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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA ELISA VASCO

CARACTERSTICAS DAS INTERVENES PSICOTERAPUTICAS REALIZADAS POR PSICLOGOS COM SUJEITOS SURDOS

Palhoa 2009

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ELISA VASCO

CARACTERSTICAS DAS INTERVENES PSICOTERAPUTICAS REALIZADAS POR PSICLOGOS COM SUJEITOS SURDOS

Relatrio de pesquisa apresentado na disciplina de Trabalho de Concluso de Curso II, como requisito parcial para obteno do ttulo de psiclogo

Orientadora: Prof. Dr. Ndia Kienen.

Palhoa 2009

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ELISA VASCO

CARACTERSTICAS DAS INTERVENES PSICOTERAPUTICAS REALIZADAS POR PSICLOGOS COM SUJEITOS SURDOS

Relatrio de pesquisa apresentado na disciplina de Trabalho de Concluso de Curso II, como requisito parcial para obteno do ttulo de psiclogo

Palhoa, 09 de novembro de 2009.

_____________________________________ Prof. Dr. Ndia Kienen - Orientadora Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL

_____________________________________ Prof. Dr. Adriano Henrique Nuernberg Universidade Federal de Santa Catarina UFSC

_____________________________________ Prof. Msc. Simone Vieira de Souza Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e a minha irm que sempre me apoiaram na trajetria acadmica. Por estarem ao meu lado me dando fora, me apoiando sempre e me incentivando a seguir pelos caminhos que escolho para realizar meus sonhos e desejos. Com todo meu carinho, amo vocs. Ao Francisco, meu namorado, que foi um grande incentivador, me apoiando para ir at o fim nesta luta... Pela sua pacincia, carinho e amor! Mauren, minha intrprete nas aulas e grande amiga fora da sala de aula, me acompanhando nas minhas lutas, conquistas e derrotas. Estando sempre presente, me ensinando a ser ousada, a experimentar ambientes desconhecidos para me encontrar como pessoa e futura psicloga. Por me levar de encontro a minha identidade surda, por utilizar a minha lngua de conforto em sala de aula. Emiliana, minha amiga, que esteve sempre presente, me ajudando em todos os momentos, seja de angstias, ou de gargalhadas. Companhia constante de discusses sobre surdos, teorias e psicologia. Ndia, minha orientadora, que apesar de no conhecer muito bem a rea da surdez, aceitou o desafio no poupando esforo durante a orientao apresentando consideraes pertinentes. Ao Adriano, um dos meus professores mais influentes, por me apresentar Psicologia. Sem ele, acredito que no estaria onde estou e me formando como psicloga. Meu agradecimento Tambm agradeo-o por aceitar meu convite para participar na banca. Simone, minha supervisora de estgio, por aceitar em se aventurar junto comigo em um caminho desconhecido na clnica com pacientes surdos. E tambm por aceitar o meu convite para participar na banca. Ione, grande amiga, que me acompanhou durante os dois primeiros anos na faculdade como intrprete. Aos meus demais familiares e aos meus amigos surdos e ouvintes e a todas as pessoas que passaram e deixaram coisas boas, que de uma forma ou outra contriburam alguma coisa para este trabalho tornar-se possvel. O meu muito obrigado a todos vocs!

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Quando eu aceito a lngua de outra pessoa, eu aceito a pessoa... Quando eu rejeito a lngua, eu rejeito a pessoa, porque a lngua parte de ns mesmos... Quando eu aceito a lngua de Sinais, eu aceito o surdo, e importante ter sempre em mente que o surdo tem o direito de ser surdo. Ns no devemos mud-los, devemos ensin-los, mas temos que permitirlhes ser surdo.TERTE BASILIER (Psiquiatra Surdo Noruegus)

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RESUMO

A escassez de literatura sobre as intervenes psicoteraputicas realizadas por psiclogos com sujeitos surdos pode implicar em dificuldades dos profissionais para trabalhar com os surdos. Essas dificuldades, por sua vez, podem contribuir para aumentar o sofrimento do sujeito surdo, ao invs de minimiz-lo. O presente trabalho tem por objetivo analisar as intervenes psicoteraputicas realizadas por psiclogos surdos e ouvintes com sujeitos surdos. Alm disso, pretende tambm destacar como isso acontece em se tratando de uma sociedade em que muitos profissionais no possuem conhecimentos sobre a lngua de sinais, culturas e identidades surdas. Ficou constatado que a sociedade ainda no reconhece o surdo como sujeito, nem a sua lngua, e que utiliza uma viso patolgica e no uma viso antropolgica e cultural sobre a constituio do sujeito. Para encontrar as intervenes psicoteraputicas realizadas por psiclogos no atendimento com o surdo, foi feita uma pesquisa qualitativa e exploratria com entrevista semiestruturada. Os participantes da pesquisa foram, ao todo, seis psiclogos, dois deles surdos, dois ouvintes que utilizam a lngua de sinais e dois ouvintes que no utilizam lngua de sinais. Aps as entrevistas, foi realizada anlise de contedo com base nas falas dos sujeitos, destacando-se como categorias principais: concepo do que ser surdo na sociedade e no atendimento; estratgias de comunicao e instrumentos utilizados pelos psiclogos para intervir com os surdos e facilidades e dificuldades encontradas na interveno. Como resultado, foi possvel identificar que a maioria dos psiclogos concebe o sujeito surdo como um ser que, sob o ponto de vista da sociedade, visto como diferente. As estratgias de comunicao utilizadas por psiclogos mais identificadas foram a lngua de sinais e os desenhos; os instrumentos utilizados com os surdos variaram bastante, como papel e lpis, testes no-verbais e projetivos, computador e atividades ldicas; os psiclogos identificaram as facilidades e dificuldades encontradas na interveno em relao a utilizao de estratgias e instrumentos; a lngua de sinais e desenhos foram destacados como os mais fceis de aplicar para estabelecer uma comunicao com os surdos, e o mais difcil, os gestos caseiros; os instrumentos mais fceis de utilizar foram papel e lpis e atividades ldicas; os mais difceis, testes verbais e projetivos, pois os surdos atendidos por esses psiclogos apresentavam pouco conhecimento da lngua portuguesa e no compreenderam o significado dos desenhos do teste de Rorschach. Foi possvel identificar quais intervenes psicoteraputicas realizadas por psiclogos com surdos foram adequadas e quais, no, para o processo teraputico.

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Palavras-chaves: intervenes psicoteraputicas; sujeitos surdos; lngua de sinais.

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LISTA DE SIGLAS

CAPS Centro de Ateno Psicossocial FENEIS Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos HTP House-Tree-Person IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica LIBRAS Lngua Brasileira de Sinais MEC Ministrio da Educao T.A.T Teste de Apercepo Temtica TCC Terapia Cognitivo-Comportamental

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Caracterizao dos participantes da pesquisa.................................................. Tabela 3 Concepo dos psiclogos sobre o ser surdo na sociedade............................. Tabela 4 Concepo dos psiclogos sobre quem o sujeito que faz atendimento psicoteraputico................................................................................................................. Tabela 5 Os tipos de atendimentos realizados por psiclogos com sujeitos.................. Tabela 6 A variao na interveno psicoteraputica de acordo com o grau de surdez

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Tabela 2 Quantidade de sujeitos atendidos por psiclogos e desde quando................... 68 70

75 82

no atendimento................................................................................................................... 85 Tabela 7 Abordagem terica utilizada por psiclogos.................................................... 88 Tabela 8 As queixas dos sujeitos apresentadas para os psiclogos no atendimento psicoteraputico................................................................................................................. Tabela 9 As queixas dos familiares dos sujeitos apresentadas para os psiclogos no atendimento psicoteraputico............................................................................................ Tabela 10 Os motivos da participao da famlia no atendimento psicoteraputico junto com o sujeito............................................................................................................. 99 Tabela 11 A importncia da participao da famlia no atendimento psicoteraputico junto com o sujeito............................................................................................................. 103 Tabela 12 Estratgias de comunicao utilizadas por psiclogos no atendimento psicoteraputico com sujeitos.......................................................................................... Tabela 13 As estratgias de comunicao adequadas para utilizar com sujeitos surdos na interveno psicoteraputica....................................................................................... Tabela 14 As facilidades encontradas por psiclogos ao utilizar as estratgias de comunicao com sujeitos na interveno psicoteraputica........................................... Tabela 15 As dificuldades encontradas por psiclogos ao utilizar as estratgias de comunicao com sujeitos na interveno psicoteraputica............................................ Tabela 16 A frequncia da utilizao das estratgias de comunicao por psiclogos no atendimento psicoteraputico com sujeitos.................................................................. Tabela 17 Instrumentos utilizados por psiclogos no atendimento psicoteraputico com sujeitos....................................................................................................................... Tabela 18 Os instrumentos adequados para utilizar com os sujeitos surdos na interveno psicoteraputica............................................................................................ 130 125 121 117 113 111 106 96 91

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Tabela 19 As facilidades encontradas por psiclogos ao utilizar os instrumentos com sujeitos na interveno psicoteraputica............................................................................ 133 Tabela 20 As dificuldades encontradas por psiclogos ao utilizar os instrumentos com sujeitos na interveno psicoteraputica.................................................................... Tabela 21 A freqncia da utilizao dos instrumentos por psiclogos no atendimento psicoteraputico com sujeitos....................................................................... 139 137

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SUMRIO

1 INTRODUO.............................................................................................................. 13 1.1 MINHA TRAJETRIA............................................................................................... 13 1.2 APRESENTAO...................................................................................................... 14 1.2.1 Tema......................................................................................................................... 15 1.2.2 Ttulo........................................................................................................................ 15

1.2.3 Problema de Pesquisa............................................................................................. 16 1.3 PROBLEMTICA E JUSTIFICATIVA..................................................................... 16 1.4 OBJETIVOS................................................................................................................ 28

1.4.1 Objetivo geral.......................................................................................................... 28 1.4.2 Objetivos especficos............................................................................................... 2 REFERENCIAL TERICO....................................................................................... 2.1 ALGUMAS CARACTERSTICAS SOBRE SURDOS, SURDEZ E 29 28 29

COMUNICAO.............................................................................................................

