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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP A PERCEPÇÃO DO JOGADOR NA REALIDADE VIRTUAL DOS VIDEOGAMES DE GUERRA: UM OLHAR FENOMENOLÓGICO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP para a obtenção do título de mestre MARCELO CARLOS FALCÃO MENEGHETTI SÃO PAULO 2007

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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

A PERCEPÇÃO DO JOGADOR

NA REALIDADE VIRTUAL DOS VIDEOGAMES DE GUERRA: UM OLHAR FENOMENOLÓGICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP para a obtenção do título de mestre

MARCELO CARLOS FALCÃO MENEGHETTI

SÃO PAULO

2007

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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

A PERCEPÇÃO DO JOGADOR

NA REALIDADE VIRTUAL

DOS VIDEOGAMES DE GUERRA:

UM OLHAR FENOMENOLÓGICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP para a obtenção do título de mestre. Área de Concentração: Comunicação e Cultura Midiática Orientador: Profa. Dra. Eunice Vaz Yoshiura

SÃO PAULO

2007

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Ao Fábio, inspiração deste trabalho e da minha vida.

À Suzana, minha razão de ser.

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Agradecimentos

À minha orientadora, Eunice Vaz Yoshiura, pela dedicação, incentivo e

preciosas contribuições, que fizeram toda a diferença neste trabalho.

Aos amigos e colegas da M51, pelo apoio e compreensão durante

minhas ausências semanais nesses dois anos.

Aos professores do mestrado da Universidade Paulista, pelo

conhecimento transmitido e, em especial, à Profa. Janette Brunstein,

pelas sugestões metodológicas.

À Profa Dra. Haydée Dourado F. Cardoso, pelo auxílio na redação do

pré-projeto de pesquisa.

Ao Edgard Bohn, pelas caronas a um colega sempre sonolento.

Aos colegas de mestrado, pela amizade e convívio enriquecedor.

À minha família, pela compreensão, carinho, apoio, incentivo e,

principalmente, paciência.

Aos funcionários e secretárias do mestrado da UNIP, pela atenção

simpática e profissional.

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Resumo

MENEGHETTI, M. C. F. A percepção do jogador na realidade virtual dos videogames de guerra: um olhar fenomenológico [The player perception in virtual reality of the shooter vídeo games: a phenomenological approach]. Dissertação (Mestrado em comunicação) – Instituto de Comunicação Social, Universidade Paulista, 2007.

O trabalho relata a investigação da percepção do jogador de videogames de guerra em primeira pessoa – jogados num ambiente de vivência intensa, repleta de armas, tiros, matar e morrer, e que tem características de tridimensionalidade comuns à experiência proporcionada pelo ambiente de realidade virtual – a partir de uma abordagem com base na Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty (1999). A questão que o suscitou envolve a relação que essa experiência do jogo possa, ou não, ter com o real, considerando a subjetividade com que fenomenologia da percepção conceitua o termo. Outras questões formulam-se em decorrência desta: como atua a percepção na experiência de jogar videogames de guerra; como ocorre a percepção de si e do espaço no ambiente do jogo; como essa experiência afeta o sujeito; e indaga-se se ela equivale à vivência da realidade. O objetivo do trabalho é explicitar a experiência daquele que joga videogame de guerra em primeira pessoa, na perspectiva do próprio jogador, e também a percepção de si mesmo, do espaço virtual do jogo, do uso das armas e outros objetos situados no espaço do jogo, da relação do corpo físico com o corpo virtual por meio dos dispositivos periféricos do computador — mouse, teclado, monitor e fones de ouvido, do próprio pensamento quando em equipe e das suas reações durante o jogo. Além de Merleau-Ponty, a abordagem teórica apóia-se no conceito de realidade virtual, a partir dos estudos de Cláudio Kirner (2007), e no conceito de polissensorialidade, a partir da pesquisa sobre as interações biomecânicas entre usuário e computador, desenvolvido por Lúcia Santaella (2004). O corpus escolhido para a pesquisa é o videogame Counter Strike, com temática de terrorismo e contraterrorismo, por sua popularidade em todo o mundo. Para levar a cabo a pesquisa, utilizou-se o método fenomenológico de Giorgi e o pesquisador fez-se sujeito da mesma, jogando no mínimo três vezes por semana durante dois meses. Da experiência, foram extraídos relatos descritivos e procedeu-se à redução fenomenológica, com a escolha de termos e expressões-chave, que deram origem às unidades de significado de cada experiência. Os resultados mostram que a vivência no universo dos videogames de guerra se processa da mesma forma que na realidade física, tanto pelas reações de ordem psíquica e fisiológica

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observadas no jogador, quanto pela forma como a subjetividade do jogador preside sua construção do real. A percepção de si mesmo no espaço virtual ocorre de forma ambígua: limitada às partes de si mesmo visíveis na tela, porém integrada ao corpo fenomenal, que reage e comanda a situação de jogo. A percepção do espaço ocorre com noção de tridimensionalidade, limitada às dimensões da tela, porém mais dinâmica quanto à movimentação. O jogador compara espontaneamente os espaços representados no ambiente virtual com os espaços existentes na realidade física. Paradoxalmente, o domínio do corpo virtual, das armas de jogo e da movimentação no espaço virtual ocorrem quando se deixa de pensar racionalmente. É o corpo fenomenal que toma posse da realidade virtual. Nas experiência realizadas, a curto prazo, o jogador foi afetado com irritação e mau humor. A médio prazo, tais sintomas desapareceram e o jogador manifestou mais agilidade e controle em situações que exigem respostas rápidas, no dia-a-dia.

A experiência evidenciou o potencial da vivência na realidade virtual como forma de aquisição de informação para a experiência da realidade, dada a similaridade entre ambas. Por outro lado, pelo fato de o jogador não sofrer sinestesicamente as conseqüências de seus atos durante o jogo, a experiência dos jogos de guerra em primeira pessoa fornece noções distorcidas da relação do mesmo com a realidade física.

Palavras-chave. Videogames, guerra, realidade virtual, fenomenologia, percepção

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Abstract

This study reports the investigation of the player’s perception as to first-person shooter video games – played within an intense living up environment, replete of guns, shoots, kill and death, with features of tridimensionality common to experience provided by a virtual reality environment – from the approach based on Perception Phenomenology of Maurice Merleau-Ponty (1999). Issue behind it involves relation this game experience may have or not with real world, considering subjectiveness adopted by perception phenomenology for term concept. Other issues are formulated from this issue: how perception acts in war video games playing experience; how oneself and game environment perception occurs; how this perception affects subject and if it corresponds to reality experiencing. Study purpose is to explain experience of someone playing first-person war videogame, from the player’s perspective and also how he perceives himself, game virtual space, use of weapons and other objects available in game space, relation between physical body and virtual body through computer peripheral devices — mouse, keyboard, monitor and earphones, his own thinking in teamwork and his reactions during the game. Besides Merleau-Ponty, theoretical approach is also supported by virtual reality concept, from Cláudio Kirner (2007) studies , and polysensoriality concept from the research concerning bio-mechanical interactions between user and computer, developed by Lúcia Santaella (2004). Corpus selected for research is Counter Strike a very popular videogame worldwide, whose theme is terrorism and counter-terrorism. Giorgi phenomenological method has been applied to carry out research and researcher participated of it, playing at least three times a week, during two months. Descriptive reports have been extracted from experience and phenomenological reduction was performed, with key words and expressions, which originate meaning units of each experience. Results show that living up in the universe of shooter video games proceeds as in virtual reality, both for player’s psychical and physiological reactions and the mode as player’s subjectiveness manages his construction of real. Oneself perception within virtual space occurs in an ambiguous way: limited to oneself parts visible on the screen, but also integrated to phenomenal body, which reacts and commands game situation. Space perception takes place with three-dimensionality notion, limited to screen dimensions, but more dynamics as to motions. The player spontaneously compares spaces in virtual and physical reality. Paradoxically, mastering of virtual body, game weapons and motions within virtual space only occurs when you stop thinking rationally about it. This is the phenomenal body that appropriates virtual reality. Experience

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negatively affected subject, at short-term, provoking irritation and bad mood. At medium-term, such symptoms disappear and player is positively affected, showing more agility and control in situations requiring fast answers in daily activities. The experience showed the potential of living in virtual reality, as a way to acquire information to physical reality, due their similarity. On the other hand, due the fact of there is no synestesic effect related to his acts consequences during the game, the experience of first-person shooter video games gives distorted notions of relations with physical reality.

Key words. Video games, war, virtual reality, phenomenology, perception

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Sumário

Agradecimentos Resumo Abstract Introdução...................................................................................................... 8 CAPÍTULO 1 - Delineando a trajetória.........................................................16

O ser humano ocupa o espaço físico .....................................................16 No espaço físico, abre-se a possibilidade da interação.........................17 O ser humano ocupa o espaço não-físico............................................. 18 O espaço virtual abre-se à possibilidade da interação..........................19 O que é realidade virtual e como o corpo interage biomecanicamente com o computador................................................................................ 26

CAPÍTULO 2 - Da realidade para o virtual ................................................. 37 Afinal, o que é a realidade virtual?....................................................... 37 A interação biomecânica entre usuário e computador ........................ 46 Da questão Videogames e Violência..................................................... 54 A história dos videogames e do jogo Counter Strike ........................... 59

CAPÍTULO 3 - Diário da minha experiência virtual ................................... 72 CAPÍTULO 4 - O virtual na relação com o real ............................................91

Da posse do corpo virtual ......................................................................91 Da noção de terceira dimensão ............................................................ 93 Dos estímulos sensoriais ...................................................................... 96 Da percepção do próprio corpo virtual ................................................ 97 Da apreensão de objetos no espaço virtual ........................................ 100 Do corpo virtual enquanto executor de tarefas do jogo......................101 Do corpo presente no espaço virtual.................................................. 102 Da percepção do movimento.............................................................. 104 Dos estímulos sonoros........................................................................ 105 Da consciência corporal e da consciência intelectual ........................ 106 Do modo de olhar o jogo ..................................................................... 111 Do ato de raciocinar em relação ao jogo ............................................. 112 Da explicitação da minha experiência no espaço físico...................... 113 Da imersão no jogo e dos sentidos ...................................................... 119 Das inversões de perspectiva ............................................................. 120

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................134 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................... 144

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Introdução

Desde a Pré-História, a humanidade procura representar visualmente

seus momentos importantes e dramáticos para revivê-los na memória.

Foi assim com a representação rupestre da luta pela caça no Paleolítico

e tem sido assim com os quadros e as esculturas de guerras e batalhas

ao longo da História.

Na Era Moderna, a representação visual das batalhas evoluiu com a

tecnologia: adquiriu movimento com a arte cinematográfica, que tem

na guerra um gênero específico de cinema. Nas últimas décadas, passou

a ter sincronia com o tempo presente, graças à transmissão de TV ao

vivo, e nos últimos anos ganhou a interatividade nos videogames de

guerra em terceira dimensão.

O fascínio pelos jogos da guerra, à medida que estes evoluíram

tecnologicamente, transformou-se de contemplação visual em

entretenimento multimídia1; já não mais se contempla a guerra, nem se

assiste a ela passivamente, mas se-lhe vivencia virtualmente por

intermédio do jogo.

Este novo meio de representar a guerra, não mais apenas visual, mas

também sonora e interativamente, tem despertado grande interesse das

1 Multimídia é a exibição combinada de diferentes meios (texto, gráfico, fotografia, vídeo, áudio, animação, etc.), geralmente controlada por um computador pessoal.

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novas gerações em fase adolescente, e, por conseqüência, dos

pesquisadores da comunicação midiática.

As razões que me levaram a este tema tão novo quanto específico

advêm, em primeiro lugar, da observação em casa e nas lan houses2,

presencio meu filho horas seguidas entretido pela tela do computador,

“imerso” na realidade do jogo. Por meio dela, tanto meu filho quanto

seus colegas de jogo entram e saem de salas, castelos e edificações,

vivenciando os ambientes como se de fato estivessem neles. Executam

ações, “plantam” bombas em lugares determinados ou as desarmam,

dependendo do objetivo a cumprir. Seqüestram ou libertam reféns,

determinam táticas de guerrilha, realizam emboscadas. Fazem isso

virtualmente armados e, aparentemente, conhecem e dominam o uso

das armas, o ato de carregar a munição e as reações que cada tipo de

armamento acarreta ao ser manipulado. Conforme descreve Lynn

Alves, os armamentos desse tipo de jogo comportam-se, virtualmente,

de forma muito semelhante à realidade física:

Quase todas as armas já utilizadas pelos exércitos, policiais de elite e traficantes trafegam no CS, e os jogadores precisam conhecer a funcionalidade de cada uma delas para poderem utilizá-las no momento preciso. É exatamente essa proximidade com o real que atrai os gamers para o jogo. (2005, p. 128)

Surpreenderam-me o grau de conhecimento e a quantidade de detalhes

que tem este espaço, a destreza e habilidade com que se manipulam

2 Lan Houses são estabelecimentos equipados com computadores ligados em rede, onde são oferecidos serviços como acesso à internet e entretenimento de videogame

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objetos e executam táticas de guerrilha, e ainda o desenvolvimento de

atividades com níveis consideráveis de complexidade – coisas que

exigiriam, na realidade física, intenso treinamento. O espaço está lá.

Trata-se tão somente de representações por pixels.

A primeira questão que me mobilizou não foi propriamente o espaço

virtual, mas a temática dos jogos eletrônicos, voltada para violência,

guerra, guerrilha e terrorismo. Ocorreram perguntas como as que se

seguem: Será que esse tipo de jogo não incita a um comportamento

violento? Será que um jogo tão “real” não contribui para formar

soldados prematuros? De qualquer forma, trata-se de um assunto que

preocupa pais e educadores, ao verem seus filhos e alunos entretidos

em jogos de guerra que parecem ultrapassar a fronteira do lúdico e

expõem os jovens jogadores a cenas de matar e morrer, em que são

sujeitos, soldados, terroristas e vítimas virtuais. Em busca da percepção

no mundo virtual, enveredei então pela questão da violência nos

videogames, buscando livros e artigos que respondessem a essa

indagação. Constatei, no decorrer dessas leituras, alguns aspectos que

me levaram a mudar o modo de ver o assunto:

1) A discussão em torno do assunto “jovens, videogames de violência e

comportamento violento” não só existe há tempo como está longe de se

encerrar. Ela envolve comunicadores, psicólogos, educadores,

sociólogos, filósofos, médicos e outros cientistas, ora apresentando

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resultados positivos com relação ao comportamento violento motivado

pelos jogos, ora negativo, cada qual com argumentos e contra-

argumentos em favor ou contra esse tipo de jogo. Num determinado

momento, concluí que uma pesquisa com esse foco teria pouco a

contribuir para abreviar essa questão, já tão debatida.

2) “Adentrar” o espaço virtual é algo fascinante, independente da

questão da violência nos videogames. Meu filho e seus amigos

conversam sobre lugares e coisas do espaço virtual dos videogames

como se, de fato, lá tivessem estado. Concluí ser mais desafiador e

produtivo tentar desvelar esse mundo, explicitando a experiência no

espaço virtual.

3) A forma de contribuir com o assunto seria vivenciar o espaço virtual

dos videogames de guerra a partir da minha própria percepção, durante

dois meses, de três a quatro vezes por semana, sempre mais de uma

hora por dia, e relatar essa vivência, essa percepção e minhas reações.

Além da experiência próxima e particular, proporcionada por meu

próprio filho de 10 anos e por muitos dos seus colegas e amigos, meu

interesse foi despertado também pelo fato de esse tipo de

entretenimento ser generalizado entre os adolescentes. A “febre” dos

jogos de guerra ou de outros que proporcionam esta qualidade de

imersão na realidade virtual parece ter contagiado uma geração inteira

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de forma ampla, entre aqueles que têm possibilidade financeira de

adquirir o equipamento ou freqüentar uma lan house.

Para descobrir de que forma o universo virtual de guerra, presente

nesse tipo de entretenimento, pode afetar e influenciar aqueles que

vivenciam diariamente tais jogos, imersos nesse mundo, fez-se

necessário, antes, buscar um melhor entendimento de como, e se, a

realidade virtual pode afetar ou influenciar nossa percepção do mundo.

O grau de envolvimento subjetivo é diferente daquele frente a uma

pintura e mesmo ante a representação audiovisual ou fílmica. A

interatividade dos videogames e especialmente os de guerra suscita

uma nova questão. Qual a sua relação com o real? Ou seja, com o que

entendo por real fenomenologicamente falando, o mundo sob minha

perspectiva, submetido à minha subjetividade.

Tal questionamento deu origem à investigação aqui relatada. Por se

tratar de percepção de espaço e subjetividade, fui buscar sustentação

teórico-metodológica na fenomenologia da percepção, de Maurice

Merleau-Ponty, para explicitar a percepção do sujeito no espaço virtual

dos videogames de guerra. Assim, fiz-me sujeito da experiência,

incursionando pelo corpus escolhido – o jogo Counter Strike – e

participando das batalhas entre terroristas e contraterroristas. Desta

experiência, extraí relatos descritivos de minha percepção, e deles, a

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redução a unidades de significado conforme o método fenomenológico

de Giorgi (1985).

No Capítulo 1, exponho a proposta da pesquisa, sua problemática,

objetivos gerais e específicos, faço uma revisão bibliográfica, apresento

os referenciais teóricos e a metodologia de pesquisa utilizada.

Na primeira parte do Capítulo 2, Da realidade para o virtual,

introduzo o conceito de “realidade virtual”, a partir do artigo publicado

pelo Prof. Dr. Cláudio Kirner, do Grupo de Pesquisa em Realidade

Virtual da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), intitulado

Realidade virtual e aumentada (2007). Explico o que é realidade

virtual, quando foi desenvolvida, as categorias de realidade virtual

imersiva e não-imersiva, e apresentar alguns modelos de interação do

usuário associados a ambientes virtuais. Apresentarei também como se

constituem os sistemas de realidade virtual: usuário, computador e os

dispositivos sensoriais de percepção e controle que compõem a

interface homem-máquina.

Na segunda parte, exponho, de forma concisa, dois conceitos auxiliares

importantes para se entender o ambiente onde ocorre o jogo. O

primeiro conceito procurará familiarizar o leitor a respeito de como

ocorre a interação entre o usuário e o computador, a partir do

pensamento de Lúcia Santaella. Vou expor o conceito do “leitor

imersivo”, no qual melhor se encaixa o jogador de videogame, e o

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conceito de “polissensorialidade”, quando o usuário utiliza todo o seu

conjunto perceptivo de forma sinérgica e sincronizada.

No Capitulo 3, Diário da minha experiência virtual, relato livremente

minha experiência inicial com o jogo Counter Strike e seu

aprofundamento, à medida que me familiarizo com a realidade virtual e

as impressões que ela me suscita.

No Capítulo 4, O virtual na relação com o real, com base em Merleau-

Ponty, são examinados os relatos da experiência participativa no espaço

virtual, bem como minha percepção do espaço do jogo, sempre

identificando termos e expressões-chave e definindo as unidades de

significado. Da mesma forma, exponho a experiência que tenho do uso

das armas e de outros objetos situados no espaço do jogo. Como o jogo

ocorre entre duas equipes, “terroristas” e “contraterroristas”, descrevo

ainda a experiência que tenho de raciocinar em equipe no espaço

virtual. Em seguida, busco confrontar a vivência em espaço virtual

inspirada em local existente na realidade física com o próprio. Por fim,

submeto-me à experiência de vivenciar o espaço virtual invertendo a

perspectiva normal do vídeo, assim como Merleau-Ponty fez com o

espelho inclinado: primeiramente, jogo com o monitor inclinado em 45

graus com relação aos meus olhos. Em seguida, inverto a perspectiva

horizontalmente por espelhamento, ou seja, tudo o que está à direita

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fica à esquerda e vice-versa. Finalmente, inverto a perspectiva vertical,

jogando com a imagem de ponta-cabeça.

Nas Considerações Finais, concluo reunindo as unidades de significado

elencadas ao longo do Capítulo 4, refletindo a respeito da pesquisa

realizada e redigindo as constatações do trabalho.

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CAPÍTULO 1 Delineando a trajetória

Assim como fiz no início do texto de Introdução, situando o videogame

de guerra como uma representação criativa desta, entre outras

representações artísticas no decorrer da História, aqui também

entendo ser necessário situar a percepção do espaço virtual dentro do

conceito de espaço.

O ser humano ocupa o espaço físico

O espaço físico sempre foi o ambiente de manifestação da existência do

ser humano, palco de suas percepções, emoções, vivências, do seu agir

e interagir. Desde o primeiro choro após o nascimento, até o último

suspiro antes da morte, é por meio dele, espaço físico, e de seu corpo

material, que o ser humano se constrói e reconstrói em todos os

momentos. Não por acaso, “ser” e “estar”, em línguas de origem

anglicana, são expressos pelo mesmo verbo. Somos alguém, entre

outras coisas, porque estamos a cada instante em algum lugar,

percebendo-o e percebendo-nos nele, modificando-o e sendo

modificados por ele.

O espaço físico também é a sala de aula, o laboratório de pesquisa

daqueles que buscam o saber a respeito do ser humano e do próprio

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mundo. Mesmo em áreas de conhecimento voltadas à psicologia ou

filosofia, ainda assim o espaço físico é a principal referência dos fatos, o

lugar dos sentimentos, o solvente que mistura de forma mais ou menos

homogênea emoções, sentimentos e pensamentos humanos,

constituindo o que chamamos de realidade.

No espaço físico, abre-se a possibilidade da interação

Para Peter Berger e Thomas Luckmann (1986), a realidade é construída

pela presença social. Esta, por sua vez, sustenta-se em um mundo

objetivo e subjetivo, que dá coerência e significado aos seus membros.

Nesse mundo, a experiência torna-se fator preponderante na criação da

realidade, que é criada pela interatividade entre sujeito e sujeito, e

sujeito e objeto(s).

Para esses autores, a possibilidade de interação só existe havendo

encontro pessoal com o outro, por meio do uso da linguagem –

fundamental na objetivação da vida – sustentando e dando significado

à nossa existência. Sem interação não há linguagem e, sem esta, a vida

não tem significado nem plausibilidade, ou seja, a capacidade de tornar

o mundo algo possível e compreensivel. Procuramos evidenciar, nesta

pesquisa, outras possibilidades de interação sem o encontro pessoal, do

ponto de vista fenomenológico: aquela que pode dar-se no espaço

virtual.

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O ser humano ocupa o espaço não-físico

Na ultima década do século XX e neste início de século, o mundo viu –

e vê – as atenções do ser humano voltarem-se para um novo tipo de

espaço e de realidade, menos físico, mas não, necessariamente, menos

efetivo como meio de interações: o hiperespaço, espaço do computador

e de suas diferentes manifestações, como, por exemplo, os videogames.

O vertiginoso desenvolvimento tecnológico, a convergência das mídias,

com produtos inéditos como TV com internet, celular que filma e

fotografa, computador de mão com GPS, entre outros, permite-nos

testemunhar a dinâmica de adaptação da sociedade a essa revolução

tecnológica, por meio de sua própria revolução comportamental. O

computador pessoal multimídia potencializou a mania dos videogames,

antes restrita à TV acoplada a um console, acrescentado mais

proximidade da tela, mais movimento, maior nível de interatividade

entre jogador e máquina e, na esteira de seu desenvolvimento,

apropriando-se do conceito de realidade virtual3 no ato de jogar. Com

os novos videogames, há um novo espaço, não-físico, por onde se

percebe, se experimentam emoções, se interage e se manifesta. Um

novo espaço que, mesmo não sendo fisicamente real, possivelmente

influencia o indivíduo, assim como o espaço físico o faz.

