Vasco Graça Moura

18
Vasco Graça Moura

Transcript of Vasco Graça Moura

Page 1: Vasco Graça Moura

Vasco Graça Moura

A Puxar Sentimento.indd 4A Puxar Sentimento.indd 4 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 2: Vasco Graça Moura

a puxar ao sentimento

trinta e um fadinhos de autor

QUETZAL | poesia

A Puxar Sentimento.indd 5A Puxar Sentimento.indd 5 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 3: Vasco Graça Moura

a puxar ao sentimento

A Puxar Sentimento.indd 9A Puxar Sentimento.indd 9 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 4: Vasco Graça Moura

11

quis ao fado dar meu nome I

com um travo de amarguraquis cantar o fado a sóse uma tristeza sem cura,mais negra que a noite escura,pôs sombras na minha voz.

fi z assim da minha vida,de quanto amei e sofri,uma inocência perdidapela culpa consentidade apenas te amar a ti

e nessa turva ansiedadeo destino atraiçoou-mea fi ngir que eras verdadee que de livre vontadeao fado eu dava o meu nome

mas estava tudo erradofoi a minha triste sina

A Puxar Sentimento.indd 11A Puxar Sentimento.indd 11 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 5: Vasco Graça Moura

12

quis dar o meu nome ao fadoe quando olhei para o ladosó vi trevas e neblina

mas que nome lhe dariaa pensar em quem mais amose de dia para diaa viver esta agoniajá nem sei como me chamo

A Puxar Sentimento.indd 12A Puxar Sentimento.indd 12 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 6: Vasco Graça Moura

13

quis ao fado dar meu nome II

quis ao fado dar meu nomecom um travo de amargurae ao cantar o fado a sóspor entre as sombras chamou-meuma tristeza sem cura,mais negra que a noite escura,que me pôs sombras na vozquando ao fado dei meu nome.

quis ao tango dar meu nomee nessa turva ansiedadede quanto amei e sofrio destino atraiçoou-mee ao fi ngir que eras verdadea verdade atrapalhou-mequando eu de livre vontadeao tango dava o meu nome

quis ao samba dar meu nomemas estava tudo errado

A Puxar Sentimento.indd 13A Puxar Sentimento.indd 13 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 7: Vasco Graça Moura

14

tudo vinha mascaradoe esse carnaval marcou-mesambei tu sambaste eu vou-meentre as trevas e a neblinamal o sol se descortinae ao samba dou o meu nome

fado tango samba haviade fugir a cada passoenleada no embaraçoda própria melancoliaprefi ro dançar descalçae fazer o meu teatroao compasso de uma valsatrês por quatro três por quatro

A Puxar Sentimento.indd 14A Puxar Sentimento.indd 14 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 8: Vasco Graça Moura

15

amar-te corpo a corpo

se é esta a doce lei que eu imaginodo amor que nos impõe o seu ditado,amar-te corpo a corpo é o meu fadoe amarrar-me a ti o meu destino

sentir a própria alma em carne vivarespirar boca a boca e nesse jogoatravessar-me em fogo no teu fogoe alimentá-lo a beijos e saliva

se mais atino quando desatinopor meus jeitos de amor alvoroçadoé no alto mar revolto e desvairadoque entre peripécias loucas me declino,

sendo cada carícia a mais lascivaa inventar seus rumos afi nalna pura escuridão, na mais carnal,que me cativa a mim e te cativa

A Puxar Sentimento.indd 15A Puxar Sentimento.indd 15 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 9: Vasco Graça Moura

16

entre as línguas, os sorvos, as gargantas,doces gemidos, ternas resistênciase violências brandas, impaciências,e tantas mais carícias, tantas, tantas

A Puxar Sentimento.indd 16A Puxar Sentimento.indd 16 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 10: Vasco Graça Moura

17

fado da cabra-cega

no dia triste em que te foste emboratoda a luz de lisboa escureceue nas águas do tejo anoiteceucom nuvens, vento e chuva, barra fora.

terá sido o destino, o mau olhado,a triste sina, o azar que nos destrói,o demónio interior que é também fadoe que nos dói na alma e a corrói,

fosse o que fosse, fosse como fosse,enredou-se no tempo o coraçãoe cada hora passada só me trouxepraias rasas de névoa e solidão

dei-te o meu corpo e era uma faluacortando ágil o rio à lua cheia,mas tu partiste e eu já não sou tua,fi co presa nas algas sobre a areia.

