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  • A histria social anglo-americana desde 1945*

    Charles TillyTraduo de Otaclio Nunes

    A histria social examina mudanas em instituies e estruturas relevantes ou consequncias dessas mudanas. Ela pesquisa famlias, sistemas de pa-rentesco, comunidades, religies, mercados, firmas, indstrias, populaes, governos e muito mais. Alguns historiadores sociais concentram-se em re-construir experincias do viver em tempos e lugares especficos, por exemplo na Constantinopla imperial, na Florena do Renascimento, na Berlim nazista ou no Oeste americano durante o sculo xix. Outros delineiam padres sociais amplos, tais como fluxos de migrao e distribuies geogrficas das cidades. Mas a maior parte da histria social lida com macromudanas na vida social e suas consequncias para indivduos, famlias ou relaes interpessoais de pequena escala. Ela vivifica a mudana social.

    Em geral, a histria social difere dos campos parcialmente sobrepostos da histria intelectual e da histria cultural por atribuir considervel eficcia causal a estruturas, processos e mudanas sociais. Difere da histria poltica, na mdia, por sua insistncia em embutir a poltica nos contextos sociais. Difere do campo da histria econmica, a ela estreitamente ligado, por examinar interaes de duas vias entre processos econmicos e experin-cias sociais. Sua misso centra-se nos engajamentos individuais e coletivos na mudana social. Tal misso inclina os historiadores sociais oscilao e luta perptuas entre diferentes variedades de idealismo e realismo. Na perspectiva francesa de Descimon:

    * Captulo 14 de Explai-ning social processes, de Charles

    Tilly (Paradigm Publisher,

    2009). Agradecemos a Dean

    Birkenkamp, da Paradigm

    Publisher, e a Chris Tilly, pela

    famlia Tilly, a autorizao para

    republicar este texto.

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    O chamado retorno aos eventos se reduz com frequncia a uma reao contra a His-

    tria Total de Fernand Braudel. Ele encoraja duas estratgias explicativas diferentes:

    um modelo reduzido de ao humana racional em termos de custos e benefcios

    esperados ou a criatividade sem regras da histria virtual [...]. Enfrentamos assim

    um dilema, uma escolha entre reducionismo baseado em raciocnio econmico e

    interpretao ps-moderna que leva ao reconhecimento de impotncia intelectual.

    S a anlise emprica (os eventos realmente importam!) fornecer uma sada do

    impasse ao qual a falsa oposio entre histria social e histria dos eventos nos levou

    (Descimon, 1999, p. 319).

    Descimon est descrevendo a verso mais atualizada de um dilema muito antigo para historiadores sociais. A histria social anglo-americana depois de 1945 expe com abundncia a oscilao e a luta intelectual entre os dois pontos de vista.

    Como a histria social na Frana e em outros lugares, a histria social profissional nas Ilhas Britnicas e na Amrica do Norte comeou com um esforo triplo:

    Reduzir a fixao dos historiadores gerais em lderes, eventos e instituies

    polticos vistos das alturas do poder. Investigar as bases sociais e econmicas da poltica pblica.

    Tomar as pessoas comuns e a vida social rotineira como objetos de estudo

    social srio.

    Essas caractersticas marcaram a agenda da histria social anglo-americana desde o incio do sculo xx.

    Tomada como o estudo histrico da mudana social, a histria social anglo-americana contribuiu para a histria em geral de vrias maneiras. Elevou o estudo da comunidade local de pequena pesquisa antiquria a modo importante de investigao histrica. Deslocou processos sociais, como migrao, crescimento populacional, industrializao e urbanizao, da condio de influncias invocadas vagamente antes de empreender as histrias de elites, ideias e polticas nacionais para a condio de objetos de investigao histrica detalhada e causas potenciais de eventos nacio-nais. Incorporou procedimentos e achados das cincias sociais ao corpo de prticas, evidncias e argumentos histricos. Acostumou a maioria dos historiadores gerais das Ilhas Britnicas e da Amrica do Norte a especifi-car e diferenciar os termos ao usar abstraes como o povo, massas ou

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    Charles Tilly

    mesmo trabalhadores. Fez as relaes variveis entre detentores de poder e diferentes categorias de pessoas comuns terem importncia para explicaes de mudana histrica.

    Depois de 1945, trs inovaes interconectadas na prtica histrica his-tria dos vencidos, exame exaustivo de registros organizacionais e biografia coletiva promoveram a influncia da histria social sobre a histria em geral. A expresso histria from the bottom up parece ter se originado com Frederick Jackson Turner, historiador da fronteira americana (cf. Novick, 1988, p. 442). Os historiadores britnicos no mais das vezes chamavam a mesma abordagem de histria a partir de baixo [history from below]. Ambas as expresses transmitem uma atitude: a insistncia em que pessoas com relativamente pouco poder tm pontos de vista prprios, que esses pontos de vista merecem ateno histrica, que coletivamente e de modo incremental pessoas comuns fazem histria. Histria a partir de baixo tambm designa a prtica de reunir evidncias sobre como pessoas comuns de fato viveram grandes mudanas e conflitos sociais. Historiadores de esquerda como J. L. e Barbara Hammond (por exemplo, Hammond e Hammond, 1917), por certo, haviam se concentrado na experincia de pessoas comuns muito antes da Segunda Guerra Mundial. Depois de 1945, essa tornou-se uma das grandes preocupaes de toda a histria social.

    A evidncia e seus usos

    Os historiadores sociais do popular enfrentavam, porm, um problema. Diferentemente das pessoas ricas, poderosas e intelectualmente proeminen-tes, seus objetos de estudo deixaram poucas cartas, dirios, autobiografias ou declaraes pblicas. Como os historiadores poderiam reconstruir as experincias dessas pessoas? O esquadrinhamento de registros organiza-cionais forneceu grande parte das evidncias. Antiqurios, historiadores locais e genealogistas por muito tempo haviam buscado nos recessos e nas fendas dos registros organizacionais vestgios de pessoas que no deixavam nenhuma narrativa de sua vida. Registros de nascimentos, mortes e casa-mentos; arquivos de cartrios; peties; transcries de julgamentos; listas de empregados; questionrios de censo; relatrios policiais; livros de ma-trcula escolares; e resduos organizacionais similares registram a passagem de pessoas comuns por diferentes fases de sua vida. Depois da Segunda Guerra Mundial, historiadores sociais anglo-americanos juntaram-se a seus semelhantes em todos os lugares no esquadrinhamento desses registros, em

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    busca de informaes sobre como pessoas esquecidas vivenciaram migrao, industrializao, urbanizao e outras mudanas sociais de grande alcance.

    A biografia coletiva tornou essas investigaes viveis para mais que um punhado de pessoas. Ela consiste em reunir informaes uniformes sobre mltiplas unidades sociais indivduos, domiclios, bairros, empresas, as-sociaes, e assim por diante para agregao e comparao. Torna-se um procedimento poderoso quando os investigadores combinam observaes de diferentes fontes relativas s mesmas unidades sociais, por exemplo, seguindo indivduos de um censo ao seguinte ou de folhas de pagamento de firmas a registros de casamento. Esse movimento de uma fonte a outra (normalmente chamado de encadeamento nominal de registros [nominal record linkage]) aumenta histrias de vida parciais ou descries de grupo a despeito da escassez de informaes individuais em algum documento especfico.

    A biografia coletiva estende-se facilmente de indivduos a organizaes, localidades e eventos. Na histria social anglo-americana, dois tipos de evento os do ciclo vital e os de confrontao atraram o maior esforo. Falando em termos estritos, eventos do ciclo vital incluem nascimentos, doenas e mortes. Por extenso, tambm abrangem mudanas de localizao social como casamento, divrcio, migrao e perda de emprego. Registros de eventos do ciclo vital muitas vezes incluem descries sociais das partes bem como de testemunhas, o que significa que fornecem informaes sobre vnculos sociais. claro que se podem reunir relatos desses eventos para formar histrias de vida de indivduos, famlias ou domiclios. Mas tambm possvel examin-las como agregados, por exemplo, calculando flutuaes nas taxas de natalidade e depois relacionando essas flutuaes a variaes em outros eventos do ciclo vital ou a alteraes em condies no demogrficas (cf. Charles Tilly, 1978; Willigan e Lynch, 1982).

    Similarmente, incidentes de poltica confrontacional prestam-se bio-grafia coletiva, (a) seja reunidos como o equivalente de histrias de vida de localidades, grupos ou questes especficos, (b) seja abstrados para anlise de seus padres gerais (cf. Olzak, 1989; Rucht, Koopmans e Neidhardt, 1998). Os governos britnico e norte-americano, por exemplo, comearam a produzir catlogos oficiais de greves e locautes por volta de 1900; com esforo, esses catlogos convertem-se em biografias coletivas de atividade grevista em qualquer uma dessas modalidades. Outros eventos confronta-cionais como manifestaes pblicas, confrontos violentos, manifestaes de protesto e linchamentos, geralmente exigem uma compilao de sries

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    uniformes extradas, pelo prprio investigador, de jornais, relatrios poli-ciais, correspondncia administrativa e fontes semelhantes. Os historiadores sociais fizeram uma parte de seus trabalhos mais ambiciosos sobre conflitos empregando essas formas de biografia coletiva.

    Depois de 1945, inovaes tcnicas impulsionadas pela guerra foram muito teis histria social. A reproduo fotogrfica barata de fontes e a crescente disponibilidade de computadores eletrnicos facilitaram gran-demente o esquadrinhamento de registros organizacionais e a adoo da biografia coletiva como procedimentos importantes dos historiadores sociais. Incentivos sociais redobraram a atratividade dessas inovaes tcnicas. A grande expanso da educao superior no ps-guerra nas Ilhas Britnicas e, em especial, na Amrica do Norte tanto aumentou o nmero de historiadores quanto alargou as origens de classe dos historiadores profissionais. Muitos historiadores recm-formados adotaram as inovaes tcnicas para estudar como grandes mudanas sociais envolveram pessoas que no pertenciam s classes dominantes com frequncia pessoas semelhantes a seus prprios antepassados.