2.2 A PSICOLOGIA E A SURDEZ.................................................................................. 39 2.3 INTERVENES DOS PROFISSIONAIS REALIZADAS COM SUJEITOS SURDOS E O PROCESSO DE INTERVENO........................................................... 2.3.1 Intervenes de outros profissionais..................................................................... 43 43

2.3.2 Intervenes dos psiclogos.................................................................................... 45 2.4 VULNERABILIDADE SOCIAL E PROGRAMTICA RELACIONADA A SUJEITOS SURDOS......................................................................................................... 53 3 MTODO...................................................................................................................... 3.1 CARACTERIZAO DA PESQUISA...................................................................... 3.2 PARTICIPANTES DA ENTREVISTA...................................................................... 3.3 EQUIPAMENTOS E MATERIAIS............................................................................ 3.4 SITUAO E AMBIENTE........................................................................................ 62 62 62 63 63

3.5 INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS............................................................. 64 3.6 PROCEDIMENTOS.................................................................................................... 64 3.6.1 Da seleo dos participantes.................................................................................. 64

3.6.2 Do contato com os participantes............................................................................ 65 3.6.3 Da construo do roteiro de entrevista................................................................. 65

3.6.4 Da coleta e registro dos dados................................................................................ 65

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3.6.5 Da organizao, tratamento e anlise dos dados................................................. 4 ANLISE E INTERPRETAO DE DADOS.........................................................

66 68

4.1 CONCEPES DOS PSICLOGOS SOBRE OS SUJEITOS.................................. 69 4.1.1 Ser surdo na sociedade........................................................................................... 4.1.2 O sujeito surdo que realiza atendimento psicoteraputico................................. 4.2 CARACTERSTICAS DOS ATENDIMENTOS REALIZADOS COM 79 70 74

SUJEITOS......................................................................................................................... 4.2.1 Tipos de atendimentos psicoteraputicos realizados com sujeitos e familiares.......................................................................................................................... 4.2.2 Tipos de variao na interveno psicoteraputica com sujeitos......................

79 85

4.2.3 As abordagens tericas utilizadas no atendimento com sujeitos........................ 87 4.2.4 As queixas apresentadas pelos sujeitos e familiares............................................ 91

4.2.4.1 Queixas dos sujeitos............................................................................................... 91 4.2.4.2 Queixas dos familiares dos sujeitos....................................................................... 4.2.5 Participao dos familiares no atendimento psicoteraputico........................... 95 99

4.2.5.1 Importncia da participao da famlia.................................................................. 103 4.3 ESTRATGIAS DE COMUNICAO UTILIZADAS NA INTERVENO PSICOTERAPUTICA..................................................................................................... 105 4.3.1. Tipos de estratgias de comunicao utilizadas com sujeitos na interveno psicoteraputica............................................................................................................... 106

4.3.2 Estratgias de comunicao adequadas................................................................ 110 4.3.3 Facilidades encontradas no uso das estratgias de comunicao na interveno psicoteraputica.......................................................................................... 4.3.4 Dificuldades encontradas em utilizar as estratgias de comunicao na interveno psicoteraputica.......................................................................................... 4.3.5 Frequncia da utilizao das estratgias de comunicao no atendimento psicoteraputico............................................................................................................... 4.4 INSTRUMENTOS UTILIZADOS NA INTERVENO 121 117 113

PSICOTERAPUTICA..................................................................................................... 124 4.4.1 Instrumentos utilizados com sujeitos no atendimento 124

psicoteraputico............................................................................................................... 4.4.2 Instrumentos adequados para utilizar com sujeitos na interveno psicoteraputica............................................................................................................... 4.4.3 Facilidades encontradas em utilizar os instrumentos na interveno

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psicoteraputica............................................................................................................... 133 133 4.4.4 Dificuldades encontradas em utilizar os instrumentos na interveno psicoteraputica............................................................................................................... 4.4.5 Frequncia da utilizao dos instrumentos no atendimento 139 141 137

psicoteraputico............................................................................................................... CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................

REFERNCIAS............................................................................................................... 149 APNDICE....................................................................................................................... 155 APNDICE A Roteiro de entrevista........................................................................... 156

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1. INTRODUO

1.1 MINHA TRAJETRIA

Do que vale um conceito, um fator ou uma suposio, somente? Por vezes, um nico conceito restrito demais em se tratando da vida... Um conceito no aceito foi transformador de minha existncia. Ao ser diagnosticada como surda, minha famlia no aceitou um conceito to excludente quanto o que me deram como nica escolha... E eu tive escolha... Escolha de vida, de possibilidade. Nasci to prxima primavera que escolhi uma suave madrugada para vir ao mundo e desabrochar como tantas flores que juntamente a mim nasciam naquela estao... Nascer, crescer, ter apoio e liberdade de poder ser, fazer e caminhar de mos dadas com quem me passava segurana, sentindo o vento no rosto e andando por estradas por vezes difceis sem medo de ousar. Ousar. Ousar como esta pesquisa. Ou como em um caminhar entre o presente constante e o que eu queria alcanar. E nessas andanas da vida tive a possibilidade da liberdade de caminhar entre o oral e a lngua de sinais. Lnguas presentes e constantes em cada passo e pensamento meu... Que me do a expresso de um sentido a minha busca de respostas para no somente o que me desafiava, e desafia, mas tambm para o mundo a meu redor. Mas, para tudo isso acontecer, eu precisava de algo alm. O ingresso no ambiente acadmico despertou-me para outras necessidades, mas desde o incio um nico tema me rodeava... O surdo, sua lngua de sinais, sua trajetria... O ambiente acadmico do curso de Psicologia e minha prpria vivncia me permitiram a tentativa de encontrar uma porta na qual a lngua de sinais era a chave do descobrir dos dois mundos. Chave que possuo em mos e cedo a quem desejar. A porta pela qual entrei est cada vez mais longe... H uma nova porta a minha frente... Novos rumos... A lngua de sinais parte do meu mundo, essencial como o ar que respiro todos os dias. Porm, no conhecida por este mundo do qual fao parte. Por isso a necessidade de ousar e mostrar que tal lngua e a cultura surda no so bobagem como imaginam, no so coisas que se faam hoje e larguem amanh. Acima de tudo isso, a lngua de sinais d ao surdo a tranquilidade de ser parte de um mundo e de ser entendido.

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Este trabalho surgiu com minha experincia ao necessitar de atendimento psicoteraputico e perceber que profissionais ouvintes no esto preparados para lidar com tal situao nova. E tambm pelos relatos dos meus colegas surdos, demonstrando suas dificuldades diante do profissional ouvinte que no utiliza a nossa lngua. Para isso, ns, surdos, muitas vezes necessitamos expor nosso sofrimento e angstias por meio das palavras. Tentar encontrar uma palavra que possa descrever com exatido o que queremos dizer pode trazer mais angstias e sofrimentos, piorando a nossa situao. Por isso, a necessidade de profissionais compreenderem que o surdo deve ser atendido ou diagnosticado. Meu desejo explicar, exemplificar, auxiliando uma mudana de pensamento e, consequentemente, de atitude. Para que o surdo pare de receber o rtulo de estorvo social, como alguns lhe aplicam. Tentativa aqui escrita no somente em lngua portuguesa, mas em lngua de sinais. Trabalho este que foi escrito usando a cincia, mas tambm a psicologia, a vivncia e o corao.

1.2 APRESENTAO

O interesse desta pesquisa como ressaltado acima iniciou-se a partir de experincia acadmica da pesquisadora surda, em que se observaram prticas realizadas pelos psiclogos diante do sujeito surdo no decorrer do curso de psicologia e tambm relatos espontneos dos surdos. Foram identificados as dificuldades dos sujeitos surdos na psicoterapia realizada com profissionais ouvintes e os tipos de estratgias de comunicao e de instrumentos utilizados pelos psiclogos na interveno psicoteraputica com os surdos. O projeto de pesquisa Caractersticas das intervenes psicoteraputicas realizadas por psiclogos com sujeitos surdos tem por objetivo investigar como acontece a atuao do profissional da rea da sade diante do sujeito surdo, em busca de melhoria no atendimento. Tal trabalho est vinculado ao Projeto Time da Mente, que faz parte do Ncleo Orientado de Psicologia e Sade do curso de graduao em Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL. Ele tem como objetivo promover e/ou resgatar a sade mental de sujeitos atendidos pelo Centro de Ateno Psicossocial II CAPS II de Palhoa e pelo Programa de Sade Mental, do municpio de So Jos.

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O Time da Mente dividido em subprojetos, por meio dos quais so realizadas intervenes de assistncia a sujeitos com transtorno mental e a seus familiares cuidadores. Os subprojetos so assim nomeados: Individualmente; Praticamente; Brilhantemente; Cuidadosamente; Comunitariamente; e Familiarmente. Por intermdio desses subprojetos so realizadas Triagens Iniciais, Atendimentos Individuais, Grupos Operativos, Projeto BemEstar, Visitas Domiciliares, Capacitao de Agentes Comunitrios de Sade e Atendimentos s Famlias. Para realizar intervenes com os sujeitos surdos, tais como as intervenes propostas pelo projeto Time da Mente, necessrio que o futuro psiclogo desenvolva competncia nas estratgias de comunicao e instrumentos. Isso porque se o profissional apresentar conhecimento das estratgias e instrumentos utilizados com sujeitos surdos ser capaz de promover a qualidade de vida destes. Neste sentido, parece ser importante caracterizar as possibilidades do psiclogo para intervir.

1.2.1 Tema

Intervenes psicoteraputicas de psiclogos com sujeitos surdos.

1.2.2 Ttulo

Caractersticas das intervenes psicoteraputicas realizadas por psiclogos com sujeitos surdos.

1.2.3 Problema de pesquisa

Quais as caractersticas das intervenes psicoteraputicas realizadas por psiclogos com sujeitos surdos?

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1.3 PROBLEMTICA E JUSTIFICATIVA

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE , h no Brasil aproximadamente seis milhes de pessoas com incapacidade, com alguma ou com grande dificuldade permanente de ouvir. Em Santa Catarina, este nmero se traduz em 186.851 pessoas, no representando, de maneira especfica, somente aquelas surdas permanentemente1. De toda a populao nacional h, de acordo com o censo demogrfico do ano de 2000, aproximadamente 3,37% dos brasileiros com algum tipo de surdez. Independentemente do grau de surdez2, uma boa parcela dessas pessoas ainda sofre com a discriminao social. Essa discriminao vem desde a Antiguidade, tendo por nica exceo o Egito Antigo, onde o surdo era considerado um Deus fato raro em se tratando de sociedades em que o ser perfeito imperava e o que no correspondia a isso era considerado inferior, sendo descartado facilmente. Tal discriminao ocorria, por exemplo, na sociedade grega, em que, para no provocar a ira dos deuses, havia uma preocupao com a perfeio fsica. Tal preocupao ocorria por conta das guerras e tendo em vista a necessidade de homens perfeitos e sadios para os futuros combates3. Em muitas sociedades antigas, crianas que nasciam com algum defeito eram sacrificadas, jogadas em abismos ou excludas para no viver na sociedade 4. No caso das crianas surdas, como seu defeito era descoberto tardiamente, estas eram isoladas num local parte da sociedade, deixadas distantes da cidade para que no convivessem com as pessoas perfeitas. Em relatos de Strobel (2008) ao examinar sobre a histria dos surdos juntamente com Hall (2004, p.10) se discute sobre a concepo de sujeitos e identidade cultural , os autores afirmam que possvel que os romanos, numa viso iluminista, tambm tenham excludo crianas surdas devido s fortes influncias dos gregos, pois eles no acreditavam

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Fonte: IBGE, Censo Demogrfico 2000.

