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  • verveRevista Semestral do Nu-Sol Ncleo de Sociabilidade Libertria

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais, PUC-SP

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  • VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Ncleo de Sociabilidade Libertria/

    I. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Programa de Estudos

    Ps-Graduados em Cincias Sociais.

    VERVE uma publicao do Nu-Sol Ncleo de Sociabilidade Libertria

    do Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais da PUC-SP

    (coordenadores: Silvia Helena Simes Borelli e Edison Nunes); indexada no

    Portal de Revistas Eletrnicas da PUC-SP, no Portal de Peridicos Capes, no

    LATINDEX e catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos.

    Editoria

    Nu-Sol Ncleo de Sociabilidade Libertria.

    Nu-Sol

    Accio Augusto, Aline Passos, Anamaria Salles, Andre Degenszajn, Beatriz

    Scigliano Carneiro, Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr, Flvia

    Lucchesi, Gustavo Ferreira Simes, Hannah Maruci, Leandro Siqueira, Lcia

    Soares da Silva, Luza Uehara, Maria Ceclia Oliveira, Mayara de Martini

    Cabeleira, Ricardo Campello, Rogrio Nascimento, Salete Oliveira, Sofia

    Osrio, Thiago Rodrigues.

    Conselho Editorial

    Alfredo Veiga-Neto (UFRGS), Cecilia Coimbra (UFF e Grupo Tortura Nunca

    Mais/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Christina Lopreato

    (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo

    Branco (UFRJ), Heliana de Barros Conde Rodrigues (UERJ), Margareth Rago

    (Unicamp), Jos Maria Carvalho Ferreira (Universidade Tcnica de Lisboa),

    Pietro Ferrua (CIRA Centre Internationale de Recherches sur lAnarchisme),

    Rogrio H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Ttora (PUC-SP).

    Conselho Consultivo

    Dorothea V. Passetti (PUC-SP), Heleusa F. Cmara (UESB), Joo da Mata

    (SOMA), Jos Carlos Morel (Centro de Cultura Social CSS/SP), Jos

    Eduardo Azevedo (Unip), Maria Lcia Karam, Nelson Mndez (Universidade

    de Caracas), Robson Achiam (Editor), Silvio Gallo (Unicamp), Stfanis

    Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

    ISSN 1676-9090

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais, PUC-SP.

    N23 (Maio 2013). So Paulo: o Programa, 2013 - semestral

    1. Cincias Humanas - Peridicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio nismo Penal.

    ISSN 1676-9090

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  • revista de atitudes. transita por limiares e ins-tantes arruinadores de hierarquias. nela, no h dono, chefe, senhor, contador ou progra-mador. verve parte de uma associao livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberaes. atia-me!

    verve uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.

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  • Intervalos: fotos de Edson Passetti (Morre capitalismo Morre!, p. 49; ningum pode sonhar por ti, p. 81; nem guerra nem paz, p. 191; anarquia na universidade de viena, p. 159) e Thiago Rodrigues (anarquia em viena, p. 11;las marchas no son suficientes, p. 133).

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  • sumrioPoltica do eu: a crtica de Stirner ao liberalismoPolitics of the ego: Stirners critique of liberalismSaul NewmanUm homem de ideias na sociologia uruguaia:Alfredo Errandonea na lembranaA man of ideas in the Uruguayan sociology: Alfredo Errandonea in the remembranceChristian FerrerO fechamento do Centro de Estudos Sociais Prof. Jos OiticicaThe closure of the Center of Social Studies Jos OiticicaPietro FerruaCriana mal criada: a educao que violentaMisbehaved child: the education that violatesMrcia Cristina LazzariDana e inveno de liberdadesDance and invention of freedomSofia OsrioRevele-seGive it awayDavid GraeberPierre Clastres: a antropologia anarquistaPierre Clastres: an anarchist anthropologyYoram Moatilimiares da liberdadethresholds of freedomEdson Passetti & Accio Augusto

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  • resenhasPara quem tem fogoFor those who have fireGustavo Simes

    Caminho da anarquia ou descaminhos de vida libertria?A way into anarchy or waywardness to the libertarian life?Accio Augusto

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  • verve, entre levezas e contundncias, segue atenta ao que vibra liberdades. vive intensa no que problematiza a poltica, a moral do castigo e as tentativas de pacificar exis-tncias e prticas. verve vem na companhia de max stirner, pela anlise de saul newman, com seu firme ataque s procedncias metafsicas do huma-nismo e do liberalismo. a coragem de existncias libertrias continua nas pginas de verve pelas lembranas de christian ferrer do anarquista alfredo errando-nea e na narrativa sobre o fechamento do centro de estudos sociais prof. jos oiticica, no incio da ditadura civil-militar brasileira, por pietro fer-rua. esse relato de ferrua compe, junto a outros quatro j publicados em verve, parte indita dos arquivos do centre internationale de recherche sur lanarchisme que registra acontecimentos cruciais do anarquismo no brasil dos anos 1960. a verve abolicionista desponta com mrcia cristina lazzari sobre o redimensionamento da punio de crianas e jovens em artigo atiado por incisivo hypomnemata sobre a sanha punitiva e assassina no brasil de agora. sofia osrio apresenta a histria de prticas de liberdade movidas pela dana e pela pulso de vida heterotpica que emergiu num brasil de represso e medo. seu artigo provoca um deslocamento, forte e sutil, para o desconcerto que as prticas ditas primitivas produzem no civilizado e nos anarquismos, com david graeber e pierre clastres, na leitura de yoram moati. tenses e liberaes, fluindo por limiares numa histria do presente na aula-teatro revista e potencializada por edson passetti e accio augusto. nas resenhas, a guerra ininterrupta em torno da repres-so s drogas esgarada em suas tticas de controle e possibilidades de resistncia e invenes livres, enquanto o anarquismo contemporneo apresentado em suas potncias combativas, limites e labirintos. a anarquia, essa fora que no cessa, atravessa verve em fotos que registram gritos grafados em muros nas amricas e na europa, em fotos de edson passetti e thiago rodrigues. com levezas e contundncias, verve desdobra-se eletrnica, inventando heterotopicamente espaos de liberdade, como um convite ao desassombro e coragem. vivas!

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  • viena, ustria, 2012

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    Poltica do eu: a crtica de Stirner ao liberalismo

    poltica do eu: a crtica de stirner ao liberalismo

    saul newman

    Um dos problemas centrais da teoria poltica con-tempornea se o liberalismo ou no, ou deveria ser, neutro em relao s concepes normativas da boa vida. Para filsofos liberais como Rawls, o princpio da justia como equidade no se refere a nenhum pressuposto mo-ral abrangente ou concepo universal de bem, mas sim-plesmente a uma moldura neutra que permite concepes concorrentes sobre a boa vida. O liberalismo neutro busca atingir um consenso sobre as condies para uma socie-dade bem ordenada ao mesmo tempo em que permite a pluralidade de identidades e religies, perspectivas filo-sficas e morais encontradas nas sociedades contempo-rneas.1 Para Rawls, em outras palavras, direitos neutros so prioritrios em relao a concepes valorativas sobre o bem. Os comunitaristas, por outro lado, opuseram que essa noo supostamente neutra de direitos individuais pressupe um tipo especfico de subjetividade e uma srie de condies que a tornam possvel. De outra maneira, direitos no podem ser vistos como abstratos ou neutros

    verve, 23: 13-48, 2013

    Saul Newman professor no Departamento de Poltica de Goldsmiths College, da Universidade de Londres. Contato: [email protected].

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    eles no podem ser vistos fora das formas especficas de subjetividade e associaes polticas que lhes do origem. Por exemplo, os autnomos, os indivduos portadores de direitos nos quais o liberalismo se baseia, s so possveis em um determinado tipo de sociedade e no podem ser considerados apartados dela.2

    De acordo com alguns comunitaristas, portanto, ns deveramos rejeitar a valorizao liberal dos direitos in-dividuais e retornar ideia de um bem comum e valores normativos universais. Contudo, e se algum sugerisse que a prpria oposio entre liberalismo e comunitarismo problemtica e precisa ser desconstruda? Por exemplo, est claro que a noo liberal de direitos abstratos insus-tentvel sem considerar as condies sociais e as formas de subjetividade que os tornam possveis. O liberalismo pressupe certas formas de subjetividade baseadas na no-o de autnomos, de indivduos racionais, sem reconhe-cer as frequentes condies de opresso sob as quais estas subjetividades so constitudas. Porm, isso no quer dizer necessariamente que ns deveramos nos alinhar aos co-munitaristas e abandonar completamente a noo de direi-tos individuais e instituies liberais. O fato de os direitos serem produtos do discurso, das prticas disciplinares ou dos mecanismos ideolgicos no quer dizer que ns deve-ramos desconsiderar totalmente sua importncia poltica. Significa, simplesmente, que seu status sempre proble-mtico, contingente e indeterminado. Defenderei aqui que por meio da reapreciao da crtica do pensador do s-culo XIX, Max Stirner, que poderemos enfrentar a questo dos limites dos direitos individuais de um jeito novo.

    Stirner desenvolveu uma crtica radical do liberalismo baseada no questionamento de suas premissas e funda-

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    mentos essencialistas. Ele explorou a questo de como e sob quais condies o sujeito liberal constitudo, e quais problemas isso apresenta para a teoria liberal. Enquanto o liberalismo foi ostensivamente uma filosofia que libe-rava o homem da mistificao religiosa e do absolutismo poltico, ele foi coerente, segundo Stirner, com a sujeio dos indivduos a novas prticas disciplinares e normaliza-doras. De fato, Stirner percebeu o universalismo abstrato racional e a neutralidade poltica do liberalismo como sim-plesmente uma nova forma de convico religiosa, um cris-tianismo reinventado nos termos dos ideais Iluministas. Tais ideais, alm disso, escondiam uma srie de estrat-gias projetadas para negar as diferenas individuais. Para Stirner, portanto, a noo de direitos individuais no fazia sentido quando no fossem consideradas as relaes de poder sobre as quais ela se assenta.