    A despeito de enormes variaes na terminologia e na nfase, a maioria dos historiadores sociais anglo-americanos que lidam com o perodo que comea em 1500 entendeu por muito tempo que as mudanas relevantes formavam dois grandes agrupamentos que interagiam entre si: o desenvolvi-mento do capitalismo industrial e a criao de governos nacionais poderosos. Assim, os historiadores sociais da famlia perguntaram repetidamente como a industrializao interagia com mudanas na estrutura dos domiclios e como as relaes das autoridades com as famlias pobres alteraram-se com o desenvolvimento de burocracias centrais e Estados do bem-estar. Estudiosos de poltica local dedicavam-se s vezes s mesmas questes, mas com maior frequncia perguntavam em que grau e como a expanso do trabalho as-salariado e o declnio do poder dos patronos locais transformavam as lutas polticas das pessoas comuns.

    Dado que diferentes partes das Ilhas Britnicas e da Amrica do Norte experimentaram o desenvolvimento do capitalismo industrial e a criao de governos nacionais poderosos de modos contrastantes e com cronogramas distintos, tanto o peso relativo quanto o tratamento preciso dessas mudanas variam de um perodo e de um lugar a outro. Vrios grupos nacionais de historiadores entre os anglo-americanos notadamente canadenses, esta-dunidenses, britnicos e irlandeses adotaram portanto agendas um pouco diferentes, conforme a situao de seus prprios pases. Os acadmicos

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    norte-americanos preocupavam-se muito com imigrao e industrializao, os historiadores britnicos, com o passado e o presente do Estado do bem--estar social. Os canadenses despenderam mais esforo que seus vizinhos no estudo das grandes divises culturais, e acabaram por produzir historiografias separadas em francs e ingls. Temas como atraso, opresso, libertao e emigrao aparecem com muito mais fora na historiografia irlandesa do que na inglesa. S uma minoria de historiadores sociais anglo-americanos estudou outras regies que no as Ilhas Britnicas e a Amrica do Norte, enquanto um pequeno nmero de outsiders especializou-se em histria social anglo-americana. Membros de ambos os grupos frequentemente viram-se mediando ou alternando entre agendas prevalecentes na origem e no destino.

    Algumas preocupaes comuns promoveram, no obstante, uma con-vergncia entre historiadores sociais anglo-americanos. No fim da Segunda Guerra Mundial, estudiosos da histria social nas Ilhas Britnicas e na Amrica do Norte enfrentaram situaes polticas amplamente similares. Seus pases haviam emergido relativamente intactos de uma grande guerra. A Depresso e a prpria guerra tinham expandido muito a presena do Estado na vida social e fortalecido a posio dele como garantidor ou pro-vedor de direitos sociais. Com seus compatriotas, os historiadores sociais haviam testemunhado a ascenso e a morte de vigorosos regimes fascistas. Um poderoso bloco sovitico formara-se em torno de sistemas polticos bastante diferentes daqueles dos anglo-americanos, no momento em que teve incio a Guerra Fria. Essas circunstncias introduziram na agenda geral dos historiadores questes sobre as origens e os impactos do autoritarismo, do socialismo e da democracia, sobre as bases da ao de massa, sobre a cidadania e a viabilidade de programas de libertao humana concorrentes. A histria prometia identificar elos entre passado, presente e futuro em todos esses aspectos.

    Marxismo, modernizao e outras teorias

    Influenciada pela agenda da histria geral, a maioria dos historiadores sociais anglo-americanos do perodo imediatamente ps-guerra posicio-nou-se em algum lugar entre dois polos: modernizao e marxismo. A modernizao tinha como centro uma questo enganosamente simples: quando ocorre rpida expanso econmica, o que mais acontece e por qu? (A questo enganosa porque o o que mais podia ser causa, efeito ou estar meramente correlacionado com a expanso econmica; tanto o

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    o que mais quanto a expanso econmica tambm podiam resultar de alguma outra transformao profunda.) As ideias de modernizao diziam respeito s consequncias de mudanas sociais em grande escala, definidas variadamente como industrializao, urbanizao ou disseminao de novas formas culturais. Elas comumente apoiavam-se na premissa de que a industrializao acabaria produzindo uma convergncia mundial sobre algo semelhante estrutura social europeia ocidental ou norte-americana. A histria social inspirada na teoria da modernizao concentrava-se em como pessoas comuns experimentavam essas grandes mudanas sociais, reagiam a elas ou mesmo causavam-nas.

    O marxismo, em contraste, centrava suas investigaes em causas, con-sequncias e fenmenos concomitantes do capitalismo. Durante os anos do ps-guerra, a existncia visvel de grandes potncias socialistas fortaleceu a premissa marxista de que o capitalismo era apenas uma das vrias rotas histricas possveis, e no necessariamente o estgio histrico final. As ideias do marxismo diziam respeito ao desenvolvimento de instituies capitalistas, transformaes da experincia de vida pela mudana econmica e condies para a libertao da populao trabalhadora. A histria social inspirada no marxismo concentrou-se na transio do feudalismo para o capitalismo, no crescimento da indstria de capital concentrado e nas consequncias dessas duas mudanas para a ao coletiva popular. Teoria da modernizao e marxismo coincidiam em tratar a poltica pblica como uma arena forte-mente afetada por processos no polticos e em insistir na importncia de investigar como o grosso da populao experimentava as grandes mudanas sociais. Na medida em que visivelmente revigoravam abordagens antiqurias e reformistas mais antigas da histria social, esses pesquisadores do perodo do ps-guerra influenciaram fortemente a escrita da histria em geral.

    Na dcada de 1990, os termos de discordncia e acordo haviam se alterado fundamentalmente. Embora alguns marxistas e tericos da modernizao consumados tenham sobrevivido, em geral as escolhas dominantes dos historiadores sociais anglo-americanos passaram a variar do reducionismo cultural ou discursivo a variedades concorrentes de realismo. No extremo cultural-discursivo, alguns historiadores sociais trataram o empreendimen-to basicamente como uma luta retrica qual nenhum padro externo de validade podia ser aplicado: nessa viso, interpretaes persuasivas da expe-rincia social passada serviam a fins polticos contemporneos, inclusive a ilustrao geral relativa condio humana. No extremo realista, prevaleceu a segmentao: especialistas em histria econmica, demografia histrica,

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    histria urbana, histria da agricultura, histria da famlia, cultura material e poltica popular extraam, todos, alguma inspirao da histria social ante-rior, mas executavam suas investigaes em substancial isolamento uns dos outros. Todavia, partilhavam um pressuposto geral de que a estrutura social existe, conhecvel e presta-se reconstruo histrica sistemtica. Entre as duas perspectivas, sintetizadores e alguns poucos historiadores gerais tenazes buscavam levar a srio questes da cultura e do discurso ao mesmo tempo em que continuavam a procurar modos vlidos de estabelecer como pessoas comuns experimentam mudanas sociais de grande escala.

    O declnio da teoria da modernizao e do marxismo implicou mu-danas em mtodo, argumento e apresentao. O esquadrinhamento de registros organizacionais, a biografia coletiva e at a histria dos vencidos perderam parte de seu brilho para os historiadores sociais. Crticos atacaram a diviso das pessoas em categorias de classe e a atribuio de propriedades coletivas a essas categorias como reificao injustificada. Muitos histo-riadores sociais comearam a rejeitar o que cada vez mais consideravam explicaes reducionistas em especial, mas no exclusivamente, aquelas baseadas em categorias de classe em favor de interpretaes com foco em motivos, crenas e experincias. E tambm comearam a abandonar o estilo documente e explique da histria social em favor da narrativa. Um marco decisivo ocorreu com o chamado de Lawrence Stone, em 1979, para um retorno narrativa. A interveno de Stone teve peso ainda maior porque ele havia sido um dos grandes defensores e praticantes da biografia coletiva (ou, como ele a chamava, prosopografia). Em vez da sociologia analtica, a etnografia interpretativa tornou-se o modelo preferido por muitos historiadores sociais.

    Esse resumo esquemtico minimiza a centralidade do marxismo po-pular como estilo analtico e objeto de crtica na histria social anglo--americana. Ele corre, apropriadamente, como um fio vermelho ao longo de todo o perodo de 1945 a 2000. No ressurgimento da histria social no ps-guerra, marxistas britnicos como Eric Hobsbawm e George Rud foram pioneiros no estudo das multides, do ativismo poltico local e das consequncias do desenvolvimento capitalista, chegando a inspirar muitos estudiosos da Amrica do Norte (cf. Hobsbawm, 1964; Rud, 1964). Pouco tempo depois, Hobsbawm comeou uma srie de snteses magistrais, pero-do por perodo, da histria britnica e ocidental, organizada em torno de perspectivas marxistas e centrada na histria social; snteses que continuou a produzir at a dcada de 1990 (por exemplo, Hobsbawm, 1975, 1994).

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    Durante a dcada de 1960, Barrington Moore Jr. (uma espcie de mate-rialista histrico, mas com certeza no um marxista estrito) e E. P. Thompson (um vigoroso participante do marxismo britnico) tornaram a formao e a transformao de classes ainda mais centrais para a histria social do que tinham sido antes. Origens sociais da ditadura e da democracia (1966), de Moore, comparava as histrias poltica e social de Inglaterra, Frana, Esta-dos Unidos, China, Japo e ndia (com referncias comparativas frequentes a Alemanha e Rssia), em uma investigao das bases de classe de vrias formas de poltica nacional no sculo xx. A obra forneceu um modelo para comparaes de longas trajetrias polticas nacionais que encorajou alguns historiadores sociais a empreender suas prprias grandes comparaes, e outros a contestar, modificar ou aplicar a abordagem de Moore em seus prprios trabalhos sobre tempos e lugares particulares.

