Vidas Presas Uma Tentativa de Compreensão

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Psicologia USP, 2006, 17(3), 49-76. 49 VIDAS PRESAS: UMA TENTATIVA DE COMPREENSÃO DA TRAGÉDIA DA CRIMINALIDADE JUNTO ÀS SUAS PERSONAGENS PRISIONEIRAS 1 Luiz Carlos da Rocha 2 Universidade Estadual Paulista Este artigo apresenta uma pesquisa sobre os fatores produtores da criminalidade realizada no início da década de 80, que, com o apoio de longas entrevistas com presidiárias, elaborou um conjunto de hipóteses para o entendimento das relações constitutivas que esse fenômeno mantém com a pobreza, com a violência policial/carcerária e com os próprios saberes especializados pelos quais seus atos e atores tornam-se objeto de conhecimento. Sua apresentação, hoje, acalenta dois objetivos. O primeiro é, em homenagem de reconhecimento e gratidão a Sylvia Leser de Mello, oferecer um simples exemplo, dentre tantos, de uma das muitas aventuras de pesquisa propiciadas por sua orientação. O segundo é compartilhar com pesquisadores do tema um estudo que, polêmico e inovador à época, mantém pertinência às características especialmente graves atualmente apresentadas pelas questões abordadas. Descritores: Crime. Violência. Nível socioeconômico. Q uero, de início, fazer registro do sentimento de orgulho e admiração que nos causa a recente atitude de Sylvia Leser de Mello que, na contra-mão da avalanche de aposentadorias precoces que esvaziam a universidade públi- ca, acaba de atropelar olimpicamente o retrógrado estatuto da aposentadoria 1 Este artigo resume uma dissertação de mestrado em Psicologia Social defendida na USP, em 1984, sob orientação de Sylvia Leser de Mello, a quem esta rememoração é dedicada. 2 Docente da Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis. Endereço eletrônico: [email protected]

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Este artigo apresenta uma pesquisa sobre os fatores produtores da criminalidade realizada no início da década de 80, que, com o apoio de longas entrevistas com presidiárias, elaborou um conjunto de hipóteses para o entendimento das relações constitutivas que esse fenômeno mantém com a pobreza, com a violência policial/carcerária e com os próprios saberes especializados pelos quais seus atos e atores tornam-se objeto de conhecimento. Sua apresentação, hoje, acalenta dois objetivos. O primeiro é, em homenagem de reconhecimento e gratidão a Sylvia Leser de Mello, oferecer um simples exemplo, dentre tantos, de uma das muitas aventuras de pesquisa propiciadas por sua orientação. O segundo é compartilhar com pesquisadores do tema um estudo que, polêmico e inovador à época, mantém pertinência às características especialmente graves atualmente apresentadas pelas questões abordadas.

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  • Psicologia USP, 2006, 17(3), 49-76. 49

    VIDAS PRESAS: UMA TENTATIVA DE COMPREENSO DA TRAGDIA DA CRIMINALIDADE JUNTO S SUAS

    PERSONAGENS PRISIONEIRAS1

    Luiz Carlos da Rocha2Universidade Estadual Paulista

    Este artigo apresenta uma pesquisa sobre os fatores produtores da criminalidade realizada no incio da dcada de 80, que, com o apoio de longas entrevistas com presidirias, elaborou um conjunto de hipteses para o entendimento das relaes constitutivas que esse fenmeno mantm com a pobreza, com a violncia policial/carcerria e com os prprios saberes especializados pelos quais seus atos e atores tornam-se objeto de conhecimento. Sua apresentao, hoje, acalenta dois objetivos. O primeiro , em homenagem de reconhecimento e gratido a Sylvia Leser de Mello, oferecer um simples exemplo, dentre tantos, de uma das muitas aventuras de pesquisa propiciadas por sua orientao. O segundo compartilhar com pesquisadores do tema um estudo que, polmico e inovador poca, mantm pertinncia s caractersticas especialmente graves atualmente apresentadas pelas questes abordadas.

    Descritores: Crime. Violncia. Nvel socioeconmico.

    Quero, de incio, fazer registro do sentimento de orgulho e admirao que nos causa a recente atitude de Sylvia Leser de Mello que, na contra-mo da avalanche de aposentadorias precoces que esvaziam a universidade pbli-ca, acaba de atropelar olimpicamente o retrgrado estatuto da aposentadoria

    1 Este artigo resume uma dissertao de mestrado em Psicologia Social defendida na USP, em 1984, sob orientao de Sylvia Leser de Mello, a quem esta rememorao dedicada.

    2 Docente da Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis. Endereo eletrnico: [email protected]

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    compulsria, permanecendo onde sempre fez questo de estar: no exerccio do que mais necessrio e desafi ador. Sempre atenta elevada noo de respon-sabilidade social que orientou sua carreira universitria, vamos encontr-la, hoje, no exerccio da coordenao da Incubadora de Cooperativas Populares da Universidade de So Paulo.

    Gostaria, tambm, como seu ex-aluno de graduao, mestrado e dou-torado, deixar algumas palavras sobre aquela que foi sempre minha inspirao como pesquisador, orientador e professor universitrio. Mas nada daquelas menes curriculares tiradas do Lattes, mesmo porque para pessoas como Syl-via, a palavra Lattes sempre evocar a lembrana de um fsico brilhante, nunca a de um quantifi cador de carreira que vem se tornando a razo de ser de tanta gente que ocupa a universidade sem, contudo, habit-la plenamente, como ela sempre fez. Quero deixar apenas o testemunho muito pessoal de algumas pas-sagens, lembranas simples e antigas, cujo signifi cado levo, hoje, menos na memria que na prpria forma que vim a ser.

    Da professora que no queria saber da ditaduraConheci Sylvia Leser no comeo dos anos 70, quando iniciava minha

    graduao em Psicologia na USP. Vivamos o perodo mais duro do regime militar que golpeara a democracia brasileira em 64. Cercados por prises arbi-trrias, desaparecimento de colegas e sob forte censura da imprensa, soframos a insegurana inerente suspenso dos direitos de expresso e informao que se estendia ao cotidiano das aulas. Os professores precaviam-se de qualquer contedo que pudesse atrair a ateno da ameaadora presena militar que, no duplo sentido, vigiava estreitamente a universidade.

    Pois foi na plenitude desses anos de chumbo que as aulas de Psicologia Social nos surpreenderam com a apresentao de textos sobre materialismo histrico e dialtico, economia poltica, ideologia e outros temas prprios do pensamento marxista.

    Lembro-me que os alunos mais politizados, como se dizia na poca, perguntavam-se uns aos outros quem era aquela professora que ousava ensinar aquilo que a fora militar proibia to drasticamente: Ser que ela no sabe

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    que estamos em plena ditadura militar? Essa professora era Sylvia Leser, que sabia muito bem da ditadura, mas sabia tambm de suas responsabilidades universitrias. Bem por isso, com a coragem que lhe caracterstica, assumia os riscos de nos trazer um saber que no poderamos obter em outras aulas, nas bibliotecas e nas livrarias, posto que, na poca, era proibido e sumamente arriscado at mesmo guardar em casa um livro marxista. Alguns no viveram esses tempos, mas preciso que se saiba que era assim.

