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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião Vicente Luiz Simões Ferreira RELIGIÃO E POLÍTICA Análise histórico-crítica das relações de poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana no período pós-exílico SÃO BERNARDO DO CAMPO/SP Setembro de 2012

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Vicente Luiz Simões Ferreira

RELIGIÃO E POLÍTICA

Análise histórico-crítica das relações de poder entre

o campesinato judaíta e a classe sacerdotal

jerusolimitana no período pós-exílico

SÃO BERNARDO DO CAMPO/SP

Setembro de 2012

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VICENTE LUIZ SIMÕES FERREIRA

RELIGIÃO E POLÍTICA

Análise histórico-crítica das relações de poder entre

o campesinato judaíta e a classe sacerdotal

jerusolimitana no período pós-exílico

Tese apresentada em cumprimento às

exigências do curso de Pós-Graduação em

Ciências da Religião para obtenção do

grau de doutor.

Área de concentração: Literatura e religião

no mundo bíblico

Orientação: Prof. Dr. Tércio M. Siqueira

São Bernardo do Campo – SP

Setembro de 2012

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A tese de doutorado sob o título “RELIGIÃO E POLÍTICA – análise

histórico-crítica das relações de poder entre o campesinato judaíta e a

classe sacerdotal jerusolimitana no período pós-exílico”, elaborada por

Vicente Luíz Simões Ferreira foi defendida e aprovada em 28 de Setembro

de 2012, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Tércio

Machado Siqueira (Presidente/UMESP), Prof. Dr. José Ademar Kaefer

(Titular/UMESP), Prof. Dr. Paulo Barrera Rivera (Titular/ UMESP), Prof. Dr.

Antônio Carlos Frizzo (Titular/ITEFIST), Renatus Porath (Titular).

___________________________________________

Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

______________________________________________________

Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Literatura e Religião no Mundo Bíblico

Linha de Pesquisa: Estudo Histórico-Literário do Mundo Bíblico

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Agradecimento

Em primeiro lugar, quero agradecer, de saudosa memória, ao amigo e

professor, Dr. Milton Schwantes, pois se hoje sou o que sou, academicamente falando,

devo praticamente, tudo a ele. As aulas no curso de graduação em teologia. O convite

para ingressar na pós-gradução e a orientação no mestrado. Enfim, chegado ao termo

no doutorado, fomos colhidos pelo infortúnio de sua partida, mas as lembranças, que

não foram poucos, deixaram marcas indeléveis, que nada nem ninguém poderão

apagar.

Agradeço também aos professores do corpo docente do Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião pelo carinho e atenção ao longo da caminhada. Ao

professor Dr. Tércio Machado Siqueira que pacientemente soube me orientar e

quando preciso, foi sempre firme. Agradeço também ao IEPG e CAPES pelo apoio

financeiro.

Enfim, agradeço aos colegas, meus amigos e companheiros na academia, pois

me proporcionaram sempre momentos muito felizes em suas companhias.

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Dedicatória

Dedico esta tese a todos os povos que ainda, em pleno século XXI continuam

sendo explorados, manipulados e escravizados pelas classes dominantes.

Que esta tese, juntamente com outras tantas teses, sirvam de motivação para

um profícuo trabalho de libertação e emancipação dessas gentes que também tem o

direito de viverem no aqui e agora da história uma vida nova, com acesso aos bens

fundamentais para que possam gozar desde já de uma plena alegria e felicidade.

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SUMÁRIO

Introdução 12

I Parte

Capítulo 1 – Religião e Política 32

1.1 – A Religião 34 1.1.1 – Fase da Religião Pura 41 1.1.2 – Fase da ascensão do Estado 47

1.2 – A Política (O Estado) 72 Capítulo 2 – Sociedades primitivas/selvagens/tribais 76

2.1 – As diferentes funções dentro das sociedades primitivas 84 2.2 – A questão do Poder nas sociedades primitivas 87 2.3 – Religião e poder nas sociedades primitivas 92

Capítulo 3 – Relações de Poder 101

3.1 – Conclusão 106

II Parte

Capítulo 4 – Contextualizando o judaísmo 108

4.1 – Contexto histórico do objeto de pesquisa 113 4.2 – Os persas e sua política imperial de controle social 114 4.2.1 – Ruralização 116 4.2.2 – Militarização e incremento comercial 117 4.3 – Reconstruindo partes da história 117 4.4 – O tribalismo israelita 124 4.4.1 – Revisitando o período pré-monárquico 126 4.4.1.1 – Retirada pacífica 127 4.4.1.2 – Nomadismo interno 127 4.4.1.3 – Transição ou transformação pacífica 128 4.4.1.4 – Amálgama pacífico 129 4.4.2 – Os anciãos (chefes) tribais pediram um rei 130 4.4.3 – A situação do tribalismo no período assírio 131 4.4.4 – Exilio: para o campesinato possibilitou a “retribalização” da província de Judá 143 4.4.4.1 – O exílio e a reforma agrária 144 4.5 – O campesinato judaíta 147 4.5.1 – O campesinato 147 4.5.2 – O campesinato judaíta 150 4.5.3 – Resgatando alguns importantes fatos históricos 150 4.5.4 – Retorno dos exilados: a “terra” no centro da crise 161 4.6 – O sacerdócio jerusolimitano 166

4.7 – O regime teocrático 176

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III Parte

Capítulo 5 – Judaísmo: consumação do projeto teocrático 181

5.1 – Judaísmo: um projeto imperial persa? 183 5.2 – A ideologia como estratégia do grupo sacerdotal sadocita 190 5.2.1 – Ezequiel 40-48 “Nunca descuidaremos da casa de nosso Deus” – aspectos da economia do segundo templo 196 5.2.1.1 – Ez 40-48: um projeto para a província de Judá 197 a) Sumo sacerdote e príncipe: direitos iguais 199 b) A lei do templo (torat habauyt) 199 5.2.2 – O Pentateuco e a Narrativa Sacerdotal (P) 210 5.2.2.1 – O Pentateuco no campo das forças políticas e Sociais da província de Judá 212 5.2.2.2 – A Narrativa Sacerdotal (P) 215 a) Material sacerdotal 217 b) O ideológico culto sacrificial como elemento central do Documento Sacerdotal 221 c) Sadocitas versus levitas 224 5.2.3 – Esdras e Neemias 225 5.2.3.1 – Estrutura e teologia 227 5.2.3.2 – A problemática da terra 230 5.2.3.3 – Implicações da ideologia de Ez 40 – 48 233 5.2.3.4 – Esdras a partir de Esd 7 – 10 234 5.2.3.5 – Neemias 236 a) Neemias 5 236 b) Neemias 10 241 5.2.4 – 1º e 2º Crônicas 243 5.3 – O sistema sacrifical sacerdotal como eficiente Sistema tributário 244 5.4 – Uma releitura da ideologia sacerdotal à luz de Michel de Certeau 250 5.5 – O judaísmo à luz da teoria da etnicidade 253 5.6 – Tribalismo e profetismo 258 5.6.1 – Amós 258 5.6.2 – Oséias 262 5.6.3 – Conclusão 266 5.7 – As relações de poder no judaísmo à luz de Michel Foucault 268 5.7.1 – Vigilância em rede 268 5.7.2 – Punindo não tanto o corpo, mas principalmente a alma 272 5.7.3 – Da “verdade do poder” ao “poder da verdade” 274 5.8 – Judaísmo: religião da “saída da religião” 275

Conclusão 282

Bibliografia 292

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FERREIRA, Vicente Luiz Simões, Religião e Política – Análise histórico-crítica das

relações de poder entre o campesinato judaíta e classe sacerdotal jerusolimitana no

período pós-exílico, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo,

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Tese de Doutorado, 2012.

Resumo

Partindo do pressuposto de que o laicismo preconiza uma separação radical

entre Estado e Igreja, procuro demonstrar nesta tese, a partir de um recorte na

história do Judaísmo que estas duas dimensões estiveram profundamente presentes

em seu período inicial de formação. Esta tese se constitui como uma espécie de

desconstrução da história tradicionalmente aceita pelos diferentes credos que utilizam

o Antigo Testamento como fundamento de seu corpo doutrinal.

Estabeleci as relações de poder, que se efetivaram entre os dois grupos sociais

mais importantes dentro do contexto destacado, como meu objeto de pesquisa

privilegiado. Por um lado tem-se o poder religioso, que sustentado por um projeto de

caráter eminentemente político, subverteu a seu favor toda uma ordem natural na

qual estavam alicerçadas, por outro lado, diferentes sociedades tribais.

Nesse sentido o judaísmo se configurou como um sistema de crença que

justificou e legitimou a classe sacerdotal jerusolimitana como classe dominante em

toda a província de Judá. Manipulando os dados da tradição tribal a seu favor, a classe

sacerdotal, não somente passou a dominar religiosamente as pessoas que habitavam a

região da província de Judá, mas transformou os membros destas sociedades tribais

em camponeses escravizados a um sistema de crença extremamente opressor.

Segundo a tese de Marcel Gauchet, o judaísmo como ponto de partida da

revelação judaico-cristã, se mostra, conforme o conceito weberiano de

“desencantamento do mundo”, como início de um processo, onde a religião

institucionalizada se tornou “saída da religião”. Processo esse, que teve seu clímax no

período da modernidade e que nesse início de século XXI se vê num momento de

transição quando passa a um novo período, isto é, à pós-modernidade: nesse sentido

já se pode entrever seu ocaso.

Palavras chave: relações de poder – tribalismo – campesinato – sacerdócio – ideologia

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FERREIRA, Vicente Luiz Simões, Religião e Política – Análise histórico-crítica das

relações de poder entre o campesinato judaíta e classe sacerdotal jerusolimitana no

período pós-exílico, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo,

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, PhD Thesis, 2012.

Summary

Assuming that secularism advocates a radical separation between Church and

State, I try to demonstrate this thesis, a clipping from the history of Judaism that these

two dimensions were deeply present in their initial training period. This thesis is

constituted as a kind of deconstruction of the traditional story accepted by different

faiths who use the Old Testament as doctrinal foundation of your body.

Focusing on the study of Judaism as a particular example, established power

relations, which we accomplished between the two most important social groups in

this context as my privileged object of research. On the one hand there is the religious

power, sustained by an eminently political character design, overturned in their favor

across a natural order in which they were grounded on the other hand, different tribal

societies.

In this sense Judaism is configured as a belief system that justifies and

legitimizes the priestly class jerusolimitana as the ruling class throughout the province

of Judah Manipulating data tribal tradition in its favor, the priestly class, came to

dominate not only religiously people who inhabited the region of the province of

Judah, but become members of these tribal societies enslaved peasants in a belief

system extremely oppressive.

According to the thesis of Marcel Gauchet, Judaism as a starting point of the

Judeo-Christian revelation, it turns out, according to Weber's concept of

“disenchantment of the world”, as the beginning of a process, where organized

religion has become "out of religion”. This process, which had its climax in the

modernity and the beginning of this century we see a moment of transition when he

begins a new period of post-modernity, one can already discern its setting.

Keywords: power relations - tribalism - peasantry - the priesthood - ideology

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FERREIRA, Vicente Luiz Simões, Religião e Política – Análise histórico-crítica das

relações de poder entre o campesinato judaíta e classe sacerdotal jerusolimitana no

período pós-exílico, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo,

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Tesis de Doctorado, 2012.

Resumen

Suponiendo que el laicismo aboga por una separación radical entre la Iglesia y el

Estado, trato de demostrar esta tesis, un recorte de la historia del judaísmo que estas dos

dimensiones eran profundamente presente en su período de formación inicial. Esta tesis

se constituye como una especie de deconstrucción de la historia tradicional aceptado por

diferentes religiones que usan el Antiguo Testamento como fundamento doctrinal de su

cuerpo.

Centrándose en el estudio del judaísmo como un ejemplo particular, las relaciones

de poder establecidas, lo que hemos logrado entre los dos grupos sociales más

importantes en este contexto como mi objeto privilegiado de investigación. Por un lado

está el poder religioso, sostenido por un diseño de carácter eminentemente político, se

volcó a su favor a través de un orden natural en el que se fundamenta por otro lado,

diferentes sociedades tribales.

En este sentido, el judaísmo se configura como un sistema de creencias que

justifica y legitima la jerusolimitana clase sacerdotal como clase dominante en toda la

provincia de Judá, Manipulación de los datos de la tradición tribal en su favor, la clase

sacerdotal, llegó a dominar no sólo la religión las personas que habitaban la región de la

provincia de Judá, pero convirtieron en miembros de estas sociedades tribales

esclavizados campesinos en un sistema de creencias muy opresivo.

De acuerdo con la tesis de Marcel Gauchet, el judaísmo como punto de partida de

la revelación judeo-cristiana, resulta que, de acuerdo con el concepto de Weber de

"desencantamiento del mundo", como el inicio de un proceso, donde la religión

organizada se ha convertido en “fuera de la religión”. Este proceso, que tuvo su clímax en

la modernidad y el inicio de este siglo vemos un momento de transición, cuando comienza

un nuevo período de la post-modernidad, ya se puede discernir su final.

Palabras clave: relaciones de poder – el tribalismo – campesinos – el sacerdocio – la

ideología

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INTRODUÇÃO

Há setores que procuram interferir no projeto existencial e social das pessoas. Tentam substituir o projeto pessoal pelo projeto do sistema vigorante. Temem que o ser humano adote posição autônoma, e contrarie os interesses do sistema dominante. Sabem que o ser humano por frágil que seja é “perigoso” *…+ Para sufocar o projeto original autônomo adotam pedagogias massificantes. Procura-se

adaptar as pessoas às normas existentes e levá-las a reproduzir-se como cópias da situação predominante. Enquadra-se o rebanho humano no código uniformista. Impõe-se à população o

paradigma oficial. E quem diverge do consenso é condenado como herege. Assim o mundo continua a ser mesmo, dominado pelos mesmos, usado pelos mesmos, usurpado pelos mesmos.

É hora de provocar a emersão do ser humano autônomo. É hora de suscitar a consciência crítica que não se deixa enganar. É hora de fermentar a reflexão emancipatória que se mantém insubmissa. É hora de amadurecer um projeto original que levante gerações de seres humanos

independentes e responsáveis. É hora de encorajar o ser humano a concretizar seu projeto de vida comprometido com a justiça, com a solidariedade, com a igualdade social e com a dignidade humana.

Há soluções políticas, econômicas, científicas e tecnológicas. Mas a solução fontal é o ser humano. Para isso, é preciso que o ser humano queira ser solução. Queira ser gente.

Juvenal Arduini1

1 Juvenal Arduini, Antropologia: ousar para reinventar a humanidade, 2ª Edição, São Paulo, Paulus,

2002, p.22-23.

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O tema desta tese nasceu em resposta a alguns questionamentos que estava

fazendo quando do término do mestrado, pois em verdade, o que move o mundo e a

história, não são tanto as respostas, mas sim as perguntas. Perguntar ou questionar,

como se afirma, é próprio de cada um de nós seres humanos. Faz parte de nossa

essência, de nossa racionalidade ser questionadores, mas não pelo simples fato de

questionar, mas como alguém que está em busca de respostas aos nossos problemas

mais candentes, sejam eles de que ordem for.

Por um lado, alcançamos um status científico e tecnológico maravilhoso

quando comparado com outros períodos. As previsões são as mais otimistas possíveis

em relação à cura de algumas doenças como a aids, o mal de Parkinson e o mal de

Alzheimer.

Hoje os físicos, matemáticos e astrônomos falam em “teoria das cordas”2,

“Bóson de Higgs”3, “mundos paralelos” que segundo a trilogia baseada em três livros e

que agora chega a tela dos cinemas, tem atraído a atenção de muita gente, além de

outras tantas fantásticas curiosidades.

2 “Teoria das cordas”: O interesse na teoria das cordas é dirigido pela grande esperança de que ela possa

vir a ser uma teoria de tudo. Ela é uma possível solução do problema da gravitação quântica e, adicionalmente à gravitação, talvez possa naturalmente descrever as interações similares ao eletromagnetismo e outras forças da natureza. Trabalhos na teoria das cordas têm levado a avanços na matemática, principalmente em geometria algébrica. A teoria das cordas tem também levado a novas descobertas na teoria da supersimetria que poderão ser testadas experimentalmente pelo Grande Colisor de Hádrons. Os novos princípios matemáticos utilizados nesta teoria permitem aos físicos afirmar que o nosso universo possui 11 dimensões: 3 espaciais (altura, largura e comprimento), 1 temporal (tempo) e 7 dimensões recurvadas (sendo a estas atribuídas outras propriedades como massa e carga elétrica, por exemplo), o que explicaria as características das forças fundamentais da natureza. Texto acessado em 11/08/2012: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_das_cordas 3 “Bóson de Higgs” ou “Partícula de Deus” como é conhecida também, é uma partícula elementar

bosônica prevista pelo Modelo Padrão de partículas, teoricamente surgida logo após ao Big Bang de escala maciça hipotética predita para validar o modelo padrão atual de partícula

[2]. Representa a chave

para explicar a origem da massa das outras partículas elementares. Todas as partículas conhecidas e previstas são divididas em duas classes: férmions (partículas com spin da metade de um número ímpar) e bósons (partículas com spin inteiro). O bóson de Higgs foi predito primeiramente em 1964 pelo físico britânico Peter Higgs, trabalhando as ideias de Philip Anderson. Entretanto, desde então não houve condições tecnológicas de buscar a possível existência do bóson até o funcionamento do Grande Colisor de Hádrons (LHC) meados de 2008. A faixa energética de procura do bóson vem se estreitando desde então e, em dezembro de 2011, limites energéticos se encontram entre as faixas de 116-130 GeV, segundo a equipe ATLAS, e entre 115 e 127 GeV de acordo com o CMS. Fora da comunidade científica, é mais conhecida como a partícula de Deus (tradução livre do original God particle, alcunha dada pelo físico Leon Lederman devido ao fato desta partícula permitir que as demais possuam diferentes massas. A 4 de Julho de 2012, cientistas do CERN anunciaram que, ao fim de 50 anos de investigação, descobriram uma partícula nova que pode ser o bóson de Higgs.

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Ao mesmo tempo também vemos um grande movimento de emancipação de

povos do oriente e do norte da África, antes dominados por ditaduras opressivas e

sangrentas caindo depois de dezenas de anos no poder. É a “primavera árabe” que

testemunha que regimes ditatoriais não resistem ao tempo.

Mas, por outro lado, estamos assistindo a mais uma derrocada do capitalismo,

que alguns anos atrás, com a queda do socialismo em 1989, foi saudado até pela Igreja

Católica como um modelo perfeito de sociedade, parafraseando a canção, “abençoado

por Deus e bonito por natureza”, mas que hoje, visto seu inexorável fracasso e na ânsia

por se salvar, obriga estados e nações a pagarem um alto preço com suas próprias

vidas. Insensível, inescrupuloso e desumano o capitalismo vai fazendo vítimas por toda

parte. Mas, como sempre os que mais sofrem e são chamados a pagar este alto preço

são os pobres.

Vivendo um momento de transição, de mudança de paradigma, de rupturas, de

incertezas diante dos tremendos desafios que se nos afiguram de guerras aqui e acolá,

de atentados terroristas, muitos se perguntam: estamos, de fato, entrando num

período novo? Seria a tão propalada pós-modernidade? Que valores devemos carregar

conosco? Que futuro podemos esperar? Será que a modernidade com toda a sua

riqueza de valores e sentido já cumpriu com seu dever?

Ao que tudo parece indicar existem algumas forças contrárias que antevendo

seu inevitável fim, numa tentativa de conseguir sair ilesa desse período, luta

desesperadamente para se manter incólume. É o caso como pudemos assistir do

chamado acordo entre a Santa Sé (Vaticano) e o Estado Brasileiro em 2009. Segundo

Mozart Valadares, ex-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a

aprovação do estatuto da Igreja Católica no Brasil foi inconstitucional e feriu a

liberdade de religião no país. Disse ele: “Quando você faz um acordo dando benefício a

um segmento religioso em detrimento dos outros, você começa a desobedecer, a

descumprir o texto constitucional”4. Isso, na verdade, nada mais é do o estrépito de

um corpo que parecendo ainda viver no período denominado de a “época das trevas”,

continua ruindo dia após dia. Haja vista todo o alvoroço que ela provocou,

4 Texto acessado em 11/08/2012: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3943857-EI6578,00-

AMB+acordo+Brasil+x+Vaticano+e+inconstitucional.html.

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principalmente nas redes sociais, com a votação pela liberdade das mulheres em

recorrer ao aborto diante de casos comprovados em que o feto seja portador de

anencefalia.

Em pleno século XXI, nesse início de milênio muitos dos problemas que

acossaram nossa vida e, principalmente, nossa consciência, ainda parecem não ter

desaparecido. Volta e meia, religião e política parecem irmãs siamesas que resistem a

uma separação, pois muitos membros de ambos os lados ainda creem que possam

auferir bons resultados mantendo essa iníqua ligação.

Lendo o livro “Religião e luta de classes” de Otto Maduro penso que minha tese

responde em parte aos seus questionamentos. No prólogo ele se pergunta: “A quem é

que serve a religião na luta de classes?”5 Como poderá ser constatado no

desenvolvimento de minha tese, as religiões institucionalizadas, particularmente a

Igreja Católica Apostólica Romana, continua a servir aos interesses da classe

dominante. Em suas “palavras iniciais”, Otto Maduro diz que é preciso saber o porquê

e o como as relações entre Igreja e na sociedade chegaram a este ponto. De fato, ele

reconhece que os conflitos de classe influem na religião6. Mas, ao concluir sua tese,

Otto Maduro parece não ter satisfatoriamente encontrado a resposta para as

perguntas que fizera no início, pois diz:

Nisto consiste o mal estar que me atormenta a mais de 13 anos. As perguntas nascidas desse mal-estar e inquietação eu já as formulei nas palavras iniciais deste ensaio [...]. De alguma forma, tentamos sistematizar, neste ensaio, uma resposta a estas perguntas. Mas foi apenas uma tentativa – até aqui – puramente teórica, de um ponto de vista estritamente sociológico e em torno de um só aspecto do problema. Por isto, esta é uma investigação inconclusa, incompleta: porque da teoria seria mister passar, agora, à investigação empírica e à intervenção sócio-política, a fim de verificar o alcance, os limites e a validade de minhas proposições; porque, além disso, seria mister amplia e completar esta perspectiva sociológica com perspectivas psicológicas, teológicas etc., até cobrir algumas das outras dimensões que constituem um fenômeno tão infinitamente rico como o religioso.7

5 Otto Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na

América Latina, Petrópolis, Editora Vozes, 1981, p.9. 6 Idem, p.22-24.

7 Idem, p.188.

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Utilizando-se da teoria marxista como instrumento de análise, ele parece não

ter ficado satisfeito com as conclusões e afirma que a “teoria marxista da religião não

passa de um distante e obscuro ponto de partida”.8

Mas, ao contrário do conclui Otto Maduro, utilizarei da teoria marxista, mas

com um diferencial: aplicando-a diretamente aos textos bíblicos, isto é, indo

diretamente à raiz de toda a problemática que ele levanta sem conseguir encontrara

uma resposta satisfatória.

Nesse sentido, se como dizem os estudiosos do mundo bíblico, classificados de

minimalistas9, pelo fato de afirmarem que não existe a menor possibilidade de se

escrever uma história de Israel a partir dos textos bíblicos, eu me perguntava: sendo

assim, Abraão, Moisés, os 12 Patriarcas, Josué, Saul, Davi, Salomão são todos

personagens fictícios? Se estes personagens não são históricos, mas são criações dos

redatores, com que intenção foram escritos os textos bíblicos? Qual foi o grupo que

8 Otto Maduro, Religião e luta de classes …, p.189.

9 R K Gnuse, No other Gods: Emergent monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997,

392p.; Joseph Callaway, Village Subsistence at Ai and Raddana in iron Age I em H Thompson, The answers lie bellow: essays in honor of Lawrence Edmund Toombs, Lanham, University Press of America, 1984; David Hopkins, The highlands of Canaan, Georgia, Almond Press. 1985; Frank Frick, The formation of the state in Ancient Israel: a survey of models and theories, Georgia, Almond Press, 1988; James Flanagan, David’s social drama: a hologram of Israel’s early iron age, Georgia, Almond Press, 1988; Gosta Ahlstron, A history of Ancient Palestine, Minneapolis, Fortress Press, 1993; Carol Meyers, Discovering eve: Ancient Israelite women in context, New York, Oxford University Press, 1988.; Cf. CHJ de Geus, The tribes of Israel: an investigation into some of the presuppositions of Martin Noth’s amphictyony hypothesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1976; V Fritz, Die Entstehung Israels im 12 und 11 Jahrundert v. Chr., Sttutgart, Kohlhammer, 1996; Israel Finkelstein, The archaeology of the Israelite settlement, Jerusalem, Israel Exploration Society, 1988; Israel Finkelstein, N A Silberman, The bible unearthed: archaeology’s new vision of ancient Israel and origin of its sacred texts, New York, The Free Press, 2001.; Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 43-87.; NP Lemche, Early Israel: anthropological and historical studies on the Israelite society before the monarchy, Leiden, Brill, 1985; Ancient Israel: a new history of Israelite society, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995; The Canaanites and their land: the tradition of the Canaanites, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1991; Die vorgeschichte Israels: von anfangen bis zum ausgang des 13, Sttutgart, Kohlhammer, 1996; The Israelites in history and tradition, Kentucky, Westminster John Knox, 1998; William Stiebing, Out of the desert? Archaeology and the conquest narratives, Buffalo, Prometheus, 1989; Robert Drews, The end of the Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe ca. 1200 B.C., Princeton, Princeton University Press, 1993; Robert Coote e Keith Whitelam, The emergence of early Israel in historical perspective, Georgia, Almond Press, 1987; Rainer Albertz, A history of Israelite religion in the old testament period, 2 vols, Philadelphia, Westminster Press, 1994.; Baruch Halpern, The emergency of Israel in Canaan, Chico, CA, Scholar Press, 1983; William Dever, Recent archaeological discoveries and biblical research, Seattle, University of Washington Press, 1990; Thomas L Thompson, Early history of the Israelite people from the written and archaeological sources, Leiden, Brill, 1992; The mythic past: biblical archaeology and the myth of Israel, New York, Basic Books, 1999; Donald Redford, Egypt, Canaan and Israel in ancient times, Princeton, Princeton University Press, 1992.

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esteve por trás da redação dos diferentes livros? Por que a maioria dos livros tidos

tradicionalmente como “históricos” perdeu totalmente essa conotação? Se a bíblia é

de inspiração divina, por que tantas contradições entre os textos? Se hoje, conforme

os dados provenientes da arqueologia que desmentem a maioria das histórias

narradas na Bíblia, que sentido essas histórias tinham para aqueles a quem elas foram

escritas? Poderiam os livros bíblicos do AT, quase que na totalidade, serem

classificados como de caráter “etiológico”?

Se pudéssemos perguntar aos redatores, qual teria sido a verdadeira intenção

ao escrever o que escreveram talvez não nos dissessem, mas, quem sabe, perguntando

aos destinatários, eles nos forneceriam algumas respostas. Porque, na verdade, os

camponeses, homens e mulheres que viveram no tempo em que foram escritos esses

livros, eles são os verdadeiros destinatários. É a eles que devemos perguntar. São eles

que, de certa forma, guardam a chave que nos possibilita a compreensão e o

verdadeiro sentido dos textos. Mas quem são estes destinatários?

Foi a partir desses questionamentos que me pus a começar a construir meu

objeto de pesquisa. Não tinha clareza do que seria, mas aos poucos, à luz

principalmente de estudos interdisciplinares foi possível identifica-lo com muita

precisão.

De repente fui me dando conta também de que meu objeto de pesquisa tinha

uma relação intrínseca com minha própria história de vida. Posso afirmar com certeza,

que não foi por acaso que isto aconteceu. Fruto também de uma profunda vivência

religiosa ao estilo das experiências místicas de João da Cruz, da pobreza e desapego de

um Francisco de Assis e da candura de uma Teresa de Lisieux. Dos retiros inacianos

dentre outras tantas riquezas, são quase trinta anos de muitas histórias, de encontros

e desencontros, de buscas e perdas, de renúncias e entregas, de muitos momentos

onde a alegria, a paz e a segurança da comunidade, faziam com que eu esquecesse ou

mesmo até, que se despreocupasse, totalmente, com o que se passava no mundo.

Assim nasceu meu objeto de pesquisa: as “relações de poder”. Foi

perguntando, não só, pelos interlocutores presentes nos textos, mas perguntando a

eles sobre o sentido dos textos que cheguei a essa conclusão. É a partir das “relações

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de poder” que se estabeleceram entre os grupos sociais durante o período pós-exílico

que encontrei a chave de leitura que me abriu portas outrora bem fechadas sob o

manto da historicidade.

Se como diz Pierre Bourdieu:

[...] O que conta, na realidade, é a construção do objeto, e a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de constituir objetos socialmente insignificantes em objetos científicos ou, o que é o mesmo, na sua capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objetos socialmente importantes, apreendendo-os de um ângulo imprevisto [...] O sociólogo poderia tornar sua a fórmula de Flaubert: “pintar bem o medíocre”.10 (O grifo é pessoal)

E seguindo as orientações de Bourdieu, descobri que além do objeto de

pesquisa escolhido, me deparei com um grupo social, que de certa forma, como objeto

de pesquisa foi sempre marginalizado. Elegi este grupo social como objeto do meu

objeto de pesquisa, que para muitos pode não fazer o menor sentido, ser até

considerado como um objeto “medíocre”, pois como tradicionalmente sabemos boa

parte das desgraças, calamidades e infortúnios “enviados por Deus a Israel”, tinha

como culpados o próprio povo – sociedades primitivas ou tribais.

Na verdade, como poderá ser constatado, eles quase nunca são mencionados,

mas quando o são, aparecem como uma espécie de “bode expiatório” em toda esta

fantasiosa história criada por escribas ligados às classes dominantes de Jerusalém. É

dentro do espírito da “nova história” que privilegia não os grandes acontecimentos,

mas os pequenos, aqueles que á primeira vista parecem “socialmente insignificantes”,

que de fato, tem um profundo valor histórico que precisa apenas ser desenterrado

mediante a utilização de um “método eficaz” de reconstrução histórica. Existem alguns

que faremos menção logo abaixo e outros que, na medida da necessidade, daremos as

devidas explicações.

Pensando alto e longe, como se perguntou Rigoberta Menchú Tum no seu

discurso antes receber o prêmio Nobel da Paz em 1992: “À pergunta: ainda existe

esperança ou o futuro ainda está aberto aos povos indígenas?” Ela mesmo responde:

10

Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.

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Para responder a essa pergunta, é fundamental considerar as condições em que vive a imensa maioria de nossa população mundial, suas profundas reivindicações que fundamentam as lutas e esperanças de um futuro melhor. A concentração dos poderes em poucas mãos condena os pobres a serem mais pobres e torna mais evidente a urgência de retomar os sagrados valores que deram origem à nossa humanidade; isto é em essência, o que reivindicamos os povos indígenas e os povos originários do mundo [...] O respeito aos valores e direitos individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e pacífico.11

E ela continua seu discurso dizendo que é preciso:

[...] Contribuir positivamente para a criação de novas relações entre os povos indígenas e os estados [...] Esta face desconhecida da história tenta fortalecer sociedades multiétnicas e pluriculturais [...] Os 500 anos tem representado muita noite, muita escuridão. Não há escuridão que aguente muito tempo; ela tem de terminar pois é preciso amanhecer.12

É a esses grupos, citados por Rigoberta Menchú, que ela classifica como sendo

os “povos indígenas e os povos originários do mundo” que eu associo o campesinato

judaíta, pois falar do campesinato judaíta é o mesmo que falar das sociedades tribais,

primitivas ou indígenas. É com este grupo ou classe social que me identifico em

oposição a todos aqueles que ao longo de toda a história do gênero humano, por

causa de sua ganância, dominaram, espezinharam, maltrataram, exploraram,

manipularam, ridicularizaram e tantos outros adjetivos que nessa mesma linha possam

ser elencados.

Pois é salutar saber, como nos disse Paulo Freire no seu livro A Pedagogia da

Autonomia que é preciso que se tenha bem claro, antes de dar início a qualquer

projeto, o seguinte:

A favor do que estou lutando?

A favor de quem estou lutando?

Contra o que estou lutando?

Contra quem estou lutando?

11

Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo, Editora Ática, 1996, p.13. 12

Idem, p.14-17

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Sei que a isenção e a objetividade são elementos indispensáveis ao trabalho

científico. Mas como vivemos numa sociedade de classes, desconfio da

neutralidade científica. Por isso, farei um grande esforço para não ideologizar os

fatos, porém, isso não deve impedir que o trabalho revele a posição e o

compromisso do autor em relação à necessidade de transformação tanto da

sociedade, bem como também, ao tipo de comportamento a que Paulo Freire nos

conclama:

Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também, o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar. No próprio mundo físico minha constatação não me leva à impotência. O conhecimento sobre os terremotos desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles. Não podemos eliminá-los, mas podemos diminuir os danos que nos causam. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo, e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim não é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele.

Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?13

Com isso, acredito que Paulo Freire quer nos conscientizar do valor que tem

uma tomada de posição em relação ao mundo, particularmente em relação ao mundo

que envolve nosso assunto. É necessário que seja pertinente, atual e não, uma letra

morta sem incidência e nem repercussão na vida.

13

Paulo Freire, A pedagogia da autonomia, São Paulo, Paz e terra S/A, 24ª edição, 2006, 148p.

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Como afirmou determinada vez Rigoberta Menchú Tum: “Fue muy importante

para mí aprender a distinguir a los enemigos”.14

Portanto, foi a partir dessas palavras de Paulo Freire que comecei a pensar no

título desta tese. Partindo do aprofundamento do objeto de pesquisa escolhido –

relações de poder –, bem como também pelos muitos questionamentos acima

mencionados, busquei qual teria sido a razão para que as sociedades primitivas ou

tribais renunciassem a seus valores e princípios morais, que por tantos séculos haviam

orientados suas vidas, em troca de um novo modo de vida totalmente diferente.

Partindo da constatação de que a dimensão religiosa teve um papel

importante, isto é, uma função extremamente fundamental, no sentido de fazer com

que estas sociedades tribais não se opusessem e nem criassem resistência quanto à

implantação da nova ordem. Foi a partir daí que comecei a intuir o título desta tese.

Assim, à luz das ciências humanas, mais particularmente, da antropologia e da

sociologia, de autores como Marcel Gauchet, Georges Balandier, Marshall Sahlins,

Pierre Clastres, Maurice Godelier, além de um especial encontro com a teoria

desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels: o “materialismo histórico”, dentre

tantos outros autores, como pode ser constatado pela bibliografia, foi que me deparei

com a realidade de duas dimensões tipicamente humanas: a política e a religião.

Historicamente é possível mostrar que desde os primeiros escritos, religião e política

sempre foram temas que despertaram paixões, que foram motivos de alianças e, em

nosso caso específico, motivo de dominação, de exploração e de manipulação por

parte de seus agentes ou representantes.

Nesse sentido, os conceitos de Religião e Estado, que se constitui no título

desta tese, me dão os instrumentais necessários para que possa, mediante um recorte

histórico – que implica na eleição de um caso particular, no caso, o judaísmo –

desenvolver de forma ulterior meu objeto de pesquisa – relações de poder –, que sem

sombra de dúvida, possibilitará uma perfeita elucidação da discrepância que existe em

ter vigente num mesmo centro de poder estas duas instituições: religião e estado.

14

Frase citada por Rigoberta Menchú Tum. Acessada no dia 03/07/2012 em: www.fasecelebre.net/frases _frases_de_Rigoberta_Menchu_1.html.

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Outra forte motivação, que funciona como uma espécie de pano de fundo, vem

de uma questão neo-testamentária, isto é, de um ponto de vista presente no Novo

Testamento. Como sabemos, existem várias correntes teológicas do Antigo

Testamento que desaguam no Novo Testamento e influencia de certo modo a cada um

dos livros que o compõe. Uma dessas linhas teológicas, que é uma compreensão do

evento Jesus Cristo a partir da ótica dos pobres, dos pobres crucificados da América

Latina, segundo Jon Sobrino, e está no cerne da questão que levou Jesus à cruz, – que

é ponto central da fé cristã e afirma que Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, morreu

crucificado – é o fato de que:

Jesus não elaborou nem uma filosofia da religião nem especulou sobre o possível papel alienante estrutural da religião. Como judeu ortodoxo praticava sua religião, mas em suas palavras, seus atos e atitudes, condena a situação factual da religião. Consequentemente com sua concepção de Deus, Jesus foi um liberal em matéria religiosa e isto o levou à cruz. Sua atitude histórica diante da religião e seus representantes deve ser compreendida à luz de sua concepção de Deus que, de fato, tanto serve para oprimir o homem como para justificar sua opressão.15 (o grifo é pessoal)

O que realmente está em debate entre Jesus e seus interlocutores – os

religiosos de seu tempo – é a sua concepção de Deus “e mais operativamente o modo

de acesso ao verdadeiro Deus”. Este foi o motivo pelo qual ele foi condenado à morte.

O Deus que Jesus apresenta é muito maior que o deus dos escribas e fariseus e está

numa clara contradição com a situação religiosa reinante. Jesus provoca uma ruptura,

uma descontinuidade.

Parece muito pouco afirmar que Jesus morreu por um desígnio de Deus. Como

salienta Jon Sobrino:

A cruz de Jesus não é algo casual, mas a consequência da última tentativa de auto justificação do homem religioso, do homem manipulador de Deus, que deixa que Deus continue sendo um mistério, mas manipulável. “A cruz não é compreensível sem a cooperação dos judeus piedosos”. *...+ Por mais paradoxal que possa parecer o que matou o Filho foi a “religião”.

15

Jon Sobrino, Cristologia a partir da América Latina: esboço a partir do seguimento do Jesus histórico, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1983, p.216.

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A partir dessa compreensão o que está em questão é um processo sobre o

verdadeiro poder que medeia a Deus. Como poderá ser verificado na primeira parte

desta tese, as sociedades primitivas, assim como o próprio AT, incluindo também, os

romanos e os zelotes, desenvolvem uma concepção de poder totalmente contrária à

apresentada por Jesus. O poder apresentado por Jesus é o testemunho de um “poder

de amor situado e neste sentido é um amor ‘político’, não idealista. A partir da cruz se

aguça a pergunta pela verdadeira essência do poder”.16

Segundo as tradições judaicas “Reino de Deus” relacionava-se, ou explicitamente com a instauração de uma ordem política teocrática ou, onde essa visão era rejeitada, com uma organização da sociedade que necessariamente devia levar em conta o social e o político, pelo menos enquanto ambos tivessem a ver com uma configuração da convivência entre homens. O ponto conflitante só pode consistir – como de fato aconteceu na vida de Jesus – no uso do poder, ou expresso melhor, que tipo de poder se deve usar para organizar a sociedade segundo Deus.17

Aqui eu toco, com o auxílio das reflexões de Jon Sobrino, ao essencial daquilo

que será desenvolvido nesta tese: as bases das relações de poder que se

estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana. Como

nos diz Jon Sobrino:

Aqui está a verdadeira confrontação: que poder é que verdadeiramente torna presente a divindade? O homem pensa espontaneamente na divindade com naquilo que possui poder. O que Jesus questiona é se esta convicção, tão profundamente arraigada, é verdadeira ou não. Imediatamente constata, historicamente, que o poder entregue à própria inércia, considerado como a máxima manifestação do homem – por ser supostamente a mediação de Deus – é, de fato, opressão. E por esta razão o poder não pode ser a última mediação de Deus.

Jesus opõe à concepção da divindade como poder, outra concepção da divindade como amor. [...] Esta concepção do amor político o levou necessariamente à cruz.18 (o grifo é pessoal)

Ter sido morto numa cruz não tem nada a ver com “vontade de Deus” ou algo

independente da história, mas foi consequência de sua encarnação histórica, que é

verdadeiramente conflitiva, porque a cruz, vista como um fim na história do pecado

16

Jon Sobrino, Cristologia a partir..., p.219. 17

Idem, p.220. 18

Idem, p.223-224.

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possui poder e triunfa na forma de opressão.19 Nesse sentido, concordo plenamente

com Jon Sobrino, quando diz que:

Jesus constata que o mais profundo deste pecado é algo que deve ser considerado em duas vertentes: tanto o poder religioso como o político se fazem passar por Deus, em flagrante contradição com “seu” Deus. Ao mesmo tempo este poder, enquanto divinizado, enquanto idolatrado, leva necessariamente à opressão do homem. Daí o poder que se considera como a autêntica mediação de Deus se converte em última instância de verdade e não se detém ante a opressão. Ao desidolatrar o poder religioso e político, Jesus está condenando, ao mesmo tempo, todo tipo de opressão em nome do poder: para a submissão do homem não existe nenhuma justificação, porque o poder que submete não é Deus, mas seu contrário.20

Desse modo, o que fica claro para mim, a partir desse ponto de vista neo-

testamentário é que as bases dessa teologia a que chegou o poder religioso do

judaísmo, constituído na época de Jesus, tem sua gênese, justamente, no período de

conclusão redacional do Pentateuco, ou seja, quando se conclui a redação de diversos

textos tendo em vista as difíceis e contraditórias relações de poder entre o

campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.

A história da Igreja Católica Apostólica Romana é um exemplo emblemático,

pois enquanto instituição (hierarquia) e corpo eclesial (fieis), não só na sua dimensão

ad-extra, de presença no mundo, mas também e particularmente, nas suas relações

intra-sistêmicas, isto é, nas suas relações ad-intra, da hierarquia com os fiéis, deixa

muito a desejar no tocante às relações de poder.

Fundada, nos mesmíssimos moldes da comunidade judaica do Antigo

Testamento – qahal: assembleia dos fiéis – ela reproduz quase que nos mesmos

moldes toda a estrutura organizacional: tradições, prescrições litúrgico-canônicas,

códigos de moral, estruturas eclesiásticas e formas de poder centralizadoras e

controladas por um corpo de sacerdotes, a Hierarquia.

Sabe-se que toda comunidade não subsiste sem um mínimo de instituição que

lhe confira unidade, coerência e identidade, mas como disse Lord Acton, “todo poder

tende a se corromper e o absoluto poder a se corromper absolutamente”. Como

19

Jon Sobrino, Cristologia a partir..., p.224-225. 20

Idem, p.225.

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assevera Leonardo Boff, como veremos ao longo deste projeto, o poder não significou

somente uma terrível tentação de domínio e substituição de Deus, mas foi em diversas

épocas causa de uma quantidade enorme de escândalos em todos os seus níveis, seja

institucional quanto corpo-eclesial – sucumbiu desastrosamente.21

Como tudo na vida tem um início, seu ponto de mutação se deu quando da

virada constantiniana. De religio illicita o cristianismo – Igreja Católica Apostólica

Romana – passa a constituir a religião oficial e assim a ideologia sacral do Império.

Como diz Leonardo Boff:

A Igreja parece que não estava apesar das perseguições, preparada para enfrentar evangelicamente os desafios próprios do poder. Ela não aboliu a ordem pré-existente. Assumi-a e adaptou-se a ela. Ofereceu ao Império uma ideologia que sustentava a ordem vigente e sacralizava o cosmo pagão. “A religião que marcou o Ocidente não foi propriamente a mensagem cristã, mas a síntese entre e religião antiga e a cristã” *...+ Com a entrada na Igreja dos funcionários do Império que deviam assumir a nova ideologia estatal, processou-se antes uma paganização do cristianismo do que uma cristianização do paganismo. [...] A Igreja-instituição se acomodou de bom grado às realidades políticas e às uniformidades inexoráveis. Encetou uma trajetória de poder que chegou até o presente e cujo ocaso, parece, nos é dado entrever.22

Como poderão ser confirmadas na segunda e terceira parte desse estudo, as

mesmas estruturas encontradas no judaísmo, em termos de uma estreita união entre

religião e estado, são reproduzidas da mesma forma na Igreja Católica, guardadas,

obviamente, as devidas proporções. Isto acontece porque a matriz estrutural e

organizacional das duas religiões é idêntica: os livros do Antigo Testamento.

Portanto, é aos pobres e explorados de ontem como aos de hoje, que dedico

este projeto de tese na esperança, de como diz Rigoberta Menchú, sobrevir um novo

amanhecer, que sejam dias de reconhecimento, não só da manipulação, dominação e

exploração a que foram submetidos por dezenas de séculos de história, mas,

principalmente, dos “sagrados valores que deram origem à nossa humanidade” e que

ainda hoje podem ser encontrados em muitas sociedades indígenas: um Estado sem

poder!

21

Leonardo Boff, Igreja, carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante, 3ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1982, p.85 22

Idem, p.87-88.

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É a isso que, humildemente, se propõem esta tese.