    Dentro da histria social autodefinida como tal, A construo da classe trabalhadora na Inglaterra (1963), de Thompson, teve um impacto fora do comum. Thompson integrou uma gama extraordinria de evidncias liter-rias, polticas e culturais com descries grficas de luta popular ao analisar transformaes da conscincia da classe operria inglesa entre 1780 e 1832. Polemista brilhante, ele atacou tanto o reducionismo materialista de parte de seus colegas marxistas quanto o desdm pela poltica popular de parte de historiadores no marxistas e antimarxistas. E tambm levou adiante a ideia de classe no como um atributo fixo de pessoas situadas em certas posies partilhadas nas hierarquias sociais ou na organizao da produo, mas como uma relao dinmica, negociada continuamente entre trabalhadores e seus exploradores.

    O estilo metodolgico e a linha de argumentao de Thompson moldaram uma gerao inteira de historiadores sociais na Gr-Bretanha e em toda parte. Uma ampla gama de investigadores buscou aplicar a anlise de Thompson a outros lugares, executar estudos mais detalhados dentro de seus pressupostos gerais ou contestar algum aspecto de seu argumento. A formao das classes trabalhadoras ou o fracasso dela tornaram-se temas padro de histria social.

    As classes sociais constituram um importante princpio organizador para a pesquisa em histria social em todo o perodo de 1945 a 2000. Cinco posies bastante diferentes competiam, no entanto, entre si:

    1. A classe social consiste na posio, individual ou coletiva, em uma hierarquia de prestgio, riqueza e/ou poder, ou um caso especial dessa diferenciao hierrquica.

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    2. A classe social descreve uma vinculao, individual ou coletiva, a mercados, o que produz diferenas importantes na qualidade de vida.

    3. A classe social reside na conscincia mtua e/ou na cultura compartilhada entre conjuntos de pessoas que coletivamente consideram-se (no importa se com ou sem razo) superiores ou inferiores a outras pessoas.

    4. A classe social a, ou depende da, localizao coletiva dentro de um sistema de produo.

    5. A classe social uma iluso, ou, na melhor das hipteses, uma descrio equivocada de desigualdades que seriam mais bem caracterizadas de outras maneiras, por exemplo, como competncia individual, cultura tnica ou especializao ocupacional variveis.

    Os historiadores sociais muitas vezes combinavam duas dessas posi-es, argumentando, por exemplo, que a posio em uma hierarquia (1) gera conscincia mtua ou cultura partilhada (3), ou que as hierarquias existem (1), mas sua cristalizao em classes sociais opostas nunca ou raramente ocorre (5). Os marxistas ofereceram a sntese mais ambiciosa dessas posies, argumentando, por exemplo, que a localizao em um sistema de produo (4) determina a posio hierrquica (1), a vinculao a mercados (2) e a cultura partilhada (3). No obstante, muitas das dis-putas mais mordazes da histria social opem defensores de uma posio a defensores de outra.

    Na sequncia do trabalho de Thompson, por exemplo, abriu-se uma diviso significativa entre os estudiosos de classe que seguiram a nfase dis-cursiva de seus textos e aqueles que adotaram o igualmente thompsoniano estudo da classe como uma relao fundada na organizao da produo. Muitos analistas da linguagem e da cultura comearam a argumentar que a classe s existia na medida em que as pessoas falavam em termos de classe, concebiam-se nesses termos e formavam uma cultura distintiva baseada em classe. Seguia-se que na histria europeia e norte-americana, onde a lingua-gem de classe explcita era difcil de ser encontrada, a classe raramente ou nunca ocorrera. Seus oponentes relacionais contrapunham que a classe existe na luta, onde quer que as partes ocupem posies antagnicas na organiza-o da produo, e, consequentemente, que a classe era uma caracterstica duradoura da histria euro-americana. Embora alguns pesquisadores de histria (por exemplo, Steinberg, 1999) tenham preenchido parcialmente a lacuna ao integrar o estudo do discurso e da cultura em anlises de redes e lutas sociais, o debate continua.

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    Charles Tilly

    Nem todos os historiadores sociais anglo-americanos, certo, organi-zaram suas investigaes positiva ou negativamente em torno de ideias de classe. Trs grandes alternativas disputavam a ateno: (1) a mudana das mentalidades, como objeto de estudo ou como causa de alteraes na vida social; (2) outras divises categoriais, notadamente por gnero, raa e etnia; e (3) mudana em importantes instituies e estruturas, incluindo as consequncias dessas mudanas. A primeira alternativa fomentou uma colaborao maior com historiadores intelectuais e antroplogos culturais. Assim, estudos de consumo, cultura material e participao cvica (a despeito de suas possveis vinculaes com investigaes de cientistas sociais sobre os mesmos fenmenos) comumente enfatizavam mudanas nas mentalidades, e muitas vezes recorriam a modelos antropolgicos.

    A segunda alternativa reproduzia a ambivalncia da histria social como um todo, j que dividia os praticantes entre aqueles que enfatizavam conti-nuidades com estudos de cincias sociais contemporneos sobre desigualda-des categoriais e aqueles que optavam pela interpretao cultural. Assim, a histria das mulheres abarcava desde a anlise demogrfica e as abordagens econmicas at as anlises de discurso. A terceira alternativa empurrava os historiadores sociais para a especializao em algum tipo de instituio, e portanto para a colaborao com cientistas sociais que estavam examinando instituies aparentemente similares no presente. Desse modo, histria urba-na, histria demogrfica, histria da famlia e histria econmica atraram, todas, alguns historiadores sociais para um engajamento especializado em campos adjacentes das cincias sociais.

    Para os historiadores sociais da primeira vertente, as mentalidades jogam um papel similar quele da cultura em antropologia; elas figuram como causas gerais cujas origens e dinmicas raramente so examinadas em min-cias (cf. Kuper, 1999). Na histria britnica, por exemplo, ideias de cultura popular, cultura do consumidor e cultura poltica servem com frequncia como explicaes para o comportamento ou a ao poltica de pessoas comuns. As explicaes de John Brewer para a poltica de rua teatral que girava em torno de John Wilkes durante a dcada de 1760 (por exemplo, Brewer, 1980) exemplificam o melhor trabalho nessa linha. Brewer no usa a palavra mentalidades, mas declara que uma explicao apropriada da poltica do sculo xviii

    [...] ter de ser, antes de mais nada, tanto instrumental quanto dinmica. Ela deve,

    em outras palavras, propor-se a mostrar como, por que e com que propsitos

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    em mente uma viso ou argumento particular foi apresentado ou expressado.

    Mudanas ou desenvolvimentos no argumento podem ser explicados como uma

    espcie de processo de resoluo de problemas luz de um conjunto de normas e

    convenes, bem como em face de novas dificuldades ou mudanas de perspectiva

    (Brewer, 1976, p. 34).

    Brewer aplica explicitamente esse argumento poltica popular e s maquinaes dos lderes polticos. A legitimao e a expresso de crena poltica, ele argumenta, no tm de assumir a forma de palavra impressa ou mesmo falada. A conduta ritualizada, o emprego de smbolos ou o en-gajamento em ao simblica podem ser usados para transmitir um credo poltico (Idem, p. 22). Dado que os idiomas culturais disponveis moldam a maneira como as pessoas lidam umas com as outras, um observador perspicaz de ideias e convenes prevalecentes como Brewer pode fornecer um novo insight sobre os significados de eventos especficos. Mas a dificuldade surge quando o mesmo historiador recua para analisar mudanas ou interaes de longo prazo entre mentalidades e instituies. Ento o status causal das mentalidades torna-se decisivo.

    A dificuldade evitvel. Como muitos linguistas e historiadores da cin-cia, alguns historiadores sociais (por exemplo, Zelizer, 1994) reconhecem que a cultura no uma fora autnoma por trs da vida social, mas um elemento constitutivo das relaes sociais. Entendimentos partilhados e sua representao em smbolos, objetos e prticas (uma definio razovel de cultura) limitam a interao social, mas tambm alteram-se como conse-quncia da interao social. At agora, porm, a investigao dessa interao dinmica entre cultura e relaes sociais no se tornou um programa central para historiadores sociais.

    Estudos de outras divises categoriais que no a classe seguiram tipica-mente apenas um tipo de diviso, com mais frequncia de gnero, etnia, raa, religio ou preferncia sexual. Com exceo do trabalho sobre migrao e poltica urbana, na verdade, os historiadores sociais nessa linha comumente adotaram apenas uma categoria por vez: a histria das mulheres e no a hist-ria das relaes entre mulheres e homens, a histria dos negros e no a histria das divises raciais, e assim por diante. Como resultado, os historiadores sociais anglo-americanos estabeleceram especialidades em anlises de uma nica categoria, cada uma delas chamando ateno para o carter distintivo da categoria, repreendendo a histria geral por sua negligncia e represen-tao errnea dessa categoria, e adotando, por mais indiretamente que seja,

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    temas polticos correntes que envolviam a categoria. Muitos desses exames de divises categoriais aliam-se estreitamente com o amplo programa intelectual chamado estudos culturais: interpretaes histricas, literrias e polticas de experincias culturais aparentemente distintivas. No obstante, veteranos da anlise de classes que mudaram para outras categorias (por exemplo, Louise Tilly et al., 1997) tm papel importante nessa linha de pensamento; eles fre-quentemente concebem gnero, raa, religio, etnia ou preferncia sexual em termos de relaes entre categorias adjacentes ou concorrentes.