    Os primeiros textos marxistas das aulas de Psicologia Social deram oportunidade criao de grupos de estudo que, clandestinamente, permuta-vam, reproduziam e estudavam, com o afi nco dos resistentes, aquelas obras que o poder queria excluir de nossa formao. Acho que nunca estudamos tanto e to bem escondidos. Mas nos sentamos bem fazendo isso. Fazer do estudo um ato de coragem e resistncia nos dava um insubstituvel sentimento de dignidade, sem o qual nossa passagem pela universidade teria pouco ou ou-tro signifi cado em nossa formao profi ssional e em nossa perspectiva de vida. Naqueles anos bons, mas difceis, aprendemos com Sylvia Leser muito mais que mtodos e concepes dos quais o obscurantismo ditatorial nos queria ignorantes. Aprendemos que, mesmo sob riscos graves e justifi cados motivos para receio, a vida universitria no pode prescindir de coragem.

    Da orientadora que no quer seguidores

    No fi nal da dcada de setenta, j como seu orientando de mestrado em Psicologia Social, procurei Sylvia Leser com uma dvida. Estava vivamente animado com um conjunto de prisioneiras que conhecera por ocasio de uma pea de teatro apresentada num presdio de So Paulo e achava que poderia advir da um bom trabalho de pesquisa sobre criminalidade sob a tica dos prisionei-ros. Mas no tinha a mnima idia de como concretiz-lo, uma vez que no en-contrara suporte bibliogrfi co adequado e o tema encontrava-se completamente fora de minha experincia de trabalho e da especialidade de minha orientadora.

    Por outro lado, tinha nas mos um estudo amostral quase pronto sobre profi ssionalizao de psiclogos que, fruto do meu trabalho como professor de metodologia de pesquisa, prometia uma dissertao de mestrado absoluta-mente tranqila, ainda que isenta de qualquer entusiasmo.

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    Estava certo de que Sylvia me aconselharia a fazer a dissertao em torno da pesquisa com psiclogos, uma vez que estava bem adiantada e se inspirara justamente em seu excelente trabalho Psicologia e Profi sso em So Paulo (Mello, 1975), o que prenunciava uma boa dissertao e, principalmen-te, uma orientao simples e absolutamente no problemtica. Alm disso, eu havia aprendido que nada agrada mais a um orientador que uma proposta bem resolvida de continuidade de seu prprio trabalho. Mas esse lugar comum no era o da minha orientadora. Para surpresa de minha pragmtica expectativa, Sylvia Leser me incentivou a tomar o caminho daquilo que me entusiasmava, ou seja, o de estudar um tema ligado criminalidade, para o qual no tinha ne-nhum preparo prvio, nenhum trabalho realizado, nada, enfi m, alm da idia vaga e arriscada de inverter a tica pela qual o tema costumava ser abordado. Como ela referiu-se ao meu entusiasmo como critrio, cheguei a ponderar, ainda que com pouca sinceridade, que tambm me animava muito dar conti-nuidade sua pesquisa. Lembro-me at hoje do que me disse na ocasio: no importante nem preciso que voc se preocupe em dar continuidade minha pesquisa, mas o importante que voc possa encontrar um tema com o qual se identifi que para, ento, construir seu prprio trabalho. Ponderou sobre as difi culdades que eu encontraria em estudar esse tema novo e controverso. Mas disse tudo o que um orientando deseja ouvir de seu orientador: que estaria ao meu lado para enfrentar todas as difi culdades que eu encontrasse.

    Foi por esta generosidade rara que fui acompanhado no meu prprio ca-minho de pesquisador no mestrado, com Vidas Presas e no doutorado, com A Priso dos Pobres. Compreende-se, portanto, por que os trabalhos realizados sob a orientao de Sylvia Leser so to diversifi cados, ousados, polmicos e inte-ressantes, sempre abordando temas relacionados ao drama dos oprimidos e aos problemas populares. que eles foram acompanhados pela sensibilidade de uma orientao generosa, que no quer fazer seguidores, mas propiciar o encontro do orientando com seu prprio caminho de pesquisador e professor universitrio.

    So essas as lembranas simples e pessoais, mas fundamentais para este professor universitrio, que eu queria evocar sobre Sylvia Leser de Mello. A todos que j a conhecem, no teria sido preciso dizer nada. Mas aos que ainda no tiveram essa sorte, deixo seus descritores mais apropriados: generosidade, coragem, responsabilidade social, sensibilidade, pessoa imprescindvel.

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    Passemos, ento, a um exemplo das trilhas que um caminhante pode abrir, quando acompanhado pela orientao dessa pessoa imprescindvel.

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    As trilhas da pesquisaTem um pessoal estranho a fora!No deu tempo pra nada. Me pegaram logo pelo pescoo e jogaram num carro. Ficaram rodando pelas quebradas, me esculachando, e eu j tava toda machucada quando me puseram um capuz e me levaram para um lugar no sei onde. Me jogaram numa cela e disseram que eu tinha at de manh pra pensar. Eu pensei mesmo. J sabia que ia ser pendurada e pensei: tudo que eu ouvi falar vai agora acontecer. Mas eu no vou cagetar ningum, no vou trazer ningum pra c de maneira alguma. Sei que tem gente que no agenta, compreendo isso. Mas se eu no agentasse eu no seria digna da vida. E eu no vou andar por a de cabea baixa. um negcio de opinio: meti na cabea que no cagetava e pronto! Chegou de manh me requisitaram. Encapuzada, me levaram por at uma sala onde me tiraram o capuz. Vi o cavalete - dois tocos com um ferro em cima e oito homens com cara de carrascos:- Fala onde est o cara que ns j vamos daqui.- No sei.- Ento tira a roupa.- No tiro.Tiraram minha roupa a bofeto, rasgaram tudo e me deram porrada no estmago at eu cair no cho. Amarraram minhas mos, minhas pernas e me penduraram no cavalete. Prenderam uns fi os nos dedos do meu p, na mo, no bico do meu seio e comearam a rodar a manivela do choque:

    3 Buscou-se aqui, tanto quanto possvel, manter o formato geral da dissertao original.Mas partes inteiras tiveram que ser excludas, dentre as quais, infelizmente, as que continham os depoimentos que, com suas 75 pginas, excederia em muito o espao deste artigo. Ainda que pese esta falta, conforta saber que aqueles depoimentos, na poca, circularam muito, de mo em mo, por celas e ptios de prises que hoje, espera-se, no contenham mais as cooperativas depoentes e os atentos leitores que, ento, neles se reconheciam.

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    - Fala pra Santa Catarina te ajudar agora!Sentia todo meu corpo repuxar - horrvel! - e como eu gritava muito, encheram minha boca de pedaos de cobertor com urina at sufocar os gritos. Continuaram com os choques e, rindo, me falaram:- Quando voc quiser falar alguma coisa, s levantar o dedinho.4

    Pois bem, ento eu que levanto o dedinho. Tambm no sei onde est o tal cara, nem sei quem ele e se soubesse, faria o possvel para no dizer. Mas pretendo falar algumas coisas sobre a tragdia da criminalidade e suas personagens, bem como fazer o mximo para acabar com alguns mto-dos (exemplo logo acima) pelos quais as chamadas foras da lei e da ordem constroem seus saberes quanto aos chamados criminosos.

    Mas no fcil para um psiclogo colher elementos signifi cativos so-bre a criminalidade: A Psicologia sabe pouco a esse respeito. Nossa psicome-tria tem sido utilizada para examinar detentos, mas creio que os psiclogos nunca tenham manifestado propriamente entusiasmo em v-la utilizada na de-terminao de periculosidade pessoal de pessoas foradas a viver sob con-dies perigosas. Tampouco fi cam felizes, creio, quando seus conhecimentos sobre controle comportamental so transformados - sob o modelo panptico em tecnologia disciplinarista capaz de introjetar nos detentos as grades car-cerrias. Nosso desconhecimento quanto aos fatores sociais que envolvem a criminalidade, bem como nosso relativo isolamento das demais cincias hu-manas, tm cobrado seu preo: passamos dcadas estudando limitadamente o comportamento criminoso para, como fez Feldman (1979) aps analisar 700 ttulos, concluir que a aprendizagem bastante importante, a predisposi-o pode atuar em casos extremos, a rotulao social tem infl uncias sobre o rotulado, e que recompensas e nus associados ao comportamento criminoso devem ser considerados: a mesma coisa que Sutherland (1949) j sabia (e edi-tava) 30 anos atrs!