No sentido de tentar reconstruir parte dessa história esquecida, devido à

ênfase dada aos grandes acontecimentos, personagens e heróis bíblicos, na sua grande

maioria fictícios, lançarei mão de alguns dos instrumentais ligados à nouvelle histoire.

Em frontal contraposição ao senso comum e ao paradigma tradicional que

enfatiza somente o aspecto político, procurarei demonstrar que “sagrados valores” são

esses aos quais se refere Rigoberta Menchú e que, segundo ela, podem dar um novo

elã às sociedades hodiernas.

Tentar escrever parte da história do campesinato judaíta, é escrever parte da

história das sociedades primitivas ou tribais. É atender ao apelo de se lançar ao

trabalho de escrever uma “história vista a partir de baixo”, isto é, do ponto de vista das

sociedades exploradas e marginalizadas, que com certeza, tem muitas coisas a nos

dizer. A exploração e a marginalização a que foram submetidos por séculos a fora, não

foram frutos de uma evolução natural das sociedades de classe, que necessitavam de

mão de obra para satisfazer suas às necessidades. Foram sim, frutos da arrogância de

seres humanos, que ao ensimesmarem-se, exploraram e maltrataram sem limites seus

próprios semelhantes.

Um dos fundamentos da nova história é quanto axioma antropológico do

relativismo cultural. Peter Burke em A Escrita da História, afirma categoricamente que

“a base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou

culturalmente constituída”.23 Isso implica em dizer que o sentido cultural de qualquer

sociedade deriva do seu contexto. Assim também, o relativismo moral, implica em que

as proposições de moral e ética não são verdades universais, mas nascem de um

determinado contexto cultural. Essas verdades nos fazem pensar e questionar muito

sobre aquelas inúmeras leis e normas presentes no Pentateuco e tidas como de origem

divina. Sobre isso voltaremos na segunda parte desta tese.

Conforme Pierre Bourdieu salienta, é para romper com este modo de

pensamento ultrapassado e sem base científica nenhuma “– e não pelo prazer de colar

23

Peter Burke, A escrita da história: novas perspectivas, São Paulo, Editora UNESP, 1992, p.11.

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novos rótulos em velhos frascos teóricos –“ que me lanço nesse desafio de dar cor e

brilho a corpos desfigurados pela dor e sofrimento. Dar voz e vez a quem tanto fez e

nada, absolutamente nada recebeu em troca, pois quem faz a roda do mundo girar

não é quem fica na direção, mas quem, como suor de seu rosto emprega o melhor de

suas forças nesse serviço.

[...] Entre ética e poder a relação será sempre difícil, porém necessária: como o poder se refere sempre ao outro, corre o risco de ser perversão e puro domínio quando não se exerce e não se cultiva alto sentido da dignidade humana, da liberdade e dos direitos humanos.

Na base de todo poder está a relação fundamental do mandato e da obediência. A decisão antes de tudo, como ato de poder, é o que constitui o problema moral. [...] A partir do momento em que o bem comum está constituído pelo reconhecimento e pela promoção dos direitos do homem e da convivência, pode-se dizer que a justiça é o elemento moral determinante do poder.24

De fato, se não somos capazes de ver o outro na dimensão da alteridade, isto é,

se “não se cultiva alto sentido da dignidade humana” como diz Lorenzetti no parágrafo

acima, nossas relações de poder são pura “perversão e domínio” do outro.

De um determinado ponto de vista, não se trata de construir nada, senão que,

desconstruir. Proceder a uma análise histórico-crítica das relações de poder entre o

campesinato israelita e a classe sacerdotal jerusolimitana implica em descortinar, em

desvelar a trama que está por trás das narrativas construídas de muitos textos bíblicos.

Mas, por outro lado, se trata sim de construir aquela parte esquecida – omitida – da

história de que nos fala Rigoberta Menchú, daquele real de que nos falará em seguida

Michel de Certeau. Sim, a proposta é também de construção, de escrever o não dito da

realidade campesina, de encontrar no verso – da narrativa bíblica – o reverso de sua

triste e dolorosa realidade: suas lutas para sobreviverem diante dos avanços imperiais,

o drama de terem que renunciar aos seus mais nobres valores, costumes, enfim, à sua

identidade cultural.

A tese que eu defendo e procurarei demonstrar é a de que as relações de

poder entre o campesinato israelita e a classe sacerdotal jerusolimitana foram tecidas

de tal modo, que as relações de poder claramente se transformaram em relações de

dominação e exclusão para os dominados – campesinato israelita –, pois, os

24

Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.971.

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dominadores – classe sacerdotal jerusolimitana – que tendo na escritura hebraica seu

principal instrumento de empoderamento e legitimação de seu status quo, conforme

acentuou Max Weber, “domesticaram os dominados”25.

Segundo Michel de Certeau enfatiza em seu livro A Escrita da História:

[...] recusar a ficção de uma metalinguagem que unifica o todo é deixar aparecer os procedimentos científicos limitados e aquilo que lhes falta do real ao qual se referem. É evitar a ilusão necessariamente dogmatizante, própria do discurso que pretende fazer crer que é “adequado” ao real, ilusão filosófica oculta nos preâmbulos do trabalho historiográfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambição tenaz: “O relato dos fatos reais é doutrinal para nós”. Este relato engana porque acredita fazer a lei em nome do real.26

Desse modo, partindo daquilo que a “nova história” caracterizou como sendo

uma história a ser contada a partir do ponto de vista dos dominados, isto é, daqueles

que sempre estiveram em baixo, aquele “real” de história que foi omitido, conforme

interesses escusos dos dominadores, daqueles que sempre estiveram por cima.

Com o fim dos discursos universais e seguindo uma das tendências filosóficas

que marca profundamente a contemporaneidade da reflexão, como novo norteador

ético, o corpo é assumido atualmente como critério para julgamento. Mas conforme

preconiza a “nova história” nem sempre foi assim. Estudar a história do corpo humano,

que é constantemente afetado de maneiras variadas, tanto pela cultura quanto pela

sociedade, jamais deveria ser encarado sem levar em conta as considerações

(culturais) da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia.27

Para a Nova História é de importância básica uma compreensão do local

subordinado, destinado ao corpo nos sistemas de valor religioso, moral e social da

cultura, tanto do presente como do passado. Se há como afirma Roy Porter, “um

enorme campo de ação para os historiadores políticos para serem mais sensíveis à

realidade do corpo, produzidas pela autoridade do estado sobre os corpos de seus

25

Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.32. 26

Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1982, p.10-11. 27

Roy Porter, “História do Corpo”, em Peter Burke, A escrita da história, 2ª Reimpressão, São Paulo, Editora UNESP, 1992, p.291-326.

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súditos”28, o judaísmo se apresenta como um valioso objeto de estudo, pois, como

religião do corpo, de corpos marcados com o sinal da morte, de corpos marginalizados

e excluídos da vida, de corpos prostituídos e manipulados segundo os interesses de

outros corpos, corpos vergados pela fome e pela dureza do trabalho escravo diante de

corpos, aparentemente, emoldurados pelas ideológicas bênçãos dos céus.

Não foi por menos que Michel de Certeau inaugurou seu livro analisando

aquela pintura de Jan Van der Straet, onde o artista pintou o descobridor que vindo do

mar, e tendo atrás de si as naus que levaram muitos de nossos tesouros, se encontra a

“América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo

que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos”. Mas, conforme aponta o

próprio Michel de Certeau:

[...] o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a escrita conquistadora. Utilizará o novo mundo como uma página em branco (selvagem) para nele escrever o querer ocidental. Transforma o espaço do outro num campo de expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre um sujeito e um objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever) fabrica a história ocidental.29 (o grifo é meu)

Daí que o autor se pergunta: “Que aliança é esta entre a escrita e a história?” E

responde, dizendo: “Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das

Escrituras”.30

Este “discurso do poder” do qual nos fala Certeau, logicamente tem a ver com

os diferentes discursos, mas aqui, particularmente, com os discursos presentes na

escritura judaico-cristã. Segundo o próprio Certeau estes discursos tem mais “aspecto

de fabricação” e não mais de leitura ou interpretação. O que está por trás é

claramente um “problema político” e em jogo, a “questão do sujeito (do corpo e da

palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de

uma escrita científica”.31

28

Roy Porter, “História do Corpo”..., p.325. 29

Michel de Certeau, A escrita da história..., p.9-10. 30

Idem, p.11. 31

Idem, ibdem.

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Desse modo, o que esta tese propõe é uma profunda reflexão sobre o poder,

sobre as relações de poder que se estabelecem na sociedade. Por isso, são oportunas

as palavras de Lorenzetti, citadas abaixo. Elas nos levam a um profícuo

questionamento no que diz respeito ao nível de nossos relacionamentos.

O poder, por si mesmo, não tem nem terá fins bem precisos; terá os que lhe venham da

consciência. „O poder espera ser dirigido‟ (R. Guardini). A questão ética do poder

consiste, pois, essencialmente na questão da finalidade do poder. Os fins, os objetivos,

as metas (que podem ser tão variados quanto os projetos humanos são o objeto e o

término do problema da avaliação do poder.

Estreitamente ligada ao objetivo ou fim está a questão dos meios que precisam ser

assumidos: a perversão dos meios implica degeneração do fim. As perspectivas ou os

horizontes do poder – não só o político – dificilmente parecem conciliáveis com as

razões da ética; o poder tende à eficácia e, por isso, adota a astúcia, a coação e a própria

força.32

32

Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.971.

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A história humana não é outra coisa do que uma luta

....................................................................longamente vitoriosa contra a alienação

política.33

I PARTE

Capítulo I –Religião e Estado34

“A essência da religião é ser contra a história”35

Tomando como ponto de partida desta tese o fato histórico de que religião e

política36 são duas dimensões que estão profundamente arraigadas e consolidadas na

33

Marcel Gauchet, “A dívida do sentido e as raízes do estado: política da religião primitiva” em Guerra, religião, poder, São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1977, p.87. 34

Neste capítulo primeiro busco fundamentar os termos religião e política, bem como também, na medida da necessidade, explicitar as teorias e métodos que serão oportunamente utilizados como meio para se alcançar os distintos objetivos. 35

Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.61. 36

Utilizo, já desde o início, o conceito de “política” ao invés de “estado” porque a meu ver, o termo política é o que melhor exprime a realidade do estado. O estado é o exercício político no seu grau mais elevado. Portanto, usarei livremente ambos os conceitos, mas dando as devidas ênfases quando necessárias.

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condição existencial do ser humano, e por isso mesmo, conferindo-lhe uma dignidade

incomparável em relação a todos os outros seres. Quero à luz do testemunho da

ciência e da história, bem como também, a partir de um recorte na própria história,

revisitá-la e demonstrar até que ponto, a união entre estas duas instâncias, religião e

estado, foi sempre e terrivelmente danosa, pelo menos, para um grupo em particular:

o campesinato.

No intuito de poder abarcar os conceitos em toda a sua amplitude farei uso dos

instrumentais oriundos das chamadas ciências humanas. As ciências humanas se

apresentam como um conjunto de ferramentas imprescindíveis para a consecução dos

objetivos que serão propostos abaixo. Pode parecer estranho para quem é da área de

exegese bíblica a ênfase que será dada a diferentes áreas do conhecimento como meio

e suporte para o entendimento e interpretação do meu objeto de pesquisa, bem como

do contexto histórico a ser estudado.

Não foi por acaso que as ciências do homem ganharam o status que tem hoje.

Conforme Hilton Japiassu afirma, as ciências humanas tiveram na Revolução Francesa

seu grande mote, pois ao introduzirem uma descontinuidade na história, revelaram

que a história existe e tanto pode ser alterada quanto reconstruída. Francis Fukuyama

estava completamente enganado quando afirmou que a história havia terminado.

Nesse sentido Japiassu faz uma interessante reflexão:

[...] Este acontecimento político, social e econômico – Revolução Francesa – introduziu

uma ruptura fundamental no universo ideológico da Europa do século XIX. E essa

ruptura traz, em si, as condições de aparecimento das Ciências Humanas, não como

consequência do acaso, mas como uma exigência interna ao acontecimento mesmo.

Porque, doravante, não resta dúvida de que a história existe e que os homens podem

nela intervir.37

Desse modo, a Revolução Francesa representou, não só um marco histórico

para o surgimento das Ciências Humanas, mas também representou o fim de um longo

período em que política e religião caminharam profundamente entrelaçadas. Rompeu-

se o estreito liame que ainda restava da união destas duas grandes dimensões da

natureza humana, que praticamente, só prejuízo trouxe, quando estiverem unidas

numa mesma instituição, tanto o poder religioso quanto o poder político.

Homens e mulheres são con-vocados, isto é, são instados, pelo próprio potencial, –

ora latente, ora reprimido – a desenvolver essas dimensões, de modo a que a sua vida

em sociedade seja melhor e mais fácil de ser desfrutada.

37

Hilton Japiassu, Introdução às Ciências Humanas: análise de epistemologia histórica, 11ª Edição, São Paulo, Letras & Letras, 2002, p.30-31.

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Mas, como poderá ser verificada, a aliança destas duas dimensões numa

mesma instituição de governo, conforme o testemunho histórico de inúmeras

sociedades ao longo de quase 5.000 anos de história, nos possibilita afirmar que esta

união foi sempre extremamente desastrosa para todas as sociedades aonde ela, de

fato, chegou a se consumar.

Encontrar a medida certa, o justo equilíbrio existencial entre essas duas

potencialidades da natureza humana é o escopo a ser alcançado. Mas falar em justo

equilíbrio não implica numa divisão equânime de forças e ações. Poderia uma das

dimensões, pelo seu suposto valor, exercer um predomínio sobre todas as outras

demais dimensões da existência humana? Existiria uma dimensão que devido ao seu

conteúdo ou caráter poderia ter certa prevalência em relação às demais? O que a

história testemunha, particularmente com respeito às primeiras sociedades, chamadas

de selvagens, tribais, primitivas ou originárias, era de que a religião era a dimensão

que plasmava a vida de todas as sociedades, relativizando ou englobando todas as

outras demais dimensões da vida. Mais recentemente, com o advento da

modernidade, é o estado, via dimensão política, que na sua forma peculiar e mais

abrangente, é quem detêm todo o controle da sociedade.

Mas com isso quereria dizer que devemos voltar a viver como as sociedades

primitivas?

Ou quem sabe, elas teriam algo a nos ensinar?

Como poderá ser verificado, farei um estudo de um caso particular, um caso bem

concreto onde, tanto o poder religioso como o poder político, – na sua forma mais

elaborada – foi assumida por um mesmo grupo social, determinando assim, toda a

vida de toda uma sociedade dentro de um determinado contexto. O problema que

será levantado está não somente no fato em si, mas no modo como ele foi sendo

articulado e desenvolvido, até ser plenamente aceito por toda a sociedade. Aqui está o

nó da questão. Determinar os meandros desse projeto, – de caráter não só político e

religioso, mas também, com forte incidência no âmbito socioeconômico – constitui-se

na aquisição da chave que permite compreender as reais motivações que tiveram os

redatores de muitos dos textos bíblicos escritos no período pós-exílico.

A análise dos conceitos de religião e política, implica, partindo de uma visão

holisticamente epistemológica, isto é, de uma visão interdisciplinar do conhecimento,

de uma visão que busque integrar os termos acima citados a partir de diferentes

enfoques, pois que estão, na práxis e historicamente, profundamente conexos entre si.

O que me motiva a trabalhar este tema que ora se constitui no título desta tese

é perceber que os altos e baixos da trajetória humana sobre a face da terra sempre foi

marcada pela conjunção e/ou disjunção, em maior ou menor grau, destes dois

aspectos da vida social de todos os grupos humanos.

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1.1 – A religião38

Fenômeno tipicamente humano e universal, a religião é a respiração, o suspiro

do ser na busca por sentido e respostas à sua condição humana e existencial. Como

disse acertadamente Rubem Alves, a religião é um desses mecanismos que possibilita

criarmos “ilusões, realizações dos mais velhos, mais fortes e mais urgentes desejos da

humanidade”39. Precede o estado em termos de aparecimento no cenário mundial.

Aliás, como será demonstrado, conforme a tese de Pierre Clastres foi a religião quem

engendrou o estado40. É também o meio pelo qual homens e mulheres tentam acessar

um meio e poder sobrenatural – desconhecidos – como forma e tentativa de

solucionarem seus problemas de ordem puramente natural. Desde os mais remotos

tempos bem como também através dos mais antigos registros, tais como as pinturas

rupestres, pode-se afirmar com certeza que o ser humano possui como salienta Marcel

Gauchet41, um núcleo antropológico que o disponibiliza para o desenvolvimento e

exploração dessa dimensão, simultânea e dialeticamente expressa, pela clareza e pela

obscuridade.

Neste primeiro capítulo utilizarei a obra de Marcel Gauchet42 como uma

espécie de fio condutor na exploração e desenvolvimento do tema da religião, que é

pela lente do filósofo francês:

[...] Fenómeno original que encontramos tan lejos como podamos remontarnos en el

tiempo de los hombres; fenómeno universal, del que no conocemos ninguna sociedad

que haya escapado; fenómeno recurrente, del que podemos discernir su influencia,

cerca de nosotros, hasta en los movimientos de inspiración fundamentalmente

antirreligiosa, como las empresas totalitarias: ¿no parece atestiguar todo que estamos

en presencia de una de esas últimas constricciones inherentes al ser-conjunto, siempre

igual a sí misma, en última instancia, y cuya sola necesidad trataríamos de desprender

de la proliferante y metamórfica diversidad de sus manifestaciones?43

Vista a partir de alguns prismas, tais como: o histórico, o político e o fenomenológico44,

a religião institucionalizada durante uma grande parte da história, conforme os

38

Esta fundamentação histórica da religião servirá de base para que se possa caracterizar, posteriormente, a religiosidade a qual estava imerso a população que habitava nas aldeias e vilas da Judéia, antes de serem integradas ao Judaísmo. 39

Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p.26. 40

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, 152p. 41

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo: una historia política de la religión, Madri, Editorial Trotta, 2005, 302p. 42

Conforme indicado na bibliografia. 43

Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.31. 44

O termo “fenomenologia” segundo Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 2006, p.1: “O que é fenomenologia? Pode parecer estranho que ainda se precise colocar essa questão meio século depois dos primeiros trabalhos de Husserl. Todavia, ela está longe de estar resolvida. A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se

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critérios do materialismo histórico desempenhou uma função que conforme a imagem

da metáfora do “edifício” ocuparia um espaço na estrutura ideológica dentro desta

superestrutura.45 Até bem pouco tempo – comparado com o desenvolvimento de todo

o gênero humano – e de um modo geral, organizava a vida da sociedade, mas levando

a grande massa de seus adeptos – normalmente, a classe dominada – a uma total

atitude de alienação com relação à realidade histórica e política.

Partimos também aqui de algumas concepções clássicas do termo religião. Para Mircea

Eliade, religião é definida como a “experiência” do sagrado. Para Rudolf Otto é “um

sentimento numinoso do ‘totalmente outro’ do “mysterium tremendum e fascinans”46.

Já, pelo filtro sociológico de Émile Durkheim, na sua obra Formas elementares da vida

religiosa, religião é entendida como sendo:

[...] coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações

coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem

unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a

refazer certos estados mentais desses grupos.47(grifo pessoal)

Para Max Weber, apesar de não ter tido nenhuma afinidade pessoal com a religião,

pois numa carta a um amigo, teria dito o seguinte: “não tenho absolutamente nenhum

ouvido musical para a religião”48. Mas, apesar desse posicionamento, foi um teórico,

que pelo viés sociológico, procurou incansavelmente analisá-la chegando à seguinte

definição:

[...] sistema estruturado de símbolos pelos quais grupos humanos formulam a última

razão de ser da vida e do mundo em que vivem e em redor de que se organizam certa

unidade com progressiva especialização de papéis.49 (grifo pessoal)

em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira a não ser senão a partir de sua ‘facticidade’. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre ‘ali’, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico”. 45

O termo “infraestrutura” que será devidamente conceituado, a posteriori, é utilizado nesta tese conforme as categorias do método marxista do materialismo histórico. 46

Bernardo Razzotti, “Rudolf Otto (1869-1973) – A universalidade do religioso” em Giorgio Penza, Rosino Gibellini (org), Deus na filosofia do século XX, 2ª Edição, São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.147. 47

Emile Durkheim, Formas elementares da vida religiosa, 2ª Edição, São Paulo, Paulus, p.38. 48

Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber, 2ª Edição, São Paulo, Editora 34 Ltda, 2005, p.25. 49

Francisco Hass, Concepção de religião segundo Max Weber, em http://www.domtotal.com/direito/pagina/detalhe/23896/concepcao-de-religiao-segundo-max-weber.

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Parece que para Weber a frase “última razão de ser da vida e do mundo” tendo

uma conotação eminentemente escatológica, consequentemente leva os religiosos a

desprestigiarem a vida em si, o seu compromisso de transformação e construção do

novo num aqui e agora da realidade, levando-os a pensar somente na vida no além.

Ainda para Ruben Alves a religião nada mais é do que:

[...] a memória de uma unidade perdida e a nostalgia por um futuro de reconciliação.

Por isto a religião pressupõe sempre, sob as camadas superficiais de felicidade e paz

que ela proclama, um eu irreconciliado com o seu destino”.50

Com muita acuidade, Rubem Alves desenvolve com sentido e precisão uma

reflexão muito realista da religião quando diz que a ela tenta “iluminar os cantos

escuros do conhecimento. Mas, pobre dela... Ela mesma não vê. Como pretende

iluminar? Ilumina com ilusões que consolam os fracos e legitimações que consolidam

os fortes”.51 De fato, como afirma Althusser52, ela tem sido um verdadeiro instrumento

na mão do estado, ou melhor, no seu jogo político de encontrar meios para tentar

sobreviver às crises internas e externas, serve como “aparelho ideológico do estado”

visando sempre a legitimação da classe dominante. No fundo da questão, vamos

perceber que sempre existiu “luta de classes”, principalmente, por parte da elite

dominante, em legitimar-se no poder.

A religião é a teoria geral deste mundo, o seu compendio enciclopédico, sua lógica em

forma popular, sua solene completude, sua justificação moral, seu fundamento

universal de consolo e legitimação. [...] A crítica da religião desilude o homem, a fim de

fazê-lo pensar e agir e moldar a sua realidade como alguém que, sem ilusões, voltou à

razão, agora ele gira em torno de si mesmo, o seu sol verdadeiro. A religião é nada

mais que o sol ilusório que gira em torno do homem, na medida em que ele não gira

em torno de si mesmo.53

Para Marcel Gauchet a “essência da religião é ser contra a história e contra aquilo que

nos é imposto como destino”, isto é, ser contra a assumir com ardor, luta, sabedoria e

responsabilidade o desafio de criarmos uma civilização onde reine em absoluta justiça,

a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A religião, principalmente aquelas

reconhecidas como históricas, de fato, foram numa espécie de contramão no sentido

50

Rubem Azevedo Alves, O enigma da religião, 3ª Edição, Campinas, Papirus Livraria Editora, 2009, p.9. 51

Rubem Azevedo Alves, O que é religião, 13ª Edição, Brasília, Editora Brasiliense, 1981, p.23. 52

Louis Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de estado, 9ª Edição, São Paulo, Edições Graal LTDA., 2003, p. 41-52. 53

Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p.23.

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de não incentivarem seus fiéis a aceitarem esse desafio de transformação do mundo,

de fazerem de seus membros verdadeiros agentes históricos.

Nesse sentido, Rubem Alves, que reconhecendo o sentido verdadeiro e real

daquela famosa frase citada por Karl Marx, que em face à contemplação do trabalho,

concluía que a religião nada mais era do que “ópio do povo”, também afirma:

Alienar um bem: transferir para uma outra pessoa a posse de alguma coisa que me

pertence. Tenho uma casa: posso doá-la ou vende-la a um outro. Por este processo ela

é alienada. A alienação, assim, não é algo que acontece na cabeça das pessoas. Trata-

se de um processo objetivo, externo, de transferência, de uma pessoa a outra, de algo

que pertence à primeira.54

Nesse sentido, a religião, como um alucinógeno, faz com que as pessoas se

tornem apáticas, incapazes de ver o que está por trás da realidade, se preocupando

única e exclusivamente com a vida eterna e outras coisas afins.

Diferentemente pensa Debray, que citado por Gauchet, crê que a religião não é

somente uma dimensão constituinte da sociedade, mas é a própria condição de

existência da sociedade, pois o núcleo de toda sociedade humana seria religioso.55

Marcel Gauchet traça um interessante panorama do desenvolvimento do

fenômeno religioso em suas linhas mais gerais, pois segundo ele, se:

[...] admitimos en efecto comúnmente que existe una permanencia, una constancia, si

no una invariabilidad de lo religioso en la historia, que obligan a referirlo a las

condiciones mismas de existencia de una sociedad humana, como a continuación

admitimos que se conciba su papel en la estructuración primordial del campo

colectivo.56

Para Gauchet, uma análise a partir do desenvolvimento histórico da religião,

diferentemente daquelas ilustrações que tradicionalmente encontramos em alguns

manuais de história das religiões, pode ser feito do ponto de vista fenomenológico em

três grandes fases:

54

Rubem Azevedo Alves, O que é religião..., p..21 55

Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.56. 56

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.31.

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A. Fase da religião pura (percorre todo o período Neolítico até

aproximadamente 3500 a.C. quando surgem as primeiras sociedades

estatais).

B. Fase da ascensão do Estado (fase de unificação e/ou identificação do

estado com a religião ou ainda de períodos de total domínio político

da religião). Segundo Marcel Gauchet, esta fase corresponde à fase

da “religião da saída da religião” (destaque para revelação judaico-

cristã).

C. Fase de total laicização do estado que se inicia com o advento da

modernidade (processo que ainda está em pleno andamento nos

dias de hoje).57

Graficamente, este quadro pode ser representado conforme a ilustração a seguir.

57

Citando um parecer de Marcel Gauchet (A democracia..., p.58-59) quanto a esse processo de total laicização do estado que está em curso desde que se iniciou o período da modernidade: “Paradoxo: há dois séculos, a religião não parou de perder peso relativo na vida de nossas sociedades”. De fato, esta é uma verdade inegável. O peso político e social que as grandes instituições religiosas detinham já não existe mais. De uma total dependência moral da religião, o mundo foi adquirindo autonomia, desenvolvendo, o que Thomas Hobbes definiu como um “Contrato Social” em que todos os membros de uma determinada sociedade se comprometiam a respeitar os seus direitos e deveres como princípio do bem comum. “Quanto melhor se compreende a história resolutamente disposta na mente, em que sentido a religião constituiu, em quase toda a duração das sociedades humanas, o elemento essencial de seu dispositivo político e como que a matéria da ligação entre seus membros, mais nos desligamos do mito de sua pretensa necessidade trans-histórica. Ela foi a forma que revestiu, das origens até a pouco, a relação dos homens no estar-em-sociedade, o modo quase único sobre o qual eles assumiram seu estar-em-conjunto”. Nota: este tópico não será desenvolvido nesta tese por falta de tempo hábil.

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1.1.1 – Fase da religião pura

A fase da religião pura consistiu num modo todo especial de se vivenciar aquilo que

hoje conhecemos e chamamos de religião, mas de um modo todo rudimentar pelas

sociedades “primitivas”, “tribais” ou “selvagens”, isto é, pelas sociedades classificadas

como sendo “arcaicas”, que apesar de não terem deixado nenhum registro por escrito,

nos legaram alguns valores de sua religiosidade através das subsequentes sociedades,

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daquelas sociedades que mantiveram muitas de suas tradições, e que ainda hoje,

podem ser encontradas em muitas comunidades indígenas, diga-se de passagem,

algumas delas ainda intocadas pela civilização e dispersas pelo mundo inteiro. Com

relação a isto, Marcel Gauchet salienta que:

[...] Es necesario que haya incluso algo más que una poderosa razón, que una

imperiosa obligación – estamos tentados a pensar –, para que una actitud tan

sistemática haya prevalecido unánimemente durante milenios por en cima de la

infinita fragmentación planetaria de las culturas y de los grupos. Sin duda, es éste uno

de los puntos en que mejor se confirma la unidad de la especie humana y, por tanto,

es lógico pensarlo, en que debe mostrarse con más claridad la identidad de los factores

susceptibles de modelar su curso.58

De fato, mesmo diante da grande fragmentação, fruto de evoluções e

desenvolvimentos pelos quais passaram quase todas as civilizações atuais, um dado é

claro: o fenômeno religioso, mais do que nunca continua vivo, palpitante, mas não do

modo como outrora se conhece. Caminha para uma nova fase, para uma nova

configuração tanto a nível pessoal quanto também a nível social.

Mas, quanto a esse tipo de religião a que Gauchet classifica como sendo “pura”

ela pode ser definida como um modo todo especial que as sociedades tribais

desenvolveram antes do advento do estado e que, algumas, que permaneceram

intocadas pela civilização e espalhadas por muitas áreas geográficas, continuaram sua

trajetória histórica até os dias de hoje. O que mais diferencia estas sociedades

primitivas das sociedades com presença do estado é que um determinado epicentro

de poder não existia na realidade, mas era relegado a uma origem mitológica que, de

modo muito prático, ainda hoje previne a luta por poder entre os homens, pois

contêm em si, a sobrenaturalização absoluta da origem e das normas sociais59.

Segundo Gauchet, a legitimidade da ordem coletiva, isto é, os riscos de conflitos e

guerras não eram de modo algum impedidos, mas, seus riscos eram simplesmente de

antemão desarmados pela garantida que o mito lhes transmitia.

Nada de divisão quanto ao sentido, o inquestionável socialmente instituído: tal é o

religioso puro. [...] Pois, na tensão racional que daí resulta, produz-se necessariamente

o que o dispositivo primeiro tem por função excluir, a saber, a oscilação ou o

questionamento em ato da regra comum e de seu caráter legítimo. [...] A instalação

numa dependência radical em direção à origem sobrenatural vale a inclusão estreita

no mundo natural, e esta, seria necessário mostra-lo, entabula, por sua vez, a

58

Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.36. 59

Marcel Gauchet, A democracia…, p.62.

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preservação ou a neutralização de tudo o que poderia ser manifestação de uma

atitude de confrontação-transformação em relação ao ambiente material.60

Recusa, recalque ou conjuração de tudo aquilo que, inscrito na máquina, a relação de

homem a homem ou a articulação coletiva, poderia alterar a repetição idêntica dos

trabalhos, dos gestos e dos dias, de tudo o que poderia ameaçar a essencial fidelidade

do que foi desde sempre assim e que se trata de conservar tal qual: é aí, nessa maciça

afirmação de permanência e de intangibilidade, nesse invencível preconceito da

imobilidade, da qual, de resto, uma magra parcela de sentido se preservou até nós,

sob forma de apego ao costume, que reside o núcleo primordial do fenômeno

religião.61

De maneira gráfica, esta parte da história, relativa às sociedades tribais, pode ser

representada da seguinte forma:

60

Marcel Gauchet, A democracia…, p.62-63. 61

Idem, p.63.

M

I

T

O

SOCIEDADES TRIBAIS

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Nessa tentativa de configurar graficamente a realidade destas sociedades percebe-se

que a dimensão religiosa engloba todas as outras dim ensões da vida, ou seja, a

dimensão política e todas as demais dimensões estão a ela subordinadas. É ela, a

dimensão religiosa, quem dava o elã decisivo para que se vivesse uma verdadeira

fraternidade com genuíno espírito de igualdade. É esta a característica mais marcante

das sociedades primitivas que se sobressai em relação à nova configuração que se

estabelecerá com o advento do estado. Segundo Marcel Gauchet:

[...] Pues la religión fue primero una economía general del hecho humano que

estructuraba indisolublemente la vida material, la vida social y la vida mental. De eso

no quedan hoy más que experiencias singulares y sistemas de convicciones, mientras

que la acción sobre las cosas, el vínculo entre los seres y las categorías organizadoras

del intelecto funcionan del hecho, y en todos los casos, en las antípodas de la lógica de

la dependencia que fue su regla constitutiva desde el comienzo. Y es propiamente en

eso en lo que, sin embargo, hemos basculado fuera de la edad de las religiones.62

GRÁFICO: Gauchet_MITO E SOCIEDADES PRIMITIVAS

62

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.145.

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Como se percebe pelos gráficos acima, nas sociedades primitivas esta dívida de sentido

para com o exterior mitologizado é mobilizada ao serviço da retenção do poder no seio

da sociedade. A religião neste estágio não chega a ser uma instituição. Como afirma

Gauchet, certo é que, a religião:

[...]é sempre instituída [...] como corpo de crenças coletivamente ordenadas e

aparelho de ritos estritamente fixados e codificados. [...] No mínimo, subentende-se

sempre que, a essência natural da religião é o constrangimento. [...] É o seu

encerramento “autístico” original no interior das suas quimeras e das suas fabulações

que as suas construções mitológicas exprimem.

Segundo Marcel Gauchet, deve-se acrescentar, – ao menos, a título de observação –

que as diferentes sociedades humanas ao longo de toda a sua trajetória histórica se

dedicaram a reprimir metodicamente este dado irrefutável, a encobri-lo ou a contê-lo

por demais eficazmente. Para ele:

[...] La esencia primitiva del hecho religioso está toda ella dispuesta contra la historia.

La religión en estado puro se recoge en esa división de los tiempos, que sitúa al

presente en absoluta dependencia respecto al pasado mítico y que garantiza la

inmutable fidelidad del conjunto de las actividades humanas a su verdad inaugural, al

mismo tiempo que forma la desposesión sin apelación de los actores humanos frente a

lo que confiere materialidad y sentido a los hechos y gestos de su existencia. Co-

presencia en el origen y disyunción del momento originario; conformidad exacta,

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constante, con lo que fue de una vez por todas fundado, y separación del fundamento:

en la articulación de este conservadurismo radical tenemos a la vez la clave de la

relación con la sociedad y el secreto de la naturaleza de lo religioso.63(o grifo é

pessoal)

Em poucas linhas Marcel Gauchet resume o que foi e ainda é realidade em muitas

sociedades ditas “indígenas”, isto é, a realidade da dimensão religiosa totalmente

desvencilhada da presença e da ação do estado sobre ela. Para as sociedades

primitivas ou tribais é na referência ao mito originário e fundante que está o

verdadeiro sentido da vida em sociedade. Ele se torna desse modo a chave que

mantêm unidas num mesmo espírito e sentimento de igualdade política uma grande

quantidade de sociedades tribais.

Seguindo o pensamento de Marcel Gauchet, é no marco de uma antropologia

fundamental que remontamos às primeiras estruturas que produzem a sociedade para

compreender a razão de ser e o ponto de aplicação de um ato sociológico como o que

consiste em conjurar a dominação política colocando contra ela a despossessão

religiosa. Com razão ele diz:

En la medida en que el espacio social está previamente organizado, provisto de

identidad, por una oposición interna que funda la universal potencialidad de la

separación del poder, es posible una elección y un sentido a su realización; elección

que no anula la polaridad poder-sociedad, como pone de manifestó un análisis fino de

las funciones atribuidas a esa jefatura confinada en la palabra y el prestigio, pero

neutralizada gracias a la división respecto al pasado, absoluto e próximo a la vez, de

los héroes instauradores. Lo relevante e enigmático sigue siendo todavía el partido de

la auto negación, del inconsciente y sistemático rechazo a asumir las dimensiones

constituyentes del hecho humano-social, al que parece que el hombre fue

primitivamente destinado.

Claude Lévi-Strauss em seu livro O pensamento selvagem mostra com certo relevo que

a religião em seu estado primeiro e puro implica na decisão de fundir-se com ela,

porém, por outra parte, não sem o desenvolvimento dessa extraordinária atividade

ordenadora do pensamento selvagem e na que podemos reconhecer como o papel do

chefe selvagem se encontra a necessidade primordial do poder que, pesando a todos

subsiste desse cara-a-cara com o mundo domesticado ou desarmado.64

63

Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.38. 64

Marcel Gauchet, El desencantamento..., p.40.

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Marcel Gauchet concorda com Louis Dumont, que reconhecendo num determinado

modelo de sociedade, que ele chama de “holista”, em função da teoria de que o todo

tem primado sobre as partes, por oposição a um modelo individualista, quando afirma

que o modelo “holista”, reconhecido por Dumont, corresponde exatamente, na

história, ao tempo das sociedades primitivas ou tribais, que podemos chamar de

religiosas, em função, não tanto da crença de seus membros, quanto de sua

articulação efetiva em torno do primado do religioso.65

O que se pode intuir desse fato é a noção do religioso formatando a vida das

sociedades primitivas nas suas diferentes dimensões.

Mas, a religião, que Marcel Gauchet classifica como pura tem seu lado negativo, pois

representa o máximo da alienação política, pois numa perspectiva ad intra, tudo é

definido de antemão pelo mito, não existe a mínima chance de uma evolução

histórica. Tudo de certa forma já está preventivamente definido e ordenado pelo mito.

Assim, a história de uma sociedade primitiva segue seu curso natural sem nenhuma

perspectiva de transformação.

Desse modo, como teria surgido o estado em sua forma embrionária, se todas as

sociedades estavam como que dominadas pelo mito? Quais os fatores que teriam

levado uma primeira sociedade a mudar de direção, a não se comportar como as

demais? Será que a iniciativa de mudança teria partido de alguém ligado mais

diretamente ao trabalho religioso dentro da tribo? Poderia ter sido um chefe, a

princípio sem poder, que apesar das restrições impostas pelo mito, assim mesmo,

devido ao prestígio alcançado junto aos demais membros da sociedade tribal,

conseguiu legitimar-se como um chefe com poder? Talvez tenha sido um chefe

guerreiro, que após uma grande vitória impôs-se como chefe com poderes absolutos?

1.1.2 – A religião na fase da ascensão do estado.

Antes de fazer uma explanação de como a religião se integrou dentro da nova

configuração social, isto é, na presença do Estado, se faz necessário mostrar por que

caminhos e de que forma a sociedade primitiva foi se adaptando ao Estado e, nesse

sentido, que lugar ocupou a religião.

Iniciando com um questionamento feito por Gauchet desenvolvo este tópico tentando

responder a esta questão: “representará o aparecimento do Estado um corte

absoluto no tempo humano? O advento dum poder separado representará uma

criação radical, uma invenção ex nihilo na história das sociedades?”66

Como pode ser visto no item anterior, a religião, através de seus mitos e ritos,

desautorizava quem quer que fosse a tomar posse em definitivo do poder e exercê-lo

65

Idem, p.41. 66

Marcel Gauchet, Guerra, religião, poder..., p.52.

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de forma coercitiva. A força do religioso no imaginário da sociedade era tão grande

forte e tão presente que “a interpretação que o fenômeno religioso parece autorizar”

nos leva a dizer que não. O Estado, conforme postula Gauchet, é uma nova fase de

uma separação que despontava no horizonte das sociedades e “à qual não se vê que

outro estatuto se possa dar que o da condição da possibilidade desse mesmo fato

social”.67

À luz desta afirmação, Gauchet não pretende de forma alguma, minimizar a

ruptura que representou o surgimento de classes sociais distintas dentro de um

mesmo corpo social. O surgimento de determinadas “relações de poder” está

necessariamente atrelado à questão do surgimento do Estado. Nesse sentido, Ganchet

se questiona:

Esta dissimetria entre senhores e súditos, esta distância instaurada entre governantes

e governados, esta privação da comunidade em proveito dum poder que se separa

dela, terão saído do nada? Não terão elas qualquer espécie de equivalência, de

correspondência, de embrião mesmo oculto nas sociedades precedentes?68

De fato, houve uma primeira sujeição e destituição – ao poder do mito pelo

viés religioso, que impedia qualquer tipo de divisão no seio da sociedade – que agora é

como que transfigurada e tornada presente através da figura do Estado. A ordem

interna que havia era toda referenciada a esse poder externo. Isso significa que a

“exterioridade do fundamento social preexiste ao Estado”.

O Estado é inovador na forma claramente aberta que confere à divisão da sociedade,

na alteridade que transporta para o interior da comunidade dos homens até leva-los a

pensarem-se duma natureza diferente consoante dirigem ou se submetem, introduz

um tal corte na maneira como os indivíduos se reconhecem uns aos outros dentro do

mesmo espaço que dá a impressão duma invenção sem precedente. O Estado é, com

efeito, um outro sentido do homem: a diferenciação dos homens uns para com os

outros em função da divisão autoridade/obediência. Todavia esta alteridade que ele

injeta no tecido social não a extrai de sua própria substância. Ela já existia. Somente a

faz refluir para dentro da sociedade quando, até então, ela comandava a relação da

sociedade do seu exterior. E se o Estado foi possível, deveu-se isso a que já preexistia

esse misterioso imperativo para a sociedade de se ler sob o signo da dívida. É

necessário, pois procurar a origem do Estado muito para além do momento estrito da

ruptura da unidade social sob o golpe da separação de uma sede única de poder:

67

Idem, ibdem. 68

Marcel Gauchet, Guerra, religião..., p.53.

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naquilo que pode constituir a sua necessidade de heteronomia, necessidade que

persegue a associação dos homens desde o princípio.69

Como elucida o próprio Gauchet, o que se depreende dessas afirmações é o

fato de que temos diante de nós dois sistemas, “que representam dois modos

heterogêneos de assumirem e de gerarem as mesmas articulações primordiais que

fazem muito simplesmente com que exista uma sociedade”.70

Nesse sentido, a religião que por milênios vinha cumprindo uma função

orquestradora da ordem e, principalmente, da igualdade entre os membros dentro da

sociedade, passa a cumprir nesta nova fase – estatal – uma função legitimadora de

uma nova ordem que já não necessita mais se reportar ao mito exteriorizado como

fonte de poder, mas o poder é interiorizado, ficando a cargo de uma pessoa ou mais

fazer uso e fruto desse poder.

Apesar de estar consciente de que o Estado trouxe mais dor, tristeza e

sofrimento do que justiça, paz e igualdade às sociedades onde ele se implantou,

concordo com Gauchet quando afirma que:

Entre estas diferentes rupturas la más importante, por lo demás, es sin duda la

primera. El nacimiento del Estado es el acontecimiento que parte la historia en dos y

hace entrar a las sociedades humanas en una época enteramente nueva: las hace

entrar precisamente en la historia.71

Sim, fantástica visão e percepção de Gauchet quando vê no fenômeno religioso

presente nas sociedades primitivas um verdadeiro paradoxo: por um lado a religião se

torna fonte de uma legítima igualdade entre todos os membros da comunidade, não

permitindo que ninguém se sentisse no direito de assumir um poder político frente à

comunidade, mas por outro, coloca todos os membros numa situação de grande

imobilidade histórica, de intangibilidade frente às coisas de antemão estabelecidas,

portanto, numa “disposição teórica contra a história”72.

Mas, por mais rigoroso que tenha sido o conservadorismo das sociedades

primitivas, nada nem ninguém impediu, que algumas sociedades, respondessem ao

impulso de se transformarem continuamente; tampouco refreou o espírito de

invenção de seus membros; como prova os imensos êxitos do período Neolítico. Mas a

grande novidade é que ali, onde intervêm mecanismos de neutralização tendentes a

69

Idem, p.54. 70

Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.54 71

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo..., p.51. 72

Idem, p.51.

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colocar o marco social ao abrigo das relações sociais entre indivíduos e grupos, o

advento da dominação política, estabelece ao contrário, objetivamente, no coração do

processo coletivo a confrontação sobre o sentido e a legitimidade do conjunto social.73

Assim, mediante a aparição do Estado, como observa Gauchet:

[...] lo Otro religioso vuelve a entrar en la esfera humana. Conservando por completo,

naturalmente, su exterioridad respecto a ella, allí penetra y se materializa. En

resumen, la ruptura religiosa entre los hombres y sus orígenes se daba antaño de

manera que previniera el surgimiento de una división entre ellos. Con la emergencia de

un aparato de dominación pasa entre ellos, por medio, y separa a unos de otros.

Dominadores e dominados, los que están del lado de los dioses y los que no lo están.

*…+ En todos los casos – el capital –, hay refracción de la alteridad divina en el interior

del espacio social, concreción de lo extra-humano en la economía del vínculo

interhumano.74

Como pode ser comprovado existe uma infinidade de trabalhos que mostram

que o desenrolar desse fenômeno assumiu diferentes e variadas formas no seu

processo de desenvolvimento.75 Desde a figura do déspota que encarna a figura do

deus-vivente até as sociedades cujos templos encarnam a presença da própria

divindade, mas sempre com muitos servidores e porta-vozes devidamente

credenciados.

A grande novidade em relação às sociedades primitivas é o fato capital de que

há uma profunda refração da alteridade divina. Nas sociedades primitivas há o máximo

de alteridade divina, enquanto nas sociedades que fizeram a passagem para o modelo

estatal há um mínimo de alteridade divina. Há como que um empowerment de um ou

mais seres humanos no sentido de um endeusamento ou de uma sacralização. Os

templos são transformados em espaços extremamente sagrados que tendo em

determinados recintos seu acesso proibido ao comum dos mortais.