3 Segundo Cláudio Kirner, realidade virtual é uma técnica avançada de interface, pela qual o usuário pode realizar imersão, navegação e interação em um ambiente sintético tridimensional gerado por computador, utilizando canais multissensoriais.

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O espaço virtual abre-se à possibilidade da interação

O desenvolvimento da tecnologia das placas gráficas “3D” nos

computadores propiciou o surgimento de um novo tipo de

entretenimento: os jogos de guerra em primeira pessoa. O termo auto-

explica-se, no sentido de que a tela do computador assume a posição do

olho humano (o monitor “é os olhos do jogador”) e o jogador-soldado,

enquanto imerge psiquicamente nos limites da tela, vai abstraindo-se

aos poucos do seu espaço físico e passa a vivenciar a “realidade virtual”

da guerra. Enquanto joga, ele “é” a tela. Lúcia Santaella (2004)

explicita essa interação psíquica e sensorial entre usuário e cibermídia,

a que chama de polissensorialidade. Este novo tipo de entretenimento

potencializa ainda mais o nível de imersão no espaço virtual, as

percepções e interações.

Quando se trata de “guerra”, porém, os jogos diferenciam-se pela

aproximação ou distanciamento da realidade. Assim como na

dramaturgia, eles se apropriam de recursos literários em sua narrativa,

distinguindo-se como jogos de realismo, ficção científica, épicos,

históricos, realismo fantástico, etc. O que focalizamos, no momento,

são os jogos com proximidade temática com a realidade, mais

especificamente com ambientação em terrorismo, principalmente pela

atualidade do tema.

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Vale ressaltar que os cenários idealizados com softwares de desenho e

animação 3D, muitas vezes, imitam em detalhes os lugares verdadeiros

de batalhas ocorridas, ou de lugares potencialmente violentos, como

cidades do Oriente Médio, lugares da Europa ou mesmo favelas

brasileiras. As armas também são modeladas com base nas armas

verdadeiras, refletindo o mais fielmente possível suas reações, sons,

formas de recarregar a munição, velocidade de tiro, mira, etc. Alguns

desses jogos são antecedidos e intermediados por vídeos e clipes, nos

mesmos moldes utilizados para motivar, insuflar coragem e levantar o

moral das tropas verdadeiras.

São jogos extremamente populares entre crianças, adolescentes e até

adultos. Não existem, ainda, dados precisos, mas números na imprensa

indicam a dimensão do novo meio, se é que assim podemos chamá-lo.

O Estadão on-line publicou notícia, em 20054, sobre uma feira de jogos

eletrônicos, em que um dos organizadores estima em 18 milhões o

número de jogadores no Brasil. A Folha de S. Paulo5 (versão on-line),

em 2004, noticia que, conforme dados do distribuidor do jogo de

guerra mais popular entre os adolescentes (Counter Strike – CS), são

realizados 2 milhões de downloads desse jogo no mundo por mês e, em

horários de pico, 175 mil usuários enfrentam-se simultaneamente via

4 Disponível em: <http://www.link.estadao.com.br/index.cfm?id_conteudo=5964>. Acesso em: 15 dez. 2005. 5 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u17224.shtml>. Acesso em: 15 dez. 2005.

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internet, em milhares de miniconflitos bélicos, sempre com um

realismo visual e sonoro surpreendente. Em novembro de 2006,

segundo o jornal Gazeta Mercantil6, existiam 3 mil lan houses no

Brasil, oferecendo, como principal entretenimento, os jogos de guerra

em primeira pessoa.

O fenômeno do videogame é um negócio bilionário. Notícia publicada

pelo site Terra, em maio de 2006, a respeito da E3, uma importante

feira mundial de videogames, realizada anualmente nos Estados

Unidos, demonstra em números a importância desse negócio:

O estudo, chamado de “Videogames: negócio sério para a economia da América”, prevê que a venda de jogos eletrônicos irá alcançar a marca de US$ 15 bilhões, e que o mercado vai garantir o emprego de mais de 250 mil pessoas altamente qualificadas até 2010.

Os jogos de guerra em primeira pessoa estão entre os mais populares,

graças ao nível de envolvimento sensorial, emocional e psicológico que

proporcionam ao jogador. Além disso, a ambientação terrorista

acrescenta o realismo narrativo, que vem somar-se ao visual e sonoro.

As batalhas virtuais são jogadas durante horas seguidas, não raro noites

inteiras, proporcionando, virtualmente, uma das vivências mais

intensas que o ser humano poderia experimentar – a última fronteira

do limite social, moral e ético –, que é matar ou ter a própria vida

subtraída por alguém. Imersos nesse espaço virtual, interagem entre si

6 Disponível em: <http://www.gazetamercantil.com.br/integraNoticia.aspx?Param=8%2C0%2C1%2C317833%2

CUIOU>. Acesso em: 2 dez. 2007.

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empunhando armas virtualmente reais. Resumindo, o desenvolvimento

tecnológico mais a temática de guerra possibilitaram à realidade virtual

condições de aproximar-se da realidade cotidiana, proporcionadas pela

qualidade da imagem e do som, o estilo de jogo eletrônico em primeira

pessoa, a narrativa realista e a proximidade do monitor junto aos olhos

do jogador – em média 50 cm.

Diante do realismo no tratamento da temática desses tipos de jogos e

das estratégias de matar e morrer, e da relação que isso possa ter com o

real – na perspectiva fenomenológica, subjetiva –, formulo as questões:

1) Como atua a percepção na experiência de jogar videogames de

guerra? 2) No ambiente do jogo, a percepção de si e do espaço ocorre

como na realidade física? 3) Como essa experiência afeta o sujeito? 4)

Ela equivale à vivência da realidade?

A partir destes questionamentos, definiu-se o objetivo operacional da

pesquisa, que é explicitar a experiência daquele que joga videogame de

guerra em primeira pessoa.

Especificamente, trata-se de explicitar, na perspectiva do sujeito que

joga, a percepção dos elementos que compõem a experiência de jogar

um videogame de guerra em primeira pessoa: 1) a percepção de si

mesmo; 2) do espaço do jogo; 3) do uso das armas e de outros objetos

situados no espaço do jogo; 4) da relação do corpo físico com o corpo

virtual por meio dos dispositivos periféricos do computador – mouse,

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teclado, monitor e fones de ouvido; e, finalmente, 5) a percepção do

próprio pensamento quando em equipe.

A partir dessa decisão, seguiu-se a busca por referências que pudessem

auxiliar a compreensão de como funciona a percepção nos videogames,

o que é a realidade virtual e como ocorre a interação entre o homem e o

computador, o qual, afinal, é o meio que intermedeia o jogador e o jogo.

Reportagem da revista Mente e Cérebro relata o uso da realidade

virtual no tratamento de fobias e traumas das pessoas em geral, bem

como na análise das capacidades e debilidades cognitivas de crianças e

adolescentes.

Um dos primeiros pensadores do fenômeno da comunicação a escrever

a respeito dos jogos foi Marshall McLuhan (1969), para quem os jogos

são extensões do homem social e do corpo político. McLuhan vê os

jogos como modelos dramáticos de nossas vidas psicológicas, cuja

função seria liberar tensões particulares.

Diego Levis (1998), pesquisador de comunicação social na

Universidade de Barcelona, foi um dos primeiros a discutir

abertamente a questão dos videogames e seu impacto social como um

fenômeno de comunicação e a polêmica que suscitam entre diversos

setores da sociedade.

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A pesquisa internacional mais recente encontra seu expoente em dois

grupos de pesquisa, formados por professores, cientistas e

pesquisadores, sendo um deles de origem norte-americana e outro de

origem espanhola. A revista eletrônica Game Studies7 concentra artigos

e pesquisas referentes a jogos eletrônicos, disponíveis para consulta via

internet. Laurie Taylor, pesquisadora Ph.D da Universidade da Flórida,

em seu artigo Video game space and the player8, afirma que, entre a

tela e o jogador, há muito mais do que uma interação de perspectivas

geométricas com simulações em 3D, propondo uma leitura do

fenômeno interativo – jogador, personagem e tela do computador – em

múltiplos níveis, a partir da psicanálise lacaniana.

Johannes Fromme, professor de pesquisa de mídia em ciência e

educação pela Universidade de Magdeburg, na Alemanha, estuda a

presença dos videogames na vida de crianças e adolescentes. Suas

pesquisas indicam que os videogames são parte da cultura dessa

geração, assim como outros tipos de lazer ou brincadeiras. No futuro,

prevê a tendência de os videogames se transformarem em lazer

familiar, na medida em que os adolescentes de hoje serão os pais de

amanhã.

Bushman & Andersen (2002) publicaram artigo relacionando a

exposição ao conteúdo violento dos videogames (entre outras mídias) e

7 Disponível em: <http://www.gamestudies.org>. 8 Disponível em: <http://www.gamestudies.org/0302/taylor/>. Acesso em: 2 ago. 2006.

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comportamentos agressivos. O artigo não fecha questão sobre o

assunto, mantendo a conclusão em aberto.

Em 2005, a BBC Brasil publicou o resultado de um estudo

desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Aachen, na

Alemanha, que constatou, em imagens de ressonância magnética no

cérebro, o mesmo tipo de atividade observado quando as pessoas agem

com violência em situações reais. Conclui o estudo que jogadores

contumazes podem estar mais predispostos à agressão.

Gerard Jones (2004), psicólogo e autor norte-americano de histórias

em quadrinhos, pesquisa a presença dos videogames de guerra entre

crianças e adolescentes, a partir de entrevistas com pais, professores e

do acompanhamento de crianças e adolescentes. Para ele, os

videogames, inclusive os considerados violentos, podem contribuir

para um crescimento saudável.

A pesquisadora Lynn Alves defendeu tese de doutorado pela

Universidade Federal da Bahia, na área de educação, a respeito de

videogames de guerra e violência, posteriormente transformado no

livro Game over: jogos eletrônicos e violência (2005). Conclui a autora

que a violência contida nos videogames e vivenciada pelos jovens

termina por exercer um efeito terapêutico do tipo catarse, canalizando

medos, desejos e frustrações para o outro.

Alexander Galloway, professor da Universidade de Nova York, traça um

paralelo entre o realismo dos jogos de guerra atuais e o realismo como

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movimento artístico, principalmente do cinema. Para ele, o conceito de

realismo passa pela ressonância social do espectador, que deve

vivenciar situações semelhantes às encenadas para entender o drama

encenado em toda a sua plenitude. Da mesma forma, um jogo não

poderia ser considerado realista, no sentido artístico do termo, apenas

por sua qualidade gráfica e sonora, mas também pela proximidade ou

pelo distanciamento de seus jogadores em relação ao tema do jogo.

Assim, adolescentes da cidade de Bagdá, no Iraque, vivenciariam todo o

realismo de um jogo baseado em guerrilha, como Counter Strike, em

detrimento de seus pares numa pequena cidade dos Estados Unidos,

para quem o jogo teria apenas seu aspecto lúdico.

A série de programas A Era do videogame veiculado no Discovery

Channel, no seu terceiro episódio, mostra a evolução da interface

tridimensional dos videogames de guerra e a importância do interesse

militar nessa tecnologia, que participou ativamente do seu

desenvolvimento.

O que é realidade virtual e como o corpo interage biomecanicamente

com o computador

Como se trata da percepção num ambiente específico e diferenciado,

nesta pesquisa conceitos teóricos auxiliares ajudaram a situar melhor o

contexto de estudo: é o caso dos conceitos de “realidade virtual” e

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“interação com os computadores”, que serão expostos de modo

bastante breve.

Em artigo publicado eletronicamente pelo Prof. Dr. Cláudio Kirner, do

Grupo de Pesquisa em Realidade Virtual da Universidade Metodista de

Piracicaba (Unimep), intitulado Realidade virtual e aumentada, o

autor apresenta uma visão geral de realidade virtual. Esta é divida em

duas categorias: imersiva e não-imersiva. Ele apresenta ainda alguns

modelos de interação do usuário associados a ambientes virtuais.

Realidade virtual imersiva seria aquela baseada no uso de capacete ou

de salas de projeção nas paredes, ao passo que realidade virtual não-

imersiva baseia-se no uso de monitores, tal como os videogames aqui

estudados. Entretanto, o autor alerta para o fato de que, “de qualquer

maneira, os dispositivos baseados nos outros sentidos acabam dando

algum grau de imersão à realidade virtual, com o uso de monitores,

mantendo sua caracterização e importância” (KIRNER, 2007).

Os sistemas de realidade virtual, segundo o autor, consistiriam em um

usuário, uma interface homem-máquina e um computador. O usuário

participa de um mundo virtual gerado no computador, usando

dispositivos sensoriais de percepção e controle. Um ambiente virtual

pode ser projetado para simular tanto um ambiente imaginário quanto

um ambiente de realidade física, dos jogos focalizados neste estudo.

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Lúcia Santaella oferece uma contribuição importante a respeito da

interação usuário-computador, com sua obra Navegar no ciberespaço

(2004). A autora explica os diferentes perfis de usuários, a quem chama

de leitores, e os diferentes níveis de imersão no ambiente do

ciberespaço. Santaella descreve a “separação” entre corpo e mente,

quando esta imerge no ambiente do ciberespaço. Mas ressalta a autora

que:

(…) por trás da aparente imobilidade corporal do usuário plugado no ciberespaço, há uma exuberância de estímulos sensórios e instantâneas reações perceptivas em sincronia com operações mentais. Estão em atividade mecanismos cognitivos dinâmicos, absorventes, extremamente velozes, frutos da conexão indissolúvel, inconsútil, do corpo sensório-perceptivo à mente, sem os quais o processo perceptivo-cognitivo inteiramente novo da navegação não seria possível. (2004 p. 132)

Quanto à percepção, procura explicar, por meio da teoria ecológica da

percepção de James Gibson, o estado de prontidão perceptiva do

usuário imersivo de computador, em que todos os órgãos sensoriais

atuam conjuntamente, a que chama de polissensorialidade.

Ao procurar explicar as habilidades do internauta, que são bastante

distintas do leitor comum, Santaella acaba por proporcionar a

compreensão do tipo de relação e das habilidades que se estabelecem

com o “leitor” de videogames, ainda mais intimamente ligado ao

computador que o usuário comum.

Esse “entrar e sair” dos espaços virtualmente criados, essa adaptação,

tanto perceptiva quanto motora, realizada pelo conjunto humano a

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vivência proporcionada pela realidade virtual, suas dimensões e

objetos, encontrou acolhida para nossa compreensão teórica no

pensamento de Maurice Merleau-Ponty, especialmente em sua

Fenomenologia da percepção, um dos marcos do questionamento

existencialista à tendência racionalista que dominou o início do século

XX.

Discípulo de Husserl, filósofo considerado o “pai” da fenomenologia,

Merleau-Ponty contribuiu com a idéia da intencionalidade do ser

humano, com um caráter mais instintivo e menos transcendental do

que o idealizado pelo filósofo alemão. A idéia central da fenomenologia

da percepção é a de que o ato de perceber não está em acolher, com o

conjunto sensorial, um mundo preexistente, mas sim em construir uma

realidade a partir da subjetividade daquele que o percebe. No

pensamento do autor, a perspectiva desloca-se para o próprio corpo,

que constrói, a partir das sensações, o mundo percebido. É para esse

corpo que a percepção direciona primeiramente suas informações,

antes que o cérebro racional possa se dar conta. O corpo, segundo

Merleau-Ponty, tem sabedoria própria, organiza-se e adapta-se de

forma contínua ao ambiente à sua volta. Sentir, perceber, passa a ter

uma significação vital na relação com o mundo. Uma relação mais

plena e anterior ao “preconceito” que o mundo objetivo tem em relação

às coisas.

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A primeira parte da Fenomenologia da percepção (1999) apresenta o

papel do corpo, da expressão corporal, da sexualidade e da fala. Na

segunda parte, a que mais nos interessa, focaliza o corpo no espaço, na

relação com as coisas e com as pessoas. É assim que desenvolve a sua

teoria geral da percepção: elevando o corpo à condição de protagonista

na apreensão deste mundo. Na parte final de sua obra, fala da natureza

da consciência e rejeita a idéia de que ela seria pura, transparente,

“consciente” de si mesma, mas, em contrapartida, recusa a

inconsciência. Novamente aí, o ser tem relação com o seu corpo e o faz

preservando a liberdade de o corpo tomar consciência do mundo.

Por essa razão a fenomenologia da percepção se oferece como o alicerce

de reflexão para a pesquisa desenvolvida. Antes de elaborar

julgamentos a respeito da realidade virtual dos videogames, é

necessário senti-la, apreendê-la nas informações que ela pode

transmitir ao nosso corpo físico – no caso desta pesquisa, focalizando

também o corpo virtual – nos diversos tipos de sinais que podem ser

captados pelo nosso conjunto perceptivo. Nas palavras de Merleau-

Ponty:

(...) se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele. (1999, p. 3)

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Ou seja, antes de buscar respostas a questões relacionadas ao

videogame e a sua influência, é necessário deixa-lo apresentar-se ao

estudo.

Em outra obra também utilizada como referência – O olho e o espírito

(2004) –,Merleau-Ponty, ao discorrer a respeito do uso do olhar como

“janela da alma”, critica a maneira superficial como a ciência aborda as

coisas e o mundo, menosprezando a sua verdadeira essência. Nas

palavras do autor, a ciência “renuncia habitá-las”. Propõe um outro

modo de ver, mais filosófico, menos racional e apegado à necessidade

de expressar opiniões e mais aberto ao sentido bruto das coisas à volta,

em que o olhar não funcione como a janela da razão, mas do corpo,

como aquele que verdadeiramente toma posse do mundo e da alma,

recriando uma visão original.

Essa forma de abordar o mundo, segundo Van Manen (1990), citado

por Godoi et al. (2006, p. 268), também pode ser transposta para o

campo da pesquisa qualitativa orientada para os significados da

existência humana. Ela, a fenomenologia, “é o estudo do mundo vivido

– o mundo como nós o experimentamos imediatamente, de uma

maneira pré-reflexiva” (GODOI et al., 2006, p. 274). Essa experiência,

segundo os autores, pode subsidiar o desenvolvimento de estudos que

envolvem a subjetividade humana. Porém, não se atém à rigidez

metodológica da pesquisa tradicionalmente conduzida na ciência e na

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academia. Van Manen (1990, p. 28, apud GODOI et al., 2006, p. 275)

define o método como “modo de investigação, que muda de acordo com

as considerações e implicações de uma perspectiva filosófica ou

epistemológica particular”. Petrelli (2001, p. 35) lembra: “Um

fenomenólogo sabe que epistemologia e metodologia se adéquam às

exigências da natureza específica do objeto”. Com relação à hipótese, a

pesquisa fenomenológica tem um novo enfoque. Petrelli afirma:

A rigor, o método fenomenológico não rejeita as hipóteses, as suspende no momento inicial e as verifica a posteriori com as teorias que as justificam, em uma postura dialética de tese, antítese e síntese. É assim que o saber se vem construindo através da pesquisa: um saber autêntico, não dogmático da realidade em si. (2001, p. 25)

A condição essencial da fenomenologia – o olhar despido de

precondicionamentos – também está presente na pesquisa

fenomenológica. Godoi et al. atentam para o benefício em relação à

própria investigação:

(...) a compreensão do significado de redução fenomenológica, mesmo diante da dificuldade de sua transposição para o contexto da pesquisa, pode auxiliar o pesquisador a ser rigoroso no processo de investigação, ajudando-o a se concentrar no fenômeno em estudo a partir de um “olhar” despido de pressuposições, hipóteses ou fatos que indiquem relações causais. (2006, p. 281)

Segundo Daniel Augusto Moreira (2002, p. 123), o método

fenomenológico é bastante utilizado na área da psicologia, na busca do

conhecimento a partir dos relatos das experiências dos pacientes, seja

na forma verbal, escrita, ou da observação participante do pesquisador.

Embora se possa dizer que existe um só método fenomenológico, ele

admite muitas variantes, por outro lado, reconhecendo que, entre elas,

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existem facetas comuns na estratégia de coleta de dados e na

apresentação dos resultados. Uma das formas mais conhecidas e

utilizadas, segundo esse autor (idem, ibid.), seria o assim chamado

Método Fenomenológico de Giorgi (1985 apud MOREIRA, 2002), que

objetiva a obtenção de “unidades de significado” contidas nas

descrições, cujos passos são os seguintes:

a) Leitura da descrição para se ter um senso geral do que foi escrito.

b) Nova leitura, com o objetivo de discriminar “unidades de

significado” dentro da perspectiva de interesse do pesquisador.

c) O pesquisador expressa as unidades de significado mais reveladoras,

segundo sua perspectiva.

d) Síntese das unidades de significado numa declaração consistente

com a experiência do sujeito – estrutura da experiência.

Mas como transpor o método fenomenológico para um contexto

empírico, no sentido da experiência concreta, como é o caso desta

pesquisa? Referindo-se a Husserl, Moreira alerta para a necessidade de

haver concessões de ambas as partes, mas também para o fato de que

há um fundamento filosófico a ser preservado:

A Fenomenologia deveria, isto sim, fornecer o caminho para o desenvolvimento das ciências eidéticas, as ciências das essências, que formariam a base racional das ciências positivas, como ele chamava as ciências físicas e naturais. A mera transposição do método fenomenológico para o contexto empírico, pois, não poderia fazer-se sem adaptações e concessões de rigor. Além disso,

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conceitos fundamentais no método fenomenológico, enquanto no patamar filosófico, poderiam perder sentido ou, mais propriamente, poder explicativo quando se tratasse do referencial empírico. O assunto é por demais complexo e constitui o “ponto cego” que existe ao se tentar fazer comunicar os dois domínios: o filosófico e o empírico. (2002, p. 113)

Uma dessas concessões, segundo Moreira (idem, p. 103), seria o fato de

que a fenomenologia se propõe a ser um estudo direto dos fenômenos,

tais como são dados ao próprio fenomenólogo, sem intermediários de

qualquer tipo. Um método “pessoal”, em que o dado é apreendido

direta e unicamente pelo fenomenólogo, que deve então se libertar de

teorias, pressuposições ou hipóteses explicativas, que são pressupostos

tradicionais de pesquisa. “A apreensão do fenômeno deve dar-se em

primeira mão” (idem, ibid.).

Em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty constitui uma base

filosófica de pensamento a respeito do mundo que o cerca, e ao qual

aplicou seu modo de ver. Tendo a subjetividade como princípio,

utilizou um método que respeitasse essa filosofia na sua essência

primeira. Ele mergulhou na vivência dos espaços, deixando que seu

próprio corpo fosse o sujeito da pesquisa.

Se, por um lado, uma coleta de dados que prestigiasse metodologias

não-interferentes permitiria uma informação mais isenta, por outro,

estaria privada do contato direto com sensações, emoções,

pensamentos imbricados a sentimentos carregados de subjetividade.