    Histria social e cincia social

    Estudar mudanas de instituies e estruturas juntar foras, ao menos implicitamente, com cincias sociais adjacentes. Mas o grau de colaborao autoconsciente com cientistas sociais varia de forma significativa segundo as instituies e as estruturas sob escrutnio. Historiadores sociais que lidam com mudana populacional, por exemplo, quase sempre adquirem familiaridade com ideias e mtodos demogrficos. Estudos de instituies religiosas, em contraste, com frequncia procedem com pouca ou nenhuma referncia a anlises sociolgicas, antropolgicas ou polticas contemporneas da religio. Aqui as sequncias historiogrficas importam. Onde cientistas sociais iniciaram ativamente o estudo histrico de alguma instituio ou estrutura pouco examinada pelos prprios historiadores, com frequncia atraram seguidores entre estes. No caso da histria demogrfica, por exem-plo, demgrafos que queriam explicar mudanas recentes em fertilidade, mortalidade e nupcialidade adaptaram seus mtodos a populaes histricas como meio de tratar perodos longos em lugares bem documentados. Ento a demografia histrica acabou produzindo grandes dividendos tambm para historiadores sociais (cf. Gillis, Tilly e Levine, 1992; Hanagan, 1989; Levine, 1984, 1987; Charles Tilly, 1978; Wrigley e Schofield, 1981).

    Onde os historiadores sociais h muito tempo j vinham considerando um tpico em seus prprios termos, eles aceitaram contribuies das cin-cias sociais com muito mais relutncia. Assim, estudos histricos de cultura popular j h muito estabelecidos valeram-se pouco de desenvolvimentos logicamente paralelos em antropologia, lingustica e sociologia. Anlises de historiadores sociais de poltica popular, prtica religiosa, sexualidade e vida associativa mostraram-se igualmente resistentes a contribuies das cincias sociais. A grande exceo tem sido a abertura de muitos historiadores sociais a algo que eles chamavam de antropologia. Num exame mais atento, porm,

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    fica claro que essa antropologia no envolve prticas antropolgicas rotinei-ras como etnografia, arqueologia, anlise lingustica formal, reconstruo de sistemas de parentesco ou inspeo de cultura material, mas significa interpretao compreensiva de prticas, smbolos e representaes sociais no estilo de Clifford Geertz.

    A atividade chamada de cincia social histrica [social science history] (cf. Monkkonen, 1994) estabeleceu os laos mais fortes entre histria e disciplinas sociais adjacentes. Para esse lago fluram correntes de demogra-fia, economia, sociologia, geografia, lingustica e antropologia, cada uma produzindo um conjunto parcialmente separado de redemoinhos. Aqui as fronteiras entre histria e outras disciplinas ficaram borradas, na medida em que especialidades como histria demogrfica, histria antropomtrica (estudos de bem-estar pela mudana e variao em altura e peso), histria da migrao e histria da mobilidade social constituram comunidades acadmicas parcialmente autnomas. Nesses campos especiais, as agendas de pesquisa muitas vezes refletiam prioridades dentro das cincias sociais to relevantes quanto aquelas na histria nacional sob exame. Estudos de mobilidade social, por exemplo, contriburam para a documentao da histria do Canad ou dos Estados Unidos, mas frequentemente se organi-zaram em torno de um par de questes distintivo: primeiro, em que medida a industrializao produz mudanas gerais no ritmo e na direo do movi-mento de uma posio a outra? Segundo, instituies e culturas nacionais tm um impacto significativo sobre o ritmo e a direo do movimento de uma posio a outra? Nenhuma dessas questes predomina na historiografia canadense ou americana como um todo.

    Ainda assim, o estudo da mobilidade social americana ilustra como a histria social s vezes influencia a escrita da histria geral. Por algum tempo depois da Segunda Guerra Mundial, uma poro de socilogos america-nos examinou a mobilidade ocupacional (comparando filhos com pais ou seguindo as carreiras ocupacionais de indivduos) por meio da compilao de dossis sobre indivduos a partir de catlogos de cidades. Esse trabalho, orientado por questes de socilogos sobre mobilidade e industrializao, atraiu pouca ateno de historiadores. Mas, em 1964, Stephan Thernstrom publicou um livro sobre Newburyport, Massachusetts, no sculo xix, que utilizava anlises similares de catlogos de cidades para fins muito diferentes. A escolha de Newburyport foi um lance de gnio, j que o antroplogo W. Lloyd Warner havia conduzido uma srie de estudos influentes nessa cida-de, rebatizada de Yankee City para a publicao (cf. Warner et al., 1963).

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    Warner havia reconstrudo a histria de Newburyport no sculo xix a partir de recordaes escritas e orais de moradores, concluindo que uma estrutura de oportunidades muito aberta havia se fechado durante a industrializao do sculo xix. A posio de Warner coincidia com a de muitos historiadores gerais nos Estados Unidos e articulava-se com uma das questes dominantes na historiografia norte-americana: os Estados Unidos foram e so a terra das oportunidades?

    A anlise de Thernstrom revelou uma mobilidade interclasses relativa-mente baixa durante o sculo xix, contrariando a ideia de declnio da mo-bilidade, e identificou modos significativamente diferentes de mobilidade (por exemplo, via investimento em imveis ou em educao) para diferentes categorias tnicas. Thernstrom prosseguiu com um estudo ainda mais ambi-cioso de Boston, Massachusetts, que confirmou a maioria das concluses da pesquisa de Newburyport (cf. Thernstrom, 1973). No interior das histrias sociais, dezenas de jovens acadmicos logo passaram a emular Thernstrom, realizando estudos paralelos de outras cidades e categorias tnicas em suas teses de doutorado. Eles tambm estenderam a biografia coletiva anlise de respostas manuscritas ao censo, registros do ciclo vital e outras fontes. Ao mesmo tempo, historiadores gerais dos Estados Unidos sentiram-se compelidos a modificar suas afirmaes sobre o lugar da mobilidade social e seu declnio na vida estadudinense como um todo.

    Com o tempo, sem dvida, a popularidade dos estudos de mobilidade de cidades individuais, conjuntos de cidades e categorias tnicas sofreu um declnio significativo. Dentro do campo especializado, os pesquisadores encontraram limites tcnicos sua capacidade de rastrear geograficamente populaes, mulheres e categorias tnicas mveis. Depois do choque inicial dos resultados de Thernstrom, nunca mais se encontrou uma maneira eficaz de transmitir o significado dos achados dos estudos de mobilidade a grandes audincias de historiadores. Os editores cansaram-se de livros que detalha-vam as histrias de mobilidade de grupos tnicos em cidades americanas especficas. A mudana geral dos historiadores sociais da anlise categorial em estilo sociolgico para a narrativa interpretativa como etnografia retros-pectiva reduziu o apelo da anlise de mobilidade para a disciplina como um todo. Os estudos urbanos de desigualdade e mobilidade de forma alguma desapareceram, mas passaram a constituir um subcampo especializado aliado geografia, sociologia e cincia poltica.

    No entanto, a proeminncia temporria dos estudos de mobilidade traz lies para a histria social em geral. Primeiro, quando os historiadores

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    sociais conseguem estabelecer ligaes efetivas entre uma nova fonte ou mtodo e uma das grandes questes que j esto na agenda histrica geral, eles influenciam a escrita da histria como um todo. Segundo, quando essa ligao de fonte ou de mtodo com perguntas significativas identifica novos projetos viveis para indivduos isolados, as teses de doutorado tornam-se ponto decisivo para a difuso de uma nova variedade de histria social. Ter-ceiro, projetos bem-sucedidos em histria social tendem a atrair o interesse geral por algum tempo, depois a cristalizar-se em subcampos especializados aliados a disciplinas adjacentes. Por fim, e mais importante: apesar da criao de mtodos, vocabulrios, associaes, peridicos e carreiras especializados, a histria social anglo-americana continua a participar dos grandes debates que agitam os historiadores como um todo.

    Para onde tudo isso conduzir os historiadores sociais? Qualquer previso nesse domnio mistura extrapolao a partir do passado com wishful thinking. Consideremos apenas trs cenrios possveis: mais do mesmo, polarizao aguada e dialtica. Mais do mesmo daria continuidade s tendncias docu-mentadas anteriormente: especializao cada vez maior, crescente alinhamen-to de premissas epistemolgicas com escolha de tema, absoro continuada de algumas especialidades em disciplinas das cincias sociais adjacentes e, portanto, declnio do dilogo no interior da histria social como um todo. Mais do mesmo acabaria por destruir a histria social como campo coerente. Dado que alguns analistas (por exemplo, Joyce, 1995) j esto anunciando, e at comemorando, esse destino, os praticantes de hoje devem lev-lo a srio.

    A polarizao aguada tambm poderia ocorrer, com a diviso funda-mental separando mais as posies epistemolgicas e ontolgicas do que os fenmenos sob exame. De um lado, podemos ver uma reunio daqueles que consideram que a matria da vida social so mentes, crenas, conscincia ou linguagem, e, portanto, fundamentalmente indeterminada ou pelo menos inacessvel explicao sistemtica. Esses historiadores sociais alinhariam-se com a histria intelectual, a histria cultural e certas verses de antropologia. Por outro lado, poderamos ter uma variedade de realistas que afirmam que a vida social surge sistematicamente de escolhas individuais ou transaes interpessoais, e permanece disponvel para observao e explicao. Nessas circunstncias, o dilogo poderia prosseguir vigorosamente em cada um dos lados da fronteira, mas seria bastante improvvel que ocorresse, e muito menos que tivesse sucesso, entre os dois campos.