A Puxar Sentimento.indd 17A Puxar Sentimento.indd 17 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 11: Vasco Graça Moura

18

se a alma que eu te dei era uma velae agora esfarrapada não navega,eu vou de olhos vendados atrás delae o fado joga assim à cabra-cega

A Puxar Sentimento.indd 18A Puxar Sentimento.indd 18 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 12: Vasco Graça Moura

19

jogos de fado e destino I

jogos de fado e destinosão no fado o mais vulgarquando o fado faz o pinopara na letra expressarjogos de fado e destino

jogos de destino e fadonão lhe fi carão atrásanda o destino enfadadopor ser o fado que trazjogos de destino e fado

e amor, saudade e ciúme,e a vida, a boa-vai-ela...vem no fado esse perfume,e a névoa, o vinho, a viela,e amor, saudade e ciúme

A Puxar Sentimento.indd 19A Puxar Sentimento.indd 19 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 13: Vasco Graça Moura

21

jogos de fado e destino II

jogos de fado e destino / já se sabesão no fado o mais vulgar / e bem se sentequando o fado faz o pino / mas não cabenas palavras que encontrar / quando não mente jogos de destino e fado / a nossa vidanão lhe fi carão atrás / mas que ironiaanda o destino enfadado / ah, despedidae anda o fado em horas más / melancolia

e amor, saudade e ciúme, / sentimentoe a vida, a boa-vai-ela... / isso era outroravem no fado esse perfume, / esse lamentoe a névoa, o vinho, a viela, / onde alguém chora

A Puxar Sentimento.indd 21A Puxar Sentimento.indd 21 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 14: Vasco Graça Moura

23

mal te avistei percebi

meu amor, quando em lisboadei contigo a certa altura,se então era noite escura,teu olhar iluminou-a.

mal te avistei, percebiquanto te amava, porémnão é senhor de ninguémquem não é senhor de si.

só ouvi sinais de alarmepor entre as nuvens de fumo,fi quei sem norte e sem rumoe tive de conformar-me

já então o meu desejotinha o travo da saudadee em sombra e claridadeespelhava-se no tejo,

A Puxar Sentimento.indd 23A Puxar Sentimento.indd 23 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 15: Vasco Graça Moura

24

e em cada noite perdidasei que vais amar-me a prazoeu porém não faço casoe hei-de amar-te toda a vida

A Puxar Sentimento.indd 24A Puxar Sentimento.indd 24 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 16: Vasco Graça Moura

25

fado elitista

beijei-te a boca a tremer,depois apagou-se a luz,juntámos os corpos nuse eu senti que ia morrer.

nessa morte sem pudoras mãos eram indecentese dos gestos mais ardentesvinham gemidos de amor

dávamos beijos famintos,fomos dois vulcões de lava,e a vida ressuscitavadentro dos nossos instintos

e entre afagos e lençóisas salivas coruscantesdos prazeres mais lancinantesmodulavam-se em bemóis

A Puxar Sentimento.indd 25A Puxar Sentimento.indd 25 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 17: Vasco Graça Moura

26

assim cortámos a amarra:no fadinho tudo é lícitoe eu quero mais sexo explícitona cama de uma guitarra

A Puxar Sentimento.indd 26A Puxar Sentimento.indd 26 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM

Page 18: Vasco Graça Moura

27

fado triste

noite fechada, rua deserta, horas perdidas,luz apagada, a porta aberta, às escondidas,sombra que passa, lua sem rumo, águas do rio,viela baça, álcool e fumo, fado vadio

num sobressalto, em tempo incerto, o coraçãovoou tão alto e andou tão perto, e foi em vão,e de amarguras, do sofrimento, do negrume,só falsas juras, esquecimento, cinzas sem lume

tudo o que espero e oxalá eu nunca esqueçatudo o que quero embora já não aconteçanão que eu sentisse que para ti era uma afrontatudo o que disse e repeti vezes sem conta

mas o que sei, dentro de mim, desfaz-se em pranto,porque te amei, amei-te assim, e amei-te tantoque a dor ondula, e agora existe em vez de nós,e me estrangula, em fado triste, a própria voz

A Puxar Sentimento.indd 27A Puxar Sentimento.indd 27 7/13/18 9:38 AM7/13/18 9:38 AM