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A surdez pode ser classificada como unilaterais ou bilaterais, quando esto afetadas por um ou dois ouvidos. Quanto ao grau de comprometimento, seguem a classificao de leves, moderadas, severas e profundas; e podem ser condutivas, neurossensoriais, mistas e centrais, de acordo com a localizao da alterao.3

Sobre o sacrifcio dos surdos nas sociedades antigas, o texto encontra-se disponvel em: http://proa07profaluciane.pbworks.com/NeusaAna-e CristianiAparecida?SearchFor=surdos+na+antiguidade&sp=5. Acesso em 26 de abril de 2009.4

Idem.

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que os surdos fossem capazes de receber educao, eram considerados imperfeitos, ento os sujeitos surdos eram marginalizados e excludos da sociedade, sem ter uma vida ativa. (STROBEL, 2008, p. 23-24) Aps longo tempo de sacrifcios, houve uma nova concepo para pensar o sujeito surdo; mas este era ainda visto como algum com defeito e que precisava ser consertado, precisava aprender a escutar e a falar; com isso, surgiram as tcnicas de treinamento auditivo e a terapia da fala, com o sujeito surdo tendo como base o modelo ouvinte. Em uma viso sociolgica, apresentando as idias de Hall (2004, p.10), interpretada para o contexto da surdez, Strobel (2008) revela que uma pessoa normal aquela que sabe falar e ouvir. Como os surdos no ouviam nem falavam conforme esperado socialmente, consideravam-se os surdos doentes e anormais, levando-os ao isolamento em instituies. A autora afirma que, na ps-modernidade, os surdos possuam atividade educacional, mas os professores os ensinavam a ser iguais aos ouvintes, aprendendo a falar. O que reflete ainda uma viso clnica de mdicos e demais profissionais da rea da sade da surdez, percebendo os surdos como deficientes, ou mesmo a surdez como uma doena que pode ser curada, desconsiderando o discurso cultural, lingustico e poltico da surdez. No sculo XXI, mesmo com as iniciativas de polticas afirmativas que possibilitam a este grupo a incluso social permitindo que exeram a sua cidadania, alguns sujeitos surdos ainda so marginalizados e excludos da sociedade. Este grupo, representado pela Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos FENEIS5 e pelas Associaes de Surdos presentes nos Estados do Brasil, reivindica e promove na sociedade o ingresso dos surdos educao e acessibilidade. Porm, necessrio entender que muitas vezes a acessibilidade no aplicada na prtica, permanecendo apenas no papel, traduzida nas leis. A desconsiderao do seu cumprimento acontece dentro da sociedade, em espaos pblicos como hospitais, clnicas e demais lugares onde a Lei de Acessibilidade6 e de LIBRAS7 ainda, por vezes, ignorada ou desconhecida, fazendo com que o sujeito surdo no consiga por enquanto exercer sua cidadania enquanto sujeito social. Focalizando acessibilidade para as pessoas surdas na rea da sade, notam-se as dificuldades dos5

A FENEIS uma entidade filantrpica que visa representar a comunidade surda com suas lutas nas reas assistencial, educacional e sociocultural. Disponvel em: http://www.feneis.com.br/page/. Acesso em 23 de maio de 2009.6

Lei de Acessibilidade disponvel em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L10098.htm. Acesso em: 23 de maio de 2009.7

Lei de LIBRAS disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10436.htm. Acesso em: 04 de maio de 2009.

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profissionais, de maneira geral, para o atendimento destas pessoas, principalmente no que se refere compreenso do que desejam, e de qual o motivo que as traz ao hospital, ao posto de sade, ao atendimento mdico em si. O que esto sentindo? Qual sua enfermidade? Muitas vezes, a dificuldade de descobrir como lidar e atender esses sujeitos est na inabilidade e desconhecimento de como se comunicar com eles. Ou ainda pelo fato de estarem inconscientemente habituados com a sociedade, que busca sempre a normalizao 8 dos sujeitos surdos. Skliar nos mostra que para chegar ao padro de normalizao a sociedade passou anos e anos tentando corrigir, normalizar, consertar, controlar, segregar e negar, mostrando que a surdez no marcada pela ausncia da audio, mas pela diferena lingustica e de perceber o mundo, [...] a existncia da comunidade surda, da lngua de sinais, das identidades surdas e das experincias visuais, que determinam o conjunto de diferenas dos surdos em relao a qualquer outro grupo de sujeitos. (SKLIAR, 2005, p.07) Para entender um pouco melhor como surgiram os mtodos lingsticos que procederam essa tentativa de normalizao, Nogueira & Silva (2008) mostram os trs momentos ocorridos na histria da educao dos surdos; so eles: o oralismo9, a comunicao total10 e, recentemente, o bilinguismo11. Com o ensino do mtodo do oralismo, o objetivo era a integrao do sujeito surdo sociedade; a surdez aqui era vista como uma deficincia que poderia ser tratada e minimizada. Portanto, atravs da estimulao auditiva, o surdo deveria desenvolver a lngua oral e, alm disso, uma personalidade de ouvinte. S assim ele alcanaria a normalidade (CARVALHO E LEVY apud NOGUEIRA & SILVA, 2008, p. 71).

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Para Skliar (2005), o objetivo da normalizao tornar o surdo uma pessoa ouvinte, pois o sujeito surdo visto como o deficiente, o diferente, pela sociedade. Como o caso do ouvintismo, a representao do ouvinte sobre o surdo; para os ouvintes, o surdo obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte (p, 15). E para os sujeitos surdos no possvel que isso ocorra, pela ausncia da experincia auditiva.9

Oralismo: a aquisio da lngua oral. O surdo aprender a lngua oral (preferencialmente na modalidade escrita) que a lngua dos ouvintes, sendo reprimido pelo uso de qualquer gesto, expresso facial ou corporal que se refira lngua visual. (PERLIN, 2005)10

Comunico Total: utiliza-se toda uma diversidade de mtodos para alcanar a oralizao do surdo. A diferena que a lngua de sinais utilizada como apoio para o aprendizado da lngua oral e escrita. (PERLIN, 2005)11

Bilinguismo: a lngua de sinais vista como comunicao do surdo ou como ora repensada como portugus sinalizado, ora usada como lngua de educao, embora o que se queira seja uma comunicao plena e todas as especificidades da lngua. Pode ser visto como estratgias colonialistas dos grupos dominantes ouvintes. (PERLIN, 2005)

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A Frana foi o bero dos mtodos gestuais, e a primeira escola pblica de surdos foi criada l pelo Abade Charles Michel de LEpe, seu fundador e o criador dos Sinais Metdicos. Este um sistema baseado na lngua de sinais e foi visto como um meio de comunicao para os sujeitos surdos, [...] possibilitando a transmisso de conhecimento e de sentimentos, mas no ainda como uma lngua desenvolvida (CARVALHO E LEVY apud NOGUEIRA & SILVA, 2008, p. 71). Nogueira & Silva (2008) destacam a luta, durante anos, pela insero da lngua de sinais nas escolas de surdos; porm, o Congresso de Milo em 1880 proibiu o uso da lngua de sinais, reforando a importncia do oralismo para os sujeitos surdos. No Brasil, o processo de educao dos surdos foi semelhante ao da Frana, sendo que foi D. Pedro II, em 1855, responsvel por trazer Hernest Huet professor surdo francs para criar a educao dos surdos no Pas; com isso, fundou o Instituto Nacional de Surdos-Mudos atual Instituto Nacional de Educao de Surdos (INES) em 1857. O outro momento histrico da educao de surdos no Brasil foi o incio do uso da Comunicao Total, por volta da dcada de 1970. Segundo Nogueira & Silva:

[...] a comunicao total v a surdez como algo que ir interferir nas relaes sociais, afetivas e cognitivas do surdo. Assim, so dadas a esse todas as possibilidades para se comunicar, podendo se utilizar de fala, leitura, escrita, leitura orofacial, amplificao sonora adequada, gestos e sinais. Vale destacar que o objetivo desse mtodo ainda continua a ser a oralidade, embora tenha contribudo muito ao abrir espao para a Lngua de Sinais (2008, p. 71).

O terceiro e ltimo momento histrico surgiu no final da dcada de 1980/ incio da dcada 1990, com a chegada do bilinguismo ao Brasil; de acordo com Carvalho e Levy, este mtodo pouco compreendido e utilizado para ensino de sujeitos surdos (CARVALHO E LEVY apud NOGUEIRA & SILVA, 2008, p. 71). Com esse mtodo, a criana surda, desde cedo, passa a conhecer a lngua de sinais, que vista como a sua lngua materna; ela passa tambm a ter acesso a sua segunda lngua do pas, no caso, a lngua portuguesa. Com isso, a grande maioria dos profissionais professores da educao que realizavam algum tipo de interveno, fosse ela clnica ou pedaggica, se pautava na terapia da fala, ocasionando certa confuso na funo dos professores, que devem atuar como mediadores do conhecimento, e no realizando atividades como terapias da fala e treinamento auditivo que deveriam ser exercidas, normalmente, pelos profissionais da rea da sade neste caso, fonoaudilogos , no havendo um olhar para esses sujeitos, a partir de uma diferena representada por eles mesmos.