    A Insurreio religiosa do HumanismoPor ser um dos menos conhecidos Jovens Hegelianos,

    o trabalho de Stirner foi geralmente recebido com pou-ca ateno pela teoria poltica contempornea. Ele mais conhecido pela controvrsia terica sobre sua crtica do idealismo e pelo subsequente repdio de Marx e Engels a ele, em A ideologia alem. De fato, alguns sugeriram que a chamada ruptura epistemolgica de Marx, entre seu humanismo clssico e o economicismo mais maduro, foi inspirada na crtica de Stirner sobre a filosofia humanista de Ludwig Feuerbach.3 Entretanto, a crtica de Stirner ao humanismo de Feuerbach, em O nico e sua propriedade (publicado em 1844), teve implicaes mais radicais e de maior alcance do que simplesmente o efeito que pode ter

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    causado em Marx. Ela permitiu um tipo de ruptura epis-temolgica com a prpria tradio do Iluminismo, abrin-do um espao terico para o questionamento dos discursos da modernidade suas identidades essenciais e categorias racionais e morais, bem como suas articulaes polticas. A crtica de Stirner ao humanismo tem sido crucial para o desenvolvimento do pensamento poltico ps-Iluminista, e alguns sugerem que ele deve ser visto como um precur-sor do ps-estruturalismo contemporneo4. Na verdade, existe uma ressonncia extraordinria entre o pensamento de Stirner e o de ps-estruturalistas posteriores como Foucault, Deleuze, Derrida e Lacan. Mas, deixando essa questo de lado por enquanto, explorarei as implicaes da rejeio de Stirner ao humanismo Iluminista para a teoria poltica liberal.

    O centro do projeto humanista do Iluminismo foi o es-foro para liberar o homem dos grilhes da mistificao e do obscurantismo religioso, e permiti-lo desenvolver faculda-des racionais e morais prprias sua humanidade. Ludwig Feuerbach, por exemplo, afirmou que o cristianismo tem um efeito alienante sobre o homem porque o confronta com uma imagem abstrata de Deus como a encarnao do bem supremo, do amor e da sabedoria. Porm, essas qualidades que a religio atribui a Deus so, na verdade, as qualidades reificadas do homem como um ser genrico, que foram abstradas dele e projetadas em um aliengena, figura externa que permanece para sempre fora do seu alcance. Em outras palavras, a crueldade sublime do cristianismo, e da religio em geral, negar a humanidade do homem e coloc-lo face a face com um tipo de imagem dele mesmo invertida no espelho, dizendo que ele no nada, enquanto Deus tudo. Neste sentido, a essncia do homem foi deslocada e rou-

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    bada, deixando-o alienado e degradado: O homem desiste de sua personalidade... ele nega a dignidade humana, o eu humano5. Em outras palavras, Deus realmente uma ex-ternalizao ilusria da prpria humanidade do homem, e o homem nunca ser livre at que esta lhe seja restaurada por meio de uma superao dialtica da iluso crist.

    Mas precisamente essa emancipao secular do ho-mem to emblemtica do humanismo que Stirner questiona. Stirner afirma que a crtica de Feuerbach sobre a religio no conseguiu derrubar esta ltima, mas ape-nas reinvent-la em uma nova forma humanista. De outra maneira, ao perceber as qualidades de Deus como, de fato, qualidades reificadas do homem, Feuerbach no deslocou tanto Deus, mas transformou o homem em Deus. O homem se tornou, aos olhos de Feuerbach, a ltima expresso dos atributos divinos amor, racionalidade, divindade e por a vai. O resultado final da dialtica humanista de Feuerbach, segundo Stirner, que o homem e Deus, simplesmente, trocaram de lugar o homem se tornou agora infinito e universal do mesmo jeito que, um dia, acreditou-se que era Deus. Em vez de demolir as categorias de autoridade religiosa e alienao, Feuerbach apenas as inverteu e colo-cou o homem no interior delas, e manteve, assim, intactas as estruturas da opresso religiosa.

    Stirner vai alm da problemtica do humanismo ao enxergar a essncia humana a verdadeira essncia que foi, segundo Feuerbach, alienada pela religio como uma abstrao alienante em si mesma. Como Deus, a essn-cia do homem se torna um ideal supersticioso que agora aliena os indivduos. Em outras palavras, por meio da in-surreio humanista de Feuerbach, o homem substituiu Deus como a nova abstrao ideal uma abstrao que

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    nega as diferenas individuais ao tentar unific-las em uma ideia geral de humanidade. Aqui, Stirner rompe com o discurso do humanismo ao introduzir uma diviso radical entre o homem e o indivduo. No humanismo, o homem se transforma em Deus, e assim como o homem foi uma vez subordinado a Deus, o indivduo subordina-do a esse ser perfeito, o homem. Para Stirner, o homem to opressor quanto Deus, se no for mais: O homem o Deus de hoje e o medo do homem tomou o lugar do velho medo de Deus6. por isso que Stirner v o humanismo Iluminista, com seu discurso racional e moral que supos-tamente libertaria as pessoas da mistificao e idealismo religiosos, como uma forma de cristianismo reinventado.

    O humanismo pode ser visto como a nova religio se-cular baseada em uma ideia universal de essncia humana. Assim como o conceito de Deus, o conceito de essncia radicalmente externo ao indivduo. Essa noo de es-sncia humana se tornou sagrada, confrontando, assim, o indivduo com uma srie de normas morais e racionais as quais ele deve venerar e seguir porque so consideradas intrnsecas sua humanidade. A ideia de homem deveria viver dentro de cada indivduo e ainda ultrapass-lo como um ideal universal: O homem vai alm de cada homem individual, e ainda apesar de ser a essncia dele no de fato sua essncia (que preferiria ser to nica quanto o indivduo mesmo), mas uma genrica e superior, sim, para ateus, essncia maior7.

    A dialtica do liberalismoPor meio dessa crtica de Feuerbach, Stirner voltou o

    humanismo contra ele mesmo introduzindo uma ruptura

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    radical na tradio Iluminista. Humanismo tido como um discurso que, enquanto afirma libertar o homem, na verdade introduz novas formas de subjugao e alienao, devorando o indivduo em suas generalidades abstratas e ideais universais. A expresso poltica dessa dominao, para Stirner, o liberalismo. O liberalismo a poltica para uma era secular, uma contrapartida poltica para a epistemologia do Iluminismo baseando-se na razo e na lei em vez de no absolutismo e na tirania. Porm, para Stirner, o liberalismo tem uma face de Jano8 a libera-o do homem da opresso e da tirania concomitante com a dominao do indivduo. Em uma contradialtica, Stirner mostra a maneira segundo a qual o liberalismo se desenvolve, por meio de uma srie de permutas polticas, e culmina, ao mesmo tempo, na liberao final do homem e na completa sujeio do indivduo.

    O liberalismo comea com a emergncia do liberalismo poltico que, segundo Stirner, sinnimo do desenvolvi-mento do Estado moderno. Depois da queda do Antigo Regime, um novo lugar de soberania emergiu o Estado democrtico republicano. Essa uma forma moderna di-ferente de governo, baseada na noo de neutralidade e transparncia institucional. O governo do Estado liberal substituiu o absolutismo e obscurantismo poltico associa-do antiga ordem feudal. No lugar do antiquado sistema de hierarquia e privilgio, o liberalismo poltico se esta-beleceu sobre o princpio da igualdade formal de direitos: igualdade perante a lei, por exemplo, e acesso igualitrio e imediato s instituies polticas. O liberalismo poltico pode ser visto, neste sentido, como a contrapartida lgica do Iluminismo: funda-se na pressuposio de um sujeito burgus racional, autnomo e portador de direitos, que

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    foi liberado dos grilhes do privilgio aristocrtico e pode agora expressar sua liberdade na esfera pblica.

    Entretanto, Stirner detecta vrios problemas no libe-ralismo poltico. Primeiro, a noo de igualdade formal de direitos polticos no reconhece, e de fato reduz, as di-ferenas individuais. Isso no quer dizer que Stirner tem alguma coisa contra a igualdade como tal; o que ele critica a maneira pela qual, por meio da lgica do liberalismo poltico, o indivduo reduzido a uma uniformidade san-cionada pelo Estado. A igualdade de direitos significa apenas que o Estado no tem qualquer respeito por mim, que, para ele, eu, como qualquer outro, sou somente um homem9. Em outras palavras, Stirner se ope maneira que o Estado, por meio da doutrina de igualdade de direi-tos, reduz todas as diferenas individuais a uma identida-de poltica genrica e annima a de cidado.

    Ademais, essa noo de direitos polticos limita-da ela concedida ao indivduo pelo Estado e, por isso mesmo, formal e vazia. Ao invs de dar ao indivduo autonomia frente autoridade poltica do Estado, como as anlises convencionais do liberalismo afirmam, ele sim-plesmente confere acesso imediato ao Estado (ou melhor, do Estado ao indivduo) e, assim, permite que este seja mais efetivamente dominado. De outra maneira, o libera-lismo poltico pode ser compreendido como a lgica que regula as relaes dos indivduos com o Estado, superando os complexos meandros das relaes feudais dzimos, guildas, comunas, etc. e permitindo uma conexo mais direta e ilimitada com o Estado. Ao mesmo tempo em que isso, ostensivamente, liberta o indivduo do governo arbitrrio, tambm remove os obstculos e arranjos que at ento se colocavam entre o poder poltico e o indi-

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    vduo, fechando, assim, os espaos de autonomia onde a vida poltica no se intromete. O liberalismo poltico no pluralista demais, mas sim pluralista de menos.

    A idiossincrasia dessa crtica talvez se deva ao fato de Stirner ter em mente a concepo hegeliana de Estado uni-versal que superaria os interesses particulares e o egosmo da sociedade civil (Gesellschaft). precisamente esse interesse particular que Stirner quer proteger como base das dife-renas individuais, e ele v o Estado liberal, apesar da sua pretenso de personificar a liberao, como uma institui-o que se intromete na individualidade. Portanto, assim como Marx sustentou que a liberdade religiosa significa apenas que a religio est livre para alienar ainda mais o indivduo na sociedade civil, Stirner afirma que a liberda-de poltica significa apenas que o Estado est livre para dominar ainda mais o indivduo: liberdade poltica, o que devemos entender por isso? Talvez a independncia frente ao Estado e suas leis? No; ao contrrio, a sujeio do indivduo ao Estado e s leis do Estado. Mas por que liberdade? Porque no se est mais separado do Estado por intermedirios, mas em relao direta e imediata com ele; porque se um cidado10.