Para apreender a percepção mesma, como fenômeno, durante o jogo

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eletrônico, faz-se necessário vivenciar tal processo e simultaneamente

explicitá-lo. Por essa razão, fiz-me sujeito da experiência. E para

proceder ao seu cotejamento com a percepção da realidade física, elegi

as constatações de Merleau-Ponty em Fenomenologia da percepção

(1999).

De outra forma, o fenômeno – do grego phainomenon (aquilo que se

mostra a partir de si mesmo) – seria mostrado não a partir de si

mesmo, mas a partir de outros. A fenomenologia “(...) é também um

relato do espaço, do tempo, do mundo vividos. É a tentativa de uma

descrição direta da nossa experiência, tal como ela é (...)” (MERLEAU-

PONTI, 1999, p. 1). Mais adiante: “Tudo aquilo que sei do mundo,

mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma

experiência do mundo (...)” (idem, p. 3).

Optei pelo método fenomenológico da forma como Merleau-Ponty o

fez, ao relatar a percepção do mundo à sua volta. Uma abordagem

menos idealista, como a de Husserl, e mais mundana, que procura

priorizar a experiência e seu significado. Esta é, assim, uma pesquisa

qualitativa, que tem como método de coleta de dados a experiência, a

vivência, seguida de relato descritivo.

Assim como Merleau-Ponty se autopesquisou quando descreveu os

fenômenos perceptivos, também adentrei o espaço virtual do jogo

Counter Strike durante dois meses, duas a três vezes por semana, 60

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minutos por dia. Joguei sozinho e em rede, via Internet. Ao final de

cada período de jogo, descrevi o espaço a partir da minha

subjetividade: a de um homem adulto, com 40 anos de idade, casado,

classe média, nível superior completo, formado em comunicação social

e usuário de computador. Em um segundo momento, procurei

relacionar minhas percepções com o pensamento de Merleau-Ponty,

em textos descritivos e interpretativos, numa adaptação do Método

Fenomenológico de Giorgi (1985) que consiste nos seguintes passos:

a) Leitura das minhas descrições e relatos.

b) Redução fenomenológica – identificação dos termos e expressões-

chave, e extração do conteúdo de palavras, frases ou sentenças, também

chamada de “unidades de significado”9 a cada experiência perceptiva.

c) Síntese, dos elementos significativos extraídos numa declaração

consistente com minha experiência.

9 MOREIRA (p. 124, 2002) define as “unidades de significado” ou “de sentido” como discriminações espontaneamente percebidas dentro da descrição do sujeito, que o pesquisador considera como exemplos do fenômeno em questão. Como não se pode analisar um texto de uma só vez, ele é quebrado em pedaços, chamados de unidades de significado.

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CAPÍTULO 2 Da realidade para o virtual

Afinal, o que é a realidade virtual?

Segundo Santaella4, a Virtual Reality Modelling Language (VRML) foi

apresentada pela primeira vez em Orlando, no SISGRAPH, e

implementado pela Silicon Graphics, uma importante empresa de

infografia.

Uma das definições mais aceitas para a expressão realidade virtual, é a

formulada pelo professor Cláudio Kirner no seu artigo “Realidade

virtual e aumentada”3:

uma técnica avançada de interface, onde o usuário pode realizar imersão, navegação e interação em um ambiente sintético tridimensional gerado por computador, utilizando canais multi-sensoriais (2007)

A definição responde parcialmente a nossa pergunta. Para que

cheguemos a uma resposta mais abrangente, é preciso olhar para cada

palavra do termo separadamente. A palavra realidade contida na

expressão não seria a “realidade” no sentido social, humano ou

contemporâneo, mas no sentido perceptivo. Neste caso, realidade

estaria ligada à noção do espaço tridimensional. O artigo prossegue:

A interface com realidade virtual envolve um controle tridimensional altamente interativo de processos computacionais. O usuário entra no espaço virtual das aplicações e visualiza, manipula e explora os dados da aplicação em tempo real, usando

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seus sentidos, particularmente os movimentos naturais tridimensionais do corpo. (Idem, 2007)

A realidade virtual é então mais do que um meio ou mecanismo

artificial de simular a tridimensionalidade – principal característica da

realidade física aos nossos sentidos. Para o autor, o conceito não se

limita à questão do mecanismo. Um sistema de realidade virtual,

segundo ele, envolve estudos e recursos ligados com percepção,

hardware, software, interface do usuário, fatores humanos, e

aplicações.

A percepção é o foco principal deste trabalho e será assunto de um

capítulo específico. Mas podemos adiantar que os recursos que

acabamos de citar — hardware, software, interface do usuário e

aplicações — concorrem e trabalham em conjunto para que a percepção

“não se dê conta” da presença deles. A percepção é a causa e a

conseqüência dos sistemas de realidade virtual. É para ela que essa

tecnologia existe e tem sido desenvolvida há mais de 50 anos. Mas,

contraditoriamente, o objetivo desta tecnologia é que não se perceba,

conscientemente, quais são os recursos responsáveis por proporcionar

a experiência da realidade virtual, mesmo que, porventura, se saiba que

eles existam. A idéia é “driblar” a percepção e fazer pensar que se está

onde não se está.

Este ponto merece atenção, porque toca uma questão central da

Fenomenologia da percepção (1999), de Merleau-Ponty. Para ele, a

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percepção ocorre antes que o sujeito se dê conta racionalmente.

Perceber, para Merleau-Ponty, não é um ato da consciência enquanto

razão, mas do corpo consciente. Quando o raciocínio começa a

deliberar sobre qualquer questão que tenha envolvido a percepção, esta

já ocorreu. Perceber, segundo Merleau-Ponty, não é o mesmo que

“pensar sobre o que se percebeu”. Ela seria fruto de um pensamento do

corpo, porque o corpo, enquanto conjunto perceptivo, teria sua própria

sabedoria. Acredito que muito da resistência em se compreender

melhor a Fenomenologia da Percepção e a subjetividade está no fato de

que o mundo percebido é o mundo físico. Ou pelo menos era, até antes

do desenvolvimento dos sistemas de realidade virtual. As

possibilidades proporcionadas por esta nova tecnologia permitem que

duas realidades se apresentem: a realidade virtual, percebida pelo

corpo, e a realidade dos sistemas que a produzem, compreendida

racionalmente pelo intelecto.

O equipamento físico por onde transitam as imagens e o som

proporcionam a sensação da realidade virtual. Pode ser desde um

equipamento especificamente desenvolvido para este fim, até um

videogame. O equipamento utilizado pelo corpus desta pesquisa é o

computador do tipo PC, dotado de placa de vídeo (equipamento de

aceleração gráfica que permite a simulação em 3D), leitor de CD-ROM,

monitor colorido, mouse, teclado e fones de ouvido.

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Software é o programa de computador, desenvolvido para as mais

diversas aplicações. Cabe aqui esclarecer uma confusão bastante

comum quanto ao entendimento de software: não se trata de CDs ou

disquetes, mas de seu conteúdo. A rigor, software é um conjunto de

linguagens de programação, cuja finalidade é tornar o computador

capaz de executar diferentes tarefas. O software de edição de texto

permitiu ao computador cumprir a função de uma máquina de escrever

com características avançadas na edição deste trabalho – o software de

apresentação substitui a lousa com vantagens, o software de pintura

transforma o computador numa tela artística virtual e o software

videogame faz dele uma central de jogos e entretenimento. O software a

ser estudado é o jogo Counter Strike.

Interface com o usuário é constituída pela forma como o hardware está

organizado para interagir com o usuário, pelos dispositivos periféricos

que participam deste sistema interativo e pela função que cada um

executa. Os dispositivos dividem-se, basicamente, em: dispositivos

destinados a enviar informações para o usuário (monitor, caixas de

som, fone de ouvido etc) e dispositivos destinados a receber os

comandos do usuário e enviá-los à máquina (mouse, teclado, joystick,

etc). No caso dos jogos eletrônicos desta pesquisa, os dispositivos são

os normalmente utilizados por um computador com multimídia:

monitor colorido, mouse, teclado e fones de ouvido. Quanto às funções

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de cada dispositivo, elas variam de acordo com a configuração do

software. No jogo Counter Strike, o mouse e o teclado acumulam

funções, dependendo do botão ou do movimento pretendido. Apertar o

botão esquerdo equivale a dar um tiro. Apertar a tecla “W” significa

andar para frente. Mantê-la apertada, movimentando o mouse para a

esquerda ou para a direita, muda o sentido da caminhada. Há uma

série de combinações que possibilitam dezenas de ações diferentes, e

alteram, além dos comandos do usuário, também a interface visual

(posição de câmera, informações do jogo, etc). Habituar-se às

combinações , ganhar mobilidade, agilidade e domínio da interface no

espaço virtual é tarefa árdua para o cérebro e para a atenção do

jogador. Seria como aprender a andar novamente, tomar posse do

espaço novamente, a partir das novas regras deste novo mundo. Mas

quando os dedos se habituam às combinações propostas e a atenção, a

consciência, não mais participam deste processo, quando o corpo reage

às situações de guerra sem esperar uma ordem consciente do cérebro,

ganhamos agilidade e desenvoltura. Isso vem reforçar a afirmação feita

anteriormente, de que a vivência no espaço virtual vem ao encontro do

pensamento de Merleau-Ponty: a inteligência que se apodera do espaço

seria a inteligência do corpo, e não a inteligência comandada pelo

cérebro consciente.

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Ainda com relação à interface, se estabelece uma relação com a

abordagem de Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção:

O que importa para a orientação do espetáculo não é meu corpo tal como de fato ele é, enquanto coisa no espaço objetivo, mas meu corpo enquanto sistema de ações possíveis, um corpo virtual cujo “lugar” fenomenal é definido por sua tarefa e por sua situação. (1999, p. 336)

Ora, quando aprendemos as combinações de teclas necessárias para

jogar videogames, não estaríamos, na verdade, configurando nosso

corpo fenomenal para que ele possa transitar na realidade virtual? Não

estaríamos dando a ele, em função da sua nova situação e das tarefas a

desempenhar, um novo sistema de ações que torna possível cumprir

tais tarefas?

Quanto à configuração da interface, muitas vezes, o próprio usuário

pode interferir neste processo, adotando outros dispositivos, como por

exemplo, trocar o mouse por um joystick, por considerá-lo mais

adequado à performance do jogo. Mas essas mudanças não alteram a

configuração da interface, cujo esquema básico, mediado por

computador, seria este:

USUÁRIO

Sistemas de

percepção

Sistemas de músculos

sensação

ação

interface homem-máquina(visores, cursores etc)

Sinais sensoriais

Sinais de controle

Ambiente virtual

Figura 1 - Esquema de interface com o usuário; disponível em: <http://www.realidadevirtual.com.br> – redesenhado

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Aplicações seriam as tarefas que o computador executa a partir dos

comandos do software, com finalidade de trabalho, lazer,

entretenimento etc. As aplicações clássicas são: edição de texto,

planilha de cálculo, apresentação de trabalhos, ilustrações, leitura de

documentos, leitura de páginas na internet etc, executadas a partir de

programas software. A aplicação a que se destina o corpus desta

pesquisa é o entretenimento do jogo.

Imersão, interação e envolvimento

Outra característica da realidade virtual, segundo Kirner, é que ela

pode ser considerada a junção de três idéias básicas: imersão,

interação e envolvimento.

A idéia de imersão estaria ligada com a sensação de se estar dentro do

ambiente. Para ser considerada imersiva, a realidade virtual estaria

baseada no uso de capacete ou de salas de projeção nas paredes,

enquanto a realidade virtual baseada no uso de monitores seria

considerada não-imersiva. Isso quer dizer, em princípio, que o corpus

da nossa investigação não seria considerado realidade virtual, no

conceito do autor, pelo fato do monitor não apresentar a mesma

condição de imersão proporcionada por dispositivos como o capacete

ou as salas com projeção lateral. Mas a experiência do jogo, a que nos

submetemos no decorrer da pesquisa, mostrou que a proximidade com

o monitor e o uso de fones de ouvido proporcionam a sensação de estar

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vivenciando o ambiente virtual. O próprio autor, em determinado

momento, concorda com este raciocínio, quando afirma que

dispositivos baseados nos outros sentidos acabam dando algum grau de

imersão à realidade virtual com o uso de monitores, mantendo sua

caracterização e importância.

Interação é capacidade que o computador tem de detectar os comandos

do usuário e modificar instantaneamente o mundo virtual de forma

contínua (capacidade reativa). Ver as cenas mudarem em resposta aos

seus comandos agrada as pessoas. Esta é a característica mais marcante

nos videogames e uma das causas do seu sucesso. O conceito de

interação será aprofundado mais à frente, quando for discutida a

interatividade do usuário, à luz da obra Navegar no ciberespaço

(2004), de Lúcia Santaella. Mas é importante adiantar que a noção de

interação, no caso da realidade virtual e nos videogames difere um

pouco da definição de interatividade comumente aceita quando se fala

da navegação via Internet. Neste caso, a interação, ou interatividade,

pressupõe um intervalo de tempo entre o comando do usuário e a

resposta do sistema. Já a interação nos videogames e na realidade

virtual ocorre em tempo real, ou seja, o retorno do sistema acontece

imediatamente ao comando do usuário. A sensação é como se a reação

ocorresse no espaço da tela, obedecendo ao imediatismo das leis físicas

no espaço tridimensional:

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Interação na Internet

12

COMANDO DOUSUÁRIO

Tempo perceptível

de processamento RESPOSTA DOSISTEMA

Interação nos games e R.V.

12

COMANDO DOUSUÁRIO

Tempo imperceptível

de processamento RESPOSTA DOSISTEMA

Sensação de “tempo real”

Figura 2 - Interação na internet e na realidade virtual disponível em: <http://www.realidadevirtual.com.br>

Envolvimento está ligado com o grau de motivação para o engajamento

de uma pessoa em relação a determinada atividade. O envolvimento

pode ser passivo, como ler um livro ou assistir televisão, ou ativo, ao

participar de um jogo com algum parceiro ou com a máquina.

Proporcionar graus mais intensos de envolvimento tem sido um dos

grandes desafios daqueles que desenvolvem sistemas de realidade

virtual. Envolvimento está ligado à arte dramática. Historicamente, o

envolvimento do receptor, seja ele leitor, platéia, telespectador,

ouvinte, jogador, é resultado do talento dramático-narrativo do

emissor, seja eles escritor, ator, diretor de cena, editor. Ver-se

envolvido por uma narrativa qualquer é deixar-se envolver pelo talento

de quem conta a história. Há um limiar da consciência que é rompido

no momento em que o receptor se deixa envolver pela narrativa, e só se

restabelece ao final da história. No caso da realidade virtual, ela tem

sido caracterizada mais pela questão tecnológica do envolvimento

sensorial do que narrativo. Viaja-se por universos, interage-se com

objetos, acessa-se conteúdos com fins educacionais, mas a consciência

do usuário, do “viajante”, mantêm-se aquém do limiar acima descrito.

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Nos ambientes experimentais de realidade virtual, o usuário sabe que

está experimentando tal vivência.

Neste sentido, os videogames de guerra – e outros jogos em 1ª pessoa –

têm se mostrado mais competentes em possibilitar a condição de

envolvimento para o usuário, mesmo considerando que a tela do

computador é uma interface menos imersiva que os óculos ou capacetes

de realidade virtual.

A interação biomecânica entre usuário e computador

Em todos os momentos de vigília de nossas vidas, acionamos nosso

sistema perceptivo. Dependendo do ambiente em que nos

encontramos, este ou aquele sentido é mais acionado. Num estádio de

futebol, o sentido mais utilizado seria a visão, numa boate, a audição,

num restaurante, o paladar, no mercado de frutas, o olfato e assim por

diante.

E quando nos encontramos na realidade virtual? Quais funções do

nosso sistema bioperceptivo são acionadas?

Lúcia Santaella, em Navegar no ciberespaço4 (2004), apresenta o

referencial que mais se aproxima da compreensão de recepção do

usuário de hipermídia. Seu livro é resultado de uma pesquisa intitulada

“Fundamentos biocognitivos da comunicação. Aplicações nos processos

de navegação no ciberespaço”. A pesquisa buscou responder questões

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relacionadas a percepções, cognições, operações mentais e sensoriais

envolvidas na interação entre o computador e o usuário de internet.

Numa referência ao filme Matrix, onde os corpos permanecem em

estado vegetativo enquanto suas mentes vivenciam intensas

experiências, a autora faz uma analogia com o usuário de Internet, cuja

postura se assemelha ao jogador de videogame. Santaella (2004, p. 132)

questiona a aparente imobilidade corporal do usuário, propondo que

há uma “exuberância de estímulos sensórios e instantâneas reações

perceptivas em sincronia com operações mentais” Para defender tal

proposição, Santaella se apega à Teoria ecológica da percepção de

Gibson10, segundo a qual, a percepção não seria algo computado pelo

cérebro como resultado do somatório de sensações. Os órgão

receptores não seriam, por sua vez, apenas canais de sensações. Seriam,

sim, sistemas complexos, ativos e que forneceriam ao organismo

informações de forma contínua, permitindo e possibilitando a vida

adaptativa. Olhos, ouvidos, nariz e boca seriam “modos de atenção”

atuando conjuntamente focados na mesma informação, para que ela

possa ser captada de forma combinada e mais completa possível.

Ainda com relação aos órgãos sensores, lembra que, hoje, os cinco

sentidos estabelecidos por Aristóteles são considerados incompletos.

Além dos órgãos sensores extereoreceptores, há também os

10 GIBSON, James J. The senses considered as perceptual systems. Boston: Mifflin, 1966.

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proprioceptores (nos músculos, juntas e ouvido interno) e

interoceptores (terminações nervosas nos órgãos viscerais). Estes

sistemas provocam três tipos de sensações: as de origem externa, a que

chama de percepções; as sensações de movimento ou cinestesia e as

sensações mais vagas ou profundas, que seriam os sentimentos e as

emoções. Apesar de serem considerados receptores, os órgãos sensores

são, na realidade, móveis, exploradores, orientadores. Portanto, a chave

para se entender o sistema perceptivo estaria na inter-relação entre os

estímulos recebidos externamente e os produzidos pelo próprio

organismo.

O movimento, tanto dos órgãos sensores, quanto dos motores,

dependem dos conjuntos musculares que, segundo a autora, Gibson

propõe uma classificação baseada na ação propositada:

Sistema postural – Movimentos compensatórios para preservar o

equilíbrio e orientação com a terra.

Sistema investigativo – Ajustamentos da cabeça, olhos, boca, mãos e

outros, para obter informação externa.

Sistema de locomoção – Favorecem a colocação no ambiente, como

aproximação, perseguição, desvio, escape

Sistema de apetite – Movimentos de troca com o ambiente: respiração,

alimentação, eliminação e interação sexual.

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Sistema performativo – alteram o ambiente em benefício do

organismo: construir, armazenar, lutar, usar ferramentas.

Sistema expressivo – movimentos posturais, faciais, vocais que

identificam estados emocionais.

Sistema semântico – movimentos de todos os tipos, especialmente da

fala codificada.

Esta classificação é importante para compreendermos, através da

sutileza dos movimentos que ela demonstra, que por trás da

imobilidade aparente do mouse há intensa movimentação, porque ela

está “indissoluvelmente atada ao sistema muscular, que á acionado

mesmo quando não há movimento externo aparente” (p. 136)

Estes conjuntos musculares acionam os sistemas extereoreceptivos, que

para Gibson seriam “cinco modalidades de atenção” (p. 136): sistema

básico de orientação – que seria a atuação conjunta dos seguintes;

sistema auditivo – capta a vibração do ar e identifica a natureza e a

direção do evento; sistema olfativo-degustativo; sistema visual; e, por

fim, sistema háptico, responsável pelos mecanismos receptores

relacionados ao tato, e que recebe especial atenção da autora. Ele

consistiria de um complexo de subsistemas e não possui um órgão

específico de sentido, mas órgãos receptores distribuídos por todo o

corpo, que atuam em conjunto com as juntas e outros órgãos, também

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responsáveis pela recepção. Compressão, estiramento, fricção, tração

levam estímulos aos terminais nervosos e informações ao indivíduo,

tanto a respeito do seu corpo, quanto a respeito do ambiente. Uma

característica que diferencia o sistema háptico dos outros é sua

capacidade de interagir com o ambiente. Enquanto os sistemas visual,

auditivo e olfativo têm apenas a capacidade de receber sinais do

ambiente, o sistema háptico tem a capacidade de transformá-lo.

As duas partes principais deste sistema são a pele, com suas extensões

cutâneas, como unhas e pelos, e o corpo movente, com sua hierarquia

baseada no esqueleto. Qualquer estímulo ou perturbação tátil ocorre de

forma indireta, atingindo primeiramente as extremidades das

extensões cutâneas, que mediam o contato entre o corpo e o objeto

causador do estímulo tátil. Essa questão, segundo a autora, é

importante para compreendermos o uso de extensões artificiais ou

outros objetos como auxiliares na percepção háptica do ambiente.

Como exemplo, ao segurar uma vara para tocar, com a ponta dela,

outro objeto, sentimos o toque na ponta da vara. Isso ocorreria porque

a informação da perturbação mecânica na extremidade da vara seria é

obtida pela mão como um orgão perceptivo, que inclui a informação

sobre o tamanho e a direção da vara. A conclusão é que os limites, a

fronteira entre o organismo e seu ambiente não é algo que possa ser

bem delimitado.

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A outra parte deste sistema, compreendida pelo corpo, organiza-se na

locomoção e na manipulação dos objetos a partir desses estímulos. É

importante entender que cada perturbação, por menor que seja, nas

pontas, irá refletir até na espinha dorsal por meio das juntas inter-

relacionadas e organizadas e forma hierárquica (p. 140-141). O osso

anterior afeta o seguinte e é afetado pelo precedente. A partir daí,

podemos tirar duas conclusões:

1- Os estímulos do ambiente orientam a organização e a postura do

corpo na locomoção e apreensão de objetos.

2- O primeiro sinal destes estímulos, no sistema háptico, se dá por

meio das extremidades do corpo: dedos, pés e língua.

3- Sentir um objeto é sentir também o nosso próprio corpo na

interação com o objeto.

Interagindo com o meio, exploramos os ambientes, colocamos em ação

os sistemas musculares e receptores, que atuam conjuntamente para

nos orientar, locomover e dar continuidade a este processo que se

renova a cada segundo. Santaella defende que isso ocorre de forma

semelhante no ciberespaço11, (p. 143) e a este conjunto sensorial dá o

nome de polissensorialidade.

11 Na página 45, a autora define ciberespaço como todo e qualquer espaço informacional multidimensional que, dependente da interação do usuário, permite a este o acesso, a manipulação, a transformação e o intercâmbio de seus fluxos codificados de informação. É o espaço que se abre quando o usuário conecta-se com a rede.

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Polissensorialidade

Ao navegar pelo ciberespaço, interagindo com links, signos da internet

ou, no caso desta pesquisa, ao vivenciar a realidade dos videogames de

guerra, executando missões, plantando bombas, libertando reféns, o

usuário lança mão do seu equipamento cognitivo e sensorial,

acompanhado de movimentos físicos, para que a interatividade possa

ocorrer: ele digita o teclado ao mesmo tempo que clica e movimenta o

mouse.

