissa realista de que o principal problema parao funcionamento do sistema internacional é aausência de um poder comum às partes. A issoHoffman acrescenta mais um problema: “a ausên-cia, ou pelo menos debilidade, de valores comunssubjacentes ao conjunto do sistema” (Hoffmannapud VILANOVA, 1995, p. 52). Certamente a

presença do poder comum continua sendo umagrande meta do pensamento idealista, porém umaquestão instigante é se a globalização da política,por via do modelo da democracia ocidental, nãoestá começando a solucionar o problema colocadopor Hoffman. Junto com o Estado, as organizaçõesinternacionais são os principais atores ordenadoresdo sistema internacional. Ora, corresponderia àsorganizações, antes que aos estados, o papel desocializador internacional dos valores da demo-cracia ocidental. No entanto, a análise da atuaçãoda OEA mostra que o sucesso desse papel não étão fácil. Como veremos na seção seguinte, a própriaindefinição dos limites da atuação das missões daOEA acaba dificultando mais ainda seu papel.

IV. MISSÕES DA OEA: ALÉM DE SUASFUNÇÕES?

Além dessas limitações estruturais, os paísesem que operam missões de observadores costumamresponder aos questionamentos sobre a legitimi-dade de seus processos eleitorais alegando queesses mecanismos de inspeção e monitoramentoextrapolam suas funções. Isso os transformaria emverdadeiros instrumentos de intervenção nosassuntos internos do Estado. É possível constatarisso no caso da OEA? São missões de observadoresmesmo ou são instrumentos de intervenção nosassuntos internos dos estados? Uma respostaafirmativa a esse problema levar-nos-ia à conclusãode que tais instituições transformam a democracianum mecanismo de intervenção. De entrada estariacolocado o mérito da democracia no referente àsua superioridade moral frente a outras alternativasde governo. Aliás, do ponto de vista valorativo eda construção daquilo que hoje em dia se chamade cidadania global, seria difícil negar tal supe-rioridade. Para aproximarmo-nos de uma respostamais qualificada, examinemos mais atentamente omandato da Missão de Observadores da OEA noPeru.

Em cumprimento à Resolução n. 1 753 da OEA,adotada em 5 de junho de 2000 pelos ministros derelações exteriores durante a Assembléia Geral daOrganização em Windsor, Canadá, nomeou-se achamada Missão Especial da Organização dosEstados Americanos para o Peru, que vinha asubstituir a Missão de Observadores (MOE-OEA)que tentou monitorar, com pouco sucesso, o pro-cesso eleitoral peruano, chegando à conclusão deque “o processo eleitoral está longe de ser conside-rado livre e justo” (MOE-OEA, 2000, p. 1). Essa

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declaração oficial, evidentemente, não revela o fatode que se chegou a tal conclusão após intensasnegociações entre governo, oposição, MOE ealguns diplomatas da região (principalmente doBrasil). Em documento da OEA de julho de 2000pode-se ler que o mandato da Missão Especial é“propiciar o diálogo entre os diferentes setores dasociedade peruana e o governo, monitorar o pro-cesso de fortalecimento das instituições demo-cráticas no Peru e a implementação das recomen-dações feitas pela Missão Especial durante sua visi-ta a Lima de 28 a 29 de junho” (OEA, 2000, p. 1).

O ponto mais relevante dessa nota tem a vercom o que se entende por monitoramento e sobre-tudo com as recomendações ou propostas feitaspela Missão Especial da OEA. Com o nome de“elementos do processo”, a Missão Especial reco-mendou um vasto processo de reformas institucio-nais nas quais se incluem “reforma da administração,fortalecimento do Estado de Direito e separação depoderes; liberdade de expressão e meios de comu-nicação; reforma eleitoral; fiscalização e balançode poderes” (ibidem). Em outras palavras, reco-menda-se um projeto de execução, stricto sensu,de uma reforma do Estado. É de praxe que nosestados nacionais sua reforma seja um processoencabeçado e dirigido por um poder constituinteoriginário (que exprime a vontade política popularpor via de eleições). A pergunta que se depreendede tal recomendação é quase óbvia: a proposta deuma reforma de Estado não constitui uma ingerêncianos seus assuntos internos? Não está uma missãoatribuindo-se uma função que corresponde aopoder constituinte e que exatamente por tocar naalma do Estado (a ação do poder soberano), deveser o resultado de um processo que expressa avontade popular?