    Essa questo da cidadania nos leva ao prximo proble-ma. Para Stirner, o discurso do liberalismo poltico constitui uma certa forma de subjetividade o cidado burgus qual o indivduo forado a se adaptar. A cidadania um modo de subjetividade baseado na obedincia incontestada e na devoo ao Estado moderno. Para o indivduo conseguir os direitos e privilgios da cidadania, ele deve se adequar a certas normas valores burgueses como trabalho rduo e responsabilidade, por exemplo. Por trs do rosto do libera-lismo poltico, ento, existe toda uma srie de estratgias de

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    normalizao e tcnicas de disciplina projetadas para subje-tivar o indivduo, torn-lo cidado de bem do Estado. O indivduo encontra-se subordinado a uma ordem racional e moral, na qual certos modos de subjetividade so constru-dos como essenciais e iluminados, e qualquer dissidncia em relao a eles resulta em marginalizao. Desta forma, a categoria de cidadania burguesa cria uma srie de iden-tidades excludas. O proletariado, para Stirner, refere-se queles que no conseguem viver de acordo com as normas burguesas vagabundos, prostitutas, vadios, apostadores arruinados, indigentes os que no tm nada a perder11. Essa identidade subalterna constitui o outro excludo da cidadania liberal burguesa: refere-se aos que no tm lu-gar na sociedade, que so radicalmente excludos de todas as noes de cidadania, e at das relaes de trabalho e da troca econmica. Seria esta a classe que Marx chamou des-denhosamente de lmpen-proletariado.

    O problema com o liberalismo poltico, de acordo com Stirner, o absolutismo racional e moral que o acompa-nha, e a forma pela qual ele nega as diferenas individuais e estabelece normas universais que excluem certas identi-dades. Stirner descreve os liberais como fanticos, e o libe-ralismo como uma religio nova, secular e racional uma religio na qual o Estado moderno assumiu o lugar de Deus, e as leis racionais se tornaram to fundamentalistas, absolutas e opressoras quanto os ditos cristos. De fato, precisamente por meio do discurso liberal de direitos e liberdades universais que o indivduo , progressivamente, dominado e sujeitado a normas alienantes.

    Essa dominao intensificada, argumenta Stirner, na segunda articulao do liberalismo, que ele chama de li-beralismo social. Ao passo em que, no discurso do libera-

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    lismo poltico, a igualdade est restrita ao nvel formal dos direitos legais e polticos, os liberais sociais exigem que o princpio da igualdade seja estendido aos domnios social e econmico. As pessoas devem ser iguais social e economi-camente, assim como politicamente. Isso s pode ser alcan-ado por meio da abolio da propriedade privada, que vista como uma relao alienante e despersonalizante. Em vez disso, a propriedade deve ser da sociedade como um todo e distribuda igualmente. Onde o indivduo trabalhava apenas para si mesmo, agora dever trabalhar pelo benef-cio de toda a sociedade. somente por meio do sacrifcio individual pela sociedade, segundo os liberais sociais, que a humanidade pode liberar a si mesma e se desenvolver com-pletamente.

    No entanto, Stirner encontrou por trs dessa conversa de liberao social mais uma negao do indivduo e a in-tensificao da opresso. Enquanto os liberais sociais ou socialistas, como podem ser compreendidos nesta anlise afirmam lutar por igualdade, o que eles consideram real-mente intolervel, segundo Stirner, o egosmo individu-al: Ns queremos tornar os egostas impossveis... ns no devemos ter nada para que todos possam ter12. Em ou-tras palavras, por trs desse discurso de igualdade social e econmica para todos, existe um ressentimento escondido e pernicioso em relao s diferenas individuais. Stirner argumenta que, apesar de suas restries, o liberalismo poltico ainda permitia certos espaos reservados para a individualidade na propriedade privada, por exemplo, que os socialistas agora querem acabar. Ao fazer isso, eles estariam abolindo um dos poucos lugares de autonomia individual que restaram. Igualdade social e uniformizao so, assim, uma forma mais efetiva de limitar a autono-

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    mia individual. Por esse motivo, a sociedade se torna o novo local de soberania e dominao, no lugar do Estado liberal. Mais uma vez o indivduo alienado por uma abs-trao genrica, de acordo com Stirner. Da mesma forma que o Estado liberal, a ideia de sociedade tomada como sagrada e universal, exigindo do indivduo o mesmo autos-sacrifcio e obedincia incontestada.

    Entretanto, na anlise de Stirner, a dialtica inexorvel do liberalismo prossegue, e agora, at mesmo a ideia de sociedade no mais universal o suficiente. J que o libe-ralismo social baseado no trabalho, ele ainda est preso ao paradigma do materialismo e, portanto, do egosmo. O trabalhador na sociedade socialista continua trabalhando para ele mesmo, mesmo que seu trabalho seja regulado pelo todo social. A humanidade deve, em vez disso, lu-tar por um objetivo mais ideal, abstrato e universal. Aqui, segundo Stirner, emerge a terceira e ltima articulao do liberalismo: o liberalismo humanista. O liberalismo humanista o ltimo estgio na dialtica do liberalismo, a reconciliao final da humanidade consigo mesma. En-quanto os dois estgios anteriores do liberalismo ainda mantinham uma distncia entre a humanidade e seu obje-tivo por meio de uma devoo a ideias externas o Estado e a sociedade o liberalismo humanista reivindica, final-mente, a reconciliao com nosso objetivo ltimo, que nossa humanidade em si mesma. Em outras palavras, as pessoas devem lutar pelo ideal interno de homem e de es-sncia da humanidade. Com esta finalidade, cada tipo de particularismo e diferena deve ser superado para a glria maior da humanidade. As diferenas individuais so sim-plesmente abolidas por meio do chamado a identificar a essncia do homem e da humanidade dentro de cada um:

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    Pegue de voc tudo que for peculiar e jogue fora. No seja Judeu, nem Cristo, mas um ser humano, nada mais que um ser humano13. Para os liberais humanistas, essa ideia de humanidade universal, na qual as diferenas individu-ais foram transcendidas, o objetivo final do homem o Estado de perfeio e harmonia onde o homem foi final-mente liberado do mundo objetivo externo.

    Porm, esse estgio final da liberao humana tambm a abolio final e completa do eu individual. Para Stirner, como vimos, no h nada de essencial na humanidade ou no gnero humano: no passam de fantasmas ideolgi-cos que amarram o indivduo a uniformizaes alheias e externas. No existe uma essncia humana que mora em cada indivduo esperando para ser descoberta, como diz o discurso do humanismo. Ao contrrio, a essncia hu-mana algo radicalmente alheio e externo ao indivduo. Por conseguinte, Stirner percebe a proclamada liberao da humanidade como a culminao da alienao e subor-dinao progressivas do indivduo. Dito de outra forma, exatamente atravs do movimento humanista para su-perar a alienao que a alienao do indivduo concreto , enfim, realizada. O liberalismo humanista, para Stirner, somente a expresso poltica dessa abdicao final do eu individual. Ns vimos como cada uma das vrias formas de liberalismo, progressivamente, limitou os espaos da autonomia individual. Uma vez abolida a propriedade pri-vada, o egosmo se refugiou nos pensamentos e opinies individuais. Agora, no entanto, at isso foi negado sob o liberalismo humanista as opinies individuais devem ser controladas pela opinio humana geral.14 Mais do que isso, o liberalismo humanista tenta abolir todas as formas de particularidades e diferenas. Diferenas tnicas, nacionais,

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    religiosas de fato, qualquer coisa que permita algum tipo de particularidade ou singularidade tudo deve ser dissipa-do dentro de uma humanidade universal. Desta forma, ns vemos no liberalismo humanista a completa dominao do geral sobre o particular. A figura exemplar da repugnncia para os liberais humanistas, segundo Stirner, a prostituta que, por transformar seu corpo em uma mquina de ga-nhar dinheiro corrompe sua prpria humanidade.15 Assim, o liberalismo humanista, apesar de, ou melhor, por causa de sua proclamada universalidade e incluso, produz uma srie de identidades excludas e marginalizadas.

    Na verdade, precisamente por meio dessas identidades excludas que o sujeito liberal constitui sua prpria univer-salidade. Como mostra Stirner, a figura do homem, central no humanismo e no liberalismo, sempre assombrada por uma outra o no-homem ou Unmensch16. O no-homem foi a parte do indivduo que sobrou do processo dialtico, e que no pode ser incorporada na identidade geral da hu-manidade: O liberalismo como um todo tem um inimigo mortal, um opositor invencvel... ao lado do homem est o no-homem, o individual, o egosta17. Dessa maneira, h um ponto em que a dialtica universalizante do libera-lismo no consegue incorporar totalmente a diferena a diferena permanece, mesmo que apenas na forma espec-tral do no-homem, como um excesso radical que escapa sua lgica.

    Essa crtica da dialtica como algo hostil diferen-a um tema familiar a certo nmero de pensadores ps-estruturalistas contemporneos. Gilles Deleuze, por exemplo, explora o pensamento de Nietzsche em termos de rejeio dialtica hegeliana. Segundo Deleuze, Nietzsche mostra que as oposies centrais estrutura da dialtica

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    tese e anttese so apenas superficiais, e mascaram sua in-compreenso da diferena e a tentativa de reconcili-la com a lgica da semelhana. Deleuze, por outro lado, v Stirner como um dos avatares da dialtica como o dialtico que revela o niilismo como a verdade da dialtica18. A crti-ca de Stirner ao liberalismo parece sustentar isso. Stirner usa a estrutura dialtica exatamente para minar a prpria dialtica e expor seu ponto culminante, que no o triun-fo da liberdade ou da racionalidade, mas a universalizao da alienao e da mistificao. A verdade desse supremo processo racional o espectro do homem e, a essncia hu-mana, sua iluso maior. A dialtica do liberalismo, como vimos, revelou a si mesma como dominao do indivduo e excluso da diferena. As oposies entre as diferentes arti-culaes do liberalismo poltico, social e humanista so simplesmente estgios da revelao de um novo significado, uma nova lgica da dominao.