    Temos que reconhecer que os problemas da criminalidade so estu-dados de maneira muito limitada (e inadequada) pela Psicologia. Noes de comportamento criminoso, agressividade e medidas de traos de persona-lidade no ajudam muito a quem procura compreender os determinantes da criminalidade. 4 Fragmento de depoimento de uma prisioneira

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    Mas, por meio de conversas, leituras e encontros de estudo, percebi coisas animadoras.

    Vrios estudos, ainda que vinculados estrutura acadmica, no se prendem mais aos limites estritos das cadeias (no duplo sentido) conceituais e metodolgicas das disciplinas cientfi cas de onde se originaram. Quando Violante (1984) ajudou a desvendar a linha de montagem (ou desmontagem?) pela qual instituies como a FEBEM reproduzem a criminalizao do menor, no houve quem perguntasse por que uma tese de Psicologia Social iniciava suas concluses falando da acumulao de capital e terminava comentando a ao policial do Estado. Nem surpreendeu ningum que Ramalho (1979), um socilogo, apontasse mediaes psicolgicas em estudo sobre presos baseado no pensamento de um fi lsofo.

    Parece que muita gente acredita que a questo da criminalidade, entre outras, no pode ser bem compreendida sob os restritivos limites de uma ou outra das numerosas cincias em que o conhecimento do Homem e de suas relaes foi arbitrariamente retalhado. Talvez arejados pelo relativo enfraque-cimento do autoritarismo institucional, estamos todos reaprendendo que a di-viso e isolamento das cincias humanas nunca teve por objetivo descobrir, mas ocultar as questes incmodas em vias de serem conhecidas.

    Creio que a tendncia reunifi cadora das cincias humanas, longe de simplesmente misturar diferentes sistemas e mtodos, abre de fato um espao mais amplo para o entendimento da criminalidade. um convite s cincias jurdicas, sociais, econmicas, psicolgicas, semiticas e culturais a abando-narem os solilquios pelas quais reiteram seus saberes e reunirem-se no estudo conjunto de individualidades que de fato tenham sentido e existncia, mesmo porque s assim podem manter suas caractersticas de humanidade.

    Foi na tentativa de somar esforos com os que pensam assim, que abandonei a idia de me perguntar o qu a Psicologia poderia dizer sobre a criminalidade e resolvi procurar as questes que me parecessem, como ci-dado, pesquisador e psiclogo, relevantes para o entendimento do drama da criminalidade.

    Resolvido o problema da identidade do pesquisador, decidi abrir duas frentes de trabalho e estudo. Por um lado, estabeleci contatos com pessoas da

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    populao criminalizada em presdio da cidade de So Paulo. Por outro lado, desenvolvi o estudo bibliogrfi co do tema sem restrio de rea de conheci-mento, mas com ateno especial Criminologia.

    Quanto s visitas ao presdio, estabeleci uma rotina diria onde as tardes foram dedicadas a conversas e entrevistas junto a prisioneiras, s quais a sorte imps ampla experincia com a chamada vida do crime5. Essas pessoas, con-tudo, em nenhum momento foram tratadas como objeto de estudo, mas como sujeitos de um conhecimento particularmente claro sobre a criminalidade e, tal-vez por isso, ofi cialmente negado. Ora em grupo, ora em par, passeamos pelos ptios, trocamos nossas verdades, impresses e experincias de vida, sempre longe dos ouvidos institucionais. No demorou muito para que nossa camara-dagem preocupasse alguns funcionrios e acabasse por interromper a possibili-dade daquele convvio. Mas j era tarde: tnhamos j nos compreendido perfei-tamente e a interrupo no fez mais que corroborar nossa viso comum.

    Do ponto de vista tcnico, possvel dizer que a metodologia utilizada foi uma combinao da entrevista aberta de Bleger (1980), que permite ao en-trevistado confi gurar o campo da entrevista, com as tcnicas dialogais da pes-quisa participante defi nidas por Borda e Brando. Conforme Borda (1983),

    o pesquisador deve abandonar a arrogncia do erudito, aprender a ouvir discursos concebidos em diferentes sintaxes culturais, adotar a humildade dos que realmente querem aprender e descobrir: romper com a assimetria das relaes sociais entre entrevistado e entrevistador e incorporar pessoas das bases sociais como indivdu-os ativos e pensantes no esforo da pesquisa. (p. 55)

    Brando (1984), por sua vez, ensina quea maneira espontnea de um entrevistador falar sobre qualquer assunto atravs de sua pessoa, sua histria de vida ou atravs de um fragmento de relaes entre sua vida e aquilo que responde. Em boa medida (o pesquisador) descobre que mtodos e tcnicas de que se arma com cuidado so meios arbitrrios pelos quais o investi-gador submete sua a vontade do outro, o investigado. (p. 13)

    5 As pessoas ditas do crime tm, geralmente, uma histria de consistente envolvimento com atividades de assaltos mo armada. So consideradas altamente perigosas pelas instituies policiais e carcerrias, mas gozam de inequvoca liderana e respeitabilidade junto populao criminalizada, cujo proceder (conjunto de princpios ticos) cumprem e fazem cumprir.

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    Sob a inspirao desses cuidados, foram desenvolvidas as entrevistas que resultaram em depoimentos que oferecem apoio s hipteses desse traba-lho. Mas, a bem da verdade, impe-se registrar, aqui, que tudo foi resultado de uma interao franca, honesta e cooperativa, cujo clima s no foi plenamente prazeroso pela presena institucional que mantinha viva em todos ns a adver-tncia inicial deste trabalho:

    Tem um pessoal estranho a fora!

    Hipteses formuladas pela pesquisa

    Sumaria-se, a seguir, na forma de um conjunto de hipteses, o Modelo de Processos de Criminalizao da Populao Pobre obtido como resultado desse trabalho de pesquisa, apresentado como uma alternativa de entendimen-to da dinmica produtora e reprodutora da tragdia criminal, conforme expe-rienciada hoje pela sociedade brasileira.

    Hiptese Um: o desenvolvimento da criminalidade tem como determi-nante bsico um processo poltico-econmico que impele ao crime a popula-o pauperizada e sem alternativa legal de prover sua subsistncia.

    A expanso do modelo capitalista de desenvolvimento expulsa enor-mes massas de trabalhadores do campo, cria profunda desproporo entre oferta e procura de empregos nas cidades, rebaixa salrios, elimina postos e alternativas de trabalho regular. Em conseqncia, forma-se nas cidades uma crescente populao pauperizada e sem possibilidade de prover seu sustento por meio do trabalho, cuja misria e desesperana contrastam violentamente com a riqueza acumulada, da qual no podem participar. Sob tais contingn-cias, trgico, mas perfeitamente compreensvel, que muitas pessoas acabem por encontrar no trabalho-crime, e no no legal, o meio possvel de dar susten-to e sentido s prprias vidas.

    Hiptese Dois: o desenvolvimento da criminalidade administrado por um processo institucional carcerrio-policial de criminalizao da popu-lao pobre.