    A interao dialtica tambm poderia desenvolver-se, com descendentes do velho materialismo servindo como tese, o reducionismo lingustico e

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    Charles Tilly

    cultural como anttese, e uma histria social renovada como sntese. Isso poderia acontecer se os descendentes do materialismo levassem a cultura, a linguagem e a construo social a srio, tentando no s integr-las em anlises de processos sociais, mas tambm trat-las como objetos de expli-cao sistemtica: como e por que a cultura, a linguagem e a construo social variam e mudam? Isso tambm poderia acontecer se os estudiosos da cultura, da linguagem e da construo social realizassem exames de como esses fenmenos interagem com relaes sociais concretas. Melhor ainda, materialistas e culturalistas poderiam ambos trabalhar na direo dos fun-damentos uns dos outros, no necessariamente concordando, mas ao menos chegando a alguns padres comuns de explicao. O reexame da linguagem como uma produo social, de diferenas categoriais por gnero, classe, raa ou outros princpios como instituies geradas socialmente, da luta coletiva como construo e reconstruo social define problemas dignos da ateno dos historiadores sociais, e comea a preencher a lacuna aparente entre eventos e ideias. Como diz Robert Descimon, a inclinao emprica dos historiadores sociais vai lev-los muito alm das controvrsias atuais que opem a histria social histria dos eventos.

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    A histria social anglo-americana desde 1945, pp. 13-32

    Resumo

    A histria social anglo-americana desde 1945

    O artigo examina temas, mtodos e tendncias analticas dominantes na anlise da

    histria social e da cincia social produzidas na Inglaterra e nos Estados Unidos a partir

    da Segunda Guerra Mundial, apontando a proeminncia no debate de duas grandes

    vertentes, o marxismo e a teoria da modernizao. O autor reflete sobre achados e

    limites de ambas as correntes.

    Palavras-chave: Histria social; Teoria da modernizao; Marxismo.

    Abstract

    Anglo-American social history since 1945

    This article examines the mainstream themes, methods and analytical trends in social

    history and social science from Britain and the United States since the Second World

    War. It highlights the predominance of two main theories in the debate: Marxism

    and modernization theory. The author evaluates the main findings and limits of both

    theories.

    Keywords: Social history; Modernization theory; Marxism.

    Texto recebido em 1/8/2012 e

    aprovado em 6/8/2012.

    Charles Tilly (1929-2008)

    ensinou nas universidades de

    Delaware, Harvard, Toronto

    Michigan e The New School, at

    tornar-se Joseph L. Buttenwieser

    Professor of Social Science, na

    Columbia University, alm de

    professor convidado em vrias

    instituies estrangeiras. Autor

    de extensa obra (51 livros e

    centenas de artigos), foi agraciado

    com vrios prmios de excelncia

    acadmica, o ltimo deles o The

    Social Science Research Councils

    2008 Albert O. Hirschman Prize.

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  • Naes e nacionalismos(a teoria, a histria, a moral)

    Diogo Ramada Curto, Miguel Bandeira Jernimo e Nuno Domingos Traduo de Otaclio Nunes

    Uma das questes centrais propostas pelos tericos das cincias sociais pode ser formulada do seguinte modo: como as sociedades modernas produtos da industrializao, da diviso do trabalho e do capitalismo recriaram for-mas de solidariedade equivalentes s relaes outrora existentes em pequenas comunidades tradicionais? Nas respostas a essa questo, detectam-se elemen-tos de natureza muito diversa. Inventari-los implica reconhecer a falta de homogeneidade da prpria teoria social ao longo dos sculos xix e xx. Em primeiro lugar, alguns pensadores do social encontraram na religio, nas suas formas mais elementares e no s, essa espcie de elo que as sociedades e os indivduos necessitam para funcionarem de modo integrado. Se aceitarmos como vlida uma resposta desse tipo, valorizadora do carisma e de modos de unio investidos de uma intensidade exemplar, temos de reconhecer que ela implica uma crtica a ideias correntes acerca da secularizao e da laicizao do mundo moderno. Em segundo lugar, ser possvel identificar elementos relativos a uma mudana de escala, situados no contraste entre o micro e o macro, com implicaes de vria ordem sobretudo na orientao da pesquisa. A esse respeito, foram muitas as solicitaes que levaram des-coberta da pequena escala e sua escolha como uma espcie de laboratrio de anlise das relaes concretas por excelncia, tudo isso porventura em reao s relaes sociais estabelecidas em grande escala. Em terceiro lugar, haver que isolar, no interior das respostas mais reativas referida questo,

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    Naes e nacionalismos (a teoria, a histria, a moral), pp. 33-58

    os elementos que tenderam no apenas a exacerbar o trabalho dos agentes, da sua intencionalidade e motivos, bem como a favorecer a interpretao subjetiva das suas aes. , alis, nesse mbito, que melhor se encontram formuladas as respostas que tenderam a relativizar uma concepo evolutiva das mudanas sociais, do progresso, substituindo-a por uma comparao entre diferentes configuraes sociais e de grupo. Em quarto e ltimo lugar, ser necessrio destacar as interpretaes que procuram perceber de que modo as representaes coletivas, ideologias ou normas de regulao da ao social, ao desviarem-se das suas formas mais elementares, concebidas a partir da pequena escala, contriburam para alienar grupos sociais, para impor modos de falsa conscincia ou para criar situaes de anomia. Ora, foi precisamente nessa sequncia que ganhou lastro a ideia de que a imaginao ou as representaes mentais produzidas por uma sociedade no passavam de uma mascarada, de uma inveno, a que as sociedades modernas tinham necessidade de recorrer para poderem continuar a funcionar como tal.

    Se uma passagem, mesmo que breve, pelas teorias sociais clssicas per-mite reconstituir uma srie possvel de respostas questo de que partimos, tambm revela a pouca ateno que sempre suscitou, no seu interior, a ideia de nao (o mesmo sucede, alis, com a ideia de imprio). Tal como se a nao promotora de sentimentos, expresso de uma afetividade, de uma memria sedimentada e at de uma devoo, a ponto de se ter podido querer morrer pela ptria, como sucedeu durante a Primeira Guerra Mundial ti-vesse sido objeto de uma naturalizao, relegada a outros planos, arredada da teoria social clssica, no seu cnone europeu ou ocidental, ou nela ocupando apenas um lugar marginal. Claro que se poder sempre argumentar que uma genealogia dos estudos sobre a nao tem as suas razes nas obras de Tocque-ville sobre a Frana, a Inglaterra ou os Estados Unidos; nas interrogaes de Durkheim sobre a conscincia coletiva e a funo social dos ritos e das cerimnias na Frana; no questionamento de Veblen acerca das especifici-dades da industrializao alem; tal, como mais tarde, nas comparaes de Barrington Moore Jr. envolvendo a Inglaterra e a Frana ou outros Estados nacionais (cf. Tocqueville, 1991-2004; Durkheim, [1912]* 1968; Veblen, [1915] 2006; Moore Jr., 2010). Em todos esses exemplos, a nao parece ter servido de escala de anlise para a experimentao do mtodo compa-rativo ou at de pretexto para o estudo de processos como os da formao do Estado, da sociedade civil ou da modernidade. Mas, em nenhum deles, a nao, com suas formas prprias de incorporao, constituiu-se num objeto de estudo em si mesmo. Ora, diante da dificuldade da teoria social

    * A data entre colchetes refere-se edio original da obra. Ela

    indicada na primeira vez que a

    obra citada. Nas demais, indica-

    se somente a edio utilizada pelo

    autor [N.E.].

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    Diogo Ramada Curto, Miguel Bandeira Jernimo e Nuno Domingos

    clssica em pensar a nao, uma segunda interrogao se impe: quais os outros gneros discursivos a partir dos quais foi empreendido esse trabalho?

    Na obra dos historiadores, encontram-se as respostas mais bvias. A Histoire de Belgique, de Henri Pirenne (7 vols., 1899-1932), constitui, tal-vez, o exemplo mais acabado desse esforo de organizao de uma histria nacional. Porm, a nao enquanto unidade de anlise e de integrao social conviveu na obra de Pirenne com outras escalas de observao e de orga-nizao social: das cidades medievais a essa histria inacabada da Europa comeada a escrever durante os anos de priso em Creuzberg, entre 1917 e 1918, publicada postumamente, em 1936, sem esquecer o confronto entre os imprios de Carlos Magno e o Isl (cf. Pirenne, 1927, 1936, 1937, 1939). Alis, de um ponto de vista que nos mais familiar, a obra precedente de Oliveira Martins, relativa histria de Portugal, tem de ser igualmente lida em articulao com outras escalas e perspectivas: da civilizao ibrica s diferentes configuraes ultramarinas, sem esquecer o quadro de abordagens gerais proposto no seu ambicioso projeto de uma Biblioteca de cincias sociais (cf. Vakil, 1995, 1999). Por sua vez, a Segunda Guerra Mundial suscitou uma nova srie de interrogaes de carter historiogrfico sobre a nao. Pelo menos para dois grandes historiadores, Federico Chabod e Lucien Febvre, tais questionamentos foram feitos em paralelo com outros inquritos relativos ideia de Europa (cf. Chabod, [1961] 1995, 2008; Febvre, 1996, 1999; Curtius, 1953; Auerbach, [1953] 2003). Ao mesmo horizonte perten-cia a lio de Marc Bloch acerca das responsabilidades dos intelectuais que tinham participado na Primeira Guerra, mas cujo desleixo tinha conduzido a essa trange dfaite (1 edio de 1946) que levou sua morte. que, em todos esses casos, impunha-se, como se se tratasse de uma tarefa urgente, resgatar ideias e sentimentos patriticos aos usos nacionalistas e xenfobos que conduziram ao Holocausto. E idntico trabalho de resgate foi feito em relao s noes pan-europeias, articuladas com a de espao vital e com os projetos de expanso imperial da Alemanha nazi. Na mesma altura, Hans Kohn anunciou a necessidade de acrescentar, aos inquritos histricos sobre a nao, uma dimenso extraeuropeia (cf. Kohn, [1944] 1945). De fato, se nos desligarmos de uma perspectiva eurocntrica (e anglocntrica), ser possvel reconstruir como se se tratasse de um outro gnero de discursos, com uma forte dimenso de inqurito historiogrfico, mas no s o sen-tido de uma srie de obras relativas a naes sadas de processos coloniais. Pelo menos desde a dcada de 1920, intelectuais to cosmopolitas quanto patriotas publicaram obras de ruptura, relativas identidade nacional de

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    Naes e nacionalismos (a teoria, a histria, a moral), pp. 33-58

    Peru, Brasil, Cuba, Indonsia e ndia (cf. Maritegui, [1928] 1981; Freyre, 1933; Ortiz, [1940] 2002; Leur, 1955; Boxer, 1979; Bluss e Gaastra, 1998; Panikkar, 1953).