Não se discute a necessidade do monitora-mento em democracias em que os processos deconstrução de instituições democráticas por viado sufrágio seja ainda muito pouco transparente.O problema parece consistir porém em que a práticado monitoramento transforma-se em uma práticade tutela dos processos das chamadas democra-cias delegativas. As atribuições da Missão Especial,que dá continuidade institucional à MOE-OEA,revela esse fato. Trata-se não de um simples moni-toramento mas de influir na forma e no conteúdoque devem adquirir as instituições estatais. Aqui érelevante voltar a Aron: imiscuir-se nos assuntosinternos de um Estado é uma questão de prudência,

de oportunidade, e não simplesmente de vontadeou de posicionamento valorativo. Essa não é umaquestão irrelevante para os estados, porque a saúdedas democracias depende muito de que as institui-ções sejam construídas e reformadas de acordo coma vontade política nacional. No fundo ainda perma-nece aquela premissa estadunidense de julgar osprocessos de modernização política na AméricaLatina à luz de sua própria experiência histórica, oque já tinha sido notado por Samuel Huntingtonnos anos 1960 no seu quase clássico livro A ordempolítica em sociedades em mudança: “No con-fronto com os países em modernização os EstadosUnidos levaram a desvantagem de sua história feliz.No seu desenvolvimento os Estados Unidos foramabençoados com abundância econômica, bem-estarsocial e estabilidade política. Essa agradável con-junção de bençãos levou os americanos a acreditarna unidade do bem, presumindo que todas as coisasboas vão juntas e que a consecução de um objetivosocial desejável ajuda a consecução de outros”(HUNTINGTON, 1975, p. 18).

Uma proposta ousada de reforma do Estadocomo aquela feita pela OEA é extemporânea. Nãono sentido de que o Estado peruano não precisereformar-se, porém no sentido conceitual, dado seuotimismo exagerado sobre o fim do Estado-nação.Supõe, de alguma forma, o enfraquecimento doEstado e a consolidação de estruturas de poderque se começam a colocar acima dos interessesdos estados. Entretanto, a militância democráticanão pode desconhecer o fato de que uma grandevariedade de estados nacionais ainda são suficien-temente fortes para estabelecer seus objetivospolíticos de longo prazo, em que não se ignoram ainfluência e as pressões do ambiente externo.Voltando a uma idéia com a qual trabalhei em outrolugar, o que é certo é que o Estado continua sendoo principal ator das relações internacionais. Porémisso não significa que, como no período da GuerraFria, continue mantendo exclusividade como ator ecomo único centro de decisão.

Uma outra questão é que o próprio fato decertas propostas serem apresentadas com um viésintervencionista já comprometem a eficácia dosorganismos de observadores e de monitoramento.Acaba restando-lhes eficácia a suas ações porqueisso supõe a polarização de resistências e apoiosdos atores envolvidos. Porém o resultado costumaser o desgaste político da iniciativa. Novamentenão devemos esquecer que esse é o resultado,