    A criminalizao da populao pauperizada no s o resultado de mera presso econmica. A prpria trajetria de sua difcil e incerta insero

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    no mundo do trabalho permanentemente vigiada e disciplinada por ao de carter policial. Mas onde a ordem social depende diretamente da violncia da fora policial, esta faz mais que vigiar desvios: ataca todo sinal de suspei-o, e a misria e a desocupao so os mais visveis deles. Presos para averi-guaes, fi chados, espancados, humilhados e sob permanente suspeita institu-cional, os trabalhadores pauperizados e sem trabalho recebem, a priori, todo peso legal e extralegal das medidas policiais contra o crime. Criminalizados antes do delito e pagando prvia e permanentemente pelo crime que ainda no ousaram, muitos deles acabaro por se dobrar lgica da violncia policial e da criminalidade: por meio do crime tero ao menos uma compensao, uma vez que j aprenderam a ver a possibilidade de priso como muito mais ligada aos azares que aos prprios atos. Mas da o azar certo e a penitenciria s por acaso no os integrar no crime. Reverter o processo, ento, torna-se difcil. Muitos no resistiro presso dos setores corruptos das foras policiais e de-las se tornaro clientes compulsrios: os roubos e assaltos subseqentes sero, doravante, o aluguel da liberdade e da vida que no mais lhes pertencem. Enri-quecero respeitveis receptadores, suplementaro alguns salrios das foras da lei e sero apontados ao pblico como argumento eloqente da necessidade da violncia policial, daquela mesma que os incita e administra.

    Hiptese Trs: a criminalidade constituda como objeto de saber por um processo de criminalizao da populao pobre no mbito do saber crimi-nolgico ofi cial, que informa cientifi camente o processo de criminalizao institucional.

    A criminologia, por meio de estudos histricos, doutrinrios e emp-ricos, acumulou tambm, alm de preconceitos, um bom conhecimento sobre uma srie de fatores sociais produtores de criminalidade. Um conhecimento perfeitamente capaz de informar polticas sociais de preveno da criminali-dade. Mas a prtica que o conhecimento criminolgico possibilita sempre foi mediada por uma poltica criminal de controle da populao pobre. Como os fatores sociais indutores de crime esto intimamente ligados ao prprio carter das polticas de controle da populao pobre, ocorre ento uma inverso: as polticas criminais adotam os piores preconceitos da criminologia e transfor-mam os fatores indutores de crime em estigmatizantes criminais. Exemplo disso a conhecida correlao entre misria e criminalidade, transformada

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    em estigma criminal da misria. Assim, abortando o que se poderia prevenir, as polticas criminais centradas na ao policial transformam o conhecimento criminolgico (falso ou no) em tecnologia criminalizante cientifi camente informada e incentivam, pelo uso institucional, a produo cientfi ca de sa-beres criminalizantes avalizadores de suas prprias prticas.

    Hiptese Quatro: a ocultao dos reais determinantes da criminalidade produz um processo de criminalizao da populao pobre no prprio imagi-nrio pblico e as caractersticas ligadas a estes determinantes negados tendem a ser projetados na fi gura do chamado criminoso.

    O aparente enfrentamento institucional, policial e propagandstico da criminalidade oculta os processos de criminalizao que a produzem e oferece os elementos da iluso ideolgica pela qual a criminalidade publicamente percebida:

    1) Abstrao ideolgica: na aparncia tudo se passa como se a crimi-nalidade se desenvolvesse por si prpria, a despeito de combatida por todos os recursos do Estado e grupos particulares.

    2) Inverso ideolgica: todas as caractersticas da poro mais pobre da populao passam a ser percebidas publicamente como sinais seguros da prpria criminalidade: vestimenta simples e surrada, sinais de desnutrio, de-semprego, grupo familiar destrudo, morar em favela e cortio, cor de pele, hbitos de linguagem etc.

    Assim, a ocultao dos processos de criminalizao do trabalhador pauperizado acaba por submet-lo a um novo e muito mais grave processo de criminalizao, agora j ao nvel do imaginrio pblico.

    Tambm sob mediaes ideolgicas, caractersticas ligadas aos pro-cessos de criminalizao so percebidas como se fossem da prpria personali-dade ou natureza da pessoa criminalizada: o criminoso no se prende a nada, ocioso e vagabundo, violento e descontrolado, imoral e psicopata, e, por fi m, desumano.

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    Um breve histrico crtico do conhecimento criminolgico

    Durante a Idade Mdia, os poderosos no precisavam de conheci-mentos criminolgicos para justifi car suas execues: reivindicavam para as prprias aes o aval divino, portanto podiam muito bem debitar as de suas vtimas na conta dos demnios. E sintomaticamente, o ato de pronncia in-gls acusava o ru de ser inspirado e instigado pelo diabo e de no temer a Deus diante de seus olhos (Sutherland, 1949, p. 63). A confi sso sob tortura referendava a justia do julgamento e a execuo brutal e pblica exercia, pelo exemplo, a profi laxia da contestao do poder e de suas normas.

    Mas a mobilidade econmica propiciaria a ascenso de uma nova clas-se social cujos critrios de controle social e de legitimao do prprio poder eram os da atividade que a fazia poderosa: o comrcio, os negcios, a explo-rao do trabalho alheio.

    A Escola Clssica

    Na segunda metade do Sculo XVIII, aparece, sob a infl uncia da re-forma legalista europia, a primeira escola de criminologia, mais tarde chama-da Escola Clssica. A Penalogia e a Legislao assumem papel importante, e passam a ser pensadas a partir de uma economia psicolgica de sofrimentos e prazeres, onde se supe que a ameaa de sofrimento da pena possa contraba-lanar, na devida proporo, a esperana de ganho do delito. O ru, j isento da suspeita de instigao demonaca, passa a ser concebido como algum que pesou bem as possibilidades de perdas e ganhos e, por fi m, escolheu livremen-te a prpria sorte: uma lgica de negociantes.

    Mas reconhecer os fundamentos ideolgicos da Escola Clssica no signifi ca negar seu carter inovador e, ento, revolucionrio. Foram nomes ligados a esta escola que iniciaram a modifi cao sistemtica dos velhos m-todos punitivos feudais, inaugurando uma nova forma de disciplina: Jeremy Bentlham se ops frontalmente brutalidade das penas e s torturas nas pri-ses, ainda que tenha proposto o sistema Panptico, onde a pena deve ser cumprida sob permanente vigilncia e disciplina.

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    Mas o nome mais expressivo ligado a Escola Clssica o de Cesare Bonesana, Marqus de Beccaria, que, tendo vivido o ambiente intelectual li-bertrio que constituiria o iderio da Revoluo Francesa, pregou princpios e normas que, a despeito de comporem o prprio cerne da Escola Clssica, demandariam e demandaro ainda muito tempo para serem cumpridas: as pe-nas devem ser moderadas, iguais para todos, proporcionais ao delito e defi ni-das por lei. O ru no deve ser considerado culpado antes do delito. A priso preventiva no sano, mas meio de assegurar a pessoa do acusado e deve ser to suave quanto possvel. Somente os magistrados devem julgar os acu-sados e no devem interpretar a lei. As acusaes no devem ser secretas. O objetivo da pena no atormentar o acusado, mas impedir que pratique novo delito e dissuadir os demais de delinqir. A atrocidade das penas ope-se ao bem pblico. A sociedade no tem o direito de aplicar a pena de morte. A tortura ao acusado uma barbaridade. Mais til a preveno do delito que sua represso penal. As penas no so justas se a sociedade no empregou os meios para prevenir os delitos. O roubo ocasionado geralmente pela misria e desespero.

    Perfeitamente consciente das foras e interesses que desafi ava, Becca-ria editou, em 1764, sua Dissertao sobre os Delitos e as Penas na clandes-tinidade onde, conforme Senderey (1978), alertava explicitamente: Eu quis defender a Humanidade sem ser um mrtir dela (p. 19).