    Liberalismo disciplinarStirner, portanto, vai alm das anlises convencionais do

    liberalismo, ao perceb-lo no apenas como um determina-do sistema poltico ou conjunto de instituies, mas como uma certa tecnologia que atravessa distintas simboliza-es polticas e cria instncias prprias de diferentes manei-ras. Ele deve ser entendido como uma tecnologia disciplinar porque envolve a mediao entre o indivduo e as normas e instituies que o constituem como sujeito. O liberalismo , assim, a articulao poltica da ideia de essncia huma-na, e pode ser visto como uma estratgia para constituir o indivduo em conformidade com essa essncia como sujeito de normas externas, mecanismos ideolgicos e ins-

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    tituies polticas. Essa a estratgia que atravessa dife-rentes arranjos polticos e intensificada progressivamente. Ento, vemos que no liberalismo poltico que ostenta um discurso de direitos que garantem a liberdade individual frente opresso poltica o indivduo constitudo como sujeito de Estado. No discurso do liberalismo social, o in-divduo est preso a arranjos coletivos externos por meio da normalizao do indivduo de acordo com o ideal de gnero humano. O liberalismo pode ser entendido, assim, como uma progressiva domesticao do indivduo uma restrio s suas diferenas e singularidade, construindo-o como sujeito de vrias instituies e normas. Em outras palavras, o liberalismo no opera somente pela represso seu mecanismo muito mais sutil. Ao contrrio, ele opera construindo o indivduo em torno de uma certa subjetivi-dade que ativamente deseja sua prpria dominao. Pode-se dizer que aqui Stirner descobriu, mais de um sculo antes de Foucault e Deleuze, um paradigma de poder ps-jurdico e ps-repressivo que opera atravs da autossujeio19. De qual-quer maneira, claro que o diagnstico de Stirner sobre o liberalismo, como uma tecnologia normalizadora e disci-plinar, teve implicaes fundamentais, no somente sobre a compreenso contempornea do liberalismo, mas tambm sobre as conceituaes de poder e ideologia na teoria pol-tica. Stirner mostrou o subterrneo negado pelo liberalismo: atrs da linguagem de direitos, liberdades e ideais universais do liberalismo, existe uma rede secreta de tecnologias dis-ciplinares e prticas normalizadoras projetadas para regular o indivduo.

    A racionalidade pode ser considerada como uma des-sas tecnologias disciplinares liberais. Stirner afirma que o liberalismo procura impor uma ordem racional universal

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    ao mundo: O liberalismo no nada mais que o conhe-cimento da razo aplicado s nossas relaes existentes. Seu objetivo uma ordem racional, um comportamento moral... Mas, se a razo governa, ento a pessoa sucum-be20. No entanto, Stirner no se ope necessariamente racionalidade em si mesma, mas ao seu status de discurso absoluto e universal. A verdade racional sempre retirada do domnio do indivduo e imposta a ele tiranicamente, criando, assim, um ideal alienante externo ao qual ele deve se adequar. A verdade racional no tem sentido para alm das perspectivas individuais. De acordo com Stirner, no deveramos ficar intimidados pelos reclames da raciona-lidade e da verdade so meramente discursos baseados nos motivos mais insignificantes, em particular, no desejo de poder e dominao. Essa crtica da racionalidade tem implicaes claras mesmo para a teoria poltica liberal contempornea: a tentativa de Rawls de estabelecer um consenso racional sobre as condies para a justia seria tomada, pela perspectiva de Stirner, como uma maneira de excluir posies discursivas diferentes e antagnicas opinies de uma ordem racional universal, precisa-mente, rotulando essas vozes dissidentes como irracionais ou desarrazoadas. O que essa noo do consenso racional esconde, em outras palavras, uma marginalizao coer-citiva das diferenas individuais.

    A poltica do ressentimentoEssa crtica da racionalidade universal tem certos para-

    lelos importantes com Nietzsche. Nietzsche tambm fala sobre a maneira como as ideias racionais e morais domi-nam a conscincia moderna e jogam o indivduo contra

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    ele mesmo. Ambos, Stirner e Nietzsche, veem o liberalis-mo como uma forma invertida de cristianismo baseada no ressentimento em relao diferena e individualidade. Embora meu propsito aqui no seja engatar uma compa-rao entre Stirner e Nietzsche, vou explorar determinadas conexes entre os dois pensadores particularmente so-bre a questo da subjetividade liberal moderna que nos permitem lanar uma luz sobre o liberalismo. possvel sugerir que os dois autores exploram uma contra-histria ou uma genealogia da modernidade uma anlise por meio da qual os ideais mais elevados da modernidade so desmascarados, revelando a vontade de poder por trs delas.

    Para Stirner, como vimos, o liberalismo baseado em uma noo de essncia humana qual espera-se que o indivduo se conforme. A crtica de Stirner precisa em problematizar a ideia de essncia, em expor sua funo ideolgica e as relaes de poder criadas por meio delas. Por consequncia, a essncia humana no pode mais ser tomada como uma certeza ontolgica. Ao contrrio, seu prprio status se tornou uma questo poltica. Isso tem enormes implicaes para o liberalismo porque, como mostrou Stirner, o liberalismo baseado em uma compre-enso essencialista do indivduo na ideia de um sujeito moral e racional universal. Para Nietzsche, de maneira simi-lar, a ideia de sujeito humano essencial problemtica. Ao contrrio da tradio humanista do Iluminismo, Nietzsche suspeitava de toda essa confiante proclamao modernista sobre a Morte de Deus: O grande acontecimento ainda est a caminho, ainda vagando, ainda no chegou aos ouvi-dos dos homens21. Ainda que tenhamos matado Deus, ns ainda no estamos prontos para este acontecimento

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    ainda estamos presos nas categorias da metafsica, no modo religioso de conscincia. Deus foi apenas reinven-tado no homem: a reconciliao dialtica entre Deus e o homem que se encontra em Feuerbach e Hegel ape-nas o ponto culminante do niilismo cristo e o triunfo das foras reativas negadoras da vida. O humano so-mente um meio de reproduzir o divino. Tal qual Stirner, portanto, Nietzsche v o humanismo como apenas mais uma ltima metamorfose do cristianismo. Moralidade simplesmente nossa falta de capacidade de abandonar o cristianismo: eles se livraram do Deus Cristo, e agora se sentem obrigados a se apegar mais firmemente morali-dade Crist22.

    Deixando de lado algumas de suas diferenas polticas por exemplo, Stirner no compartilhava da nostalgia de Nietzsche pela aristocracia e sua valorizao da hierarquia e da desigualdade ambos os pensadores, todavia, empenha-ram-se em uma crtica similar do impulso de nivelamen-to e religiosidade secular de sistemas polticos modernos, como o liberalismo. Para os dois, Stirner e Nietzsche, o problema com o liberalismo e suas variadas ramificaes polticas que elas negam as diferenas individuais e sin-gularidades ao reduzir todos ao mesmo nvel formal com base em uma imagem universal e idealizada de essncia humana. A imagem feuerbachiana de um homem seme-lhante a Deus imbudo de racionalidade e bondade , para Nietzsche, assim como para Stirner, uma imagem in-vertida do sacrifcio do indivduo no altar humanista de automortificao. Talvez, dito de outra forma, devssemos olhar alm do princpio formal liberal de igualdade de di-reitos para ver o esprito de ressentimento que contamina sua raiz a vontade de poder dos fracos contra os for-

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    tes, do escravo contra o senhor, que existe por baixo disso. Essa atitude de ressentimento, mostra Nietzsche, hostil diferena no pode entender a diferena a no ser in-corporando-a em suas estruturas morais e definindo-a em termos de oposio. Logo, o que diferente de si mesmo necessariamente mau porque sem esse outro exterior ele no pode se autodefinir como bom.

    Talvez pudssemos entender o liberalismo neste sen-tido como uma lgica poltica contaminada pelo res-sentimento quanto diferena e individualidade. Como mostra Stirner, indivduos que se desviam das normas morais e racionais do liberalismo so excludos da poltica liberal. Isso pode ser pensado em termos de uma atitude institucionalizada do ressentimento em direo quele que diferente quele que no se adequa ao sujeito liberal ideal. Mais ainda, nas sociedades liberais, o indivduo fica dividido entre a identificao com a subjetividade liberal e o reconhecimento dos elementos prprios a ele mes-mo que no podem ou no se conformam quele ideal e so considerados patolgicos, inumanos e, com frequncia, violentamente reprimidos. O indivduo , assim, alienado e aterrorizado consigo mesmo23. Neste sentido, o ressenti-mento se volta contra ele mesmo e se torna uma doena. O no-humano de Stirner se refere no somente s dife-renas exteriores ao sujeito liberal moderno, mas s que so interiores a ele tambm. Podemos aplicar facilmente esse argumento s sociedades liberais modernas nas quais identidades particulares tais como desempregados, dro-gados, sem-teto, pacientes psiquitricos, imigrantes ilegais e dependentes da assistncia social so marginalizadas porque no vivem de acordo com o ideal liberal de sujeito autnomo, independente, responsvel e autoconfiante.

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    Toda uma srie de punies, procedimentos disciplina-res e sanes sociais so aplicadas aos que ficam para trs: violaes da assistncia social, sentenas de priso, multas, liminares, medicalizao, confinamento em alas psiquitri-cas e centros de deteno. William Connolly analisa essa intolerncia reativa diferena caracterstica das socieda-des liberais de hoje em dia. Ao construir o sujeito liberal como responsvel e autnomo, o liberalismo inculca no indivduo um senso de rancor e culpa contra si mesmo onde ele falha em no cumprir essa meta; isso s pode ser aliviado dirigindo-o para o exterior, transformando-o em um ressentimento generalizado contra o que percebido como diferente: Algumas fraquezas so aqui transforma-das em mrito, assim, o que o escravo deve ser se torna a meta em relao a qual toda diferena definida como um desvio a ser punido, reformado, convertido24.

    Pensadores como Stirner, Nietzsche e Connolly mos-tram que qualquer anlise do liberalismo deve levar em conta a excluso da diferena na base do seu edifcio de li-berdade e direitos iguais. Tanto Stirner quanto Nietzsche, de maneiras distintas, enveredam por uma genealogia do sujeito liberal autnomo desmascarando a maneira que ele constitudo por meio de estratgias de dominao, disciplina e domesticao. O liberalismo baseado na su-posio de um sujeito humano essencial como lcus da racionalidade e dos direitos naturais. Todavia, esse sujeito apresentado como o resultado de uma operao ideol-gica ou discursiva. porque essa abstrao universalizada privilegiada em relao ao indivduo concreto que no existe garantia no liberalismo nem mesmo para o espao privado da autonomia individual que se pretende sagra-do.25 Esse espao privado somente o suplemento ideol-

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    gico do liberalismo mascarando um estado de dominao e restrio da individualidade sem precedentes. Ainda, como mostra Stirner, essa dominao articulada em um novo paradigma de poder e justificada em termos de sade do sujeito26. Por exemplo, Stirner acredita que o tratamento humanista-liberal moderno do crime como uma doena a ser curada s o outro lado do velho preconceito moral--religioso: Tratamento ou cura so apenas o lado oposto do castigo, a teoria da cura corre paralela teoria do castigo; se esta v uma ao como um pecado contra o direito, a pri-meira a considera um pecado do homem contra si mesmo, como uma fraqueza de sua sade27.