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previsível, da OEA ser uma organização de naturezaestatal, para quem convergem interesses diversos.Isso fica evidente quando se contrasta o papel deuma organização interestatal como a OEA com umaorganização não-governamental encarregadatambém de monitorar processos eleitorais. Porexemplo, a atuação de uma organização não-gover-namental internacional, de origem americana eadotando o mesmo discurso da globalização demo-crática, como é o Centro Carter (dirigido pelo ex-Presidente americano Jimmy Carter) registra menosresistências e menos polêmicas quanto a seusmétodos de monitoramento e formas de atuaçãonos processos eleitorais dos quais participa emcaráter de observador internacional. O ex-Presi-dente americano define da seguinte maneira o queseria o papel de um observador internacional:“confirmar o fato de que o partido no governo estárealizando eleições honestas e garantir aos partidosde oposição que em caso de fraude, esta serádenunciada. Também fazer saber aos votantes que,embora tenham dúvidas sobre o processo, existemobservadores independentes para garantir que aeleição seja honesta e transparente. E servir defiador de que a eleição foi correta” (El Nacional,2000).

Da forma de atuação dessa organização não-governamental podem se derivar dois questiona-mentos importantes para a atuação dos organismosde monitoramento de natureza interestatal como aOEA. Primeiro, qual é o grau de institucionalizaçãode seus procedimentos de monitoramento, isto é,qual é o grau de legalidade, regularidade,regulamentação e estrutura material para a atuaçãodo organismo de monitoramento? E segundo: qualé o limite de sua atuação e de seus objetivos?Atente-se para o fato de que, em contraste comuma organização não-governamental como a Carter(em que os objetivos de sua missão de observadorsão mais claramente definidos), no caso dasmissões de observadores da OEA seus mecanismosde atuação são nebulosos. Examinando-se uma boaparte da documentação produzida pela MOE-OEApara o Peru entre maio e junho de 2000, não ficaclaro quais seriam os limites de sua atuação nocaso do processo eleitoral desse país. Assim não édifícil que o resultado de sua atuação acabe mistu-rando boa-fé no monitoramento com iniciativas que,sem necessariamente serem intencionais, acabamcolidindo com funções que cabem só a um paísdefinir. Isso resulta em que as vozes que pedem aregulamentação dos observadores internacionais

em processos eleitorais nacionais se façam escutarcom mais freqüência2.

De outro lado, mesmo que raciocinemos deum ponto de vista realista, segundo o qual em umaorganização, uma vez traçados certos objetivos, énecessária a existência de uma estrutura ou regrasde procedimentos punitivos, caberia perguntar:qual é a eficácia da estrutura punitiva da OEA emrelação a países que agem fraudulentamente emprocessos eleitorais? Aliás, o caráter punitivo dasorganizações internacionais é uma tendência quese vem desenhando hoje com muita força no cenáriointernacional, como foi indicado nas páginasiniciais deste trabalho. Essa estrutura punitiva nãoé própria só de organizações de natureza militarcomo a OTAN, como também de algumas organiza-ções internacionais de natureza econômica efinanceira como a Organização Mundial do Comér-cio e o Fundo Monetário Internacional.

A presença dos Estados Unidos na organizaçãopoderia ser tomada como uma condição suficientepara a eficácia de certas medidas punitivas emrelação a esses países (exemplo dos embargoseconômicos)? De novo nos encontramos aqui coma limitação histórica derivada da mudança de época,o que não deixa de ser um paradoxo para os EstadosUnidos: se a queda do bloco socialista hegemoni-zado pela União Soviética significa a vitória doliberalismo político e econômico e também, de outrolado, afastado o espectro fantasmagórico do comu-nismo, o apoio às iniciativas americanas, sejamdiplomáticas, militares ou econômicas, transforma-se em um processo mais complexo na barganhadiplomática internacional, mesmo tratando-se depaíses pertencentes tradicionalmente à chamadaesfera de influência ocidental. Adicionalmente, aspotências regionais principais da mesma esfera(caso do Brasil) passaram não só a ter mais poderde barganha como ganharam mais autonomia nassuas iniciativas. A moral da história consiste emque os tempos em que uma simples pressão esta-dunidense no seio da Organização sobre os paísesda região era suficiente para angariar apoio a suasiniciativas punitivas (talvez com a notável exceçãodo México) já não se repetem com facilidade.