Como afirma Gauchet, e a história está aí para confirmar o fato, a partir dessa

transformação, instaura-se uma profunda divisão dentro da sociedade, passa a ver

uma:

Investidura de un lugar, de una institución, o de una individualidad, lo esencial es que

desde ahora habrá en el corazón de lo visible y de lo accesible un garante de la otra

parte instituyente; y habrá hombres absolutamente diferentes de sus semejantes, en

la medida en que participan, directa o indirectamente, del invisible fuego sagrado del

73

Idem, p.51-52. 74

Idem, p.52. 75

Ver Marshall Sahlins em pelo menos dois de seus livros: “Ilhas de História” e “Sociedades tribais”.

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que se alimenta la existencia colectiva. Los hay que hablan e ordenan en nombre de

los dioses; que tienen el control de los ritos en que renace el sentido original de las

cosas, y en cuya carne se toca literalmente el principio superior que ordena el

mundo.76

Esta presença que poderia ser profundamente benéfica para todo o gênero

humano – pois que se trataria de uma iniciativa do próprio Deus em pessoa – se

mostra terrivelmente opressora e coercitiva. O suposto “poder” delegado aos seus

representantes – avatares del dispositivo que teóricamente ellos inspiran o determinan

–77 são de alguma maneira postos ao alcance e convertidos na prática.

Iluminado pela teoria marxista, Gauchet, – pois para ele, esta teoria preenche

uma lacuna inconveniente na explicação das construções mítico-religiosas, – citando

Maurice Godelier, compartilha que:

Considerado o fraco desenvolvimento de suas técnicas de produção, e apesar das

diferenças importantes do nível de desenvolvimento que existem entre os diversos

modos de produção dos povos primitivos (caçadores, coletores, pescadores,

agricultores), a ação que estes exercem sobre a natureza mantêm-se muito limitada.

Nestas condições daquilo que o homem não controla não pode deixar de aparecer, de

se apresentar espontaneamente à consciência como um domínio de poderes

superiores ao homem – que, ele simultaneamente, tem necessidade de representar,

portanto, de explicar, e de com ele se conciliar, quer dizer de controlar

indiretamente.78

Sejamos justos, a “ciência marxista”, na falta de progressos, ganha cada vez mais em

refinamento de expressão. Assim, explicam-nos na exposição que citamos, que esta

representação do “domínio das causas naturais obscuras, das forças invisíveis que o

homem não controla... como um domínio de poderes superiores ao homem” não se

confunde em si mesma, com a explicação ilusória “da realidade e causalidade na

ordem do mundo” que constitui o coração da concepção mágico-religiosa

propriamente dita.79

É inconcebível que as sociedades cheguem ao ponto de criar os instrumentos lógicos

que os seus agentes empregam. É impensável que as sociedades instaurem, a partir da

estrita necessidade, um modo de pensamento como aquele de que nos dá conta a

explicação religiosa. É impossível que elas tomem o partido da ilusão sem serem

obrigadas rigorosamente a isso de uma maneira ou de outra. Tais são de fato os

76

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.52-53. 77

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.53. 78

Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.59. 79

Idem, p.60.

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obstáculos que levam a contrariar as serenas certezas dos naturalismos de todos os

gêneros. Não se dirá de um selvagem que ele escolheu a sua maneira de pensar, assim

como não é lícito sustentar que as primeiras sociedades se puderam situar fora do

círculo estreito definido pela necessidade material, física ou intelectual.80

À luz da citação acima e convencido da importância da utilização do método

marxista de análise da história desenvolvido por Karl Marx, ou seja, do “materialismo

histórico”, argumentarei e sustentarei que a passagem de um modelo de organização

social e política como o identificado nas sociedades primitivas para um novo modelo

de organização social, cujo advento do Estado, significou o aparecimento da divisão de

classes e uma profunda desagregação de sua cultura e organização. As causas devem

ser procuradas, não tanto no mundo espiritual ou intelectual, mas, principalmente, no

mundo material, isto é, nas contradições que o novo “modo de produção” adotado faz

repercutir nas relações sociais que se estabelecem. Portanto, a questão econômica

não é somente essencial na compreensão das transformações sociais e políticas, é

questão chave, pois como infraestrutura que da sustentação as demais estruturas

presentes na sociedade – compondo assim a superestrutura –, ela é e sempre será

determinante em última instância como forma de organização social.

E como ficará evidenciado, a religião continuará ocupando uma dimensão de

destaque dentro da nova configuração social, ou seja, dentro do novo modo de

produção. Ela desempenhará uma nítida função ideológica, que é outro importante

conceito desenvolvido por Marx, no sentido de justificar e legitimar a nova ordem

estabelecida. O que poderia ser encarado apenas como um dado natural, isto é, como

um quadro social em evolução ou como desenvolvimento sócio-político de uma

sociedade, é sobrenaturalizado, isto é, avalizado como sendo de origem e vontade

divina.

Começando por uma citação do próprio Marx que se encontra na sua

Contribuição à Crítica da Economia Política:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor aos

meus estudos, pode resumir-se assim: na produção social da sua vida, os homens

contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade,

relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento

das suas forças produtivas materiais.81

80

Idem, p.61. 81

Karl Marx, Uma contribuição para a crítica da economia política. Texto acessado em 03/07/2012 em http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso-marxismo-aula-o-conceito-de-modo-de-producao-texto-indicado-marx-prefacio-critica-da-economia-politica.pdf, p.2.

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Nesse sentido, Marx afirma que diante da necessidade de produção e reprodução da

vida material, ou seja, da conquista dos gêneros necessários à manutenção da própria

vida, tais como: roupas e alimentos, faz com que os seres humanos estabeleçam

relações entre si. Em verdade, são relações “independentes de sua vontade”, porque

elas nascem num determinado momento e numa determinada formação social, na

qual essas relações já estão constituídas, não sendo, portanto, objeto de sua escolha.

Portanto, as relações sociais de produção estabelecidas numa determinada

sociedade, tornam-se relações de toda a sociedade, que são agrupados em

determinados lugares sociais específicos (os grupos sociais). Desse modo, são os

grupos sociais dominantes que determinam as diferentes classes sociais e, por

conseguinte, a devida inserção desses indivíduos nessas relações de acordo com seu

pertencimento de classe, ou seja, ocupando um lugar e desempenhando um papel

específico no processo produtivo.

Evidentemente, como se pode concluir, essas relações de produção tem uma

estreita ligação com o desenvolvimento das forças produtivas. Ao mesmo tempo em

que as forças produtivas delimitam as possibilidades das relações de produção, elas

tem certo ritmo de desenvolvimento relacionado às necessidades e características

próprias dessas relações de produção.

O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a

base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual

correspondem determinadas formas de consciência social.

O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e

espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo

contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. [...] é necessário explicar

esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as

forças produtivas sociais e as relações de produção.82

O que Marx quis enfatizar através do conceito de Modo de Produção é que muito mais

importante daquilo que é produzido é o modo como é produzido, é o como a

sociedade se organiza para produzir os bens de que necessita para viver. Desse modo,

compreendemos que o conceito de Modo de Produção não faz uma simples referência

aos bens materiais, mas, como conceito absolutamente teórico que “abrange a

totalidade da sociedade, ou seja, tanto a estrutura econômica como todos os outros

níveis sociais, o jurídico-político e o ideológico”.

82

Karl Marx, Uma contribuição para a crítica da economia política. Texto acessado em 03/07/2012 em http://cursohumanidades.files.wordpress.com/2010/02/curso-marxismo-aula-o-conceito-de-modo-de-producao-texto-indicado-marx-prefacio-critica-da-economia-politica.pdf, p.3.

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Como salienta Marx, é necessário que se compreenda que as relações que se

estabelecem em função da produção dos bens necessários à vida se constituem no

aspecto central do conceito de modo de produção. Produção e reprodução, dois lados

de uma mesma moeda, ou seja, de um dado modo de produção.

Essas relações sociais que se estabelecem entre todos os membros da sociedade, são

relações sociais de produção que sempre corresponderão a um “determinado estágio

de desenvolvimento das forças produtivas” isto é, do tipo do modo de produção em

vigor, que, ao mesmo tempo determinam seu próprio desenvolvimento.

No tocante à questão da complexidade do modo de produção, as relações sociais de

produção ocorrem debaixo de uma estrutura jurídico-política (forma de Estado,

sistema jurídico, conjunto de leis, aparelho repressivo) que tem por papel legitimar e

garantir a reprodução do modo de produção, ou seja, dar possibilidade constante das

condições necessárias para sua continuidade, inclusive frustrando a organização

política das classes antagônicas. Também a estrutura ideológica tem o papel de gerar

representações das próprias práticas e da inserção dos grupos e dos indivíduos nessas

práticas, no sentido de tornar essas relações viáveis aos olhos das classes, permitindo

assim a coesão social, a resignação e a possibilidade de a classe dominante exercer

plenamente sua dominância.

Isto nos leva à conclusão de que todo modo de produção é determinado por diferentes

estruturas dentre as quais se destacam: a estrutura jurídico-política, a estrutura

ideológica e a estrutura econômica, que é sempre a estrutura que tudo determina em

última instância. Mas isto não quer dizer que a estrutura econômica seja sempre a

estrutura dominante. Pode acontecer de outra estrutura ser a estrutura dominante.

Por exemplo, como será demonstrado na segunda parte desta tese, o Judaísmo

marcado profundamente pela realidade do segundo templo teve como estrutura

dominante a estrutura religiosa.

Desse modo pode-se afirmar que um modo de produção irá sempre depender da

análise do modo como as estruturas se articulam, mas sem se esquecer de que é a

estrutura econômica que em última instância será sempre a estrutura determinante.

Nesse sentido, pode-se concluir que a caracterização de um modo de produção

depende do reconhecimento de como as relações sociais de produção são

reproduzidas, ou seja, quais as determinações da permanência contínua da

reprodução do modo de produção, o que nos leva, necessariamente, a ter que

desvendar: quais são as características essenciais dessas relações sociais de produção;

como estão distribuídos os meios de produção propriedade dos meios de produção);

como se dá a apropriação do que é produzido; como estão dispostos as pessoas nessas

relações sociais de produção (as classes sociais); a forma de Estado e de todo o

aparelho jurídico-político derivado dessas relações e essenciais para a reprodução,

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bem como as representações ideológicas que permitem até certo ponto a coesão

social.

Se a caracterização do modo de produção está estreitamente ligada ao

reconhecimento de como as relações sociais de produção são reproduzidas, isto

implica sempre em perguntar: quais são os mecanismos que determinam a

permanência de um determinado modo de produção?

No caso do Judaísmo, como poderá ser verificado, a permanência continua da

reprodução foi garantida, não só pela articulação e interação das diferentes estruturas

que compunham o seu sistema sócio-político, mas porque as relações sociais de

produção estavam ancoradas num sólido sistema jurídico, de caráter nitidamente

religioso. Isto se deve a uma perversa estratégiautilizada pelos escribas que se

aproveitando do valor e da influência que a divindade ocupava no imaginário da

sociedade, construíram uma longa história, cujo aparato jurídico garantia a reprodução

do sistema, ou seja, do modo de produção estabelecido.

Quanto ao modo de produção e quanto às relações sociais por ele estabelecidas por

estratégia e influência da classe sacerdotal jerusolimitana em toda a província de Judá,

posteriormente designado pelo conceito de judaísmo, pode ser caracterizado como

sendo um modo de produção tributarista.

Sua grande força e poder de aceitação estava no fato de que o referencial absoluto e

supremo de tudo estava numa divindade na qual eles acreditavam e cultuavam na

esperança de sempre poder reverter determinadas situações adversas.

Este modo de produção que se convencionou chamar de judaísmo repeoduzia-se

socialmente na forma de sansões e penalizações, tanto morais quanto materiais.

Devido à grande força que exercia no imaginário da sociedade judaíta obrigava

moralmente ao infrator a remissão de sua falta ou culpa, mediante o pagamento em

espécie através de ofertas e sacrifícios de diferentes gêneros alimentícios, pois do

contrário, estariam sob o peso de uma grande e terrível maldição divina. Por exemplo,

a lei sobre a impureza contraída pelas mulheres na época de sua menstruação no livro

do Levítico (Lv .....), revela uma tremenda ignorância e falta de bom senso biológico e

antropológico da divindade, pois a lei é promulgada como sendo ditada da parte do

próprio “deus”. Esse absurdo nos leva a uma quase que total descaracterização dos

textos como sendo de origem divina, pois, como poderá ser constatado, assim como

esta lei, existem tantas outras que feriram e ferem frontalmente, ainda hoje, a

dignidade humana no tocante às relações de gênero.83

83

Assim como esta suposta lei de origem divina, sobre a menstruação da mulher, existem outras tantas leis, que se desdobraram numa minúcia de regras que tornaram a vida daquela gente impossível de ser vivida. É a tal da casuística judaica que está presente na Mishna.

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Portanto, ao destacar o judaísmo como um caso concreto estou saindo de um campo

abstrato, pois como afirma Nicos Poulanntzas:

O modo de produção constitui um objeto abstrato-formal que, no sentido rigoroso do

termo, não existe na realidade. Os modos de produção capitalista, feudal, escravagista,

constituem objetos abstratos-formais, visto também não possuírem essa existência. De

fato, existe apenas uma formação social historicamente determinada, isto é, um todo

social – no sentido mais vasto – num dado momento de sua existência histórica.84

Sendo assim, Etienne Balibar elenca quais são os elementos essenciais a todos os

modos de produção:

Podemos, pois, finalmente traçar os quadros dos elementos de qualquer modo de

produção, invariante da análise das formas:

1 – trabalhador

2 – Meios de Produção

1. Objeto de trabalho

2. Meio de trabalho

3 – Não Trabalhador

A. Relação de propriedade

B. Relação de apropriação real ou material85

Deste modo, Poulanntzas tira uma conclusão muito apropriada, quando diz que, se os

modos de produção se constituem em objetos abstrato-formais, as formações sociais

são objetos reais-concretos e, além disso, originais porque sempre são singulares.86

Portanto, dentro do próprio judaísmo, que tinha uma formação social bem concreta e

específica, podia-se encontrar mais de um modo de produção num determinado

momento, embora se saiba, com certeza, que um determinado modo de produção,

sempre exercerá o papel dominante.

Mas cabe aqui um destaque especial sobre o conceito de ideologia, pois como Marx

salienta, a ideologia possui uma importante função dentro da superestrutura, que no

84

Nicos Poulanntzas, Poder político e classes sociais, Porto, Portucalense, 1971, p.8. 85

Etienne Balibar, “Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico” em Étienne Balibar, Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, Volume II, Rio de janeiro, Zahar Editores, 1980, p.153-274. 86

Nicos Poulanntzas, Poder político..., p.9.

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caso do judaísmo teve um aspecto muito relevante, pois como será demonstrado, era

a dimensão religiosa que, enquanto estrutura dominante, organizava e legitimava o

modo de produção vigente.

Nascida como conceito, o termo aparece pela primeira vez em 1801 no livro de Destutt

de Tracy – Elementos de Ideologia –, pretendendo ser uma ciência do mundo das

ideias. Mas foi com Napoleão que o termo ideologia ganhou um sentido pejorativo.

Num discurso ao Conselho de Estado em 1812, ele declarou:

Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia,

essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutileza as causas primeiras, quer fundar

sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do

coração humano e às lições da história87.

Diferentemente da compreensão que Napoleão Bonaparte deu ao termo ideologia, o

Augusto Comte e Émile Durkheim deram uma conotação próxima do seu significado

original. Para Comte, seguindo os princípios do positivismo por ele fundado, ideologia

consistiria numa explicação das três supostas fases pelas quais o espírito humano está

atravessando ao longo da história. Consistindo numa teoria, passa a ter voz de

comando sobre a prática da sociedade, que deve obedecer a todas as normas e

preceitos teóricos antes de agirem. Para Durkheim, ideologia é uma postura em

relação ao fato social que deve ser encarado como coisa observável, e que desprovida

de interioridade, isto é, de subjetividade, permite que o observador – sociólogo –

encare estes mesmos fatos, da qual participa, como se não fizesse parte dela. Esta é a

regra fundamental, segundo Durkheim, da objetividade científica: total separação

entre o sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento. Isso implica na

neutralidade do observador. Portanto, ideologia é todo conhecimento que não

respeita esses critérios.88

Segundo Raymond Boudon, o conceito de ideologia “designa um capítulo das ciências

sociais cuja existência e importância ninguém coloca em dúvida”89. Este autor faz uma

interessante divisão quanto ao posicionamento alguns pensadores atuais no que diz

respeito ao significado do conceito de ideologia. Conforme tabela abaixo é possível

perceber algumas destas discrepâncias:

Tipos de definição da

87

Marilena de Souza Chaui, O que é ideologia, 19ª Edição, São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1980, p.22-24. 88

Marilena de Souza Chaui, O que é ideologia..., p.25-31 89

Raymond Boudon, A ideologia ou a origem das ideias recebidas, São Paulo, Editora Ática S.A., 1989, p.27

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ideologia

Tipos de tradição Referidos ao critério de

verdadeiro e falso

Não referidos ao critério

de verdadeiro e falso

Tradição Marxista

Marx

A ideologia como ciência

falsa.

Os teóricos da consciência-

reflexo.

Lênin

A ideologia como arma na

luta de classes.

Althusser

A ideologia, atmosfera

indispensável à respiração

social.

Tradição não-marxista

Aron

A ideologia não advindo

diretamente, mas

indiretamente do

verdadeiro e do falso.

Parsons

A ideologia, desvio em

relação à objetividade

científica.

Geertz

A ideologia como ação

simbólica.

Shils

A ideologia, tipo particular

de sistema de crenças.

Tabela90

Mas, confuso mesmo, é quanto à definição da noção de ideologia, pois a questão

central está em se afirmar se é ou não necessário definir ideologia em relação ao

critério da verdade e do erro? Apesar de Raymond Boudon pensar que uma definição

não possa ser demonstrada, penso, particularmente, que no tocante ao judaísmo, a

definição de ideologia segundo a tradição marxista se adapta muito bem, pois neste

90

Raymond Boudon, A ideologia…, p.32-33

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caso concreto – do judaísmo – os pressupostos teóricos da tradição marxista são

preenchidos adequadamente.91

Apesar de não poder generalizar-se nenhuma das teorias a respeito do significado de

ideologia, se temos alguns princípios e valores que servem como elementos

norteadores na busca do bem e da justiça, da paz e da segurança de todos sem

nenhum tipo de distinção, seja de classe ou de cor, intelectual ou de gênero, a tradição

marxista nos oferece um excelente instrumental teórico para fazermos esta

aproximação ás diferente situações sociais. Vejamos.

Foi Karl Marx e, posteriormente, a própria tradição marxista, que aprofundando o

sentido pejorativo dado por Napoleão, quem desenvolveu ainda mais este conceito.

Em A ideologia Alemã, Marx desenvolve a construção do termo dentro do conceito

mais amplo do modo de produção, como já visto anteriormente.

Marx depois de fundamentar sua visão de desenvolvimento histórico com base em

três condições ou aspectos da atividade social, inicia uma reflexão, que serve como

fundamento para o estabelecimento do conceito de ideologia como estrutura

legitimadora de uma determinada ordem vigente no interior da sociedade, que

privilegia e justifica o domínio da classe social dominante. A reflexão de Marx tem

como ponto de partida o esforço que fazemos para “produzirmos vida”. Para que isto

aconteça, somos instados a desenvolvermos relações em dois níveis: no nível natural e

no nível social. Segundo Marx, o nível de relação social implica o sentido de

cooperação que se estabelece entre os indivíduos, quaisquer que sejam as condições,

o modo e a finalidade.

Donde se segue que um determinado modo de produção ou uma determinada fase

industrial estão constantemente ligados a um determinado modo de cooperação e a

uma fase social determinada, e que tal modo de cooperação é, ele próprio, uma “força

produtiva”; segue-se igualmente que a soma de forças produtivas acessíveis aos

homens condiciona o estado social e que, por conseguinte, a “história da humanidade”

deve sempre ser estudada e elaborada em conexão com a história da indústria e das

trocas.92

Esta “história da humanidade” implica que também ela deva ser vista sob o prisma ou

pelo viés da “história das trocas” que tem no judaísmo um exemplo bem concreto do

que vem a ser uma ideologia.

No caso do judaísmo a “história das trocas” é muito ilustrativa em relação ao conceito

de ideologia desenvolvido por Marx. No judaísmo ela operou no sentido de baixo para

91

Raymond Boudon, A ideologia…, p.33-34. 92

Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia Alemã: I - Feuerbach, São Paulo, Editora Hucitec, 1999, p.42.

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cima, ou seja, do campesinato – classe social inferiorizada – para a classe sacerdotal –

classe superior dominante. Enquanto o pauperizado campesinato era moralmente

obrigado, por dever de consciência, ou por sua pobreza ou por ter cometido alguma

transgressão da lei deveria oferecer a Deus bens materiais reais e concretos de

diferentes tipos e gêneros, para em troca, receber por intermédio dos sacerdotes, o

perdão de Deus, invisível e abstrato.

Tendo plena “consciência” de que para “produzir a vida” o ser humano precisa,

necessariamente, estar em relação com os demais, Marx vê desde o início que a

“consciência” que o ser humano tem desta necessidade é um produto social, pois

nasce da percepção socializante da consciência.93

Outro fator que ajuda a compreender todo o alcance de uma ideologia está no fato da

atenção que Marx dá à “divisão do trabalho”. Para ele:

A divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que

surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste momento, a

consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis

existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a

consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da

teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc., “puras”. Mas ainda que esta teoria, esta

teologia, esta filosofia e esta moral etc. entrem em contradição com as relações

existentes, isso só pode acontecer porque as relações sociais existentes se encontram

em contradição com as forças de produção existentes.94

Conforme nota marginal feita pelo próprio Marx em referência à citação acima, que diz

que a primeira forma dos ideólogos nasceu com o advento dos sacerdotes, que como

poderá ser constatado na segunda parte, no caso do judaísmo, como exemplo de um

caso muito particular de divisão do trabalho onde se fez necessário, justamente, o

recurso à utilização de uma ideologia como forma de justificação e legitimação de uma

nova ordem social, ou seja, possibilitou a ascensão de uma nova classe como grupo

social dominante.

Pierre Bourdieu tem uma posição muito similar à de Marx quando afirma que:

Os sistemas ideológicos que os especialistas produzem para a luta pelo monopólio da

produção ideológica legítima – e por meio dessa luta –, sendo instrumentos de

dominação estruturantes pois que estão estruturados, reproduzem sob forma

93

Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia Alemã..., p.43-44. 94

Idem, p.44-45.

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irreconhecível, por intermédio da homologia entre o campo de produção ideológica e

o campo das classes sociais, a estrutura do campo das classes sociais.95

Para Bourdieu os “sistemas simbólicos” que são sempre produzidos por um “corpo de

especialistas” que tem como objetivo a aquisição do poder, ou melhor, do “poder

simbólico” que reside, não em forma de “illocutionary force”, mas que se define numa

relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe

estão sujeitos. E na sequência do desenvolvimento de sua teoria, como forma de

justificação, Bourdieu faz uma afirmação onde relaciona o conceito de ideologia ao

campo religioso: ideologia consistiria na transformação do mito em religião96, pois esta

está intrinsecamente ligada à constituição desse corpo de especialistas produtores de

discursos e ritos religiosos. Desse modo ele é capaz de criar discursos e ritos, que

garantam a reprodução das relações sociais, justificando e legitimando-as do ponto de

vista divino. Diante disso, vai se processando a divisão da sociedade em diferentes e

bem distinta classes sociais.

O progresso da divisão do trabalho religioso, que é, ele próprio, uma dimensão do

progresso da dimensão do trabalho social, portanto, da divisão em classes e que

conduz, entre outras consequências, a que se desapossem os laicos dos instrumentos

de produção simbólica.97

Desse modo, como poderá se ver na terceira parte desta tese, o campo religioso

dentro do judaísmo se constituiu, a partir da teoria dos campos de Bourdieu, num

“campo autônomo” onde se produziram “formas eufemizadas das lutas econômicas e

políticas entre as classes”, pois como ele mesmo afirma:

[...] é na correspondência de estrutura a estrutura que se realiza a função

propriamente ideológica do discurso dominante, intermediário estruturado e

estruturante que tende a impor a apreensão da ordem estabelecida como natural

(ortodoxia) por meio da imposição mascarada (logo, ignorada como tal) de sistemas de

classificação e de estruturas mentais objetivamente ajustadas às estruturas sociais [...]

O efeito propriamente ideológico consiste precisamente na imposição de sistemas de

classificação políticos sob a aparência legítima de taxonomias filosóficas, religiosas,

jurídicas, etc. Os sistemas simbólicos devem a sua força ao fato de as relações de força

95

Pierre Bourdieu, O Poder simbólico, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil LTDA, 2002, p.12. 96

Idem, Ibdem. 97

Idem, p.13.

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que neles se exprimem só se manifestarem neles em forma irreconhecível de relações

de sentido (deslocação).98

De fato, a religião dentro do judaísmo foi essa estrutura, que ao lado de outras

estruturas – econômica, política e jurídica – se tornou, porque plenamente estruturada

e estruturante, a estrutura dominante, com força para estruturar todas as demais

estruturas da sociedade. É nesse sentido que poderá se perceber o efeito

propriamente ideológico do discurso religioso, impondo uma classificação e divisão da

sociedade sob a aparência de “legítimas taxonomias”.

No que toca à consciência histórica de cada indivíduo, é ponto pacífico de que o

trabalho dos homens torna-se cada vez mais submetido a um poder que lhe é

estranho, um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em última instância,

um poder totalmente estranho.

Para Marx, este tipo de elucidação está ligado à concepção que ele desenvolve da

história, pois esta consistiria em:

[...] Expor o processo real de produção, partindo da produção material da vida

imediata; e em conceber a forma de intercâmbio conectada a este modo de produção

e por ele engendrada (ou seja, a sociedade civil em suas diferentes fases) como o

fundamento de toda a história, apresentando-a em sua ação enquanto Estado e

explicando a partir dela o conjunto dos diversos produtos teóricos e formas de

consciência – religião, filosofia, moral etc.99

O que Marx sugere é que se permaneça no solo da história real para estar em

condições de explicar as formações ideológicas a partir da práxis. Nesse sentido Marx

afirma:

Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente essa base

real da história, ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão

com o curso da história. Isto faz com que a história deva ser sempre escrita de acordo

com um critério situado fora dela. A produção da vida real aparece como algo

separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos

homens com a natureza é excluída da história. Consequentemente, tal concepção vê

na história as ações políticas dos príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas

98

Pierre Bourdieu, O poder simbólico..., p.14. 99

Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.55.

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teóricas em geral, e vê-se obrigada, especialmente, a compartilhar, em cada época

histórica, a ilusão dessa época.100

É importante notar a afinidade de pensamento entre Marx e Marcel Gauchet quanto

ao fato de não se ter a consciência real da história, isto é, de não se ter a devida visão

das forças que estão sendo colocadas em ação e que, motivados por ideologias, levam

a sociedade a compartilhar de uma mesma ilusão. Para Gauchet o período das

sociedades primitivas é o período caracterizado pelo máximo de alienação política que

ele qualifica como sendo da “crença na ilusão que liberta”. E Marx, fazendo referência

aos alemães, diz que eles:

*...+ se movem na esfera do ‘espírito puro’ e fazem da ilusão religiosa a força motriz da

história [...] Tal concepção é verdadeiramente religiosa; ela postula o homem religioso

como sendo o proto-homem do qual parte toda a história; e, em sua imaginação,

coloca a produção religiosa de fantasias no lugar da produção real dos meios de vida e

da própria vida.101

Desse modo, a libertação que é autoproclamada pelos ideólogos da religião como

sendo de origem divina e, porque não, de origem puramente ideológica, não trará

libertação aos homens como na verdade nunca trouxe. Para Marx, somente é possível

efetuar a libertação real no mundo real através de meios reais, pois:

[...] não é possível libertar os homens enquanto não estiverem em condições de obter

alimentação e bebida, habitação e vestimenta, em qualidade e quantidade adequada.

A “libertação é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é efetivamente por

condições históricas [...].102

E avançando mais ainda, no sentido de colocar os devidos fundamentos do conceito de

ideologia, Marx deixa claro que “as ideias da classe dominante”, são em cada época, as

“ideias dominantes”. Nesse sentido:

[...] a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua

força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção

material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com

que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos

quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do

que a expressão do ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais

100

Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.57. 101

Idem, p.58. 102

Idem, p.65.

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dominantes concebidas como ideais; portanto, a expressão ideal das relações

materiais dominantes, as relações materiais concebidas como ideias; portanto, a

expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante possuem, entre

outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam

como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o

façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem

também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e a

distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias

dominantes da época.103

No caso específico do judaísmo, ver-se-á que a classe religiosa se tornou a classe

dominante, não porque ela detinha a “força material dominante da sociedade”, mas

porque ela deteve a sua “produção espiritual”. Isto foi o que possibilitou desenvolver

sua ideologia de um modo tão bem articulado com as tradições do povo

(campesinato), que estes, não tendo a mínima chance de se opor, foram como que

envolvidos, seduzidos e abduzidos de um tal modo, que a ideologia passou a se

constituir em sua própria identidade.

Como será analisado na segunda parte, aos sacerdotes era proibido possuir terras, mas

conforme um número expressivo de estudiosos, muitos sacerdotes possuíam terras

onde logicamente cultivavam, visando não somente a sua própria subsistência, mas,

principalmente, o comércio.

E Marx, a fim de colocar a base real da ideologia – e aqui está uma das principais

características que qualificam a mudança do modo de produção primitivo para o modo

de produção tributário: a propriedade privada, – faz uma interessante assertiva

quanto a esta questão, afirmando que:

A maior divisão entre o trabalho material e o intelectual é a separação entre a cidade e

o campo. A oposição entre a cidade e o campo começa com a transição da barbárie à

civilização, da organização tribal ao Estado, da localidade à nação, e persiste através de

toda a história da civilização até nossos dias [...]. Com a cidade aparece,

simultaneamente, a necessidade de administração, de polícia, de impostos etc., em

uma palavra, a necessidade da organização comunal e, portanto, da política em geral.

Aqui, manifesta-se pela primeira vez, a divisão da população em duas grandes classes,

divisão que repousa diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de

produção. A cidade já é o fato da concentração da população, dos instrumentos de

produção, do capital, dos prazeres e das necessidades, ao passo que o campo

evidencia exatamente o fato oposto: o isolamento e a separação. A oposição entre a

cidade e o campo só pode existir nos quadros da propriedade privada. É a expressão

103

Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.72.

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mais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho, à uma determinada

atividade que lhe é imposta – subsunção que converte uns em limitados animais

urbanos e outros em limitados animais rurais, reproduzindo diariamente a oposição

entre os interesses de ambos. O trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder

sobre os indivíduos, e enquanto existir esse poder deve existir a propriedade

privada.104 (grifo em negrito é pessoal)

Mais uma vez, percebe-se que, com que com muita presença de espírito, mas,

principalmente, alicerçado numa base nitidamente empírica, Marx penetra na

verdadeira questão que se torna a base real da ideologia.

Este longo parágrafo, particularmente, é de grande relevância teórica para o

desenvolvimento e justificação do tema, que se constitui no meu objeto de pesquisa:

as relações de poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.

Campo e cidade, organização tribal e Estado, dominados e dominadores. Tremendo

choque de interesses que estavam em clara contradição, pois como será demonstrado,

a classe sacerdotal só conseguiu legitimar-se no poder, mediante um projeto made in

Persian que eles habilmente souberam implantar.

Ainda, aprofundando um pouco mais esta temática a respeito do significado do

conceito de ideologia, Pierre Bourdieu, que seguindo os passos dados pelo marxismo,

pois segundo ele, “o marxismo nos seus usos sociais mais comuns, constitui,

frequentemente, a forma por excelência, por ser a mais insuspeita, do pré-construído

douto”, desenvolve o conceito afirmando que “o termo ideologia pretende marcar a

ruptura com as representações que os próprios agentes querem dar da sua própria

prática”.105 E ainda, que a “ideologia” (a que seria preferível de futuro dar outro nome)

não aparece e não assume como tal, e é deste desconhecimento que lhe vem a sua

eficácia simbólica.106

Portanto, desconhecendo a realidade que está por trás de todo simbolismo o grupo a

ser dominado passa por um processo de ruptura, isto é, por uma “conversão do olhar”

acompanhado, logicamente, de uma revolução mental, uma mudança de toda a visão

do seu mundo cultural: social, político, econômico e religioso.107

E com relação ao conceito de imaginário social, que está estreitamente ligado à

questão do estatuto da ideologia, Norbert Elias afirma que “o imaginário social é uma

força reguladora da vida coletiva que ao definir lugares e hierarquias, direitos e

104

Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã..., p.77-78. 105

Pierre Bourdieu, O poder simbólico, 5ª Edição, Rio de janeiro, Editora Bertrand Brasil LTDA., 2002, p.48. 106

Idem, ibdem. 107

Pierre Bourdieu, O poder simbólico..., p.49.

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deveres, se constitui num elemento decisivo de controle desta mesma vida, aí incluído

o exercício do poder”.108 De fato, a classe religiosa, que se tornou dominante, teve o

poder de atuar no imaginário do campesinato, isto é, poder de manipular o seu

imaginário. Como afirma Norbert Elias, esse poder de interferir no imaginário de um

determinado grupo social se torna um elemento decisivo de seu controle, pois atuar

no imaginário social de um grupo é como atuar sobre a própria vida desse grupo,

assumindo o seu controle e interferindo nas condições de produção e reprodução de

sua vida. Em última instância, implica numa atuação na base real da vida, na estrutura

econômica da sociedade, ou seja, nas suas relações sociais de produção.

As relações de dominação que se estabelecem pela via da manipulação do imaginário,

pautando-se sobre mecanismos naturais, tornam as forças sociais, logicamente

naturais. Segundo Roger Chartier:

Definir a submissão imposta [a um grupo social] como uma violência simbólica ajuda a

compreender como as relações de dominação – que é uma relação histórica, cultural e

linguisticamente construída – é sempre afirmada como uma diferença de ordem

natural, radical, irredutível, universal.109 (texto entre colchetes é acréscimo pessoal)

Sobre esta questão, na segunda parte, farei as devidas considerações na perspectiva

do judaísmo, que é um excelente caso para que se possa fazer uma análise da

influência que a ideologia exerceu no imaginário coletivo da sociedade israelita.

Segue em modo de resumo um esquema planificado do conceito de ideologia,

desenvolvido a partir do artigo de Mario Stoppino no Dicionário de Política organizado

por Norberto Bobbio.110

108

Citado por Francisco J. Calazans Falcon, “História e representações” em Representações. Contribuição a um debate transdisciplinar, Campinas, Papirus, 2000, p.53. 109

Citado por Soihet, 2009, p.371 em Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gêneros / UNICAMP, 1995, nº 4, p.40-44. 110

Mario Stoppino, “Ideologia” em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, Dicionário de política, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1998, p.587-597.

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Esta representação gráfica corresponde ao processo de reprodução da ideologia

dentro de um determinado sistema de crença, seja ele de caráter político, religioso,

econômico e/ou social.

Trabalhando com o conceito de ideologia a partir da noção de falsidade a ideologia

percorre quatro instâncias básicas. Este ciclo se inicia a partir de uma falsa

apresentação, seguindo para um segundo estágio que classifico como sendo o de falsa

consciência, para chegar a um terceiro, denominado pelo termo falsa motivação até

atingir seu último estágio, que consiste na falsa representação.

Por falsa apresentação se entende o primeiro estágio que a ideologia percorre em seu

processo ideológico real. O primeiro de quatro etapas que garantem a reprodução do

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sistema. Partindo do pressuposto de que existem diferentes meios pelos quais uma

ideologia pode ser veiculada num determinado contexto social, seja por meio de

discursos ou narrativas, nos mais diversos âmbitos sociais. A falsa apresentação

consiste numa representação exata do sistema dentro do qual diferentes grupos

sociais coexistem pacificamente, onde cada grupo social cumpre seu papel já

previamente determinado, em prol da ordem e eficiência de todo o sistema. Se a

ideologia tem como uma de suas funções ser uma interprete fiel da realidade, nada

mais lógico do que ir sistematicamente moldando imaginário social com valores e

princípios sempre em acordo com os interesses da classe dominante, ou seja, da classe

que está em condições de zelar pela correta manutenção do sistema.

O segundo aspecto que a ideologia percorre dentro desse processo ideológico real, é o

de ser geradora de uma falsa consciência nos agentes sociais. Se como afirma Marx,

“não é a consciência que determina o ser, mas o ser que determina a consciência”, de

fato a realidade das práticas sociais vão como que moldando as consciências dos

indivíduos. Pelo fato de a ideologia ser apresentada de um modo falso, isto é,

corresponder aos interesses de uma determinada classe que domina todas as outras

classes de uma sociedade, consequentemente, será geradora de uma falsa

consciência. Nesse sentido, Marx está coberto de razão, quando afirma que os

interesses da classe dominante sempre permanecem escondidos às classes

subalternizadas sob um véu de valores políticos, morais e religiosos. Aqui está o fulcro

da noção marxista de falsa consciência: uma consciência invertida da verdadeira

realidade.

Na sequência desse ciclo que a ideologia percorre dentro do processo ideológico real,

o terceiro estágio é marcado pela falsa motivação. Segundo Mario Stoppino, este

conceito de falsidade é, de longe, o mais promissor no estudo empírico da política,

pois “muito frequentemente os homens não tem consciência das forças que os

impelem a agir e dão às suas ações causas imaginárias, muito diversas das causas

reais”.111 O que acontece é que a ideologia, atuando no inconsciente dos agentes, os

leva a elaborar motivos conscientemente fictícios para as próprias ações e

comportamentos, permanecendo assim, encobertos, os verdadeiros moventes.

Desse modo, pelo fato de a ideologia ter natureza social, porque diz respeito aos

comportamentos coletivos que se instauram numa relação de poder, como diz

Stoppino:

[...] Esta formulação da específica natureza social da ideologia é claramente uma

generalização do ponto de vista de Marx; porque é exatamente em Marx, mais do que

em Pareto, e, de um modo mais concreto e determinado do que em Nietzsche, que a

111

Mario Stoppino, “Ideologia”..., p.595.

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ideologia como falsa motivação se insere explicitamente nas relações de dominação do

homem sobre o homem.112

O que é falso não é o possível juízo de valor aos quais os agentes são submetidos pela

ideologia enquanto tal, mas a sua função de motivação, que no seu processo

ideológico real já possa ter cumprida sua função estruturante que aos poucos vai como

que plasmando e condicionando culturalmente todos os agentes.

E como último estágio, concluindo o processo de reprodução do sistema de crença a

ideologia se configura como uma falsa representação. Nesse sentido, todos os agentes

passam de passivos a ativos reprodutores do sistema de dominação/ subordinação na

qual toda a sociedade está submetida. Por falta de conhecimento de causa, os agentes,

por assim dizer, se tornam os legítimos representantes/reprodutores de tal sistema de

crença. Como atores numa peça teatral são apenas figurantes que garantem e

proporcionam o domínio de uma classe social sobre outra(s) classe(s) social(ais).

Serge Moscovici deu uma grande contribuição ao desenvolver uma teoria da psicologia

social do conhecimento quando desenvolveu o conceito de representação social. Sem

entrar no mérito da verdade ou da falsidade de uma representação social, Moscovici,

em suas incansáveis pesquisas de campo, fundamentou todo seu trabalho no como e

no porque as ideias são transformadas em práticas. Nisto está o problema específico

da psicologia social. Em Social Psychology and Developmental Psychology, Moscovici

afirma:

Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tratam, distribuem e

representam o conhecimento. Mas o estudo de como, e por que, as pessoas partilham

o conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, de como elas

transformam ideias em prática – numa palavra, o poder das ideias – é o problema

específico da psicologia social.113

Questionando-se a respeito do processo que todo conhecimento, desde o instante de

sua geração, passando pela transformação – penso eu, ideológico ou não – até ser

projetado no mundo social, afirma Moscovici, é nisso que a psicologia social está

interessada.

Nesse sentido M. Bauer e G. Gaskel, citados por Gerard Duveen, afirmam que:

112

Idem, ibdem. 113

Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici, Representações Sociais: investigações em psicologia social, Petrópolis, Editora Vozes, 2003, p.8.

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[...] o conhecimento é sempre produzido através da interação e comunicação e sua

expressão está sempre ligada aos interesses humanos que estão nele implicados. O

conhecimento emerge do mundo onde as pessoas se encontram e interagem, do

mundo onde os interesses humanos, necessidades e desejos encontram expressão,

satisfação ou frustração. Em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e,

como tal, nunca é desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto dum grupo

específico de pessoas que se encontram em circunstâncias específicas, nas quais elas

estão engajadas em projetos definidos.114

Se todo conhecimento é produzido, conforme afirmam os autores citados

acima, segundo interesses humanos que nele estão implicados, é possível afirmar a

partir desse pressuposto, que esses “interesses humanos” são, na verdade, interesses

de classe. Penso que o que está em jogo no contexto desta tese, é, conforme o próprio

Moscovici pensa, no modo como esse conhecimento é transformado e aplicado ao

âmbito das relações sociais.

Desse modo, como afirma o próprio Moscovici no primeiro capítulo de La

Psychanalyse “Representação social: um conceito perdido”:

As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, se entrecruzam

e se cristalizam continuamente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião,

em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas relações

estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que

estabelecemos. Nós sabemos que elas correspondem, dum lado, à substância

simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado, à prática específica que

produz essa substância, do mesmo modo como a ciência ou o mito correspondem a

uma prática científica ou mítica.

Mas se a realidade das representações é fácil de ser compreendida, o conceito não o é.

Há muitas boas razões pelas quais isso é assim. Na sua maioria, elas são históricas e é

por isso que nós devemos encarregar os historiadores da tarefa de descobri-las. As

razões não históricas podem todas ser reduzidas a uma única: sua posição “mista”, no

cruzamento entre uma série de conceitos sociológicos e uma série de conceitos

psicológicos. É nessa encruzilhada que temos de nos situar. O caminho, certamente,

pode representar algo pedante quanto a isso, mas nós não podemos ver outra maneira

de libertar tal conceito de seu glorioso passado, de revitaliza-lo e de compreender sua

especificidade.115 (grifo pessoal)

114

Idem, p.8-9. 115

Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici..., p.10.

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Se como afirma Moscovici, com relação ao campo em que atuam as

representações sociais, conforme item grifado acima – elas impregnam a maioria de

nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as

comunicações que estabelecemos – pode-se afirmar com certeza, numa perspectiva

marxista, isto é, no contexto do materialismo histórico, que as representações sociais

são exatamente aquilo que Marx conceituou como: reprodução do modo de produção.

Desse modo, proceder não só a uma verificação da razoabilidade e

racionalidade do conhecimento, além da sua atualidade e pertinência, mas acima de

tudo à sua veracidade, isto é: à época e contexto sócio político em que o

conhecimento foi produzido, o grau de evolução desse conhecimento adquirido, o

estágio ou o grau de desenvolvimento desse conhecimento, são fundamentais para

que se possa verificar a instrumentalização e a aplicabilidade desse conhecimento no

âmbito da sociedade em questão.

Portanto, pode-se dizer que a partir desse diagrama, que se apresenta como

ilustrativo de um processo ideológico real é possível mensurar o alcance e a

complexidade de um sistema de crença seja ele, político ou religioso, econômico ou

social, ou até mesmo, como poderá ser visto com relação ao judaísmo, onde estas

quatro dimensões estão não só presentes, mas intrinsecamente relacionadas umas às

outras.

1.2 – A política (o estado)

Esta fundamentação visa, desde já, colocar as bases e o sentido em que o

conceito será utilizado desde agora. Por ser um termo muito ambíguo, parto aqui de

algumas afirmações do conceito de política que são de todo modo, suficientemente

precisas:

Uma estrutura presente em um grupo com a função de regular e

coordenar as diversas finalidades e funções de seus membros

(indivíduos ou associados) do grupo, e o modo de funcionar desta

estrutura.

Atividade encaminhada para determinar os critérios ou valores básicos

de regulamentação da vida global do grupo, as finalidades primárias e

intermediárias que precisam ser procuradas, os instrumentos para a sua

consecução.116 (grifo é pessoal)

116

Luís Lorenzetti , “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.974.