    Em outras palavras, a higiene moral do sujeito se torna a nova norma de acordo com a qual transgresses so pu-nidas. Isso tem conexes bvias com a frmula de Foucault sobre a punio e o encarceramento, cujos novos grilhes da razo e do castigo humano substituem os velhos pre-conceitos morais. Foucault tambm exps as tecnologias disciplinares e normas subjetivadoras por trs do verniz do liberalismo. O sistema prisional, por exemplo, e as es-tratgias de poder, saber e disciplina que l operam podem ser vistos como o outro lado do liberalismo: por trs das instituies liberais de direitos formais, judicirios inde-pendentes e procedimentos legais reside toda uma rede de tcnicas de normalizao que constituem uma forma completamente diferente de poder. De fato, a funo do liberalismo precisamente mascarar a natureza desse po-der disciplinar com a antiquada linguagem da soberania o paradigma jurdico-discursivo.

    O que realmente uma questo para Foucault, assim como para Stirner, so as condies disciplinares e discursi-vas sob as quais o sujeito do liberalismo o sujeito de direi-

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    to e liberdades formais foi construdo, e como isso torna o prprio liberalismo problemtico. Como diz Foucault, o sujeito racional autnomo que o liberalismo Iluminista nos convida a libertar j nele mesmo o efeito de uma sujeio muito mais profunda do que ele prprio28. Ademais, para Foucault, como para Stirner, o liberalismo no tanto uma filosofia que busca proteger a liberdade natural do indiv-duo contra o Estado, mas ainda um modo de governar ou uma racionalidade governamental que elegeu uma forma particular de vida como livre. Ou, para ser mais preciso, essas duas compreenses do liberalismo por fim coinci-dem. Isso quer dizer que, para ambos, Stirner e Foucault, a autonomia e a liberdade desfrutadas pelos sujeitos em so-ciedades liberais dependem da maneira como eles foram normalizados como sujeitos liberais. O liberalismo, dizendo de outro jeito, o princpio em que a liberdade individual encontra o poder regulador do Estado.

    Outros pensadores contemporneos, como Wendy Brown, criticam o discurso liberal dos direitos. Brown ar-gumenta que quando grupos e identidades minoritrias colocam suas demandas por reconhecimento e autonomia dentro da linguagem liberal dos direitos, isso apenas as atrela mais ao Estado, permitindo a este estender seu po-der sobre a vida. Por exemplo, as reivindicaes de direitos de certos grupos feministas somente reafirmam o status de vtimas que requerem a proteo do Estado. Brown pergunta: Pode essa proteo codificar, na forma da lei, a impotncia para a qual ela procura reparao?29. De ma-neira similar a Stirner, Brown argumenta que enquanto os direitos concedem, ostensivamente, autonomia individual frente ao Estado, ao mesmo tempo, porque so sanciona-dos e prescritos pelo Estado, eles apenas atrelam os indi-

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    vduos ainda mais a ele. Dito de outra forma, o problema com os direitos liberais que eles apenas so realizveis dentro do Estado que, ao mesmo tempo, os limita.

    O prprioStirner mostrou que por meio da construo de uma

    forma particular de subjetividade que o indivduo atre-lado s instituies e discursos liberais. O indivduo bus-ca se adequar a uma srie de normas morais e racionais, e com isso, permanece confinado s formas de subjeti-vidades liberais que so, ao mesmo tempo, dominantes. Para Stirner, portanto, o indivduo apenas pode libertar a si mesmo destas limitaes inventando novas formas de subjetividade e autonomia. Aqui, ele advoga uma forma radical de autonomia individual que chama de pertencer a si prprio ou o prprio. Isso envolve uma afirmao do eu como contingncia em vez de fixidez, identidade. O eu individual visto como um vazio criativo, uma au-sncia radical que cabe ao indivduo definir.30 Implica uma forma de autonomia que vai alm do ideal liberal transcendental de liberdade. O problema com a liberdade prescrita pelas instituies e direitos que ela traz para o jogo uma srie de normas universais e expectativas que so, em si mesmas, opressoras. Espera-se que o indivduo, nas sociedades liberais contemporneas, conformem-se a uma certa forma racional de liberdade empreender no mercado como um agente livre e autoconfiante, por exemplo. Claro, essa liberdade sempre temperada com uma noo de responsabilidade assim, um certo grau de liberdade permitido a uns e no a outros, e restrita apenas a esferas especficas da vida. A liberdade liberal

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    baseada em uma falsa neutralidade e universalidade que mascaram sua cumplicidade com o poder. Em contraste, o prprio uma forma de liberdade criada pelo indivduo e baseada somente em seu poder: Minha liberdade s se torna completa quando minha potncia; mas com isso eu deixaria de ser apenas um homem livre para me tornar um homem prprio31. O prprio aumenta o poder individual de autodeterminao ao romper com as identidades essen-cialistas e ideais universais. Pode ser vista, portanto, como uma forma individualista de liberdade mais radical e mais elevada, que vai alm dos limites formais estabelecidos pelo liberalismo.

    Paradoxalmente, pode-se sugerir que a filosofia poltica de Stirner implica em uma forma extrema de liberalismo, uma espcie de hiperliberalismo32. Stirner exps o lado obscuro e opressor do liberalismo que palpita por trs de seu edifcio formal de direitos e liberdades: os mecanis-mos de normalizao e disciplina que adentram a cons-tituio do sujeito liberal autnomo; a vontade de poder e a negao da diferena na base de suas proclamaes de liberdade e tolerncia. Para Stirner, o problema com o libe-ralismo no que ele permita muita liberdade individual e autonomia como clamam os comunitaristas mas o contrrio, que ele no permite o suficiente. por isso que o indivduo deve ir alm das liberdades formais do libera-lismo e inventar suas prprias formas de autonomia. Neste sentido, Stirner v a individualidade como um excesso radical que no pode jamais ser contido nas estreitas identidades individualizadas permitidas sob a subjetividade liberal algo que transborda sobre as suas pontes e coloca em risco seus limites. Para se colocar um passo adiante do poder subjetivador do liberalismo, o indivduo deve continua-

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    mente consumir-se e inventar a si mesmo de um jeito diferente.33 Assim, Stirner usa a linguagem do liberalismo para questionar seus limites. Por exemplo, ele toma o con-ceito de propriedade e o coloca contra o prprio liberalis-mo: por que a propriedade deveria se restringir ao que permitido pela lei? Ao contrrio, seu nico limite deve ser o poder a habilidade individual de agarr-la o mximo possvel. Portanto, a instituio liberal da propriedade pri-vada desestabilizada precisamente ao expandi-la alm de todos os limites legais e racionais.

    Ademais, quando Stirner fala sobre propriedade, ele no se refere, necessariamente, a bens materiais, mas a uma noo de autodomnio ou autodeterminao que vai alm disso. Propriedade se refere a tudo que pertence ao indivduo e est em seu poder decidir. Esse conceito de propriedade pode incluir bens materiais em certos casos: por exemplo, como vimos, no liberalismo poltico, as pro-priedades privadas forneceram ao indivduo um refgio seguro das incurses do Estado. No entanto, em outros momentos, Stirner v as posses materiais em si mesmas como escravizadoras do indivduo. Quando o indivduo cobia bens materiais, mais uma vez ele se coloca sob o poder de um objeto abstrato externo e abdica de sua li-berdade34. Em outras palavras, Stirner est interessado na propriedade material apenas enquanto ela permite o desenvolvimento de uma noo muito mais profunda e ampla de autodomnio pessoal. No momento em que os bens materiais entram em conflito com o autodomnio e a autonomia, eles devem ser rejeitados. Talvez, neste sen-tido, possamos ver o conceito de propriedade de Stirner como pertencente a um projeto inacabado de autonomia individual, um pouco como a ideia de Foucault de cuida-

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    do de si que envolve estratgias ticas de autodomnio e autoconstituio35. Ambos apontam para um tipo de tica da autonomia individual e do autodomnio e para uma afirmao da diferena e da pluralidade. Talvez seja possvel argumentar, ento, que a atitude mais radical de Stirner , na verdade, levar a mensagem do liberalismo a valorizao da autonomia individual e a liberdade a srio, empurrando-a aos seus limites mais extremos e, assim, revelar o hiato entre sua mensagem e a realidade da poltica liberal.

    Em direo a uma poltica do ps-liberalismoA crtica de Stirner, apesar de sua excentricidade, cla-

    ramente coloca problemas para a teoria poltica liberal. Ao desmascarar o submundo disciplinar do liberalismo as prticas normalizadoras opressivas que constituem o sujeito liberal neutro Stirner exps a natureza parado-xal das noes liberais de liberdade, direitos individuais e autonomia. No que o liberalismo desfile cinicamente como uma filosofia que garante liberdade individual en-quanto a prtica real a desmente. Ao contrrio, que as noes liberais de direitos e liberdades so baseadas em uma certa conceituao do sujeito derivada do huma-nismo e do racionalismo Iluministas, os quais Stirner mostrou serem uma construo ideolgica alienante e opressora. Liberdade e autonomia so condicionadas conformidade do indivduo a essa generalizao abstrata que, para tanto, nega sua diferena e autonomia. Quem no vive ou no pode viver de acordo esse ideal excludo, marginalizado e sujeitado a uma srie de procedimentos regulatrios judiciais, mdicos e disciplinares que tm por

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    objetivo a normalizao do indivduo. Stirner pode, assim, ser considerado um elo crucial na crtica ps-Iluminista e ps-estruturalista do liberalismo particularmente em seu questionamento sobre as condies sob as quais o su-jeito liberal constitudo.

    Porm, eu poderia argumentar que esse questionamen-to sobre os limites do liberalismo no necessariamente o invalida. Para Stirner, no h nada necessariamente errado com as ideias liberais de liberdade individual e igualdade de direitos em si mesmas. A questo , no entanto, que sempre h um outro lado nesse discurso de direitos. H uma dimenso opressora atravs da qual esses direitos so justificados, mas que permanece escondida e negada. O objetivo da crtica de Stirner foi descobrir as relaes de poder, disciplina e excluso por meio das quais as identi-dades liberais so constitudas. Atravs da realizao das relaes de poder nas quais se baseiam, os direitos e li-berdades liberais deveriam ser consideradas contingentes. De outra maneira, se o caso de os direitos e liberdades liberais estarem fundados no em alguma subjetividade universal, essencial, mas em uma srie de excluses arbi-trrias, construes discursivas e estratgias de poder, seu status se torna indeterminvel ao invs de absoluto.