À primeira vista, parece uma operação simples, monótona, repetitiva e

próxima da imobilidade. Santaella defende que não há nada mais

enganoso (p. 145)

Pesquisas em neurociência (Bizzi, 1995 apud Santaella, 2004)12

demonstram a série de processos que estão implicados com o

planejamento e execução dos movimentos dos braços, mãos e dedos.

Tocar o teclado, clicar e mover o mouse são reações táteis imediatas aos

estímulos visuais e sonoros produzidos pelo ambiente virtual, numa

dinâmica muito superior à da realidade física. O clique do mouse

representa um movimento duplamente sintonizado: tanto no mundo

físico através do sistema háptico, quanto no mundo virtual, através dos

receptores óptico e auditivo.

12 BIZI, Emilio (1995) “Strategies and planning: motor systems”. In GAZZANIGA, M. S. (ed.), The cogntitive neurosciences. Cambridge, Mass.: MIT Press, p. 491-494.

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Através da mão, que é o único órgão do corpo humano que acumula as

funções sensória, exploratória e, ao mesmo tempo, motora e

performativa (p. 147) o usuário reconhece o mundo pelo tato e o

modifica. Enquanto explora o ambiente, a sensibilidade da mão está

toda concentrada nas extremidades dos dedos, que têm uma

capacidade refinada de extrair informações detalhadas e alimentar as

funções cognitivas. A esta capacidade, a autora dá o nome de “toque

discriminatório” (p. 147).

Ao tocarem o mouse e o teclado, as pontas dos dedos acionam sistemas

musculares e postural, na busca de equilíbrio para o corpo (p. 148),

sistema investigativo, visual e auditivo para orientar o usuário no

ambiente virtual, e e sistema performático para buscar as posições mais

favoráveis dentro da “arena” de jogo. A cada clique ou movimento, toda

a situação muda, exigindo atualização constante de todos os sistemas

citados.

A autora conclui o raciocínio antevendo novas sensações ao que chama

de polissensorialidade:

O computador segue a trilha da posição da cabeça do participante e continuamente recomputa a visão da cena em uma perspectiva tridimensional correta. Isto cria a perspectiva, a tridimensionalidade e a constância do objeto para o observador. Por enquanto, a ilusão do toque, do cheiro, e do paladar ainda não foram simulativamente geradas. Mas a virtualização desses sentidos, mais viscerais do que a visão e a escuta, está em processo de evolução.. (2004)

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Da questão Videogames e Violência

Nos estágios iniciais da pesquisa, buscamos investigar a relação entre

videogames com temática de violência e sua possível influência no

comportamento dos jovens jogadores. Durante a leitura do referencial,

percebemos que a discussão em torno do assunto “jovens, videogames

de violência e comportamento violento” não só existe há tempo, quanto

está longe de se encerrar. Ela envolve comunicadores, psicólogos,

educadores, sociólogos, filósofos, médicos e outros cientistas, ora

apresentando resultados positivos com relação ao comportamento

violento motivado pelos jogos, ora negativo, cada qual com argumentos

e contra-argumentos a favor ou contra este tipo de jogo. Em

determinado momento, concluímos que a nossa pesquisa teria mais a

contribuir para abreviar essa questão, já tão debatida, oferecendo um

novo olhar sobre o tema. Decidimos escolher pela linha fenomenológica

e por explicitar a experiência perceptiva do jogador, do que enveredar,

também, na questão da violência. Apresentamos a seguir alguns

resultados da pesquisa.

Marshall McLuhan (1969) foi um dos principais teóricos da

comunicação a tratar do tema jogos, antes do advento dos videogames.

Para ele, os jogos são extensões do homem social e do corpo político,

assim como as tecnologias são extensão do organismo animal. O autor

exemplifica com um artigo da Life Magazine, que cita violentos jogos

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de guerra praticados entre algumas tribos, e que nada têm a ver com a

tradicional motivação política da guerra:

(...) este perpétuo derramamento de sangue não é praticado por nenhuma das razões habituais que promovem as guerras. Nenhum território é conquistado ou perdido; não há prisioneiros, nem pilhagem. Lutam porque gostam de luta, entusiasticamente; a luta é para eles uma função vital do homem integral e porque sentem que devem agradar aos espíritos dos companheiros assassinados. (1969, p. 265)

Para McLuhan, os jogos são modelos dramáticos da vida psicológica,

que cumprem a função de liberar tensões particulares. Do ponto de

vista da sociedade, argumenta que as práticas sociais de uma geração

tendem a ser codificadas sob as formas de “jogos” pela geração

seguinte, “despido de suas carnes”. Como que prevendo o advento dos

videogames, inexistentes na época em que escrevia sobre o assunto,

McLuhan vaticina: “Isto é particularmente verdadeiro nos períodos de

mudanças súbitas de atitudes, resultantes de alguma tecnologia

radicalmente nova” (idem, p. 268). Ao final do capítulo, corroborando a

própria premonição tecnológica, o autor se questiona, respondendo em

seguida: “Os jogos são meios de comunicação de massa? – a resposta

tem de ser: sim. Os jogos são situações arbitradas que permitem a

participação simultânea de muita gente em determinada estrutura de

sua própria vida corporativa ou social” (idem, p. 275). Quando

McLuhan diz que os jogos são extensões do homem social, assim como

as tecnologias são extensões do organismo animal, isso nos leva a

refletir que tipo de extensão do homem seriam os videogames, já que

são ao mesmo tempo jogo e tecnologia.

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Em artigo publicado, Maria Luiza Belloni (2004, p. 589) cita o trabalho

de Thierry Vedel, que identifica sete teorias a respeito do impacto das

mídias sobre a violência:

Teoria da catarse: a violência na tela permite uma realização

fantasmática das pulsões agressivas bem como a economia da

passagem ao ato.

Teoria do filobatismo: a televisão permite aos espectadores provar sem

risco o prazer da violência.

Teoria da inibição: as cenas de violência mostram as conseqüências que

decorrem dela e ensinam os espectadores a temerem sua própria

violência.

Teoria do vício (accoutumance): a repetição das cenas de violência

visionadas conduz a uma insensibilização progressiva com relação à

violência.

Teoria da incubação cultural: a televisão influi sobre a maneira pela

qual os indivíduos representam a realidade social.

Teoria da ativação: a violência vista na televisão ativa as predisposições

agressivas dos indivíduos.

Teoria da aprendizagem social: os comportamentos agressivos são

aprendidos com base em modelos de comportamentos vistos na

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televisão; esses modelos, estocados em memória, podem ser

reproduzidos em certas circunstâncias.

Artigo de Bushman & Andersen (2002) relaciona a exposição ao

conteúdo violento dos videogames (entre outras mídias) a

comportamentos agressivos. O artigo não chega a fechar questão sobre

o assunto.

Estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Aachen, na

Alemanha Em 2005, e publicado pela BBC Brasil, constatou, em

imagens de ressonância magnética no cérebro, o mesmo tipo de

atividade observado quando as pessoas agem com violência em

situações reais. Conclui o estudo que jogadores contumazes podem

estar mais predispostos à agressão.

Psicólogo e autor de histórias em quadrinhos, o americano Gerard

Jones (2004) chega a conclusões diferentes sobre o mesmo tema, a

partir de entrevistas com pais, professores e do acompanhamento junto

a crianças e adolescentes. Os videogames, para ele, inclusive os

considerados violentos, podem contribuir para um crescimento

saudável.

Da mesma forma, chega a conclusões semelhantes a pesquisadora Lynn

Alves (2005), em tese de doutorado defendida na Universidade Federal

da Bahia, na área de educação, a respeito de videogames e violência,

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trabalho posteriormente transformado em livro. A autora defende que a

violência contida nos videogames e vivenciada pelos jovens, exerce um

efeito terapêutico do tipo “catarse”, canalizando medos, desejos e

frustrações para o outro (o avatar – personagem vivido durante o jogo)

ao identificar-se ora com o vencedor, ora com o perdedor das batalhas.

Ela conclui que isso pode ser usado de maneira construtiva no

desenvolvimento afetivo e cognitivo dos sujeitos.

Diego Levis (1998), pesquisador de comunicação social na

Universidade de Barcelona, ilustra historicamente esta preocupação

dos estudiosos e da sociedade:

Muchos médicos no dudaban em confirmar públicamente el carácter perjudicial de los videojuegos, apoyándose e veces em el diagnóstico de la aparición de nuevos problemas físicos em las manos y em los dedos de los jovenes jugadores. Existía una gran inquietud y la falta de estudios sobre los verdaderos efectos de los juegos alimentaba los temores. El proprio ministro de Sanidad estadounidense de la época, el doctor E. Everett Koop, publicó uma declaración em la que acusaba a los videojuegos de producir comportamientos aberrantes em los niños y de crear dependencia. Sin enbargo, a pesar de la contundente acusación del ministro, no se adoptó ninguna medida de control o limitación de la venta de videojuegos. (p. 161)

Mais à frente, relata a evolução dessa discussão ao longo dos anos:

La virulenta campaña de descrédito contra nos videojuegos se perdia, aparentemente, em uma ruidosa y poco efectiva sucesión de acusaciones vociferanes cuya repercusión entre los consumidoresera casi inapreciable. (Idem, p. 162)

Contrariamente a la opinión hasta entonces generalizada, la mayoría de estos rabaos no solo desmentian los supostos efectos perjudiciales de los videojuegos sino que les atribuían una larga lista de cualidades positivas, apenas matizadas por algunos problemas funcionales de sencilla resolucion.

Lo sorpreendente es que más de diez años y millones de consolas después, el contenido básico del debate apenas se haya renovado.

Nadie niega la existencia de un alto número de juegos violentos, sexistas y racistas muy poco recomendables para la formación de un

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niño. Y si enbargo, es curioso que al mismo tiempo no falten autores que consideren que muchas de las críticas que reciben este tipo de juegos están estructuradas alrededor de ideas estereotipadas, son los mismos que isnsiten en afirmar que la mayor parte de las acusaciones contra los videojuegos son injustificadas.

Las divergencias sobre la violência de los juegos surgen a la hora de estabelecer el alcance del fenómeno y de valorar las consecuencias de esta clase de contenidos sobre el comportamiento y la formación de los niños y los jóvenes jugadores. (Idem, p. 164)

Estes estudos e artigos geram discussões acadêmicas, jornalísticas e

sociais, principalmente no que diz respeito às influências deste novo

tipo de mídia junto às gerações que se prostram horas seguidas diante

de computadores. Discussões polarizadas, algumas vezes apaixonadas,

mas, pela própria característica do objeto de estudo, ainda novo,

carentes de melhor conhecimento do fenômeno, que possibilite, aos

interessados, tirarem conclusões mais seguras a respeito das

influências que os videogames de guerra possam, ou não, ter entre

adolescentes e pré-adolescentes.

A história dos videogames e do jogo Counter Strike

Não pretendo contar, neste trabalho, a história dos videogames, porque

não é este o foco da pesquisa. Mas a trajetória histórica deste tipo de

entretenimento é uma referência importante para o entendimento da

evolução dos sistemas de realidade virtual até chegarem ao que são

hoje. O videogame, hoje, é o grande consumidor da tecnologia de

interface gráfica em 3ª dimensão. Os primeiros videogames, devido ao

pouco desenvolvimento desta tecnologia, não apresentavam realismo

na tela. Eram jogos interativos, pois havia reciprocidade constante

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entre o jogador e a máquina, mas muito da emoção dependia do senso

lúdico do jogador, para imaginar situações. Apresento a seguir a

evolução da interface gráfica dos jogos. A história completa dos

videogames pode ser encontrada no site

http://outerspace.ig.com.br/retrospace.

1958 – o físico Willy Higinbotham, em suas horas vagas, desenvolve um

jogo de tênis bastante simples, que era mostrado em um osciloscópio e

processado por um computador analógico, para entreter os visitantes

do Brookhaven National Laboratories. Mas não é consenso que este

seria um videogame.

Figura 3 - Tennis for Two, o primeiro videogame? Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1962 – Segundo o Massachusetts Institute of Technology (MIT), o

primeiro jogo da história foi Spacewar!, desenvolvido em 1961 por

Martin Graetz, Stephen Russell e Wayne Wiitanen, inspirados nos

livros de ficção científica do autor (já falecido) E. E. “Doc” Smith.

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Figura 4 - Spacewar! Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1968 – Ralph Baer cria o “chasing game”, um rudimentar jogo de

“pingue-pongue”, onde dois quadrados controlados pelo jogador

podiam ser movidos pela tela, e patenteia esse jogo, transformando-o

no primeiro videogame popular da História.

Figura 5 - Chasing Game Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1972 – Chega o primeiro console: o Odyssey 100. Os gráficos eram

obsoletos e não tinham capacidade de gerar todos os pontos

necessários para dar realismo ao jogo. Os usuários eram obrigados a

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colocar cartões plásticos colorido na tela da TV para simular o campo

do jogo (em um jogo de tênis por exemplo, colocava-se uma cartão

verde para parecer grama).

Figura 6 - O primeiro console, Odyssey 100 – cartões plásticos transparentes eram colocados sobre a tela para dar colorido e temática

Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1977 – Chega o Atari, dando início a uma revolução gráfica e

mercadológica nos videogames domésticos Pela primeira vez, a

sensação de profundidade e perspectiva é explorada, mesmo que

precariamente.

Figura 7 - A temática dos jogos do Atari inspira os criadores de games até hoje

Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1983 – É lançado o MSX, e com ele, os primeiros jogos a considerar

perspectiva 3D na formulação dos cenários.

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Figura 8 - O MSX; pela primeira vez, cenários pensados em 3D Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1987 – Atari lança o XEGS, e com ele o primeiro jogo com interface 3D.

Figura 9 - Flight Simulator, o primeiro jogo com interface 3D Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1988 – Chegam os jogos de 16 bits de processamento, que trazem um

importante avanço na qualidade gráfica dos jogos e da sensação de

imersão.

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Figura 10 - Megadrive, com 16 bits, permite mais realismo na sensação de profundidade

Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1990 – Chega o Super Nintendo, console de 16 bits com aceleração

gráfica que possibilita a imersão em ambientes 3D em múltiplas

direções. Logo é lançado o primeiro jogo de tiros e violência,

considerado o precursor de uma geração de jogos de tiros em realidade

virtual: o Doom.

Figura 11 - Doom, o precursor dos jogos de tiro em primeira pessoa Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

1994 – Projetado para ser um videogame especializado em ambientes

3D, chega o Playstation, que impressionou o mundo com seus gráficos

superiores e ótima jogabilidade. Neste console, é lançado o primeiro

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jogo de guerra em primeira pessoa, com tema da 2ª Guerra Mundial:

Medal of Honnor.

Figura 12 - Com gráficos de 64 bits, o Playstation representou um grande avanço na simulação da realidade virtual

Fonte: http://outerspace.ig.com.br/retrospace

Counter Strike

Final da década de 90 – As placas gráficas com aceleração 3D chegam

aos computadores, tornando-os concorrentes dos videogames tipo

console. A velocidade com que o dispositivo gráfico evolui, faz com que

o realismo dos jogos atinja rapidamente níveis semelhantes à visão

normal. Já não vemos os “pixels” nem a sensação de “pular” de um

quadro para outro. Imagem e movimento aproximam-se da perfeição

aos olhos. Mas a atração dos videogames não se limita à questão visual.

O fone de ouvido acrescenta, pela primeira vez, o som com a qualidade

estereofônica — que evoluiu posteriormente para o padrão digital 5.1.

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Figura 13 - Counter Strike

Outra característica inovadora proporcionada pelos computadores foi o

fato de trabalharem em rede, recurso que foi aproveitado pelos

videogames, introduzindo o conceito de multiplayer games. Com todas

essas inovações, chega ao mercado o jogo que seria considerado o

grande sucesso na categoria dos multiplayer games de guerra jogados

em 1ª pessoa: o Counter Strike. Lançado oficialmente em 2000 — a

versão beta já circulava desde 1999 — Counter Strike (também

chamado de CS) reúne características que o diferenciaram dos

concorrentes. Em primeiro lugar, trata-se de um jogo democrático:

apesar da qualidade gráfica, CS não exige placas de aceleração gráfica

de custo elevado, podendo ser jogado em diversas configurações de

computadores. Outra característica é o preço: R$ 40,00.

Figura 14 - Cenas do Counter Strike

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Descrição do jogo

Em 2004, o site Folha on-line relata que o jogo Counter Strike atingiu

8 milhões de cópias no mundo. Em 2005, a página de notícias da

GSLanHouse, site especializado em jogos, exemplifica a história de

sucesso deste jogo, contando que ele recebeu, entre 1999 e 2000 mais

de dez prêmios das revistas e sites voltados a videogames. E para dar

conta de tanta popularidade deste sucesso via rede, são necessários

mais de 30 mil servidores ativos no mundo. A revista PC Mania dá uma

descrição sucinta, porém abrangente do jogo Counter Strike:

Quando você inicia uma partida logo aparecem duas opções de time. São os Terrorists (Terroristas) ou Counter-Terrorists (Contra-Terroristas). E você pertencerá a uma delas. Com os “Terror” sua missão é causar a destruição, plantando uma bomba ou dando suporte para que um companheiro o faça. Só que a missão não será tão fácil quanto você pensa. Será necessário disparar muitos tiros se for sua vontade. Por outro lado você pode jogar com a “lei”. Na pele dos Contra-Terroristas (ou CTs), será preciso acabar com a escoria mundial na base do tiro ou desarmando a bomba, caso ela seja plantada. A cada vitória o time vencedor obtém dinheiro para comprar armas e equipamentos melhores os cenários são um atrativo à parte, pois são bem diversificados. Mas o melhor de tudo é que você pode criar seu próprio cenário; o trabalho é um pouquinho complicado, mas nada que um pouco de paciência e dedicação não consigam resolver. Exemplos de sucesso são os cenários do Rio de Janeiro e São Paulo. O ponto alto do game é o espírito de equipe, que afinal é indispensável no jogo. Mais de 25 armas estão à sua disposição, entre elas estão escopetas, metralhadoras, pistolas, rifles e, claro, os equipamentos de proteção como coletes e capacetes que aumentam consideravelmente a sua chance de permanecer vivo durante os combates. Entre tantas armas existem as mais clássicas para certas funções; por exemplo, há armas para os “Campers”, ou seja, aqueles que curtem ficar em um lugarzinho bem escondido apenas esperando sua próxima vítima passar e ser atingida sem nem saber de onde. Enfim, existem armas para todos os gostos e você só saberá qual é a melhor experimentando uma de cada. Vale lembrar que nem sempre a mais cara ou a mais chamativa é a melhor. A melhor arma é aquela na qual você vai se adaptar melhor. A princípio muita gente reclamou do fato de CS ser um game exclusivo para jogatinas on line, mas logo isso passou, ainda mais com a chegada de Counter Strike Condition Zero, mas vamos falar disso depois. CS apareceu em uma ópoca na qual

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praticamente todos os MOD’s eram apenas um hobby para os fãs que criaram CS e acabaram tornando-o um dos ícones da indústria dos games em 1999. tudo começou pouco depois do lançamento de Half-Life em 1998, esses garotos não se conformaram em apenas ter aquele universo e decidiram ir mais longe, criando um mundo de “bandidos e mocinhos” e praticamente reinventaram a velha brincadeira de infância de “polícia e ladra”; com certeza eles não imaginavam a dimensão que o seu pequeno hobby alcançaria. (Revista PC Mania, n. 22, 2005)

Figura 15 - Tela inicial do Counter Strike

Figura 16 - Terroristas em início de missão no Counter Strike

O Counter Strike é ambientado com a temática da guerra pós-virada do

milênio: o Terrorismo. Pode-se jogar sozinho ou com adversários em

rede. No primeiro caso, se o jogador optar por jogar sozinho, o jogo se

encarrega de criar o restante da equipe e os adversários, em grupos de

até oito por equipe.

Origem do jogo

O Counter Strike nasceu como um “Mod” (modification) do jogo Half-

Life, distribuído originariamente pela Sierra, uma grande empresa de

Videogames. Como o próprio nome sugere, “mods” são modificações de

um jogo original, aproveitando sua plataforma e tecnologia, para

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introduzir cenários e personagens diferentes. Ou seja, mantêm-se as

habilidades do jogo, mudando-se a narrativa. As modificações são

realizadas livremente pelo público usuário, nos cenários, roupas e

armas. No jogo original (Half-Life), um cientista enfrenta monstros

dentro de um laboratório subterrâneo recém explodido. O ambiente é

de ficção científica e as armas são futurísticas. Na modificação, grupos

de elite e terroristas se enfrentam em lugares diversos, como castelos,

desertos e cidades e as armas são as utilizadas hoje pelo terrorismo,

crime organizado, tráfico de drogas, grupos para-militares e

revolucionários. Hoje, há centenas de ambientes criados. O Counter

Strike é um jogo gratuito, podendo ser “baixado” via Internet na grande

maioria de portais de download e games. Mas, para poder jogar, é

necessário comprar o jogo Half-Life, ao custo de R$ 40,00 em média.

Figura 17 – Counter Strike: “Arenas”: “Dust” (deserto) – “Aztec” (México) – “Rio” (de Janeiro) – “Train” – “Havana” (Cuba) – “Office”

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Objetivo do jogo

Os objetivos variam de acordo com a “Arena” de jogo escolhida (ver

exemplos acima) em missões que duram 4 minutos, mas basicamente

dividem-se em:

Armar/Desarmar bombas – Os terroristas têm o objetivo de instalar

uma bomba em locais predeterminados (duas opções de lugar) e

garantir que ela não será desarmada até que detone. Os

contraterroristas têm o objetivo de impedir que ela seja instalada, ou

tentar desarmá-la antes que detone. A eliminação do time adversário,

em qualquer situação, constitui cumprimento do objetivo.

Libertar reféns – Os contraterroristas têm o objetivo de libertar reféns

em poder dos terroristas, que devem impedi-los.

Escoltar o VIP – Os contraterroristas devem escoltar uma pessoa

importante (VIP), para que chegue a salvo até um helicóptero. Os

terroristas devem interceptá-los e matarem a pessoa VIP.

Armas – Estão presentes as armas mais utilizadas pelos grupos

armados, sejam eles policiais, soldados, terroristas, traficantes ou

grupos para-militares. No início do jogo, cada jogador tem uma pistola.

À medida que acumula pontos, pode comprar outras armas de mais

calibre ou poder de tiro, sejam outras pistolas, ou ainda

submetralhadoras, metralhadoras, fuzis, snipers ou granadas.

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Figura 18 - Armas do Counter Strike. Fonte: Revista PC Mania Game Over nº 22

Mapas ou Arenas

“Mapas” ou “Arenas” são os lugares virtuais onde ocorrem as batalhas.

Lynn Alves (2005, p. 127) destaca que o jogador pode criar seus

próprios “mapas” com o uso de editores gráficos distribuídos pelo

fabricante. Esta é uma característica de diversos jogos que, ao

permitirem que os usuários participem da criação de novas “arenas” de

jogo, acabam popularizando o próprio jogo e possibilitando que os

jogadores participem de batalhas virtuais em ambientes que conhecem

ou onde já estiveram. Em dezembro de 2006, o site FPSBanana

disponibilizava 7.307 “mapas” diferentes do Counter Strike, cujas

páginas foram visitadas quase 15 milhões de vezes.