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De fato, o termo “política” como estrutura e atividade, conforme descrição feita acima

reflete o que o próprio Aristóteles já pensava sobre o termo. Norberto Bóbbio traz

interessante resumo a respeito do tema:

Derivado do adjetivo originado de polis (politikós) que significa tudo o que se refere á

cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil e público, e até mesmo sociável e

social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles,

intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a

natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a

significação mais comum de arte ou ciência do governo [...].117

Diferentemente do entendimento que hoje temos do conceito de política

dentro do regime de uma democracia representativa, apenas como forma e meio de

eleger aqueles que aparentemente irão nos representar, ou melhor, irão governar

sobre nós, quero resgatar aqui, este conceito mais amplo e original do termo, que

implica numa participação eficaz com plena consciência crítica, pois se, de fato,

política é uma estrutura que tem a função de regular e coordenar a atividade da pólis

bem como a vida de cada um de seus membros, percebe-se que ao longo de toda a

história diferentes modelos políticos de governo surgiram. Alguns modelos com a

possibilidade de uma maior participação em todos os níveis de decisão, tais como

algumas sociedades primitivas, outros modelos de governo sem a mínima chance de

participação de seus membros.

É justamente isso que será analisado, quando desenvolver o estudo deste caso

particular chamado “judaísmo”. De fato, o que poderemos constatar, foi que esse

projeto tinha uma especificidade singular: era um projeto político-social de caráter

eminentemente religioso. Como veremos o poder dominante, não estava nas mãos de

um rei ou de um chefe político, mas sim, nas mãos do poder religioso jerusolimitano,

que em nome de seu deus, ditou regras e organizou toda a sociedade judaíta segundo

seus critérios, objetivos e interesses pessoais.

Se partirmos aqui do conceito de política, não somente como estrutura, mas

enfatizando a dimensão da atividade, isto é, como práxis humana, notamos que este

conceito tem uma ligação muito estreita com o conceito de poder. Tendo já sido

teorizado desde os tempos de Hobbes e Russell no início do período moderno, o

poder, numa perspectiva antropológica, é definido como domínio de uma ou mais

pessoas sobre outras pessoas. É nesse sentido que iremos explorar as relações de

poder entre dois grupos sociais bem específicos: o campesinato judaíta e a classe

sacerdotal jerusolimitana no contexto pós-exílico. É dentro desse contexto social que

117

Norberto Bóbbio, “Política” em Dicionário de Política, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1983, p.954.

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iremos tratar da política, ou melhor, do poder político, pois entendemos que toda ação

que se desenvolve dentro de uma determinada sociedade implica na utilização de um

tipo de poder, seja ele no campo econômico, ideológico, familiar ou puramente social,

de amizade e solidariedade.

Segundo Bobbio, o que caracteriza o poder político é:

[...] a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num

determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se

desenvolve em toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e

uso dos meios com que se pode exercer a coação física. Este processo de

monopolização acompanha pari passu o processo de incriminação e punição dos atos

de violência que não sejam executados por pessoas autorizadas pelos detentores e

beneficiários de tal monopólio.

Como veremos, será fazendo uso dessa prerrogativa que a classe dominante

em Israel, isto é, a classe sacerdotal, muito mais do que agir por meio da coação física,

agiu por meio da coação psicológica, “incriminando e punindo” os culpados de

transgredirem algumas das leis da torah. Com grande habilidade literária conseguiram

transformar séculos de tradição, outrora, por eles desconhecida, numa terrível força

de controle social. Colocaram debaixo de uma lei cheia de contradições, como

mostraremos, não somente a vida religiosa de um povo, mas a vida em todos os seus

âmbitos foi afetada.

No tocante aos fins, aquilo que a política deveria perseguir, conforme o

pensamento de Aristóteles é o de que o fim da política não é viver, mas viver bem.

Portanto, se um determinado grupo social oprime outro grupo, como é o caso em

questão, condenando-o a uma vida sofrida e infeliz, será que, apesar disso, não estaria

ele também fazendo política, ou melhor, uma péssima política? Será que o poder que

está exercendo não seria um hediondo poder político?

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Capítulo II – As sociedades selvagens/tribais/primitivas/arcaicas.

Aqui se inicia a trajetória de um resgate histórico de um povo, não só oprimido

e explorado, mas acusado, diga-se de passagem, injustamente, por aqueles que

detinham a ciência do saber e do conhecimento, mas que de forma pragmática,

desvirtuaram o sentido da história, alteraram de forma nitidamente ideológica, sua

rota e seu desenlace natural.

Marginalizados e dominados, tanto socialmente quanto política, econômica e

religiosamente também, muitas dessas sociedades, hoje já extintas, não deixaram mais

do que sinais de seu esforço em conservar sua honra, suas tradições, seus costumes,

seu modo ecologicamente todo peculiar de ser e de relacionar com o meio ambiente.

Neste último século passado, temos visto uma grande quantidade de trabalhos

científicos enfatizando a realidade de vida dessas sociedades que, recebendo

diferentes nomeações tais como: selvagens, tribais, primitivas ou arcaicas, todas se

referem a um mesmo grupo social, que possuindo características bem peculiares,

povoaram todas as áreas habitáveis de nosso planeta por dezenas de milênios de anos.

Marshall Sahlins fala em “sociedades segmentárias primitivas”118. Segmentadas

porque cada nível ou setor não existe independentemente do outro, mas estão

sempre interligados e interdependentes. O que muda são somente as funções que

cada membro desenvolve em prol de toda a sociedade. Conforme aumenta o nível de

segmento, aumenta também a complexidade da função e da responsabilidade. E

primitivo devido, não somente ao seu aspecto cronológico, que quase se perde no

tempo, mas principalmente, porque estas sociedades não estavam organizadas em

termos de produção, política e religiosidade. Não formavam, como diz Sahlins, uma

“santa aliança entre mercado, Estado e Igreja. Falta-lhe um setor econômico

independente ou uma organização religiosa separada”119. Isto é o que constitui a sua

primitividade. Desse modo, tais atividades estancadas, que podem caracterizar a

presença do estado, nas sociedades tribais são apenas funções diferentes de uma

mesma instituição.

Já não podemos mais ter acesso a uma sociedade primitiva que guardasse toda a

originalidade de seus costumes, crenças e tradições. O que temos hoje à nossa

118

Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.7. 119

Idem, p.28.

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disposição são relatos de cronistas, aventureiros, missionários a partir do século XVI,

além de um mapeamento de uma grande quantidade dessas sociedades,

descendentes diretos dessas tribos primitivas. Segundo Sahlins, “essas várias áreas

formam o mundo tribal da moderna Antropologia Cultural”. Aqui temos, segundo o

autor, não pré-história, mas “Etnografia – explicações de testemunhas oculares de

tribos como preocupações existentes”.120

Como bem salienta Marcel Gauchet:

“Ora, o que o funcionamento desses grupos selvagens, onde sobreviveu uma pequena

parte disso que foi o mundo de antes do Estado, revela é a presença subjacente, ao

mesmo tempo, das dimensões que o dispositivo social recalca”.

Todo este primeiro capítulo tem por objetivo servir de fundamento epistemológico

para a caracterização de um dos grupos sociais envolvidos no objeto de pesquisa desta

tese – as relações de poder –, a saber, do campesinato judaíta, herdeiro direto das

mais antigas tradições tribais dos grupos que habitaram aquelas regiões e que tiveram

que se submeter à lei do poder do mais forte – isto é, da classe sacerdotal

jerusolimitana – num determinado momento de sua caminhada histórica.

Resistiram o quanto puderam, em prol de sua gente e de seus ancestrais

costumes, mas a batida do cajado do opressor foi mais forte, dizimando sem piedade

sua gente e, aqueles que sobreviviam, eram tornados escravos, submetidos a

trabalhos duros e desumanos.

Rigoberta Menchu Tum, prêmio Nobel da Paz em 1992, está coberta de razão

quando pergunta se existe esperança ou se o futuro ainda está aberto aos povos

indígenas121:

Para responder a essa pergunta, é fundamental considerar as condições em que vive a

imensa maioria de nossa população mundial, suas profundas reivindicações que

fundamentam as lutas e esperanças de um futuro melhor. A concentração dos poderes

em poucas mãos condena os pobres a serem mais pobres e torna mais evidente a

urgência de retomar os sagrados valores que deram origem à nossa humanidade; isto

é em essência, o que reivindicamos os povos indígenas e os povos originários do

mundo [...] O respeito aos valores e direitos individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade

120

Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.12. 121

Nós, particularmente aqui no Brasil, estamos assistindo a uma grande batalha que se trava entre aqueles que lutam pelas causas indígenas contra grupos, que são verdadeiras potencias econômicas, que não veem outra coisa diante de si, a não ser, seus próprios interesses pessoais.

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e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e

pacífico.122 (o grifo é pessoal)

Como veremos, esses povos “indígenas” ou “originários do mundo” são parte

dessas sociedades primitivas, selvagens ou tribais que motivam meu interesse de

pesquisa nesta tese. Resgatar os “sagrados valores que deram origem a humanidade”,

como afirma Rigoberta Menchú Tum, será uma oportunidade de mostrar que existe

uma saída para o caos instalado pelo modelo econômico vigente em nosso mundo

atualmente. O capitalismo liberal não teve a última palavra e nem Francis Fukuyama

acertou quando afirmou que havíamos chegado ao “fim da história”, cujos símbolos

são: a derrubada do socialismo e o trinfo do capitalismo. Giulio Girard comenta essa

afirmação do ex-secretário de estado do governo norte americano da seguinte forma:

[...] Afirmar que o triunfo do capitalismo é definitivo é dizer que a atual organização

econômica, política e cultural do mundo, não tem alternativas: que as leis do mercado

estão sendo impostas com uma lógica tão implacável que qualquer hipótese de

autonomia com relação às mesmas parece sonho de um visionário. Mas se for certo

que a lógica do mercado exclui do poder, da cultura e da vida as grandes maiorias da

humanidade, então o trinfo do mercado coincide com a derrota da vida.

A conquista da América que para os conquistadores representava o “Novo Mundo” e

abria na história da Europa uma nova época, realmente significou em grande medida,

para os povos submetidos e exterminados o fim da história. A atual etapa da conquista

pretende ser, na perspectiva dos seus protagonistas, a solução final do problema da

história cujo sentido consistiria no triunfo dos poderosos e no enterro das suas vítimas.

Mas quem de nós, cidadãos do mundo rico e cativos da sua cultura, está disposto a

escutá-los? Quem de nós pensa sinceramente que os excluídos são depositários de

uma antiga sabedoria e portadora de uma palavra nova para a humanidade?123

É nesta linha de pensamento que quero argumentar e levar á frente este projeto de

pesquisa. Demonstrar que as sociedades indígenas e os povos originários do mundo,

como destaca Giulio Girard, possuem uma antiga sabedoria, que como também

demonstra Marshall Sahlins se constitui na “chave das limitações comparativas da

sociedade tribal e do significado evolucionário do Estado”124. De fato, como será

122

Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo, Editora Ática, 1996, p.13. 123

Giulio Girard, Os excluídos construirão a história..., p.18-19 124

Marshall D. Sahilns, Sociedades tribais..., p.18.

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demonstrado, aqui está o grande divisor de águas entre as sociedades primitivas e as

sociedades de estado:

[...] civilizações diferem das tribos em virtude de suas instituições políticas

especializadas, seus Governos, que soberanamente assumem o poder e o direito de

proteger a cidadania e manter a paz dentro do Estado. Nas sociedades tribais o

controle da força não é negado ao povo; eles estão na condição que Hobbes chamou

de Guerra, que é uma condição fatal se não for controlada. Na ausência de

instituições.......125

Tradicionalmente ouvimos e lemos que estas sociedades primitivas fazem parte

de uma pré-história, que não teriam nada, absolutamente nada a nos ensinar, pois

classificadas com o termo “selvagem” que tem no seu sentido um forte apelo negativo

e pejorativo, foram sempre vistas, como descreve Thomas Hobbes – no Leviatã –,

como aqueles que nada mais faziam do que guerrear uns com os outros. É a guerra de

todos contra todos. Nada mais injusto. Nada mais errôneo. Segundo Sahlins, “fazer a

paz é a sabedoria das instituições tribais”126.

Aprofundando um pouco mais o conceito de tribalismo, Maurice Godelier em

“Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas”, trás um importante

estudo de como o conceito tribo evoluiu desde quando a antropologia passou a ser

encarada como uma disciplina científica no século XIX.

Mas, como mostra Maurice Godelier, “actualmente el término ‘tribu’ está en crisis

manifiesta”. Por isso, não é tão simples de defini-lo, pois prova disto é a divisão em

que se encontra, atualmente, boa parte dos antropólogos.127

Neste livro, Godelier mostra como o conceito foi sendo apreendido, desde

antropólogos como L.H.Morgan (1877), que demonstrou que as relações sociais que

dominavam a organização da maior parte das sociedades primitivas consistiam nas

relações de parentesco. Para Morgan:

*…+ una tribu es una ‘sociedad completamente organizada’, y, por tanto, una forma de

organización social capaz de reproducirse. Ilustra la condición de la humanidad en el

estado de barbarie, es decir, de la humanidad que ha salido del salvajismo primitivo,

125

Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p. 126

Idem, p.19. 127

Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion em las sociedades primitivas, 3a edição, Espanha,

Siglo Veintiuno de España Editores, S.A., 1980, p.199. Segundo o autor: “Neiva, después de leach, clama ante la ‘escandalosa imprecisión del concepto’, Julian Steward, evolucionista, pide la mayor prudencia ante lo que denomina um concepto ‘cajón de satre’, y otros, como Swartz, Turner, Toden, optan por ignorarlo sistemáticamente, silenciando su existencia, aunque exploren um campo, la antropología política, em cuyo seno el concepto de tribudesenpeñaba tradicionalmente el papel de término clave. Pero esto no es más que la mitad del mal, ya que esas críticas contra la utilización ideológica que se hace del concepto em la forma, derivada y emparentada, del concepto de ‘tribalismo’”.

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pero que aún no ha alcanzado el estadio de la civilización, de la sociedad ‘política’, del

Estado”.128

Um século depois, tendo em mãos o Dicionário de Ciências Sociais patrocinado pela

UNESCO, pode-se constatar que a definição de Morgan, referida acima, ainda mantém

seu aspecto descritivo de um tipo de sociedade, porém, como o texto afirma, houve

uma completa amputação de toda referência a um estágio de evolução, ao que

corresponderia esse tipo de sociedade.129

Segundo Maurice Godelier, esta exclusão da parte relativa ao evolucionismo, se deve à

corrente antropológica funcionalista, que aos poucos foi impondo seu ponto de vista

às teorias antropológicas. Para os funcionalistas, com exceção sem embargo, de

E.E.Evans-Pritchard, que em seu livro de 1948, Africal Political Systems, refutou a tese

anterior de que “o Estado seria a forma primária da comunidade humana”130 e de

alguns outros brilhantes investigadores:

[...] un sistema social es un todo cuyas partes están necesariamente ligadas, pero

sobre esta necesidad la propia historia del sistema, en opinión de ellos, nada puede

enseñarnos, ya que la historia pertenece al orden de lo accidental y lo incidental y no

de lo necesario. Existen leyes de funcionamiento de las sociedades, pero no existen

leyes de su evolución o de su transformación necesaria.131

Assim, quando olhamos para as sociedades primitivas que ainda existem

contemporaneamente, na tentativa de compreender o que, de fato, sustenta a sua

“visão de mundo”, isto é, todo o seu modo sócio-político de ver e de ser no mundo,

descobrimos que existe, para além de toda a história uma força de coesão, muito mais

forte do que o próprio tempo, que não conseguiu modificá-las. Como afirma Godelier,

talvez aqui, ao redor do problema da natureza das relações políticas, que caracterizam

o modo de organização das sociedades tribais, é onde se encontram as principais

dificuldades do conceito tribo132.

Conforme afirma Marshall Sahlins, que segundo Maurice Godelier é:

128

Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.202. 129

Idem, p.204-205 130

Hans G.Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia: estudo sócio-religioso sobre a relação entre tradição e evolução social, São Paulo, Edições Paulinas, 1988, p.14. 131

Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.205. 132

Maurice Godelier, Economia, fetichismo y religion..., p.206.

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*…+ el autor que recientemente ha realizado el esfuerzo más persistente y brillante

para redefinir rigurosamente ese concepto – e reinterpretar los nuevos materiales

etnográficos acumulados desde hace más de un siglo.133

Lancemos mão, portanto, de uma definição feita por Marshall Sahlins, que afirma que

estudar as sociedades primitivas, que ele as chama de “sociedades segmentárias”

primitivas, é o mesmo que estudar as sociedades tribais.134

Partindo para uma definição mais apropriada do conceito tribo, Sahlins entende

o termo da seguinte forma:

[...] um corpo de pessoas de origem e costumes comuns, que possui e controla toda a

extensão de seu território. Mas, em certo grau, socialmente articulada, uma tribo é

especificamente diferente de uma nação moderna na medida em que suas várias

comunidades não estão unidas sob o governo de uma autoridade soberana, nem os

limites do todo estão clara e politicamente determinados [...] A tribo é também pouco

complexa em outro sentido. Sua economia, sua religião não são conduzidas por

diferentes instituições especialmente destinadas para esses fins, mas,

coincidentemente, pelos mesmos grupos de parentesco e grupos locais: os segmentos

de linhagem e clã da tribo, as famílias extensas e aldeias que assim surgem como

versáteis organizações responsáveis por toda a vida social. Tal formação cultural, ao

mesmo tempo estruturalmente descentralizada e funcionalmente generalizada, é uma

sociedade primitiva segmentária.135

A partir desta definição já podemos começar a intuir que entre campesinato e

tribalismo existe uma diferença essencial quanto às relações de poder: enquanto a

realidade campesina é marcada pelo poder e autoridade do rei e do estado, a quem

estão necessariamente ligados, no regime tribal, não existe a figura de um chefe ou

estado que tenha esse mesmo poder e autoridade para agir despoticamente. A

liderança é exercida, conforme a citação acima, pelos “grupos de parentesco e grupos

locais”, enfim, por todo o clã e aldeia.136

Esta mesma posição é corroborada por outro antropólogo, Pierre Clastres, que em seu

livro “A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política” desenvolve de

forma muito convincente a questão do tribalismo em relação ao estado. Em suas

pesquisas, não só de campo, mas também recorrendo ao imenso arquivo de trabalhos

anteriores, Clastres toma como base de suas teorias o trabalho desenvolvido junto aos

133

Idem , p.200. 134

Marshall Sahlins, Sociedades Tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.7. 135

Idem, p.7-8. 136

Voltaremos a este assunto de “chefe, autoridade e poder tribais” no segundo capítulo desta primeira parte.

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índios tupi-guaranis. Diz ele que existe uma grande preocupação de todos os povos

primitivos, na sua grande maioria, de se prevenir contra a possibilidade de se ter o

poder centralizado numa única pessoa, mesmo até aquela escolhida para ser o chefe

de uma tribo.137

Mostrando que muitas das ideias que hoje temos sobre as sociedades primitivas –

ideias totalmente negativa como: são sociedades arcaicas, por não terem estado,

escrita, história, por viverem estritamente baseados numa economia de subsistência,

etc. –, fazem parte de uma construção etnocentrista desenvolvida no ocidente

europeu. Desse modo, recupera e regata, assim, o verdadeiro perfil sócio-político

dessas sociedades primitivas, que segundo o autor, e penso igualmente, teriam muito

a nos ensinar.

Afirmando que é “sempre pela força que os homens trabalham além de suas

necessidades”, Pierre Clastres nos mostra que essa mesma força que era utilizada para

transformar ‘lavradores felizes’ em ‘campesinos opressivamente explorados’, estava

ausente nas sociedades primitivas. Inclusive, a:

[...] ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas

[...] os homens, isto é, a metade da população trabalhava cerca de dois meses em cada

quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como

trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu

gosto apaixonado pela guerra [...] E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos

machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no

mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto

[...] uma vez assegurada a satisfação global das necessidades energéticas, nada poderia

estimular a sociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tempo

num trabalho sem finalidade.138

Entre os fatores que melhor definem a identidade e representam esta qualidade de

vida, está o fraco desenvolvimento dos recursos técnicos e em geral, os meios de

controle da natureza, que implicam, necessariamente, numa dependência religiosa,

isto é, num sentimento de inferioridade frente a essas grandes forças e poderes, tão

infinitamente diferentes e superiores aos homens.

E este fato é atestado, mesmo diante das grandes revoluções da história, tal como a

passagem do paleolítico para a neolítico. A “revolução do neolítico” possibilitou a

transformação da base material das sociedades primitivas, mas sem alterar suas

culturas e nem suas religiões. Marshall Sahlins diz que “o neolítico foi o dia histórico

137

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p. 138

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.136-138.

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das sociedades tribais”.139 “Dia histórico” porque foram capazes de resistir às

mudanças que estavam operacionalizando-se, não de modo natural ou espontâneo,

mas segundo forças sociais subterrâneas que, pouco a pouco, neutralizaram o poder

de reação destas mesmas sociedades primitivas.

Ao mesmo tempo em que estas sociedades descobriam as riquezas que o neolítico

possibilitava, as grandes civilizações históricas que temos conhecimento nasciam e

com ela também, o estado e todo o seu aparato. Conforme Marshall Sahlins afirma:

[...] já em 3.500 a.C., no Oriente Próximo, tribos neolíticas estavam sendo

ultrapassadas da mesma forma com que antes tinham ultrapassados os caçadores do

paleolítico. [...] Este era um novo tipo dominante, sempre criando novas variedades

enquanto avançava, e sempre opondo e enfraquecendo o tribalismo indígena.140

O que Marshall Sahlins deixa entrever é o mesmo fato já anteriormente salientado por

Marcel Gauchet nos parágrafos acima, a saber, que, esse novo “tipo dominante” que

começa a oprimir de modo coercitivo o tribalismo indígena se identifica com a figura

do “estado” que começa a ganhar forma e espaço no cenário mundial.

De fato, nisso se constitui o objeto de minha pesquisa: estabelecer à luz de diferentes

textos bíblicos do período pós-exílico – mais particularmente, daqueles textos que

nasceram no período de transição do domínio persa para o domínio grego – que tipo

de relações de poder se estabeleceram entre o campesinato judaíta e o clero

sacerdotal jerusolimitano.141 Quais foram as verdadeiras motivações para o

surgimento de toda uma série de textos sempre tendo como ponto de referência o

clero sacerdotal jerusolimitano. Por que as sociedades tribais judaítas não foram

capazes de resistir ás mudanças impostas pelo clero sacerdotal jerusolimitano?

2.1 – As diferentes funções dentro das sociedades primitivas

Como vimos no tópico acima, uma sociedade primitiva não deve ser analisada

de modo compartimentado, pois inviabilizaria o resultado final, posto que o que se

139

Marshall Sahlins, Sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, p.12. 140

Idem, ibdem. 141

Para efeito de esclarecimento, diferentes termos serão utilizados ao longo desta tese para exprimir a mesma realidade do campesinato judaíta. Termos como: sociedades tribais, tribalismo indígena, sociedades primitivas ou selvagens, todas têm a mesma conotação e, como será demonstrado posteriormente, são estes aqueles grupos sociais que estão sendo dominados e obrigados a realizar uma mudança radical em seu modo de viver, isto é, estão sendo forçados a renunciar aos “sagrados” valores que por milênios ainda estavam forjando seu peculiar modo de vida: uma sociedade profundamente igualitária, sem divisões, sem chefes com poder. Agora estão sendo transformados em campesinos. Com respeito a essa mudança na designação: da condição de primitivos, tribais ou selvagens para campesinos, posteriormente também daremos as devidas explicações.

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busca é a formulação de um contorno geral da cultura tribal, dada a grande

quantidade de variações possíveis nos detalhes, pois se “duas tribos nunca são iguais

em detalhe”142, faz sentido a afirmação de Sahlins quando diz que: “A sabedoria

antropológica sugere que abandonemos a análise convencional da cultura em esferas

econômica, político-social e ideológica distintas”143.

Conforme pode-se constatar no esquema gráfico abaixo, as unidades

constituintes de uma sociedade tribal formam uma progressiva série inclusiva de

grupos, que desde o grupo doméstico até o setor intertribal estão estreitamente

ligadas.

142

Marshall Sahlins, Sociedades tribais..., p.27. 143

Idem, p.28.

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Sahlins vê nesse arranjo de famílias que se reúnem em linhagens locais, de linhagens

que estão unidas em comunidades de aldeias, de aldeias que estão configuradas em

confederações regionais, e estas últimas, integrando o campo ou setor mais

abrangente, que é o da tribo. Normalmente, cada tribo como um todo pode ser

distinguida de outras tribos por suas identidades de costume e de língua.144

Desse ponto de vista, percebe-se as tribos organizadas como uma espécie de

“pirâmide de grupos sociais”, ou mais propriamente, de uma “hierarquia segmentada”

– mas que, diferentemente de uma organização estatal, que define sua coerência de

cima para baixo através de suas instituições públicas, isto é, através de uma autoridade

soberana constituída – onde cada esfera representa um nível de organização, que faz

com que as relações sociais se tornem mais amplas e diluídas na medida em que nos

distanciamos do centro, ou seja, do grupo central familiar.145

A partir desta esquematização das sociedades tribais, Marshall Sahlins afirma:

O modelo que temos diante de nós é definido em termos sociais. Porém, mais do que

um esquema de relações sociais, é uma organização da cultura. Os vários níveis de

organização são, no jargão da profissão, níveis de integração sócio-cultural; os setores,

setores de relações sócio-culturais. Isso significa, primeiro, que cada nível (cada tipo de

grupo tem uma série de funções: econômica, de cerimonial, defensiva, e assim por

diante – cada uma organiza certas tarefas necessárias. Além disso, cada setor

enquanto campo mais ou menos solidário de co-participação tem seus valores e

moralidade, que governam a conduta dos negócios humanos dentro do campo.146

A partir desse pressuposto fica evidente, em termos de organização social, o

quanto as sociedades tribais estão distantes, em termos de organização, das

sociedades de estado. Não existe um órgão que fiscaliza e determine os direitos e

deveres de cada membro ou a obrigação de cada setor nos diferentes campos de

atividades.

No tocante ao aspecto da religiosidade, o que hoje pode ser visto em termos de

religião, particularmente a partir das grandes tradições religiosas, no seu aspecto mais

elaborado, de refinamento, de teologias, de ritos, de cerimônias, enfim, de uma

instituição religiosa, pode-se afirmar, com certeza, que sua gênese está no modo como

as sociedades primitivas se relacionavam com o sobrenatural, com aquilo que estava

além da possibilidade de sua percepção e de seus conhecimentos, mesmo a nível

natural.

144

Marshall D. Sahlins, Sociedade tribais..., p.28. 145

Idem, p.28-29. 146

Marshall D. Sahlins, Sociedades tribais..., p.30.

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O que hoje definimos por religião, e o que também, mediante um olhar

retrospectivo, caracterizamos pelo mesmo conceito, era nos tempos mais remotos da

humanidade apenas um modo de se relacionar com as forças incontroláveis da

natureza, de tentar sujeita-las a um controle pessoal e puramente humano. Desse

modo nasceu uma espécie de religião cuja divindade ou os deuses, eram seres criados

segundo à nossa imagem e semelhança. Com relação a isso Rubem Alves tem um

pensamento muito interessante:

Como forem os pensamentos e as disposições do homem, assim será o seu Deus;

quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais será o valor do seu Deus.

Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento.

Assim se a psicanálise dizia “conta-me teus sonhos e decifrarei o teu segredo”,

Feuerbach acrescenta “conta-me acerca do teu Deus e eu te direi quem és”.

“Deus é a mais alta subjetividade do homem... Este é o mistério da religião: o homem

projeta o seu ser na objetividade e então transforma a si mesmo num objeto face a

esta imagem, assim convertida em sujeito. [...] O mundo do sagrado não é uma

realidade do lado de lá, mas a transfiguração daquilo que está do lado de cá. [...] É isto:

a linguagem religiosa é um espelho em que se reflete aquilo que mais amamos, nossa

própria essência. O que a religião afirma é a divindade do homem, o caráter sagrado

dos seus valores, o absoluto do seu corpo, a bondade de viver, comer, ouvir, cheirar,

ver... E assim chegamos a mais espantosa das conclusões deste homem que amava a

religião e nela encontrava a revelação dos segredos de sua própria alma: “O segredo

da religião é o ateísmo”.147

Bem, não vem ao caso, aqui nesse momento, nem em nenhum outro desta

tese, discutir a questão do ateísmo. Esta não é a minha opção intelectual. Mas, com

certeza na terceira parte e na conclusão desenvolverei melhor a direção que a religião,

enquanto um fenômeno está tomando no cenário mundial.

2.2 – A questão do poder nas sociedades primitivas

Nas últimas décadas do século passado a etnologia experimentou um

rejuvenescimento e desenvolvimento muito salutar, pois graças aos trabalhos de

sociólogos e antropólogos sobre sociedades primitivas, podemos hoje recolher seus

frutos e, assim, com essa lanterna na mão, reescrever muitas histórias, como a do

tribalismo israelita (campesinato judaíta), que nos propomos aqui.

Pierre Clastres num de seus artigos, pertinentes ao tema, desenvolve este

assunto a partir de um questionamento: “O que se entende precisamente por

147

Rubem Alves, O que é religião..., p.28-29.

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sociedade primitiva?” Segundo o próprio autor, é a antropologia clássica que nos

auxilia nessa busca, quando afirma que as “sociedades primitivas são sociedades sem

Estado, são sociedades cujo corpo não possui órgão separado do poder político”.

Portanto, seria conforme a presença ou não do Estado que se configuraria uma

primeira classificação das sociedades. Com isto, não quero afirmar que só existiria dois

tipos de sociedades. Sabe-se que existe uma grande diversidade e modelos de

sociedades onde o regime político é o estatal, bem como também, uma grande

variedade de sociedades classificadas como primitivas.148

Nesse sentido, a afirmação de Pierre Clastres á muito esclarecedora:

[...] notaremos que uma propriedade comum faz com que as sociedades com Estado

oponham-se em bloco às sociedades primitivas. As primeiras apresentam esta

dimensão de divisão desconhecida das outras. Todas as sociedades de Estado são

divididas, em seu ser, em dominantes e dominados, enquanto as sociedades sem

Estado ignoram esta divisão. Determinar as sociedades primitivas como sociedades

sem Estado é enunciar que elas são, em seu ser, homogêneas, por serem indivisas.

Voltamos a encontrar aqui a definição etnológica destas sociedades: elas não tem

órgão separado do poder, o poder não é separado da sociedade.149

Este é o grande diferencial entre uma sociedade com Estado das sociedades

primitivas. Nelas o poder não está centralizado em nenhuma pessoa em particular,

mas em toda a sociedade. O corpo social como um todo é quem detém o poder.

Na Grécia antiga uma sociedade só era considerada, de fato, sociedade

politicamente organizada, se possuísse uma divisão interna, isto é, membros que

obedecessem e membros que comandassem. Como é do nosso conhecimento, muitos

historiadores, como Jean de Leri, ao relatarem em suas crônicas sobre as expedições

de exploração por essas terras ameríndias descreviam os chefes indígenas como

despossuídos de poder, não tinham nenhum poder sobre as tribos, eram como

“selvagens, sem fé, sem lei, sem rei”.150

Mas alguém poderia objetar: o que faz, portanto um chefe sem poder? Não

estaria automaticamente relacionada a função de chefia com o exercício do poder?

Pode alguém assumir uma função de chefia sem estar fundamentado pela autoridade

do comando?

148

Pierre Clastres, Arqueologia da violência: ensaio de antropologia política, São Paulo, Editora Brasiliense, 1982, p.105. 149

Pierre Clastres, Arqueologia da violência..., p.106. 150

Idem, ibdem..

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Essa é a grande diferença entre um chefe ou líder numa sociedade de Estado e

numa sociedade primitiva. Os chefes tribais têm por função se encarregar de realizar a

vontade da comunidade como um todo, afirmar “sua especificidade, sua autonomia e

a sua independência”. Para isso, exige-se que a pessoa escolhida tenha certas

habilidades, tais como: experiência de vida em primeiro lugar, aliada a uma sabedoria

fundada nas tradições dos antepassados. Lowie, citado por Clastres, num de seus

trabalhos na década de 40 do século passado, analisando os traços distintivos de um

chefe tribal na região das américas, tanto do sul quanto do norte, concluía o seguinte:

1º) O chefe é um “fazedor da paz”; ele é a instância moderadora do grupo, tal como é

atestado pela divisão frequente do poder civil em militar.

2º) Ele deve ser generoso com seus bens, e não pode permitir, sem ser desacreditado,

repelir os incessantes pedidos de seus “administrados”.

3º) Somente um bom orador pode ascender à chefia.151

Tudo isso lhe confere certo status que pode ser traduzido pelo conceito de “prestígio”.

Mas, se da boca do chefe saem palavras de ordem, contrárias àquele princípio

que as organiza como sociedade indivisa, a sociedade como um todo não lhe dá

ouvidos. Muito pelo contrário, por causa de seu comportamento totalmente fora do

esperado pela comunidade pode acarretar contra ele a destituição da função e até ser

condenado à morte.

É nesse sentido que o chefe tribal se esmera por fazer a vontade da comunidade:

[...] Na realidade, dispõe apenas de um direito, ou melhor, de um dever de porta-voz:

dizer aos Outros o desejo e a vontade da sociedade [...] A atenção particular que se

presta – aliás nem sempre – à palavra do chefe não chega jamais ao ponto de deixar

que ela se transforme em palavra de comando, em discurso de poder. [...] Da boca do

chefe escapam não as palavras que sancionariam a relação de mando-obediência, mas

o discurso da própria sociedade sobre ela mesma, através do qual ela se proclama

comunidade indivisa e desejosa de perseverar neste ser indiviso.152

Segundo ainda Pierre Clastres, em seu outro livro: A sociedade contra o estado

– pesquisas de antropologia política, adverte que, ainda hoje, dependendo da tribo

que se visite, jamais se deve perguntar aos membros dessas sociedades: quem é o seu

líder? Mas antes: quem é, entre vocês, aquele que tem por missão ser portador da

151

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.23. 152

Pierre Clastres, Arqueologia da violência..., p.108-109.

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palavra? O mestre da fala ou senhor das palavras: é esse o nome que muitos grupos

dão ao seu líder ou chefe.153

[...] Com efeito, o corte radical que divide as sociedades, reais ou possíveis, segundo

sejam de Estado ou sem Estado esse corte não poderia deixar indiferente o modo de

ligação entre o poder e a palavra. Como é que ele opera nas sociedades sem Estado? O

exemplo das tribos indígenas no-lo ensina.

Uma diferença aí se revela, ao mesmo tempo a mais aparente e a mais profunda, na

conjugação da palavra e do poder. O fato é que, se nas sociedades de Estado a palavra

é o direito do poder, nas sociedades sem Estado ela é, ao contrário, o dever do poder.

Ou, para dizê-lo de outra maneira, as sociedades indígenas não reconhecem ao chefe o

direito à palavra porque ele é o chefe: elas exigem do homem destinado a ser chefe

que ele prove seu domínio sobre as palavras. (O grifo é pessoal)

Aqui um ponto fundamental quanto àquilo que veremos no próximo capítulo, em

função das relações de poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal

jerusolimitana, que ficará plenamente evidenciado, pois aquilo que na citação acima

está em destaque – O fato é que, se nas sociedades de Estado a palavra é o direito do

poder, nas sociedades sem Estado ela é, ao contrário, o dever do poder – ilustra bem a

realidade das sociedades estatais e, mais particularmente, as relações de poder no

judaísmo incipiente.

Mas, eis aqui o paradoxo: apesar de o chefe ser o homem de palavra, não se

trata aqui de estética, mas de política. Seu discurso não é dito para ser escutado, pois,

aparentemente, ninguém presta atenção, finge-se desatenção. Sendo um ato

ritualizado, o seu discurso faz parte de uma celebração. Por isso:

Na obrigação exigida de ser homem de palavra transparece com efeito toda a filosofia

da sociedade primitiva. [...] O discurso do chefe é vazio justamente por não ser

discurso de poder: o chefe está separado da palavra porque está separado do poder.

Na sociedade primitiva, na sociedade sem Estado, não é do lado do chefe que se

encontra o poder: daí resulta que sua palavra não pode ser palavra de poder, de

autoridade, de comando. Uma ordem: eis o que o chefe não poderia dar, eis o gênero

de plenitude recusado à sua palavra. [...] a sociedade primitiva é o lugar da recusa de

um poder separado, porque ela própria, e não o chefe, é o lugar real do poder.

A sociedade primitiva sabe, por natureza, que a violência é a essência do poder. Nesse

saber se enraíza a preocupação de manter constantemente afastado um do outro do

poder e a instituição, o comando e o chefe. [...] Forçando o chefe a mover-se somente

153

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.107.

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no elemento da palavra, isto é, no extremo oposto da violência, a tribo se assegura de

que todas as coisas permanecem em seu lugar, de que o eixo do poder recai sobre o

corpo exclusivo da sociedade e que nenhum deslocamento das forças virá conturbar a

ordem social. O dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que

ele deve à tribo, é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem de palavra

se torne homem de poder.

Vale aqui fazer referência a uma prática, que de certa forma a nossos olhos pode

parecer cruel e sem sentido, mas que para os membros destas sociedades faz todo

sentido. As tribos tupis-guaranis ainda hoje, assim como outras tantas tribos, também

possuem dentro de seu “receituário” ético algumas tradições interessantíssimas, que

Pierre Clastres soube identificar com precisão e maestria. Como forma de aplacar

qualquer desejo de grandeza pessoal, sonhos de realeza, autoridade e poder, as tribos

tupis-guaranis tem como tradição um rito de iniciação onde os jovens, para serem

plenamente admitidos no seio da grande comunidade, passam por um ritual de dor e

sofrimento. São supliciados em seus corpos, mediante atrozes sofrimentos, para que

jamais se esqueçam daquilo que constitui o essencial da vida de uma sociedade

primitiva: “Tu não és menos importante e nem mais importante do que ninguém [...]

Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso”154.

Mediante um ritual de iniciação, os jovens são instados a renunciarem a todo tipo de

poder pessoal que o faria sobressair-se sobre os demais. Desse modo as relações de

poder que se estabelecem são de extrema igualdade entre todos os membros. Trazem

agora em seus corpos, não uma lei imposta por um estado ou por um soberano, mas

uma lei inscrita na própria carne, que lhes proíbe a desigualdade.155

Assim, Pierre Clastres adverte que:

[...] As sociedades arcaicas, sociedades da marca, são sociedades sem Estado,

sociedades contra o Estado. A marca sobre o corpo, igual sobre todos os corpos,

enuncia: tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso. E essa lei não-

separada só pode ser inscrita num espaço não-separado: o próprio corpo. Admirável

profundidade dos selvagens, que de antemão sabiam tudo isso, e procuravam, ao

154

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.129-131. 155

As relações de poder no seio das sociedades tribais – sociedades primitivas – são sempre mediadas pela ética, isto é, por um código de normas pré-estabelecido, que de certa forma está culturalmente incorporado no seio da comunidade. Conhecido e querido por todos os membros, este código comportamental que é vivenciado espontaneamente por todos os membros da sociedade, pois tem neles próprios, seus principais agentes, sem que aja a necessidade de uma instância superior que, de prontidão, fique vigiando suas atitudes e comportamento em todos os seus detalhes, para poder, assim, infligir as devidas penalidades.

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preço de uma terrível crueldade, impedir o surgimento de uma crueldade ainda mais

terrível: a lei escrita sobre o próprio corpo é uma lembrança inesquecível.156

Esta é sem dúvida uma grande lição que as sociedades primitivas de ontem nos

deram, e que as muitas sociedades indígenas ainda presentes nos dão: Chefe sim, mas

sem poder. O poder real deve pertencer unicamente à sociedade. Poder de julgar e

excluir. Poder de fazer com que nada nem ninguém roube a seu bel prazer o poder de

voz e de comando. Penso que nossos políticos deveriam rever seriamente o exercício

de sua função e todos os ordenamentos jurídicos relativos a ela. Por acaso, não seria

isto a vivência plena do regime democrático? Bem, voltaremos a este tema na terceira

parte desta tese.

Este é o testemunho comum que pode ser identificado ainda hoje em muitas

sociedades indígenas, que ainda sobrevivem espalhadas por todo o mundo. Esta é,

como diz Clastres, sua principal e mais profundamente humana “propriedade

sociológica”. Mas, se para alguns antropólogos e sociólogos, adeptos de um

darwinismo social que veria apenas nestas sociedades embriões de um processo social

inicial, em quase nada evoluído, em comparação com as demais sociedades avançadas,

é de se indagar: por que ainda hoje existem sociedades com este perfil? O que teria

acontecido para que algumas sociedades não conseguissem reter o processo sua de

estatização?

Nesse sentido, Pierre Clastres, conclui seu pensamento sobre as sociedades primitivas,

afirmando que:

O exemplo das sociedades primitivas nos ensina que a divisão não é inerente ao ser do

social; que, em outros termos, o Estado não é eterno, que existe, aqui e ali, uma data

de nascimento. Por que foi que ele emergiu? A questão da origem do Estado deve ser

precisada desta maneira: mediante que condições uma sociedade deixa de ser

primitiva? Por que as codificações que conjuram o Estado falham em determinado

momento da história? Está fora de dúvida que unicamente a interrogação atenta do

funcionamento das sociedades primitivas permitirá esclarecer o problema das origens.

Talvez a luz lançada sobre o momento do nascimento do Estado iluminará igualmente

as condições de possibilidade (realizáveis ou não) de sua morte.157

É a partir das interrogações acima elencadas – por que foi que o Estado

emergiu? A questão da origem do Estado deve ser precisada desta maneira: mediante

que condições uma sociedade deixa de ser primitiva? Por que as codificações que

156

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.131. 157

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado..., p.110-111.

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conjuram o Estado falham em determinado momento da história? – que daremos

sequência em nossa pesquisa a partir do próximo tópico.

2.3 – Religião e poder nas sociedades primitivas

A exploração deste tema é pertinente e de grande relevância para o

desenvolvimento desta tese. Segundo Mario Stoppino:

[...] como fenômeno social, o Poder é uma relação entre os homens, devendo

acrescentar-se que se trata de uma relação triádica. Para definir um certo Poder, não

basta especificar a pessoa ou o grupo que o detém e a pessoa ou o grupo que a ele

está sujeito: ocorre determinar também a esfera de atividade à qual o Poder se refere

ou a esfera do Poder.158

Desse modo, o principal campo de atividade em que irei me debruçar para efetuar

essa análise do poder político é na esfera da religião, pois como já observamos

anteriormente, nas sociedades primitivas não existem instâncias organizadoras que,

separadas umas das outras, organizem a política, a economia, a religião ou qualquer

outra dimensão. Como veremos religião e poder sempre estiveram unidas, mas não do

mesmo modo e nem com a mesma intensidade. As religiões dentro das sociedades

primitivas, dentre uma série de funções, estabeleciam determinados limites nas

relações de poder entre a(s) divindade(s) e os membros das sociedades.

Diferentemente das sociedades onde o Estado seria uma realidade palpável, nas

sociedades primitivas a religião inspirava, (conforme foi visto no item 1.1.1) uma

segurança muito real e concreta, tendo em vista essa dimensão tão fundamental de

todas as sociedades: as relações sociais.

Instigadas e acossadas pelos fenômenos e contingências da natureza,

praticamente, todas as sociedades caracterizadas como primitivas, selvagens, tribais

ou arcaicas tinham um modo todo peculiar de encarar o poder.

É na observação e na incompreensão dos fenômenos naturais que estas

sociedades começam a imaginar que por trás das terríveis manifestações de força e

poder da natureza deveria haver uma ou mais divindades ou deidades controlando e

organizando o cosmo.

É nesse sentido que religião e poder vão sendo estreitamente relacionados. O

termo religião talvez tenha sido o nome dado a todo esse conjunto de fenômenos

158

Mario Stoppino, Poder..., p.934.

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ligados a um corpo de divindades, que através de diferentes ritos poderiam ser

controlados.

Georges Balandier trás em seu livro Antropologia Política o resultado de um

trabalho de pesquisa junto a diferentes tribos africanas no tocante à questão de como

essas sociedades selvagens se relacionam com o poder na sua dimensão religiosa, pois:

[...] O poder é sacralizado porque toda a sociedade afirma o seu desejo de eternidade

e receia o retorno ao caos como realização da sua própria morte. [...] Uma análise

rigorosa impõem que se considerem em conjunto estes dados fundamentais; de um

lado, a sacralização de uma ordem que é mostrada como necessária à segurança, à

prosperidade e à duração; do outro, o recurso, à força que permite ordenar, no pleno

sentido do termo, e dá testemunho do vigor do poder.159

Desse modo, será possível perceber que as noções que moldam e qualificam a

substância do poder, não tem apenas uma conotação política, mas também se

referem, explicitamente, ao domínio de um espaço que evoluindo aos poucos foi

sendo identificado como espaço sagrado, somente ocupado pelos oficiantes de direito.