    Essa indeterminao no significa, no entanto, que a no-o de direitos, em si mesma, esteja prejudicada. De fato, poder-se-ia argumentar que a ltima coisa que precisamos hoje com a expanso sem precedentes do poder do Esta-do em nome da segurana nacional e da guerra ao terror de qualquer tipo de enfraquecimento de direitos. Ao contrrio, significa que o discurso de direitos em si mesmo seria expandido alm de sua atual conceituao capitalista liberal. Ele envolveria toda uma srie de articulaes pol-

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    ticas potencialmente diferentes e contingentes. Por exem-plo, por que no se poderia estender a noo de direitos e autonomia individual para incluir identidades que esto, atualmente, excludas pelos regimes liberais e, por meio dis-so, tornar problemtico o prprio status desses regimes? Foi isso, precisamente, que Foucault tentou fazer: em sua defe-sa dos direitos dos presos, por exemplo, ele experimentou desafiar o status absoluto da diviso entre inocncia e culpa e, assim, as condies sob as quais as pessoas so encar-ceradas36. Um conceito stirneriano de direitos deve acom-panhar linhas semelhantes. Deve envolver uma expanso dos direitos e liberdades liberais queles que so margina-lizados nas sociedades liberais o lmpen-proletariado, ou identidades subalternas mais contemporneas como os sem-teto, os desempregados e os imigrantes ilegais. Os imigrantes ilegais e refugiados enfrentam hoje alguns dos piores abusos nas mos dos governos. Um discurso de di-reitos radicalizado pode ser usado para desafiar algumas prticas de excluso e deteno institucionalizadas, prticas consideradas aceitveis nas nossas assim chamadas socieda-des liberal-democrticas, nas quais as protees legais e de direitos so consagradas dentro da cidadania e negadas aos que esto fora dessa categoria37. Isto mais uma vez aponta para a natureza paradoxal e dbia do discurso de direitos que Stirner destacou.

    Assim, para Stirner, o problema no so os direitos e liberdades em si mesmos, mas o regime discursivo do hu-manismo essencialista e do racionalismo Iluminista, nos quais os primeiros esto articulados. A crtica de Stirner nos permite identificar esse paradigma essencialista e, ento, desemaranhar dele tais direitos e liberdades. Isto libertaria os direitos liberais de seus atuais limites episte-

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    molgicos e os abriria para diferentes articulaes, permi-tindo, desse modo, que eles sejam usados para questionar as estruturas de poder e as prticas de dominao ineren-tes s sociedades capitalistas liberais. Neste sentido, por meio da crtica de Stirner ao liberalismo, ns talvez pos-samos teorizar um ps-liberalismo um liberalismo que no est confinado s identidades essencialistas e limites racionais, mas que, ao contrrio, se refere a um ethos pol-tico de contestao s prticas de dominao.

    Alm disso, seria um liberalismo agonstico, no sentido que reconhece e, de fato, afirma identidades, perspecti-vas e formas de vida concorrentes e diferentes. Aqui, um conceito stirneriano de ps-liberalismo38 pode ser relacio-nado tentativa de John Gray de articular uma forma de liberalismo que no fosse baseada na busca por um consen-so racional sobre a melhor vida, mas que reconhecesse a incomensurabilidade de perspectivas diferentes na socieda-de moderna. Gray defende um liberalismo agonstico ba-seado na noo de contestao tica39. Como Stirner, ele acredita que o problema central do liberalismo reside na tentativa de estabelecer um ponto de vista epistemolgico universal para encontrar a melhor forma de vida, a partir da qual outras podem ser julgadas. Essa tendncia deriva da dvida do liberalismo para com os falecidos essencialismo e racionalismo Iluministas que no so mais sustentveis nas sociedades plurais modernas. Para desvencilhar o libe-ralismo de sua ancoragem nas epistemologias Iluministas e concepes universais sobre a boa vida, Gray teoriza uma forma de ps-liberalismo que reconheceria a irre-dutibilidade da diferena e se interessaria apenas em es-tabelecer um modus vivendi entre formas concorrentes de vida.

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    O ps-liberalismo, assim, seria uma reconfigurao do liberalismo com base no reconhecimento da pluralidade de existncias e das singularidades das liberdades pessoais, no lugar de uma essncia humana universal. Como afirma Gray: Ns no fingimos que as nossas identidades expres-sam a essncia da espcie; ns as reconhecemos como produ-tos tanto da sorte quanto da escolha40. Em outras palavras, o ps-liberalismo seria baseado no reconhecimento da con-tingncia da identidade, e na impossibilidade de inscrev-la em uma subjetividade universal. Este seria, precisamente, o tipo de ps-liberalismo que as implicaes da crtica de Stirner nos permitiriam prever uma poltica da au-tonomia pessoal, central para o que uma contnua inter-rogao sobre o status de indivduo e, tambm, por meio disso, uma interrogao sobre os limites discursivos do prprio liberalismo. Claro que existem muitos aspectos da filosofia poltica de Stirner que so problemticos. Por exemplo, seu individualismo e egosmo extremos, segundo os quais qualquer tipo de identidade coletiva vista como um fardo opressor, claramente dificulta teorizar sobre uma poltica coletiva de resistncia.41 Poderia parecer que a po-ltica de Stirner est limitada a uma rebelio individual. Entretanto, o que importante na crtica de Stirner sobre o liberalismo a maneira de problematizar o status onto-lgico do sujeito. Neste sentido, sua crtica ao essencia-lismo pode ser usada contra uma poltica da diferena simplista, na qual os direitos de vrios grupos minorit-rios, com frequncia, assentam-se sobre uma identidade especfica. Esse o tipo de pluralismo que Stirner con-sideraria como endmico poltica liberal, e como uma forma de essencialismo que entrou pela porta dos fun-dos. Em vez disso, talvez, o pensamento de Stirner pos-

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    sa ser visto em termos de uma poltica da singularidade. Singularidade pode ser conceituada como uma forma no-essencial de diferena e individualidade que , em si, contingente e indeterminvel. A ideia no valorizar o indivduo como identidade fixa e imutvel da diferena, o que seria outra forma de essencialismo que, ao final, ele prprio hostil diferena. Em vez disso, a filosofia de Stirner nos mostra as mltiplas possibilidades de indivi-dualidade sua natureza bastante singular, contingente e imprevisvel. Com base nesse princpio da singularidade, uma poltica ps-liberal procuraria inventar, multiplicar e expandir espaos para a autonomia e singularidade indivi-duais que com frequncia so negadas nas sociedades libe-rais modernas. A poltica do ps-liberalismo procuraria respeitar e encorajar, ao contrrio de negar, nas palavras de Nietzsche a rica ambiguidade da existncia42.

    Traduo do ingls por Aline Passos

    Notas1 John Rawls. Political Liberalism. Nova Iorque, Columbia University Press, 1996, pp. 35-40. 2 Charles Taylor. Philosophy and the Human Sciences. Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p. 309.3 H. Arvon. Concerning Marxs epistemological break in The Philosophical Forum 3, 1978, pp. 173185. 4 A. Koch. Max Stirner: The last Hegelian or the first poststructuralist? in Anarchist Studies 5 (2), 1997, pp. 95108.5 Ludwig Feuerbach. The Essence of Christianity. Nova Iorque, Harper, 1957, pp. 27-28. [Em portugus: A essncia do cristianismo. Traduo de Jos da Silva Brando. Rio de Janeiro, Vozes, 2009.]

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    6 Max Stirner. The Ego and Its Own. Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 165. [Em portugus: O nico e sua propriedade. Traduo de Joo Barrento. So Paulo, Martins Editora, 2009.]7 Idem, p. 38.8 John Gray tambm desmascara o outro lado ou face do liberalismo. Em As duas faces do liberalismo, ele mostra que existe um antagonismo central e no solucionado entre duas dimenses do liberalismo a primeira a que v a tolerncia liberal como uma busca pelo consenso racional universal e uma forma ideal de vida; a segunda a que reconhece a impossibilidade de atingir esse consenso, e busca, ao invs disso, reconciliar os conflitos entre formas de vida plurais e concorrentes, sem privilegiar umas sobre as outras.9 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 93.10 Idem, p. 96.11 Ibidem, p. 102.12 Ibidem, p. 105.13 Ibidem, p. 114.14 Ibidem, p. 116.15 Ibidem, p. 113.16 O autor preferiu no passar para o ingls, o termo originalmente alemo, cuja traduo mais prxima, em portugus, monstro. (N.T.)17 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 125.18 Gilles Deleuze. Nietzsche and Philosophy. Traduo de H. Tomlinson. Lon-dres, The Athlone Press, 1983, p. 161. [Em portugus: Nietzsche e a filosofia. Traduo de Antnio M. Magalhes. Porto, Rs-Editora, 2001.]19 Por exemplo, Gilles Deleuze argumenta que o desejo deseja sua prpria represso. Gilles Deleuze & Claire Parnet. Dialogues. Columbia, Columbia University Press, 1987, p. 133. [Em portugus: Dilogos. Traduo de Eloisa Arajo Ribeiro. So Paulo, Escuta, 1998.]20 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 96.21 Friedrich Nietzsche. The Gay Science. Traduo de W. Kaufmann. Nova Iorque, Vintage, 1974, p. 182. [Em portugus: A gaia cincia. Traduo de Paulo Cesar de Souza. So Paulo, Companhia das letras, 2001.]