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CAPÍTULO 3 Diário da minha experiência virtual

O texto a seguir é composto por um conjunto de relatos pessoal da

minha experiência vivencial da realidade virtual. Durante os meses

precedentes ao da redação deste trabalho, joguei o videogame Counter

Strike algumas noites por semana, o que me permitiu adentrar este

mundo do jogo e das ações de guerrilha que se descortinam na tela. É

importante ressaltar que já havia jogado videogames na adolescência,

bem como na fase adulta, com meu filho. Nunca, porém, um jogo com

interface em terceira dimensão, que simulasse realidade no plano

virtual.

Estes relatos, que chamo de “diário de jogo”, foram escritos

imediatamente após os períodos de jogo, que duravam em média 60

minutos. É o “material bruto” da minha experiência, do qual foram

extraídos os trechos avaliados à luz da fenomenologia da percepção de

Merleau-Ponty, apresentados no Capítulo 4.

Primeiro contato

Terminei de instalar o jogo, comprado em uma banca de revista e

acionei o ícone respectivo, na tela do computador. Após uns 30

segundo, aparece uma tela com imagem de lugar do jogo ao fundo, um

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soldado com indumentária militar (ambas ilustrações) e menu em

inglês com opções para entrar em jogo via internet, lan (rede local) ou

criar um jogo. O mesmo menu exibe opções de configuração de vídeo,

áudio e uso de controles.

Após ler o manual, “clico” na opção de criar um jogo. A tela escurece e

começa a subir um letreiro. Lembro-me de colocar os fones de ouvido e

posto-me diante da mesa numa posição que considero confortável.

Após alguns segundos, começo a ouvir um som ambiente, como se

estivesse num galpão cheio de eco e uma voz masculina ecoa, em inglês.

Mais alguns segundos e a tela se descortina de cima para baixo. A cena

que se apresenta aos meus olhos é a de um local a céu aberto, porém

cercado por muros que, estimo, devem ter 4 ou 5 metros de altura. São

feitos de pedras beges, que me lembram paralelepípedos. Seguro o

mouse e a tela toda reage, movimentando-se. Repito o movimento e

percebo que a tela reage da forma inversa: se movo o mouse para a

esquerda, a cena segue para a direita e vice-versa. Se movimento o

mouse para frente a tela “desce” monitor abaixo e vejo o “céu” com

algumas nuvens. Ao movimentá-lo para trás, vejo o chão. Fico curioso

para olhar para meus “pés virtuais”, mas não é possível: a tela pára de

se mover antes. Ouço um barulho parecido com o “engatilhar” de uma

arma de fogo, seguido de uma pistola empunhada pela mão direita que

se projeta da lateral da tela. A impressão que tenho é de que eu mesmo

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estou empunhando a pistola, como se meu próprio braço se

“virtualizasse” no interior da tela. Passados alguns segundos, o som da

arma sendo engatilhada se repete mais três vezes, seguido do

surgimento da figura de um indivíduo com indumentárias militares.

Movimento o mouse e vejo outros dois seres, próximos a mim cerca de

dois metros. Como sei que é esta distância? Talvez por um jogo de

proporções em relação ao segundo plano da cena. Ao realizar esta

comparação, percebo que há uma edificação do lado oposto ao muro.

Parece uma fortaleza, feita com o mesmo tipo de pedras. Não estamos

no chão plano, mas numa rampa com leve declive.

Ouço ordens em inglês, em timbre de rádio, e concluo que elas vêm de

algum dos outros. Entendo que estamos em um grupo militar ou

paramilitar e vamos executar uma missão. Dois saem correndo rampa

abaixo e o terceiro move-se em sentido contrário. Coloco os dedos no

teclado e decido “me mover” para algum lugar. Já havia lido as

instruções de uso do teclado e sei que as teclas A, S, D e F

movimentam-me nos quatro sentidos. Aperto “S” e “vou para frente”.

Conjugo este comando com o movimento do mouse e percebo que ele

altera o sentido da minha caminhada. Procuro seguir o terceiro

soldado, que já está a uns 30 metros em relação a mim. Entramos num

pátio maior, quando vejo que ele “pula” uma mureta, sumindo da

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minha vista. Aproximo-me da mureta quando, de súbito, paro. Preciso

aprender a “pular”.

Após uma interrupção para leitura do manual de comandos, “pulo” a

mureta e caio num patamar dois ou três metros mais baixo. À minha

frente vejo uma entrada em forma de arco para o edifício e ouço um

som de tiroteio que se avoluma à medida que caminho para frente.

Entro num corredor escuro com uma bifurcação à frente. Olho para a

direita e vejo uma escada em espiral com acesso a um andar inferior.

Olho à esquerda e vejo a parede iluminada. Pelo barulho é de lá que

vem o tiroteio. Avanço cautelosamente em direção ao final do corredor.

Sinto-me tenso, as mãos suam, o coração palpita. Tento me esgueirar

pelo canto do corredor. O barulho cessa. O local, a céu aberto, tem

paredes de rocha. Ouço passos e, de repente, surge à minha frente

alguém com trajes diferentes dos meus. Meu batimento cardíaco

aumenta repentinamente e baqueio minha cabeça para trás, como se

meu corpo fenomenal, e não o virtual, estivesse jogando. Antes que

possa me dar conta de atirar – deveria fazê-lo clicando com o botão do

mouse – recebo tiros. A tela muda de plano e enxergo meu próprio

“corpo” estendido no chão. Ouço a voz no rádio: – Terrorist win.

Depois do jogo

Joguei cerca de uma hora e meia três missões diferentes, das quais

venci uma e perdi duas. Meu batimento cardíaco está acelerado,

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minhas mãos tremem quase que imperceptivelmente, uma dor de

cabeça sobe do ombro direito até o topo, latejando. Percebo-me

irritadiço e sem espírito esportivo para brincar com meu filho. Sento-

me em frente à TV e sinto uma tontura misturada com náusea.

Espontaneamente, vem à minha mente a imagem do marinheiro que é

tomado por náuseas ao pisar em terra firma. Creio que comigo ocorre o

mesmo. Penso que estive “balançando no mar agitado” da tela de

computador, cuja perspectiva não pára um segundo sequer. Vou tomar

um banho e, após, sinto vontade de comer chocolate. Muito chocolate.

Terceiro dia – morrendo

Inicio o jogo em uma “arena” do tipo “fechada”. Neste tipo de “arena” o

espaço é predominantemente interior. Toda a batalha ocorre dentro de

uma edificação. Trata-se de um palacete, penso que europeu. O nome

da “Arena” é Piranesi, provavelmente em homenagem ao arquiteto

italiano13. A casa tem três andares e muitos cômodos pequenos. Sinto-

me incomodado no interior da edificação. A cada cômodo que entro, o

coração parece sair pela boca, ante a possibilidade de deparar com o

inimigo, que pode atirar antes de mim. Como tenho a pouca habilidade

de um iniciante, “morro” muito mais do que “mato”. Sei que minhas

chances são maiores quando estou em lugares amplos, a céu aberto.

Posso me esconder num canto, de onde, protegido por muretas ou

13 Giovani Piranesi, artista e arquiteto, foi um dos precursores do neoclassicismo. Suas gravuras de palácios romanos procuravam destacar os labirintos e masmorras.

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frestas, tento acertar meus inimigos, que parecem ser muito mais

corajosos, além de habilidosos, do que eu. Mas não é o caso aqui. Não

há onde me esconder e meu instinto de sobrevivência, para evitar dizer

o termo covardia, aflora com toda sua força. Meus ombros fenomenais

estão tensos, recolhidos perto da orelha, a ponto de retesar também

minha nuca e pescoço. Tiro a mão do mouse por um instante para

enxugar na blusa, tal é a quantidade de suor em minhas mãos. O que

mais me incomoda é o momento exato de encontrar o adversário

virtual, e isso é apenas uma questão de tempo. “Comprei” – durante o

jogo, à medida que acumulo pontos, tenho a possibilidade de adquirir

armas mais potentes – uma submetralhadora que me permite atirar de

perto sem a necessidade de acertar o alvo já no primeiro tiro. Os

cômodos se sucedem, pequenos corredores, passagens, labirintos de

paredes e o som dos meus passos me deixam nervoso. O momento do

encontro é um disparar de tiros de ambos os lados e, em menos de três

segundos, “morri”. Esta fração de tempo é o momento que não desejo

encontrar. Ela desencadeia em mim uma descarga de adrenalina e uma

reação corporal – um momento de pânico – quando deveria estar

calmo – ou ao menos controlado – para ser mais rápido em apontar a

arma e atirar.

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Figura 19 – Um dos raros cômodos mais amplos no Counter Strike

Passados 50 minutos de tentativas frustradas, de estados de pânico e

descargas de adrenalina, sinto-me enjoado e com dor de cabeça que

sobe pela nuca e toma conta do lado direito. “Morri” incontáveis vezes e

resolvo aproveitar para conhecer a casa. Há um modo de jogo em que

sou apenas expectador e que me permite ficar voando pelo lugar como

um fantasma, atravessando paredes, observando as batalhas sem ser

visto, e sem o medo de me chocar com um adversário. É uma casa

bonita, agradável, circundada por um riacho. Posso sair da casa e

observa-la de fora.

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Figura 20 – Counter Strike. O palácio, ou castelo, visto de fora

Matando

Ligo o jogo, posto-me diante do conjunto teclado, mouse e monitor e

escolho uma “arena” chamada Tundra. O ambiente que me é

apresentado lembra realmente uma tundra gélida, escarpada e rochosa.

Há uma edificação estranha, de forma piramidal, construída na rocha e

mais uma outra, próxima a ela, em formato tradicional. Há

predominância de branco, que me dá a sensação de neve. Apesar de

estar calor, parece que “sinto” o frio do local. Estou decidido a “morrer”

menos e “matar” mais. Adquiro uma arma de longo alcance, com mira

telescópica e procuro reconhecer o lugar, ao mesmo tempo que evito as

batalhas. Isso me dá uma sensação de dor na consciência, pois a minha

“equipe” precisa da minha presença para evitar que o refém seja

libertado e fuja num helicóptero. Mas estou decidido a encontrar o

lugar de onde possa acertar meus adversários com a segurança de não

ser alvejado.

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Após ter “morrido” algumas vezes – a arma de longo alcance tem pouca

agilidade a média distância – encontro uma torre em frente a um

tanque de guerra, por onde subo e de onde me posto para matar os

contra-terroristas que procuram libertar o refém.

Figura 21 – Tundra, alto da torre

Do alto da torre, sinto-me aliviado por atirar de uma distância segura.

Deste local, visualizo um caminho obrigatório por onde o inimigo tem

de passar para libertar o refém, caso tenha conseguido superar o

enfrentamento com os outros de minha equipe. Sou o último obstáculo

a ser ultrapassado. Porém, um obstáculo oculto. Resta aguardar.

Figura 22 – Tundra, vista do alto da torre

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Após breve espera, surge o primeiro contra-terrorista, procurando

“abrir caminho” para a passagem do refém. Com o botão direito do

mouse, aciono a mira telescópica do rifle, que me fornece um alvo em

cruz a uma distância bem mais próxima. Não tenho qualquer

dificuldade em acertá-lo. O som do tiro impressiona pelo volume e pelo

“eco” que gera em todo o espaço virtual de jogo. Lembro-me do filme

Por um fio14, no qual um dos protagonistas é anônimo, e mata sem ser

visto. Poucos segundos depois, aparece o refém, aqui chamado de VIP,

protegido por um colete à prova de balas, mas com a cabeça

desprotegida. Acerto-o sem dificuldade. Sinto-me um franco atirador,

igual ao dos filmes e noticiários, invencível por alguns instantes. Um a

um, acerto os inimigos e passo, pela primeira vez, a ser o jogador com a

melhor pontuação da partida. Tal qual deve ocorrer com um rifle do

tipo sniper, a mira telescópica torna a sensibilidade dos movimentos do

mouse muito mais aguçada. O menor movimento com as mãos sobre o

mouse representa um grande desvio da marcação do alvo em relação ao

próprio. A mira possui dois níveis de aproximação, o que eleva ainda

mais a sensibilidade do dispositivo.

14 De Joel Schumacher (2003), com Forest Whitaker, em que um serial killer, escondido num prédio e com uma mira telescópica, aterroriza um homem numa cabine telefônica através de ligações para o telefone público, matando pessoas inocentes à sua volta.

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Figura 23 – Counter Strike, sob a mira telescópica

A cada nova missão, busco o alto da torre, de onde aguardo a chegada

do inimigo no canto oposto do vale. A cada novo embate, porém, minha

condição de franco atirador vai se tornando mais exposta e começo a

receber tiros. O adversário passou a adotar a estratégia de invadir ao

mesmo tempo o local, para dificultar minha chance de abatê-lo. De

repente, sou surpreendido por um inimigo que subiu à torre e me

matou pelas costas.

Faço parte de uma equipe

Apesar da minha boa performance atuando escondido na torre, aquele

foi um evento isolado. Via de regra, devo atuar próximo aos meus

“companheiros” – personagens do jogo que fazem parte da minha

equipe, terrorista ou contraterrorista, controlados por outros jogadores,

via rede – em sintonia com o objetivo da equipe, procurando “fazer a

minha parte”. Por exemplo, é assim que deve ser jogando em uma

“arena” chamada Inferno, onde este pensamento coletivo é

fundamental para o sucesso da missão. Nosso objetivo é impedir que a

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bomba seja “plantada” e minha equipe aguarda a chegada dos

terroristas pela rua principal. De repente, percebo que somos atacados

pelas costas por um terrorista. Morremos todos em poucos segundos.

Na vez seguinte, decido proteger a equipe, dirigindo-me à viela por

onde o inimigo veio escondido. Desta vez, pego-o de surpresa e ainda

consigo enfraquecer o restante dos adversários enquanto enfrentam

meus companheiros. Vencemos e me senti útil por isso.

Plantando a bomba

Inicio o jogo numa “arena” chamada Aztec, com visual de uma antiga

civilização sul ou centroamericana. Há uma pirâmide maia ou asteca,

construções e passagens envoltas por uma floresta fechada. Escolho

fazer parte dos terroristas e, logo na primeira missão, fico incumbido

de “plantar a bomba”. Aqui, a missão é acionar uma bomba num local

pré-determinado e assegurar sua explosão cerca de um minuto depois.

Para isso, é necessário impedir o adversário (contra-terroristas) de

tentarem desarmá-la.

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Figura 24 – Counter Strike, lugar maia ou asteca

A bomba segue dentro da minha mochila. Não posso me ver

carregando-a, exceto por um pequeno ícone na tela. Entretanto,

quando outros da minha equipe portam a bomba, posso vê-los levando

um volume diferente nas costas.

O fato de ser o portador da bomba me torna o alvo mais suscetível da

missão. Para o inimigo, é mais fácil “matar” aquele que porta a bomba

antes que ela seja acionada, do que desarmá-la posteriormente. Isso me

torna ainda mais amedrontado, e procuro andar atrás dos meus

companheiros, protegido por eles.

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Figura 25 - plantando a bomba

Chegamos ao local designado por um “X” para armar a bomba. O

processo é relativamente simples, mas mesmo assim me atrapalho.

Tenho que acionar um conjunto de teclas do mouse e teclado. Isso,

porém, faz com que eu tenha que abaixar minha cabeça e, com isso,

restrinjo o meu campo de visão. Nesta posição, fico muito vulnerável e,

durante os segundos necessários para plantar a bomba, estou à mercê

do ataque adversário, apesar de protegido pelos colegas de missão. Eu

mesmo, porém, não posso me defender.

Passados alguns segundos que pareceram uma eternidade, a bomba

está “plantada” e emitindo um sinal agudo e intermitente. Coloco-me

em um canto, escondido atrás de uma grande pedra, aguardando os

contra-terroristas que, pelo sinal sonoro, já sabem que a bomba foi

acionada e está prestes a explodir. Eles finalmente chegam e entram no

local por três diferentes lugares, o que dificulta bastante nossa missão

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de defender a bomba. Após alguns segundos de tiroteio somos todos

mortos e o adversário tem poucos segundos para desarmar a bomba.

Felizmente ele não consegue: ela explode e nós, apesar de mortos,

vencemos.

Brincando com armas

Em cada “arena” (local) diferente do jogo, tenho a opção de “comprar”

algumas armas que são disponibilizadas à medida que ganho pontos,

seja vencendo as missões, seja “matando” meus inimigos. O arsenal

disponível é bastante variado e, para cada tipo de arma, posso escolher

entre marcas e nacionalidades diferentes. Os pontos conquistados

formam o meu “caixa” para adquirir meu arsenal. Além de armas,

posso comprar também outros dispositivos auxiliares, como granadas,

coletes à prova de bala, capacetes protetores, bombas de fumaça,

dispositivos auxiliares no desarmamento de bombas, etc.

No começo, percebia poucas diferenças na minha performance usando

armas semelhantes. Obviamente, um fuzil ou metralhadora oferece

muito mais possibilidade de êxito de que uma pistola. Mas com o

tempo, passei a perceber as sutis diferenças entre duas marcas

diferentes de pistolas, dois tipos metralhadoras, duas carabinas e assim

por diante. Uma pistola “Eagle” tem um tiro mais eficiente que a pistola

padrão do jogo, porém demora mais para disponibilizar um novo tiro.

Um fuzil AK-47 russo tem agilidade, confiabilidade e leveza, enquanto

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um fuzil Sig é melhor em situações de pouca movimentação. A escopeta

de tiro simples é ótima em lugares fechados, enquanto a de tiro

contínuo tem melhor performance em espaços maiores. Não sinto o

peso, o impacto da explosão ao acionar o gatilho, mas “percebo”, por

uma série de indícios, como velocidade dos meus movimentos,

agilidade portando esta ou aquela arma, que elas têm pesos diferentes.

Em geral, as armas mais pesadas comportam-se melhor a longa

distância e as armas leves em operações “de assalto”.

Dominando os nervos

Passados mais de 100 dias do meu primeiro contato com o mundo

virtual, noto que meus “sintomas” durante e após o jogo diminuíram

bastante. Consigo manter-me controlado diante da aparição abrupta de

um inimigo e meu corpo fenomenal não mais “baqueia” como antes. O

suor nas mãos permanece. Mais controlado, consigo mirar durante o

movimento. O estado de tensão se transformou em estado de atenção.

Terminado o jogo, que durou pouco mais de uma hora, não sinto dor de

cabeça. A “náusea de marinheiro” se mantém como das primeiras

vezes. Sento-me na sala e converso com minha família normalmente. A

percepção que tenho é que o meu corpo tolera melhor as situações

extremas do jogo, em função da repetição quase diária.

Sonhando

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Tenho sonhado freqüentemente com as batalhas virtuais. A diferença é

que, no sonho, não me vejo jogando no computador, mas atuando

como se fosse de verdade. Não sonho que estou jogando, mas sim que

estou realmente na batalha. Meu sonho mistura o virtual e o físico em

diversos aspectos: várias “arenas” de jogo se mesclam, separadas

apenas por portas ou passagens. Nos sonhos, nunca sou terrorista. Meu

objetivo é sempre impedir que uma bomba seja “plantada” ou libertar

um refém. Em todos eles, meu filho faz parte da minha equipe. Não

vejo o seu rosto – ele usa capacete e indumentária militar – mas sei que

é ele. Os sonhos terminam sempre antes das missões se completarem.

Medindo espaços

Dou um tempo nas batalhas e resolvo observar os espaços de jogo,

procurando dar palpites a respeito das medidas das coisas e objetos.

Não tenho como conseguir confirmar os palpites que dou, mas o faço

com segurança, porque há um jogo de angulações enquanto me

movimento, que me permite dizer que da porta até o muro a distância é

de aproximadamente 50 metros, que o muro tem entre 4 e 5 metros de

altura, que a mureta tem 1,60cm de altura e 5 ou 6 de comprimento,

que a bomba está a 3 passos de mim, e que o área total da “arena” deve

ter uns 10 mil metros quadrados.

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Na lan house

Levo meu filho e seus amigos para jogar numa lan house.

Normalmente, tenho jogado em rede via internet. Desta vez, com a

proximidade física dos outros jogadores, sinto-me mais motivado, não

apenas a cumprir a missão e vencer, mas também trago a

competitividade para o mundo físico. Explicando melhor: conheço cada

um dos jogadores que “está por trás” do time adversário. Quando

encontro um soldado inimigo, identifico o jogador que o controla e

considero que é com ele que estou jogando e confrontando habilidades.

Numa lan house, a batalha dentro do espaço virtual sofre influência do

ambiente na sala. Sentados lado a lado, usando pesados fones de

ouvido, os jogadores deveriam estar isolados, relacionando-se, apenas

virtualmente. Entretanto, o que observei é que os jogadores se

comunicam uns com os outros todo o tempo, gritando – em função do

fone de ouvido, que os leva a aumentar o volume da voz – solicitando

ajuda, alertando sobre a presença do adversário que se aproxima,

dando ordens e, muitas vezes, broncas. Observei também, várias vezes,

jogadores “espiando” a tela do monitor adversário, a fim de saber onde

estavam. Tratava-se de uma norma de jogo quebrada ou estavam

dentro do que era permitido? Fiquei sem saber. O limite entre físico e

virtual, que já é difícil de ser definido devido à relação do corpo com os

dispositivos periféricos do computador, também se camufla na

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confusão das relações entre os jogadores, que não hesitam em valer-se

da dimensão física para auxiliar no cumprimento dos objetivos virtuais.

Após o jogo, fomos tomar um lanche e observei o entusiasmo deles ao

relembrar os momentos vividos no virtual. Eu mesmo participei desta

conversa e compartilhei da animação coletiva. A linguagem utilizada

por eles – e também por mim – era a de alguém que relatava eventos

dos quais tivesse realmente participado: “eu entrei”, “você atirou”, “ele

fugiu”. Sempre relacionada ao jogador; nunca aos personagens.

Concluo que, apesar de o jogo na tela se dar de forma idêntica numa

rede via internet e numa lan house, jogar nesta última é mais

motivador e gratificante, em função da possibilidade de interação física.

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CAPÍTULO 4 O virtual na relação com o real

Neste capítulo, dou continuidade à minha incursão no espaço virtual,

agora à luz da fenomenologia. Procuro refletir sobre cada experiência

vivenciada e relatada, traçando paralelos com trechos e experiências da

Fenomenologia da Percepção. Submeto-me, ainda, a experiências em

que confronto a vivência em espaço virtual inspirada em local existente

na realidade física com o próprio, e também à experiência de vivenciar

o espaço virtual invertendo a perspectiva normal do vídeo, assim como

Merleau-Ponty fez com o espelho inclinado: primeiramente, jogo com o

monitor inclinado em 45 graus com relação aos meus olhos. Em

seguida, inverto a perspectiva horizontalmente por espelhamento, ou

seja, tudo o que está à direita fica à esquerda e vice-versa. Finalmente,

inverto a perspectiva vertical, jogando com a imagem de ponta-cabeça.

Ao final de cada experiência, procuro extrair sua essência, aplicando o

método de redução fenomenológica, identificando termos e expressões-

chave e definindo as unidades de significado.