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Em uma sociedade que v o professor como aquele que ensina, percebe-se o conflito de funes existentes na rea de educao, atualmente amenizado, pois delegava-se aos professores exercer a funo de fonoaudilogos, de aplicar tcnicas e prticas teraputicas terapia da audio e da fala, juntamente com suas tcnicas de treinamento para memorizao de como articular as palavras, controlar o tom da voz e a sua intensidade. Isto se dava em razo da concepo oralista de ensinar os surdos a falar, sendo, ao mesmo tempo, uma maneira de desconsider-los na sua diferena lingustica usurios de gestos, mmicas e da LIBRAS enquanto lngua oficial de comunicao e expresso das suas necessidades, interesses e estudos no seu cotidiano. Neste caso, se traa um olhar por vezes normalizador, discriminatrio, no somente do sujeito, mas da maneira com que ele percebe e interage com o mundo por meio do canal visual, utilizando a lngua de sinais para se expressar e comunicar. O papel do professor visa mediao dos contedos escolares e o que as polticas educacionais apresentam, e no cabe a ele responsabilizar-se pelo que no faz parte de sua funo, ensinar o surdo a falar. Deve-se preocupar, sim, com a sade de seu educando no sentido de perceber, pelas suas atitudes na escola, se ele est se desenvolvendo bem fsica e emocionalmente, assim como deve realizar seu prprio trabalho; afinal, o professor no fonoaudilogo, mas sim educador. At meados do sculo XX, os profissionais da educao no sabiam exatamente como realizar um trabalho pedaggico com os sujeitos surdos pela dificuldade de se encontrarem diretrizes para esse tipo de trabalho, a no ser por meio da oralidade, focalizando a terapia da fala. necessrio que essa mistura de responsabilidades seja evitada para melhor desenvolvimento educacional do surdo e da conscincia da sociedade quanto funo de cada profissional. Talvez, pelo contexto da educao numa perspectiva oralista, a famlia no tivesse alternativa que possibilitasse o desenvolvimento psquico, biolgico e social de seu (sua) filho (a) surdo (a), pois tambm os profissionais que trabalhavam com esses sujeitos, cuja pretenso estava em fazer o surdo falar, contribuam para que a normalizao dos surdos fosse socialmente difundida. Ao mesmo tempo, mostrava o motivo da confuso de funes entre os profissionais da educao, que exerciam atividades dos profissionais da rea da sade. Com relao rea da sade no decorrer da histria dos surdos, a educao e toda a trajetria de ensino fora pautada na oralidade, acompanhada pelo trabalho teraputico dos fonoaudilogos, profissionais desta rea. Portanto, h outros profissionais cujo objetivo cuidar da sade do sujeito surdo, como os mdicos, enfermeiros, psiquiatras, psiclogos, entre outros necessrios para cuidar tambm do seu bem-estar. Cabe refletir sobre uma observao

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apresentada pela pesquisadora: a rea da sade tambm visa a obrigar o surdo a falar? Pois, se o profissional mantiver a viso de que o surdo precisa aprender a falar, estar de acordo com o padro de normalizao, como foi apresentado anteriormente por Skliar (2001). Com essa pretenso de querer normalizar o sujeito surdo, a sociedade poder desencadear fatores de conflito entre o ser surdo e o que ao redor dele existe, entre suas aspiraes e as intervenes da sociedade. Para definir melhor o que ser surdo, Perlin & Miranda (2003, p, 02) afirmam que ser surdo no se trata da deficincia e sim de uma questo de vida com experincias visuais, pois a experincia visual significa a utilizao da viso (substituio total audio) como meio de comunicao. Com essa experincia, o surdo se permite conhecer o mundo a sua maneira e se expressar com a sua lngua que a lngua de sinais. O termo ser surdo denominado Deafhood pelo ingls surdo Paddy Ladd (apud PERLIN, 2003, p. 02); uma palavra nova, porm no significa surdez e sim ser surdo; o mesmo autor afirma:

[...] este termo concorre no somente para mover-se e ligar-se comunidade surda, mas tambm para a continuidade da explorao de novos nveis de significado. O que concorreu para a formao da palavra deafhood? O ingls tem substantivos como manhood, ou seja, ser homem ou o estado de passagem; womanhood, ou seja, ser mulher ou o estado de ser ou atingir. Ento, os surdos ingleses tiveram um espao criativo para a inveno da nova palavra deafhood, captando significados diferentes, significados para os tempos atuais [...] (apud PERLIN, 2003, p. 02).

O surdo necessita de sua viso para adquirir experincias vividas no mundo, ampliar seu conhecimento, poder se expressar... Mas muitas vezes o sujeito surdo no tem essa oportunidade porque convive com uma famlia de ouvintes, por estudar em uma escola onde ele o nico surdo, por trabalhar em um ambiente onde a maioria dos empregados so ouvintes e desconhecem a lngua de sinais. Com isso, o sujeito surdo mantm alguns conflitos internos12, subjetivos, mas que permeiam os seus pensamentos: como ser surdo em um mundo ouvinte? Ir para a escola com o objetivo de estudar os contedos curriculares ou para aprender a falar? Como o surdo desaprender a falar? Pois, na viso dos ouvintes, se o surdo utilizar somente a lngua de sinais, se se comunicar atravs das mos e expresses faciais e corporais, deixar de exercitar a oralidade, podendo esquecer como se fala. Strobel, pesquisadora12

O conflito interno ocorre quando se trata da subjetividade do sujeito surdo. Bakhtin enfatiza que o sujeito necessita do outro, daquele cuja voz constitutiva do eu, pois o eu no existe sem o Outro. (apud LODI, 2006, p.186). Para que o sujeito possa construir a sua subjetividade, necessita do Outro. O processo da construo da subjetividade e a presena do Outro se tornam mais fceis, nesse caso, para os ouvintes, pelo fato de eles possurem a audio, de viverem em uma sociedade onde a maioria dos sujeitos igual a ele. E com os sujeitos surdos? O Outro, para o surdo, muitas vezes o sujeito ouvinte, e isto conflitante porque o sujeito surdo consegue perceber sua diferena tambm pelo modo de ser e de perceber o mundo do Outro ouvinte. Para o surdo poder construir a sua subjetividade necessita encontrar seu Outro que possibilitar a constituio de sua identidade, da lngua de sinais, permitindo-lhe exercer sua cidadania na sociedade.

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surda, vivenciou em sua infncia a discriminao e a possibilidade de uma nova descoberta lingustica Lngua Brasileira de Sinais diante de um discurso de uma professora:

Quando eu comecei a frequentar a associao dos surdos, uma professora questionou a minha me voc vai fazer sua filha a desaprender a falar, [...]. [...] esta mesma professora tinha uma irm surda que era muito reprimida sempre isolada em sua casa e com conflito de identidade e com uma fala difcil de compreender [...]. Com estes tipos de pessoas eu aprendi um sentimento de que era preciso esconder de que sou surda, fingir e imitar os outros que ouvem e isto me fazia ficar mais confusa. (STROBEL, 2004.)

A viso clnica da professora prioriza a necessidade de o sujeito surdo saber falar adequadamente, buscando normaliz-lo e priv-lo de conhecer a Lngua Brasileira de Sinais LIBRAS. Na citao, a menina surda, irm da professora, foi apresentada como uma pessoa reprimida, isolada. Por qu? Os pais e a irm da menina surda queriam que ela apresentasse o padro de normalizao que se exigia socialmente? Possivelmente sim; diante dos estigmas sociais, a famlia na maior parte das vezes desejar que a criana seja vista como normal e para isso dela se exigir a fala e que tenha atitudes de uma pessoa ouvinte, reprimindo o seu ser surdo, o encontro com seu par igual, o outro surdo que faz com que eu construa a sua subjetividade e identidade enquanto pessoa surda. E so aceitas, passivamente, as imposies dos ouvintes, neste caso a famlia: [...] o ouvinte estabelece uma relao de poder, de dominao [...]. (PERLIN apud SKLIAR, 2001, p. 59) Seria esta a relao de poder, ouvinte e surdo. A famlia, instigando a menina a falar, desencadearia o estar reprimida? Ou ainda, poderia gerar questes como: no tinha contato com a lngua de sinais? Ser que havia dificuldade na comunicao, contribuindo para que ela estivesse sempre excluda na prpria casa? Ressalta-se que os sujeitos de diversas etnias, culturas, raas, nvel social, ao serem excludos na prpria famlia ou quando so obrigados a ser e a agir tal como as pessoas ouvintes, como afirma Sol (2005), sofrem danos psicolgicos como quadros de ansiedade, problemas de afetividade e relacionamentos, sentimentos de revolta e insegurana diante de vrios contextos, que podem ter implicaes em sua vida na sociedade. Com a falta de comunicao entre pais ouvintes e filhos surdos, possvel que os pais acreditem que esses filhos apresentem algum problema psicolgico. Por no haver, na maioria das vezes, uma comunicao compreensvel que permita a interao familiar e a percepo dos pais de que poderia estar havendo um simples problema do cotidiano, ou por no se saber diferenciar o certo do errado, os filhos surdos so levados ao psiclogo. Dentre

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as queixas que os pais relatavam quando vinham falar de seus filhos surdos, a mesma autora nos mostra que a falta de limites era o que mais a intrigava. Com relao escuta dessas queixas, cabe aos profissionais nesse caso, os psiclogos refletir sobre sua prtica, pois durante o atendimento direciona-se a ateno mais para a queixa dos pais do que para a do sujeito surdo. Se este realmente apresentar algum problema psicolgico, como o profissional conseguir perceber os seus sintomas escutando apenas a queixa paterna? Durante a experincia da pesquisadora no atendimento psicoteraputico, foi possvel identificar a queixa dos pais de filho surdo relatando que ele apresentava comportamentos agressivos, dificuldade de aceitar limites e de relacionamento; porm, no primeiro atendimento foi identificado que este filho apresentava comportamentos contraditrios queles pelos quais os pais o trouxeram. Portanto, alm de escutar o relato dos pais, o profissional tambm deve escutar o que o sujeito surdo tem a dizer e, assim, perceber semelhanas ou diferenas. Muitas vezes, o problema pode estar tambm nos pais ao no conseguirem manter uma comunicao e estabelecer um dilogo a fim de impor limites, educar e desenvolver o relacionamento familiar. A excluso do sujeito surdo em sua prpria famlia e o sentir-se confuso pelo contexto em que vive fazem-lhe surgir a necessidade de buscar um espao onde possa apresentar as suas queixas e amenizar seus sofrimentos, sejam eles relacionados famlia, aos amigos ou ao trabalho. Strobel mostra ento que, para o sujeito surdo, o encontro com o outro lhe permite sentir-se acolhido por esse outro, pois quando ele passa a conhecer e a vivenciar a histria do surdo desenvolve a sua identidade pessoal com uma viso mais sistematizada sobre a sua diferena e a do povo surdo13, entre o qual vive, por meio das descobertas e discusses. O encontro do surdo com o seu par igual, utilizando a lngua de sinais, possibilita a construo da sua identidade surda e o desenvolvimento da percepo de si enquanto sujeito surdo, e faz com que ele encontre o seu lugar na comunidade surda. Ao conviver com os ouvintes, constri por vezes uma identidade ouvinte e novamente aparece a normalizao citada, em que a sociedade quer fazer dele o que ele no : um ouvinte. Ainda, sofre com as obrigaes e presses para aprender a falar e fazer parte da sociedade. Os sujeitos tm suas responsabilidades e liberdade de escolha de estar com o grupo com que se identificam, como afirma Larrosa & Prez de Lara:13

Povo Surdo: refere-se aos sujeitos surdos que no habitam no mesmo local, mas esto ligados por uma origem, por um cdigo tico de formao visual, independente da evoluo lingustica, tal como a lngua de sinais, a cultura surda e quaisquer outros laos. (STROBEL, 2008)