No início eram os xamãs, os curandeiros, os feiticeiros e os mágicos que ocupavam

este importante espaço dentro das sociedades tribais, mas que, posteriormente, foi

sendo ocupado oficialmente pelos sacerdotes, enquanto que os anteriores oficiantes

foram sendo marginalizados e relegados a uma espaço religioso, digamos, de uma

classe e categoria bem menos inferior.

Para os Alur de Uganda, que se utilizam da noção de Ker como um dos principais

elementos de sua teoria política do poder, para se exercer uma boa liderança, se faz

necessário estar sob sua moção. Pois ker “designa a qualidade de ser chefe, o poderio

que permite exercer um domínio benéfico e que é a tal ponto necessário que os povos

que não o detêm devem desejar recebe-lo dos Alur”. Esse poder atuaria de forma a

organizar e fecundar a vida da sociedade. Três são os fatores que determinam o vigor

de sua necessária intervenção: “a continuidade da sociedade, a personalidade daquele

que utiliza desse poder (chefe) e a conformidade das relações mantidas com o

sagrado”. Nesse sentido, os chefes alur atuam como uma espécie de mediadores ente

a sociedade e a dimensão sobrenatural. São reconhecidos como “fazedores de

chuva”.160

Outro exemplo significativo é o dos Tiv, “povo numeroso da Nigéria,

organizador de uma sociedade em que o governo permanece ‘difuso’”. Swem é o

nome dado ao poder que tem sentido totalmente positivo, pois nele está a capacidade

159

Georges Balandier, Antropologia política, 2ª Edição, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p.107-108. 160

Idem, p.109-110.

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de estando em harmonia com a essência da criação manter a sua ordem. Segundo os

Tiv “a teoria política, na sua versão mais elaborada, é formulada na linguagem da

religião e da feitiçaria”. A tribo Tiv “sublinha a ambiguidade do poder e a ambivalência

da atitudes a seu respeito que levam a aceita-lo como garante de uma ordem propícia

às obras humanas (ele exprime a vontade dos deuses), sem deixar de o temer como

instrumento do domínio e do privilégio”.161

Marcel Gauchet faz uma interessante observação que também serve de

motivação à nossa reflexão:

Dívida de sentido: aquilo que durante milênios os homens reconheceram dever aos

deuses, o que as sociedades, mais ou menos desde sempre, acreditaram dever às

determinações dos outros, aos decretos do Além ou às vontades do invisível. Com a

expressão, visamos a forma mais determinante e ao mesmo tempo a razão mais geral

da crença religiosa. A ideia que gostaríamos de desenvolver aqui, é, com efeito, a de

que a chave do problema do Estado se deve procurar do lado das raízes profundas do

facto religioso. Compreender porque razão os homens se afirmaram universalmente

devedores, porque é que as sociedades pensaram obstinadamente que as suas razões

de ser dependiam de outra coisa que não delas próprias, é compreender porque foi

possível o Estado num dado momento do devir humano-social.162 (grifo em negrito é

pessoal)

Segundo Marcel Gauchet, o estado, enquanto principal instituição da sociedade

tem um problema grave, do qual a chave para a resolução desse problema está nas

raízes profundas do fato religioso. Primeiramente, é de se perguntar, que problema

seria esse ao qual a religião teria a chave? Uma tentativa parece ser a posição tomada

por Max Weber em seu livro: “Ensaios de sociologia” quando deixa bem claro que uma

das principais finalidades da religião, senão a principal, seria a de justificar e legitimar o

“monopólio do poder”163

Herbert Spencer citado por Marshall Sahlins declara que se o Estado e a religião

institucionalizada – Igreja – “são um só” na origem, quando a sociedade civil é

instaurada, o Estado conserva sempre parcialmente um caráter de Igreja, mesmo

quando se situa num longo processo de laicização. Desse modo Sahlins afirma que “a

imbricação do sagrado e do político é, nesses casos, já incontestável”.164 E isto ocorre,

161

Georges Balandier, Antropologia política..., p.110-111. 162

Marcel Gauchet, A dívida do sentido e as raízes do estado: política da religião primitiva em Pierre Clastres, Marcel Gauchet, Alfred Adler, Jacques Lizot, “Guerra, religião, poder”, São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1977, p.51. 163

Max Weber, Ensaios de sociologia, 164

Marshall Sahlins, Antropologia política..., p.106.

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todavia, porque conforme afirma o próprio Sahlins, desde sempre aquele exercia uma

função de liderança tinha seu poder político revestido de certa sacralidade.

É o tempo do princípio, o momento em que a realeza emerge da magia e da religião,

que melhor exprime esta relação, por intermédio de uma mitologia que constitui a

única “narrativa” desses acontecimentos e afirma a dupla dependência dos homens –

a que os deuses e os reis instauraram.165

Em segundo lugar, que chave é essa que a religião, guardando em seus recônditos,

proporcionaria à sociedade uma nova maneira de encarar essa instituição, tão antiga e

tão nova, chamada estado?

Como o próprio autor parece fazer alusão, o fenômeno religioso – fato positivo

atestado em toda parte desde os mais longínquos começos – teria em si a resposta

para a solução de algo que tem atormentado a vida de milhões e milhões de pessoas

ao longo de toda a trajetória humana. Segundo Gauchet:

[...] Existe uma necessidade inerente ao princípio deste pensamento da dívida

decorrente diretamente da lógica primordial que comanda a existência duma

sociedade. Remontemos, a partir do laço religioso existente entre os fundadores-

doadores sobrenaturais e os herdeiros-devedores, considerados enquanto vivos, até o

sistema das articulações originárias capazes de produzirem um espaço social. Face a

este universal social não é só a afirmação da alteridade religiosa que aparece como

instituição segunda e derivada, é também o modo de diferença da gestão do poder. O

que atingimos através da dívida constitutiva do sagrado, é, simultaneamente, a

natureza do dispositivo destinado a impedir a separação do poder e a razão do seu

desdobramento possível sob a forma do Estado. Noutros termos, ascendemos ao

ponto a partir do qual é possível surpreender o que há de comum nas sociedades sem

Estado e nas sociedades dominadas pelo Estado.166

Aqui está elencado o problema central, segundo a perspectiva de Gauchet: “o

modo de diferença da gestão do poder”. Em se tratando de sociedades primitivas,

chega a ser até estranho pensar que eles já tinham tal preocupação e isto nos leva à

constatação de que, de fato, tinham até certo ponto consciência política e histórica.

Mas, o fato é que, a mais ou menos 5.000 mil anos atrás sociedades arcaicas já se

detinham sobre a problemática do poder. E felizes daqueles que tiveram essa brilhante

intuição de perceber o grande risco que era para toda a sociedade, ter alguém sob o

qual fosse depositada autoridade suficiente para com esse poder, ter voz de comando

165

Marshall Sahlins, Antropologia política..., p.105. 166

Marcel Gauchet, A dívida do sentido..., p.51-52.

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sobre todos os demais membros da sociedade. Essa é uma realidade que ainda se

pode identificar ainda hoje em diversas comunidades indígenas espalhadas por todo

este nosso mundo, nas suas mais diferentes latitudes e longitudes. Daí o nosso

espanto, a nossa admiração diante de um dado tão original e historicamente tão

permanente: sociedades com chefe, sim, mas, chefe sem autoridade, isto é: sem

poder!

Nesse sentido Pierre Clastres trás uma inestimável contribuição, viabilizando a

compreensão de como a ligação entre religião e poder estariam na base da evolução e

advento da figura do Estado.

Existe, conforme hipótese lançada pelo autor, um único campo possível de escapar ao

controle da sociedade: é o campo relacionado ao domínio demográfico. Este campo

que “é regido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço de

desdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no biológico”167.

Naturalmente, a vida só poderia fluir com naturalidade para as sociedades primitivas

se as tribos fossem pouco numerosas. E o que se constata, de fato, é que:

[...] no mundo dos selvagens, é um extraordinário esfacelamento das nações, tribos,

sociedades em grupos locais que tratam cuidadosamente de conservar sua autonomia

no seio do conjunto do qual fazem parte [...] Essa atomização do universo tribal é

certamente um meio eficaz de impedir a constituição de conjuntos sócio-políticos que

integram os grupos locais, e, mais além um meio de proibir a emergência do Estado

que, em sua essência é unificador.168

Conforme relato dos cronistas franceses e portugueses que nos séculos XV e

XVI desembarcaram nessas terras ameríndias, constataram, com relação às tribos

tupis-guaranis, que sua taxa de densidade demográfica ultrapassava em muito a taxa

demográfica das tribos vizinhas, acarretando uma transformação na função dos

chefes, que de modo algum, já não eram mais chefes sem poder, mas “reis de

província” ou “régulos”.

Sendo, como vimos anteriormente, que a palavra, ainda que vazia de

autoridade, era o único “poder” concedido aos chefes tribais, foi perdendo em

importância para outra instância de palavra. Paralela à palavra dos chefes, havia

também a palavra do profeta, feiticeiro ou não, mas que também tinha a missão de

preservar a comunidade de afastar-se dos princípios de unidade e igualdade tão

fortemente valorizados por essas sociedades.

167

Pierre Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978, p.148 168

Idem, p.148

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Os karai, isto é, os profetas nas tribos tupis-guaranis, é que detinham essa

função. Segundo o testemunho de alguns textos de tribos tupis-guaranis que ainda

subsistem miseravelmente nas florestas do Paraguai, nos diz que “o lugar de

nascimento do mal, da fonte da infelicidade, é o Um”. Conforme Clastres afirma, este

era também o mesmo pensamento que atormentava as tribos de quatro séculos atrás.

A recusa do poder político dado a um único homem ou a própria recusa do estado, se

configuravam, conforme o texto, na personificação do mal.

Estes sabiam, pois, que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas

os seguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto, entre os tupis-

guaranis do tempo do Descobrimento, de um lado uma prática – a migração religiosa –

inexplicável se não vemos nela a recusa da vida em que a chefia engajava a sociedade,

a recusa do poder político isolado, a recusa do estado; do outro, um discurso profético

que identifica o Um como a raiz do Mal e afirma a possibilidade de escapar-lhe.169

Mas por azar ou por infortúnio do destino, a grande massa de índios tupis-

guaranis, na ânsia de fugir ao Um que ia se configurando à pessoa do chefe tribal,

seguiram o karai, isto é, o líder religioso. Desse modo, os profetas, armados apenas de

seu logos, determinaram uma grande mobilização dos índios: unificou na migração

religiosa a diversidade múltipla das tribos.170

Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o “programa” dos chefes! Armadilha da

história? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade primitiva à

dependência? Não se sabe. Mas, em todo caso, o ato insurrecional dos profetas contra

o chefe conferia aos primeiros, por uma estranha reviravolta das coisas, infinitamente

mais poder do que os segundos detinham.

Nesse ponto de nossa reflexão, se faz necessária algumas observações:

O que está em destaque do ponto de vista de Pierre Clastres não é

somente o fato das tribos lutarem decididamente contra a unificação do

poder político no chefe tribal, mas do religioso, através dos karai, estar

na origem do advento do estado.

Descoberta estupenda que, de certa forma, ilumina a questão sobre como teria

surgido a figura do estado. Não é o caso aqui de desenvolver este estudo, mas ele

serve como parâmetro em termos do objeto de pesquisa escolhido: as relações de

poder. Como já salientei anteriormente, o que será demonstrado é que as relações de

169

Pierre Clastres, A sociedade..., p.150-151. 170

Idem, p.151.

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poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, são a chave

para a compreensão do sentido da produção de muitos textos dentro do mesmo

período de crise e confronto social, bem como também, e não deixa de ser ilustrativo,

da realidade do regime político que estava sendo implantado naquele período, a

saber: o regime teocrático.

Assim como os karai, que servem de modelo para a afirmação da tese de que o

religioso está na origem de um regime estatal de governo junto às tribos tupis-

guaranis, os sacerdotes de Jerusalém, igualmente, estão no início do processo que

culminou naquilo que conhecemos pelo nome de judaísmo.

Concordo com Marcel Gauchet, quando afirma que a religião se constituiu para as

sociedades selvagens em dois pontos contraditórios:

Ponto positivo – fonte inesgotável de igualdade social.

Ponto negativo – recusa radical pelo próprio homem de seu poder

criador, de ser senhor e artífice de sua própria história.

Penso que neste aspecto, ao nível de conclusão de tese a que chegou Clastres, ele se

engana quanto à necessidade de sermos resolutamente contra o estado. É claro que

existem diversas configurações de estado e diante de algumas, principalmente as de

caráter despótico, autoritário e absolutista, como o regime fascista ou o regime

nazista, devemos ser frontalmente contra. Mas, existem outras situações, como

veremos mais adiante, em que o estado, dentro de determinados contextos,

atualmente, não somente é necessário, mas imprescindível.

Como afirma Marcel Gauchet:

E se nascesse entre os homens, após milênios de recusa em contemplar as origens da

submissão por aquilo que elas são, uma vontade sem precedente de afrontar as razões

do poder? Uma vontade não de conjurar a dominação mas de lhe dominar o princípio.

Uma vontade não de impedir o senhor, mas de se tornar senhor. De uma história de

recusa do poder, talvez estejamos em vias de passar a uma história da conquista da

verdade do poder – da tomada autêntica do poder pela conquista da sua verdade, a

única que, no fim de contas, pode impedi-lo de se exercer.171

Assim, como ficará demonstrado ao final desta tese, religião e poder, ou seja,

religião e política ou ainda, religião e estado, são incompatíveis de coexistirem numa

mesma instituição, é extremamente desastroso para qualquer sociedade ter essas

duas instâncias presentes numa mesma voz de comando ou autoridade.

171

Marcel Gauchet, A dívida do sentido e as raízes..., p.88.

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A história demonstra como essa união tem produzido mais malefícios do que

benefícios para a sociedade como um todo.

Capítulo III: as relações de poder

O fenômeno do poder pode ser analisado dentro de âmbitos e perspectivas

específicos, tanto pela psicologia quanto pela sociologia. A psicologia se esmera em

estudar o poder a partir do desejo ou ambição de poder que é uma característica bem

peculiar de todo ser humano, salvo algumas nuances bem característico. Já a

sociologia analisa as relações de poder que se estabelecem no âmbito da sociedade.

Minha opção é pela análise sociológica dos diferentes aspectos ou dimensões do poder

como fenômeno social.

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Conforme Luís Lorenzetti, “o poder é coextensivo ao fenômeno social. Em

outras palavras, o poder é qualidade própria das relações humanas”. Desse modo, se

afirma que toda relação social tem a dimensão do poder e que o poder é uma

realidade relacional, pois todo ato social é um exercício de poder. Neste sentido,

devido aos seus diferentes aspectos e dimensões, Lorenzetti diz “como é impróprio

identificar o poder, sem mais nem menos e exclusivamente, com o poder político”.172

Apesar de concordar plenamente com Lorenzetti quanto às ênfases que podem

ser adotadas na análise do conceito de poder, faço uma opção bem particular, pois

como meu objeto de pesquisa tem uma conotação nitidamente política, pois que

envolve nessa relação de poder dois grupos bem específicos da sociedade judaica, opto

por analisar o poder segundo as categorias sócio-políticas, pois esta é a que “torna

visível de modo mais marcante os traços que pertencem a todo poder”173.

Assumo também o ponto de vista de Mario Stoppino, que no famoso Dicionário

de Política organizado por Norberto Bobbio, diz que a palavra poder:

[...] designa a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode

ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenômenos naturais

[...].

Se o entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a

vida do homem em sociedade, o Poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceitual

pode ir desde a capacidade geral de agir, até à capacidade do homem em determinar o

comportamento do homem: Poder do homem sobre o homem. O homem é não só o

sujeito mas também o objeto do poder social.174

Desse modo, ambos os pontos de vista, tanto de Lorenzetti quanto de Stoppino

se reforçam, no sentido de que o viés adotado para o desenvolvimento desta tese,

requer necessariamente, a análise sócio-política do poder que um determinado grupo

social exerce sobre outro grupo social, no sentido de determinar o seu

comportamento pois, como afirma Stoppino “o campo em que o Poder ganha seu

papel mais crucial é o da política”175

Conforme alusão já feita anteriormente na introdução quanto à motivação desta tese,

ou seja, quanto às reais intenções que estão por trás de alguns dos mais importantes

172

Luís Lorenzetti, “Poder” em Francesco Compagnoni, Giannino Piana, Salvatore Privitera, Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.967 173

Idem, ibdem. 174

Mario Stoppino, “Poder”, em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, “Dicionário de Política”, 11ª Edição, Brasília, Editora UnB, 1998, p.933. 175

Idem, p.941.

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textos bíblicos escritos na transição do período persa para o período grego. As duas

citações de Lorenzetti, logo abaixo, são muito norteadoras.

O poder, por si mesmo, não tem nem terá fins bem precisos; terá os que lhe venham

da consciência. ‘O poder espera ser dirigido’ (R. Guardini). A questão ética do poder

consiste, pois, essencialmente na questão da finalidade do poder. Os fins, os objetivos,

as metas (que podem ser tão variados quanto os projetos humanos são o objeto e o

término do problema da avaliação do poder.176

Estreitamente ligada ao objetivo ou fim está a questão dos meios que precisam ser

assumidos: a perversão dos meios implica degeneração do fim. As perspectivas ou os

horizontes do poder – não só o político – dificilmente parecem conciliáveis com as

razões da ética; o poder tende à eficácia e, por isso, adota a astúcia, a coação e a

própria força.177

E é também à luz de mais um texto, ou melhor, de um texto que resume a ideia bem

precisa que utilizarei nesta tese e que servirá de norte em todo o seu

desenvolvimento:

A partir destas observações, vamos tentar propor um conceito de poder:

designaremos por poder a capacidade de uma classe social de realizar os seus

interesses objetivos específicos.178

Conforme Nicos Poulantzas afirma, este conceito de poder está relacionado

diretamente ao campo das práticas de classe e das relações entre as práticas de classe,

ou seja, ao campo da luta de classe. Sendo assim, pode-se asseverar que o quadro de

referência se torna a luta de classe de uma sociedade dividida em classes sociais.

Nesse sentido, Poulantzas ainda é mais explícito quando afirma que se por poder

entendemos a capacidade que uma determinada classe social possui de conquistar

seus interesses específicos, pode-se claramente concluir que:

[...] O poder de uma classe significa de início seu lugar objetivo nas relações

econômicas, políticas e ideológicas, lugar que recobre as práticas das classes em luta,

ou seja as relações desiguais de dominação/subordinação das classes estabelecidas na

divisão social do trabalho, e que consiste desde então em relações de poder.179

176

Luís Lorenzetti, “Poder”..., p.971. 177

Idem, p.971. 178

Nicos Poulantzas, Poder político e classes sociais, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora LTDA., 1977, p.100. 179

Nicos Poulantzas, O estado, o poder, o socialismo, Rio de Janeiro, Edições Graal Ltda., 1978, p.168.

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Portanto, é possível de se fazer uma análise do judaísmo ainda incipiente pelo viés das

relações de poder. A configuração do novo regime político que se foi estabelecendo

lentamente na província de Judá demonstra que estamos diante de um processo de

transição: do regime tribal, isto é, de grupos humanos – clãs – que que não estavam

divididos em classes sociais para um regime do tipo estatal, ou seja, nitidamente

dividido em classes.

Como ficará evidenciado, a classe sacerdotal jerusolimitana desenvolveu um projeto

bem arquitetado e se foi com a ajuda dos persas existem muitas controvérsias. Eles,

num primeiro momento e segundo um desígnio bem preciso, para enfrentar as

dificuldades de assentamento nas terras já ocupadas pelos campesinos, criaram

sucessivas listas genealógicas com a finalidade de justificar a tomada de posse destas

mesmas terras nas quais estavam estabelecidos os campesinos que ainda cultivavam

um modo de vida todo peculiar ligado às tradições tribais, isto é, às sociedades

primitivas, pois eram seus autênticos descendentes, para num segundo momento se

estabelecerem no controle da sociedade mediante uma legitimação de caráter

nitidamente religioso, por isso, conforme interpretação de Bourdieu, um projeto

nitidamente ideológico.

Assim se justifica todo um trabalho de fundamentação e equacionamento do tipo das

relações de poder que se estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe

sacerdotal jerusolimitana.

Pensar a questão das relações de poder é perguntar por sua origem, pela sua natureza,

por sua estrutura, por sua destinação ou intencionalidade, por seu fundamento e por

sua legitimidade.180

Partindo desta visão mais específica de poder, que é aquele que atua num âmbito

sócio-político, pode-se afirmar que o que estará como uma motivação de fundo é a

questão do interesse, tomado em sentido subjetivo, isto é, como estado de consciência

de quem exerce o poder. Para que exista poder, como veremos, é necessário que o

comportamento de um determinado grupo – classe sacerdotal – funde o

comportamento do outro grupo em questão, isto é, das sociedades tribais. Portanto,

pode-se dizer que o comportamento embasado teoricamente pela classe sacerdotal,

condicionou o comportamento do campesinato, isto é, tornou-se a sua causa.

Nesse sentido, Mario Stoppino assinala que “antes de tudo, quando referida às

relações de poder social, a noção de causa não implica numa perspectiva de

determinismo mecanicista. As relações entre comportamentos são relações prováveis,

não relações ‘necessárias’”.181

180

Norberto Bobbio, Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, 11ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Campus, 2000, p................. 181

Mario Stoppino, Poder..., p.936.

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Nesse sentido, veremos que o comportamento da classe sacerdotal se apoia num

poder social, embasado – justificado e legitimado – juridicamente nas escrituras que

com o passar do tempo alcançaram o status de livros canônicos, cujo fim, se mostra na

capacidade de determinação intencional do comportamento do campesinato. Para que

isso se efetue, a classe sacerdotal teve que contar com uma série de recursos como

instrumentos viabilizadores de seu poder: o principal foi a elaboração de uma corpus

de “escritura” apresentada como sendo de caráter divino, visando nitidamente a sua

apresentação, legitimação, prestígio, popularidade, riqueza e relações com outros

grupos de prestígio, tal como a aristocracia, que detinha o poder econômico. Como

veremos, não faltou habilidade à classe sacerdotal para levar á frente seu projeto de

dominação, mas para isso, pode contar também com o apoio e respaldo do império

persa.

Nesse sentido, o poder da classe sacerdotal foi se estabilizando e principalmente, se

institucionalizando. Segundo Mario Stoppino:

Os modos específicos pelos quais os recursos podem ser usados para exercer o Poder,

ou seja, os modos de exercício do Poder, são múltiplos: da persuasão à manipulação,

da ameaça de uma punição à promessa de uma recompensa. Alguns autores preferem

falar de Poder só quando a determinação do comportamento alheio se funda sobre a

coação. [...] Para além dos termos empregados, o que importa é formular uma noção

clara de determinação intencional ou interessada sobre a conduta alheia e identificar

dentro, dentro deste genus, a species particularmente importante de determinação do

comportamento alheio fundado sobre a coerção (coação). A coerção pode ser definida

como um alto grau de constrangimento (ou ameaça de privações) [...] No conceito de

coerção pode incluir-se também um alto grau de aliciamento (promessa de

vantagens).182

De fato, todos esses modos de exercício do poder poderão ser constatados nas

relações que se estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal

jerusolimitana: “da persuasão à manipulação, da ameaça de uma punição à promessa

de uma recompensa”. No documento sacerdotal (P) ou mais especificamente no livro

do Levítico, que tem como redatores, escribas membros do grupo sacerdotal

jerusolimitano, todas essas características poderão ser constatadas. Como poderá ser

verificada a coerção pode ser definida como o conceito que melhor define o tipo de

relação que se estabeleceu entre esses dois grupos.

No fundo da questão, com relação às motivações, estratégias e ações da classe

sacerdotal de um lado, bem como também, da aceitação e submissão passiva do

campesinato do outro, está a outra questão da função que a religião desempenhou

182

Mario Stoppino, “Poder”..., p.938.

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dentro desse contexto relacional quanto à função desempenhada pela religião como

instrumento de dominação. No próximo tópico será abordada a relação da religião

com o poder, como isso se processou no imaginário das sociedades primitivas ou

tribais. É esse também o objetivo desta tese: traçar uma trajetória do religioso à luz,

principalmente, dos escritos de Marcel Gauchet, tomando por base como objeto de

pesquisa, o estudo de um caso particular no contexto do judaísmo ainda incipiente que

se transfigurou na conflitualidade das relações de poder entre o campesinato judaíta e

a classe sacerdotal jerusolimitana.

3.1 – Conclusão

O objetivo desses capítulos iniciais foi desenvolver o conceito de religião,

política e relações de poder que servirão de fundamentação ao desenvolvimento do

tema desta tese: análise histórico-crítica das relações de poder entre o campesinato

judaíta e os sacerdotes do templo de Jerusalém.

Ontem como hoje, religião e política ainda fazem parte da pauta de muitas

agendas, não somente eclesiais, mas também de políticos, que procuram por todos os

modos e meios alcançarem seus objetivos mesmo que à custa de muito fisiologismo.

O poder ainda é algo que encanta líderes de ambas realidades, tanto religiosa

quanto política e é nesse sentido que procurarei dar sequência a este estudo,

demonstrando que no Judaísmo tem-se a possibilidade de identificar essa união de

poderes numa mesma instituição.

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II – Parte

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Capítulo IV – Contextualizando o Judaísmo

Nesta segunda parte, adentro, de fato, aos textos bíblicos, com a explícita

intenção de auscultá-lo como se dele pudesse recolher elementos verídicos da história

das relações de poder entre a classe sacerdotal e o campesinato. Mas, pelo fato mesmo,

de como já observado no capítulo anterior, minha opção intelectual segue na linha dos

estudiosos minimalistas, isto é, daqueles que levando em grande conta os dados

advindos dos mais diversos campos das ciências concluem que se torna cada vez mais

complicado, para não dizer, impossível, querer escrever uma história do antigo Israel a

partir dos textos bíblicos.

Mas, alguém pode objetar: por que então, como afirmado acima, se utilizar dos

textos bíblicos como uma fonte de referência? A resposta é simples: apesar de sua quase

que total não-historicidade, e pelo fato dos textos terem se tornado normativos para o

judaísmo, isto é, foram criados e utilizados com uma finalidade bem precisa: serviram

de um modo todo especial, – mas não única e exclusivamente – aos interesses da classe

dominante, ou seja, da classe sacerdotal jerusolimitana.

Portanto, penso ser possível lançando um olhar crítico, ou como salienta

Fernando Cândido da Silva, tendo um olhar de exegeta orgânico, isto é, daquele que

desenvolveu a capacidade de ler nas entrelinhas dos textos o sofrimento e a exploração a

que são e foram submetidos as classes subalternizadas ao longo da história.183

Em verdade, os textos de que farei uso, são como a moldura de um quadro que

ainda está por ser pintado. Na moldura se tem o projeto ideológico imposto pela classe

dominante a toda a província de Judá. Consiste numa moldura que se destaca pelo peso

e rigidez do material utilizado. Pintado com as cores fortes da sedução encanta aos

espectadores menos atentos, pois como num jogo de espelhos só se vê numa quase

infinidade de imagens aquilo que os olhos são capazes de reter. É como Marta

Harnecker, falando de Marx, argumentava sobre sua originalidade quanto ao modo

tradicional de ver e interpretar a realidade: “A originalidade de Marx ficaria reduzida à

183

Fernando Cândido da Silva, Uma aliança abominável e per/vertida? Anotações subalternas sobre o arquivo deuteronômico, UMESP, São Bernardo do Campo, 2011, p.53. (Tese de Doutorado)

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inversão da concepção de Hegel. Segundo a formulação do próprio Marx, ele teria

„posto sobre os pés o que em Hegel andava de cabeça para baixo‟”184

.

Alguém pode argumentar que se este conjunto de textos não tivesse sido criado

Israel jamais teria se tornado uma nação, sua identidade jamais teria sido forjada e que,

na verdade, os textos deram, acima de tudo, coesão social. Mas, é de se perguntar: qual

foi o preço pago por esse golpe literário? Quem lucrou e quem perdeu com a invenção

destas histórias?

De fato, como diz o ditado, o fim não justifica os meios, pois a perversão dos

meios implica na degeneração do fim. De fato, é bem isto que tentarei demonstrar.

Minha intenção ao fazer uso dos textos bíblicos é a de caracterizar o tipo de relação de

poder que se estabeleceu entre a classe sacerdotal jerusolimitana e o campesinato

judaíta. É tentar ler pelas entrelinhas do próprio texto aquilo que o texto não diz. Pelo

reverso do verso ter acesso ao anverso. É como num trabalho de garimpo, mergulhado

nas águas turvas do texto, peneirar essas pérolas a que o tribalismo por séculos foi

submetido. Ver o grande prejuízo que tiveram, principalmente, no tocante aos seus mais

nobres princípios e valores morais. É como diz Rigoberta Menchú Tum:

Para responder a essa pergunta, é fundamental considerar as condições em que vive a imensa maioria de nossa população mundial, suas profundas reivindicações que fundamentam as lutas e esperanças de um futuro melhor. A concentração dos poderes em poucas mãos condena os pobres a serem mais pobres e torna mais evidente a urgência de retomar os sagrados valores que deram origem à nossa humanidade; isto é em essência, o que reivindicamos os povos indígenas e os povos originários do mundo [...] O respeito aos valores e direitos individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade e a validade do equilíbrio como requisitos indispensáveis de um mundo justo e pacífico.185

Assim, são essas as questões que agora me motivam a essa empreitada científica.

Não menosprezo em nada os trabalhos e pesquisas já realizados a nível literário, e

havendo necessidade, com toda certeza, lançarei mão do material disponível que

conseguir ter acesso. Mas, como já é possível perceber, essa tese tem um caráter

nitidamente de revisão histórica, devido aos inúmeros problemas que surgiram face aos

184

Marta Harnecker, Conceitos elementais do materialismo histórico, 1973, p.208. 185

Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo, Editora Ática, 1996, p.13.

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dados provenientes, principalmente, das pesquisas arqueológicas186

. Procedo a uma

espécie de desconstrução daquela compreensão tradicionalmente aceita com relação à

historicidade da maioria dos textos que compõe o conjunto dos livros do Antigo

Testamento.

Conforme o próprio tema salienta, esta tese quer submeter diferentes textos

produzidos no período persa que tornam claras as relações de poder entre o campesinato

judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, a uma análise histórico-crítica. Para isso,

lanço mão do método histórico-crítico. Conforme trabalho coordenado por Horácio

Simian-Yofre pode-se fazer as seguintes distinções quanto a este método:

Método: designa um conjunto de procedimentos que permitam acesso mais objetivo a

um objeto de pesquisa. Por isso, deve ser compreensível, imitável e controlável com

elementos ao alcance das mãos de quantos tem certa familiaridade com a disciplina a

que se dedicam.

Histórico: o termo implica em reconhecer que os textos bíblicos foram concebidos em

tempos idos, que se desenvolveram num processo histórico e que, por conseguinte, a

relação com aquele tempo tem provavelmente algo a dizer sobre o sentido de tais textos,

embora possam ter ainda vida e sentido atuais.

Crítico: esta palavra, tal como se costuma interpretar, significa estabelecer distinções e

com base nelas poder julgar os diversos aspectos do texto ligados à história: o processo

de constituição do texto, a identidade do autor, o tempo da composição, a relação com

outros textos contemporâneos, e a referência do conteúdo do texto à realidade

extratextual (por exemplo, a história política, social e religiosa que o texto subentende).

Esse aspecto “crítico” está ligado, talvez necessariamente, a aspectos ideológicos.

Certos pressupostos políticos ou religiosos, gerais ou próprios de determinado período

da história, favorecem determinada interpretação dessas realidades.187

No tocante ao aspecto crítico, vale lembrar as linhas traçadas por Martin

Dibelius, Karl L. Schimidt e Rudolf Bultmann188

no que tange à inspiração divina do

texto bíblico. Para Bultmann a bíblia não é palavra de Deus inspirada em nenhum

sentido objetivo, sendo somente produto de antigas influências históricas e religiosas e

186

Ver Amihai Mazar, Arqueologia na terra da bíblia: 10.000-586 a.C.,São Paulo, Paulinas,2003, 554p.; Israel Filkenstein, A bíblia não tinha razão, ...... Lester L Grabbe, The Priests in the Prophets: The Portrayal of Priests, Prophets and Other Religious Specialists in the Latter Prophets, London, T & T Clark International, 2004, 224p; A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, 471p.; History of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 2 – The Coming of the Greeks: The Early Hellenistic Period (335-175 BCE), New York, T&T Clark International, 2008. 187187

Horácio Simiam-Yofre (coord.), Metodologia do Antigo testamento, São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.74. 188

Bultmann é considerado pelos acadêmicos como um dos maiores exegetas do século XX. Chamado por muitos como “teólogo da demitização” ou “desmitologização”, Bultmann inovou em muito os estudos da bíblia.

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que deve ser avaliada como qualquer outra literatura religiosa antiga. De fato, são tantas

contradições, erros, fantasias históricas e, principalmente, ideologias, que chega a ser

impossível qualquer tentativa de sustentar a inerrância e inspiração dos livros bíblicos.

Conforme afirmou o Prof. Loyse, do Instituto Católico de Paris, os conceitos de

inerrância e inspiração são conceitos definitivamente superados189

.

Neste sentido, me aterei mais a alguns aspectos do método histórico-crítico que

são extremamente relevantes para a consecução dos objetivos propostos. A

determinação do Sitz im Leben ou Sitz in der Literatur dos textos que serão analisados,

são muito importantes no que tange á crítica do gênero literário e à crítica das tradições.

Segundo Simian-Yofre:

A determinação da situação sociocultural ou somente literária do gênero literário em

pauta é o mais interessante e delicado da crítica do gênero literário. O pressuposto dessa

determinação é a hipótese de que todo texto está ligado de alguma forma a

circunstâncias culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas. Não há textos de tal

modo neutros que não acusem suas “intenções” de modo muito concreto.

[...] A determinação da situação sociocultural de um gênero literário apoia-se em

acurada crítica da forma de diversos textos, com particular atenção a seu horizonte

literário, e em conhecimento suficiente do universo do texto.

O universo do texto é o conjunto das circunstâncias do mundo extrabíblico (momento

histórico-político, situação econômica e social, tendências religiosas e culturais) que

ajudam a entender seu significado e intenção.190

Como poderá ser constatado, textos como o Pentateuco e a Obra Historiográfica

do Cronista (OHC) não são textos isolados uns dos outros, mas, muito pelo contrário,

estão profundamente interligados a ponto de possibilitar a determinação em última

instância de suas reais intenções redacionais, isto é, a ideologia que está por trás como

pano de fundo. Eles se enquadram dentro da categoria de um texto literário com forte

caráter etológico, pois querem determinar o desenlace do contexto social e político do

presente através de situações históricas inventadas sobre o passado.

Também como afirma Simian-Yofre, no texto acima citado, ter clareza quanto

ao universo do texto e ao conjunto das circunstâncias do mundo extra bíblico (momento

histórico-político, situação econômica e social, tendências religiosas e culturais), nos

permite verificar a hipótese de que o Judaísmo ainda nascente dos séculos IV e III a.C.,

189

Citado por Horácio Simian-Yofre, Metodologia..., p.74 190

Horácio Simian-Yofre, Metodologia..., p.102-103.

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que tem seu fundamento, principalmente nos livros da OHD, em Ez 40-48, na OHC e

nos livros do Pentateuco, teve como patrocinador, nada mais nada menos, do que o

próprio império persa, com sua política imperial de controle dos povos subjugados.

Outro aspecto que é interessante observar, é o fato de que, segundo Frank

Crusemann, a possível causa da crise a que chegou a exegese atualmente, está em que

não se deu muita atenção à forma final do texto bíblico. Levar em conta a compreensão

global do conjunto é fator decisivo na compreensão das partes. Conforme Crusemann

salienta, apesar do constante retorno desse questionamento global do conjunto, é

impressionante constatar como os mesmos métodos ainda continuam a dominar a

pesquisa. Nesse sentido ele se pergunta: será que estes aspectos da exegese são

suficientes para nos levar à compreensão dos textos? E responde: Não, pois as forças

que suscitaram a formação dos textos atuais devem ser levadas em conta com a mesma

prioridade, tanto no plano político como no social.

Só sobre este pano de fundo se poderá esperar compreender realmente o processo

literário como mostra a espinhosa questão: a quem atribuir a última palavra, nesta

questão, às vozes sacerdotais ou deuteronomistas?191

É interessante perceber que a grande intuição de Crusemann quanto a ter

presente a totalidade do texto, isto é, não somente alguns aspectos de seu corpus total,

sem a qual, fica impossível descobrir sua intenção de fundo que se reflete através de

uma análise do jogo de forças em que se encontra a sociedade dentro da qual foi escrito

determinado texto.

Em meu horizonte de pesquisa, estabeleci as relações de poder entre o

campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, no período pós-exílico, como

meu objeto privilegiado de pesquisa, pois acredito ser ela a chave que pode nos dar a

compreensão da motivação de fundo que estava na base do processo de redação de boa

parte do conjunto dos livros do Antigo Testamento: o Pentateuco, a Obra

Historiográfica do Cronista (OHC – 1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias) e Ezequiel 40 –

48, dentre outros livros de menor expressão, tais como o livro de Joel, Malaquias, etc.,

sem deixar de lado a Obra Historiográfico Deuteronomista (OHD – Josué, Juízes, 1 e 2

191

Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá. Prolegômenos à interpretação de sua forma final” em Alberty de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2002, p.273-274.

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Samuel e 1 e 2 Reis, que serviram de base para a redação da OHC), que nos auxilia na

reconstrução da trajetória do tribalismo “israelita”.

Nesse sentido, todo trabalho de pesquisa desta tese, que tem no método

histórico-crítico, seu principal instrumento de aproximação e análise de realidades

sociais, será feito segundo os critérios e categorias do materialismo histórico, ou seja, da

teoria marxista da história, pois tenho a firme convicção de que a teoria inicialmente

desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels e posteriormente aprofundada por

grande número de estudiosos é extremamente profícua no tocante ao estudo e análise

das relações de poder numa sociedade dividida em classes sociais, pois como afirmou

François Houtart com relação a Marx, e Engels:

[...] Retomando uma hipótese já formulada antes deles, segundo a qual a história é a

história da transição de formas de organização social sem classes às sociedades de

classe [...] condições e formas de transição das sociedades não diversificadas que

evoluem de múltiplas formas no sentido de formas distintas de Estado e de sociedades

de classe.192

De fato, é bem isto que pode ser evidenciado com a ascensão do judaísmo. Um

processo bem claro de transição de uma sociedade marcada pela igualdade, isto é, não

dividida em classes sociais – tribalismo – para uma sociedade marcada pelo surgimento

do Estado, ou seja, por uma sociedade dividida em classes sociais, onde o poder

religioso foi o grande protagonista de toda uma grande e radical metanoia, não somente

em seu aspecto religioso, que foi dominante, mas principalmente, nas demais dimensões

da vida, pois como afirma Lester L. Grabbe: considerações econômicas não podem ser

claramente separados do debate da sociedade e da administração da província de Judá, e

até mesmo da religião.193

4.1 – Contexto histórico do objeto de pesquisa

Não é meu objetivo proceder a uma completa reconstrução histórica do período

persa, apesar de ser neste período que as relações de poder entre o campesinato judaíta e

a classe sacerdotal jerusolimitana se intensificaram mais e mais, mas pontuar alguns

192

François Houtart, Religião e modos de produção pré-capitalistas, São Paulo, Edições Paulinas, 1982, p.13-14. 193

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.189.

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acontecimentos que são relevantes para a compreensão do tipo, natureza e fundamento

em que essas relações foram estabelecidas.

Como afirmou de saudosa memória, o nosso grande amigo e mestre Milton

Schwantes:

Eu acho que o maior desafio é o pós-exílio. É a parte mais interessante em relação ao

Novo Testamento [...] esse é o ponto mais importante que nós temos pela frente para

estudar e que, hoje em dia, está criando “reboliço” na ciência e vai ter seus reflexos no

Novo Testamento. Este estudo é que está gerando grandes descobertas na área da

Bíblia. [...] É o ponto mais difamado pela teologia tradicional, porque para um bom

cristão o Antigo Testamento vai até o exílio, e depois pega aquela turbina a jato e

aterrissa em Belém, passando por cima de cinco ou seis séculos. O que fica entre o

exílio e Belém é mais ou menos inexistente [...] Portanto o redescobrimento deste

mundo intermediário é a grande conquista destes últimos tempos.194

Assim também pensa Lester L. Grabbe, quando afirma que o período persa foi o

período mais importante para o desenvolvimento do pensamento e da prática judaica

desde a antiguidade até o presente, pois entender os acontecimentos deste período é

chave para a compreensão de todos os desenvolvimentos do judaísmo. Uma

compreensão das forças e dinâmicas, presentes no segundo templo são essenciais para a

compreensão das condições de sobrevivência do campesinato judaíta.195

4.2 – Os persas e sua política imperial de controle social.

Para respondermos a muitas perguntas relacionadas ao objeto de pesquisa, se

faz necessária uma análise mais detalhada, não somente do contexto social, mas,

principalmente, do contexto histórico, isto é, das relações que Judá desenvolveu com o

império persa.

Os persas, diferentemente de outros povos, como por exemplo, assírios ou

babilônios, desenvolveram um estilo dominação política totalmente diferente. Herbert

Donner escreve que fora o rei Dario quem se ocupara dessa estruturação interna do

império. Dividido em sátrapias (do persa xshatrapavan, que quer dizer: “protetor do

194

Milton Schwantes, “Aprendendo a ler a escritura” em Simpósio, nº 41, São Paulo, ASTE, 1998, p.xxxx 195

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and judaism in the second temple period: volume 1 – Yehud: a history of the Persian Province of Judah, London, T&T Clark International, 2004, p.2.

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domínio”) com seus devidos representantes, o império persa mantinha o controle

político, militar e econômico ao longo de todo o seu império. As satrapias, com seu

governador local, desfrutavam de certa autonomia em relação com a sede do império.

Judá pertencia à 5ª satrapia, isto é, à satrapia localizada na província de Samaria.196

Variando de intensidade ao longo dos 200 anos de domínio na região, pode-se

dizer que, o domínio político, social e econômico sobre Judá, manteve-se sempre

presente, apesar de que, com a nomeação de um governador próprio para a região,

Judá gozou de certa autonomia, particularmente no campo religioso.

Para manter esse controle social, político e econômico, o império persa

desenvolveu um sólido esquema, que tinha alguns instrumentos ou mecanismos, que,

estrategicamente, permitiam ao império, controlar e arrecadar tudo aquilo de que

necessitavam para sua manutenção.197

Segundo Lester L. Grabbe, que tem constantemente asseverado contra a ideia

de que o império persa não promovia nenhuma espécie de domínio pela religião nas

províncias. Sua estrutura administrativa estaria preocupada com a arrecadação de

impostos e com as receitas provenientes das províncias, e não ocupando-se

profusamente em financiar templos e cultos ou isentando povos ou grupos específicos

de impostos. A maioria das fontes existentes que parecem apoiar a isenção de

impostos especiais são aquelas escritas por judeus para reivindicar privilégios especiais

para si.198

Mas, por outro lado, o mesmo Grabbe afirma que os impérios antigos tinham

pouca compreensão da teoria econômica e por isso, podem não ter tido uma

196

Donner afirma que o território total de domínio do império persa foi dividido em 23 satrapias, sendo que para o Oriente Próximo, foram importantes quatro satrapias: “1. Babairu (= Babilônia, i.é., Mesopotâmia); 2. Atura (= Assíria, no sentido de Síria, em acádica: Eber Nari, em aramaico imperial: ‘Abar Nah

ara, “transeufrates” (ao pé da letra: “além do rio”, visto a partir da Pérsia e da Mesopotâmia, i.

é., o corredor siro-palestinense; 3. Arabaya ( = Arábia do Norte); 4. Mudraya (= Egito). As satrapias tinham que pagar tributos regulares e cuidar do sistema de correios”. Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos: volume 2 – da época da divisão do reino até Alexandre Magno, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2000, p.450. 197

Passo a citar 6 mecanismos de controle social e político, habilmente desenvolvidos pelo império persa e assinalados por Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura como limite da identidade comunitária, São Bernardo do Campo, UMESP, 2001, p.212-224, em sua Tese de Doutorado. 198

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.145.