Da posse do corpo virtual

Após alguns dias de jogo, me apossei do corpo virtual, passando a

dominar o uso da arma por meio dos botões direito e esquerdo do

mouse, bem como do seu movimento em combinação com as teclas A,

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S, D e W, que me deram o poder de movimentação e alcance dos

lugares nesta realidade virtual. Já não raciocino a respeito. Armo,

desarmo, atiro, corro, desvio, pego objetos sem me dar conta de que

não o estou fazendo na realidade. O mouse e o teclado atuam como

extensões do meu corpo, assim como a moldura da tela assumem o

lugar de minhas pálpebras e o écran, de meus olhos. Meu corpo tomou

posse dos seus apêndices virtuais, adaptando-se ao esquema deste

ambiente para alcançá-lo em sua espacialidade específica. Se por um

lado o domina, por outro é influenciado por ele. Sons e imagens que

representam a ameaça de ser “morto” pelos adversários repercutem em

suores nas mãos, rigidez e retesamento dos ombros, aceleração

cardiovascular, movimentos e desvios bruscos com a cabeça, como se

todo o corpo estivesse presente dentro da “arena” de guerrilha. Esta

posse que tomo do corpo virtual assemelha-se à que se refere Merleau-

Ponty (1999, p. 143), uma posse indivisa, quando diz que sabe a posição

de cada um dos seus membros, porém com uma noção ambígua, como

aliás todas as “que surgem nas reviravoltas da ciência” (idem, p. 144).

Trata-se de uma espacialidade do corpo diferente da dos objetos,

porque tenho, ao mesmo tempo, meu corpo fenomenal e meu corpo

virtual. Não uma espacialidade de posição, apenas na realidade física,

mas de situação, considerando também a realidade virtual. Explicando

melhor: a rigor, estou sentado em frente ao monitor, segurando o

mouse com a mão direita e com os dedos da mão esquerda postados

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sobre o teclado. Mas há sutis diferenças na minha postura, que vai se

alterando à medida que se desenrolam as situações do jogo. É como se

o corpo, ao retesar ombros, apertar com mais força o mouse, ou ao

jogar repentinamente a cabeça para trás, quisesse “reagir” às situações,

como se elas estivessem ocorrendo realmente. E com isso, ocupar o

espaço fenomenal conforme as situações lhe solicitam.

Destaco os seguintes termos e expressões-chave desta experiência:

teclas A, S, D; mouse, teclado, parte do meu corpo, que me levam a

formular sua unidade de significado: Meu corpo toma posse dos

dispositivos periféricos, afetando o jogo e sendo afetado por ele.

Da noção de terceira dimensão

Inicio o jogo e escolho uma “arena” chamada Tundra. O lugar é gélido,

escarpado e minha missão é levar uma pessoa importante até um

helicóptero que a espera, já ligado, a cerca de 1 km. Entre a equipe de

escolta, da qual faço parte, e o helicóptero, há uma passagem estreita,

rodeada por escarpas elevadas e construções, onde se esconde a equipe

adversária (terroristas). Seu objetivo é matar aquele que escoltamos.

Atravessar este espaço em direção ao helicóptero é o mesmo que andar

por um labirinto de pedras.

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Figura 26 - Labirinto de pedras, percepção de profundidade em Tundra

À medida que avanço em direção ao objetivo, a sobreposição das

pedras, mais próximas e mais distantes à minha frente, forma uma

espécie de caleidoscópio tridimensional e dinâmico. Mas a tela e

bidimensional. A terceira dimensão é apenas derivada dessas duas, que

me dão a percepção de um ambiente imersivo conforme as pedras e

muros vão se aproximando e desvelando outras do mesmo tipo, que

vem à frente. Merleau-Ponty (2004, p. 27) percebe esta mesma

bidimensionalidade ao discorrer sobre a noção de três dimensões na

pintura. Para ele, o quadro é uma coisa plana, já que tanto o horizonte

na pintura, quanto o primeiro plano estão à mesma distância de meus

olhos. O “primeiro plano” advém do fato de que, sendo primeiro plano,

oculta parcialmente os demais. Ao serem ocultadas, mas não por

inteiro, as coisas do plano intermediário estão escalonadas em

diferentes proporções, o que me permite a noção de profundidade.

Quanto a isto, Merleau-Ponty afirma (1999, p. 349) que “A grandeza

aparente vivida... é apenas uma maneira de exprimir nossa visão da

profundidade”. Mas a tela do computador não se limita ao jogo estático

de esconder e revelar. Ele é dinâmico. O que está “longe”, próximo ao

horizonte, em poucos segundos estará perto, chegará ao primeiro plano

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e ficará para trás, abrindo espaço e revelando outras coisas que,

dinamicamente, vão aumentando de tamanho e se deixando revelar

pelos anteriores. Este jogo de revelação e aumento de tamanho tem

uma proporcionalidade e uma harmonia de movimentos análogas da

condição em que eu realmente estivesse me movendo para frente. A

imagem engana os olhos, que se deixam enganar pela imagem. Na tela

do computador, este “travelling de aproximação15” se dá de forma mais

dinâmica, mais rápida do que geralmente ocorre na realidade, o que me

obriga a ficar mais atento em meu avanço. Segundo Merleau-Ponty

(1999, p. 350), isso acontece porque o objeto da realidade física que se

distancia diminuiria menos rapidamente, assim como quando ela se

aproxima, aumentar menos rapidamente para percepção do observador

do que a projeção na retina. Ele cita como exemplo a ima gem do trem

na tela do cinema, que aumenta aos olhos da platéia mais rápido do que

o faria na realidade. Esta sensação de velocidade fica claramente

perceptível quando avanço pelo espaço do jogo.

Termos e expressões-chave desta experiência são caleidoscópio

tridimensional e dinâmico; representação bidimensional; percepção

de ambiente imersivo; escalonamento de proporções; abertura e

revelação de espaço; aumento gradual de tamanho; harmonia de

movimentos análogos; ilusão pela imagem; maior ou menor

15 Martin descreve o travelling de aproximação como um movimento de avanço realizado pela câmera de cinema.

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dinamismo; e como unidade de significado A imagem em movimento

na tela bidimensional me dá uma noção de tridimensionalidade do

espaço virtual por meio do aumento ou diminuição gradual de

tamanho em diferentes velocidades.

Dos estímulos sensoriais

Quando sou atingido por um tiro adversário durante o jogo, pontos

específicos da tela – e portanto da minha “visão” – adquirem, por uma

fração de segundos, uma coloração vermelha, semi-transparente,

acompanhada de um retardamento nos “meus movimentos”.

Instintivamente, associo as manchas vermelhas a uma reação de cerrar

minhas pálpebras e franzir o rosto. Apesar de meu corpo real não ter

sido estimulado sinestesicamente de forma alguma, ele reage à cena em

que me encontro inserido como se tivesse sido atingido de alguma

maneira. Um mecanismo sensorial e fisiológico presente meu ato de

jogar, anterior ao meu raciocínio e a respeito do qual não me dou conta

– a não ser que o faça deliberadamente como agora – de certa forma

associa a visão e a audição dos tiros dirigidos a mim, aos “flashes”

avermelhados, que numa situação de perigo de vida poderiam ser

interpretados como sangue, ao retardamento nos movimentos, como se

eu tivesse perdido parte do controle sobre meus apêndices, o que, em

conjunto, me transmite a sensação de ter levado tiros e perder a

resistência. Meu corpo fenomenal desencadeia, numa fração de

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segundos, esta série de reações fisiológicas nas pálpebras, no rosto, nos

ombros e no batimento cardíaco, o que me leva a supor que a sensação

de levar o tiro de alguma maneira antecede o próprio impacto do tiro.

Reajo, enfim, como o doente picado pelo mosquito que não precisa

procurar o ponto picado e o encontra à primeira tentativa, na descrição

de Merleau-Ponty (1999, p. 153). Assim como o doente não precisa

situar o ponto da picada em relação a eixos de coordenadas no espaço

objetivo, mas apenas atingir com sua mão fenomenal um certo lugar

doloroso de seu corpo fenomenal (a potência de coçar), também reajo

fenomenalmente, através de um sistema fisicamente artificial, porém

sensorialmente natural, porque é assim que me parece.

Elegi como termos e expressões-chave da experiência, pontos

específicos da tela; reage à cena; visão virtual; coloração vermelha;

“flashes” avermelhados; cerrar pálpebras; sangue; reações

fisiológicas; pálpebras; e como unidade de significado: O meu corpo

fenomenal reage a estímulos sensoriais direcionados ao meu corpo

virtual.

Da percepção do próprio corpo virtual

O que é meu corpo virtual? Instintivamente, movimento o mouse

procurando por ele e não encontro sequer os “meus pés”. Aperto o

botão direito do mouse procurando-os, mas não encontro ângulo

suficiente para visualizá-lo. Com a mão esquerda, uso o teclado para

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caminhar beirando um muro à minha direita e uma mureta que dá para

um nível inferior, à esquerda. À medida que avanço escutando meus

passos, tudo vai sendo dragado pelos limites da tela, engolido por sua

moldura, exceto a mão esquerda à minha frente, segurando a arma.

Figura 27 - Meu corpo virtual

Este conjunto é a constante diante dos meus olhos. Não se alterna com

meu avanço, recuo ou mudança de sentido. Por outro lado, é o único

conjunto dentro do quadro que reage aos comandos dados aos botões

do mouse. Ao apertar o botão esquerdo, o gatilho é acionado e uma

rajada de tiros é disparada. Quando aciono o botão direito do mouse,

minha mão virtual esquerda sai do quadro da tela e retorna a ele

segurando algo que se atarraxa na ponta do cano. Concluo ser um

silenciador. Este conjunto – mão e arma – mantém sempre a mesma

perspectiva diante do quadro e reage a comandos dados pela minha

mão física. Este se apresenta como meu corpo virtual, segundo o que a

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tela me oferece. Porém sinto que sou mais que apenas este conjunto,

assim como sou mais que as partes do meu corpo físico que me são

possíveis ver sem a ajuda de um espelho. Merlau-Ponty (1999, p. 207)

afirma que cada um de nós se vê com que por um olho interior que, de

alguns metros de distância, nos observa da cabeça aos joelhos. Segundo

ele, a conexão entre os segmentos de nosso corpo e aquela entre nossa

experiência visual e nossa experiência táctil não se realiza pouco a

pouco e por acumulação. Não estamos diante do nosso corpo, mas no

corpo, ou antes ainda, somos o nosso corpo:

O que reúne as “sensações táteis” de minha mão e as liga às percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções dos outros segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão , que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu corpo. Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de arte. (1999, p. 207)

O jogo dá um estilo de movimento ao conjunto central, formado por

mão e arma, diferente do estilo de movimento do restante dos

elementos da tela.

Elenquei os seguintes termos e expressões-chave: mão esquerda à

minha frente, segurando a arma; ao toque do botão esquerdo, o

gatilho é acionado; ao toque do botão direito do mouse, minha mão

virtual esquerda sai de quadro; mão esquerda, uso do teclado para

caminhar; escutando meus passos. A unidade de significado da

experiência é: a imagem que faço do corpo virtual, para mim, é um

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conjunto formado pela mão, ouvidos e olhos físicos, mais os

dispositivos periféricos mouse, teclado, monitor e fones de ouvido.

Da apreensão de objetos no espaço virtual

Ao caminhar pelo espaço virtual, onde ocorrem as ações de guerrilha,

são encontrados os “corpos dos guerrilheiros” que já foram mortos, ao

lado de suas armas. Por vezes, encontramos também o “corpo” do

terrorista que teria a função de “plantar” a bomba no alvo. Penso que,

caso já tenha sido morto, a mochila contendo a bomba estará próxima

do seu “corpo”. Mesmo não tendo lido as regras do jogo, passo por cima

destes objetos a fim de “pegá-los”. Se a arma que está no chão tiver

poder de fogo superior à que empunho no momento, ao passar por

cima, “jogo” minha arma no chão e pego a outra. Da mesma forma, se

eu estiver integrando o exército dos terroristas, é minha missão pegar a

bomba e levá-la até o alvo. Como sei que devo pegar ou jogar estes e

outros objetos, se não conheço as regras? O ato de pegar estes objetos,

ainda que previsto como regra, acontece naturalmente, sem se pense

nela. O simples fato de estarem dispostos pelo caminho, me leva a

pegá-los. Ou talvez a possibilidade de acumular pontos ao faze-lo. Uma

explicação possível é o fato de que, assim como os objetos, interferindo

na paisagem do jogo nos convidam a ir até lá para pegá-los, também o

corpo virtual busca espontaneamente por eles. Este se comporta como

um corpo fenomenal que busca relacionar-se naturalmente com mundo

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à volta, como aquele que Merleau-Ponty aponta (1999, p. 153): “Não é

nunca o nosso corpo objetivo que movemos, mas nosso corpo

fenomenal, e isso sem mistério, porque já era nosso corpo, enquanto

potência de tais regiões do mundo, que se levantava em direção aos

objetos a pegar e que os percebia.”

Os termos e expressões-chave desta experiência são mochila contendo

a bomba; “jogo” minha arma no chão e pego a outra; pegar a bomba

e levá-la até o alvo; acontece naturalmente e a unidade de significado

é: interajo com os objetos dispostos no ambiente de jogo a fim de

cumprir objetivos e o faço de forma natural, “passando” sobre eles

virtualmente.

Do corpo virtual enquanto executor de tarefas do jogo

Merleau-Ponty afirma (1999, p. 154) que o corpo é apenas um elemento

no sistema do sujeito e de seu mundo, e a tarefa a ser executada obtém

dele os movimentos necessários por um tipo de atração à distância.

Quando estou jogando na condição de terrorista, um objetivo toma

conta de todo o meu sistema de movimentação e da mesma forma uma

atenção se apossa de todo o meu sistema sensorial o objetivo é

encontrar um certo lugar no espaço do jogo com uma cruz vermelha

marcada a tinta. A atenção esta toda voltada para o som dos possíveis

passos em sentido contrário, bem como na possibilidade de avistar um

soldado contraterrorista a qualquer momento. Não fui eu quem definiu

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de forma consciente este objetivo e esta atenção para a qual meus

sentidos estão voltados. Isso foi estabelecido pelo espaço, pelos

objetivos do jogo, aos quais meu corpo apenas reflete com suas ações,

como responderia aos estímulos do espaço fenomenal em qualquer

outra situação.

Os termos e expressões-chave encontrados são um objetivo toma conta

de todo o meu sistema de movimentação; o objetivo é encontrar um

certo lugar no espaço do jogo; a atenção esta toda voltada; e a

unidade de significado é meus sentidos físicos estão voltados a fazer o

corpo virtual cumprir um objetivo dentro do espaço de jogo.

Do corpo presente no espaço virtual

Há um momento a partir do qual não mais me percebo

experimentando conscientemente os comandos do mouse e teclado.

Um automatismo toma conta de ambas as mãos e vejo-me numa

construção com características que me remetem à cultura asteca. Há

um corredor circular ascendente a ser vencido, por onde sigo, que exige

certa habilidade do uso do conjunto mouse-teclado, fazendo-me

lembrar da criança que, com certa dificuldade na locomoção, olha para

os pés ao ensaiar os primeiros passos. O automatismo conquistado

cessa por um momento. Resolvo olhar para os meus “pés”. Movo o

mouse para trás, que é o mesmo que olhar para baixo, porém não os

enxergo e dou-me conta de que não posso ver meu corpo virtual além

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de meus punhos e mãos. Merleau Ponty (2004, p. 16) fala das trocas

que se dão entre o corpo do pintor e o mundo. Para compreendê-las, é

preciso reencontrar o corpo operante, que não é apenas uma porção no

espaço, que é um “trançado de visão e movimento”. A visão não seria

apenas uma operação do pensamento, mas o primeiro passo de uma

seqüência natural que se seguiria do movimento em direção ao objeto

visto. Ao nos movermos, passamos a ser igualmente videntes e visíveis

(p. 17), sensíveis para nós mesmos. Procuro “sentir-me” movendo ao

descer uma escada em frente a uma pirâmide asteca. Entro num fosso

raso, que presumo ter uns 40 cm de água. Ouço o barulho de minhas

pernas movendo-se na água, mas a sensação se resume ao barulho e à

visão da água pouco mais a frente, porque não consigo me enxergar

tocando-a com as pernas. Segundo Merleau-Ponty, a posse do espaço

virtual se dá pelo cruzamento entre ciente e sensível, pelo ato conjunto

de ver, tocar, ser visto e tocado. No espaço virtual esta experiência se dá

com prejuízos de ordem tátil e visual. Apesar de me encontrar

psicologicamente imerso na trama do jogo, no objetivo a ser cumprido,

na descoberta dos espaços e na interação com os outros jogadores-

personagens, não me vejo além de minhas mãos e não obtenho o

retorno tátil do uso de diferentes objetos. Na verdade tenho, se

considerarmos o toque no mouse e teclado. Mas ele é sempre o mesmo,

não me dá a sensação de diferenciar um ou outro objeto tocado.

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Os termos e expressões-chave encontrados são vejo-me numa

construção; corredor; por onde sigo; Ouço o barulho de minhas

pernas movendo-se na água; sensação se resume ao barulho e à visão

da água, não consigo me enxergar tocando-a com as pernas e a

unidade de significado é a falta de sinestesia em relação aos objetos

virtuais e a limitação visual com relação ao meu próprio corpo virtual

causam prejuízo da minha percepção em relação a ele.

Da percepção do movimento

Os atos de reconhecer o adversário e atirar ocorrem quase que

simultaneamente, de forma impulsiva, assim como a reação de esguio e

defesa. É uma reação que se aprimora com o tempo de jogo, não pela

intencionalidade objetiva, mas de forma imperceptível, como uma

ordem dada pela minha fisiologia para a manutenção da minha

presença pelo maior tempo possível naquele espaço. Merleau-Ponty (p.

160) defende que não haveria uma percepção seguida de movimento

porque percepção e movimento formariam um sistema que se

modificaria como um todo. Esta minha reação ao adversário seria

semelhante ao exemplo do sinal para o amigo se aproximar. Para

Merleau-Ponty, a intenção de fazer o sinal não é um pensamento

preparado.

Os termos e expressões-chave elencados são reconhecer o adversário e

atirar; esguio e defesa; quase que simultaneamente; de forma

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impulsiva; forma imperceptível; minha fisiologia; maior tempo

possível naquele espaço e a unidade de significado é meu corpo virtual

se movimenta por um instinto de sobrevivência, de forma impulsiva.

Dos estímulos sonoros

Corro pelo corredor estreito no interior da fortaleza. A presença em

lugar fechado me causa uma sensação de opressão. Mais à frente, o

corredor termina num outro corredor perpendicular, permitindo-me

seguir para a direita ou esquerda. Ao som dos meus passos, ecoando

pelas paredes do corredor, juntam-se o som de outros passos, vindo

pela direita, em volume crescente. Meu ombro direito reage

instintivamente ante a perspectiva de um encontro certo e próximo

chegando pela direita e a incerteza da identidade do que se aproxima:

amigo ou inimigo? Durante todo o jogo, é o som que me orienta pelos

labirintos, seguindo passos, fugindo de tiros, atendendo ao chamado do

grupo. O som me dirige, da mesma forma que, segundo Merleau-Ponty

(p. 163), o som nos dirige ao conteúdo e à sua significação para nós. É o

som que orienta meu avanço no espaço virtual, para onde a visão ainda

não pode alcançar.

Os termos e expressões chave desta experiência são som dos meus

passos; som de outros passo, vindo pela direita; seguindo passos;

fugindo de tiros; atendendo ao chamado e a unidade de significado é

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os diversos sons do ambiente de jogo me orientam para onde ir e

também onde evitar.

Da consciência corporal e da consciência intelectual

MP faz uma reflexão e uma crítica à explicação fisiológica (p.173) que

diferencia o ato do doente de bater no ponto certo da pele para

proteger-se da picada de um mosquito, e o mesmo doente que não

conseguiria apontar para determinado ponto que lhe tenha sido

solicitado. Segundo esta explicação, a mão do doente iria ao encontro

do ponto porque circuitos nervosos preestabelecidos ajustariam a

reação ao lugar da excitação, enquanto os movimentos deliberados

dependeriam de reflexos condicionados solidamente estabelecidos.

Seriam, enfim, movimentos em si. MP sustenta que essa diferença não

seria suficiente para explicar por que o movimento de pegar é possível

enquanto o movimento deliberado conscientemente não o é.

Se o movimento de pegar ou o movimento concreto está assegurado por uma conexão de fato entre cada ponto da pele e os músculos motores que conduzem a mão , não se vê por que o mesmo circuito nervoso, ordenando aos mesmos músculos um movimento muito pouco diferente, não asseguraria o gesto do Ziegen tanto quanto o movimento do Greifen16. Entre o mosquito que pica a pele e a régua de madeira que o médico apóia no mesmo lugar, a diferença física não é suficiente para explicar que o movimento de pegar seja possível e o gesto de designação não o seja. Os dois “estímulos” só se distinguem verdadeiramente se se leva em conta seu valor afetivo ou seu sentido biológico; as duas respostas só deixam de se confundir se consideramos o Ziegen e o Greifen como duas maneiras de se referir ao objeto e dois tipos de ser no mundo.

16 Na experiência corpórea com o espaço, Greifen é considerado o movimento concreto, automático, reativo, enquanto que Ziegen é o movimento abstrato, o gesto intencional e deliberado em direção ao objeto, a sua designação formal.

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Tanto o ato fisiológico, quanto o consciente, ambos têm as mesmas

contrações musculares participando de cada gesto, e por outro lado, o

estímulo pode deixar de ser causa da reação e tornar-se seu objeto

intencional. Para o autor, não haveria diferença nos movimentos, mas

diferentes maneiras de ser do corpo, diferentes formas de se comportar

diante do mundo. O corpo reage segundo um saber diferente da ação

consciente. A experiência da reação aos tiros e do domínio adquirido

dos movimentos na vivência da realidade virtual em ambiente de

guerra, nos sugere que, sob certas condições, que estas distinções entre

o movimento abstrato (consciente e intencional) e o movimento

concreto (reativo) poderiam se apresentar não tão distintas e poderiam

influenciar uma à outra, dado o nível de realismo e imersão psicológica

proporcionado pelo ambiente tridimensional do jogo, reforçado pelo

som estéreo que chega diretamente aos ouvidos, ambiente este em que

se desenrolam cenas de matar e morrer. Estas cenas são

protagonizadas por aquele que joga, numa forma que podemos chamar

— emprestando o termo da linguagem cinematográfica — de “câmera

subjetiva”17, gerando uma condição estressante. Lá estamos com nosso

corpo fenomenal-virtual, e com todos os nossos sentidos, para cumprir

um objetivo e, antes disso, não “morrer”. Nesta condição, o ato de atirar

17 O conceito de “câmera subjetiva” é exemplificado por Marcel Martin em A linguagem cinematográfica (p. 31 — São Paulo: Brasiliense, 2003), quando fala sobre o papel criador da câmera, em que ela “inicialmente estava a serviço de um estudo objetivo da ação ou do cenário”, mas logo passa “a exprimir pontos de vista cada vez mais subjetivos através de movimentos progressivamente audaciosos.” A câmera subjetiva procura assumir a condição de personagem participante da cena.