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[...] somos ns que decidimos como o outro, o que que lhe falta, de que necessita, quais so suas carncias e suas aspiraes. E a alteridade do outro permanece como que reabsorvida em nossa identidade e a refora ainda mais; tornaa, se possvel, mais arrogante, mais segura e mais satisfeita de si mesma (apud SKLIAR, 2003, p. 119)

Quando os sujeitos no caso dos ouvintes descobrem a sua identidade, sentemse melhor consigo mesmos. o mesmo caso do sujeito surdo: com a descoberta da identidade surda, sente-se melhor por se encontrar como indivduo dotado de singularidades e pluralidades, interagindo com a comunidade surda e vivenciando a cultura surda. Mas, em relao famlia, preciso perceber se a lngua de sinais ou no aceita e/ou usada neste contexto. As identidades surdas esto nos sujeitos surdos e se constituem de diferentes formas e a partir de diferentes representaes e concepes. (PERLIN, 1998, p. 39). Isto leva a pensar sobre o papel da famlia no processo de descobrir-se, descobrir a lngua de sinais e o que se , ou seja, como o sujeito surdo se v na sociedade em que habita. Percebe-se que quando o sujeito no encontra a sua identidade na prpria famlia, podem-se desencadear nele o sofrimento psicolgico e o conflito interno. necessrio ver o outro lado da questo, como no caso da famlia no conseguir reconhecer sua identidade como famlia do surdo. Muitas vezes isso acontece porque no conseguem se identificar como parte da vida do surdo devido a diversos fatores, como revolta, rejeio e sentimento de culpa, alm do processo de luto que ocorre antes de se passar a aceitar o filho surdo. Essa aceitao pode no ocorrer de forma satisfatria porque a maioria das famlias ouvintes no est preparada para receber um membro da famlia com deficincia e, alm disto, no possui conhecimento sobre tal deficincia. De acordo com autores como Perlin (1998), Strobel (2008), Skliar (2001) e Sol (2005), a maioria das famlias de surdos no sabe a lngua de sinais, criando falhas na comunicao assim como a pouca transmisso de informao entre seus componentes. Quando no sabe a lngua de sinais, o sujeito surdo sofre com a carncia de informao, o que faz com que a relao do surdo com a famlia e outras pessoas seja complicada, em termos de segurana e confiana. Para comparar e expor essas e outras questes, h pouca literatura sobre a interveno do profissional com o sujeito surdo nas reas de psicologia, fonoaudiologia, enfermagem e pedagogia; poucos explicam qual instrumento foi utilizado durante a

interveno. Na rea da psicologia, Peres (2003) mostra que uma pesquisa da equipe formada por um psiclogo e estagirios visava a efetuar a investigao psicolgica das crianas surdas, focalizando a personalidade dos sujeitos e suas relaes com o mundo exterior.

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Nessa pesquisa, eram onze as crianas surdas participantes, cinco delas do sexo masculino e seis do sexo feminino; a idade variava na faixa etria de seis a doze anos. Como os pesquisadores no sabiam a lngua de sinais, escolheram uma tcnica que facilitasse a comunicao, apesar de contarem com o auxlio das professoras das crianas; o instrumento utilizado durante o trabalho foi o House-Tree-Person (HTP), cuja tcnica visa a avaliar a personalidade do surdo e tambm as suas interaes com o ambiente. (PERES apud KOLCK, 2003, p. 04). A escolha do instrumento foi adequada para utilizao com as crianas surdas, porm era necessria a presena de um intrprete para conseguir melhores resultados na coleta de dados; a equipe contou com a ajuda das professoras das crianas surdas, mas no esclarece se as professoras possuam conhecimento de lngua de sinais. Os desenhos realizados pelas crianas surdas demonstraram ausncia, omisso, desproporo de alguns elementos. Baseados na teoria, os pesquisadores identificaram dados indicando o que apresentava a maioria das crianas surdas pesquisadas: [...] sentimentos de inadequao e inferioridade, tende ao isolamento e introverso e encontra severas dificuldades nos relacionamentos interpessoais. (PERES, 2003, p. 07). Com isso, evidencia-se a dificuldade encontrada pela equipe diante das crianas surdas. Na rea da enfermagem, Pagliuca et al (2006) abordam as tcnicas utilizadas por enfermeiros para se comunicar com os pacientes dos hospitais de Fortaleza. As enfermeiras relatam as dificuldades impostas por conta da comunicao e as estratgias utilizadas para obter respostas dos pacientes. Muitos dos enfermeiros contam que ao se deparar com o paciente surdo ficam ansiosos, preocupados em no obter informaes, tentando deixar o paciente mais calmo; quando no conseguem estabelecer uma comunicao com os surdos, recorrem aos familiares para obter as respostas. Tais profissionais, apesar do esforo para estabelecer uma comunicao, afirmam que esto despreparados e tm dificuldades. Mesmo havendo literatura que aborda polticas lingusticas, de identidades, educacionais, de sade e de respeito aos sujeitos surdos, h fragilidade nas discusses e produes acadmicas voltadas para as caractersticas das intervenes clnicas dos psiclogos com sujeitos surdos. Parece haver dificuldades de trabalhar com tais pacientes devido forma de comunicao que eles utilizam e que desconhecida pelos profissionais e por boa parte da sociedade a LIBRAS, mmica e gestos. Com isso, o psiclogo pode sentir dificuldades no atendimento, na interao para interveno clnica com o sujeito surdo, pois alm de este paciente se comunicar de uma maneira diferenciada, uns com muita fluncia na LIBRAS outros menos, o profissional pode

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equivocar-se no momento de identificar a sua queixa por no conhecer outro tipo de comunicao que no seja a oral. Muitas vezes, os profissionais recorrem aos familiares, como no caso dos enfermeiros, para identificar as queixas e diagnosticar o paciente. O conflito reside no sujeito surdo e no fato de que ele necessita de atendimento psicolgico. Compreender o sistema familiar e trazer para o atendimento pais que esto em situao de fragilidade, por no saber como se relacionar com seu filho surdo, um desafio. Ao mesmo tempo, qualquer queixa traz tona a histria dessa famlia em que nasceu uma criana aparentemente normal e, to logo, com a descoberta da surdez e suas implicaes como a decepo e o sentimento de culpa dos pais, porque a criana nasceu assim, e o desespero, pois a perspectiva que se tinha era de que os surdos eram incapazes de realizar qualquer tipo de atividade. Tudo isso leva a inmeros sentimentos que no so externalizados pelos pais, pois no lhes oportunizado falar sobre a sua dor e receber informaes sobre as possibilidades de seu filho ter uma vida social como qualquer outra pessoa, diferenciando-se pela lngua que utiliza. Os pais tambm precisam de atendimento psicolgico. Porm, focalizar a escuta dos sujeitos surdos se permitir saber o que eles esto sentindo e vivenciando, conhecer a verso do sujeito surdo e no somente a que sua famlia apresenta. Mas importante tambm que os psiclogos busquem os familiares para entender a histria desse sujeito, podendo, com isso, realizar intervenes mais adequadas com resultados mais pertinentes para um diagnstico, o mais coerentemente possvel. A relevncia social desse trabalho se d ao mostrar, tanto para as autoridades quanto para a prpria sociedade, a necessidade de conscientizao de profissionais habilitados para o atendimento dos sujeitos surdos, no caso desta pesquisa, nos espaos destinados rea da sade. importante que os profissionais aprendam a lngua de sinais, neste caso, os da rea da sade. Devem-se no somente trazer para dentro das universidades as discusses sobre as intervenes clnicas e psicoteraputicas com sujeitos surdos pelos profissionais da sade, mas tambm fomentar cursos de LIBRAS nas grades curriculares e cursos de especializao, para que os profissionais se sintam preparados pelo menos para que se estabelea a comunicao entre o surdo e quem for atend-lo, buscando melhorar o quadro clnico desses sujeitos. Esta uma maneira de se ampliar o conhecimento sobre surdez, sujeito surdo e comunidade surda e de saber como organizar o atendimento, pensando em estratgias de comunicao e instrumentos a serem utilizados, bem como na adequao da interveno para o sujeito surdo.

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Para a comunidade cientfica, importante a insero de cursos, oficinas e palestras sobre Lngua de Sinais no ambiente acadmico; cursos de especializao no somente garantem os benefcios que estudantes, estagirios e profissionais tero ao aprender a lngua especfica dos sujeitos surdos, mas tambm permitem que o sujeito atendido se sinta seguro e satisfeito quando for para o atendimento. Ao se deparar com um profissional que conhece e utiliza a lngua de sinais, o surdo ir recorrer a este profissional. Como aconteceu com a procura pelo atendimento psicoteraputico no Servio de Psicologia da UNISUL, quando surdos tomaram conhecimento da existncia de uma estagiria de psicologia surda. Esta pesquisa poder levar a uma melhor compreenso sobre os sujeitos surdos em suas particularidades e tambm favorecer os profissionais que se deparam ou podero se deparar futuramente em suas prticas psicoteraputicas com sujeitos surdos, de modo a organizar suas intervenes com estratgias que lhes permitam adequar-se demanda apresentada por tais pacientes. Este trabalho tem carter cientfico por ser uma pesquisa indita realizada por uma estudante de um campo de teorizao, e poder contribuir para a reflexo de estudantes, estagirios e profissionais da rea de sade. Por fim, o que se deseja com esta pesquisa possibilitar uma articulao entre comunicao e interveno em se tratando de sujeitos surdos e profissionais, e tambm verificar as possveis estratgias que o profissional poder aplicar com o sujeito surdo. Isso porque o surdo, como qualquer outro sujeito, necessita da opo de ser atendido em sua lngua materna14; se no for possvel ao profissional saber a lngua materna do surdo, que conhea outras estratgias para colher coerentemente o relato do surdo, sem falhas vindo este a ser diagnosticado efetivamente e favorecido com profissionais capacitados e conscientes da cultura surda e da importncia de uma comunicao eficaz.

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Lngua materna a primeira lngua usada por qualquer sujeito, sendo que a LIBRAS a primeira lngua para surdos vindos de famlias surdas ou de famlias ouvintes conhecedoras da lngua de sinais, e a lngua portuguesa, a primeira lngua para surdos vindos de famlias ouvintes no-sinalizantes. Surdos pr-lingual e ps-lingual tero lnguas maternas diferentes; o pr-lingual tem a lngua de sinais como primeira, o ps-lingual ter como primeira a lngua portuguesa. (QUADROS & KARNOPP, 2004)

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1.4 OBJETIVOS

1.4.1 Objetivo Geral:

Caracterizar a interveno psicoteraputica realizada por psiclogos com sujeitos surdos.