    Hoje, bem conhecido o destino de seus princpios: foram escolhidos a dedo, incorporados os inofensivos, esquecidos os perigosos. Mesmo assim, a Escola clssica considerada (que ironia!) a prpria base do direito penal moderno.

    A concepo de igualdade entre os homens que animava Beccaria era uma esperana, no uma constatao. E a esterilizao do conjunto de seus princpios se deu sob as mesmas foras das quais temia tornar-se mrtir.

    Mas os poderes que ameaavam as esperanas de Beccaria fariam no-vas descobertas: a cincia positiva, j razoavelmente experiente na dominao da natureza, ensaiava o domnio do ser humano com Augusto Comte. E a refl e-xo sobre as relaes entre os homens, de uma atividade de esperanas claras construdas sob constataes implcitas, seria transformada em seu contrrio: uma cincia de constataes explcitas, organizadas sob esperanas ocultas.

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    A Escola Geogrfi ca

    Sob inspirao da objetividade, desenvolveu-se a primeira escola dita cientfi ca dedicada ao estudo da criminalidade. Geogrfi ca ou Cartogrfi ca, seu nome deriva-se de extensos estudos estatsticos da distribuio dos crimes em relao a reas e condies geogrfi cas e sociais. Os estudos correlacio-nais acabaram por estabelecer forte vnculo entre as condies econmicas e a criminalidade. Conforme Senderey (1978), Ducptiot, em 1850, percebeu que as crises econmicas produziam extraordinrio aumento da criminalidade. Cristophe encontrou o mesmo aumento associado mecanizao industrial, e conseqente desemprego, na Inglaterra do sculo passado. Na mesma linha, Von Mayr chegou a constatar que, em mdia, a cada centavo de aumento no preo do trigo, havia mais um roubo para cada cem mil habitantes. Quetelet, o mais expressivo nome dessa escola, considerava o delito como fenmeno cla-ramente social e estudava sua relao com a misria, o analfabetismo, as faixas etrias, sexo e at mesmo variaes climticas modifi cadoras das necessidades humanas.

    Segundo Sutherland, a escola geogrfi ca, de 1830 a 1880, desenvolveu estudos de distribuio da taxa de crimes, delinqncia juvenil e crime profi s-sional, muito superiores a tudo o que se faria nos 50 anos subseqentes.

    Mas estabelecer relaes e mapear a produo social do crime no sig-nifi ca, necessariamente, acumular condies sufi cientes para o enfrentamen-to de suas causas. A capacidade heurstica da cincia entusiasmava o poder econmico quando lhe ampliava as possibilidades de exerccio. Porm o en-tusiasmo revertia-se em hostilidade quando a pesquisa ameaava descobri-lo como o prprio produtor da criminalidade. Ento no era mais cincia, pois extravasava os objetivos polticos pelos quais era mantida.

    O esforo de objetividade imparcial da primeira escola cientfi ca de criminologia se dilua pela ausncia de um projeto de enfrentamento dos fato-res causais que descobriu. Quetelet, cuja obra Fsica Social, editada em 1835, j pelo sugestivo ttulo denotava a grandeza das esperanas positivistas, seria preterido por sua prpria cientifi cidade. Pois cincias mais simpticas s prticas arbitrrias do poder estavam j em premeditao.

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    A Criminologia Positiva

    Fui apresentado em Turim a um jovem sbio desconhecido, chamado Cesare Lombroso, que disse pretender ter descoberto o delinqente nato nos ca-racteres e nos traos fi sionmicos. Que felicidade para os juzes de instruo!

    Segundo Senderey (1978), esta seria a primeira meno pblica sobre Lombroso, feita pelo jornalista belga de nome Emile Laveieye, na dcada de 60 do sculo XIX.

    Lombroso provocaria um entusiasmo jamais igualado entre os res-ponsveis pelo funcionamento do aparelho jurdico e policial de quase todo o mundo, justamente por oferecer elementos de credibilidade cientfi ca a antigos preconceitos quanto relao entre o crime, fatores raciais e caractersticas associadas misria.

    Mesmo antes, em plena Idade Mdia, a Oftalmoscopia, a Metoscopia, a Quiromancia e principalmente a Fisiognomia de Della Porta acalentavam a esperana de ler o carter dos indivduos por meio do exame dos olhos, rugas, mos e fi sionomia facial. E j entusiasmavam juzes. Conforme Senderey (1978), o Marqus de Moscardi, em Npoles, costumava iniciar suas senten-as com ouvidas acusao e defesa e examinadas tua face e cabea, seguidas de invariveis condenaes morte ou priso perptua.

    Note-se, portanto, que no faltavam crendices preconceituosas para inspirar Lombroso, sendo que seu trabalho de mdico militar e, posteriormen-te, mdico de manicmio judicirio em Pesaro, na certa ofereceu campo pro-pcio a tal contato.

    Sua obra mais conhecida Luomo Delinquente, publicada em 1875, onde Lombroso desenvolve sua teoria caracteriolgica. Crnio assimtrico, pragmatismo, nariz achatado, orelhas grandes e barba escassa, eram os elemen-tos bsicos para o reconhecimento do criminoso nato. Taras degenerativas fi sio-lgicas e psicolgicas completavam o quadro que permitiria aos juzes a con-denao, com suposto embasamento cientfi co, de pessoas cujas caractersticas raciais e sinais de misria faziam-nas objeto de perseguio dos poderosos.

    Lombroso acompanhou e fortaleceu os piores preconceitos antropo-lgicos de sua poca, em sua tentativa de vincular, pelo atavismo, seu genus

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    homo delinquens ao ser humano de culturas ditas primitivas. Viu em diferentes hbitos culturais uma tendncia assassina e em diferentes morais sexuais sups a prostituio. Fundou, sob esse esprito, a chamada Antropologia Criminal. Props a esterilizao de delinqentes, prenunciando a eugenia nazi-fascista. Criou o conceito de periculosidade pr-delitual, base para a segregao de pes-soas independente de delito, ainda hoje em uso.

    Em sntese, ao enfatizar a gnese biolgica, psicolgica e cultural da criminalidade, Lombroso e sua Escola Positiva foram os sistematizadores dos piores vcios e preconceitos pelos quais uma sociedade violenta e injusta ten-tava safar-se de suas responsabilidades e transferi-las s suas prprias vitimas. Ao mesmo tempo, foi um exemplo dos mais gritantes da tentativa de compor uma terminologia de aparncia cientfi ca para legitimar prticas, objetivos e esperanas inconfessveis.

    As bases de suas teorias foram absolutamente contestadas por estudos empricos j no comeo de nosso sculo. Em 1910, Goring, aps rigorosas observaes comparativas, diria que era mais fcil distinguir um estudante es-cocs de um ingls que um catedrtico de um delinqente. A nfase endgena de Lombroso e seus preconceitos quanto s minorias raciais, ndios, pobres, crianas e excepcionais foi contestada e denunciada por cientistas e pesquisa-dores de todas as reas cientfi cas pertinentes. Mas a despeito de ser apresenta-do h dcadas como exemplo trgico de desacerto cientfi co, o pensamento de Lombroso ainda hoje amplamente acolhido por profi ssionais e autoridades das reas judicial, policial, psiquitrica e carcerria, principalmente por meio da incorporao parcial que dele fi zeram seus colaboradores Garfalo e Fer-ri. Despreparo cientfi co, ignorncia ou sabedoria perversa, a permanncia do pensamento lombrosiano e assemelhados pode ser entendido como, usando seus termos, uma perigosa predisposio mistifi cadora presente nas reas ins-titucionais que administram a criminalidade. Bem a propsito, um ex-secret-rio de Segurana Pblica de So Paulo, Erasmo Dias, declarava: O bandido tupiniquim, o nosso bandido, tem tipologia defi nida: est sempre abaixo da mdia, subnutrido, mal vestido, subempregado, enfi m, tem psicossomtica bem defi nida (Benevides, 1983, p. 53).