    Na concorrncia com o trabalho dos historiadores, romancistas e ensastas representaram, configuraram ou imaginaram a nao. No caso portugus, a gerao de 1870, tendo cabea as obras de Ea e Antero dois autores obcecados com o atraso ou a decadncia , diversificou as linguagens capazes de identificar a nao e o povo. Por exemplo, Adolfo Coelho explorou a filologia e a etnografia, disciplinas s quais Tefilo Braga pretendeu somar a da histria da literatura, entendida como um grande reportrio de textos definidores do cnone nacional (cf. Matos, 1998; Leal, 2006). A partir de ento, uma das questes que se colocou consistiu precisamente no grau de autonomia conferido a qualquer um desses gneros ou disciplinas. Fernando Pessoa, por exemplo, deixou indita vasta obra ensastica sobre Portugal (cf. Pessoa, 1928, 1978a, 1978b, pp. 324-325, 1980, 2011). Mas foi em Antnio Srgio que o ensaio portugus atingiu o seu auge, ao menos na interveno e formao de um espao pblico. Ao nosso lado, Ortega y Gasset, num ensaio intitulado Espaa invertebrada (1922), ousou responder referida questo colocada pela teoria social clssica. Mas f-lo a partir dos conhecimentos concretos que tinha acerca da questo nacional na Espanha. Mostrou-se, ento, um crtico feroz de uma continuidade, mais ou menos evolutiva, das formas do viver associado: A ideia de que a famlia a clula social e o Estado uma espcie de famlia que engordou um obstculo para o progresso da cincia histrica, da sociologia, da poltica e de muitas ou-tras coisas (Ortega y Gasset, 1922, p. 29). Depois, tendo no horizonte os casos da Catalunha e do Pas Basco, afirmou de forma peremptria: No; uma incorporao histrica no a dilatao de um ncleo inicial [No; incorporacin histrica no es dilatacin de un ncleo inicial] (Idem, p. 30). Ficavam, assim, estabelecidas as bases a partir das quais era possvel pensar uma Espanha invertebrada, composta por vrias naes.

    Nos limites de uma abordagem que no pretende ser mais do que um inventrio das formas a partir das quais a nao foi pensada, ser necessrio incluir os ensaios de Gyrgy Lukcs sobre a teoria da novela (cf. [1916] 1978) ou o romance histrico (cf. [1937] 1981); e destacar, no interior de um campo de investigaes prolixas, os estudos sobre o poder performativo das narrativas e sobre a memria de Paul Ricoeur (Temps et rcit, 3 vols., 1983-1985). Quando, por centramento nas questes analticas da linguagem ou na constituio da lingustica em cincia universal, as humanidades e

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    as cincias sociais passaram a privilegiar a anlise dos discursos, foi possvel levar mais fundo as investigaes sobre o romance, a fico, a obra ima-ginada, as formas simblicas traduzidas numa linguagem dos ritos e das cerimnias, bem como as construes da memria. Aplicados aos estudos sobre a nao, os exerccios resultantes desse aparato de lenta elaborao, de provenincias intelectuais muito diversas, mas investidos de uma clara conotao lingustica e culturalista (a que se sobreps uma espcie de onda ps-moderna), tiveram ao menos a vantagem de vir desencravar os temas da nao e do nacionalismo dos seus usos mais naturalizados e, talvez, mais conservadores. Os apelos de Maurras do incio do sculo xx, mas que tinham deixado um cheiro a bafio em todos os nacionalismos europeus, mesmo no perodo posterior Segunda Guerra, foram definitivamente destrudos (cf. DOrnelas, 1914). Tudo isso numa altura em que, com o fim da Guerra Fria, ressuscitaram-se novos nacionalismos e vises xenfobas. Uma sim-ples lista das obras que participaram desse ltimo momento dever incluir: Benedict Anderson, Imagined communities (1983); Ernst Gellner, Nations and nationalism (1983, onde aprofundou ideias j inscritas em Thought and change, 1965); Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.), The invention of tradition (1983); Anthony D. Smith, State and nation in the Third World: the Western State and African nationalism (1983); Pierre Nora (org.), Lieux de mmoire (1984-1992); A. D. Smith, The ethnic origins of nations (1986); E. J. Hobsbawm, Nations and nationalism since 1780: programme, myth, reality (1990); Homi K. Bhabha (org.), Nation and narration (Londres, Routledge, 1990); Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (orgs.), A memria da nao (1991); Partha Chatterjee, The nation and its fragments: colonial and postcolonial histories (1993).

    No incio da dcada de 1990, os programas de limpeza tnica e a vio-lncia generalizada dos conflitos na ex-Iugoslvia confrontaram o Ocidente com os resultados mais cruis do nacionalismo. Bem evidente ficou que tais construes sociais da identidade, capazes de mobilizar membros de um grupo tnico, serviam aos interesses de uns participantes mais do que de outros. A esse respeito, Craig Calhoun considerou que tais construes, por exemplo,

    [...] foraram muitos srvios, que tinham anteriormente adotado e experimentado

    a viso de uma Bsnia-Herzegovina multitnica e democrtica, a aderir a solidarie-

    dades tnicas para fazer face guerra civil. Reivindicando tais solidariedades tnicas

    e uma identidade srvia que era to antiga como natural, a nova mobilizao

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    ideolgica exigiu, aparentemente com sucesso, que seus militantes desejassem tanto

    matar como morrer pela sua prpria nao (1993, p. 212).

    A partir da, tornou-se difcil continuar associando a nao a projetos emancipatrios. Pouco importava que sentimentos nacionais tivessem exis-tido e contribudo, de forma decisiva, para o desencadear de movimentos polticos tais como as revoltas e as revolues de meados do sculo xvii, as lutas das elites crioulas contra o colonialismo espanhol no sculo xviii, ou a unificao italiana ou alem dos Oitocentos. O certo que a violncia das manifestaes nacionalistas, da ex-Iugoslvia ex-Unio Sovitica, acom-panhadas de reaes xenfobas e racistas, protagonizadas por movimentos de extrema-direita, que se desencadearam por toda a Europa e nos Estados Unidos em face dos grupos de imigrantes, contribuiu mais uma vez para conotar o nacionalismo com as foras do tradicionalismo e do conservadoris-mo, capazes de agir em nome da segurana e, claro est, da violncia. Uma recusa generalizada dos saberes acadmicos, mais progressistas, em alinhar com tal conotao do nacionalismo corre o risco de levar a um desinves-timento na nao e nos nacionalismos, como objetos de anlise. Em sua substituio, as cincias sociais e a histria em particular parecem mesmo ter privilegiado objetos de anlise de teor mais neutro, a saber, os processos de formao da sociedade civil, da cidadania e da democracia1. Resta saber se as mesmas operaes de substituio ou de diverso, acompanhadas de um pudor em relao conotao violenta e antimoderna do nacionalismo na atualidade, no continuaro a impedir uma reflexo histrica e aprofundada sobre um tipo de objeto com o qual as cincias sociais sempre mantiveram uma relao terica envergonhada.

    ***

    Benedict Anderson professor emrito de Estudos Internacionais, Gover-no e Estudos Asiticos da Universidade de Cornell. Mereceu, recentemente, um importante reconhecimento das Cincias Sociais e Humanas: o Prmio Albert O. Hirschman do Social Science Research Council (ssrc) norte-ame-ricano, que fora atribudo a Charles Tilly, em 2008, pouco antes de falecer. De acordo com o legado intelectual de Hirschman, tal prmio destina-se a re-conhecer contribuies significativas para o desenvolvimento de perspectivas interdisciplinares, no interior das cincias sociais e humanas, e para a promo-o de uma interveno pblica informada (cf. Hirschman, 1997a, 1997b)2.

    1. Ver, por exemplo, Somers

    (1993).

    2. Ver http://www.ssrc.org/

    hirschman/recipients/2011.

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    A esse mesmo respeito, repare-se no fato de Anderson, depois de ter obtido formao em literatura e estudos clssicos na Universidade de Cambridge, no final da dcada de 1950, ter passado a integrar o programa de estudos sobre a Indonsia da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos.

    A par das suas contribuies de natureza acadmica, Anderson denunciou a explicao fornecida pelo governo indonsio do processo de purga dos comunistas indonsios, injustamente acusados do golpe falhado de 30 de se-tembro de 1965. Escrito com Ruth T. McVey, autora de The rise of Indonesian communism (1965), o Cornell Paper (1966) comeou a circular apenas no interior de um pequeno crculo acadmico, mas acabou por chegar ao Wa-shington Post. Adquiriu, ento, uma projeo nacional e internacional, pelo punho do jornalista Joseph Kraft, em 5 de maro de 1966, sob o ttulo Blood bath in Indonesia. Nele, denunciava-se o grau de violncia envolvido, com milhares de assassnios, o recurso generalizado tortura e uma prolongada suspenso dos direitos humanos (cf. Anderson e Mc Vey, 1971; B. Anderson et al., 1966). Na mesma altura, Lucien Rey assinou um texto intitulado Dos-sier of the Indonesian drama nas pginas da New Left Review, que mais no era do que uma verso resumida do relatrio. De acordo com os autores deste ltimo, o pki (o Partido Comunista da Indonsia) e o presidente Sukarno no tinham responsabilidade na organizao do golpe falhado. Longe de serem seus estrategistas ou mesmo seus perpetradores, eram sim as suas vtimas. O golpe de Estado fora o resultado de dinmicas conflituais no interior do exr-cito protagonizadas essencialmente pelos oficiais da diviso Diponegoro, em Semarang, provncia da Java Central e do calculismo poltico de Suharto. Num contexto de envolvimento histrico crescente das estruturas militares na esfera poltica, marcado por sua gradual profissionalizao, hierarquizao e centralizao processos aos quais Anderson dedicou uma ateno constan-te, a partir de 1966, na revista Indonesia , assistiu-se ao desenvolvimento de tenses entre os diferentes poderes e interesses centrais e locais.