Também não se pode esquecer que, de umaforma ou de outra, a existência de regimes que estão

2 O governo venezuelano, por meio de sua chancelaria,manifestou esse desejo nas mega-eleições realizadas em julhode 2000.

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perto de ter características daquilo que segundoPhillipe Schmitter, são subprodutos do apoioencoberto ou da própria omissão da potência ameri-cana e de alguns países da região. Assim, a imple-mentação de medidas punitivas efetivas tem comolimitação a possibilidade de negociar uma saídahonrosa para antigos aliados que hoje sãoincômodos3. A experiência de Somoza na Nicaráguade finais de 1970 (abandonado pelos EstadosUnidos, quando o triunfo sandinista fez-se inevitá-vel) e o processo traumático que se seguiu à suaqueda devem ter mostrado não só aos Estados Uni-dos como também aos principais países latino-americanos os limites do que Aron chamou de açãomoralista.

Finalmente, procede também uma limitação deordem conceitual que diminui a possibilidade daeficácia punitiva. Essa limitação está relacionadacom a crença de que a modernização política dospaíses da região latino-americana tem como basesua modernização econômica. Essa modernizaçãofoi pensada no passado a partir de programas comoa chamada Aliança para o Progresso, nos anos 1960,e hoje a partir das fórmulas liberais aplicadas, commaior ou menor sucesso, em uma boa parte daregião desde a segunda metade dos 1980. Mesmoque se tratasse de uma ruptura institucional porum golpe militar ou civil, pouca dúvida resta deque a opção de punir um país por meio do usocoordenado da força é uma opção que no seio daOEA teria pouco apoio político. A opção punitivamais viável poderia ser uma ruptura de relaçõesdiplomáticas (pouco provável também) ou umapunição econômica ao estilo de um embargo àcubana. Novamente, sem contar que são outros ostempos, uma punição dessa natureza seria umacontradição com o princípio conceitual esboçadoacima que procura a modernização política namodernização econômica. O remédio pode mostrar-se mais forte que a doença. A coerência deraciocínio indicaria que medidas punitivas de tipoeconômico poderiam ter um efeito regressivo naconstrução institucional democrática.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se pode desconhecer que, no mundo pós-Guerra Fria, as organizações internacionais surgem,ao lado dos estados, como os principais atores queinformam e organizam as relações internacionais.Aliás, algumas dessas organizações começam a terum papel efetivo como fonte de legitimidade dosatos estatais em alguns cenários internacionais. Ouseja, seu consentimento para a ação estatal écondição importante (embora não suficiente) tantoda legalidade de um ato quanto de uma aceitaçãomaior desse mesmo ato por parte da opinião públicamundial. Contudo, nas organizações multilateraisque tratam de temas de natureza diplomática ou desegurança (casos da ONU e da OEA) os atoresestatais médios e menores (em termos de capaci-dades de poder) que delas participam ganharammaior autonomia frente aos estados hegemônicos.De alguma forma opera-se uma tendência que jáhavia sido apontada por Celso Lafer e por outrosautores como o próprio Hobsbawm: no sistemainternacional contemporâneo coexiste umatendência à globalização da diplomacia com umatendência à fragmentação. Ou bem como reflexo domundo dos estados ou bem como atores autôno-mos, as organizações internacionais tendem a refletirambas as tendências. Porém, ambas refletem-se nointerior das organizações de uma forma bastantetensa na medida em que o elemento de consenso ede coesão (o aspecto ideológico) já não existe mais.Dessa maneira, a globalização é procurada pelosatores hegemônicos em termos de valores univer-sais vitoriosos enquanto os que caminham pelolado da fragmentação apelam para o princípio darealidade (leia-se: os estados ainda são soberanose a nação ainda existe).