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deliberadamente no “inimigo” e proteger-se, desviando dos tiros são

ações tão próximas, que poderíamos dizer que uma desencadeia a

outra. Não basta desviar dos tiros adversários, assim como não basta

atirar. É preciso o conjunto de ações que teriam, sob outras condições,

a qualificação de movimentos distintos, como afirma Merleau-Ponty:

Assim como a causalidade fisiológica, a tomada de consciência não pode começar em parte alguma. É preciso ou renunciar à explicação fisiológica, ou admitir que ela é total — ou negar a consciência ou admitir que ela é total; não se ode referir certos movimentos à mecânica corporal e outros à consciência, o corpo e a consciência não se limitam um ou outro, eles só podem ser paralelos. Toda explicação fisiológica se generaliza em fisiologia mecanicista ou a psicologia intelectualista nivelam o comportamento e apagam a distinção entre o movimento abstrato e o movimento concreto, entre o Ziegen e o Greifen. (1999, p. 174)

Com relação a esta diferenciação que tanto a fenomenologia quanto a

psicologia procuram enfatizar, entre o Ziegen e o Greifen, sinto que

houve um processo pelo qual o meu corpo passou, de conscientização

dos movimentos no espaço virtual. Assim como uma criança aprende a

andar, também tive que aprender como me locomover e realizar as

ações. O que percebo é que, no início, na fase de aprendizado, qualquer

dos movimentos que eu realizasse seria uma ação intencional,

deliberada. Era necessário que eu direcionasse minha atenção ao

mouse e ao teclado, buscando lembrar-me das combinações corretas de

teclas e botões para obter o movimento ou reação desejada ante as

situações proporcionadas a cada momento pelo jogo. Esta condição de

aprendizado parece ser um movimento Ziegen. Um mês após, tendo

jogado diariamente, não mais dependendo da memória para acionar as

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inúmeras combinações de botões, meus gestos reativos assemelham-se

mais aos movimentos Greifen, automáticos e impulsivos. Os gestos de

um e de outro momento são os mesmos, rigorosamente. A diferença é

que antes, meu corpo não havia se apoderado do espaço com a

naturalidade que lhe é peculiar no mundo físico.

Adentrar no ambiente virtual da “arena” de jogo me desperta uma

consciência específica daquele espaço, com suas dimensões específicas,

seus sons, seus recursos de locomoção, de apreensão e manipulação

dos objetos nele contidos, de apreende-lo, domina-lo, possuí-lo

integralmente para que possa realizar o objetivo de vencer o jogo.

Trata-se de uma consciência que guarda certas analogias visuais e

sonoras com a consciência que tenho dos espaços ocupados no dia-a-

dia, mas diferente na forma de interagir. Esta diferença, explicada

conforme o pensamento de Merleau-Ponty (p. 203), ocorreria porque a

experiência do coro reconhece uma “imposição do sentido” que não

seria a consciência clássica, ou uma consciência constituinte universal,

mas a consciência de um sentido que seria aderente a certos conteúdos,

No caso, aos conteúdos específicos da “arena” de jogo.

O ambiente virtual não tem peso, não é tátil, não exige do nosso corpo

esforços físicos nem o uso da musculatura ou da capacidade aeróbica,

exceto um esforço mínimo de ambos os antebraços, da nossa mão

direita e de alguns dedos da mão esquerda. Vivenciar o ambiente

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virtual é uma experiência mentalmente intensa, mas fisicamente sutil.

Por outro lado, devido às emoções provocadas pela temática do jogo, o

ambiente virtual de guerra é exigente quanto à utilização do sistema

nervoso, provocando suores, aceleração cardíaca, reações impulsivas e

tensão durante todo o tempo de jogo. Há aqui um paradoxo, já que o

sistema fisiológico pressupõe uma espécie de controle da demanda

muscular e aeróbica por parte do sistema nervoso. Nossos reflexos

instintivos deveriam, em princípio, serem acompanhados pelo corpo.

Este deveria ser o reflexo, no âmbito físico, das pulsões e intenções no

âmbito psíquico e emocional. À descarga de adrenalina, deveria seguir-

se um momento de intensa atividade física como correr, lutar, fugir ou

reagir. Mas a adrenalina não encontra seu destino. O que se percebe,

com o decorrer das horas, é um certo tipo de adaptabilidade a esta

situação paradoxal. À medida que se acumula a experiência de jogar, o

conjunto perceptivo parece adquirir uma certa frieza, um autocontrole

associado a uma ampliação da percepção visual e auditiva, enquanto o

corpo, antes preparado para uma guerra, passa a ficar num estado que,

à falta de outras qualificações, chamaríamos de “relaxamento alerta”.

Parece que o corpo “relaxa”, a fim de que seu estado de tensão não

atrapalhe o nível de atenção exigido para uma boa performance no

jogo.

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Os termos e expressões-chave encontrados são no início; ação

intencional, deliberada; direcionasse minha atenção ao mouse e ao

teclado; lembrar-me das combinações; provocando suores,

aceleração cardíaca, reações impulsivas e tensão; acumula a

experiência de jogar; autocontrole; frieza; ampliação da percepção

visual e auditiva; relaxamento alerta; experiência mentalmente

intensa, mas fisicamente sutil e a unidade de significado é a

experiência mentalmente intensa, mas fisicamente sutil do jogo,

provoca inicialmente reações fisiológicas (sistema nervoso) relativas

à ação do jogo – existe apenas a consciência intelectual. Com o passar

do tempo, o conjunto perceptivo se adapta a esta situação e o corpo

deixa de apresentar tais reações fisiologias, mantendo-se alerta,

porém calmo – passa a existir a consciência corporal.

Do modo de olhar o jogo

O realidade virtual exige um certo modo de ver e de estar no jogo. Num

primeiro momento procuro entender a interface sinestésica, o mouse, a

combinação de botões, o uso simultâneo destes dois tipos de apêndices

tecnológicos, dos quais meu corpo deve se apoderar para adentrar no

mundo da realidade virtual. Neste momento ainda não estou jogando,

nem tampouco adentrei o espaço. Estou apenas “fora” sentado em

frente ao computador e procurando a melhor forma de com ele

interagir. O espaço virtual é sensorialmente imersivo e, para nele estar,

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não pode haver consciência racional a respeito da interface de jogo

enquanto a utilizo. Ela deve ser ignorada, relegada à subconsciência,

deixar de existir. Para que eu vivencie o espaço virtual, não pode haver

atenção consciente ao mouse, teclado ou monitor. Não pode haver

interface para mim, porque na realidade, eu sou a interface, à medida

que minha percepção imerge no ambiente do jogo. O monitor, o teclado

e o mouse continuarão a ser o que são. O que muda é a minha

percepção. Ou, como diz Merleau-Ponty (1999 p. 301) “a visão não é

nada sem um certo uso do olhar.”

Os termos e expressões-chave que encontrei são sensorialmente

imersivo; estou apenas “fora” sentado em frente ao computador; não

pode haver... interface de jogo; ser ignorada; deixar de existir e a

unidade de significado da experiência é para imergir no jogo, o meu

olhar (do jogador) deve ignorar tudo que ocorre fora dos limites da

tela.

Do ato de raciocinar em relação ao jogo

O domínio sobre o mouse, o teclado, a “arena” de batalha, bem como o

domínio sobre a jogabilidade não ocorrem enquanto penso a respeito

deles. A intenção consciente, ao invés de ajudar, parece que interfere

negativamente na naturalidade com que navego pelo espaço virtual.

Naturalidade e desenvoltura nesse espaço não só não dependem do

meu raciocínio, como de certa forma pedem que não pense sobre ele,

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mas me deixe imergir naturalmente. Quando debruço meu olhar sobre

as teclas ou o mouse, quebra-se o poder que os dedos e a mão

naturalmente exercem sobre eles. Mouse e teclado solicitam de meu

corpo um domínio tátil, que vai se encontrar com meu sentido visual lá

dentro da “arena” de jogo Visão, audição e tato estão separados aqui no

mundo físico, para se unirem no mundo virtual, sem a interferência do

meu raciocínio. Como afirma Merleau-Ponty (1999, p. 303):

Os sentidos são distintos uns dos outros e distintos da intelecção, já que cada um deles traz consigo uma estrutura de ser que nunca e exatamente transponível. Nós podemos reconhecê-lo porque rejeitamos o formalismo da consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção.

Encontrei os seguintes termos e expressões-chave: intenção consciente;

interfere negativamente; olhar sobre as teclas ou o mouse; quebra-se

o poder que os dedos e a mão naturalmente exercem sobre eles e a

seguinte unidade de significado: Não devo pensar racionalmente que

estou jogando. Isso interfere negativamente no jogo.

Da explicitação da minha experiência no espaço físico

Merleau-Ponty nos oferece a essência do seu pensamento a respeito da

percepção na frase escolhida para a capa de A Estrutura do

Comportamento, “Não é o mundo real que faz o mundo percebido”

(2006). Complementa-se a este pensamento uma frase escrita na

introdução do mesmo livro, por Alphonse de Waelhens (p. XI). “Ora, o

mundo não é nas coisas, mas no horizonte das coisas”. A ação que se

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desenrola dentro dos limites da tela do monitor não se dá no mundo

físico, mas no espaço que percebo do mundo virtual, que é o horizonte

que se me apresenta. Caso houvesse um espaço virtual inspirado num

ambiente físico específico, o horizonte de ambos poderia ser

confrontado diante da minha percepção? Poderia haver algum tipo de

equivalência entre os dois horizontes, físico e virtual? Em busca de

resposta, decido procurar por um ambiente virtual, ou “mapa”18 de jogo

cuja criação tenha sido inspirada num lugar real, brasileiro e

geograficamente próximo, e que possibilite, posteriormente, ser

validado por minha presença real no mesmo lugar. Busco por “mapas”

brasileiros disponíveis na internet e encontro dois, um ambientado no

Rio de Janeiro, outro em São Paulo. Escolho este último, cuja ação de

guerrilha se passa num ambiente inspirado na estação Anhangabaú do

metrô. Por não residir na cidade de São Paulo, não conheço a região, o

que tornará mais interessante esta experiência. Meu intuito é explicitar,

a partir da perspectiva da virtualidade, a tese de Merleau-Ponty de que

o mundo real não constrói a percepção que tenho deste mundo.

Pretendo jogar durante alguns dias, até dominar mentalmente o

“mapa” do jogo, e posteriormente visitar o local, registrando meu

domínio deste espaço. Se a afirmação de Merleau-Ponty estiver correta,

18 Mapa de jogo, também chamado de Arena, é o nome do “lugar virtual” onde se dá a ação do jogo. No Counter Strike, existem centenas de mapas diferentes, inspirados em lugares de todo o mundo. A maior parte destes mapas foi criada e desenvolvida pelos próprios jogadores – os que tem habilidade em linguagem de programação e modelagem – e disponibilizados para internet em blogs e fóruns de discussão especializados.

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ao visitá-lo pela primeira vez, será como se não o fosse, pois já teria

tomado posse deste espaço na minha percepção, o que de certa forma

viria ao encontro do que o autor defende.

É importante salientar que não tenho a pretensão de comprovar, nem

tampouco invalidar tal afirmativa do autor, uma vez que ele, ao fazê-lo,

não se referia à simulação da realidade física. Também não tenho a

expectativa de encontrar um lugar idêntico ao existente, visto que até o

registro fotográfico envolve o exercício da criatividade e os espaços a

serem criados devem se adaptar aos objetivos específicos de cada uma

das equipes – terroristas e contra-terroristas. Meu trabalho de pesquisa

tem a característica de fazer a transposição de um pensamento a

respeito da percepção, para um contexto que não existia na época, que

é o da realidade virtual. O pensamento do autor, porém, penso eu, está

acima dos limites contextuais e temporais.

O ambiente virtual é o de uma estação do Metrô de São Paulo, chamada

“Anhangabauru”, com saída por um dos lados dos trens. Após as

catracas, o caminho se divide, levando a duas ruas. Num deles, o

maior, há uma obra de

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Figura 28 - Catracas e dois caminhos a seguir

Figura 29 - Seguindo pela saída principal

arte pendurada no teto. Toda a estrutura da edificação é cinzenta,

lembrando concreto armado, tal como a do metrô paulistano.

Figura 30 - Saída principal com obra de arte pendurada no teto

A sinalização indicativa é pintada em letras brancas sobre fundo

alaranjado, tal como na linha leste-oeste do metrô. O objetivo é plantar

uma bomba na sala de controle da estação. Além da área interna da

estação, o local possui uma área externa com ruas que ligam duas ou

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mais estações. Percorro estas ruas a fim de me familiarizar com sua

geografia. Mesmo não conhecendo o Anhangabaú, percebo que a

construção desta “arena de jogo” não deve corresponder à realidade

física do local, visto que há algumas passagens suspensas ligando ruas e

atravessando por cima das quadras. Se assim fosse, acredito que fariam

parte do cartão-postal do centro da cidade e não me recordo de ter visto

nada semelhante em fotos.

Após alguns meses “flanando” pelos corredores e ruas, senti-me

dominando mentalmente o local e resolvi repetir a experiência in loco.

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Figura 31 - Área externa sob diversos ângulos

Desço na estação Anhangabaú e tenho a primeira surpresa: a saída –

bem como a entrada – dos trens é feita na ilha central, ao paço que a

estação virtual tinha suas entradas e saídas em áreas de embarque

opostas: de um lado leste, do outro oeste. Ao subir a escada rolante,

deparo-me com sentido único de fluxo de pessoas, enquanto na estação

de metrô virtual, o alto da escada terminava em corredores para os dois

lados. Exceto pela sinalização em vermelho, característica da linha

leste-oeste, nada na estação, bem como das ruas adjacentes, lembrava o

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metro “Anhangabauru” que eu conhecia tão bem. Segui em direção à

saída da Rua Líbero Badaró e tive a mesma sensação de

estranhamento.

Inicialmente frustrado, procurei rever minha experiência e percebi que

ela não foi invalida. Porque a sensação que tive não foi a de visitar uma

estação onde nunca tinha estado, mas sim a de estar num lugar que não

era igual à estação que eu conhecia. Eu levei uma expectativa que não

se confirmou – pelo contrário – criou uma sensação de estranhamento

em mim. O horizonte que se havia apresentado mudou e esta foi a

percepção que tive do evento.

Os termos e expressões-chave desta experiência são “flanando” pelos

corredores e ruas; dominando mentalmente o local; surpresa;

frustrado; horizonte que se havia apresentado mudou e a sua unidade

de significado é: jogar numa arena de jogo inspirada em local

verdadeiro cria expectativas de comparação entre o lugar virtual e o

da realidade física.

Da imersão no jogo e dos sentidos

A imersão total e a vivência plena da realidade virtual do jogo

dependem dos meus sentidos em conjunto: visão, audição e tato.

Quando eu tiro o fone de ouvido e jogo sem escutar o que ocorre na

“arena”, não percebo a aproximação de adversários, não me envolvo no

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jogo nem sou envolvido por ele. Não estou impedido de jogar, mas por

outro lado minha percepção está impedida de vivenciar na plenitude a

experiência da realidade virtual do jogo. Se eu colocar o fone de ouvido

e fecho os olhos, os sons me chegam sem que façam sentido. Não me

envolvem, não provocam a tensão que eu costumo sentir quando escuto

os sons de olhos abertos. Se eu apenas assistir ao jogo sem comandá-lo,

não me considero ameaçado pelos tiros inimigos. É necessário que eu

comande, veja e ouça o jogo para que me sinta participando dele.

Destaco os seguintes termos e expressões-chave: sem que façam

sentido; não me considero ameaçado; e destaco também a seguinte

unidade de significado: a imersão exige a participação conjunta dos

sentidos visual, auditivo e do comando de jogo.

Das inversões de perspectiva

Incentivado pelas experiências relatadas no Capítulo II de

Fenomenologia da percepção, em que Merleau-Ponty descreve um

caso de inversão retiniana (p. 329) obtida pelo uso de óculos que

invertem verticalmente a perspectiva natural de visão, deixando as

imagens de ponta-cabeça, e mais à frente (p. 334), ao relatar a

experiência da sala com espelho a 45º, procuro estabelecer experiências

semelhantes no espaço virtual de jogo. Decido fazer três experiências:

primeiro, jogar com o monitor posicionado a 45% em relação aos meus

olhos. Segundo, jogar com o monitor invertido horizontalmente (tudo

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que está à direita é visto como esquerdo, e vice-versa. E terceiro, jogar

com o monitor invertido verticalmente, ou seja, com as imagens de

ponta-cabeça. A primeira das experiências foi realizada com a

inclinação do próprio aparelho monitor. As outras duas, a partir de um

comando realizado internamente no computador, utilizado para exibir

as imagens em aparelhos de datashow em feiras e eventos que exigem o

recurso de retroprojeção. O objetivo desta experiência é investigar se as

inversões de perspectiva no espaço virtual também oferecem

oportunidades para a orientação espacial, assim como as relatadas pelo

autor. Merleau-Ponty afirma que a orientação espacial (alto-baixo,

esquerda-direita, perspectivas etc.) não é dada pelo corpo nem

tampouco pelo espaço físico, mas pelo espetáculo oferecido à percepção

pelo campo visual, sendo o corpo agente deste espetáculo. Ou seja, se

ao meu conjunto perceptivo é oferecido um espetáculo que não reflete a

orientação espacial real, mas um espetáculo com uma lógica diferente,

seja por inversão de perspectiva, seja por inversão de eixo, mais cedo

ou mais tarde, meu corpo deve adaptar-se a esta condição, passando a

me oferecer uma leitura lógica do espetáculo que me é apresentado e

onde atuo.

Na experiência da inversão retiniana, um paciente usa óculos que

alteram o eixo vertical de visão, deixando tudo o que ele vê aparecer de

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ponta-cabeça Merleau-Ponty descreve a experiência conduzida por

Stratton19:

Se se faz um paciente usar óculos que viram para baixo as imagens retinianas, primeiramente a paisagem inteira parece irreal e invertida; no segundo dia da experiência, a percepção normal começa a se restabelece, à exceção de que o paciente tem o sentimento de que seu próprio corpo está invertido. No decorrer de uma segunda série de experiências, que dura oito dias, primeiramente os objetos parecem invertidos, mas menos irreais do que da primeira vez. No segundo dia, a paisagem não está mais invertida, mas é o corpo que é sentido em posição anormal, do terneiro ao sétimo dia, o corpo se apruma progressivamente e enfim parece estar em posição normal, sobretudo quando o paciente está ativo... ...no sétimo dia, a localização dos sons e correta se o objeto sonoro é viso ao mesmo tempo em que é ouvido. Ela permanece incerta, com dupla representação ou mesmo incorreta, se o objeto sonoro não aparece no campo visual. No final da experiência, quando se retiram os óculos, os objetos parecem sem dúvida não invertidos, mas “bizarros”, e as reações motoras estão invertidas: o paciente estende a mão direita quando s seria preciso estender a esquerda. (1999, p. 329-330)

Mais adiante (p. 334) relata a experiência do espelho posicionado a

45º:

Se se dispôs para que um sujeito só veja o quarto onde se encontra por intermédio de um espelho que o reflita inclinando-o a 45º em relação à vertical, primeiramente o sujeito vê o quarto “oblíquo”. Um homem que ali se desloca parece caminhar inclinado para o lado. Um pedaço de papelão que cai ao longo da guarnição da porta parece cair segundo uma direção oblíqua. O conjunto é “estranho”. Após alguns minutos, intervém uma mudança brusca: as paredes, o homem que se desloca no cômodo, a direção de queda do papelão tornam-se verticais.

Segue-se a primeira experiência, realizada com a tela inclinada.

Tela inclinada a 45º

Inicio a tela de jogo e inclino o monitor cerca de 45º em relação à

posição em que se encontra normalmente, esperando encontrar o

19 STRATTON, Some Preliminary Experiments on Vision without Inversion of Retinal Image, Psychological Review, vol. 3. pp. 611--617, 1896 apud MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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espaço virtual de jogo sob a perspectiva da obliqüidade. Sou obrigado a

fazer ajustes na luminosidade do monitor, que visto desta posição,

apresenta uma imagem escura e opaca.

Figura 32 - Monitor inclinado a 45º

Inicio o jogo sem qualquer dificuldade ou alteração da minha percepção

do espaço ou da posição dos meus oponentes. Jogo cerca de 15 minutos

nesta posição sem notar a sensação inicial, descrita na página 334.

Interrompo o jogo e pego um espelho de 30x50cm, posicionando-o a

45%, procurando enxergar-me e às outras coisas por intermédio dele.

Agora sim, tenho a sensação de obliqüidade, mesmo que numa área

pequena do espelho. Inclino o espelho por diversas vezes e observo

toda a profundidade do espaço movendo-se em ângulo, tendo o espelho

como vértice: os objetos mais distantes movem-se mais que os

próximos. Volto ao monitor e faço o mesmo movimento. Percebo que o

espaço de jogo da tela não se move em ângulo, mas apenas a tela se

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inclina, como uma foto. Percebo que a tela do monitor é bidimensional.

A sensação de tridimensionalidade é dada pelo movimento da imagem

de jogo, e não da tela. A sensação de profundidade é resultado do

cálculo incessante dos algoritmos gráficos que me apresentam um

espetáculo de objetos que se deslocam mais que outros em meu campo

visual, tal qual ocorreria na experiência física. Meu corpo reage

perceptivamente ao espaço tridimensional que lhe é apresentado pelo

jogo de movimento das imagens na tela e se adapta a este espetáculo

como se ele existisse no mundo real. Concluo ter sido uma experiência

de ordem física que não modificou a percepção do espaço virtual.

Os termos e expressões-chave da experiência são apenas a tela se

inclina; como uma foto; bidimensional; movimento da imagem de

jogo; a unidade de significado: a sensação de tridimensionalidade não

depende da posição do monitor, mas apenas os movimentos

observados na tela.

Tela invertida horizontalmente

Inicio o jogo e aciono a chave inversora. A imagem se inverte

horizontalmente e parece que estou empunhando a arma com a mão

esquerda.

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Figura 33 - Tela invertida horizontalmente

Movimento o mouse para a direita, a tela se desloca para a esquerda e

vice-versa. Movimento para frente e para trás e a imagem focaliza o alto

e o baixo, respectivamente, como era esperado. Procuro acionar os

botões de deslocamento: A, S, D e F. Vou “para frente” e “para trás”

como esperado, mas desloco-me lateralmente de forma inversa à minha

expectativa. Procuro seguir em direção ao objetivo do jogo, que é

“plantar” uma bomba em local determinado. Minha movimentação é

titubeante, porque sou traído pelo raciocínio vigente, em que esquerda

é esquerda e direita é direita. Mais à frente, ouço passos chegando pela

direita, mas procuro mover o mouse para a esquerda, finalmente. Sou

atingido, morro e percebo que o “inimigo” veio, na verdade, pela

esquerda. Como pode? Perco-me por um instante. Percebo em seguida

que os fones de ouvido continuam me fornecendo informações das

direções verdadeiras, não invertidas. Para que a experiência seja

completa, tenho que inverter os fones de ouvido também.