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    A Escola Sociolgica

    A contestao da caracteriologia criminal, do privilegiamento end-geno e da conseqente poltica criminal eugenista de base lombrosiana foi promovida, principalmente, pela chamada Escola Sociolgica (ou Francesa) de Gabriel Tarde (1834-1904). Em sua obra As Leis da Imitao, editada em 1890, Tarde caracteriza a criminalidade como um fenmeno fundamentalmen-te social e explica a reproduo dos padres delinqentes com base na imita-o. A retomada da nfase social nos determinantes da criminalidade, alm de conter a fria discriminatria dos endogenistas, possibilita a abertura de novas e interessantes perspectivas de estudo. Sutherland, criminlogo ameri-cano, deu instigante desenvolvimento s concepes que privilegiam a apren-dizagem social como fator causal de reproduo da criminalidade. Resumindo sua teoria do comportamento criminoso, pode-se dizer que este se desenvolve em associao com padres criminosos, exatamente da mesma forma que se reproduz o comportamento legal. Qualquer caracterstica pessoal s teria rele-vncia quando afetasse a freqncia ou consistncia da associao diferencial do indivduo em relao aos padres criminosos ou legais. Sutherland remete a associao diferencial aos confl itos culturais e estes a desorganizao social, compondo, respectivamente, a causa especfi ca, fundamental e bsica do com-portamento criminoso.

    Sua teoria da associao diferencial pode, em princpio, ser percebida como um modelo que enfatiza a aprendizagem social do crime e a relaciona a fatores socio-organizativos confl itantes. Mas Sutherland era desses pensadores capazes de superar as limitaes ideolgicas que eludem os fatos. Percebeu claramente que a cultura criminosa no se restringia meramente aos aspectos discriminados pela legislao:

    As mais intrincadas maquinaes dos homens das profi sses liberais e de negcios podem ater-se lei tal como interpretada, mas serem idnticas na lgica e nos efeitos ao comportamento criminoso que resulta em priso. Essas prticas, ainda que no resultem em condenao como crime, fazem parte da cultura criminosa. (Sutherland, 1949, p. 16)

    Compreendendo que a cultura criminosa prevalece muito mais do que se acredita usualmente, esse autor percebeu o Direito Criminal como

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    originado do confl ito entre grupos sociais e constitudo em conveniente divisor de guas das prticas sociais das classes que se antagonizam.

    Quando um grupo de interesses consegue a expedio de uma lei, ele obtm a as-sistncia do Estado num confl ito com um grupo rival de interesses: a oposio do grupo rival torna-se assim criminosa. Os atos danosos existem em todas as clas-ses de nossos dias. As classes superiores tm sutilezas na prtica de atos danosos e as classes pobres agem mais diretamente. As classes superiores so politicamente importantes e probem os atos danosos das classes pobres, mas as leis se defi nem e executam de tal maneira que os atos danosos e sutis das classes superiores no caem dentro de seu mbito. (Sutherland, 1949, p. 25)

    Assim, esse autor comeou a perceber no Estado e no Direito no mais o poder imparcial que arbitra os confl itos com base no interesse comum, mas um instrumento poderoso que, sob aparncia isenta, respalda ofi cialmente a dominao de uma classe por outra. Por outras vias e mtodos, a pesquisa cri-minolgica reencontrou as concepes da Economia Poltica Crtica que um sculo antes j compreendia a superestrutura poltica e jurdica como expres-so da dominao econmica. O conservadorismo americano do ps-guer-ra pode ser obscurantista, mas no tolo. Conforme Taylor, Walton e Young (1980), Tappan percebeu bem as conseqncias indesejveis de uma cincia criminolgica que no cumpra seu papel na legitimao do poder econmico:

    Os rebeldes podem gozar uma verdadeira orgia condenando como criminoso a quem queiram... e relegando s classes criminosas todo capitalista exitoso. Isto pura vociferao marginal contra o sistema vigente! Isto no criminologia. Isto no cincia social! (p. 48)

    A verdade que no pode ser aceita como cientfi ca uma criminologia que no aceite o pacto implcito de respaldar a ao do poder econmico e cri-minalizar os dominados desviantes. Ainda assim, Sutherland, que substitura as defi nies legais de delito pela de dano social, demonstraria amplamente que os crimes de colarinho branco e de capital produziam mais vtimas e pre-juzos que os crimes previstos e perseguidos pela lei.

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    A Criminologia da Revelao

    Sob essas bases constituiu-se a Criminologia da Revelao (ou Expo-s), que pleitearia a responsabilizao criminal de elementos das elites eco-nmicas por delitos cujo montante tornaria o mais bem sucedido assaltante mero principiante varejista. Apenas como exemplo, Frank Pearce calculou o lucro ilegal produzido pelas corporaes americanas em 1957 em 9 bilhes de dlares; no mesmo ano, calculou-se em 284 milhes de dlares o montante de prejuzos advindos de roubos e assaltos: a relao simplesmente de trinta para um. Mas os programas de investigao cientfi ca do crime desagradaram profundamente o pensamento conservador que, por convenincia, abandonou seu credo positivista e exigiu critrios morais e legais para a cincia criminol-gica. J em 1958, conforme Taylor et al. (1980), George Vold assinalava:

    Existe uma bvia incongruncia na afi rmao de que os dirigentes e os elementos mais responsveis de uma comunidade so tambm seus criminosos. Os dirigentes de negcios e os executivos das empresas desempenham importante papel cvico e so fonte importante de direo imaginativa nas empresas. (p. 47)

    Compreende-se ento uma importante diferenciao conceitual: o cri-me, dependendo da situao socioeconmica de quem o cometa, deve ser con-siderado direo imaginativa e seu autor saudado como um dos mais res-ponsveis cidados da comunidade. A tendncia em verdadeiramente glorifi -car o crime dos poderosos no admite a possibilidade sequer de sua defi nio criminal. O prprio Tappan exigiria que a criminologia estudasse no mais que os infratores julgados e condenados, visto que s estes poderiam ser defi nidos como criminosos. Teramos, ento, que o objeto de estudo da cincia crimi-nolgica seria defi nido no por cientistas, mas por prticas e convenincias de uma Poltica de Estado. Esse absurdo metodolgico no impressionou os ju-ristas e cientistas cujo status elevado correspondia subservincia ao poder.

    E a Criminologia dominante insistiria na propriedade das defi nies legais e continuaria premeditando respaldo cientfi co ad hoc para sua misso de transferir o nus de uma organizao criminal e crimingena s classes pobres e exploradas. Com Galileu, soubemos que a Santa S queria uma As-tronomia, mas no aquela que lhe refutasse os dogmas legitimadores de seu poder. Com a pesquisa criminolgica aprenderamos, 400 anos depois, que

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    o Estado queria uma Criminologia, mas no aquela que o descobrisse como protetor dos grandes criminosos e gerador de criminalidade em geral.