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consciente política econômica, se não, algo de muito rudimentar. Se a economia

romana foi subdesenvolvida, quanto mais os reinos persas e gregos. O poder imperial

antigo parece ter tido dois principais interesses: impostos e serviço militar. Sua

“política econômica” era simplesmente uma maximização de receita a partir de um

ponto de curto prazo de vista, não fazer o que hoje poderíamos considerar como

investimento de longo prazo.199

4.2.1 – Ruralização

Segundo levantamento arqueológico feito em Judá em 1990, por Kenneth

Hoglund, esta região teria passado por um grande povoamento durante o período de

domínio persa.200 Surgiram muitas vilas, pequenas comunidades agrícolas, que

produziam víveres em quantidade suficiente, visando o abastecimento alimentício do

império.201

Já C.E. Carter em 1999 apontou que os dados de Hoglund necessitam de uma

maior correção à luz dos novos inquéritos e publicações. Segundo Carter houve sim,

uma queda significativa no número de assentamentos em Judá no período persa, e

não um aumento como pensou Hoglund. No geral, o retorno de alguns exilados não

proporcionou impacto significativo sobre a arqueologia ou a demografia.202

Por isso, podemos supor que com o retorno dos exilados, toda a problemática

relacionada a quem pertencia por direito as terras em Judá, não foi logo de início

enfatizada com o maior problema, como pensava, por exemplo, John Bright.203

Segundo Marcos Bailão, “o problema maior não era a posse da terra, mas o

destino do que era produzido nela. Isto realmente provocou profundas mudanças no

199

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.190-191. 200

Kenneth Hoglund, “The achademic context” em Philip R. Davies, Second temple studies: 1 Persian Period, Sheffield, JSOT Press, 1991, p.57-60. 201

Conforme Hougland à p.59, citado acima, o império persa se considerava dono absoluto de todas as terras conquistadas, sentindo-se no direito de fazer o que bem entendesse. 202

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.203. 203

John Bright, História de Israel, 3ª Edição, São Paulo, Paulinas, 1985, p.495.

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meio da sociedade, principalmente na primeira fase do período de dominação

persa”.204

Portanto, pode-se afirmar que não houve uma política persa de ruralização na

província de Judá. Mas, Hoglund está correto quando afirmou que a população de Judá

viveu principalmente em pequenas aldeias sem muros e teve um nível de economia de

subsistência.

4.2.2 – Militarização e incremento comercial

Outro dado importante advindo das pesquisas arqueológicas é quanto ao

grande número de fortalezas construídas, no início do séc. V a.C., ao longo de toda a

região da Palestina. Segundo Paula McNutt, estas fortalezas foram construídas ao lado

das principais rotas comerciais que cortavam a região.205

Com o objetivo, não só de se impor militarmente e controlar qualquer possível

rebelião, mas de ter absoluto controle de tudo o que era produzido, bem como do

tráfego de caravanas de mercadores que transitavam pela região, é que foram

construídos dezenas de fortalezas.

Segundo Kenneth Hoglund, citado por Marcos Bailão, o deslocamento de

tropas, de uma região para outra, visando ocupar as recém-construídas fortalezas,

fazia com que pessoas de diferentes etnias e culturas, fossem transferidas, provocando

um grande processo de enculturação, tanto de um lado, quanto do outro.206

4.3 – Reconstruindo partes da história

Como salientado por Milton Schwantes na citação acima, o período persa se

torna, não só muito interessante, mas acima de tudo, por demais relevante, pois é no fim

desse período que, por exemplo, o livro do Pentateuco ganhou sua redação final, a Obra

204

Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura..., p.217. De fato, como afirma Bailão, “o destino do que era produzido” na terra é que se tornou o grande entrave. Por isso, em momento oportuno trabalharei o conceito marxista do “materialismo histórico”. 205

Paula McNutt, Reconstructing the society of Ancient Israel, Londres, Westminster John Knox Press, 1999, p.185-186. 206

Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, Doença impura..., p.218.

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Historiográfica do Cronista (Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas) é escrita assim como

outros livros do Antigo Testamento.207

E são livros que retratam a história desse mesmo

período em questão, suas lutas e desafios. Mas, como afirma Sandro Gallazzi:

O primeiro esforço de busca narrar uma história unívoca, para todos e para sempre, é o

de eliminar contradições, grupos, povos. Trata-se de um “genocídio” ideológico, para

evitar dúvidas e discussões.

Trata-se de demonstrar que o grupo que “hoje” está ao poder, esteve no poder desde

“sempre” ou, de alguma forma, desde sempre, esteve caminhando nesta direção.

Os outros? Ou estão “tranquilamente” relacionados com o grupo no poder ou não são

dos “nossos” ou, simplesmente, não existem.208

De fato, como constata Sandro Gallazzi, um exemplo claro desse jeito de narrar

a história, eliminando contradições, grupos e povos, é o que foi feito pelo redator da

OHC. Precisamente no livro de Crônicas pode-se detectar esta estratégia literária, mas

que, para nós hoje, não passa de uma forma de esconder o verdadeiro sentido que está

por trás do texto. Vejamos o que o redator de Crônicas nos apresenta quanto ao tempo

após a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor em 587 a.C..

Igualmente todos os chefes dos sacerdotes e do povo multiplicaram suas

prevaricações, imitando todas as abominações das nações, e manchariam a

Casa que o Senhor consagra a si em Jerusalém [...] até o furor do Senhor

contra seu povo chegar a tal ponto que já não havia mais remédio (2 Cr 36,14-

16).

Deus entregou todos em suas mãos. Nabucodonosor levou para Babilônia todos

os objetos do templo [...] incendiaram todos os palácios, destruíram todos os

objetos precisos [...] deportou para a Babilônia todo o resto da população que

escapara da espada (2 Cr 36,17-20a).

Todos tiveram que ser escravos e servir a ele e a seus filhos até o

estabelecimento do reino dos persas (2 Cr 36,20b).

Conforme a profecia de Jeremias, a terra repousou durante todos os dias da

desolação, até que se passassem setenta anos (2 Cr 36,21; Jr 29,10).

No Edito de Ciro, também, se generaliza: Todo aquele que pertence a todo seu

povo, que seu Deus esteja com ele e que se dirija para lá (2 Cr 36,23b).

Conforme observa Sandro Gallazzi, na história escrita pelo redator da OHC

diferentes grupos sociais são deixados no esquecimento:

207

Por exemplo: Dêutero e Trito Isaías, Ezequiel, Joel. 208

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita: sua história e ideologia, Biblioteca de Estudos Bíblicos, Macapá, 2002, p.15.

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O grupo “pobres da terra” que naquele dia receberam vinhas e campos

(Jr 39,10).

Jeremias com todos os levitas que ficaram com Godolias em Masfa (Jr

40,6).

Os “chefes” do campo que se convenceram a servir ao rei dos Caldeus (Jr

40,7-10).

Os “judaítas” que tinham emigrado para Amom, Moab e Edom e que

voltaram para ficar com Godolias (Jr 40,11).

Os 80 homens de Siquém, Silo e Samaria que vieram apresentar oblações

e incensos na casa de Iahweh (Jr 41,4-5).

Os soldados caldeus que ficaram em Masfa (Jr 41,3b), as “filhas do rei”

(Jr 41,10) e, também, os “eunucos” da corte (Jr 41,16).

Desse modo, para o redator do livro de Crônicas, nunca existiu um “resto em

Judá” (Jr 40,11) e muito menos um “resto de Judá” (Jr 40,15). Para a história narrada

em Crônicas, o único resto que sobrou da destruição imposta pelo exército babilônico

foi o que Nabucodonosor levou para o exílio (2 Cr 36,20).

Outro aspecto que deve ser enfatizado é o fato de que houve o que podemos

chamar de um “processo de retribalização”. Após a destruição de Jerusalém pelas

tropas babilônicas, Nabuzardã, comandante da guarda e general das tropas de

Nabucodonosor, deixou que o campesinato empobrecido tomasse novamente, posse

da terra (cf. 2 Rs 25,12). Esta mesma situação é descrita pelo profeta Jeremias no

capítulo 40,10b-12. Diz ele:

[...] Quanto a vós, fazei a colheita do vinho, das frutas e do azeite, fazei provisões e ficais nas cidades que ocupais. Da mesma forma, todos os judaítas que se achavam em Moab, entre os amonitas, em Edom e em todas as outras terras, souberam que o rei de Babilônia tinha feito concessões a Judá e nomeado comissário a Godolias, filho de Ahiqâm, filho de Shafan. Eles voltaram então de todos os lugares onde tinham sido dispersados. De volta à terra de Judá, para junto de Godolias, em Mispá, fizeram uma colheita de vinho e de frutas, uma colheita super abundante.

Esta passagem do livro do profeta Jeremias nos deixa entrever o tipo de

situação política e social que se desenvolveu após a destruição de Jerusalém, bem

como também e, principalmente, da deportação do restante da elite que sobrevivera

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ao massacre babilônico: os camponeses recuperaram a posse da terra e voltaram a

produzir livremente, sem a interferência ou ingerência da figura do estado.

É o que poderíamos falar de uma verdadeira e autêntica reforma agrária em

pleno século VI a.C. Tem início nesse exato momento histórico, conforme concordam

Martin Noth, Milton Schwantes e Norman K. Gottwald209, um processo de

retribalização, isto é, o campesinato volta a reviver seus nobres valores e seu

tradicional modo de vida fundado no tribalismo.

É interessante perceber que enquanto o “povo da terra” e os “habitantes da

terra” são levados para a Babilônia, são os “pobres da terra” que passam a ocupar a

terra deixada pelos antigos dominadores (elite: rei, raínha, príncipes, chefes, dignitários,

servos, notáveis [povo da terra], ferreiros e serralheiros). Com Godolias os “pobres da

terra” voltaram a ser o “povo da terra” sob todos os ângulos.210

O grande efeito sentido

por esses que agora voltaram a possuir a terra, isto é, dos camponeses retribalizados, é o

fato de que eles não mais precisaram pagar tributos, seja na forma de ofertas ou dízimos

ao templo de Jerusalém, bem como também ao rei, monarca descendente de Davi,

porque estes já não existiam mais. Esta situação possibilitou aos camponeses reviverem

uma situação economicamente estável, bem como também, voltarem a cultuar seus

deuses em seus diferentes templos ou santuários, que por um tempo, haviam sido

proibidos, devido ao processo de centralização do culto no templo de Jerusalém

promovido pela reforma de Josias antes da invasão e destruição do exército babilônico

em 597 e 587 a.C..

Passado o tempo do exílio, com a ascensão do império persa, muitos daqueles

que outrora haviam sido exilados foram “convidados” a retornarem a Judá. O fim do

exílio se deu por volta de 539 a.C., quando Ciro, sem resistência alguma por parte dos

babilônios, penetrou em suas cidades e se autoproclamou como o novo rei.

Diferentemente dos assírios, que segundo resumo de Herbert Donner, tinham

uma estratégia de guerra, cujo objetivo era:

[...] eliminar, tanto quanto possível, a vida própria dos povos subjugados através de

saques e destruição, através de deportações implacáveis, através de altos tributos e de

um regime duro. Eles haviam almejado uma massa de povos cosmopolita o mais

209

Martin Noth, Storia d’Israele, Brescia, Paideia, 1975, p.354-359; Milton Schwantes, Sofrimento e esperança no exílio, São Paulo, Paulinas, 1987, p.30-32; Norman Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, São Paulo, Paulinas, 1988, p.397-399. 210

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.19.

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homogênea possível, sob liderança assíria. Peculiaridade, história, vida cultural,

religiosa e cúltica dos povos sujeitados lhes haviam sido profundamente suspeitas. Sua

tentativa de pacificar o império estava fundada na violência. Essa política fracassara211

Os aquemênidas estavam decididos a não repetir essa política de domínio pela

violência. Basearam sua política de domínio e controle dos povos subjugados num

eficiente esquema de manutenção da ordem através da divisão do império em diferentes

regiões chamadas de satrapias tendo á frente de cada uma destas regiões, um chefe

(sátrapa). Este sátrapa tinha a missão de manter os interesses do império na região em

que comandava que se resumiam em dar certa autonomia aos povos subjugados e

efetuar as devidas cobranças de tributos. Esta tolerância abrangia tanto os aspectos

culturais e como os religiosos, que só eram reprimidos diante de manifesta rebelião

política visando sua total libertação. Em função dessa estratégia política, os persas

estabeleceram o aramaico como a língua oficial em todo o império. Como veremos,

trechos de Esdras (4,8 – 6,18) e Daniel (2,4 – 7.28) foram escritos numa variante do

aramaico oficial.

Ainda em relação às estratégias ideológico-literárias do redator da OHC, mais

precisamente o livro de Crônicas, é visível o fato de que redator tenha deixado de lado

mais um grupo. Nenhuma menção foi feita com relação à corte de Joaquim, depositário

que era das últimas esperanças daviditas (ver 2 Rs 25,27-30; Jr 52,31-34).

Afinal, como afirma Sandro Gallazzi:

[...] no tempo da redação destes livros, estas esperanças já tinham histórica e

definitivamente morrido: o templo reinava como único e absoluto centro de poder; o

Sumo Sacerdote era o único príncipe no poder. Só uma parte do povo ainda ansiava

messianicamente pelo “filho de Davi”!212

Como poderá ser constatado, tanto o grupo social designado como “campesinato

judaíta” quanto o grupo social designado pelos sacerdotes do templo de Jerusalém,

constituíram-se nos dois principais grupos dentre outros, foram os grandes protagonistas

211

Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos: Volume 2 – da época da divisão do reino até Alexandre Magno, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2000, p.445. 212

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.16.

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do Judaísmo ainda incipiente, respectivamente, o grupo dominado e subjugado frente ao

grupo dominador.

É bom salientar também que para Ezequiel, os camponeses que ficaram e

tomaram posse da terra, não eram seus verdadeiros proprietários, mas acusados de

fazerem “violência”. Além disso, pelo fato de terem retornado à antiga religiosidade

foram condenados por terem praticado um culto idolátrico, isto é, um culto não

conforme ao proposto pela reforme josiânica (Ez 33,24 – 29).

Na verdade, o grupo de Ezequiel, se assim podemos chama-los, propugnou

como sendo o verdadeiro Israel, somente aqueles que foram exilados. A eles Ezequiel se

dirigiu chamando-os de “casa de Israel”, não somente como forma de condenação por

tudo o que havia acontecido (2,3-7; 3,4-9; 5,4; 12,6.8; 14,4-11) mas também, durante o

próprio período do exílio como o grupo sobre o qual repousava toda a esperança de

restauração e reconstrução de Jerusalém (28,24-25; 34,30; 33,7.10; 36,10.22.37;

39,22.25.29).

Assim, pode-se concluir que tanto Jeremias quanto Ezequiel tinham pontos de

vista teológicos diferentes. Para Jeremias “resto” eram os pobres camponeses que

ficaram e tomaram posse “novamente” da terra (Jr 40,11.15). Para Ezequiel, “resto”

eram os exilados (Ez 5.4-17; 11,17-21). Enquanto Jeremias incluía em seu projeto de

reconstrução tanto os exilados como os remanescentes que ficaram, Ezequiel, os

excluiu, afirmando que só os exilados eram a verdadeira “casa de Israel”. Aqui estão

postos os termos que geraram os grandes conflitos. Segundo Sandro Gallazzi, resto de

Israel não é somente uma questão teológica, é, também, uma questão econômica e

política, pois foi ao redor destas questões que os diferentes grupos se enfrentaram na

luta pelo poder.213

Nitidamente influenciado pela Obra Historiográfica Deuteronomista (OHD),

Ezequiel tinha o templo e o palácio, assim como no passado, como instituições para

sempre estabelecidas, elementos privilegiados da estrutura sócio-política futura. O

palácio continuará sendo lugar do julgamento e o templo lugar da “oferenda

obrigatória” e da “melhor parte dos dons”, em todas “as coisas santas” (Ez 20,40).214

213

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.32. 214

Idem, p.34.

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Outro grupo que sobrevive no exílio é aquele cujas palavras ecoaram por meio,

talvez, de um seu representante: o Dêutero-Isaías. Nada tem do grupo da elite a quem se

dirigia Ezequiel. Não é a “casa de Israel”. Uma leitura bem atenta nos dá capacidade de

perceber a presença ativa de mulheres no meio desse grupo. Sandro Gallazzi caracteriza

esse aspecto feminino da seguinte forma:

Não só a profunda ternura da linguagem, a enorme capacidade de compreender e

perdoar, a simplicidade e a delicadeza de um relacionamento sempre reatado, mas a

experiência da mulher, sobretudo da mulher que passou pelos horrores indescritíveis da

guerra, são transformadas em “lugar teológico”, gerador de vida e de teologia.

É a experiência da mulher que ajuda a compreender e descrever a situação do povo no

exílio: “desfilhada... estéril... rejeitada” (Is 49,21). “mãe que se pensava repudiada, sem

o ser” (Is 50,1); “mãe abandonada por seus filhos que não querem estender-lhe a mão”

(Is 51,18); “estéril ... abandonada com filhos... com uma mocidade vergonhosa...

experimentando o opróbrio da viuvez” (Is 54,1.4).

O assim chamado Dêutero-Isaías, ao que tudo indica, é radicalmente contra

templo e o palácio. Uma nova posição teológica. De agora em diante o profeta prevê um

tempo novo, tempo sem mediadores entre Iahweh e seu povo. Existe uma única citação

que faz referência ao santuário em Is 44,28215

, mas, foi com certeza uma adição

posterior, uma profecia do tipo ex eventu, pois em Is 43,22-28 tem-se um texto

mostrando claramente a posição deste grupo quanto a impotência e inutilidade dos

sacrifícios e ofertas.

E sonhando com um retorno triunfal, Dêutero-Isaías prevê tudo como se fosse

um novo êxodo, pois a volta seria marcada por uma “distribuição das propriedades

devastadas, para restaurar a terra” (Is 49,8). Mas, igualmente aos outros grupos que

estão percebendo a oportunidade de retornar a Judá, este grupo também enfrentará o

problema daqueles remanescentes que tomaram posse das terras desocupadas. Segundo

Sandro Gallazzi, o fato de terem a seu favor uma abertura bem maior, pra não dizer,

universalista, este grupo conseguirá na base do diálogo se entrosar com o os “pobres da

terra”, o que é testemunhado pelo Trito-Isaías.216

Passemos agora a definir de modo bem criterioso e em forma de tópicos, alguns

conceitos que serão utilizados nos capítulos seguintes. 215

Ver Biblia de Jerusalém, nota a, p.1434. Ver também Carroll Stuhlmueller, “Deutero-Isaia” em Grande Comentário Bíblico, Brescia, Queriniana, 1973, p.479. 216

Sandro Gallazzi, A teocracia Sadocita..., p.36.

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4.4 – O tribalismo israelita

Tradicionalmente se tem a ideia de que quando se fala em tribalismo em Israel,

logicamente, logo se pensa no período pré-estatal, pois de acordo com a Bíblia

Hebraica, este seria o período em que as tribos, depois da libertação da escravidão no

Egito e da caminhada por 40 anos pelo deserto, teriam finalmente entrado na posse da

terra prometida. Posteriormente a estes eventos, viria o período dos Juízes e após

este, o período monárquico. Tudo aconteceria entre o início do século XIII e final do

século XI a.C..

No que toca ao aspecto de ter elegido o tribalismo como um dos destaques

estando diretamente implicado no meu objeto de pesquisa – relações de poder –

levanto alguns questionamentos, que procurarei responder, no início deste tópico:

Dentre os diferentes tipos de tribalismo espalhados por todo o mundo

de que tipo ou modo poderia ser classificado o tribalismo israelita?

Qual a característica que melhor define o tribalismo israelita?

Será que o regime tribal teria desaparecido após a ascensão do período

monárquico?

O que representou para o tribalismo israelita o regime estatal?

Que relação existe entre o tribalismo israelita e o campesinato judaíta?

São conceitos intercambiáveis?

Abaixo seguem algumas definições clássicas de diferentes estudiosos ligados

aos estudos da exegese bíblica, que levando em conta o caráter plenamente histórico

do texto bíblico, conceituam o termo tribo da seguinte forma:

Segundo Henri Cazelles, a tribo é a mais antiga realidade sociológica, o que não

exclui, logicamente, um núcleo familiar. Na ótica bíblica, beney Israel são os

“filhos de Israel”. Para Cazelles, os beney Israel se constituem nas doze tribos

que se ligam de uma maneira ou outra a um epônimo que tem o nome de

Israel217. Segundo alguns historiadores as tribos gozavam de uma grande

autonomia, como no caso das tribos de seminômades do Oriente Próximo

Antigo. Estudos mais recentes demonstram que as tribos eram na origem uma

217

Estela de Mernepta

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unidade étnica.218 “Se uma tribo pode compreender várias ‘casas’ ou ‘famílias’

que descendem de um antepassado comum pelo sangue ou por ficção jurídica,

isso tanto mais acontece quando se trata de agrupamentos de tribos”.219

Para G. E. Mendenhall, citado por Roland de Vaux, tribo não seria:

[...] producto de una descendencia genealógica; es una unidad social que transciende el grupo del poblado: sus miembros le prometen lealdad e ella les asegura en cambio su protección colectiva. No había oposición entre cultivadores y pastores, sino entre poblado e ciudad.220

Para Norman K. Gottwald que vê na teoria antropológica atual ou mais

especificamente, na etnologia um instrumental indispensável para se efetuar

uma análise da estrutura social das sociedades tribais, citando Marshall Sahlins,

que fala dos desafios e dificuldades de se tentar caracterizar o modo tribal de

vida, afirma:

Portanto, o que pretendo fazer – que é formular um plano generalizado da cultura tribal – é francamente, arriscado e acaso fútil. Porém, é tamanha a magia do “tipo ideal” do sociólogo que, fundamentada como ela está sobre a ignorância real ou pretensa da diversidade empírica, inadequada como ela é e enquanto representação de realidades complexas, rudimentar como ela pode ser enquanto processo intelectual, é capaz de fornecer notáveis penetrações no caso particular. Penso que o modelo geral de cultura tribal aqui proposto, auxilia alguém a entender as tribos particulares – ao menos, um número regular delas.221

Sendo assim, Gottwald postula que as tribos não sendo uma entidade fixa que

poderia ser localizada em qualquer lugar é sim, um tipo ideal caracterizado por um

agrupamento de características, que heuristicamente, é vantajoso para analisar

sociedades específicas, mas com diferentes graus, pode-se dizer, de tribalismo. Ou

218

Henri Cazelles, História política de Israel: desde as origens até Alexandre Magno, São Paulo, Edições Paulinas, 1986, p.71. 219

Idem, p.79. 220

Roland de Vaux, Historia antiga de Israel: II – asentamiento en Canaan y período de los jueces, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1975, p.26. 221

Norman K. Gottwald, As tribos de Yahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250 – 1050 a.C., São Paulo, Edições Paulinas, 1986, p.303.

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ainda, que “sociedade tribal é um sistema no qual o todo é inerente e é o que

determina as partes”.222

Morton Fried citado por Gottwald vê também no tribalismo israelita uma

espécie de perfil tipológico de sociedade cujas formas sociais se desenvolvem no

decorrer do tempo, bem como nas etapas de complexidade:

[...] um sistema limitado de relacionamentos, cujas estruturas, os mecanismos que ligam os membros dos grupos polares componentes, são sodalícios, associações de corte transversal dedicadas a afiliações de parentesco, graus de idade, sociedades secretas, congregações rituais e festas cerimoniais.223

A partir desses questionamentos iniciais, das noções acima elencadas, de

conceitos que a própria tradição bíblica teve o cuidado de preservar e principalmente,

à luz de alguns dos mais recentes dados da pesquisa passo a refletir sobre o tribalismo

israelita, que será enfocado em quatro partes.

4.4.1 – Revisitando o período pré-monárquico.

Num excelente trabalho de síntese, Airton José da Silva224 esquematiza o

recente debate atual a respeito do surgimento do antigo Israel – tribalismo israelita –

onde R. K. Gnuse225, com efeito, vê todo esse contexto como um processo de evolução

pacífica que ele classifica, por razões didáticas, as similares, porém não idênticas

teorias, em quatro categorias:

222

Norman K. Gottwald, As tribos de Yahweh..., p.304. 223

Idem, p.305. 224

Airton José da Silva, A História de Israel na pesquisa atual em Jacir de Freitas Faria (org), História de Israel e as pesquisas mais recentes, Petrópolis, Vozes, 2003, p.43-87. 225

R K Gnuse, No other Gods: Emergent monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997, 392p.

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4.4.1.1 – Retirada pacífica226

Os pesquisadores que concordam que no processo de formação do antigo Israel

houve uma retirada pacífica estão: Joseph Callaway, David Hopkins, Frank Frick, James

Flanagan, Gosta Ahlstron e Carol Meyers. Analisando os resultados das escavações,

principalmente em Ai e Khirbet Raddana, território de Efraim, observou-se uma incrível

continuidade cultural entre os habitantes das cidades-estado cananéias das planícies

com os povoados israelitas das colinas, quanto às cerâmicas, técnicas agrícolas,

construções e ferramentas. Outro detalhe relevante, para estes especialistas, consiste

no fato de que os assentamentos israelitas teriam surgido após um colapso das

cidades cananéias. Tendo desenvolvido mais amplamente esta categoria, Gosta

Ahlstron, onde contesta a tese de Gottwald de uma “retribalização” que teria se

originado de uma revolta de camponeses, baseada na evidência cultural dos materiais

recolhidos, constata seu apreço por esta teoria. Já Carol Meyers defende a

possibilidade de Israel ter surgido após um violento ataque de pragas que teria

devastado as plantações nas planícies, fazendo com que muitos dos agricultores se

deslocando para as montanhas, a fim de fugir desta situação, intensificaram a

agricultura mediante o desenvolvimento das técnicas de construção de cisternas e

terraços.

4.4.1.2 – Nomadismo interno227

Os que apoiam esta teoria são C.H.J. de Geus, Volkmar Fritz e Israel Finkelstein.

Geus concorda com a ideia de que os israelitas, antigos hapirus das cartas de Tell el-

Amarna, sendo etnicamente unidos e morando nas montanhas, vivenciaram uma

espécie de “simbiose cultural” com os habitantes das planícies. Posteriormente, com o

226

Cf. Joseph Callaway, Village Subsistence at Ai and Raddana in iron Age I em H Thompson, The answers lie bellow: essays in honor of Lawrence Edmund Toombs, Lanham, University Press of America, 1984; David Hopkins, The highlands of Canaan, Georgia, Almond Press. 1985; Frank Frick, The formation of the state in Ancient Israel: a survey of models and theories, Georgia, Almond Press, 1988; James Flanagan, David’s social drama: a hologram of Israel’s early iron age, Georgia, Almond Press, 1988; Gosta Ahlstron, A history of Ancient Palestine, Minneapolis, Fortress Press, 1993; Carol Meyers, Discovering eve: Ancient Israelite women in context, New York, Oxford University Press, 1988. 227

Cf. CHJ de Geus, The tribes of Israel: an investigation into some of the presuppositions of Martin Noth’s amphictyony hypothesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1976; V Fritz, Die Entstehung Israels im 12 und 11 Jahrundert v. Chr., Sttutgart, Kohlhammer, 1996; Israel Finkelstein, The archaeology of the Israelite settlement, Jerusalem, Israel Exploration Society, 1988; Israel Finkelstein, N A Silberman, The bible unearthed: archaeology’s new vision of ancient Israel and origin of its sacred texts, New York, The Free Press, 2001.

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colapso das cidades-estado, estes expandiram seus domínios. Já Volkmar Fritz, que

anteriormente defendia a teoria de Albretch Alt, de uma infiltração pacífica, quando de

seus trabalhos no norte do Neguev percebeu uma grande semelhança, isto é, uma

simbiose entre as culturas israelita e cananéia. Chamou a atenção de Fritz a casa de

quatro cômodos, que segundo ele, representou uma evolução arquitetônica em

relação às casas construídas na planície cananéia. Outro elemento de destaque, foram

os objetos de cerâmica e metal encontrados. Eles deixaram entrever que estes

israelitas não eram verdadeiros nômades, mas que estiveram em contato com os

habitantes das planícies. Para Fritz estes israelitas eram os hapiru ou os shasu dos

textos egípcios, que teriam dado origem também a Moab e Edom.

Israel Finkelstein, como principal defensor desta teoria, conclui que os proto-

israelitas eram uma espécie de “nômades internos” que vivendo ao redor das cidades-

estado, ao longo de toda a Idade do Bronze, com o declínio destas, começam a

sedentarizar-se, ou seja, buscam na agricultura o necessário para sua sobrevivência.

“Eles teriam se assentado em grande número na região montanhosa de Efraim e, a

partir dali, se espalhado como defendia Alt, para o norte e para o sul da região”228.

4.4.1.3 – Transição ou Transformação pacífica229

De acordo também com a posição de que a região passou por uma

transformação, pesquisadores, como Lemche, acreditam que a migração da planície

para as colinas “pode ter sido causado não pela ausência, mas pelo aumento da

pressão egípcia *...+ em sua exigência de mais tributos e mais trabalho forçado”230.

228

Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 43-87. 229

Cf. NP Lemche, Early Israel: anthropological and historical studies on the Israelite society before the monarchy, Leiden, Brill, 1985; Ancient Israel: a new history of Israelite society, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995; The Canaanites and their land: the tradition of the Canaanites, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1991; Die vorgeschichte Israels: von anfangen bis zum ausgang des 13, Sttutgart, Kohlhammer, 1996; The Israelites in history and tradition, Kentucky, Westminster John Knox, 1998; William Stiebing, Out of the desert? Archaeology and the conquest narratives, Buffalo, Prometheus, 1989; Robert Drews, The end of the Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe ca. 1200 B.C., Princeton, Princeton University Press, 1993; Robert Coote e Keith Whitelam, The emergence of early Israel in historical perspective, Georgia, Almond Press, 1987; Rainer Albertz, A history of Israelite religion in the old testament period, 2 vols, Philadelphia, Westminster Press, 1994. 230

Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.61.

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Já William Stiebing vê nas mudanças climáticas ocorridas na região o fator

principal para o declínio da cultura urbana nas planícies da palestina e,

consequentemente, com o estabelecimento nas montanhas, o seu pleno

desenvolvimento posterior.

Robert Drews defende que “os povos do mar que invadiram a região não eram

simples migrantes, mas mercenários treinados e com armamento superior”231, além de

terem massacrado as populações que habitavam a região plana, forçaram os demais a

se refugiarem nas montanhas, influenciando assim, numa mudança ética e cultural.

Tanto Roberto Coote quanto Keith Withelam, vê o surgimento de Israel como

parte de um processo de integração entre os habitantes das cidades-estados com os

habitantes das colinas. Com o colapso do comércio na região plana, sendo este o fator

mais significativo, os dois grupos populacionais se viram na necessidade de uma ajuda

mútua, que teve como consequência o aumento populacional nas montanhas.

Rainer Albertz “faz uma espécie de síntese de várias escolas, indo de Albright a

Lemche [...] fala de digressão, processo pelo qual o colapso do comércio internacional

forçou os habitantes das cidades a se deslocarem para os povoados das montanhas e

aí se desenvolverem”.232

4.4.1.4 – Amálgama pacífico233

A aposta de R. K. Gnuse “que aqui se alinha, é que este grupo de

pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os pressupostos

teóricos do debate atual”.234

Para Baruk Halpern, que foi um dos primeiros pesquisadores a sugerir que o

processo de assentamento nas montanhas, teria sido fruto de uma complexa interação

de diferentes grupos, acredita ter sido o grupo, oriundo do Egito, que trouxe a crença

231

Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.62. 232

Idem, ibdem. 233

Cf. Baruch Halpern, The emergency of Israel in Canaan, Chico, CA, Scholar Press, 1983; William Dever, Recent archaeological discoveries and biblical research, Seattle, University of Washington Press, 1990; Thomas L Thompson, Early history of the Israelite people from the written and archaeological sources, Leiden, Brill, 1992; The mythic past: biblical archaeology and the myth of Israel, New York, Basic Books, 1999; Donald Redford, Egypt, Canaan and Israel in ancient times, Princeton, Princeton University Press, 1992. 234

Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.63.

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em Yahweh. Para ele, todos estes grupos tinham em comum a necessidade de

participarem ativamente do comércio que, tanto pela planície quanto pelo caminho

dos reis, era viabilizado. Halpern afirma que “o Israel histórico não é o Israel da Bíblia

Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o Israel bíblico”235.

William Dever defende a hipótese de que Israel tenha se formado pelo afluxo

de diferentes contingentes sociais, que se reunindo nas montanhas, aos poucos

adquiriram uma identidade diferente em relação aos habitantes das planícies. Para

Thomas L. Thompson toda a população palestinense não passou por nenhuma

profunda alteração ao longo de alguns milênios. Defensor de uma história da Palestina

ao invés de se tentar escrever uma história de Israel, pois esta, só teria surgido

enquanto estado, muito tempo depois, por volta do século VIII, quando das incursões

do império assírio. Para ele, “toda a história bíblica do império davídico-salomônico e

dos reinos divididos de Israel e Judá é pura ficção pós-exílica”236.

E concluindo, Donald Redford, acredita que no centro da sociedade que se

desenvolveu nas montanhas da Palestina estava um grupo de pastores que

sedentarizando-se deram origem ao futuro Israel. Também apoia a tese de que

pastores shasu vindos de Edom teriam trazido consigo o culto a Yahweh, tornando-se

assim, um grupo distinto das populações cananéias da planície.

4.4.2 – As anciãos (chefes) tribais pediram um rei (1 Sm 8,1–7)

O redator da OHD e a cena em que os anciãos (chefes tribais?) procuram Samuel

para pedir-lhe um rei.

A lógica da monarquia, isto é, das relações de poder que se estabelecem entre o

monarca, príncipe ou rei, é totalmente contrária à realidade tribal. Se um dos aspectos

que melhor caracteriza as sociedades primitivas ou tribais é o fato dos chefes não terem

poder, o que teria acontecido para que, conforme a narrativa em 1 Sm 8,1-7 dizer que

todas as tribos clamassem a Samuel para que um rei governasse sobre elas?

235

Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p. 63. 236

Idem, p.65.

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No fundo, ao que tudo está a indicar, é mais uma invenção do redator para tentar

amenizar o peso da culpa que teria recaído quase que totalmente sobre os ombros da

monarquia.

Na ótica do Deuteronomista alguns reis (monarquias), principalmente os do

norte que sempre foram avaliados negativamente (“Fizeram sempre aquilo que é mal

aos olhos do Senhor!”), bem como também uns poucos reis de Judá, assim como o

próprio povo (tribos), todos foram culpados pelas desgraças que sobrevieram a Israel.

4.4.3 – A situação do tribalismo israelita durante o período de domínio

assírio

Penso que quando se fala em “tribalismo israelita” deva-se ter em mente, de

acordo com a opção de um “amálgama pacífico”237 da região montanhosa da Palestina,

nos séculos que precederam ao nascimento do Reino Norte-israelita. Para Baruk

Halpern, que foi um dos primeiros pesquisadores a sugerir que o processo de

assentamento nas montanhas, teria sido fruto de uma complexa interação de

diferentes grupos.

De posse desses dados referente à pesquisa arqueológica nas principais cidades

situadas no reino norte-israelita (item 4.4.1), é possível traçar um perfil aproximado

das relações de poder a que foram submetidos todos os habitantes do reino norte-

israelita durante o período da dinastia amrida.

A existência de impressionantes complexos fortificados, templos, palácios,

sedes administrativas em diferentes cidades – Megido, Hasor, Dan, Siquêm, Samaria –

deixam entrever que os dinastas amridas desfrutaram de uma profícua autonomia e

poder político, econômico e militar. Pois, para construir e sustentar este, digamos

“mini-império”, eles necessariamente gozavam de muita autoridade.

Mas, com relação ao nosso objeto de pesquisa, que são as relações de poder,

estabelecidas dentro da sociedade norte-israelita, que perfil podemos traçar desta

237

Airton José da Silva, “A história de Israel na pesquisa atual”..., p.63: A aposta de R. K. Gnuse “que aqui se alinha, é que este grupo de pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os pressupostos teóricos do debate atual”.

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sociedade, a partir destes inúmeros dados levantados pela pesquisa arqueológica

citados acima?

O que de fato está em jogo, é a política social do estado norte-israelita. Será

que a grande massa de homens e mulheres – oriundas do tribalismo – utilizados para

dar suporte à construção desse mini-império, eram ainda pessoas livres e felizes, ou

foram, devido à “campesinagem”, isto é, à passagem do tribalismo para o

campesinato, transformados em homens e mulheres oprimidos e explorados?

Diante destes fatos, levantamos algumas questões: será que a sociedade que

viveu sob a dinastia dos amridas, particularmente, o campesinato, era um grupo social,

plenamente satisfeito com seu modo de vida? Desfrutavam eles também de toda a

riqueza por eles mesmos produzida? As suas casas eram como as casas daqueles que

moravam nas cidades? Será que estes campesinos, tiveram autonomia suficiente para

viver sua religiosidade? Aliás, que tipo de religiosidade será que eles tinham nesse

período? Ou será que foram obrigados pelo novo estado a adotar uma nova religião?

Como pode ser intuído, sabemos que a monarquia norte-israelita precisou, não

somente de mão de obra especializada, mas, principalmente, de mão de obra barata.

Quantos não devem ter sido transformados em escravos? Pensemos um pouco:

quantas pessoas (homens somente?) não seriam necessárias para fazer aqueles

enormes muros de arrimo (casamatas)? E, isso, sem falar dos aterros, pois na sua

maioria, como medida de segurança, as cidades foram construídas no topo das colinas,

obrigando os construtores, necessariamente, a aumentar o espaço do platô. Pelo que

sabemos, naquele tempo ainda não existiam carregadeiras, mas todo o trabalho de

aterro foi realizado somente mediante o esforço humano. Foram toneladas e mais

toneladas de terra para preencher os espaços vazios. E o que dizer das pedras

utilizadas na construção dos muros de casamata. Quem as talhava, quem as

transportava até o lugar em que seriam utilizadas?

Bem, essa situação nos leva a tirar algumas conclusões. Ao que tudo indica, o

regime de serviço utilizado durante o período da dinastia amrida não foi muito

diferente do regime que era imposto pelas cidades-estados no período do Bronze.

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Portanto, todos, com exceção daqueles que moravam nas cidades – setor

administrativo – viviam num regime de certa escravidão, pois deveriam se submeter a

isso ou teriam que fugir, como outrora fizeram, para outras regiões. Mas, qual região?

Sabemos que naquele momento existiam grandes forças regionais que ansiavam pela

hegemonia política e militar de toda aquela região. Aram-Damasco, no sul da Síria, a

leste Amom e Moab, ao sul (sudeste) o império egípcio e na costa mediterrânea,

algumas cidades-estados filistéias. Todos, sem exceção eram fortes rivais da dinastia

amrida.

Disso concluímos que as relações de poder a que são submetidos homens e

mulheres oriundos do tribalismo são transformados em camponeses, que viviam nas

periferias das cidades, bem como nas vilas e aldeias, desfrutavam somente da

possibilidade de dizer sim ao regime imposto e, assim, continuar sobrevivendo, à custa

de muita dor, sofrimento e morte, pois não havia mais nenhum lugar para onde ir, a

não ser fugir.

Diferentemente da história narrada pelo redator da OHD, na verdade, “os 120

anos da história israelita depois da queda da dinastia amrida foram, de fato, uma era

de dramática mudança social no reino, de instabilidade econômica e de constante

alteração das estratégias para enfrentar a ameaça do império assírio e sobreviver”.238

Os pesquisadores arqueológicos até bem pouco tempo atrás afirmavam que

estas cidades, em verdade foram as grandes cidades construídas por Salomão e que,

posteriormente foram destruídas na invasão do faraó Sesac em 926 a.C. Mas, a

evidência da cerâmica, dos paralelos arquitetônicos e das datas estabelecidas pelo

carbono C14, comprovam que tudo isso aconteceu por volta do ano 835 a.C.

E com base nessa nova evidência histórica, o historiador Nadav Naaman

concluiu que a destruição feita por Hazael nas regiões do norte de Israel foram de

grande proporção e, que essas cidades, durante aquele período, nunca mais voltaram

a serem as mesmas. É bem provável, segundo o historiador que Hazael tenha

culminado seu avanço até as imediações da capital, Samaria.

238

Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.274.

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Com a entronização de Jeroboão II como rei de Israel, mais a estabilidade

política na região, pois, Aram-Damasco já não tinha a mesma liberdade e

impetuosidade de antes, isso fez com que Israel alçasse voo na direção do progresso e

do crescimento, sempre, é claro, às custas de muita escravidão, miséria e sofrimento

por parte dos camponeses.

Se formos nos ater somente ao que diz o redator da OHD, poucos são os

detalhes a respeito do governo de Jeroboão. Agora é preciso lançar mão novamente

do que diz a pesquisa arqueológica, o livro do profeta Amós que exerceu seu

ministério profético durante o governo de Jeroboão II.

Conforme Finkelstein, a nova fase de prosperidade, que começou por volta de

800 a.C., aparentemente foi lembrada por longo tempo como a “era de ouro do Reino

do Norte”, mesmo na memória do povo de Judá. Portanto, pode-se afirmar que a

razão mais provável para esse novo impulso de crescimento foi devido à agressão

assíria a Damasco e à impetuosa participação de Israel na crescente economia mundial

assíria.

É muito ilustrativo o texto seguinte, onde Finkelstein resume as pesquisas feitas

nas cidades de Dan e Hazor, que depois de terem sido tomadas por Hazael e

reedificadas, foram novamente retomadas por Israel, e assim, destruídas e

reconstruídas.

Em Dan, a estela da vitória de Hazael parece haver sido esmagada, e seus fragmentos reutilizados numa construção posterior (onde seriam encontrados por arqueólogos cerca de 2800 anos mais tarde), quando israelitas construíram ali uma cidade. Em Bethsaida, a estela com a deidade no estilo arameu foi, da mesma maneira, intencionalmente aprumada e reinstalada de cabeça para baixo. E aproximadamente no mesmo período Hazor foi conquistada, destruída e reconstruída; pode não ser uma completa coincidência que as inscrições hebraicas apareçam em Hazor nessa fase de construções, pela primeira vez.239

A partir da análise dos dados levantados pela pesquisa arqueológica, nas

regiões ao sul de Samaria foram encontradas evidências de extraordinária expansão da

produção de azeite de oliva, bem como também, diversos assentamentos construídos

com a finalidade do cultivo de oliveiras.

239

Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.283.

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Conforme as figuras abaixo são possíveis ter uma ideia da estrutura montada

para a produção de azeite, em larga escala:

Figura 15 - Plano de sítio produtor de azeite

nas áreas montanhosas a noroeste de Jerusalém240

Figura 16 – Prensa de azeite em Tel Batash (Tamna)241

240

Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p. 241

Amihai Mazar, Arqueologia ..., p.464.

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Conforme Amihai Mazar muitas dessas “prensas de azeite são encontradas

dentro de casas comuns, indicando que a manufatura do azeite era uma indústria

doméstica praticada pelas famílias em suas casas”.242 Outras prensas de azeite,

conforme Finkelstein eram:

[...] cortadas na rocha... algumas das quais podem ter sido propriedades reais ou, pelo menos, construídas para esse propósito. Não havia falta de mercados potenciais: o óleo de oliva das regiões montanhosas de Israel podia ser exportado com lucro para a Assíria e embarcado para o Egito, pois tanto o Egito, quanto a Assíria, não dispunham de boas regiões para o cultivo da oliveira.243

Outro achado interessante, que comprova esse intenso comércio de Israel com

as outras nações, são os famosos “óstracos” de Samaria. Esses óstracos são uma

coleção de 63 cacos de cerâmica com inscrição em hebraico, bem com também,

datados do período de Jeroboão II. Eles registram o carregamento e o embarque de

azeite e de vinho pelas aldeias da região de Samaria.

Outro dado relevante é a pesquisa quanto ao levantamento populacional.

Estima-se que Israel tinha uma população de aproximadamente 350 mil habitantes. O

território de Judá não tinha mais do que 100 mil habitantes. Esses números

comprovam que o Reino do Norte tinha um poderio militar e econômico bem maior

em relação a Judá e às demais nações vizinhas.

Outro achado arqueológico, muito importante, que comprova a organização e a

grandeza do Reino de Israel, conforme o comentário de Finkelstein:

É nítida a grandeza do renascimento do Reino de Israel a partir da evidência arqueológica disponível. É significativo que Jeroboão II seja o mais antigo dos reis israelitas de quem se encontrou um selo oficial. Esse belo e excepcionalmente artefato foi encontrado no começo do século XX em Megiddo; traz a representação de um potente leão rosnando e uma inscrição em hebraico, onde se lê: “Pertence a Shema, o servo (i.e. o alto funcionário) de Jeroboão”.244

De fato, o crescimento e o status alcançado pelo Reino do Norte durante o

governo de Jeroboão II permitiram que a classe citadina dispusesse de formidável

riqueza. Esta conclusão é confirmada por outro achado arqueológico, que confirma 242

Idem, p.465. 243

Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.284. 244

Israel Finkelstein, A Bíblia não ..., p.286.

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essa asserção. Foram encontradas em Samaria “mais de 200 delicadas placas de

marfim, cinzeladas no estilo fenício com motivos egípcios e estilisticamente datadas do

século VIII a.C.”245

O fato de, posteriormente, Judá ter assumido o nome de Israel, não se deve

talvez a esse esplendor econômico e a essa monarquia gloriosa?