1.4.2 Objetivos Especficos:

Identificar as estratgias de comunicao utilizadas por psiclogos na interveno psicoteraputica com sujeitos surdos; Comparar as estratgias de comunicao utilizadas por psiclogos surdos, psiclogos ouvintes que utilizam lngua de sinais e psiclogos ouvintes que no utilizam lngua de sinais para realizar a interveno psicoteraputica com sujeitos surdos; Verificar os instrumentos utilizados por psiclogos durante a interveno psicoteraputica com sujeitos surdos; Comparar os instrumentos utilizados por psiclogos surdos, psiclogos ouvintes que utilizam lngua de sinais e psiclogos ouvintes que no utilizam lngua de sinais para realizar a interveno psicoteraputica com sujeitos surdos; Identificar, na concepo de psiclogos, quais as estratgias e instrumentos que facilitam o atendimento psicoteraputico do sujeito surdo. Comparar as concepes de psiclogos surdos, psiclogos ouvintes que utilizam lngua de sinais e psiclogos ouvintes que no utilizam lngua de sinais sobre as estratgias e instrumentos que facilitam o atendimento psicoteraputico do sujeito surdo.

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2. REFERENCIAL TERICO

2.1. ALGUMAS CARACTERSTICAS SOBRE SURDOS, SURDEZ E COMUNICAO

Como foi observado anteriormente, a histria dos surdos no mundo mostra que muitos deles foram discriminados na sociedade. Por um longo tempo, esses sujeitos ficaram excludos das interaes sociais por serem deficientes considerados incapazes e por no conseguirem estabelecer uma comunicao com os ouvintes. A falta de comunicao dos surdos com os ouvintes lhes trouxe implicaes srias no que se refere a seu desenvolvimento como sujeito. A comear pela famlia, estendendo-se para o meio social. Ressalta-se que h aproximadamente seis milhes de pessoas com alguma incapacidade auditiva no Brasil. Porm, no h dados que nos mostrem no momento a quantidade exata de surdos no Pas, e isso pode levar a um no conhecimento da comunidade surda. H diferena entre o modelo patolgico15 e o modelo antropolgico16. O Decreto n 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei de LIBRAS n 10.436 de 24 de abril de 2002 revela o modelo patolgico da surdez ao definir o surdo como:

Art. 2. Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experincias visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Lngua Brasileira de Sinais - Libras. Pargrafo nico. Considera-se deficincia auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequncias de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.). (DECRETO n. 5.626 de 22 de dezembro de 2005)17.

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O modelo patolgico descreve a viso que os mdicos possuem quando se trata da surdez, pois para eles a surdez vista como uma deficincia e/ou uma doena para que h cura. Tambm entendido como disciplinamento do comportamento e do corpo para que os surdos sejam aceitveis sociedade (SKLIAR 2005, p.10).16

O modelo antropolgico descreve a surdez em termos contrrios s noes de patologia e de deficincia; porm, no esclarece o fato de que a surdez esteja efetivamente incorporada ao discurso da deficincia, sendo isto constitudo como uma constatao (SKLIAR, 2001, p.10). Cabe entender que a noo patolgica da surdez leva a ver o surdo como doente por causa da ausncia da audio, e que o surdo tem a possibilidade de ser curado, de voltar a ouvir, caso da viso da maioria dos mdicos viso clnica.17

Decreto que Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispe sobre a Lngua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. O Presidente da Repblica, no uso das atribuies que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituio, e tendo em vista o disposto na Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, e no art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponvel em:

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Inmeros conceitos sobre a surdez por vezes inferiorizam a pessoa surda, utilizando terminologias para nome-los como incapaz, deficiente, surdo-mudo, doente, conceitos estes que ainda so discutidos pelos surdos quando se encontram em ambientes pblicos que no levam em considerao as particularidades desse grupo. Essas terminologias se enquadram em uma viso patolgica, na qual o surdo se situa somente como um conceito mdico, sem serem levadas em conta sua lngua e cultura. Em se tratando deste trabalho, o surdo especificamente observado e analisado diante da prtica do psiclogo ser o surdo sinalizante. Isso porque este utiliza a lngua de sinais e dispe de menor possibilidade comunicativa que outro surdo que tenha o entendimento da lngua oral. O significado utilizado para o termo surdez, encontrado em um dicionrio de psicologia, demonstra uma viso antiga e equivocada pois h literaturas que ressaltam a capacidade de pessoas surdas afirmando o sujeito surdo como um ser incapaz, sem condies de ter uma vida compatvel com a dos sujeitos ouvintes. Vale enfatizar que o termo surdo-mudo no aceito pela comunidade surda, pois o vocbulo surdo caracteriza aquele que no escuta, e mudo denomina o que no fala. A seguir, o conceito de surdez encontrado no dicionrio de psicologia:Surdo-mudez: surdez congnita ou precoce que impede a aquisio normal da linguagem. Por meio de uma pedagogia especial, os surdos-mudos18 podem adquirir, a partir de cinco ou seis anos, uma linguagem gestual que eles usam entre si, e tambm podem empregar, em parte, a linguagem oral. As crianas surdas-mudas conhecem menos palavras que as crianas ouvintes da mesma idade. At a idade de seis meses, suas vocalizaes quase no se diferenciam das daquelas que ouvem. Essas crianas so menos bem-sucedidas que as ouvintes nas experincias sobre a percepo de figuras complexas que envolvem designaes verbais, e tambm nas experincias sobre a extenso dos conceitos. O pensamento operatrio, porm, desenvolve-se nelas com menos atraso que nos cegos. J. Piaget, em razo de sua opinio a respeito do carter subordinado da linguagem no desenvolvimento operatrio, tende a enfatizar os resultados que minimizam esse atraso. As observaes recentes contribuiriam para acentuar ainda mais a importncia do trabalho de Piaget. Enfim, bom salientar que a linguagem dos surdos-mudos empregada nos Estados Unidos (ASL. Ameslan ou American Sign Language) pode ser ensinada, com certo sucesso, para os chimpanzs (DORON & PAROT, 2002, p. 735).

http://portal.mec.gov.br/seesp/index2.php?option=content&do_pdf=1&id=122&banco. Acesso em: 07 de maio de 2009.18

A expresso surdos-mudos, nesse trecho, permanece em razo do conceito que apresentado pela rea da psicologia. Porm, neste trabalho, quando estiver me referindo aos surdos apresentarei a nomenclatura sujeitos surdos.

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O dicionrio de psicologia, a partir da teoria de Piaget, traduz somente o que a criana surda no consegue fazer. No apresenta seu desenvolvimento tal como uma criana ouvinte, e ainda mostra que por meio de uma pedagogia especial, os surdos-mudos podem adquirir, a partir de cinco ou seis anos, uma linguagem gestual que eles usam entre si, e tambm podem empregar, em parte, a linguagem oral (DORON & PAROT, 2002, p. 735). Destaca-se a observao sobre a forma de compreenso da linguagem oral19 que pode no ser necessariamente a forma de uma criana surda se expressar. Tambm, ainda citada a aprendizagem da lngua de sinais, nesse caso a lngua de sinais americana ASL, por chimpanzs, sendo uma maneira de desqualificar as lnguas de sinais utilizadas pelas comunidades surdas em todo o mundo. Sabe-se da existncia de psiclogos que possuem essa viso, mas tambm h outros conscientes de que ela no est de acordo com os sujeitos surdos. Ou melhor, alm dos psiclogos h tambm outros profissionais da rea da sade com a mesma viso de que o termo como foi usado para denominar a surdez no adequado aos sujeitos surdos. Complementando a citao do dicionrio de psicologia, h o conceito de surdez na rea da psicologia:

A surdez no permite criana adquirir palavras e, desse modo, seu pensamento concreto. Conceitos abstratos como vida, amor, ordem, justia, caridade, eletricidade, personalidade e outros tantos no podero ser formados pela criana se ela no receber ajuda de professores especialistas nesse tipo de educao [...] (LANNOY, s/d, p. 144).

Em se tratando das duas citaes, o conceito sobre surdez rotula o sujeito surdo como incapaz, tanto social quanto psicologicamente. Porm necessrio lembrar que, na realidade, o que se vivencia diferente do conceito exposto; atualmente, o surdo tem deixado de ser visto como um margem da sociedade, para constituir-se em um sujeito dotado de direitos e deveres, como qualquer outro. Portanto, importante destacar que na rea da psicologia no h conceito definido sobre a surdez, pois uma rea do conhecimento especifica no pode definir uma concepo especfica. Com relao aos espaos pblicos, as dificuldades tambm se situam na comunicao; as dificuldades que os profissionais da rea da sade encontram situam-se no despreparo para lidar com esses sujeitos, pois a comunicao essencial no momento da

19

Os termos usados na citao de Doron & Parot linguagem gestual e linguagem oral no so apropriados para a lngua de sinais e a lngua portuguesa. Lngua e linguagem possuem conceitos diferentes, no devendo ser colocadas como semelhantes.

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interveno, para captar a sua queixa. Ser possvel verificar, no decorrer da leitura, os diferentes conceitos de surdez, o que ser surdo, comunicao e cultura dos sujeitos surdos. Alm do modelo patolgico, h tambm o ponto de vista dos ouvintes sobre os surdos. Os ouvintes apresentam um discurso sobre os sujeitos surdos: pessoas que vivem isoladas, por vezes fechando-se em guetos, interagindo quando h interao apenas com a famlia ouvinte, no buscando relacionar-se socialmente. Skliar (2005) mostra que as crianas e os adultos surdos no interagem entre si, e tambm que a educao apresentada nas escolas possui diferentes objetivos a cumprir com esses sujeitos. No caso das crianas surdas, elas passam a maior parte do seu tempo em clnicas ou com a famlia ouvinte. Os surdos adultos so isolados, como forma de evitar que interajam com as crianas surdas pelos gestos, para que estas possam somente aprender a falar. Nota-se que h pouca interao entre eles; e, com isso, os sujeitos surdos:

[...] finalmente, sendo catalogados no apenas como no-ouvintes, mas como autistas, psicticos, deficientes mentais, afsicos e esquizofrnicos. Estes esteretipos sobre os surdos no podem ser considerados inocentes e, seguindo a concepo de Stam e Shohat (1995), contm formas opressivas, que permitem um controle social eficaz e determinam, exatamente, uma devastao psquica sistemtica nos surdos. (SKLIAR, 2005, p. 21)