Nessas organizações de natureza diplomática ede segurança, o grande paradoxo parece consistirno seguinte: na medida em que a política (em termosde valores) tende a generalizar-se como idéia domi-nante, opera-se uma fragmentação do consensosobre os limites dessa idéia. Ante a idéia do inimigocomum (o comunismo) nada havia a objetar. Porém,na sua ausência, os consensos tornaram-se maisraros.

Essas referências conceituais são de fácil cons-tatação numa organização como a OEA e em seusinstrumentos operacionais chamados de missõesde observadores ou missões especiais, encarrega-dos de monitorar processos eleitorais no que sechamou ao longo deste artigo de democracias

3 Dessa maneira, a atitude aparentemente dura dos EstadosUnidos ao desqualificar como ilegítimo o processo eleitoralperuano não passava de um balão de ensaio que procuravatestar as reações dos países da região e mesmo a reação dogoverno peruano.

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delegativas. Ela também convive com tendênciasconflitivas entre a globalização e a fragmentação,ou entre a universalização da política e sua regiona-lização. Nesses cenários parece sobrar muitavontade política de alguns atores no interior daOEA, que acabam iludindo-se um pouco sobre asconseqüências práticas ou reais de suas ações. Ademocracia liberal, sobretudo no seu ideário elegado político, é amplamente desejável e é, quiçá,o único regime em que se é possível aspirar a umconceito pleno de cidadania. Entretanto, não épossível tentar elevar a realização de eleições “livrese justas” (valendo-nos do jargão da OEA) a um fimem si mesmo no contexto do funcionamento dasdemocracias delegativas. Esse é outro velho mitonormativo dos formuladores da política externaamericana em relação à América Latina. Tal idéiatambém já havia sido apontada corretamente porHuntington na sua citada obra A ordem políticasnas sociedades em mudança: “a sua fórmula geralé que os governos devem basear-se em eleiçõeslivres e honestas. Em muitas sociedades emmodernização, essa fórmula não tem nenhum valor.Para terem sentido, as eleições pressupõem um certonível de organização política. O problema não érealizar eleições mas criar organizações”(HUNTINGTON, 1975, p. 19).

Na criação de instituições, como pré-requisitopara a democracia, tem-se avançado bastante nasúltimas décadas. O problema parece consistirtambém em que não basta a simples criação deinstituições quando não se leva em conta que seuprocesso de modernização política tem sidoincompleto, devido a seu baixo grau de institu-cionalização, reflexo do atrelamento à versão

patrimonialista histórica por oposição a uma visãoracionalista. Esse determinante estrutural determinainclusive o próprio comportamento das organiza-ções que nascem na sociedade civil. Muitas delaspassam a dar continuidade à tradição patrimo-nialista no relacionamento com seus representadose no seu relacionamento com o poder público. Odéficit de institucionalização é decorrente tambémdo fato de que na maioria de nossos países nãohouve um processo paralelo de construção deEstado e da sociedade civil mas a consolidaçãoprecoce do Estado. Ao contrário do que pensaHuntington, o déficit institucional não foi de Estadomas de sociedade civil.

As considerações destacadas neste artigopodem ser elencadas como hipóteses parciais paraexplicar o insucesso de práticas institucionais queformam parte das regras do jogo da democracialiberal em países de modernização políticaincompleta. Essas propostas explicam, em parte,porque as eleições em alguns países da regiãolatino-americana, mesmo com seus inegáveisavanços, ainda não são um padrão institucional noqual a transparência caracterize de maneira per-manente seus resultados. Entretanto, a incom-preensão e a elevação das eleições a dogmas demo-cratizantes parecem estar estimulando um com-portamento das organizações internacionais deobservadores no qual os limites entre voluntarismoe intervencionismo não aparecem suficientementedefinidos. A questão que fica para a reflexão é:qual é o limite dessa espécie de cruzada civilizatóriafeita em nome da universalização dos valores demo-cráticos? Qual é sua eficácia na construção depadrões institucionais democráticos, pensados emtermos de práticas e de organizações?

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