Assim sendo, pode-se constatar que, de fato, Israel atingiu um patamar de

prosperidade como nunca antes houvera atingido. Mas, existem algumas perguntas

que não querem calar dentro de nós:

- E o povo, de um modo geral, também desfrutou desse crescimento

econômico?

- Aqueles famosos critérios e valores morais – Dt 12-26 – foram, de fato,

respeitados pelos governantes, ou melhor, serviam como o norte de uma bússola a

apontar para onde deveria caminhar toda a ação governamental no campo social?

- Se este é o mesmo povo que, outrora, deu origem ao período que

conhecemos por tribalismo, onde reinava a igualdade e a solidariedade entre todos, o

que deu errado? Quem, de certa forma, desvirtuou o projeto tribal inicial?

- E a religião, que papel teria cumprido em tudo isso?

- Será que a religião, teria sido utilizada pelas lideranças políticas como

instrumento de legitimação da ideologia sócio-política?

- Quem as implantou e que objetivos tinha em mente?

Sabemos, que no começo dessa maravilhosa experiência nas montanhas da

Palestina, entre os séculos XIII e XII a.C., esses critérios e valores morais nortearam a

vida de centenas ou até milhares de pessoas. Mas, se torna imperativo nesse

momento, nos perguntar pelas causas do “insucesso” do projeto tribal, ou seja,

daquela autonomia política inicial.

245

Idem, p.291.

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Como vimos no tópico anterior, o Reino do Norte atingiu no reinado de

Jeroboão II seu apogeu, tanto em termos econômicos, quanto em termos de expansão,

pois sua população havia crescido além da medida.

Olhando para todo esse cenário interno e fazendo uma análise da conjuntura

externa naquele momento, Israel deveria ter ficado bem atento, pois a situação

geopolítica na região do crescente fértil estava mudando aceleradamente. Estava

surgindo uma nova potência: o Império Assírio.

Mas, como veremos abaixo, não foi somente o fato de ter surgido no cenário

internacional da época uma nova potência, que levou Israel à decadência, mas, sim, o

modo como a monarquia foi instituída e conduzida ao longo dos seus quase três

séculos de existência (X – VIII a.C.).

A principal fonte de onde retiraremos as informações para compor esse tópico

que finaliza esta segunda parte, vem do profetismo israelita, ou seja, dos primeiros

profetas escritores. Estamos falando, particularmente, dos profetas Amós e Oséias,

que profetizando no Reino do Norte, vivenciaram na carne todo esse período de

decadência, bem como também Miquéias e Isaías, que apesar de terem exercido seu

ministério profético no Sul, em Judá, muitos dados por eles levantados, nos auxiliam

na construção desse terrível quadro de crise social, política e religiosa.

Amós e Oséias retrataram a realidade de um modo muito concreto. São duas

óticas diferentes, que nos ajudam a ter uma visão holística da realidade por eles vivida.

Amós vê a realidade e, como um pintor, podemos retratá-la como que através

de um quadro. A tela pintada por ele é composta de diferentes cores e nuances que

retratam a realidade nua e fria da sociedade israelita. Nela percebe-se os traços fortes

da opressão a que eram submetida a população camponesa. Explorada e maltratada,

ela se resignava sob o peso da ideologia político-religiosa imposta pela elite citadina.

Com tons sombrios, isto é, ele pinta em profundidade e sem meias palavras, os crimes

que eram cometidos pelos governantes contra a população pobre e, aparentemente

sem defesa.

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Na verdade, o quadro pintado por Amós é muito dramático. Como é possível

tanta insensibilidade por daqueles que se colocavam como os legítimos defensores dos

direitos do povo, e assim mesmo os explorava sem o menor escrúpulo?

Como já foi anteriormente e superficialmente aventada, essa crise de

proporções inimagináveis, se não tivessem sido descritas pela profecia, jamais

poderiam ter sido intuídas ou descobertas. Teriam morrido juntamente com o estado

do Reino do Norte.

Mas graças a Amós e a seu grupo de discípulos, temos a possibilidade de nos

encontrarmos com seu povo e intuir seu grau de sofrimento.

Inicio este tópico com uma expressão tirada do próprio livro de Amós, e que,

de certa forma, sintetiza e retrata bem o que vamos encontrar pela frente: “total

terror” (cf. Am 3,9)246. Era isso o que o profeta via diante de si. São duas pequenas

palavras que juntas carregam consigo uma profunda carga semântica de

expressividade. Essa síntese feita pelo profeta Amós, resume bem a situação a que foi

submetida toda a população camponesa.

Desde o momento em que a monarquia se instalou sobre as montanhas do

norte da região palestinense, a vida dos diversos clãs e famílias, que ali residiam,

mudou drasticamente.

Partimos da constatação de que, para se erguer um grande estado dentro

daquele contexto histórico, como o Estado de Israel, foi preciso que muitas vidas

fossem ceifadas pelos difíceis e desgastantes trabalhos.

Imaginemos aquelas grandes construções feitas pelas dinastias de Amri e Jeú.

Aquelas fortalezas construídas no topo das colinas, onde quase sempre, necessitava de

um grande trabalho de contenção e aterro. Depois, cortar e transportar aquelas

enormes pedras utilizadas na construção dos muros de casamata.

246

Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras (Am 7,10): reflexão e estudo sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.87.

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Bem, se todo esse trabalho fosse para receber um justo salário, até que

concordaríamos, mas, como bem sabemos, a história foi bem outra. Na verdade, os

trabalhos eram forçados e sob condições quase sempre bem desumanas.

Outro agravante foi o fato de Israel, não podendo contar com a extração de

diversas matérias primas, ser obrigado a entrar de cheio no comércio internacional.

Mas, o que Israel poderia oferecer em troca de objetos, cujo valor excedia em muito

seus produtos agrários? A solução era oferecê-los em grande quantidade, isto é, os

camponeses eram obrigados a produzir muito além da medida para financiar estes

enormes custos.

Adentrando ao texto do profeta Amós (cf. Am 7,1.4.7; 8,1;9,1) poderemos

constatar que a situação era, realmente, de “total terror”.

“porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias” (Am

2,6b)

“porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a cabeça dos indigentes e

desviam os recursos dos humildes” (Am 2,7a).

“o filho e o pai vão à mesma moça” (cf. Am 2,7b).

“olhai que desordem em seu seio, que opressões no meio dela”(Am 3,9b).

“violências e rapinas” (Am 3,10b)

“explorando os indigentes, triturando os pobres”(cf. Am 4,1).

“Mudam o direito em veneno e arrastam por terra a justiça”(Am 5,7).

“pressionais o indigente tomando-lhe sua parte de cereal”(Am 5,11)

“opressores do justo, que extorques resgates; no tribunal enxotam os pobres”

(Am 5,12b).

“Escutai, vós que vos encarniçais contra o pobre, para aniquilar os humildes da

terra”(cf. Am 8,4).

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Enquanto os camponeses são “triturados” pela classe citadina, estes, ao

contrário, conforme nos apresenta o profeta, desfrutam do bom e do melhor, pois, “a

prosperidade, a exploração e o lucro eram os aspectos mais marcantes da sociedade

que Amós contemplava. Os pobres eram realmente pobres e desavergonhadamente

explorados”247, como pode ser constatado abaixo.

“eles não conhecem o reto agir esses amontoadores de violências e rapinas nos

seus palácios” (Am 3,10)

“essa gente instalada em Samaria, na fofura de um divã, no conforto do

leito”(Am 3,12b)

“ferirei a casa de verão e depois a casa de inverno”, as casas de marfim

desaparecerão e grandes mansões tombarão” (Am 3,15)

“vacas de Basã, que pastais na montanha de Samaria” (Am 4,1)

“Detesto, desprezo vossas peregrinações, não posso suportar vossas

assembleias, quando me fazeis subir holocaustos … vossos sacrifícios de

animais cevados … o alarido de teus cânticos, o toque de tuas harpas” (Am

5,21-23)

“Ai dos que fundaram sua tranquilidade em Sião e dos que puseram sua

segurança na montanha de Samaria, elite da primeira das nações” (Am 6,1)

“Recostados em leito de marfim, estirados em divãs, regalam-se com carneiros

novos e com vitelos escolhidos nos currais; improvisam ao som da harpa …

bebem vinhos em taças perfumam-se com o óleo das primícias”(Am 6,4-6)

Realmente, a situação no Reino do Norte era de “total terror”, visto que os

camponeses não tinham alternativa, senão se submeter a tudo isso.

Mas, diante de tudo isso, surge uma pergunta: por que os camponeses não se

rebelaram e colocaram um fim em toda essa situação?

247

J.A.Motyer, O dia do leão: a mensagem de Amós, São Paulo, 1984, p.1.

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Que estruturas e mecanismos estavam sendo colocados em prática para

legitimar toda essa situação de submissão por parte dos camponeses e de dominação

por parte da classe citadina?

Como era possível ainda continuar a ter esperanças diante de um quadro

desses?

Bem, esse era o quadro que Amós contemplava diante de si. Estamos quase no

fim da primeira metade do século VIII a.C. Muita coisa ainda aconteceria até a

derrocada final em 722 a.C.

Por isso, é importante ter bem claro diante de nossos olhos também toda essa

situação contemplada por Amós. Sabemos que essa situação de “total terror” não

melhorou, muito pelo contrário, só piorou com o passar dos anos.

É isso o que iremos evidenciar nas próximas páginas. Governantes que não

souberam ser fiéis aos critérios e valores mais nobres de seu povo, mas que, ao

contrário, criaram suas próprias leis, com a única finalidade de satisfazer seus próprios

ventres.

Conforme profunda análise, que de modo resumido, nos é apresentada pelo

exegeta Milton Schwantes “a deterioração das condições de vida do povo era palpável

em toda parte. Violência e maus tratos, religiosidade formalista e templos

interesseiros, enriquecimento fácil e suborno, enfim a justiça transformada em veneno

(cf. Am 6,12) e o caos social dominavam a cena”.248

Não dá para imaginar uma população que já sofrendo tão grandes e graves

consequências, fosse ainda submetida a uma condição de vida, pior do que aquela que

já estava vivendo – de “total terror” – fosse agora submetida a um massacre, mortes,

desterro, enfim, a um novo senhorio, ainda mais forte e impiedoso.

Conforme conclui Finkelstein a respeito do estado do Reino de Israel:

Na atualidade, naturalmente com a ajuda do trabalho arqueológico e dos estudos ecológicos, podemos constatar que o fim de Israel era inevitável. O reino de Israel foi destruído e o de Judá sobreviveu, porque no grande esquema dos desígnios imperiais

248

Milton Schwantes, A terra não pode …, p.28.

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assírios Israel – com seus ricos recursos e sua população produtiva – era alvo incomparavelmente mais atraente do que o reino de Judá, pobre e inacessível. Ainda assim, para o povo em Judá, nos anos sombrios depois da conquista assíria de Israel, enfrentando a ameaça de um grande império e obstáculos estrangeiros, a história bíblica de Israel servia como sinal, uma advertência do que lhes poderia acontecer. O mais antigo e outrora poderoso reino de Israel, embora abençoado por terras férteis e por um povo produtivo, havia perdido sua herança.249

À guisa de conclusão deste tópico é pertinente neste momento, avaliar o que

representou o processo de decadência pós-jeroboânico, tendo em vista a classe

campesina, que segundo as palavras do profeta Amós, viviam uma situação de “total

terror”. Como se já não bastasse para o campesinato ter perdido a condição tribal,

terem sido sujeitados ao trabalho forçado por mais de um século, agora, muitos foram,

juntamente com artesãos e boa parte da elite, exilados em outras partes do império

assírio. Os que ficaram, se viram submetidos a um jugo mais pesado ainda, pois a

Assíria, não querendo ter nenhuma surpresa com os que sobreviveram à derrota,

monta um posto avançado, uma satrapia em Samaria, pois dali, conseguiria exercer

um controle mais efetivo, particularmente sobre a produção agrícola de vinho, azeite e

cereais, tendo em vista o abastecimento dos grandes contingentes administrativos e

militares espalhados por todo o império.

Desse modo, a história do tribalismo israelita que vai se descortinando ante

nossos olhos, se constitui numa história, sempre marcada pelo poder de um grupo

mais forte, que com as forças ideológicas das armas se impõe, domina e escraviza

outra classe, que sem a mínima chance de reagir, resiste bravamente, como é de sua

índole, mas, sem perder de vista a possibilidade de voltar a viver, com prazer e

liberdade os sonhos de uma vida fundada na igualdade e solidariedade.

4.4.4 – Exílio: para o campesinato possibilitou a “retribalização” da

província de Judá

Uma coisa é certa quanto ao processo de retribalização que aconteceu após a

destruição de Jerusalém pelos babilônios conforme é narrado em Jr 39,9-10; 40,6.10-12:

249

Israel Finkelstein, idem, p.307.

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Este processo de retribalização não representou um retorno puro e

simples a todos valores morais e éticos que caracterizaram o tribalismo

pré-monárquico.

Então, que princípios ou características tribais podem-se destacar como

passíveis de terem sido assumidos novamente?

Tenho que ter em mente o fato de que estando Jerusalém destruída, caiu por terra

também a grande reforma que o rei Josias estava implementando em todo o território

judaíta. Por isso não houve mais a necessidade de pagamento de tributos ao rei ou de

ver-se religiosamente obrigado a prestar culto e sacrifícios no único templo reconhecido

pelo Estado (Reino de Judá).

Com certeza a retirada dessa sobrecarga financeira e da obrigação religiosa

imposta gerou um grande alívio sobre toda a população judaíta que vivia nas aldeias.

Podendo contar com toda a produção de alimentos e outros gêneros, muitos camponeses

retornaram ao modo de vida no estilo tribal. Produziam conforme a sua necessidade e se

houvesse excedente, este era trocado entre a própria população de acordo com a

necessidade de cada família.

Este período teve início por volta do ano 587 a.C., logo depois da segunda

deportação e, com certeza, perdurou até o momento em que um grupo de sacerdotes,

com o decisivo apoio do império persa, conseguiram alcançar o poder político e se

legitimar como senhores absolutos entre o céu e a terra.

No capítulo seguinte entrarei mais decididamente nos textos que viabilizaram e

deram sustentação política e ideológica para que esse grupo sacerdotal alcançasse a

suprema hegemonia do poder, não só religioso, mas também político.

Conforme o tópico abaixo poderá ser constatado que relação há entre as

diferentes realidades tanto do tribalismo quanto do campesinato. Pode-se afirmar que

ambos os conceitos tem o mesmo significado? Possuem a mesma conotação social?

4.4.4.1 – O exílio e a reforma agrária

Após a destruição de Jerusalém pelas tropas babilônicas, Nabuzardã,

comandante da guarda e general das tropas de Nabucodonosor, deixou que o

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campesinato empobrecido tomasse novamente, posse da terra (cf. 2 Rs 25,12). Esta

mesma situação é descrita pelo profeta Jeremias no capítulo 40. Diz ele:

[...] Quanto a vós, fazei a colheita do vinho, das frutas e do azeite, fazei provisões e ficais nas cidades que ocupais. Da mesma forma, todos os judaítas que se achavam em Moab, entre os amonitas, em Edom e em todas as outras terras, souberam que o rei de Babilônia tinha feito concessões a Judá e nomeado comissário a Godolias, filho de Ahiqâm, filho de Shafan. Eles voltaram então de todos os lugares onde tinham sido dispersados. De volta à terra de Judá, para junto de Godolias, em Mispá, fizeram uma colheita de vinho e de frutas, uma colheita super abundante.250

Esta passagem do livro do profeta Jeremias nos deixa entrever o tipo de

situação política e social que se desenvolveu após a destruição de Jerusalém, bem

como também e, principalmente, da “suposta”251 deportação do restante da elite que

sobrevivera ao massacre babilônico: os camponeses recuperaram a posse da terra e

voltaram a produzir livremente, sem a interferência ou ingerência da figura do estado.

É o que poderíamos falar de uma verdadeira e autêntica reforma agrária em

pleno século VI a.C. Tem início nesse exato momento histórico um processo de

retribalização, isto é, o campesinato volta a reviver seus nobres valores e seu

tradicional modo de vida fundado no tribalismo.

Como podemos notar, a monarquia foi desde sua implantação a partir do reino

de norte e depois no sul, um grave fator de desintegração das sociedades tribais, bem

como também de despersonalização da identidade tribal.

Tanto o profeta Isaías quanto o profeta Miquéias já haviam detectado esta

histórica usurpação promovida pelas abastadas elites, tanto a norte-israelita, quanto a

sul-judaíta. Vejamos:

“Ai dos que juntam casa a casa, campo a campo, até ocuparem todo lugar e

serem os únicos a morar no meio da terra” (Is 5,8).

“Ai dos que projetam a maldade e em seus leitos tramam o mal! Ao romper da

aurora, eles o executam, pois o poder está em suas mãos. Se cobiçam campos,

roubam-nos; se casas delas se apoderam. Agarram o dono e sua casa, o homem

e seu patrimônio” (Mq 2,1-2).

250

Bíblia TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia), Jr 40,10b-12 251

Aqui falamos numa suposta deportação, porque conforme alguns estudiosos o tema do chamado “exílio babilônico” não passa de uma invenção tardia da classe sacerdotal para tentar justificar a posse da terra. Este assunto será analisado na segunda parte deste projeto.

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Deste modo, é fácil perceber que este processo de retribalização posto em

marcha pelo comandante das tropas babilônicas, aconteceria espontaneamente caso

ele não tivesse tomado essa decisão política. Do ponto de vista babilônico os

camponeses ou ainda as sociedades tribais, que se constituíam em verdade na base do

campesinato, nunca ofereceriam o menor perigo ao império, pois conhecendo seus

valores e estilo de vida, eles sabiam que jamais poderia passar por sua cabeça a ideia

de vir a se tornar novamente um estado verdadeiramente constituído como nos

moldes anteriores, isto é, uma monarquia que viesse a ameaçar o seu domínio militar

na região.

Sendo assim, pode-se constatar que Jeremias recolhe em seu livro o que de

mais significativo acontecera naquele momento: a volta do tribalismo, o triunfo das

sociedades primitivas sobre o regime monárquico.

Esse processo de retribalização duraria um longo período, aproximadamente

uns 50 anos, se é que, de fato, houve um retorno posterior de um grupo de exilados.

Na verdade, este processo de retribalização que teve início por volta do ano 587 a.C.,

evoluiu e se estabilizou ao longo de quase três séculos.

Somente no início do século IV, quando são escritos os livros de Neemias e

Esdras, bem como também os livros de 1 e 2 Crônicas, é que temos novamente um

embate em torno do problema da terra. Retroprojetando algumas situações e

acontecimentos do seu presente para um longínquo passado, os redatores, ligados que

estavam ao novo grupo em ascensão – a classe sacerdotal –, fazendo uso de

importantes e variados elementos da tradição ligada às sociedades tribais,

conseguiram impor, de modo claramente ideológico, seu novo projeto.

Assim, podemos conjecturar que Judá e toda a região ao seu redor passaram

por esse processo de retribalização e assim permaneceu até a metade do século IV

a.C., quando veremos implantado em Jerusalém, bem como em todo o Israel, um novo

projeto de caráter nitidamente religioso, mas, profundamente relacionado ao campo

sócio-político, bem como também, ao campo econômico, privilegiando enormemente

a classe sacerdotal jerusolimitana nas suas relações de poder com o campesinato

israelita.

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4.5 – O campesinato judaíta

Neste tópico pretendo definir de maneira bem clara em que sentido utilizo o

conceito de “campesinato”, bem como também, lançar algumas luzes sobre a realidade

do campesinato no território de Judá no período de domínio do império Aquemênida.

4.5.1 O campesinato

Conforme definição comentada por John Dominic Crossan, camponês “é termo

interativo para lavradores explorados e oprimidos – definição que presume existir em

algum lugar, exploradores e opressores”.252

Nesta mesma linha, diferentes autores,

mesmo antes de Crossam, já haviam se posicionado igualmente a ele. É de Eric Wolf

(1966) a seguinte afirmação:

Nas sociedades primitivas, os excedentes eram trocados diretamente entre os diferentes

grupos ou entre membros destes grupos; os camponeses, no entanto, são agricultores

rurais cujos excedentes são transferidos para um grupo de governantes, que utilizam

estes recursos para sustentar o seu próprio padrão de vida e distribuem o restante entre

outros grupos da sociedade que não cultivam a terra, mas que devem ser alimentados

pelos bens e serviços específicos que fornecem [...] Apenas quando o agricultor é

integrado a uma sociedade onde há Estado – isto é, quando ele é obrigado a se submeter

às exigências e às sanções dos detentores do poder, fora de seu extrato social – é que

podemos falar da existência de um campesinato.253

Aqui, Eric Wolf salienta o aspecto de que tribalismo – sociedades primitivas – é

uma coisa, enquanto campesinato é outra bem diferente. Para ele, campesino é todo

aquele que é submetido a um regime de trabalho forçado por aqueles que detém o poder,

isto é, pelo Estado ou por outra instância de poder, além de que, não tem autonomia

sobre o que produz, pois o excedente é manipulado tão e exclusivamente por aqueles

que o subjugam e escravizam.

De George Foster (1967) é esta outra afirmação:

Se a sociedade campesina deve ser definida, antes de tudo, através de um critério

estrutural- ou seja, a relação entre a aldeia e a cidade (ou o Estado) – é obvio que

o nosso grande foco de interesse estará nesses laços. Eles apresentam diversos

aspectos, incluindo o social, o econômico, o religioso, o jurídico, o histórico e o

emocional. Mas o denominador comum entre eles, na nossa opinião, é que os

camponeses não possuem muito controle sobre as condições que orientam as

252

John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2004, p.257. 253

Jonh Dominic Crossan, O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, Rio de janeiro, Imago, 1994, p.162.

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suas vidas [...] Além de serem pobres como já se observou muitas vezes, os

camponeses são relativamente impotentes.254

Deste modo, podemos intuir que o campesinato só pode ser definido a partir das

suas relações de poder, isto é, de um poder exterior a ele, que controla, assim, todas as

dimensões de sua vida, tanto o social e o econômico, quanto também, o religioso, o

jurídico, o histórico e o emocional, como assevera Foster na citação acima.

Assim, John Dominic Crossan afirma que as relações que se estabelecem entre

campesinato e elites, podem ser traduzidas também pela relação entre camponeses e

cidades. Kautsky citado por Crossan tira algumas conclusões interessantes de seus

estudos e afirma: “os aristocratas vivem às custas dos camponeses” e que “um

camponês sem uma cidade é, simplesmente, um lavrador feliz”.255

O fato é verdade, pois antes das primeiras cidades existirem não havia

camponeses, pois como ainda afirma Robert Redfield citado por Crossan, os povos

primitivos que não moravam em cidades, mas sim em aldeias, jamais poderiam ser

classificados como camponeses. Desse modo, intuímos que as relações de poder que se

estabelecem entre aldeia e cidade são fundamentais para se definir o campesinato.256

Diante dessas contundentes afirmações, podemos concluir, que dentro desse

contexto, onde mais de noventa por cento da história da humanidade consistia num

intercâmbio urbano-rural uma primeira afirmação: “as cidades vivem à custa dos

camponeses”. Sem o campesinato, o urbano não teria sobrevivido. “Há rural sem

urbano, mas não urbano sem rural”. O fato dos campesinos estarem localizados fora da

cidade implica que são totalmente desprovidos de poder e autonomia.257

Tom Longstaff citado por Crossan, diz que muitas vezes “a urbanização traz

consigo certo grau de opressão. O hiato entre os ricos e os pobres aumenta

frequentemente. É comum os que prosperam na cidade fazerem-no à custa dos que

vivem nas aldeias dependentes e não prosperam”.258

Desse modo, Crossam vê que há

254

Idem, ibdem. 255

John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2004, p.257-258. 256

John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo..., p.259. 257

Idem, ibdem. 258

Idem, ibdem.

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uma injustiça sistêmica e estrutural entre os camponeses e a cidade, que só pode ser

compreendida mediante o critério das relações de poder estabelecidas entre os dois

grupos.

Por exemplo, podemos, como faz Weber, isolar na condição do camponês o que ela deve à situação e á prática do trabalhador da terra, ou seja, um certo tipo de relação com a natureza, feito de dependência e submissão e correlativo de determinados traços recorrentes da religiosidade camponesa ou o que deve à posição do camponês numa dada estrutura social. Apesar de esta posição ser bastante variável segundo as sociedades e as épocas, é sempre dominada pela relação com o citadino e com a vida urbana. Daí Redfield sustentar que o camponês, enquanto tipo humano, só pode ser definido se referido à cidade, sendo a relação com o citadino e com a vida urbana sob todos os aspectos uma das características constitutivas da existência camponesa: “o caçador ou o aldeão ‘pré-civilizado’ é ‘pré-letrado’; o camponês é iletrado”.259

E conforme o mesmo R. Redfield na nota de rodapé nº 3:

(A palavra ‘camponês’), tal como vem sendo usada, para designar qualquer comunidade de pequenos produtores para o mercado, devemos reservá-la para designar um novo tipo. Este tipo precisa da cidade para existir. Não havia camponeses antes das primeiras cidades. E aqueles povos primitivos sobreviventes, que não vivem nos moldes urbanos, não podem ser considerados camponeses [...]. O camponês é um nativo do meio rural cuja organização de vida, embora a muito tempo já fixada, leva bastante em conta a cidade.260

Segundo Marx:

A maior divisão entre o trabalho material e o intelectual é a separação entre a cidade e o

campo. A oposição entre a cidade e o campo começa com a transição da barbárie à

civilização, da organização tribal ao Estado, da localidade à nação, e persiste através de

toda a história da civilização até nossos dias [...]. Com a cidade aparece,

simultaneamente, a necessidade de administração, de polícia, de impostos etc., em uma

palavra, a necessidade da organização comunal e, portanto, da política em geral. Aqui,

manifesta-se pela primeira vez a divisão da população em duas grandes classes, divisão

que repousa diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A

cidade já é o fato da concentração da população, dos instrumentos de produção, do

capital dos prazeres e das necessidades, ao passo que o campo evidencia exatamente o

oposto: o isolamento e a separação. A oposição entre a cidade e o campo só pode existir

nos quadros da propriedade privada. É a expressão mais crassa da subsunção do

indivíduo à divisão do trabalho, à uma determinada atividade que lhe é imposta –

subsunção que converte uns em limitados animais urbanos e outros em limitados

animais rurais, reproduzindo diariamente a oposição entre os interesses de ambos. O

259

Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, 2ª Edição, São Paulo, Editora Perspectiva, 1982, p.4. 260

Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas..., p.4.

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trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder sobre os indivíduos, e enquanto existir

esse poder deve existir a propriedade privada.261

A partir dessa definição conceitual é possível ter presente todo o alcance sócio-

político que o termo “campesinato judaíta” denota.

4.5.2 – O campesinato judaíta

Penso que qualquer comentário que se queira tecer sobre o campesinato judaíta

no período Aquemênida deve ser feito à luz do contexto político, econômico e religioso

da província de Judá.

À luz dos materiais escritos desse período bem como também dos dados

disponibilizados pela arqueologia é possível fazer um levantamento de modo muito

aproximado da realidade na qual o campesinato se encontrava nesse período.

A partir da ascensão dos persas no cenário político mundial, não demorou muito

para que os habitantes do Oriente Próximo Antigo sentissem seus efeitos. Conforme

alusão já feita anteriormente, o processo de retribalização, que teve início com a

destruição da cidade de Jerusalém, bem como a consequente morte de algumas de suas

lideranças e deportação de outras, pelos babilônios em 587 a.C., esse processo de

retribalização deve ter continuado e se estabilizado durante todo o período do século VI

a.C..

4.5.3 – Resgatando alguns importantes fatos históricos

Está claro que falar em “retribalização” não implica em afirmar que os

campesinos de Judá voltaram a viver nos mesmos moldes que seus ancestrais viviam,

isto é, segundo os mesmos modelos de organização social, política e econômica das

sociedades primitivas. É preciso ter presente todos os grandes acontecimentos que

tiveram profundo impacto na vida dos judaítas. O principal foi ao longo do século VIII

a.C. quando o exército assírio, depois de ter destruído Samaria em 722 a.C., a então

capital da Reino do Norte, avançou sobre o território de Judá, destruindo muitas de suas

261

Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã...,p.77-78.

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aldeias até parar diante de Jerusalém. Isto aconteceu porque Ezequias havia decidido

não mais pagar tributos aos assírios. Depois de permanecer algumas semanas num forte

cerco à cidade, os assírios se retiraram e voltaram para sua sede na Mesopotâmia.

Segundo o texto bíblico a cidade de Jerusalém foi salva miraculosamente. Mas o seu

povo, os campesinos... Vejamos!

Interessante são os relatos, contemporâneos desses fatos, encontrados em

escavações arqueológicas, tanto em inscrições assírias, quanto na própria província de

Judá, que diferentemente dos relatos bíblicos, mostram que 46 cidades fortificadas e

muradas e um número incontável de aldeias foram destruídas, além de ter expulsado de

suas terras cerca de 200.150 pessoas.

Conforme Israel Finkelstein relata, apesar desses números poderem revelar um

tremendo exagero:

[...] a informação dos registros assírios, ligadas às escavações arqueológicas em Judá,

confirma, de forma adequada, a intensidade da campanha sistemática de cerco e

pilhagem: primeiro através das ricas áreas agrícolas nos contrafortes de Shephelah e

depois para o norte, na direção da capital, na montanha. A devastação das cidades

judaicas pode ser vista em quase todo cômoro escavado no interior de Judá. Os

sombrios remanescentes arqueológicos se harmonizam com os textos assírios.262

A devastação provocada pelos assírios na província de Judá foi tão forte que a

região jamais se recuperou totalmente. As aldeias continuaram pouco povoadas.

Segundo Finkelstein, o número de sítios e a área construída – na qual a população

estimada habitaria – encolheram para 1/3 do que tinham no final do século VIII a.C..

Algumas das principais cidades foram reconstruídas, mas muitas outras pequenas

cidades, aldeias e casas de fazenda ficaram em ruínas. Esse fato é significativo, em

especial quando lembramos que, no século VIII, antes do ataque assírio, a população do

Shephelah chegava a cerca de 50 mil habitantes, quase a metade do reino inteiro.263

Manassés, sucessor de Ezequias, abandonando as reformas, principalmente as

de caráter político e religioso propostas por seu antecessor, submeteu-se novamente à

Assíria, pagando pesados tributos. Para isso, Manassés teve que recuperar

262

Israel Finkelstein, Neil Asher Silberman, A Bíblia não tinha razão, São Paulo, A Girafa Editora LTDA., 2003, p.351. 263

Idem, p.356.

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economicamente a Província de Judá. Apesar de ter sofrido as piores críticas por parte

dos redatores da OHD, Manassés só viu uma saída:

Para isso, era necessário restaurar certa medida de independência econômica nas áreas

rurais, ainda a fonte potencial de riqueza do reino. O renascimento das áreas rurais

devastadas não poderia ser alcançado sem a cooperação das redes de anciãos e dos clãs,

e isso significava permitir a retomada de práticas religiosas nos venerados altares ao ar

livre. Numa palavra, o culto a Baal, aos postes sagrados (Asherat) e aos astros dos céus

– o sol, a lua e as estrelas – retornou.264

O incrível em todos estes relatos é a insensibilidade, tanto dos textos bíblicos e

de outras fontes, quanto, por exemplo, dos autores acima citados, no que tange ao

aspecto das populações mais pobres, isto é, dos campesinos. Não possuem rosto e muito

menos história. Nesse sentido a nova história propõe resgatar o que antes estava

enterrado. Trazer à luz o que estava escondido, não por questão de método, mas sim, de

ideologia. Não deixa de ser também um trabalho de arqueologia... Diria Michel

Foucault, da história.

Sem enfatizar, Finkelstein assinala que para Manassés conseguir a adesão das

comunidades tribais, teve que deixar de lado o projeto de estatização da religião e

permitir que os habitantes da província de Judá retornassem àquilo que Marcel Gauchet

chama de “religião pura”.

Por um lado, foi uma reconquista das sociedades tribais poder retomar alguns de

seus valores, mas por outro lado, e aqui, Finkelstein não foi capaz de salientar

devidamente, os povoados tiveram que se dispor a trabalhar duro para produzir o

necessário para abastecer a cidade de Jerusalém, bem como também, o necessário para o

pagamento dos tributos aos assírios e, se ainda sobrasse forças, o necessário para si e

suas famílias. É bem provável que a solidariedade tribal prevalecesse nesses momentos.

Manassés, reinando por 55 anos sobre o Reino de Judá, pacificou a região e

recebeu dos reis assírios algumas menções honrosas pelos serviços prestados, isto é,

pela sua submissão, quer dizer: pagamentos em dia dos tributos.

Mas há um detalhe interessante que Finkelstein nos trás quando relata a respeito

das pesquisas arqueológicas na região da Shephelah. Depois da destruição de muitas das

264

Idem, p.357.

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vilas da região de Shephelah pelos assírios, boa parte dessa região passou para o

domínio dos filisteus que habitavam a região litorânea, forçando seus antigos habitantes

a se refugiarem nas regiões montanhosas da Judéia. Mediante estudos de estratigrafia,

esta região montanhosa, entre os séculos VIII e VI a.C., cresceu em torno de 10 vezes

mais. Foi encontrado um denso sistema de quintas construído em torno e ao sul de

Jerusalém, perto de Belém. É provável que essas quintas serviram para garantir a

produção de alimentos visando o abastecimento da população da metrópole.265

Mas o desenvolvimento mais fascinante é conforme a figura abaixo, a expansão

demográfica de seus assentamentos, a leste e ao sul de Jerusalém.

Figura266

Mas, conforme os muitos dados da arqueologia parecem dizer que Manassés não

esteve satisfeito somente com a expansão acima citada. Seu programa político e

econômico ambicionou muito mais do que uma mera questão de subsistência. De

acordo com uma grande quantidade de assentamentos encontrados na região sul do Vale

de Bersabéia, implica que Judá deve ter se expandido visando a grande rota comercial

265

Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.358-359. 266

Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.347. Principais sítios na monarquia de Judá; a linha destaca o centro vital do reino no final do século VII, a época de Josias.

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que havia nessa região. Os ricos e variados achados arqueológicos da vasta área entre

Edom e Filistéia indicam que os assírios, os árabes, os fenícios e os edomitas

mantiveram nessa região uma florescente atividade comercial. Foram encontrados

também, dois grandes fortes do século VII, que foram escavados no deserto. O primeiro

forte é o de Kadesh-barnea na margem oeste das áreas montanhosas do Neguev, a cerca

de 80 quilômetros ao sudoeste de Bersabéia. O segundo forte foi escavado na região de

Haseva, sítio localizado a 33 quilômetros ao sul do mar Morto. Segundo Finkelstein, o

arqueólogo Nadav Naaman sugeriu “que, ambos foram construídos no começo do

século VII a.C., sob os auspícios dos assírios, com a assistência dos Estados vassalos

locais, e foram administrados por tropas de judá e Edom”,267

visando única e

exclusivamente, dar proteção às caravanas de comerciantes árabes que por essa região

transitavam, trazendo seus valiosos artigos exóticos de luxo , além dos incensos, é claro.

Outro achado arqueológico impressionante, se verificou em Tel Miqne, sítio

localizado à oeste da Shephelah, antiga Eglon, uma das principais cidades da Filistéia.

Durante o século VIII foi um sítio modesto, mas que passou por um grande crescimento

no início do século VII tornando-se o maior centro produtor de azeite ao longo de todo

o antigo Oriente Próximo. Com mais de cem prensas de azeite, estima-se que a

capacidade de produção beirava a cerca de mil toneladas.268

Toda produção era destinada a abastecer o Egito e a Assíria, pois estas terras não

possuíam as condições necessárias para o cultivo de oliveiras. Mas, como se pode notar

ainda hoje, Eglon não está situada numa região favorável ao plantio de oliveiras. A

cidade parece que deve ter sido escolhida por causa de sua localização geográfica, isto

é, numa região cortada pela rede de estradas da planície costeira.

Possivelmente, a região que fornecia as olivas para a produção de azeite em

Eglon, era a região montanhosa de Judá, além da província assíria de Samaria. Graças

ao trabalho Trude Dothan e Seymour Gitin, foram localizados no interior dos prédios

onde estavam as prensas de azeite uma grande quantidade de altares cuneiformes

tipicamente israelitas, o que sugeriu que ali trabalhassem um grande número de judeus.

Assim, como afirma Finkelstein:

267

Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.360-361. 268

Idem, p.362.

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Todas essas iniciativas econômicas básicas, efetivas e planejadas exigiam maior do

centralização do Estado judaico. O cultivo em larga escala de azeitonas e uvas e seus

produtos industrializados exigiam lugares para estocagem, transporte e distribuição

eficiente. [...] A evidência arqueológica sustenta a hipótese do maior envolvimento do

governo em todas as fases da vida de Judá – ao ponto de o número de selos, de

impressões desses selos, de óstracos administrativos e de pesos oficiais nos níveis de

estratos de Judá no século VII exceder muitíssimo as quantidades antes encontradas.269

Diante de todo esse avanço econômico do Reino de Judá durante o período de

governo de Manassés, denota que, praticamente, toda a população estava envolvida em

atividades pró-estado, e que longe do convívio de suas famílias, tiveram que ir se

adaptando ao novo modo de vida, baseado em relações de dominação e opressão. Dizer

que os habitantes das aldeias iam de bom grado trabalhar e se acabar em favor do

estado, é subverter a lógica do bom senso que caracterizava a vida das sociedades

primitivas ou tribais.

Vale ainda citar uma observação feita por Baruch Halpern, citada por

Finkelstein:

[...] com o afluxo de refugiados vindos do norte depois da queda de Samaria, a

reorganização da zona rural sob o governo de Ezequias e a segunda torrente de

refugiados da devastação do Shephelah por Senaquerib, muitas das ligações tradicionais

dos clãs com determinados territórios foram, para sempre, destruídas. Na zona rural,

economias de escala – necessárias para produzir enormes quantidades de azeitonas e

grãos para distribuição – beneficiaram muito mais aqueles que puderam organizar a

máquina de comércio e produção agrícola do que aqueles que trabalhavam no campo.

Mesmo que os clãs sobreviventes pudessem confirmar até certo ponto a linha

ininterrupta de herança de suas terras, aldeias e colinas, os efeitos da guerra, a alteração

da população e o planejamento econômico real intensificado podem ter encorajado

muitos a sonhar com uma era dourada do passado – real ou imaginária – em que seus

antepassados estavam estabelecidos, com segurança, em territórios bem definidos e

desfrutavam a promessa divina de paz eterna e prosperidade em sua terra.270

A observação de Baruch Halpern é muito sugestiva quando afirma que “muitas

das ligações tradicionais dos clãs com determinados territórios foram, para sempre

perdidas” por causa das invasões e destruições dos exércitos inimigos. De fato, com a

morte de muitos chefes tribais ou de família, além das deportações para outras partes do

império causou uma profunda mudança, principalmente, em termos de organização

269

Idem, p.363-364. 270

Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.368.

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social. Muitos, se não todos, foram obrigados a se refugiarem em regiões onde a cidade

e o exército não fossem capazes de chegar, isto é, nas regiões, montanhosas de matas e

bosques, que ainda não haviam sido tocados pelos homens. Certo é que as dificuldades

eram enormes, principalmente no acesso á agua. Estas estavam nas regiões de planície,

totalmente dominadas pelas cidades-estados. Esse foi, com certeza, o único modo de

poder continuar vivendo segundo os princípios milenares de seus ancestrais tribais.

Mas, uma coisa é certa também: aqueles que não conseguiram fugir e foram

obrigados a se submeter a um novo estilo de vida, diga-se, quase que num regime de

escravidão, perderam com certeza o referencial da terra e da família ou do clã, mas não

perderam referenciais ainda mais nobres, tais como a solidariedade e igualdade que

tanto caracterizam as sociedades tribais.

Após a morte de Manassés, subiu ao trono seu filho Amon, que depois de dois

anos, por ter causado muito descontentamento junto aos “filhos da terra”, isto é, a elite

social e econômica de Judá, foi por eles assassinado. Em seu lugar assumiu seu filho

Josias, que só ao atingir a maioridade assumiu definitivamente o governo.

É bom salientar que foi nesse período que escribas ligados à facção religiosa do

“somente Yahweh”, que chegando ao poder, ao lado dos “filhos da terra”, começaram a

redigir o texto que ficou conhecido como a Obra Historiográfica Deuteronomista

(OHD)271

e que foi concluída, provavelmente, depois da destruição de Jerusalém em

587 a.C., portanto, durante o período do exílio.

É fácil ver por que os autores bíblicos estavam tão transtornados pela idolatria. Ela era símbolo de uma caótica diversidade social; os líderes dos clãs das áreas rurais conduziam seus próprios sistemas de economia, de política e de relações sociais, sem administração ou controle pela corte em Jerusalém. Aquela independência rural,

271

“Não é fácil reconstituir qual a elaboração historiográfica efetivamente realizada no tempo de Josias. A Obra histórica do ‘Deuteronomista’, com efeito, chegou até nós numa formulação que (mesmo prescindindo de acréscimos tardios) não pode ser situada antes da época exílica, pois o desastre final do reino de Judá ocupa ali um lugar importante. Mais que a um único autor, portanto, a obra histórica em questão deve ser atribuída a uma corrente (ou escola) de pensamento que teve início com a reforma de Josias para se prolongar depois no tempo por algumas gerações”. Mario Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.226. Nakanose desenvolveu uma importante teoria a respeito do desenvolvimento do livro do Deuteronômio e da Obra Historiográfica Deuteronomista. Ver Shigueyuki Nakanose, “Para entender o livro do Deuteronômio: uma lei a favor da vida?” em Pentateuco, Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, nº23, Petrópolis, Vozes, 1996/1, p.176-193. Penso que uma boa chave de leitura para os fatos políticos narrados está em usar o critério da historicidade. Quanto mais próximos do período em que foi escrito mais fidedignos devem ser os relatos e os personagens, com muitas ressalvas, é claro. Quanto mais distantes historicamente falando, mais fantasiosos serão.

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embora respeitada e honrada ao longo do tempo pelo povo de Judá, passou a ser condenada como uma reversão ao barbarismo do período pré-israelita. Assim, com ironia, o que era mais genuinamente judaico foi condenado como heresia cananéia. Na arena da polêmica e do debate religioso, o que era antigo passou a ser considerado estranho, e o que era novo passou, repentinamente, a ser considerado verdadeiro.272

Diante desta afirmação, podemos inferir que Finkelstein teoriza que, mesmo

depois do assentamento de milhares de camponeses oriundos do norte para Judá, a

periferia judaíta, continuou sendo nitidamente marcada pelo tribalismo, ou seja, no

tocante ao seu aspecto religioso, notadamente plural, o tribalismo israelita sempre foi

caracterizado pela diversidade religiosa, que longe de ser a de um monoteísmo

exclusivista, vivia intensamente o mundo dos deuses e deusas do panteão cananeu.

Neste ponto se faz necessária algumas observações que são de fundamental

importância para o que se sucedeu no período pós-exílico, que no caso, é o período

privilegiado do meu objeto de pesquisa. São duas faces que devem ser atentamente

observadas: a dos dominadores, daqueles que estavam sentados em berço esplendido em

Jerusalém e a dos dominados, dos camponeses que continuavam a ser explorados em

sua força de trabalho para poderem sustentar as benesses da classe dominante. Privados

de sua liberdade e dos mais altos valores de seu modo de vida tribal, apenas sonhavam

com a possibilidade de um dia poderem retornar a eles.

Penso que se pode afirmar, com certeza, que Josias foi como que teleguiado em

suas opções políticas, econômicas e, principalmente, religiosas. Sendo incapaz

de assumir o reinado, devido à tenra idade, “obrigou” o grupo que lhe tutoreava

a assumir interinamente o governo. Na verdade, se utilizaram de Josias para

alcançarem seus objetivos. Se a OHD, como já visto anteriormente, não passa de

puro invençionismo273

, – costurado e salpicado com diferentes elementos da

mais pura tradição israelita – tanto da classe religiosa quanto da aristocracia

ligada ao rei. Pode-se afirmar que a reforma proposta por Josias foi, no fundo,

uma reforma que visa aos escusos interesses da classe dirigente. Assim, Josias,

quando atingiu a maturidade, “soube tirar proveito da conjuntura favorável para

272

Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.336-337. 273

Utilizo esse adjetivo em referência aos subtítulos que Mario Liverani faz uso na segunda parte de seu livro: Para além da Bíblia – História antiga de Israel, São Paulo, Loyola, 2008, p.309-443, bem como também devido aos inúmeros dados mais recentes fornecidos pela arqueologia que contrariam em todos os sentidos as narrativas bíblicas, principalmente aquelas referentes ao passado mais antigo de Israel.