Mas os sujeitos surdos so assim? Autistas, psicticos, deficientes mentais, afsicos e esquizofrnicos? Mais uma vez, enfatiza-se o no conhecimento dos profissionais sobre a lngua de sinais, o que pode gerar dificuldades durante a interveno. Isto, como afirma Sol (2005), faz com que os profissionais mais desavisados que no possuem esse conhecimento diagnostiquem equivocadamente o sujeito surdo como possuidor de tais caractersticas. Antes de conceituar o que surdez e o que ser surdo, necessrio conhecer as limitaes e as competncias do sujeito. Os surdos e os ouvintes so diferentes, mas ao mesmo tempo so iguais; a diferena que os dois possuem a experincia auditiva para os ouvintes e a visual para os surdos (SILVA, 2000). Nota-se com os dois conceitos de surdez de campos distintos modelo clnico e antropolgico que os ouvintes aparentam manter uma viso errnea sobre os surdos. Mas, ao mesmo tempo, no uma viso equivocada, pois a sociedade oprime os direitos do surdo em relao identidade surda e o espao no mundo em que se utiliza a primeira lngua Lngua de Sinais Brasileira LIBRAS. Esta lngua foi oficializada no Brasil, mas, infelizmente, os ouvintes possivelmente aparentam no ter conhecimento adequado da

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oficializao e sustentam o estigma de que o surdo precisa aprender a falar na lngua dos ouvintes. Diferente da viso patolgica, a comunidade surda possui grupos diversos de sujeitos, tais como: surdos sinalizantes, bilngues, oralizados, DA20, implantados21 e surdocegos. Estes termos so utilizados na viso cultural e lingustica; porm, um surdo nunca interage somente com um grupo, sempre procura interagir com os diversos grupos. Skliar conceitua a surdez demonstrando que a experincia visuo-espacial do sujeito surdo o faz perceber o mundo. Diferenciando da experincia do ouvinte, que se comunica com base nas trocas orais, tendo ao longo de sua vida a experincia oral-auditiva:

A surdez uma experincia visual [...] e isso significa que todos os mecanismos de processamento de informao, e de todas as formas de compreender o universo em seu entorno, se constroem como experincia visual. No possvel aceitar, de forma alguma, o visual da lngua de sinais e disciplinar a mente e corpo das crianas surdas como sujeitos que vivem uma experincia auditiva. (SKLIAR, 2005, p. 27-28)

Aparentemente, h uma imposio dos ouvintes para que a criana surda tenha a mesma experincia auditiva que eles, o que logicamente no vivel, pois como no possui a audio ela no tem como adquirir tal experincia. Tambm h uma concepo discriminatria por parte dos ouvintes e, para eles, Ser ouvinte ser falante e , tambm, ser branco, homem, profissional, letrado, civilizado, etc. ser surdo, portanto, significa no falar surdo-mudo e no ser humano. (SKLIAR, 2005, p. 21). De acordo com a citao de Skliar, os surdos, assim como os ouvintes, possuem gnero, profisso, classe, etnia, fato que prticas sociais ouvintistas parecem ignorar, reduzindo a pessoa surda ao esteretipo. Sujeitos surdos so singulares como qualquer outro, no podendo ser enfatizados pela viso patolgica. preciso compreender que o conceito de surdo no mbito cultural lingustico. Tal como Sacks expe:Ser surdo, nascer surdo, coloca a pessoa numa situao extraordinria; expe o indivduo a uma srie de possibilidades lingusticas e [...] a srie de possibilidades intelectuais e culturais que ns, outros, como falantes nativos [...] no podemos sequer comear a imaginar. (SACKS, 2007, p. 129-130)

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DA: sigla de deficiente auditivo. Termo utilizado por algumas pessoas para classificar os sujeitos surdos que possuem algum resqucio de audio e com o auxilio do aparelho auditivo possuem capacidade em captar sons e podem ser ou no sinalizantes.21

Implantados: se refere a pessoas que possuem implante coclear.

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Definir o surdo como sujeito cultural dar-lhe caractersticas, v-lo como parte de uma comunidade, a comunidade surda, que lingustica e culturalmente completa. Alm de articul-lo a uma sociedade a qual se vincula comunidade citada. Ento, o que o sujeito surdo para a comunidade ouvinte? O surdo sujeito patolgico surdez como doena e marcado na sociedade tambm pela deficincia, pela falta de um dos sentidos fisiolgicos do ser humano a audio; essa ausncia leva-o a ser considerado um ser incapaz? Como no ser humano? Tal como o autor citado apresenta, os surdos, assim como os ouvintes, possuem vida ativa, angstias, sofrimentos e um deles o sofrimento psquico. Foram apresentados os conceitos de surdez at aqui; agora se verificar um pouco como os surdos se sentem ao descobrir que existe uma lngua prpria para a sua comunidade. H uma pesquisa realizada por Dalcin (2006) com trs surdos adultos, filhos de pais ouvintes, que adotaram a lngua de sinais na adolescncia. O objetivo da pesquisa foi investigar como a cultura familiar colabora para a formao da subjetividade do sujeito surdo. Pois muitos dos surdos entrevistados apresentaram uma dificuldade em:

[...] lidar com o simblico, com a cultura familiar, com as regras estabelecidas e com os valores institudos. Tambm houve a percepo de que a compreenso dos assuntos abordados circulava em uma dimenso mais concreta, mais centrada no corpo, menos metaforizada, em que diversos temas eram concebidos ao p da letra. (DALCIN, 2006, p. 188)

O sujeito surdo, ento, ao estar inserido em uma comunidade ouvinte, apresenta dificuldades na convivncia com a sua famlia, com as pessoas com que se depara em ambientes externos, em uma roda de amigos onde h aqueles que no se comunicam por meio da lngua utilizada pelos surdos. E com os trs sujeitos surdos da pesquisa de Dalcin verificase que h o antes e o depois do encontro destes com a comunidade surda e a lngua de sinais. Um deles relata como se sentia antes da descoberta da lngua de sinais:

Antes era calado. Era um silncio total. Eu no aprendi nada durante muito tempo. S havia bocas abrindo e fechando. Eu era triste, diferente. No era s eu. Todos os surdos eram iguais. Surdo no participava de nada, no dava opinio, no aprendia. (DALCIN, 2006, p. 192)

O relato acima demonstra o sentimento do surdo quando no se sentia capaz de se apropriar da lngua materna de sua famlia ouvinte a lngua oral. Ao tentar se comunicar em uma lngua que no era a dele existia sofrimento e desconforto por no haver uma compreenso adequada do dilogo tanto por parte dele quanto dos ouvintes. Segundo Dalcin,

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como foi dito anteriormente, os surdos no possuem uma compreenso metafrica da lngua falada, seguindo, muitas vezes, as palavras ao p da letra. Na maioria das vezes os ouvintes no lhes explicam o significado do que est sendo exposto, sendo um contexto ou uma palavra, o que dificulta muito o entendimento do sujeito surdo quando os ouvintes utilizam uma linguagem metafrica ou expresses como s idiomticas. Porm, o sujeito surdo mantm uma barreira comunicacional devido diferena lingustica entre surdos e ouvintes. H metforas na prpria lngua de sinais, como h em qualquer lngua. O entendimento lingustico do surdo no pode ser imposto pela lngua oral, mas se vincula, sim, a um entendimento da lngua de sinais. Ento, como os profissionais focando os psiclogos pensariam na interveno psicoteraputica dos sujeitos surdos? Como acontece o processamento psicossocial22 desse sujeito? preciso lembrar que, possivelmente, os profissionais desconhecem a dinmica da interao com esses sujeitos. Se a lngua de sinais no faz parte do cotidiano do profissional, como planejariam uma interveno clnica e psicoteraputica? Dependendo do nvel de conhecimento lingustico que o sujeito surdo apresenta poder o psiclogo necessitar intervir de maneira mais visual do que verbal. Mas, como intervir de maneira visual quando falamos de emoes, sentimentos, perdas? Dvida que se apresenta sem resposta adequada. Mas, se os surdos no tinham uma compreenso abstrata, seguiam ao p da letra, ento como conseguiam se comunicar com tais familiares? Sim, havia comunicao entre eles, mas utilizavam ou gestos caseiros23 ou uma linguagem composta por palavras simples apenas para inform-lo de determinados assuntos que, muitas vezes, eram bastante resumidos. Relatam tambm que, com o passar dos anos, o isolamento social aumentou cada vez mais, fazendo-os se sentirem solitrios; com isso, a separao entre surdos e ouvintes ficou mais ntida, reforando a excluso dos no ouvintes na comunidade ouvinte (DALCIN, 2006, p.198). Muitas vezes, o sujeito surdo era tratado de acordo com ele no fala, mas falado pelos outros (DALCIN, 2006, p, 199), mas isto ocorria antes de ele ter a aquisio da

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Psicossocial refere-se ao desenvolvimento psicolgico e social do sujeito, sendo ele surdo ou no. Desenvolvimento que se fundamenta no processamento das caractersticas cognitivas, de interao e recepo do meio social em que o sujeito em questo vive.23

Quando aborda sobre gestos caseiros, trata-se de sinais criados pelos familiares e/ou amigos para obter uma comunicao com o sujeito surdo. utilizada para uma tentativa de comunicao facilitada, quando um dos sujeitos envolvidos no apresenta conhecimento da lngua de sinais ou da lngua oral.

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lngua de sinais. Emmanuele Laborit em seu livro O vo da Gaivota24 define bem essa situao que muitos dos surdos vivenciam, como pode ser encontrado na nfase de Dalcin:

At ento, falava de mim como se fosse uma outra pessoa, uma pessoa que no era eu. Diziam-me sempre: Emmanuele surda. Ou ento: Ela o escuta, ela no o escuta. No havia o eu. Eu era ela (p.51). E mais adiante: O primeiro, o imenso progresso em sete anos de existncia acabara de acontecer: eu me chamo EU (p.53). (LABORIT apud DALCIN, 2006, p. 199)

Os sujeitos surdos no eram vistos como um ser igual aos ouvintes por falta da lngua oral; eles tiveram que batalhar para ser aceitos na comunidade ouvinte, mesmo no conseguindo se adaptar ao que a famlia acreditava ser vivel ao surdo. Os surdos perceberam que havia ausncia de conhecimentos e informaes em diversos assuntos, por parte da sua famlia, que na verdade pautava sua educao a partir daquilo com que os profissionais, fossem da rea da sade ou da educao, os orientavam. Porm, com a descoberta da lngua de sinais a curiosidade dos surdos se ampliou. Pode-se verificar no relato de Emmanuele Laborit o que ela sentiu depois da descoberta da lngua de sinais e da comunidade surda:

Com a descoberta da minha lngua, encontrei a grande chave que abre a porta que me separava do mundo. Posso compreender o mundo dos surdos, e tambm o mundo dos ouvintes. Compreendo que esse mundo no se limita a meus pais, que h outros tambm interessantes. No tinha mais aquela espcie de inocncia de antes. Encaro as situaes de frente. Tinha construdo uma reflexo prpria. Necessidade de falar, de dizer tudo, de contar tudo, de compreender tudo. (...) Tornei-me falante. (DALCIN, 2006, p. 204)

A lngua de sinais muda a vida dos surdos. Faz com que se tenha mais participao na comunidade surda e uma vida mais ativa. H mais interaes com outras pessoas nas escolas, no trabalho e nos contatos sociais, passando a ter maior acesso s informaes que ocorrem no pas e no mundo. Identifica-se assim o quanto a lngua de sinais importante para a comunidade surda, pois com a lngua prpria eles tm oportunidade de mostrar o eu para outras pessoas, evitando que o outro fale por ele. Sacks (2007) comprova o que foi dito acima ao dizer que o sujeito surdo, conhecendo a lngua de sinais, torna-se intelectualmente mais desenvolvido, possibilitando a ampliao dos conceitos, e assim liberta a mente aprisionada (DALCIN, 2006). Nesse caso, como os psiclogos realizariam a escuta do sujeito surdo se normalmente a famlia do surdo est sempre falando por ele? Como se comunicaria com o sujeito surdo? Pois, o sujeito surdo, por exemplo, sinalizante, tem a capacidade de se expressar por meio dos sinais, mas os24

LABORIT, Emmanuelle. O vo da gaivota. So Paulo: Best Seller, 1994.