    O relatrio baseava-se na apreciao da imprensa nacional e provincial, bem como na descodificao das notcias propagadas nas rdios indonsias. Porm, malgrado a escassez da informao disponvel, Anderson e McVey produziram uma anlise que escapava lgica simplificadora da Guerra Fria, tanto no domnio poltico como no da relao deste com o mundo acadmico (cf. Chomsky et al., 1997; Simpson, 1998; Leslie, 1993; Ro-bin, 2001). Seu estudo demonstrou a necessidade de um conhecimento da dinmica histrica e das particularidades da modernizao societria locais, incluindo fatores de diferenciao tnica e outros relativos aos vrios im-

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    pactos do legado colonial holands; bem como a importncia de mobilizar fatores polticos, identitrios e tambm simblicos e culturais, tais como as mitologias locais, teatralizadas pelo tradicional e plural wayang 3. An-derson rebateu, desse modo, os pressupostos das teorias da modernizao, celebrando os idiomas, os smbolos e as crenas do particular, expondo-se assim possibilidade de ser considerado um essencialista culturalista. De qualquer modo, tal como Anderson sublinhou em The idea of power in Javanese culture, originalmente publicado em Culture and politics in Indonesia (1972), includo como primeiro captulo no seu Language and power: exploring political cultures in Indonesia (1990), seu objetivo mais do que enveredar por uma reificao qualquer do local e do cultural con-sistiu em demonstrar que a cultura javanesa tradicional possua uma teoria poltica que fornecia explicao lgica e sistemtica do comportamento poltico que era, significativamente, independente das, e que em muitos sentidos se encontrava em profunda oposio s, perspectivas da moderna cincia poltica (B. Anderson, 1990a, p. 18). A racionalidade, na histria e na cultura poltica de Java, derivava de um pressuposto crucial: o poder no resultava do humano e era um dado ontolgico, no relacional. Como sintetizou, de modo lapidar Ira Katznelson, a propsito das reflexes de Anderson sobre o carisma segundo Max Weber, os ocidentais procuram exercer o poder, os javaneses procuram acumular os seus sinais (Katznelson, 1991, pp. 12-13)4. Contrariando qualquer tipo de essencialismo antropol-gico, Anderson tambm procurou pensar o modo como a cultura javanesa tradicional relacionou-se com as lgicas de dominao do poder colonial holands. Trata-se de uma preocupao que no passou despercebida a um de seus leitores, que sumariou seu argumento do seguinte modo:

    [...] a noo de cultura javanesa tradicional no pode formar a base para um dis-

    curso sobre o nacionalismo, no s devido coexistncia de um grande nmero e

    outras culturas dentro da nao terem sido constitudas em discurso nacionalista,

    mas tambm pelo fato de a cultura javanesa ter sido identificada com uma elite

    que perdeu toda a sua legitimidade ao longo de sculos de colaborao com os

    holandeses (Kahn, 1992, pp. 651-652).

    A noite do levantamento, 30 de setembro de 1965, teria sido escolhida devido crena, popular em Java, que postulava que nessa data as foras mgicas e poderosas se encontravam ausentes, facilitando assim os propsitos de afirmao de uma cultura coletiva e de um conjunto de interesses supos-

    3. Ver Rey (1966) e, ainda, a

    troca de opinies no New York

    Review of Books (1 de junho

    de 1978), na qual Anderson e

    McVey respondem, em What

    happened in Indonesia?, a uma

    carta de Francis Galbraith, datada

    de 9 de fevereiro de 1978; B. An-

    derson (1987, 2000, 2008). Para

    o contexto histrico geral, ver

    Roosa (2006) e McVey (1965).

    4. Ver B. Anderson (1965,

    1990a). Ver ainda o volume edita-

    do por Claire Holt ([1972] 2007),

    no qual Anderson publicou este

    ensaio (pp. 1-70), inteiramente

    dedicado s articulaes entre

    formas culturais, projetos e con-

    figuraes polticas na Indonsia,

    incluindo um posfcio de Clifford

    Geertz (pp. 319-336). Anderson

    (1990b) reflete sobre Weber e o

    seu tratamento do carisma, ex-

    plorando a separao entre domi-

    naes carismtica e tradicional.

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    tamente representativos da etnia dominante. A par da sua referida insero no ambiente acadmico de Cornell (onde trabalhou com George McTurnan Kahin, diretor do Southeast Asia Program e fundador do Cornell Modern Indonesia Project), o financiamento obtido por uma bolsa do ssrc em 1961 levou-o a analisar a revoluo de 1945 na Indonsia. Pde, ento, fazer trabalho de campo na Indonsia entre dezembro de 1961 e abril de 1964. O resultado foi o livro Java in a time of revolution (1972), revelador de um conhecimento profundo da histria poltica, econmica e sociocultural da Indonsia. Trata-se de um estudo, de base emprica, centrado na compreenso das dimenses individuais e coletivas dos grupos e das instituies do processo social, de fortes bases culturais, de conquista e legitimao do poder poltico, aps a revoluo indonsia. Porm, Anderson acabou por ser banido, durante mais de um quarto de sculo, daquele imenso pas pelo regime de Suharto, logo aps a publicao em 1971 da sua proposta de explicao do golpe de Estado (cf. B. Anderson, 1972).

    O muito conhecido Comunidades imaginadas com cerca de 20 mil citaes no Google at 2011 e cerca de 3 400 000 links relacionados5 , obra central na apreciao do fenmeno histrico da formao e transformao das identidades nacionais, no pode ser dissociado do profundo conheci-mento que Anderson acumulou do Sudeste Asitico, nem tampouco de uma reviso geral dos preceitos culturais que defendera nas duas dcadas anterio-res. Como ele prprio reconhece, seu irmo Perry Anderson foi importante no processo, ao questionar sua tendncia de afirmar a excepcionalidade do particular e ao confrontar o argumento da amlgama nica que constituiria a cultura javanesa, presente nos seus trabalhos iniciais. Anos mais tarde, a tradio javanesa passava a ser, no essencial, uma inveno do sculo xx, que precisava, para alm disso, ser comparada com casos semelhantes. Foi o que sucedeu tanto em Comunidades imaginadas como em The spectre of comparisons e em Under three flags (cf. B. Anderson, 1990a, pp. 9-10, 1998, 2005a).

    Quer ao abordar os movimentos nacionalistas europeus, quer ao refletir sobre a imaginao da nao, com base nos projetos polticos da Amrica Latina e do Sudeste Asitico na era das descolonizaes, a originalidade de Anderson parece estar no seu duplo distanciamento crtico em relao, por um lado, s inmeras mitologias nacionais, a comear pelas menos con-vincentes verses da tese da naturalidade e da antiguidade das naes6; e, por outro, s doutrinas que diabolizam sua existncia histrica e projeo poltica7. Como afirmou Anderson, em Delhi, a 17 de fevereiro de 2012,

    5. Comunidades imaginadas teve

    vrias reedies, todas elas com

    acrscimos importantes. Sobre

    o contexto de produo e de

    recepo do livro, ver o posfcio

    em B. Anderson (2006, pp.

    207-229). Para uma reapreciao

    crtica por parte do autor, poucos

    anos depois de sua obra ter sido

    publicada, ver B. Anderson

    (1986, p. 659).

    6. No nos referimos, como

    bvio, aos fascinantes trabalhos

    de A. D. Smith, Leah Green-

    feld ou Josep Llobera, mas sim

    s escolas primordialistas (nas

    suas variantes, do nacionalismo

    orgnico sociobiologia de

    Pierre van den Berghe, passando

    pelas contribuies de Edward

    Shils e Clifford Geertz, com seus

    laos primordiais, resistentes s

    foras da modernizao poltica

    e sociocultural) e perenialistas (de

    Harold Isaacs e de Joshua Fish-

    man a Walker Connor). Para uma

    discusso sobre as escolas primor-

    dialistas e perenialistas ver, entre

    muitos outros, Smith (1998,

    principalmente pp. 145-169).

    Em geral, ver Smith (1986, 1991,

    1999, 2000, 2003, 2004, 2008);

    Greenfeld (1992, 2001, 2006);

    Llobera (1994, 2004); Berghe

    (1978, 1981); Shils (1957);

    Geertz (1973); Isaacs (1975);

    Fishman (1972); Connor (1994).

    7. Sobre a obra de B. Anderson

    e o caso portugus, ver Sobral

    (2003).

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  • 42 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 24, n. 242

    Naes e nacionalismos (a teoria, a histria, a moral), pp. 33-58

    9. A referncia a Jos Rizal e

    importncia da metfora surge

    em B. Anderson (1998, p. 2).

    A citao a caracterizar El fili-

    busterismo est em B. Anderson

    (2005, p. 6).

    por ocasio do quadragsimo congresso mundial do International Institute of Sociology, seu momento inspirador radicou nas agonias da descoloniza-o em Chipre, na Arglia, no Qunia, no Vietn. De fato, na Hirschman Lecture, intitulada Era, culture, absence, and comparison, proferida ao receber o prmio da ssrc, Anderson sublinhou a importncia da vaga global de descolonizaes na formao dos seus interesses intelectuais e na emer-gncia das suas preocupaes polticas, visveis desde 1958, quando viajou da Universidade de Cambridge para a de Cornell, para estudar os mistrios do Government, tendo a Indonsia como observatrio. Como j referimos, a bolsa do ssrc permitiu-lhe viver dois anos em Java (1962-1964), durante os quais aproveitou para proceder a uma anatomia do sistema poltico local, bastante radicalizado e fragmentado, e dos movimentos sociais do processo revolucionrio, nacionalista e anticolonial, entre 1945 e 19498.