    O Modelo Ecltico bio-psico-social

    A relao bastante particular entre a Poltica Criminal e as cincias que estudam a criminalidade j podia ser observada no acordo de cavalhei-ros que, reunindo a Escola Sociolgica de Tarde e a Positiva de Lombroso, inaugurou, no inicio do sculo XX, a fase ecltica da Criminologia. Na poca, as relaes entre condies socioeconmicas e a criminologia j eram am-plamente conhecidas e a Antropologia Criminal de Lombroso j estava em crise terminal. Mas tudo indica que as foras que, na poca, deram forma ao ecletismo criminolgico (at hoje vigente) mediram-se no por argumentos cientfi cos, mas pelo poder de representao dos interesses sociais, econmi-cos e polticos em jogo. E no preciso muita sagacidade para supor quais interesses estavam super-representados: uma rpida anlise dos quatro pontos bsicos do ecletismo criminolgico ser sufi ciente para perceber os critrios de feitura desse verdadeiro picadinho de escolas criminolgicas diversas.

    Em primeiro lugar, estabelece-se a independncia do Direito Penal e Criminal com relao Criminologia ou qualquer outra cincia que estude a criminalidade. De incio, parece ser uma herana da Escola Clssica, que introduziu o princpio segundo o qual s as leis poderiam fi xar as penas e ca-racterizar o ato criminoso. No entanto, quando Beccaria lutava por esta justia, supunha estar combatendo os arbitrrios interesses dos poderosos em eliminar, pela criminalizao, seus opositores de classe. Hoje, a independncia legal tem a funo inversa, de criminalizar segmentos que a cincia j demonstrou serem vtimas, e de isentar de responsabilidade criminal agentes do poder econmico cuja ao j foi demonstrada como causadora de profundo dano social. Por outro lado, a independncia das leis em relao cincia revela a incapacidade do poder poltico-judicial em traduzir o controle e administrao da criminalidade na forma de saber tcnico-cientfi co aceitvel, como j havia feito com a loucura (Castel, 1978; Foucault, 1972). Lombroso foi uma espe-rana que entusiasmou as instituies jurdicas e policiais, servia como uma luva aos poderosos, mas desgraadamente para eles, teve resistncia cientfi ca.

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    J as formulaes cientfi cas que o sucederam estavam marcadas pelo imper-tinente desrespeito ao livre exerccio do capital e pela insistncia em explicar a criminalidade associada s condies miserveis dos explorados. Nunca fo-ram, portanto, dignas da confi ana dos que controlam o Estado e precisam de boas cincias para suas polticas criminais.

    Em segundo lugar, conserva-se a noo de livre arbtrio como base da imputabilidade penal. Formulao tambm da Escola clssica, signifi ca que s pode ser condenada a pessoa que exerceu livre e responsvel escolha ao cometer o delito. Como presso social e econmica no so consideradas co-autoras da escolha, ser inimputvel apenas o acusado que demonstre no estar senhor de sua razo por motivos compreendidos como endgenos e pes-soais. Nesse caso, o acusado ser isentado de pena, mas responsabilizado pes-soalmente pelos mesmos fatores que lhe suspenderam a responsabilidade. Se for pobre, amargar, talvez para sempre, a condio de cliente tutelado pelas instituies psiquitricas.

    O terceiro ponto do acordo ecltico aceita o crime como sujeito a favo-res causais tanto endgenos como exgenos. O delito, que j fora defi nido por ao jurdica, sofre agora defi nio de fenmeno natural e social. Nada pode-ria ser menos claro, no entanto a prpria confuso do modelo ecltico que permite o enquadramento bio-psico-social da ao criminosa, submetendo-a mesma apreciao causal de qualquer ao humana eventual. Tal equaciona-mento terico substitui estudo dos determinantes da criminalidade social pela pesquisa de fatores predisponentes do comportamento anti-social. O resultado que a criminalidade negada como manifestao sintomtica de desagrega-o de uma sociedade cujo funcionamento exige e gera permanente violncia social e, no lugar do que negado, inventam-se indivduos (os criminosos) pouco resistentes ou propensos ao criminosa. Os estudiosos podem perceber o embuste, mas justamente nesses casos que o aparentemente des-conjuntado modelo ecltico revela-se uma obra prima do oportunismo que ca-racteriza a relao entre os poderes criminalizantes e as cincias: por um lado, o julgamento cientfi co no conformista afastado, pela autonomia jurdica, da determinao do que crime e de quem criminoso; por outro lado, a plastici-dade endo/exogenista e a amplitude do modelo criminolgico bio-psico-social permitem a compatibilizao e a assimilao de todo tipo de tcnicas cientfi -

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    cas na forma de trabalho especializado para apoiar a administrao estatal da criminalidade. Assim, o ecletismo criminolgico municia-se de cincia sem jamais submeter a questo da criminalidade ao juzo cientfi co.

    Por fi m, o quarto ponto do ecletismo foi aceitar a noo de estado perigoso, que implica no reconhecimento de que circunstncias alheias von-tade do indivduo podem envolv-lo em atividade legalmente defi nida como criminosa. Trata-se do reconhecimento de determinaes econmicas, sociais, culturais, psicolgicas e mesmo biolgicas sob as quais o acusado foi impelido a agir. No entanto, como se supe no estar no alcance da Justia e da insti-tuio policial-carcerria a modifi cao de tais condies, o estado perigoso das condies alheias vontade do acusado ser transformado em sua pr-pria periculosidade. A escandalosa inverso de relao causal ser operada por exames de periculosidade que transferiro para a responsabilidade pessoal do acusado as condies adversas das quais foi vtima.

    Desta forma, a Poltica Criminal, que fora defi nida por Feuerbach como o saber legislativo do Estado em matria de criminalidade, revela-se, sintomaticamente, como o aproveitamento por parte do Estado das normas, princpios e conhecimentos cientfi cos que lhe servem para o controle da cri-minalidade, na defi nio reveladora de Senderey (1978).

    O impasse

    O fato de a pesquisa cientfi ca da criminalidade descobrir relaes an-tipticas e ameaadoras aos interesses dominantes no tem implicado na recu-sa sistemtica, por parte do Estado, dessas descobertas. Pior que isso, as pol-ticas criminais de pases como o nosso tm revelado uma competente aptido em subverter as concluses cientfi cas, transformando-as em municiamento de ao dos poderes, grupos e interesses originalmente denunciados. Podem ser arrolados inmeros exemplos em que concluses de pesquisas sobre a crimi-nalidade foram transformadas exatamente no seu contrrio:

    A conhecida correlao entre misria e a criminalidade no foi tradu-zida em poltica social de eliminao da misria: fortaleceu a estigmatizao criminal dos pobres.

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    A conexo entre criminalidade e apropriao privada do produto social no inspirou forma de socializao do produto: acentuou a vigilncia, repres-so violenta e criminalizao dos expropriados.

    A consensual relao entre desemprego e criminalidade no implicou em poltica de pleno emprego: transformou o desempregado em cliente pre-ferencial da violncia policial a ponto da carteira de trabalho assinada ser um verdadeiro salvo conduto, necessrio para o trabalhador evitar a priso.

    A relao entre preconceito racial e criminalidade no encaminhou a eliminao do racismo institucional: manteve a suspeita de que o cidado discriminado racialmente culpado at prova em contrrio.

    A clssica relao entre xodo rural e criminalidade no implicou po-ltica de fi xao do homem ao campo ou de apoio social ao migrante: transfor-mou-o em suspeito permanente das aes policiais.

    A relao entre concentrao de riqueza e criminalidade no inspirou poltica de distribuio de renda: orientou a transformao da polcia pblica em protetora particular da grande propriedade, transferindo a criminalidade inter-classes para intra-classes pobres.

    As vrias idias de marginalizao e suas relaes com a criminalida-de jamais promoveram poltica de integrao social: estigmatizaram o margi-nalizado at fazer de marginal um sinnimo de delinqente.