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psiclogos que no utilizam e no compreendem a lngua de sinais iro priv-lo de se expressar. Se o surdo oralizado ou com implante coclear, ambos no sinalizantes, esto diante de um psiclogo no conhecedor da lngua de sinais, tero possibilidades diferentes dos surdos sinalizantes. Aqui no se fundamenta uma comparao, mas sim uma diferenciao; cada surdo se expressa da forma com que tenha mais fluncia e segurana lingustica. Assim como h diferentes pessoas h tambm lnguas diversas. O profissional, compreendendo essa situao, dever se disponibilizar no auxlio ao sujeito surdo da melhor forma possvel, em termos lingusticos e sociais. O grau lingustico do sujeito surdo pode vir a ser um obstculo para os profissionais, pois s vezes no possvel utilizar a escrita com os surdos sinalizantes durante o atendimento; isto faz perceber que uma das estratgias de comunicao utilizada com o surdo pode no obter sucesso, necessitando-se ento recorrer a outra, mais adequada, na interveno psicoteraputica, como por exemplo, os desenhos, gestos, atividades ldicas, dramatizao, entre outros, dependendo da especificidade do sujeito e do caso. A comunicao essencial ao desenvolvimento e expresso do surdo, o que pode ser observado em:A comunicao por comportamento motor tornou-se uma parte importantssima da transferncia [...] Sem saber, eu estava recebendo simultaneamente dois conjuntos de comunicao: um em palavras, a forma na qual o paciente se comunicava usualmente comigo, e outro em gestos [sinais], como o paciente se comunicava. [...] Em outras ocasies durante a transferncia, os smbolos motores representavam uma interpretao do texto verbal que o paciente estava comunicando. Aqueles smbolos motores continham material adicional que aumentava ou, mais provavelmente, contradizia o que estava sendo comunicado verbalmente. [...] (ARLOW apud SACKS, 2007, p. 47)

Ao surdo sinalizante, muitas vezes, possvel utilizar a lngua oral no atendimento psicoteraputico, mas pode ocorrer que ele perceba que o que est pensando no condiz com a lngua oral. O que pode causar perdas no processo psicoteraputico, pois os psiclogos s possuem os relatos orais destes sujeitos para estudar o caso, o que levaria a uma dissociao ou duplicidade dos relatos do surdo. Em se tratando da comunicao lingustica, Gos revela que a comunicao fundamental. Tanto que a lngua que d ao surdo a capacidade de se afirmar como sujeito lingustico:Nas relaes do indivduo com o grupo social, a linguagem fundamental. A palavra veio, num nvel mais geral, a caracterizar a condio humana. Em termos mais especficos, na ontognese, a linguagem tem a funo de regular as aes e de

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propiciar a conduta intencional humana. Atravs da linguagem, o indivduo prepara um ato a ser consumado. (GOS, 2000, p.118)

possvel verificar a importncia da lngua para o sujeito surdo; e necessrio que os profissionais da rea da sade, inclusive os psiclogos, saibam a primeira lngua do sujeito para poder minimizar a ansiedade e as barreiras atitudinais comunicativas. Vygotski mostra que as relaes sociais so constituintes do sujeito, ou seja, nos tornamos ns mesmos atravs dos outros [...] e eu sou uma relao social de mim comigo mesmo (VYGOTSKI apud GOS, 2000, p.122). E ainda afirma que:[...] a construo social do indivduo uma histria de relaes com outros, atravs da linguagem e de transformaes do funcionamento psicolgico constitudas pelas interaes face a face e por relaes sociais mais amplas (que configuram lugares sociais, formas de insero em esferas da cultura, papis a serem assumidos etc.). (GOS, 2000, p.122)

Por muitos anos, visando a necessidade de comunicao, os sujeitos surdos procuraram adaptar-se comunidade ouvinte sem obter sucesso, chegando ao isolamento social imposto pela lngua. Mas ser que os ouvintes no poderiam tambm se adaptar um pouco comunidade surda quando encontrassem um de seus componentes? Pois, com isso haveria uma troca mtua entre as partes, sem prejuzo para o sujeito surdo ou para o sujeito ouvinte. Tambm, essa aproximao dos ouvintes com a comunidade surda permitiria aos primeiros conhecer e experimentar o cotidiano desses sujeitos, suas atividades, estudo e/ou trabalho, sucessos e insucessos, ganhos e perdas, incluso e excluso; enfim, poderiam vivenciar um pouco esta realidade para saber como se relacionar com esses sujeitos, a partir da maneira como eles percebem o mundo, aprendendo ao mesmo tempo, com os surdos, a lngua de sinais. No seria possvel para os psiclogos que esse experimentar o cotidiano com os surdos fosse uma maneira de refletir e organizar adequadamente suas intervenes clnicas com esses sujeitos? Para uma melhor compreenso do ponto de vista dos psiclogos sobre o sujeito surdo, Harlan Lane, psiclogo americano, elabora uma lista de adjetivos e caractersticas dos sujeitos surdos por meio da investigao psicomtrica; os adjetivos e caractersticas relacionados so agressividade, depresso, imaturidade, exploso, etc. que no so descries objetivas, mas esteretipos que ele define como paternalismo. (LANE apud SOL, 2005, p.32). Tal viso vinculada ao assistencialismo e ao paternalismo, nos quais o ouvinte v o surdo como ser faltante e suas queixas diagnosticadas como o que foi descrito

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por Lane. O que no reflete a realidade do surdo, que possui caractersticas contradizentes a essa viso, e no se deve ignorar a cultura, identidade e a lngua de sinais do sujeito surdo. E por mais que se disponha de conceitos e caractersticas, sempre haver algo a ser descoberto, interpretado. Cultura, sujeitos surdos e lngua de sinais so conceitos que mantm a possibilidade de caminhos diversos, porm sempre interligados ao que se vive na sociedade. E tal sociedade sempre opinar, uma vez que impossvel separar cultura do que se vive. Portanto, todas as interpretaes possveis sobre o que convencionamos chamar de surdez so interpretaes sempre culturais. (LOPES, 2007, p.07)

2.2. A PSICOLOGIA E A SURDEZ

A surdez tornou-se um tema de interesse de vrios profissionais, porm, verificase que h poucas pesquisas sobre Psicologia e Surdez, e h autores como Sol (2005), Meynard (1995) e Lane (1992) que afirmam a existncia de psiclogos que no aceitam uma psicologia da surdez, enfatizando que a escuta de pessoas surdas no uma especialidade nem necessita de um profissional especializado, porm a competncia do psiclogo na lngua do sujeito surdo necessria para a escuta. Sol afirma que no existe uma psicologia da surdez ou que necessite de uma tcnica muito especial de tratamento ou de uma abordagem terica diferenciada e, portanto, ainda por ser descoberta. (SOL, 2005, p. 72). Dizer que no h uma psicologia da surdez remete ao fato de que na maioria das vezes o profissional est voltado para um treinamento da fala e da oralidade, numa tentativa de normalizao. Isto era, e ainda , especfico dos educadores. Como se somente o educador fosse responsvel pelo surdo, tirando do psiclogo algumas responsabilidades. Educar no compreenderia, assim, o conceito que engloba conhecer, descobrir, aprender ou ensinar, mas sim tratar o surdo como um ser que fundamentalmente precisaria aprender a ser como o ouvinte. H vrios tipos de surdez, que variam desde o grau de comprometimento auditivo variao lingustica usada pelo surdo; com isso, h uma prtica teraputica para cada surdo e necessita-se ver o sujeito no como um s, mas cada sujeito surdo com suas especificidades. H sujeitos surdos, por exemplo, que apresentam grau de comprometimento auditivo leve e tm capacidade de se comunicar pela lngua oral; outros apresentam grau de comprometimento auditivo profundo e se comunicam por meio da lngua de sinais.

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Instigados pela famlia, alguns surdos se submetem a tratamento fonoaudiolgico com a inteno de se promover uma terapia da fala. Apesar dessa presso familiar, comum encontrar surdos com graus de comprometimento auditivo variados utilizando a lngua de sinais, por conta dos custos altos do tratamento com fonoaudilogo. Essa presso familiar vem da medicalizao; a famlia, no conhecedora do que o sujeito surdo e seus aspectos lingusticos e culturais , aceita diretamente o que a sociedade impe como correto a normalizao e oprime o surdo ao descartar, ou ao menos tentar descartar, a lngua de sinais e, com isso, as suas possibilidades de desenvolvimento intelectual e psicolgico. H pesquisas que comprovam o grau de comprometimento do desenvolvimento psicolgico das crianas surdas em comparao com crianas ouvintes, pela ausncia da audio, da aquisio lingustica, como afirma a investigao de Conrad (apud MARCHESI, 1995). Para isso, Conrad selecionou trs grupos de crianas surdas: com os critrios de surdez congnita, surdez adquirida desde o nascimento at os trs anos e surdez adquirida aps os trs anos. Para cada grupo formado analisou-se que as crianas com a surdez adquirida tardiamente apresentaram uma experincia melhor com o som e com a linguagem, facilitando o desenvolvimento lingustico, pois:[...] a influncia da experincia lingustica dos trs primeiros anos to pequena [...] e sua competncia lingustica demasiadamente frgil, no tendo ocorrido uma organizao da funo neurolgica. Ao contrrio, as crianas cuja surdez ocorre depois dos trs anos tm uma dominncia cerebral mais consolidada e podem manter sua linguagem interna. (MARCHESI, 1995, p. 199).

Para isto, importante os psiclogos entenderem o grau da perda auditiva do sujeito surdo antes de realizarem o atendimento, a fim de que possam atender s necessidades de cada um. Identificam-se tambm as reaes dos pais ao tomar conheci