    A dcada seguinte levou-o a estudar o nacionalismo. Para isso, beneficiou--se, como ele mesmo indica, da atmosfera de debate intelectual particu-larmente estimulante que marcava a academia no Reino Unido, a qual era promovida por pensadores como Eric Hobsbawm, Ernest Gellner, Anthony D. Smith, Elie Kedourie e Tom Nairn. Como salienta em Era, culture, absence, and comparison, foi alis por causa dessas disputas que decidiu embarcar na viagem que o conduziu a Comunidades imaginadas, procurando contudo inserir no mesmo debate uma dimenso que lhe parecia estar ausen-te a do nacionalismo anticolonial e promover um olhar histrico global e comparativo, caracterizado pelo privilgio das comparaes negativas (desvalorizadas, ou dificilmente apreendidas, pela cincia poltica). Para isso, assumiu como guia a metfora do telescpio invertido de Jos Rizal em Noli me tangere (cf. B. Anderson, 1998, p. 2), escritor que objeto de uma anlise aprofundada em Under three flags (juntamente com Isabelo de los Reyes, autor de El Folk-lore filipino), enquanto autor de El filibusterismo, publicado em Ghent no ano de 1891. El filibusterismo foi considerado por Anderson como o primeiro romance anticolonial incendirio, escrito por um sdito colonial fora da Europa (B. Anderson, 2005, p. 6). No primeiro caso, o saber acu-mulado em Java e no estudo dos movimentos de independncia do Sudeste Asitico revelou-se fundamental. No segundo, o fechamento na amlgama nica foi dificultado por sua proibio de entrar na Indonsia de Suharto, tendo sido, uma vez mais, questionado pelo irmo, cujas perspectivas macro--histricas foram sempre enquadradas pelo princpio comparativo, na linha da mais fascinante e estimulante sociologia histrica (B. Anderson, 2012; P. Anderson, 1974a, 1974b; Fulbrook e Skocpol, 1984)9.

    8. Ver Anderson (2012). Para

    uma estimulante abordagem

    regional, ver Berger (2003); Frey,

    Pruessen e Tan (2003).

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    Segundo Pheng Cheah, Anderson concebeu em The spectre of comparisons a comparao como um inevitvel elemento constitutivo do nacionalismo, introduzindo na sua anlise a projeo espacial da imaginao da nao (cf. Cheah, 1999, p. 9)10. As operaes de classificao (a produo de grades de categorizao e enumerao que possibilita o exerccio do poder e da autoridade do Estado) e de serializao (a atribuio de universalidade, sentido ontolgico e existencial s categorias produzidas pela classificao: etnias, raas, culturas, costumes, crenas de vria ordem etc.), assim como as de reduo do espao poltico e da nao a logotipos (logoization) por via dos mapas e da museificao das genealogias da identidade nacional processos que Anderson explora no captulo Censo, mapa, museu, inserido apenas na segunda edio de Comunidades imaginadas e essencialmente baseado no conhecimento do Sudeste Asitico11 no s sustentam a criao da gram-tica identitria nacional, como possibilitam a diferenciao das formaes nacionais, exigindo que o estudo do nacionalismo seja necessariamente comparativo e histrico (cf. Lomnitz, 2001; Chasteen e Castro-Klaren, 2003; Hamilton, 2006).

    Este um dos argumentos centrais que Anderson desenvolve em The spectre of comparisons e em Under three flags, aprofundando algumas de suas prprias categorias e anlises, como sucede com a distino entre modali-dades, bound e unbound, de serializao: as primeiras promovidas pelas prticas de regulao do Estado (por exemplo os recenseamentos e os sistemas eleitorais modernos), prticas que correspondem a lgicas polticas de repro-duo social, econmica e tnica; as segundas emergentes das variadas formas populares, vindas de baixo, associadas ao mercado do impresso, o capitalismo impresso, dos jornais aos romances, entre outras tecnologias da representao (cf. Eisenstein, 1968, 1979)12. Ambas so fundamentais para a construo de uma imagem da comunho (a concepo da profunda e horizontal cama-radagem que oblitera evidentes desigualdades de pertena e propriedade) que preside imaginao da comunidade poltica que a nao (que substitui, ou se sobrepe, a outras formas de imaginao, da comunidade religiosa ao reino dinstico), como o prprio Anderson determina em Comunidades imaginadas (cf. B. Anderson, 1983, pp. 15-16, 1990c, 1998, pp. 29-45). Contudo, para o autor, as primeiras formas de serializao constituem os instrumentos por excelncia das polticas tnicas promovidas pelas instncias oficiais, en-quanto as segundas correspondem a formas de ao poltica revolucionrias, patriticas e nacionalistas, e possuem um potencial emancipador relevante. Ora, essa distino entre poltica do nacionalismo e poltica da etnicidade

    10. O nmero especial de Diacrit-

    ics que contm o texto de Cheah

    foi posteriormente editado em

    livro (cf. Cheah e Culler, 2003),

    com a adio de alguns textos

    importantes, como o de Ernesto

    Laclau, On imagined communi-

    ties (pp. 21-28), e um de An-

    derson, que responde s crticas

    (Responses, pp. 225-246). Ver

    ainda B. Anderson (2004).

    11. Na edio de 1991, Anderson

    corrige o que considerou serem

    duas falhas tericas srias da

    primeira edio. A primeira dizia

    respeito anlise demasiado

    simplificada da formao dos na-

    cionalismos do terceiro mundo

    oferecida pelo stimo captulo

    (The last wave) e, mais em

    particular, no incluso de uma

    dimenso perifrica na anlise da

    sua formao, ou seja, ao obscu-

    recimento do papel do Estado

    colonial no condicionamento da

    sua manifestao histrica. Adi-

    cionou assim o captulo Census,

    map, museum. A segunda dizia

    respeito inexistncia de uma

    explicao slida do modo como

    as novas naes imaginavam a sua

    ancestralidade, por isso adicionou

    o captulo Memory and forget-

    ting (cf. B. Anderson, [1983]

    1991, pp. xiii-xiv).

    12. A noo de capitalismo

    impresso devedora da obra

    de Lucien Febvre e Henri-Jean

    Martin (1958).

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  • 44 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 24, n. 244

    Naes e nacionalismos (a teoria, a histria, a moral), pp. 33-58

    15. Para os debates relativos ao

    marxismo e questo nacio-

    nal, ver Haupt, Lowy e Weil

    ([1974] 1997); Vilar (1979);

    Davis (1978); Szporluk (1988);

    James (1996, principalmente

    pp. 103-122).

    que Anderson desenvolve em The spectre of comparisons, e que visa resgatar o nacionalismo dos processos de crtica radical que apontamos anteriormente, bastante problemtica13. O mesmo sucede com o modo como Anderson reduz o nacionalismo de longa distncia, ou etnonacionalismo de dispora, a um projeto de etnicidade-em-exlio, que procura transformar um Estado--nao num Estado-tnico14.

    ***

    Parece evidente que a trajetria biogrfica de Anderson relevante para recuperar a genealogia do seu pensamento, nomeadamente a forma como o intrprete de processos histricos se relaciona com a imaginao do ho-mem poltico. Ao mesmo tempo que discorre sobre o poder da imaginao como princpio da ao humana, recorrendo a diversos exemplos histricos, Anderson tambm imagina o nacionalismo, tal como o fizeram alguns dos atores histricos que investigou. Se, por um lado, o fenmeno responde a dinmicas particulares, em perodos e regies diferentes, podendo por isso mesmo ser considerado contingente e relativo, por outro lado Anderson atribui-lhe um carter programtico, como possvel modelo de imaginao poltica de uma nova sociedade. Ora, essa dimenso moral ou, mais propriamente, poltica que se constitui numa espcie de metadiscurso que atravessa Comunidades imaginadas.

    Obra de um autor inserido no meio intelectual marxista, Comunidades imaginadas mantm uma relao tensa com o marxismo. A ruptura com uma concepo marxista do nacionalismo que o encarava como uma ideologia, ou seja, uma anomalia ou uma mascarada produtora de uma falsa conscincia feita em benefcio de uma viso poltica do mundo, capaz de reformular os termos de um desejo de mudana. Nas origens dessa concepo, encontra-se o j referido Tom Nairn, que desencadeou, desde 1975, uma acesa controvrsia em torno das consequncias morais e polticas do nacionalismo. Como Anderson sublinha, tratava-se de uma disputa em torno das capacidades explicativas das teorias marxistas em relao ao fen-meno nacionalista. Em desacordo com Hobsbawm, que criticou de forma severa Nairn, Anderson apoiou este ltimo e a sua denncia de que a teoria do nacionalismo representa o grande erro histrico do marxismo, embora achasse mais correto dizer que o nacionalismo significava uma desconfor-tvel anomalia para a teoria marxista (cf. Nairn, 1975, p. 3; B. Anderson, 1983, p. 13; Hobsbawm, 1977)15. Anderson notou, tambm, que todas as

    13. Atente-se na lista de aspectos

    que valorizam o nacionalismo,

    que Anderson formula no final

    de The spectre of comparisons, ou

    nas frases que proferiu numa

    entrevista em Oslo (em 2005)

    conduzida por Thomas Hylland

    Eriksen: De fato, eu acho que

    o nacionalismo pode ser uma

    ideologia bastante atraente.

    Aprecio seus elementos utpicos

    [...]. O nacionalismo encoraja

    bons comportamentos (B. An-

    derson, 2005b). Para o processo

    de valorizao do nacionalismo,

    ver o texto de Wollman e Spencer

    (2007).

    14. Para o nacionalismo de longa

    distncia, ver a Wertheim Lecture

    de 1992 (cf. B. Anderson, 1992).

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