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    22 Friedrich Nietzsche. Twilight of the Idols. Traduo de R. J. Hollingdale. Londres, Penguin, 1990, p. 80. [Em portugus: Crepsculo dos dolos. Traduo de Paulo Cesar de Souza. So Paulo, Companhia das letras, 2006.]23 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 41.24 William E. Connolly. Identity/Difference: democratic negotiations of the political paradox. Ithaca, Cornell University Press, 1991, p. 79.25 W. Warren. Nietzsche and Political Thought. Cambridge, MIT Press, 1988, p. 215.26 Hoje, mais do que nunca, a sade do sujeito se tornou uma norma disci-plinar, regulatria ns, cada vez mais, somos chamados a nos conformar a vrios padres de sade fsica e mental: nos dizem que devemos fazer mais exerccios, no ficarmos deprimidos; existe quase uma prescrio do Superego para aproveitar, ser feliz, consumir, empenhar-se na boa vida, encontrar a satisfao total, experimentar o pleno gozo sexual, etc.. Essa nfase na sade e na felicidade, que est em todo lugar acompanhada de ansiedades em volta de problemas como obesidade, tabagismo e por a em diante, deve ser vista como um aspecto da biocultura em que vivemos hoje, na qual as transgresses da norma so consideradas decorrentes de causas biolgicas e so tratadas clini-camente drogas para depresso, ansiedade, hiperatividade, baixo desempe-nho. Essa normalizao, detectada por Stirner, to dominante, prescritiva e viciada quanto os cdigos morais e religiosos dos sculos anteriores.27 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 213.28 W. Connolly, 1991, op. cit., p. 30.29 W. Brown. States of Injury: power and freedom in late modernity. Princeton, Princeton University Press, 1995, p. 21.30 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 135.31 Idem, p. 151.32 Tomo esse termo emprestado de O hiperliberalismo de Foucault de Beiner. Ronald Beiner. Foucaults hyper-liberalism in Critical Review 9, 1995, pp. 349-370.33 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 150.34 Ainda assim, para ele, quem busca o lucro, escravo do lucro no cresceu acima do lucro, ele quem pertence ao lucro, bolsa de dinheiro, e no a ele

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    mesmo (Max Stirner, 1995, op. cit., p. 266). Vale pena notar que o termo propriedade em Stirner deve ser tomado em seu sentido hegeliano como aquilo que incorporado a si e no mais um objeto externo alienante ao invs de derivado da linguagem do liberalismo laissez-faire.35 Michel Foucault. The ethics of the concern for self as a practice of freedom in M. Foucault, Ethics, Subjectivity and Truth: the essential works of Michel Foucault, 19541984, Vol. 1. Organizao de Paul Rabinow. Traduo de R. Hurley. Londres, Penguin, 1994. [Em portugus: A tica do cuidado de si como prtica de liberdade in Ditos e escritos V - tica, sexualidade, poltica. Organizao de Manoel Barros da Motta. Traduo de Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2010, pp. 264-287.]36 Michel Foucault. Language, Counter-Memory, Practice: selected essays and interviews. Organizao de D. Bouchard. Oxford, Basil Blackwell, 1977, p. 227.37 Giorgio Agamben mostra que na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, h uma estranha ambiguidade entre Homem que pode-ria sugerir uma universalidade de direitos, independente de onde se nasceu e Cidado que implica em uma definio mais limitada de direitos, como se fossem limitados aos cidados de um Estado-nao. Em outras palavras, uma pessoa tem direitos simplesmente pela sua qualidade de ser humano, ser ho-mem, ou os direitos esto baseados na noo de cidadania, de pertencimento a um Estado-nao? A ambiguidade exposta pela figura do refugiado, cuja demanda por direitos humanos alm das fronteiras nacionais do Estado proble-matiza essa prpria fico da cidadania. Giorgio Agamben. Homo sacer: sovereign and bare life. Traduo de Daniel Heller-Roazen. Stanford, Stanford University Press, 1998, p. 131. [Em portugus: Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Traduo de Enrique Burigo. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002.]38 Tomo emprestado o termo ps-liberalismo de Gray. John Gray. Post--liberalism: studies in political thought. Londres, Routledge, 1993.39 John Gray. Enlightenments Wake: politics and culture at the close of the modern age. Londres, Routledge, 1995, p. 86.40 John Gray. The Two Faces of Liberalism. Cambridge, Polity Press, 2000, p. 270. 41 Stirner fala, entretanto, sobre as possibilidades de acordos coletivos volun-trios entre os egostas. Ver a discusso sobre a unio (Max Stirner, 1995, op. cit., p. 161).

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    ResumoNeste ensaio, Saul Newman analisa os principais aspectos da crtica de Max Stirner ao liberalismo e explora as ressonncias deste pensamento em autores ps-estruturalistas como Michel Foucault e Gilles Deleuze. Newman destaca em Stirner a pro-blematizao do liberalismo enquanto poltica de excluso das di-ferenas, em que pese o discurso de direitos e igualdades formais. As implicaes do pensamento de Stirner para a teoria poltica contempornea, segundo o pesquisador australiano, sugerem uma reconfigurao do liberalismo, com base no reconhecimento de existncias plurais e singularidades pessoais, que Newman cha-mou de ps-liberalismo.Palavras-chave: ps-liberalismo, Max Stirner, igualdade.

    AbstractIn this essay Saul Newman analyzes the central aspects of Max Stirners critics to the liberalism and explores the effects of this thought in post-structuralists authors such as Michel Foucault and Gilles Deleuze. Newman highlights in Stirner the problematic of liberalism as politics of exclusions of difference, despite the discourse of rights and formal equality. The implications of Stirners thought to the contemporary political theory, according to the Australian researcher, infers a reconfiguration of liberalism, based on the recognition of plural existences and personal singularities, which Newman called post-liberalism.Keywords: post-liberalism, Max Stirner, rights.

    Politics of the ego: Stirners critique of liberalism, Saul Newman.Recebido em 20 de dezembro de 2012. Confirmado para pu-blicao em 12 de maro de 2013.

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    alfredo errandonea na lembrana

    christian ferrer

    INa minha lembrana, Alfredo Errandonea tinha o

    porte e a figura de um rinoceronte. Era alto, volumoso e forte. Dele emanava a verve do homem que se lana com gosto, mesmo sozinho, s batalhas perdidas de antemo. A voz era um vozeiro que lhe cabia bem. Muitas vezes suas opinies tendiam nfase; em todo caso, era pessoa que se apaixonava se o tema da conversao dizia respeito poltica ou s ideias.

    Agradava-lhe argumentar. Lembro-me dele como um amigo impulsivo, um pouco desorganizado, cuja generosi-dade e modos libertrios no se contradiziam plenamente com uma vontade poderosa, por vezes autocrtica, que cos-tumava relaxar-se com uma gargalhada potente e rasgada, to espontnea quanto contagiosa. Desse modo acabavam suas raivas e indignaes: como uma gargalhada nascida no fundo da barriga. Ainda que no me recorde de v-lo pre-

    Christian Ferrer socilogo e professor na Universidade de Buenos Aires. Contato: [email protected].

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    parando mate, Alfredo era inconfundivelmente uruguaio. Alm disso, era socilogo e anarquista.

    Foi uruguaio sempre, do princpio ao fim, o que j pressupe um estado de esprito peculiar, como que para-do no tempo, e ainda assim, uma disposio cvica ativa e prudente. A sociologia e o anarquismo foram paixes que trouxe da juventude, vivida no comeo da dcada de 1950. Naquela poca, o Uruguai tradicional, tambm chamado de batllista1, havia comeado a ruir. Daqueles tempos para adiante no haveria mais estabilidade poltica garan-tida na Sua do Cone Sul. Nesse novo contexto, in-certo e conflituoso, Alfredo Errandonea portou-se como um homem de sua poca, a qual queria compreender e transformar. Na linguagem daquele tempo, ele era um revolucionrio. No mbito da sociologia, Errandonea foi protagonista da instaurao de uma verso moder-na e cientfica desse saber social, um processo comum a tantos pases da Amrica do Sul. E entre os anarquistas, seus companheiros, cujas glrias pareciam esquecidas, se destacou como dirigente estudantil e atualizador de sua doutrina. Enquanto isso, o Uruguai seguia vivendo do seu passado, um clima buclico, mesmo que as discrdias que pouco depois se abateriam sobre o paisinho j estivessem semeadas e quase no ponto da colheita.

    IIErrandonea foi contemporneo do ciclo inteiro de

    construo da sociologia uruguaia moderna, que come-ou com a formao de quadros profissionais na dcada de 1950, quando ele era muito jovem e a disciplina ex-perimentava sua fase pioneira. Errandonea acompanhou

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    seu desenvolvimento institucional e seu desdobramento cientfico, incomodando-se logo depois por conta das agitadas polmicas tericas dos anos 1970. Passou pelo fechamento do curso de Sociologia durante a ditadura (1973-1985), por seu renascimento em meados da dcada de 1980 e pela posterior criao da Faculdade de Cincias Sociais.

    De modo que a vida de Alfredo correu paralela da sociologia uruguaia para no dizer da latino-americana em todas as suas etapas: fundao, institucionalizao, ba-talha de ideias, exlio e ressurreio. A sociologia foi, ento, sua profisso, mas tambm sua posio de combate; posio que naquele tempo os anarquistas se interessaram por su-postas vantagens analticas e preditivas encontradas nessa cincia social moderna, que deixaram marcas em homens como os argentinos Gerardo Andjar, Jorge Solomonoff e Julio Mafud, todos eles socilogos, e tambm em Eduardo Colombo, ou no uruguaio Rafael Spsito.

    No comeo de tudo, foi professor auxiliar, no curso de formao de notrios, de um importante socilogo uru-guaio, Aldo Solari, diretor do Instituto de Cincias Sociais, criado em 1958 na Faculdade de Direito, onde j existia uma ctedra de sociologia desde comeos do sculo XX. Dessa poca datam os primeiros trabalhos empricos de importncia no Uruguai, contrapostos, segundo a tendncia da poca, sociologia professoral, amadora ou ensastica.

    Alfredo Errandonea, como tantos outros, foi impactado pela teoria da modernizao e o desenvolvimentismo em voga naqueles anos, mas tambm tinha conscincia de que o compsito de pitadas liberais, interveno estatal e pol-ticas socialdemocratas hegemnico no Uruguai estava

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    condenado a deteriorar-se e sucumbir, ainda que demoras-se uma dcada para desmoronar totalmente. No obstante, Alfredo no acreditava na neutralidade valorativa do pon-to de vista sociolgico e, com o tempo, passou a suspeitar que o progresso cientfico-tecnolgico e a transformao social emancipadora pudessem ser termos antagnicos.

    Em meados da dcada de 1960, Errandonea viveu no Chile para fazer seus estudos ps-graduados na Faculdade Latino-americana de Cincias Sociais dirigida pelo anar-quista suo Peter Heintz. Era um lugar de reunio de jovens cientistas sociais de toda Amrica Latina, onde se inoculavam os pressupostos do neopositivismo lgico que, no caso de Alfredo, foram temperados por leituras da obra de Max Weber e pelas ideias libertrias. Ainda que aps o perodo heroico de formao da disciplina houvesse aparecido uma gerao egressa de instituies sociolgicas, o perodo entre 1968 e 1973 foi uma etapa de intensa acelerao histrica. Eram tempos da crtica ao desenvolvimentismo, teoria estrutural-funcionalista de corte estadunidense, modernizao pela via capitalista e, tambm, democracia formal. Some-se a isso o impac-to da chamada Teoria da Dependncia e da Revoluo Cubana e ser possvel compreender porque a insurreio popular parecia a nica alternativa poltica a interessar os jovens socilogos.