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Após uns 15 minutos de jogo, não sinto mais dificuldade em apontar as

armas utilizando o mouse. Ele se movimenta corretamente no sentido

inverso à imagem. Mas o que ocorreu não foi uma adaptabilidade de

ordem perceptiva, e sim funcional. Explicando melhor: antes, quanto

“apontava” utilizando o mouse, tinha uma imagem análoga, em minha

mente, da empunhadura de uma arma com os braços esticados. Ao

apontar para a esquerda, atirava para a esquerda e vice-versa. Meu

corpo real usava o mouse enquanto meu corpo virtual empunhava uma

arma. Quanto inverti a tela, aos poucos a imagem mental de meu corpo

virtual deixou de ser a de uma arma empunhada, e passou a ser a de

uma metralhadora fixada num tripé. Neste tipo de metralhadora, o

soldado segura a arma por trás de um eixo fixo e move-se inversamente

à direção horizontal que deseja atirar. Mesmo que a imagem na tela

fosse um revolver, senti-me empunhando uma arma presa a um eixo de

tripé, onde o mouse encontrava-se entre mim e o eixo. Considerei que

minha mente não se adaptou do ponto de vista da perspectiva espacial,

mas se utilizou e um “atalho mental” para conseguir realizar seu

objetivo, que era acertar o alvo.

Demorei uns dois dias para que a combinação de teclados se adaptasse

ao movimento pretendido, mas foi um processo irritante e frustrante,

porque minha performance de jogo caiu bruscamente e não consegui

manter a competitividade diante de meus adversários. Entretanto, em

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momentos não estressantes, em que não havia tiroteios e ações

ocorrendo, pude locomover-me com certa facilidade. Os dedos

passaram a alternar a combinação de forma automática. Meu corpo

virtual tomou posse não definitiva do espetáculo invertido. Digo “não

definitiva” porque, durante os momentos de estresse, perdia este

controle automático e procurava assumir racionalmente os movimentos

invertidos, principalmente de deslocamento lateral com o teclado, sem

o mesmo sucesso. O pânico de ser atingido pela bala inimiga quebrava

a minha posse da nova condição de perspectiva invertida.

Após cinco dias de jogo nesta condição, considero ter dominado

satisfatoriamente a inversão horizontal, inclusive nos momentos

estressante, não mais raciocinando a respeito do controle de

deslocamento lateral. Tenho uma performance em momentos

estressantes que me permitem algumas vitórias e algum prazer em

jogar desta forma. Jogo durante 3 horas seguidas sem ter assumir

conscientemente nenhum controle, deixando o corpo virtual agir “no

automático”, o que é mais eficiente em termos de performance e

resultado. Ao parar de jogar, ocorre um processo estranho: o

movimento do meu olhar no espaço do escritório, por uma fração de

segundos, é “estranhamente correto”. Senti uma sensação de

estranhamento ao mover a cabeça para a direita e a imagem

corresponder.

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No sexto dia, joguei 15 minutos e em seguida virei a chave para a

posição correta, com objetivo de verificar quanto tempo demoraria para

ma adaptar ao eixo não invertido. Foi necessário menos de um minuto

para continuar jogando normalmente , com os movimentos corretos.

Encontrei os seguintes termos e expressões-chave: se movimenta

corretamente no sentido inverso à imagem; mouse; senti-me

empunhando uma arma presa a um eixo de tripé; atalho mental;

teclados; performance de jogo caiu bruscamente; irritado e frustrado;

“estranhamente correto”; e a seguinte unidade de significado: o corpo

se adapta à perspectiva que se apresenta.

Tela invertida verticalmente

Ligo o jogo e aciono a chave na posição de inversão vertical e

horizontal, deixando a imagem de ponta-cabeça e espelhada ao mesmo

tempo.

Figura 34 - Tela de ponta-cabeça e invertida horizontalmente

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Movimento o mouse, que não corresponde a nenhum dos controles

esperados. Como já havia realizado a experiência da inversão

horizontal, não senti dificuldade em movê-lo para a esquerda e para a

direita, utilizando o atalho mental da metralhadora “sobre o eixo”, da

mesma forma que o movimento para cima e para baixo foi beneficiado

por esta forma de perceber o uso da arma. Ao mover o mouse para

frente, a arma apontou para baixo (que na verdade é para cima em

relação ao espaço virtual). Entretanto, o atalho visual que utilizei com a

arma não resolve a sensação que sinto quando me movimento: pareço

estar voando próximo ao teto. Há um imenso vão livre sob meus pés

(não os enxergo) e percebo que ganhei o dom da flutuabilidade. Ao

clicar o botão para a esquerda vou para a direita e vice-versa, mas

imediatamente me adapto à situação, graças à experiência anterior. A

arma se encontra sobre a minha cabeça. Definitivamente, não parece

que estou invertido em meu eixo vertical, mas sim voando muito alto.

Ouço tiros vindo da esquerda e, intuitivamente, sei que devo buscar a

ação à direita, a fim de evitar que a bomba seja “plantada”. A

experiência realizada com a inversão de eixo horizontal me

proporcionou esta reação correta. Vislumbro uma área maior, onde

ocorre a ação. Todos estão “grudados” ao teto, como lagartixas. Minha

reação imediata é participar e cumprir minha missão, mas falho ao

“corrigir” o eixo de ação em relação à arma. Fujo, entrando num

edifício e minha sensação de “estar voando” muda: agora penso que eu

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estou de ponta cabeça em relação à sala. Concluo que o teto sob meus

pés apresenta o elemento necessário para que o espetáculo da inversão

vertical se apresente à minha percepção.

Figura 35 - De ponta-cabeça no interior de um edificio

Volto para fora do edifício. Ao sair, o vão livre azul se apresenta

novamente sob meus pés, dando-me a sensação de estar voando. Vejo

meus companheiros de equipe correndo como lagartixas no teto e

dirijo-me a eles. Não me sinto uma das “lagartixas”. Percebo-me em

meu eixo vertical correto, voando próximo ao teto, segurando a arma

sobre a minha cabeça. A ausência do teto sob meus pés é determinante

na organização mental que me fornece a referência de estar de pé ou de

ponta cabeça. Minha posição no espaço, minha “espacialidade” não é de

posição, mas de situação (Fenomenologia, p.146).

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Figura 36 - Voando “pouco abaixo” da área, de ponta-cabeça.

Sou repentinamente “morto por um tiro” e passo a sobrevoar meu

corpo. Sobrevoar não seria a palavra correta, pois estou abaixo dele e

ele está acima de mim, grudado ao teto, enquanto estou voando alguns

metros “sob” o mesmo. Observo a tentativa de desarmar uma bomba,

que explode (Figura 24) enquanto meus companheiros são

arremessados “para baixo”, para em seguida voltarem a grudar no teto.

Vale refletir brevemente a respeito desta seqüência de percepções sobre

meu corpo virtual sentindo-se “de pé” e voando no espaço aberto, e de

ponta cabeça em espaços fechados. Merleau-Ponty aborda esta

frustração seqüencial no capítulo “O mundo percebido”:

A pretensão à objetividade de cada ato perceptivo é retomada pelo seguinte, outra vez frustrada e novamente retomada. Este malogro perpétuo da consciência perceptiva era previsível desde o seu começo. Se só posso ver o objeto distanciando-o no passado é porque, assim como a primeira investida do objeto nos meus sentidos, a percepção que sucede ocupa e também oblitera minha consciência, é então porque por sua vez ela vai passar, porque o sujeito da percepção nunca é uma subjetividade absoluta, porque ele está destinado a tornar-se objeto para um Eu ulterior. (Fenomenologia da percepção, p. 322)

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Após 2 dias de imersão no ambiente invertido vertical e

horizontalmente, domino meus movimentos, aponto “corretamente”,

ou seja, de forma invertida ao que seria o normal, porém acertando

com certa destreza meus inimigos. Locomovo-me “voando alto” (esta

sensação não deixou de ocorrer) nos ambientes abertos e de ponta

cabeça nos ambientes fechados. Mas o importante é que a sensação de

alto e baixo não faz diferença enquanto jogo. Tenho a meu favor o fato

de que a inversão de eixos ocorre apenas no campo visual e auditivo,

sem ter que se confrontar com a experiência tátil, onde a inversão não

ocorre. Merleau-Ponty (p. 330) diz que esta confrontação, entre mundo

visual (invertido) e tátil (direito) seriam duas representações

irreconciliáveis de seu corpo, que só desapareceriam se uma delas

desaparecesse. É o que ocorre no meu caso: não tenho a representação

tátil “direita” confrontando o mundo visual invertido. Porém, segundo

Merleau-Ponty, mais à frente, nem tampouco o contraponto tátil

bastaria para proporcionar uma sensação de correção à rotina invertida

pela lente dos óculos, no caso da experiência relatada por ele. Merleau-

Ponty lembra (p.332) que não estamos nas coisas, mas apenas temos

campos sensoriais, e que estes não são aglomerados de sensações, mas

sistemas de aparências que variam no decorrer da experiência, mesmo

em mudança nos estímulos. Não há alto e no baixo porque o espírito é o

constituinte das experiências, não há uma ancoragem externa que nos

dê o eixo correto das coisas. O espaço que me é dado, seja no eixo ou

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posição que se apresentar, eu o utilizo e dele tomo posse, criando novas

relações perceptivas e adaptando-as ao meu objetivo.

Os termos e expressões chave desta experiência são não parece que

estou invertido; mas voando muito alto; teto; de pé ou de ponta-

cabeça; a unidade de significado é: a sensação de inversão vertical

depende de elementos visuais (teto embaixo) que corroborem o

espetáculo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao propor esta pesquisa, levado pela intenso envolvimento subjetivo do

jogador com este tipo de jogo, averigüei sua relação com o real, a

percepção dessa experiência, do espaço virtual e de si mesmo nesse

espaço. Questionei ainda como essa experiência afeta o sujeito e a

possibilidade de ela equivaler à vivência da realidade. Na busca pela

resposta, conceituei realidade virtual e explicitei como ocorrem as

interações entre usuário e computador. Procurei compreender a

percepção do sujeito em relação a si mesmo e ao espaço, à luz da

fenomenologia de Merleau-Ponty. Lancei-me à pesquisa como sujeito

da mesma, fiel à sua filosofia fenomenológica. Redigi relatos descritivos

e deles extrai a essência, de acordo com o método fenomenológico na

abordagens, baseada em Merleau-Ponti e combinada com o chamado

método de Giorgi.

Durante os meses em que me lancei à condição de jogador do

videogame de guerra em primeira pessoa Counter Strike, fui sujeito e

objeto de minha própria pesquisa. Dediquei horas semanais, ao longo

da investigação “em campo”, no mundo virtual, a fim de explicitar a

minha percepção deste espaço de jogo. Voltando aos objetivos e lendo-

os novamente, rememoro as dúvidas quanto à utilização de uma

metodologia fenomenológica – um viés ousado, que envolveu a decisão

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de me submeter ao jogo. Porém, revelou-se acertada. Ao abrir mão de

métodos tradicionais e mais exatos de coleta de informação, foram

afastados também os prejuízos inerentes aos registros por relatos de

terceiros, entrevista ou observação. Fui eu que percebi o mundo virtual

em primeira e única mão, podendo conhecer sensações, emoções e

pensamentos a que, de outra forma, não teria acesso..

Os resultados dessa incursão vieram na forma das experiências

relatadas ao longo destas páginas. Fornecem indicadores em relação à

percepção do espaço, da manipulação de objetos virtuais, do meu corpo

virtual e de como ele se relaciona com meu corpo fenomenal. Tais

experiências produziram unidades de significado que permitem

configurar o processo fenomênico do jogo eletrônico aqui focalizado.

Reúno-as aqui, em seqüência: Meu corpo toma posse dos dispositivos

periféricos, afetando o jogo e sendo afetado por ele – A imagem em

movimento na tela bidimensional me dá uma noção de

tridimensionalidade do espaço virtual por meio do aumento e

diminuição dos objetos em diferentes velocidades – O meu corpo

fenomenal reage a alguns estímulos sensoriais direcionados ao meu

corpo virtual – O corpo virtual, para mim, é um conjunto formado

pela mão, ouvidos e olhos físicos, mais os dispositivos periféricos

mouse, teclado, monitor e fones de ouvido – Interajo com os objetos

disposto no ambiente de jogo a fim de cumprir objetivos e o faço de

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forma natural, “passando” sobre eles virtualmente – Meus sentidos

físicos estão voltados a fazer o corpo virtual cumprir um objetivo

dentro do espaço de jogo – A falta de sinestesia em relação aos objetos

virtuais e a limitação visual com relação ao meu próprio corpo virtual

causam prejuízo da minha percepção em relação a ele – Meu corpo

virtual se movimenta por um instinto de sobrevivência, de forma

impulsiva – Os diversos sons do ambiente de jogo me orientam para

onde ir e também onde evitar – A experiência mentalmente intensa,

mas fisicamente sutil do jogo, provoca inicialmente reações

fisiológicas (sistema nervoso) relativas à ação do jogo – existe apenas

a consciência intelectual. Com o passar do tempo, o conjunto

perceptivo se adapta a esta situação e o corpo deixa de apresentar tais

reações fisiologias, mantendo-se alerta, porém calmo; passa a existir

a consciência corporal – Para imergir no jogo, o meu olhar de jogador

deve ignorar tudo que ocorre fora dos limites da tela – Não devo

pensar racionalmente que estou jogando; isso interfere

negativamente no jogo – Jogar numa arena de jogo inspirada em

local verdadeiro cria expectativas de comparação entre o lugar

virtual e o da realidade física – A imersão exige a participação

conjunta dos sentidos visual, auditivo e do comando de jogo – A

sensação de tridimensionalidade não depende da posição do monitor,

mas apenas os movimentos observados na tela – O corpo se adapta à

perspectiva que se apresenta – A sensação de inversão vertical

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depende de elementos visuais (teto embaixo) que corroborem a cena.

Sintetizando, percebo: o espaço tridimensionalmente; o meu corpo

virtual de forma limitada, porém integrada ao meu corpo fenomenal; o

ambiente virtual de guerra com intensidade psicológica e reações

fisiológicas do meu corpo físico; e a posse do espaço virtual de jogo

realizada pelo conjunto formado por meu corpo virtual e fenomenal, de

maneira espontânea.

Os videogames de guerra mostraram-se bons exemplos de mundo

virtual para estudo da percepção, à medida que, pela intensidade do

tema e pela consistência e dinâmica do jogo, provocavam a rápida

imersão da consciência no ambiente virtual. Isso, entretanto, não

ocorreu desde o primeiro momento. Inicialmente, foi necessário passar

por uma fase de adaptação ao jogo, acostumar o corpo fenomenal às

combinações de teclas para os diferentes procedimentos, como trocar

de armas, abaixar, acionar ou desarmar a bomba, recarregar as armas

etc. Após este período, ocorreu o que Merleau-Ponty (p. 337) chama de

“posse do mundo por meu corpo e poder do meu corpo sobre o

mundo”. De fato, o corpo fenomenal “tomou posse” do jogo e, por

conseguinte, do espaço virtual. Imersa na guerra, consciência se

abstraía por completo do entorno físico, deixando-se levar pelo

espetáculo visual e sonoro e nele se entregando com intensidade e

envolvimento. Compreendi que a percepção não é questionadora, nem

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busca inspecionar a veracidade daquilo que se apresenta.

Evidentemente, em nenhum momento, deixei de saber tratar-se de um

jogo. Mesmo assim, quase imóvel na cadeira, apresentei um conjunto

de reações físicas e fisiológicas típicas de alguém que está vivenciando

um evento. Concluo que a vivência se dá em relação ao espetáculo

virtual percebido, e não em relação ao que ocorre ou deixa de ocorrer

no mundo físico, que parece – à minha percepção – ficar em estado de

suspensão durante o jogo.

Esse espetáculo do qual eu virtualmente fiz parte, na medida em que

afetei os eventos ocorridos, me permitiu-me perceber com um corpo

virtual próprio. Ele não tem peso, não se cansa, nem sente a dor dos

ferimentos causados pelas armas virtuais inimigas ou quedas de

grandes alturas, apesar de me sentir “enfraquecer” gradualmente com

eles, até morrer. Esta fraqueza se manifesta numa redução progressiva

da agilidade e dos movimentos. Enquanto está “vivo”, meu corpo

virtual se apresenta parcialmente a mim, até o antebraço apenas.

Depois de “morto”, posso vê-lo completamente, deitado, vestindo a

indumentária que escolhi para ele no início da partida. Mas isso não é

relevante na minha percepção. O que importa para mim é que,

enquanto vivo, vejo apenas até o antebraço virtual, enquanto em meu

corpo físico, posso ver – e tocar – braços, pernas e parte do tronco.

Meu corpo virtual tem apenas dois sentidos: audição e visão, sendo que

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esta é limitada, desprovida da visão periférica e “inflexível” nos seus

movimentos, se comparada à visão física. Esta possui o movimento

combinado dos olhos e do pescoço, enquanto a visão do corpo virtual

depende do movimento do mouse, que funciona como meu “pescoço

virtual”. O ângulo focal da visão virtual é estreito, limitado pela tela do

computador. Essa limitação do ângulo de visão, combinada com a

temática de guerra do jogo, cria uma sensação de fragilidade, já que o

jogador vê apenas o que está à sua frente e depende do movimento do

mouse para poder ver o que se passa em volta. Apesar disso, é uma

visão nítida, tridimensional e com bom alcance de profundidade. Se por

um lado é limitada, por outro é “equipada” com recursos que os olhos

físicos não possuem, como por exemplo, a marcação do “centro de

visão” com uma pequena cruz que permite atirar com precisão à longa

distância. Para compensar o fato de o corpo virtual não sentir a dor das

balas que o atingem, a visão virtual é equipada com um sinal dinâmico

que me indica a origem dos tiros. Possui também indicador da “saúde”

– semelhante ao que indica o nível de combustível no automóvel – e da

munição disponível. Já a audição virtual é semelhante à física, límpida

e estereofônica. A única diferença a ser registrada é o timbre das vozes

dos companheiros de equipe, que chegam por meio de rádio. A audição

virtual tem boa noção espacial, permitindo perceber os passos que se

aproximam ou se afastam.

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Durante a experiência realizada no campo virtual, fui submetido

algumas horas por semana a um mundo diferente do meu cotidiano em

dois aspectos. Primeiro, o ambiente virtual do jogo tem um ritmo mais

dinâmico que o físico. Os cenários se deslocam com mais velocidade, os

gestos com as mãos e a “cabeça” acontecem em fração de segundos,

assim como as corridas, perseguições, tiroteios, etc. Segundo, corre-se

risco de vida o tempo todo e se convive com a idéia de “matar” e

“morrer” de forma corriqueira.

Num primeiro momento, isso afetou meu comportamento no mundo

físico, com duração de algumas horas após o jogo. Passei a me

comportar com irritação, tensão e falta de paciência para pequenas

coisas. Passei a ter também dores de cabeça e enjôos após as seções de

jogo. Essa fase durou pouco menos de dois meses. Num segundo

momento, meu corpo físico passou a tolerar essa diferença de ritmo e a

se acostumar com o “dia-a-dia” da guerra. Deixei de ficar irritado e de

apresentar os sintomas de enjôo e dores de cabeça pós-jogo. Percebi

que isso afetou positivamente meu comportamento diante das – bem

mais raras –situações desafiadoras do cotidiano físico, como por

exemplo, ocorrências no trânsito, um objeto que cai repentinamente,

um acidente doméstico, etc. Nesses casos, passei a responder com mais

agilidade que anteriormente. Meu corpo físico ganhou um estado de

alerta natural e controlado.

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A dinâmica dos reflexos e reações, durante o jogo é muito mais veloz do

que no cotidiano físico. Isso proporcionou um ganho de agilidade nas

minhas reações frente a situações inesperadas. Meu cérebro parece

estar mais alerta ao que se apresenta à minha volta e o exemplo mais

claro disso percebo no trânsito, enquanto estou dirigindo. Antes, diante

de um motoqueiro que atravessasse a minha frente, primeiro levava um

susto, depois reagia. Hoje, a fase do susto parece não existir. A reação

ganhou um status de automatismo. Percebo que meu corpo reage antes

que me dê conta da situação.

Por outro lado, não gosto de assistir a filmes de suspense e terror, por

causa dos sustos que tomo. Incomoda-me a sensação do susto

repentino em cenas de planos fechados. Nestes casos, viro os olhos,

cerro as pálpebras e aguardo a cena terminar. Mas assistir a esse tipo

de filme é uma constante, porque minha esposa gosta. Ultimamente,

entretanto, tenho percebido que estas cenas não me incomodam mais

como incomodavam. Penso que o convívio com a tensão do susto

repentino, proporcionada pelo jogo tenha me acostumado a este tipo de

cena. No começo, sentia o mesmo tipo de incômodo jogando. A

semelhança das cenas de plano fechado seguidas de um susto, parece

que “calejaram” meu sistema nervoso.

Não serão os videogames de guerra jogados em primeira pessoa um

eficiente meio para a conquista da inteligência emocional, a que se

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refere Goleman (1997)? Novas pesquisas poderiam investigar essa

possibilidade.

Um dos aspectos mais gratificantes da experiência realizada foi a

oportunidade de exploração dos espaços construídos no mundo virtual.

Graças aos programas gráficos e à capacidade dos computadores, esses

ambientes se assemelham muito ao espaço físico e proporcionam uma

experiência interessante. A representação dos espaços guarda boa

semelhança com a realidade física, exceto quanto ao ângulo mais

estreito de visão comentado anteriormente. Isso compromete um

pouco o “domínio geográfico” das “arenas”, fazendo com que demore

um pouco mais para o jogador não se sentir perdido nelas. Mas uma

vez dominado o “mapa”, sinto que poderia andar pelos espaços físicos

de um lugar com as mesmas características – caso existisse – com a

mesma desenvoltura que tenho no espaço virtual.

Questionei qual a relação dessa experiência com o real. Retomo a frase

de capa da Estrutura do Comportamento: “Não é o mundo real que faz

o mundo percebido” (2006). O real de que fala Merleau-Ponty é o

mundo percebido. Neste sentido, para mim, foi uma vivência tão real

quanto a que ocorre no mundo físico. De fato, concluo, o corpo

fenomenal percebe e se adapta ao mundo que se apresenta, seja ele

físico ou virtual, esteja o corpo em sua condição original ou destituído ,

por exemplo, de um dos olhos, ou como no caso da experiência, de

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parte do corpo e de alguns dos sentidos. Isso não diminui o real

percebido porque, repito, o real é o percebido.

Pergunto-me também se esta experiência equivale à vivência da

realidade. Concluo que em termos. De um lado, ela oferece um

conjunto de informações, transmitidas via multimídia e apreendidas

pela vivência. Oferece-se aí um potencial imenso a ser explorado. Da

mesma forma com que absorvi a informação prática, conteúdos

didáticos, como por exemplo a geografia, o uso de ferramentas médicas

ou ainda muitos outros campos de conhecimento poderiam se valer

desse tipo de mídia. Neste sentido, a vivência no mundo virtual pode

vir a ser considerada equivalente à do mundo físico. Por outro lado, não

oferece a interface sinestésica característica do universo físico, como a

dor, o frio, o cansaço, a sensação do ferimento, etc. Com isso, gera no

sujeito da vivência uma noção distorcida das suas próprias condições

diante do mundo, assim como das conseqüências dos seus atos. No

mundo virtual, matei e morri incontáveis vezes, e sobrevivi para contar.

Neste mundo só se morre uma vez, sem direito a uma narrativa

posterior...

143

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