    At mesmo relaes entre criminalidade e as vagas idias de desfavo-recimento social, englobando educao, estrutura familiar, socializao e es-trutura psicolgica, foram transformadas em ndices de periculosidade pessoal do desfavorecido.

    A secular e amplamente comprovada inefi cincia da priso na reduo da criminalidade, e mais, sua indiscutvel ao fortalecedora desta ltima, nun-ca arranhou os muros das cadeias: mas ajudaram a fazer de seu egresso alvo preferencial da corrupo policial e da suspeita institucional e pblica.

    Em sntese, assiste-se a um drama onde a Poltica Criminal, na prtica, prostitui o equacionamento cientfi co da criminalidade, apropriando-se de suas descobertas, subvertendo-lhes o sentido e transformando-as, de elementos de conhecimento dos determinantes da criminalidade, em fatores de informao

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    cientfi ca de um verdadeiro processo de criminalizao institucional, cujas vtimas so, desgraadamente, a prpria populao pobre que o pesquisador tinha a inteno de defender.

    Alternativas

    O cmodo e anedtico mito da incompetncia das instituies esta-tais no controle da criminalidade tornou-se absolutamente no convincente. Entende-se cada vez mais a profunda competncia dos agentes institucionais da Poltica Criminal em fazer da criminalidade o bode expiatrio dos efeitos socialmente trgicos de polticas sociais e econmicas absolutamente antipo-pulares. Percebe-se que tais polticas s podem ser mantidas sob rgido con-trole policial-militar de suas milhes de vtimas e a prpria criminalizao de parte delas transformada em argumento legitimador do rgido controle policial sobre a populao pobre. Fortalece-se a suposio de que os fatores geradores da criminalidade e da criminalizao sejam os mesmos que susten-tam e reproduzem as condies de poder das classes sociais cujos interesses esto fortemente representados nos aparelhos de Estado. Como conseqncia desse entendimento, a politizao e entrelaamento das vrias cincias que, de alguma forma, estudam a criminalidade tm-se caracterizado como uma ati-tude socialmente responsvel e cientifi camente necessria para as atividades de pesquisa que pretendem ser qualquer outra coisa alm de um acessrio das foras de controle social sob a organizao social vigente (Taylor, et al., 1980, p. 56).

    Assim, condizentes s esperanas que a sociedade deposita na ativi-dade cientfi ca, apresenta-se aos pesquisadores da criminalidade a perspectiva promissora da Criminologia Critica, cujos princpios e mtodos so claramen-te defi nidos por Taylor et al. (1980), como se segue:

    1. A Criminologia Crtica considera que os processos envolvidos na criao e/ou violao das regras legais so de natureza totalmente social e pre-dominantemente condicionadas pelos fatos da realidade material. Rompe com as explicaes individuais (genticos, psicolgicos e similares) dos processos sociais e toma a economia poltica como determinante primrio do modelo social.

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    2. Considera (e demonstra) que os processos envolvidos na criao-do-crime esto unidos com a base material do capitalismo contemporneo e suas estruturas legais de dominao.

    3. A base terica da Criminologia Crtica o materialismo histrico e seu mtodo a dialtica.

    4. O sentido prtico da proposio terica consiste em indicar, con-cretamente, no interesse de quem, contra quem e de que modo exercido o controle social pelo sistema de justia criminal nas sociedades de classe.

    5. Sua produo (pesquisa, teorizao e distribuio de conhecimento) est dirigida no s agncias preocupadas com a conservao da atual organi-zao social do poder, mas s instncias envolvidas em lutar por mudanas. A lealdade do pesquisador para com a populao consiste em que j tomou par-tido: seu trabalho ser realimentado junto queles diretamente afetados pelas desigualdades pesquisadas.

    6. A Criminologia Crtica no se limita a descrever ou prescrever; em-penha-se em teoria e pesquisa como praxis: est preocupada em encorajar e participar das mudanas especifi cadas por seus preceitos e em desenvolver procedimentos de pesquisa relevantes para tal projeto.

    7. A Criminologia Crtica se compromete normativamente com a abo-lio das desigualdades em riqueza e poder e com a tentativa de criar uma so-ciedade em que os fatos da diversidade humana no estejam sujeitos ao poder de criminalizao.

    Destacam-se aqui duas caractersticas da Criminologia Crtica consi-deradas especialmente promissoras. A primeira que ela explicita seu projeto e revela sua utopia, diferenciando-se radicalmente das abordagens que ocul-tam ou ignoram seus objetivos sociais. A segunda a prpria proposta geral de trabalho, na qual a disposio de produzir conhecimento com e para a popula-o que compe o elenco oprimido da tragdia da criminalidade revela-se uma opo politicamente criativa, capaz de fortalecer a resistncia aos processos de criminalizao que vitimam a populao pobre.

    Por fi m, registra-se a esperana de que essa proposta possa dar nova vitalidade pesquisa dos fatores determinantes da violncia social e interrom-

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    per o verdadeiro processo de degradao que as agncias da poltica criminal ofi cial impem produo cientfi ca na rea. E a populao aprisionada, por conhecer com intimidade o cotidiano da criminalidade e da violncia carce-rrio-policial pode, por certo, contribuir muito para o trabalho de desvendar e enfrentar os fatores que produzem e reproduzem a tragdia criminal que vem se desenvolvendo inquietantemente na sociedade contempornea.

    *

    Rocha, L. C. (2006). Captured lives: an attempt of criminality tragedy comprehension together with prisoners characters. Psicologia USP, 17(3), 49-76.

    Abstract: This article presents a research about the producer factors of criminality done in the beginning of 80s which, with the support of long interviews with female prisoners, elaborated a group of hypotheses to the understanding of the established relations that this phenomenon keeps with the poverty, with the police/prison violence and with the own specialized knowledge through which their acts and actors become object of knowledge. Its presentation, today, has two aims: the fi rst is, in honor of recognition and gratitude to Sylvia Leser de Mello, to offer a simple example of one of many research adventures propitiated by her orientation. The second is to share with researchers the subject in study that, polemic and innovative to its epoch, keeps importance to its characteristic specially serious, nowadays, shown by approached issues.

    Index terms: Criminality. Violence. Socioeconomic condition.

    Rocha, L. C. (2006). Vies emprisonnes: une tentative de comprhension de la tragdie de la criminalit auprs de ses personnages prisionniers. Psicologia USP, 17(3), 49-76.

    Rsum: Cet article prsente une recherche sur les facteurs producteurs de la criminalit ralise au dbut de la dcennie 80 qui, en sappuyant sur longs entretiens ralises avec des prisonnires, a labor un

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    ensemble dhypothses afi n de comprendre les relations constitutives que ce phnomne maintient avec la pauvret, avec la violence policire/pnitentiaire et avec les propres savoirs par lesquels ses actes et ses auteurs deviennent objet de connaissance. Sa prsentation, aujourdhui, vise deux objectifs: le premier, en hommage et reconnaissance Sylvia Leser de Mello, est celui doffrir un simple exemple, parmi tant dautres, dune des nombreuses aventures de recherche rendue possible par son orientation. Le second est celui de partager avec des chercheurs qui sintressent au mme thme une tude qui, polmique et innovatrice lpoque de sa ralisation, conserve sa pertinence face, actuellement, aux caractristiques particulirement graves prsentes par les questions abordes.

    Mots-cls: Criminalit. Violence. Condition scio-conomique.

    Referncias

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    junto s suas personagens oprimidas. Dissertao de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo.

    Rocha, L. C. (1994). A priso dos pobres. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo.

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    Recebido em: 14/11/2006

    Aceito em: 27/11/2006

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