    O primeiro livro de Errandonea, intitulado Explotacin y dominacin, publicado em 1972, um breve escrito teri-co que se destacava pela primazia dada categoria dom-nio sobre os pressupostos economicistas da esquerda para entender as injustias e sujeies. Era preciso ter um forte mpeto dissidente para publicar esse opsculo em anos de dogmas marxistas estereotipados ainda triunfantes.

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    No obstante, discutir com o marxismo sobre a fonte de onde emana o poder hierrquico uma obsesso an-tiga dos anarquistas. Mas o livro mal pde ser distribu-do. Poucos meses depois de ser editado, o presidente Juan Mara Bordaberry deu um autogolpe de Estado. O que se seguiu foi a perseguio, priso, desaparies e exlio para milhares de uruguaios. Alfredo Errandonea foi um dos muitos que preferiram ir Argentina, onde outra ditadura estava instalada no poder. Tambm seu irmo, o ceramista Jorge Errandonea, teve que partir.

    Em Buenos Aires, Alfredo deu consultoria atividade prpria da sua profisso e deu aulas na Universidad del Salvador que, dirigida por jesutas, era a nica instituio universitria que dava refgio a professores com ideias de esquerda. Essa foi a poca em que prosperaram os Centros Privados de Pesquisa, que j ento impulsionavam uma forte tendncia especializao e ao academicismo. Em 1986, participando de uma comisso de reorganizao, Alfredo voltaria a ter um papel destacado na reconstruo da graduao de Sociologia da Universidad de la Repblica, em Montevidu, que tinha sido fechada doze anos antes pelo governo de facto de Bordaberry. Nesse mesmo ano, foi nomeado diretor do Instituto de Cincias Sociais, um cargo que vinte anos antes havia ocupado seu pai, Alfredo M. Errandonea, um advogado que se dedicou cincia poltica. Em 1992, Alfredo chegou ao cargo de diretor do novo Departamento de Sociologia. Na Universidad de la Repblica, como tambm na Universidad de Buenos Aires, Alfredo deu muitos cursos para futuros diplomados in-cluindo a mim , ainda que eu me lembre com maior ca-rinho das aulas sobre anarquismo que oferecia a garotos muito jovens, durante a ditadura militar, num casaro da

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    Rua Brasil, onde uma placa de bronze na porta afirmava funcionar ali a Sociedade Amigos da Cincia, subterfgio que disfarava o local da Federao Libertria Argentina.

    IIIDesde sempre os alunos de sociologia da Universidad de

    Buenos Aires nutriram uma profunda averso pelas mat-rias metodolgicas, de modo que muito poucos descobri-ram que o professor Errandonea era, alm de metodlogo, anarquista. Tampouco se sabia de seu notrio passado de dirigente estudantil uruguaio. Mesmo tendo vivido muitos anos em Buenos Aires, e ainda que cruzasse a poa2 todas as semanas em ambos os sentidos para dar suas aulas, seu mundo intelectual e afetivo estava em Montevidu. Nessa cidade, de tamanho amvel e de encontros a p, todos o re-conheciam e ningum ignorava sua condio de anarquista.

    Em meados da dcada de 1950, muitas agrupaes, at ento dispersas, decidiram coligar-se na Federao Anar-quista Uruguaia, e Alfredo Errandonea foi um dos seus membros fundadores. Naquele momento, as ideias libert-rias j circulavam h um sculo no pas, j que em 1844 foi editada em Montevidu uma revista orientada pelo pensa-mento do utopista Charles Fourier. Mais adiante, no in-cio do sculo XX, os anarquistas organizaram a Federao Operria Regional Uruguaia, enquanto publicavam muitos peridicos como El amigo del Pueblo, El Hacha [A Tocha], El Internacional, El Derecho a la Vida, La Guerra Social e La Idea Libre. O surgimento do anarquismo no Uruguai seguiu o mesmo padro da Argentina e do Brasil: primeiras notcias trazidas pela imigrao europeia, difuso da Ideia por publicaes, fundao de sindicatos. A proximidade

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    geogrfica entre Buenos Aires e Montevidu garantia in-fluncias e acordos com a Federao Operria Regional Argentina. Era-lhes natural a coordenao de ideias e es-tratgias, especialmente em tempo de perseguio, porque eram co-partcipes de um mesmo processo. Quando a re-presso estreitava o campo de ao, uma ou outra cidade se transformava em refgio e centro de congregao e irradia-o de panfletos e publicaes.

    Quando Errandonea se juntou s Juventudes Libert-rias, existentes desde 1938, parecia que o flego do anar-quismo havia se esvado. Eram-se os tempos em que a maioria dos operrios filiava-se FORU, fundada em 1905, mas inativa a partir de 1950. J no estreavam peas teatrais nas sedes sindicais, no se abriam centros de estudos so-ciais, tampouco se publicavam tantos peridicos. Tambm havia ficado para trs ou ficado na priso os pistoleiros anarquistas dos anos 1930, a poca dos assaltos a bancos, as fugas massivas da priso, os enfrentamentos e tiroteios com as foras da ordem e a morte a tiros do comissrio de polcia Pardeiro, um torturador. Alm disso, no foram poucos os cratas que, em seu momento, se entusiasmaram com as polticas reformistas do presidente Jos Batlle y Ordoez, dando origem tendncia anarco-batllista. Por outro lado, os comunistas uruguaios competiram com os anarquistas a fim de lhes roubar o protagonismo.

    Apesar de tudo, o anarquismo no havia desaparecido. Pelo contrrio, nos anos 1950 os grupos anarquistas co-mearam a florescer novamente, impulsionados pela ao dos refugiados da Guerra Civil espanhola (1936-39). Foi por essa poca que Alfredo Errandonea comeou a par-ticipar ativamente das lutas da Federao dos Estudantes Universitrios do Uruguai.

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    Federao Anarquista Uruguaia, fundada em 1956, confluram as Juventudes Libertrias, a Agrupao Liber-tria Cerro-La Teja e o peridico Voluntad, existente desde 1938 e onde Alfredo escrevia sobre atividades sindicais. O jornal foi rebatizado Lucha Libertaria, transformando-se no rgo da FAU. Tambm nesse ano foi fundada a Comunidad del Sur, uma experincia de vida em comum localizada no bairro Sur de Montevidu, e que se integrou Federao. A FAU tinha presena em alguns grmios proeminentes e especialmente nos centros estudantis. Foi ali, entre 1957 e 1958, que Alfredo Errandonea se tornou lder estudantil de renome aps liderar a greve universit-ria que se seguiu aprovao da nova norma reguladora, o que implicou confrontar diretamente o governo de Luis Batlle Berres. Alfredo chegou at mesmo a ser presidente da Federao de Estudantes Universitrios do Uruguai, um posto inslito para um estudante de ideias radicais, graas a uma tensa situao entre colorados3 e comunistas, desem-patada em favor dos representantes anarquistas. Em 1959, aps viajar China, foi eleito delegado estudantil no con-selho diretor da Universidad de la Repblica. Ali votou pela criao do Departamento de Extenso Universitria, uma proposta que provavelmente importou da Argentina, onde havia sido fomentada por anarquistas, especialmente por Guillermo Savloff, assassinado pouco depois.

    A FAU era uma organizao jovem, qual se integrou uma gerao de anarquistas tambm jovens e muito ativos em seu meio social e que, sem dvida, teria crescido e in-fluenciado a cena poltica de seu pas, talvez mais do que qualquer outro pas latino-americano, mas isso no foi possvel. Ela se dividiu em 1963. Muitas foram as diferen-as que se acumularam nesses anos, como os debates so-

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    Um homem de ideias na sociologia uruguaia...

    bre a prioridade do movimento operrio sobre outras lutas possveis e posies opostas sobre a violncia revolucion-ria. Mas o maior motivo de ressentimento dizia respeito influncia que a Revoluo Cubana vinha conquistando em todo continente e em todos os grupos que se definiam como de esquerda, incluindo os anarquistas. distncia, a causa da diviso suscita uma amargura retrospectiva, pois o entusiasmo de boa parte dos anarquistas uruguaios com o fenmeno cubano foi, ao fim e ao cabo, algo passageiro, e a histria subsequente do regime castrista demonstraria que eles no tinham razo. Mas j era tarde.

    Curiosamente, o setor majoritrio que manteve a si-gla da organizao foi o pr-cubano; fato que obrigou o minoritrio setor dos anarquistas puros a fundar a Ao Libertria Uruguaia a fim de continuar sua difuso de ideias e atividades. Alfredo Errandonea se foi com o grupo perdedor, onde tambm estavam seu irmo Jorge, ento diretor do curso de Belas Artes, a professora e estu-diosa Luce Fabbri, toda Comunidad del Sur e professores e estudantes de Belas Artes e Medicina. Na FAU ficaram as correntes do movimento operrio e alguns ncleos es-tudantis, alm de muitos homens de valor, como Idilio de Len, Gerardo Gatti e Len Duarte, todos sequestrados e assassinados na Argentina, anos mais tarde. Tudo isso ocorria num contexto de crescente conflito social e de gui-nada direita dos governos de Jorge Pacheco Areco e Juan Mara Bordaberry, que culminaria com golpe de Estado, presos a granel, a rotina das torturas e vrias dezenas de desaparecidos.

    O porvir seria funesto para ambos os grupos. As ativida-des da FAU foram proibidas entre 1967 e 1971, perodo em

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    que continuaram na clandestinidade. Talvez tenha sido essa a condio que motivou a formao de um grupo interno especfico, a ROE (Resistncia Operrio-Estudantil), que se dedicou principalmente s expropriaes bancrias, pagando a ousadia com presos e mortos. A intensidade da perseguio fez com que os anarquistas da FAU fossem a Buenos Aires, no antes de conformar um grupo armado de enfrentamento do governo de facto de Bordaberry, a POR 33 (Organizao Popular Revolucionria 33 Orien-tales). Na Argentina, a maioria foi capturada, sendo de-saparecida em Buenos Aires ou depois de seu traslado a Montevidu.

    Os sobreviventes optaram por uma linha poltica mar-xista, dando origem ao Partido pela Vitria do Povo, mais adiante integrado Esquerda Democrtica Independente, j na democracia, e esta mesma foi encampada pela Frente Ampla. No mais, a Comunidad del Sur foi fechada e seus integrantes tiveram que partir para o exlio; a Escola de Belas Artes sofreu uma interveno e o Curso de So-ciologia teve as portas fechadas fora. Depois de um breve perodo na priso, Alfredo partiu para Buenos Aires onde, tanto durante a ditadura como depois das eleies de 1983, deu confer