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dar ao reino de Judá um impulso novo, cujos aspectos salientes são de caráter

religioso e ideológico, mas cujas bases materiais são também dignas de nota”274

.

Diferentemente de seus antecessores, Josias não sofreu a pressão da assíria, que

no início de sua subida ao trono, já dava sinais de enfraquecimento e não

conseguia mais controlar todo seu imenso império, fazendo com que muitas

províncias outrora subjugadas, vissem nesse fato a oportunidade de adquirirem

novamente a necessária e tão sonhada autonomia política e poderem conduzir

seus projetos de expansão política, luxo e grandeza.275

A história de Josias, narrada na OHD, mais especificamente em 2 Reis 22 - 23,

no que tange ao aspecto político é muito evasiva, enquanto que no que toca aos

aspectos cultuais, deixa entrever, que de fato, houve um grupo religioso que

tinha grande poder de influência sobre o rei. Tanto é verdade que a narrativa em

2 Reis 22,8-10, não tem o menor puder em apresentar o sumo-sacerdote

Hilqiáhu que entrega a Shafan, secretário do rei, um manuscrito que continha o

“livro da Lei” encontrado na reforma do templo de Jerusalém. O livro dos Reis

diz que Josias tomado de grande pavor, exclamou: “grande é a ira do Senhor que

se inflamou contra nós, porque nossos pais não obedeceram às palavras desse

livro e não agiram de acordo com o que ali se acha escrito” (2 Reis 22,13b).

A pergunta que não cala é a seguinte: que “livro da Lei” é este? Não há nenhuma

referência no texto bíblico quanto ao tamanho do livro encontrado e nem quanto

ao seu conteúdo. Desde o início do século XIX muitos estudiosos tem se

debruçado a pesquisar sobre este “livro da Lei”. A maioria está de acordo em

afirmar que deve haver alguma conexão com o livro do Deuteronômio, com seu

núcleo original, daquilo que se convencionou chamar de “estrato redacional

deuteronomista”, que segundo Liverani, “pode ser atribuído a essa época por

uma série de indícios de conteúdo”276

. Mas, o que importa em relação ao meu

projeto, não é fazer algumas incursões na tentativa de desvendar esse mistério,

mas identificar as motivações que estavam por trás dessa construção narrativa,

seus efeitos políticos e religiosos, principalmente, com relação à classe social

sempre explorada, aos camponeses.

274

Idem, p.217. 275

idem, p.211-215. 276

Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.222.

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Parto da suposição de que tudo não passou de uma armação do grupo religioso

com o intuito de se legitimar no poder ao lado do rei. Para isso contaram com o

auxílio de escribas treinados que recolhendo elementos da tradição norte-

israelita teceram todo um conjunto narrativo. Se foi a partir de um núcleo já

existente (Dt 4 – 28) ou não, o fato é que, como diz Liverani:

Salta aos olhos o expediente do achado de um manuscrito “antigo” para conferir a

aprovação da autoridade tradicional à que devia ser, porém, uma reforma inovadora.

Mas é sobretudo importante constatar que essa reforma tenha tido lugar justamente em

coincidência com a diminuição da autoridade imperial assíria.277

Mera coincidência ou armação? A julgar pelas avaliações negativas que já foram

feitas a respeito da história israelita narrada na Bíblia Hebraica, principalmente relativa

à OHD, é de se supor que tudo não passou de uma estratégia político-religiosa, diga-se

de passagem, muito bem articulada pela classe sacerdotal, que tinha como objetivos

principais: centralizar e unificar o culto ao redor de deus único e num mesmo local, bem

como também, dar força de legitimação política aos projetos de expansão da monarquia.

Esses eram os dois pontos fundamentais da ideologia deuteornomista. Conforme

salienta Mario Liverani:

A afirmação ideologicamente expressiva da reforma não estava certamente na

substância dos vários artigos da lei, que em grande parte podiam fazer parte de qualquer

contexto religioso, mas na exclusividade da dependência do único deus Yahweh por

parte do povo.278

Em vista deste objetivo, transformaram uma antiga festa de caráter pastoril,

“com refeição sacrifical de cordeiro e pães ázimos, relacionada à volta da transumância

(plenilúnio da primavera)” numa grande celebração: a “festa da Páscoa”. Segundo ainda

Liverani:

[...] É provável inovação de Josias fazer dela uma festa de peregrinação (hag) para

aumentar a convergência de fiéis de todo o país para o santuário central. Faz parte

também da ideologia deuteronomista a ideia de uni-la ao episódio fundante da “saída do

Egito”.

277

Idem, ibdem. 278

Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.223.

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Mas a maior insistência (2 Rs 23,4-14) é dedicada ao desmantelamento dos lugares de

culto não-javistas – as famigeradas bamôt (incluindo massebôt e ‘aserôt) – na própria

Jerusalém e em todo território de Judá, “de Gega‟ a Be‟er-sheba‟”.279

O que Josias não esperava, foi ter acabado morto sem ver seu projeto concluído.

Num acesso tresloucado, Josias saiu para enfrentar o faraó Neco. Sabendo de sua

inferioridade militar montou uma emboscada em Meguido. Mas, seus planos não

tiveram êxito, pois conforme 2 Rs 23,29 não houve nem batalha e o faraó conseguiu

apoderar-se de Josias que acabou morto. Enquanto o livro dos reis não menciona

nenhum detalhe do conflito, se é houve, o livro das Crônicas (2 Cr 35,20-24) narra um

confronto militar digno de menção.

Para o campesinato, a vida continuou na mesma, pois o projeto de reforma

política e religiosa colocado em prática por Josias, não teve o impacto esperado naquele

momento, mas em longo prazo, particularmente no final do período de domínio do

império persa, os descendentes do mesmo grupo religioso – o grupo sacerdotal sadocita

– que foram os principais responsáveis quanto a elaboração e articulação deste projeto,

deram continuidade e, aí sim, o campesinato judaíta, sofreu por ao menos três séculos as

terríveis consequências da conjunção numa mesma instituição do poder político e

religioso.

Assim como Finkelstein não foi capaz de enfatizar as consequências da

monarquia e suas reformas políticas e religiosas na vida dos camponeses, também

Mario Liverani, parece ter a mesma insensibilidade quanto a este aspecto, pois a

conclusão a que chega é a de alguém que só teve olhos para aqueles que estavam no

poder. Na segunda parte de seu livro – Para além da Bíblia: história antiga de Israel –

desmascara toda a trama criada pelos sacerdotes do templo de Jerusalém, mas não foi

capaz de ver o impacto deletério e perverso de tudo isso no dia-a-dia da vida de

milhares e milhares de campesinos ao logo de sua dramática história. Vejamos:

A ação do rei reformador não ficou, todavia, sem seus efeitos; antes, teve-os mais

decisivos por um longo prazo. E foram justamente os trágicos acontecimentos seguintes

que deram à tentada reforma os valores fundamentais para a sobrevivência do povo de

279

Idem, p.224.

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Israel. Foi o projeto político de Josias que forneceu o modelo de uma unidade (étnica e

estatal) que jamais fora realizada antes – nem sequer concebida.280

Penso que a mesma situação pode ser aplicada ao Brasil. Se não fosse a chegada

dos portugueses em 1500 a essas terras, jamais seríamos a nação que somos hoje.

Talvez outros teriam desembarcado por aqui... Ingleses, Holandeses, Espanhóis... Bem,

talvez a história não tivesse sido muito diferente. Mas, o que devemos ter presente é a

quantidade de vidas que foram e ainda hoje são ceifadas porque não temos o devido

respeito e nem a devida responsabilidade para com esses povos... Usamos, abusamos e

fazemos de conta que o problema não é com a gente. Mas, “gente”, eles não eram

considerados.... E parece que ainda não o são. Onde estão os assassinos do índio

Galdino, da tribo Pataxó, queimado vivo enquanto dormia num ponto de ônibus? Triste

contínua história.

4.5.4 – Retorno dos exilados: a “terra” no centro da crise

Se pegarmos os jornais, com certeza acharemos alguma notícia a respeito do

tema do tópico acima: reforma agrária, demarcação de áreas indígenas e etc. Qualquer

semelhança é mera coincidência? Não, porque ontem como hoje a “terra”, enquanto

meio de produção fundamental e básico de sobrevivência humana, continua sendo

explorada e maltratada a níveis insustentáveis em função dos dividendos que produz,

provocando assim, disputas judiciais, violência e morte, além de tudo isso, continua

sendo artigo de objeto de lei que ainda tramita no Legislativo de nosso Congresso

Nacional: novo código florestal e etc.

Bem, mas a realidade aqui nesta tese é de 2500 anos atrás. Mais precisamente

em fins do século VI e início do século V a.C.. Sem entrar no mérito da questão

cronológica, isto é, quanto ao fato de quando teria(m) ocorrido(s) esse(s) retorno(s),

apesar de Esdras 1,24 fazer alusão a um possível edito281

emanado por Ciro, é bem

280

Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.230. 281

Com relação a um possível edito, Mario Liverani tem a seguinte posição: “O fato é que depois de dois séculos imaginou-se que Ciro tivesse promulgado logo, já no seu primeiro ano de reinado na babilônia, um edito que permitia o retorno dos exilados e a reconstrução do templo de Yahweh. O edito é certamente falso, como demonstram quer a análise formal, quer os anacronismos. O mesmo vale para um segundo edito do mesmo Ciro (mencionado em Esd 6,3-5), que teria sido encontrado nos arquivos persas no tempo de Dario e que dava até as medidas e os detalhes novo templo. Esses editos foram falsificados e adotados em época um tanto posterior, quando serviam para dar garantia e privilégio

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provável que tenham retornado num primeiro momento somente um pequeno grupo de

judeus que talvez estivessem passando grandes necessidades. Mas é bem possível que

um primeiro e últimos retorno “oficial” tenha acontecido com a vinda de Esdras, o

escriba da família do principal sacerdote Aaron, (provavelmente em 458 a.C.). Esdras,

enviado por Artaxerxes, teria vindo para investigar o que estaria acontecendo em

Jerusalém e Judá, diante das notícias recebidas de antemão.

Mas o que me interessa é abordar a crise que se instalou em Judá devido ao

retorno desses grupos de judeus que haviam estado exilados em Babilônia. Não deve ter

passado de 10 mil, sendo bem otimista, o número de exilados. Esta crise teve como

epicentro a questão da terra. Quem eram os verdadeiros proprietários das terras em

Judá? Dos exilados que retornaram da Babilônia ou dos remanescentes (camponeses)

que permaneceram em Judá? Os judeus que retornaram, diziam ser eles, por natureza e

descendência, os legítimos proprietários. Já os camponeses que haviam permanecido em

Judá, bem, talvez não tiveram muitas oportunidades de defenderem seus interesses ou

quem pudesse lhes representar, mas com certeza devem ter protestado e, de fato, o

fizeram (cf. Ne 5,1-5), mas, conforme pode ser constatado, foram extremamente

hostilizados e marginalizados, tanto por Esdras, quanto por aqueles que retornaram.

Na verdade, os camponeses que permaneceram e passaram a cultivar as terras,

que talvez fossem deles próprios anteriormente, viviam numa situação, às vezes, de

extrema pobreza, habitavam vilas e aldeias, e com certeza, não ficaram livres de terem

que pagar impostos aos babilônios. Na sua grande maioria eram incultos e analfabetos,

estavam desagregados e sem chefes. Mas, podemos imaginar que o espírito tribal,

naquilo que mais caracterizava seu peculiar modo de vida, que era a solidariedade e

igualdade, jamais deixou de estar presente.

Mas, no tocante aos exilados, com certeza, aquela geração de judeus que foram

deportados já deviam ter morrido se pensamos numa expectativa de vida em torno de 40

a 50 anos para as pessoas que compunham aquele grupo – gente não muito acostumada

a trabalhar, por isso, a viver do trabalho e esforço de outros: a elite jerusolimitana.

Pode-se pensar que uma segunda e terceira geração de judeus possam ter nascido

daquela primeira. Quanto ao regresso desses judeus é possível imaginar que nem todos

imperial ao templo já construído e para rebater as pretensões do templo rival da Samaria”. Para além da Bíblia..., p.312.

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retornaram, talvez porque já estivessem estabilizados na Babilônia, com seus próprios

negócios em funcionamento, enquanto outros trabalhavam no aparelho burocrático do

estado. Enfim, pode-se afirmar, que uma “minoria” – tomando por base os números

apresentados pelos livros de Esdras e Neemias, que soam exagerados demais – tenham

voltado.

Em Esdras 2 e Neemias 7 encontram-se duas listas daqueles que retornaram com

uma grande coincidência entre os nomes. Conforme Mario Liverani assinala:

É verdade que os livros em questão são, como já referido, tardios e cheios de equívocos

involuntários (ou seja, devidos à ignorância) e voluntários (ou seja, devido à sua

intenção). [...] É um tipo de documento que por sua extrema importância legal pode ser

ou totalmente autêntico ou uma completa falsificação. As cifras e os topônimos dão um

quadro muito realista para fazer preferir a opção da autenticidade.282

É interessante perceber que nas duas listas se encontram algumas variantes.

Determinado grupo é mencionado somente em uma das listas, enquanto o total final não

bate nas duas listas. São registrados 25 mil leigos e cerca de 5 mil entre sacerdotes e

encarregados do templo, além de 7500 servos, perfazendo um total de quase 40 mil

pessoas. Se comparado com o número de prováveis deportados há uma grande

discrepância, pois em 2 Reis 24,14 estima-se o número de deportados na primeira leva

de 597 a.C. em 10 mil pessoas. Já o livro de Jeremias 52,28-30 relata que o total de

deportados chegou a 4.600 dos habitantes de Judá. Finkelstein diz que provavelmente o

número de deportados deve ter ficado entre mil e talvez 15 ou 20 mil283

, enquanto o

Prof. Milton Scwhantes postulava que os dados apresentados por Jeremias talvez

estivessem mais próximo da realidade284

. Temos que ter presente que o grupo dos

exilados foram aqueles que pertenciam ao círculo palatino (portanto, à classe

“política”), os encarregados do templo de Jerusalém (sacerdotes e escribas) e os

proprietários de terras. Segundo Finkelstein afirma:

Quando comparamos esse número com a população total de Judá no final do século VII,

antes da destruição de Jerusalém, podemos ter uma ideia da escala de deportação. A

população de Judá pode ser estimada, de modo acurado, a partir dos dados coletados

durante as escavações e levantamentos intensivos, em cerca de 75 mil habitantes (com

Jerusalém compreendendo pelo menos 20% desse número – 15 mil – e com outros 15

282

Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.314. 283

Israel Finkelstein, A Bíblia não tinha razão..., p.410. 284

Apontamentos em sala de aula. Universidade Metodista: 2008 – 2012.

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mil habitantes provavelmente nas terras agrícolas mais próximas). Assim, mesmo se

aceitarmos os números mais elevados possíveis para os exilados – 20 mil – eles parecem

compreender, no máximo, ¼ da população do Estado de Judá; isso significa que pelo

menos 75 por cento da população permaneceu na terra judaica.

Desse modo, tem-se a impressão que a maioria habitava Jerusalém e as pequenas

cidades e vilas da Judéia (territórios tribais de Judá e Benjamim).

Conforme a figura do mapa acima se pode denotar que as fronteiras, apesar de

haver certa imprecisão porque não podem ser deduzidas a partir dos dados atuais, pode

nos dar uma razoável ideia de onde estavam. Judá incluía os antigos territórios de Judá e

Benjamim, com a fronteira norte em algum lugar ao redor de Betel. A fronte oriental

para o Jordão e o Mar Morto, aparentemente incluindo Jericó e Em-Gedi. A oeste, a

maioria do Shephelah foi excluída, juntamente com Gezer, Azeca e Laquis, todas fora

da província. A fronteira sul se estendia até Bete-zur e poderia ter incluído Hebron

(apesar de que o local estava abandonado durante o período persa). Como se pode ver

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pelo mapa, temos ainda a configuração de outras províncias, todas pertencentes à

Satrapia Transeufratênia (Ebir-nari), isto é, o território que fica a oeste do Eufrates. Um

dado recente e interessante da arqueologia que tem ajudado a definir os limites

geográficos da província de Judá são os chamados “selos”. Não somente os carimbados

em frascos e na alça de vasos, que de acordo com o local onde foram encontrados são de

grande importância em função da determinação dos limites da província.

Segundo Lester Grabbe comenta, o período persa de Judá pode ser caracterizado

segundo dois princípios demográficos:

Redução drástica da população e

Aumento igualmente dramático dos assentamentos

O primeiro dado que chama a atenção em estudos recentes é o pequeno número

de pessoas que parece ter vivido na província de Judá do longo do período. Embora

tenha havida um aumento gradual da população através dos 200 anos, mesmo em sua

forma mais densamente povoada, a população não parece ter ultrapassado cerca de 30

mil pessoas. Esta teria sido uma redução global da ordem de 70% desde o final do

período do Ferro II. Todas as áreas tiveram uma queda drástica no número de

estabelecimentos dumans, com exceção da região entre Jerusalém e Bet-zur.

Com exceção de Jerusalém, Mizpá e talvez, Ramat Rahel, a maioria dos

habitantes da província de Judá, viviam em aldeias sem muros e cidades. A região de

Benjamim tinha um percentual ligeiramente maior de locais muito pequeno e médios. Já

a região de Judá, tinha um percentual maior de locais grandes dimensões: 75% destes

locais com mais de 300 pessoas estavam no antigo território de Judá.

A população da franja oriental ou do deserto quase desapareceu. Parece que essa

região veio a ser evacuada no fim da idade do Ferro, quer através da direta destruição ou

rápido declínio.

O principal assentamento em Jerusalém estava na velha Cidade de Davi em

torno da colina e do Monte do Templo. Estas áreas foram consideradas sendo habitadas

por não mais de 1500 habitantes. Além disso, precisam ser computados os demais

habitantes que viviam nas fazendas e assentamentos fora dos muros, totalizando

aproximadamente cerca de 3000 habitantes. Isso poderia parecer enorme, mas a

realidade era de que nos assentamentos da Judéia a população não ultrapassava a 300

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habitantes. Mas apesar de ser o maior local, Jerusalém não foi o grande centro urbano

como alguns tem retratado. Segundo Lipschits, citado por Lester Grabbe, Jerusalém foi

uma cidade com um templo, ao redor do qual havia residências para aqueles que

serviam no templo e para um pequeno número de residentes locais. A cidade

permaneceu pobre durante todo o período persa, embora muito dos repatriados,

provavelmente, lá se estabeleceram.

Resumindo, Lester Grabbe conclui que Judá foi uma pequena província de não

mais de 30 mil habitantes, com 10% vivendo dentro de Jerusalém e ao seu redor, o

único local realmente urbano. Este número representou uma queda de 70% da

população a partir do final do Ferro II. A maior parte da população vivam em pequenas

aldeias não muradas. A grande surpresa é que a migração dos exilados da babilônia não

parece terem deixado muito de uma marca na arqueologia ou demografia.285

4.6 – O sacerdócio jerusolimitano

Da mesma forma como é impossível escrever uma história de Israel a partir dos

dados fornecidos pela Bíblia Hebraica, assim também, se torna igualmente impossível,

traçar um perfil histórico do sacerdócio em Israel. Os textos relativos à ascensão dos

sacerdotes em Israel são igualmente construções profundamente ideologizadas, servindo

única e exclusivamente como forma de justificação e legitimação de seu projeto de

estabelecimento no poder.

O sacerdócio desenvolvido em Jerusalém durante o período de domínio dos

aquemênidas não se diferencia muito dos demais tipos de especialistas religiosos que se

encontra por todo o Oriente Próximo Antigo. Tendo por função essencial garantir a

mediação entre Deus e as criaturas humanas, o sacerdócio sempre ocupou uma posição

de destaque dentro dos vários tipos de sociedades ao longo de toda a história do gênero

humano. De certo ponto de vista, pode-se dizer que os sacerdotes sempre contribuíram

para que houvesse uma determinada estabilidade do corpo social. Por isso, pode-se falar

numa função sócio-estabilizadora do sacerdócio.

Sendo uma dentre tantas outras especialidades no trato com o sagrado, o

sacerdócio jerusolimitano ganhou um destaque todo especial devido a sua habilidade de

conjugar tanto o poder religioso e sagrado com o poder político. O judaísmo nos serve

285

Lester L. Grabbe, A history of the Jews…, p.28-30.

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de excelente exemplo de como a conjunção do religioso com o político se transformou

numa instituição profundamente danosa e prejudicial, senão para toda a sociedade, ao

menos para os grupos tribais, que tiveram suas vidas inteiramente modificadas. No caso

do judaísmo, o sacerdote substituiu tanto os reis quanto os demais especialistas no trato

com o divino ou religioso.

Se como afirma Luís Lorenzetti “a análise social do poder evidencia, por

exemplo, que em uma sociedade dominada por valores religiosos o poder se concentra

nas mãos dos sacerdotes”286

, vou tentar reconstruir a caminhada histórica da ascensão

do grupo sacerdotal jerusolimitano ao centro do poder sócio-político em Jerusalém e

Judá.

Como foi demonstrado no tópico anterior, a sociedade judaíta, incluindo

principalmente Jerusalém, como seu polo aglutinador no período pós-exílico, esteve no

centro de uma disputa que se prolongou durante todo o período de domínio do império

Aquemênida, somente se definindo e estabilizando dentro do período de domínio do

império grego. Portanto, foram pelo menos três séculos de lutas, principalmente no

campo ideológico, para que o grupo sacerdotal se justificasse e legitimasse no poder.

Se na modernidade “a problemática da legitimação do poder encontrou a direção

significativa quando abandonou a fundamentação do poder vindo do alto”287

, o que

pode-se notar, principalmente neste período e contexto do judaísmo, é o oportunismo da

classe sacerdotal em articular-se literariamente para alcançar o poder e nele se perpetuar

por muitos e muitos séculos.

Nesse sentido, Jerusalém e Judá não estavam isentas da influência deste tipo de

prática que era comum a todo o Oriente Próximo Antigo. Luís Lorenzetti nos diz que

“na área cultural mediterrânea, o poder político estava estreitamente relacionado com o

fato religioso mediante alguma conexão ou descendência entre o imperador (ou o rei, ou

o chefe do povo) e a divindade. Isto dava motivação absoluta e ética à obediência

devida ao poder”288

. Isso é o que se poderá constatar ao ver como a classe sacerdotal

conseguiu a hegemonia do poder frente a todos os demais grupos. Mas, principalmente,

286

Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.968. 287

Idem, p.971 288

Idem, p.975. Foi contra esta postura, de identificação pura e simples, da obediência política com a obediência religiosa e moral que se levantaram os sofistas na Grécia antiga.

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como já destacado, o que fez com que o campesinato judaíta abdicasse dos seus valores

éticos e morais para seguir este novo projeto. Ao que tudo indica, não tiveram escolha.

Para isso, temos que necessariamente lançar mão de alguns instrumentais

específicos, particularmente os oriundos das ciências humanas, pois, como afirma Luíz

Lorenzetti:

Um dado importante da sociologia consiste em evidenciar, além da importância do fenômeno do poder na sociedade, a impossibilidade de compreendê-lo fora de determinado contexto social. O contexto social permite captar, antes de tudo, a unidade e a articulação dos diversos poderes: político, econômico, ideológico... De pouco serve seguir a multiplicidade dos poderes considerados como independentes, sem segurar a base e o núcleo do poder que leva depois à sua ramificação diversa.

A unidade do poder (e a sucessiva articulação dos diversos poderes) se estabelece, sobretudo, por referência aos valores sociais presentes em determinada sociedade. A análise social do poder evidencia, por exemplo, que numa sociedade dominada por valores religiosos o poder se concentra nas mãos dos sacerdotes.289

É nesse sentido que sou obrigado, epistemologicamente falando, a me

embrenhar por um campo da ciência, que não sendo tão específico da área de exegese

bíblica, me proporcionará excelentes referenciais teóricos, tendo em vista os objetivos a

serem alcançados tanto em relação ao título quanto ao objeto de pesquisa desta tese.

O termo sacerdócio tem sua raiz na palavra kohen que no texto hebraico tem

750 ocorrências. Etimologicamente está ligado à raiz Kun, que implica na ideia de

firmeza, solidez, e é utilizado para o estabelecimento do santuário. Encontrado

abundantemente nos achados arqueológicos em Ugarit, que foi na antiguidade um

grande centro religioso, demonstra sua popular utilização.

Encontramos já nos textos bíblicos mais antigos inúmeras referências aos

sacerdotes. Particularmente, são os livros proféticos, os textos mais antigos, que fazem

mais referências aos sacerdotes, mas, diga-se de passagem, referências muito negativas.

Amós por exemplo, – texto do período pré-exílico – profetiza ao povo dizendo que

aqueles que buscam o Senhor que o procurem de coração sincero, seguindo suas leis e

seus preceitos:

289

Luís Lorenzetti, “Poder”, em Marciano Vidal, Dicionário de teologia Moral, São Paulo, Paulus, 1997, p.968.

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“Procurai-me e vivereis. Mas não me procureis em Betel, no Guilgal não entreis, não

passeis por Beer-Sheba” (Am 5,4b-5a);

“Detesto, desprezo vossas peregrinações, não posso suportar vossas assembleias,

quando me fazeis subir holocaustos; e em vossas oferendas nada há que me agrade;

vosso sacrifício de animais cevados, dele viro o rosto; afasta de mim o alarido de teus

cânticos, o toque de tuas arpas, não posso nem ouvi-lo” (Am 5,21-23).

Amós na primeira citação orienta a todos que não se dirijam aos santuários, tanto

de Betel, quanto aos santuários de Guigal ou de Beer-Sheba. Apesar do texto não fazer

uma referência explicita aos sacerdotes, supõe-se que à frente de cada santuário

existisse um ou mais sacerdotes. Amós, ao que parece, tem uma visão teológica

completamente diferente da teologia que irá se desenvolver e se solidificar nos escritos

da OHD, no livro do Pentateuco e na OHC, que é justamente esta teologia que ele e os

outros profetas condenam. Uma teologia centrada no sacrifício que no período de estudo

do meu objeto de pesquisa irá se traduzir numa Teologia da Retribuição (TdR). Ao

contrário, a visão teológica de Amós é plena de justiça social. Honrar e ser fiel a Deus

implica em fazer justiça, mas particularmente, justiça aos mais pobres.

O terceiro Isaías, também conhecido por Trito-Isaías, tem uma visão teológica

similar à visão de Amós, plenamente centrada na justiça social, isto é, anti-templar, por

isso, anti-sacerdotal. Vejamos:

É para isto que tu proclamas um jejum, um dia favorável junto ao Senhor?

O jejum que eu prefiro, acaso não é este: desatar os laços provenientes da maldade,

desamarrar as correias do jugo, dar liberdade aos que estavam curvados, em suma,

que despedaçais todos os jugos? Não é partilhar o teu pão com o faminto?

E ainda: os pobres sem abrigo, tu os albergarás; se vires alguém nu, cobri-los-ás:

diante daquele que é a tua própria carne, não te recusarás.

Então a tua luz despontará como a aurora, e o teu restabelecimento se realizará bem

depressa. Tua justiça caminhará diante de ti e a Glória do Senhor será a tua

retaguarda. (Is 58,5c-8)

A exemplo do profeta Amós, também o Trito-Isaías relaciona a pratica religiosa

com a justiça. Cultuar a Deus ou jejuar significa na ótica teológica do Trito-Isaías,

mesmo estando numa situação de exílio, libertar os cativos, dar pão aos famintos, roupa

aos desnudos e abrigo aos pobres desamparados. E haviam muitos nesta situação de

pós-guerra.

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Diante do exposto acima, pode-se constatar que no período pós-exílico existiram

diferentes afluentes teológicos, isto é, diferentes grupos com ideias completamente

opostas umas às outras que, de certa forma, estiveram presentes num intenso combate

ideológico tendo em vista a sua legitimação no poder.

Como já assinalado anteriormente, os dois grupos que mais se destacam são o

campesinato judaíta e o grupo sacerdotal jerusolimitano, ao menos do ponto de vista

bíblico. O campesinato judaíta não porque tenha querido adquirir o poder, mas porque

acabou se tornando objeto de extremo valor econômico nas mãos dos demais grupos,

pois era quem produzia e mantinha economicamente a cidade de Jerusalém com vida. Já

o grupo sacerdotal de Jerusalém foi o grupo que se aproveitando especialmente das

articulações com o império Aquemênida se sobrepôs aos demais grupos, alcançando

assim a hegemonia do poder sobre todo o território de Judá. Foram escribas ligados a

este grupo, quem provavelmente, como será demonstrado, que fizeram a redação final

do Pentateuco e elaboraram a OHC.

Assim, passemos agora a traçar, mesmo que de modo muito conciso, a partir do

próprio texto bíblico290

, os percalços que o sacerdócio jerusolimitano fez.

Levando em conta os dados oriundos da arqueologia que descaracterizam

totalmente a história narrada pela Obra Historiográfica Deuteronomista (Josué, Juízes, 1

e 2 Samuel e 1 e 2 Reis) é possível afirmar, com certeza absoluta, que o chamado Reino

de Judá em oposição ao Reino de Norte – ou Reino de Israel – jamais alcançou tamanha

glória como descrito nos livros citados acima. Muito pelo contrário, o Reino do Sul ou

de Judá, foi um reino quase que desprezível do ponto de vista econômico, religioso e

militar. As inúmeras citações de ostentações de grandeza e poder relativas a Salomão

são, poderíamos dizer hoje, uma invenção dos redatores que tinha como único objetivo

servir como fator ideológico, cuja função foi de legitimar a supremacia do Reino de

Judá (Sul) em relação ao Reino de Israel (Norte).

290

Essa referência ao texto bíblico como fundamento para se traçar a caminhada histórica do sacerdócio é possível apenas a partir de extrapolações do próprio texto. É a partir de contradições deixadas pelos redatores que podemos fazer algumas tentativas de reconstrução da caminhada histórica do sacerdócio jerusolimitano.

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Tradicionalmente, o gráfico que é traçado, mediante os dados fornecidos pelos

relatos bíblicos (criação do redator da OHD) é este:

Mas, de acordo com os recentes dados alcançados pelas descobertas

arqueológicas, alguns eventos sofrem um profundo deslocamento no tempo e no

espaço, conforme a figura abaixo:

REINO DO NORTE

- ISRAEL -

REINO DO SUL

- JUDÁ -

P

A

T

R

I

A

R

C

A

S

E

G

I

T

O

D

E

S

E

R

T

O

REINO DO NORTE (ISRAEL)

722 a.C.

TRIBALISMO MONARQUIA

UNIDA

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Os dados mais recentes provindos das escavações arqueológicas comprovam a

ilustração gráfica acima. Nunca houve uma “monarquia unida”, nunca houve um Reino

de Judá superior em honra, tamanho e poder superior a Israel, a não ser depois da

destruição de Samaria pelos Assírios em 722 a.C.. Foi somente a partir destes eventos

que Judá começou a ter certo destaque no cenário de todo o Oriente Próximo Antigo.291

É nesse contexto, após a destruição de Samaria, capital do Reino de Israel pelos

Assírios que, sob os auspícios do rei de Judá, escribas trataram de escrever outra

história – Obra Historiográfica Deuteronomista –, totalmente diferente daquela que

havia acontecido. Muitos que pertenciam ao Reino de Israel foram mortos, outros

levados para outras partes do império e ainda outros, conseguiram fugir para o sul,

justamente para Judá, pois ali era uma região segura que não despertava o menor

interesse de quase ninguém.

É certo que neste período (séculos VII e VI a.C.) já havia um núcleo do

Pentateuco que seria mais tarde, no contexto do domínio persa, totalmente reescrito pelo

grupo sacerdotal. Este núcleo que trazia costumes e leis (tradições do Reino de Israel)

muito provavelmente foi trazido para Jerusalém quando da fuga da população israelita

diante do massacre imposto pelo exército assírio. O que fizeram os escribas da corte

jerusolimitana: provavelmente mediante ordens expressas do rei e influenciados pelos

sacerdotes dos antigos santuários jebuseus que havia em Judá, – que nesse período já

demonstravam gozar de muitos privilégios junto ao rei judaíta – ignoram totalmente,

291

Israel Filkenstein,

SOCIEDADE IGUALITÁRIA SEM

IDEALISMOS E UFANISMOS

REINO DO SUL (JUDÁ)

E

X

I

L

I

O

TRIBALISMO

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não somente a história passada, mas cooptam a história israelita para si e tratam de se

inserir como um grupo sacerdotal cuja origem remontaria a Davi.

É nesse contexto que aparece pela primeira vez nome de Sadoc, sacerdote

jebuseu, que mediante uma aliança com Davi, dividiram o poder sobre Jerusalém. Com

Davi teria ficado o poder político e com Sadoc o poder religioso. Ao que parece,

conforme relato de 2 Sm 8,17-18; 15,24ss, Davi teria assumido modelo monárquico dos

jebuseus, incorporando seu quadro administrativo, pois precisava de gente preparada

para dirigir o novo estado. Ainda conforme o relato da OHD na luta pela sucessão ao

trono de Davi, o grupo de Hebron, mais ligado às tradições israelitas, foi vencido pelo

grupo de Jerusalém, mais ligado às tradições cananeias. Abiatar, sacerdote de YHWH,

foi expulso por Salomão e substituído por Sadoc. Joab, o comandante militar de Davi

desde a época tribal, foi assassinado por Salomão e substituído por Banaías.

É obvio que temos aqui a mão dos escribas judaítas alterando a história, o que no

tocante aos sacerdotes jebuseus, desprezaram as tradições religiosas do norte – Israel –,

isto é, seus santuários e seus sacerdotes, enfim, toda a sua tradição religiosa. Os fatos

narrados nesse contexto pelos redatores da OHD são fatos que teriam acontecido em

torno do início do século X a.C., portanto, escritos de 350 a 400 anos posteriormente.

Nesse sentido, pode-se constatar que os escribas judaítas, provavelmente, tendo

conhecimento dessas tradições mais antigas pertencentes ao Reino de Israel ora

consignadas na fonte mais antiga do Pentateuco, não mediram esforços e nem

criatividade para adulterá-las.

John van Seters, argumentando sobre o surgimento da historiografia em Israel

faz a seguinte afirmação com relação à Obra Historiográfica Deuteronomista:

[...] Não temos razões para acreditar que o autor dispusesse de outras fontes,

tradicionais ou arquivísticas, ao compor as várias cenas e episódios da sua obra. Todos

eles devem ter sido inventados. A noção de um relato testemunhal tem de ser

abandonada, o que implica a revisão de toda a reconstrução do surgimento da escrita da

história em Israel. Antes do historiador Dtr, não há qualquer indício de uma

historiografia desse tipo em Samuel-Reis.292

292

John van Seters, Em busca da história: historiografia no mundo antigo e s origens da história bíblica, São Paulo, EDUSP, 2008, p.302.

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Diante desses fatos é possível afirmar que a verdadeira tradição israelita, naquilo

que poderia ter existido, historiograficamente falando, foi enterrada. Somente a

arqueologia, muitos séculos posteriormente poderia como tem feito atualmente, tornar a

reescrevê-la. O fato é que os dados referentes à tradição sacerdotal, segundo a linhagem

sadocita terá grande influência, não somente no controle das atividades cultuais no

templo de Jerusalém, permanecendo no poder até a revolta dos Macabeus em 174 a.C.

(2 Mac 4,7), mas também influenciará por demais, tanto a OHC (particularmente, 1ª e 2ª

Crônicas) quanto o próprio livro do Pentateuco que passará por uma total revisão de seu

conteúdo.

O livro de Levítico é o ápice do escrito sacerdotal no Antigo Testamento.

Seu principal foco é a responsabilidade do culto dos sacerdotes, mais notavelmente o

sistema sacrificial. Eles realizaram todas as atividades relativas ao altar, seja a aspersão

do sangue ou a queima das peças sacrificiais (ver especialmente caps. 1-7; 21-22).

Havia outras funções do culto, embora, como as cerimônias do Dia da Expiação (Yom

Kippur), em que o sumo sacerdote tinha uma função central (16). A outra função

mencionada por Levítico é a tarefa de se pronunciar sobre as questões de puros e

impuros (11-15), especialmente no caso de “lepra” (13-14).

Apesar de indicado apenas de passagem em Levítico (25,32-34), textos

sacerdotais geralmente assumem uma diferença entre os descendentes de Aarão

(referido como “sacerdotes”) e os outros descendentes de Levi (“levitas”). Esta é feita

especialmente, de modo muito claro, em Números. Os levitas são a categoria mais baixa

do clero, com responsabilidade sobre o tecido do templo (ou tabernáculo, nos textos do

deserto), pois a eles também são atribuídas outras tarefas domésticas no culto (Nm 1,47-

53; 4). Os levitas foram consagrados para servir a Aarão e os sacerdotes (3,8) no lugar

do primogênito, cujo papel tem sido tradicionalmente. Somente os sacerdotes tinham

permissão para presidir o próprio altar e foram para receber apoio de parcelas de

sacrifício, os primeiros frutos e os dízimos dos levitas (17,5.18). Os levitas receberam o

seu apoio principalmente do dízimo do povo, se fossem dar o dízimo por sua vez, aos

sacerdotes (18,21-32). A prerrogativa dos sacerdotes sobre os levitas é graficamente

ilustrada pela história de Coré, que tentou democratizar o sacerdócio (16). Embora os

chefes de outras tribos (como Ruben: 16,1-3) também estavam envolvidos, um ponto

especial é feita de que os levitas não estavam satisfeitos com seu papel e, bem como,

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queriam assumir deveres sacerdotais (16,8-11). Quando eles foram mortos de forma

sobrenatural, isto foi visto como juízo ponderado de Deus sobre tal idéia.

Em contraste com os escritos sacerdotais de Levítico e Números, o

Deuteronômio não faz distinção entre os sacerdotes e levitas, ao invez, refere-se aos

"sacerdotes levitas" (7,9) ou "sacerdotes, filhos de Levi" (21,5; 31,9). Embora a situação

é assumida e não discutida, uma passagem sugere que alguns viam a questão de maneira

diferente a partir da posição nos escritos sacerdotais: 18: 1-8 diz que toda a tribo de Levi

é sem herança e, portanto, qualquer levita tem o direito de tomar o seu lugar no altar e

receber suas dívidas. A tribo de Levi tem a responsabilidade de levar a Arca e

freqüentando a Yhwh, não tendo nenhuma herança (10,8-9). Devido a isso, as pessoas

dizem para não esquecer o levita dentro de suas portas, quando todos se alegrarão

perante Yhwh (12,12; 18-19; 26,11). Em seu uso do festival do dízimo ou do dízimo do

terceiro ano, as pessoas foram para lembrar o levita (14,27. 29; 26,12). Assim, apesar de

algumas objeções, Deuteronômio parece considerar todos os levitas como tendo o

direito de presidir o altar.

Assim, o grupo sacerdotal sadocita em Jerusalém, por meio de experientes

escribas, construíram toda uma história segundo seus objetivos, que a princípio eram

participar e desfrutar do poder da realeza, para num segundo momento – pós-exílico –

assumir, definitivamente, o poder político sobre todo o território de Judá. Em vista

disso, de geração em geração, membros desse grupo se encarregaram de controlar esta

história:

São notórias as inserções feitas nos escritos proféticos gestados no Reino de

Israel. Basta ver as referências a respeito de Judá nos livros de Amós e Oséias,

que foram livros escritos e destinados exclusivamente à sociedade norte-

israelita.

4.7 – O regime teocrático

Ontem como hoje, podemos ver como é verdadeiramente nefasto para qualquer

sociedade a junção numa só instituição destas duas dimensões plenamente humanas:

política e religião. Parto do pressuposto de que em todas as sociedades em que se deu tal

junção, quem levou a pior foram os pobres, a classe dominada política e religiosamente.

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Aliás, se constitui no objetivo principal desta tese confirmar a extrema

incompatibilidade e ilegitimidade da união destas duas dimensões, digam-se,

fundamentais da existência humana, numa só instituição. Para isto, tomarei como

exemplo um caso particular: o Judaísmo pós-exílico no seu período formativo.293

Ali

temos a possibilidade de ver com clareza e nitidez a junção destas duas dimensões

encarnadas no clero sacerdotal jerusolimitano. Como veremos mais à frente, foi por...

Segundo Silvio Ferrari:

Com o termo teocracia, designa-se um ordenamento político pelo qual o poder é

exercido em nome de uma autoridade divina por homens que se declaram seus

representantes na Terra, quando não uma sua encarnação. Bem característica do sistema

teocrático é a posição preeminente reconhecida à hierarquia sacerdotal, que direta ou

indiretamente controla toda vida social em seus aspectos sacros e profanos. A

subordinação das atividades e dos interesses temporais aos espirituais, justificada pela

necessidade de assegurar antes de qualquer outra coisa a salusanimarum dos fiéis,

determina a subordinação do laicato ao clero: a Teocracia que etimologicamente

significa “Governo de Deus”, traduz-se assim em hierocracia, ou seja, em Governo da

casta sacerdotal, à qual, por mandato divino, foi confiada a tarefa de prover, tanto a

salvação eterna, como o bem estar material do povo.294

Spencer no seu Principes de Sociologie, procura mostrar “a estreita relação que

havia entre as instituições políticas e as eclesiásticas, nos povos antigos ou

selvagens”295

.

293

Sabe-se pela história que o regime teocrático de Israel (judaísmo) serviu de modelo e inspiração para igreja Católica desenvolver seu projeto político de amplo domínio após a queda do Império romano, ao longo de todo o período da idade média. Agostinho já havia teorizado sobre a devida subordinação do estado à igreja em De Civita Dei. “Os dois maiores dons de Deus concedidos aos homens pela divina clemência – conforme está escrito no Corpus juris civilis – são o Sacerdócio e o Império: aquele cuida das coisas divinas e este, por sua vez, rege e vigia as coisas humanas; um e outro, derivando de um só e mesmo princípio, são o ornamento da vida humana”. Destas afirmações, conforme escreve Silvio Ferrari, “derivam consequências teóricas de grande alcance e em particular a tese que atribui ao pontífice a totalidade do poder, seja espiritual seja temporal: ‘Nós sabemos pelas palavras do Evangelho – escreve Bonifácio VIII na Bula Unam saneiam (1302) – que nesta Igreja e no seu poder existem duas espadas uma espiritual e outra temporal... as duas estão em poder da Igreja, a espada espiritual e a espada material; uma na verdade deve ser empunhada pela Igreja e a outra pela Igreja também; a primeira pelo clero; a segunda, pela mão do rei ou dos cavaleiros, mas segundo o comando e a condescendência do clero, porque é necessário que uma espada dependa da outra e que a autoridade temporal esteja sujeita à autoridade espiritual’”. Será com a reforma protestante, que ao romper a unidade religiosa europeia, que será marcado o ocaso definitivo do sistema teocrático católico. Idem, p.1237-1238. 294

Silvio Ferrari, “Teocracia” em Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, 11ª Edição, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1983, p.1237. 295

Citado por Roger Bastide, Elementos deSociologia ..., p.100.

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Na Grécia antiga, o chefe do culto era o rei que além de presidir as oferendas de

sacrifícios, recitava as orações e presidia as refeições religiosas. Igualmente aos reis

gregos, os primeiros imperadores romanos assumiram também a função de sacerdotes.

Também sabemos que, tanto no Egito, como na América pré-colombiana, os reis e

faraós, se ocupavam também das orações, tendo em vista a fecundidade da terra e o

poder de governar seus súditos.296

Conforme a interessante teoria das origens mágicas da realeza de Frazer, a

religião é posterior à magia, assim como o sacerdote ao feiticeiro. Nesse contexto, o rei

se converte num deus encarnado.297

A religião, conforme Davy é a categoria sob a qual começa a pensar-se a

constituição de um poder individual. Desse modo, a soberania política requer, para

produzir-se, certas transformações das antigas concepções religiosas.298

Desse modo, Roger Bastide chega à conclusão de que os sentimentos religiosos

são a força constrangedora e necessária para a implantação do poder político299

, pois

conforme Luís Lorenzetti a dimensão religiosa sempre dava motivação absoluta e ética

à obediência devida ao poder político300

.

São diversos os testemunhos históricos desse recurso utilizado pelos reis e

chefes no período antigo. Tanto Amenófis no Egito, quanto Ezequias e Josias no Reino

de Israel (Judá) dissimularam sua ação política por trás de uma reforma religiosa. Assim

Marcel Mauss vê nessa atitude de integração do poder religioso ao poder político uma

espécie de organização correspondente a um começo do monoteísmo301

.

Chamam-se teocracias os regimes em que essas duas espécies de sociedades encontram-

se misturadas. Spencer elaborou os principais fatores explicativos: as estreitas relações

do clero com o divino dá-lhe uma autoridade misteriosa, o fato de que muitas vezes o

sacerdote representa, num país, a classe mais culta e mais inteligente; o poder que

resulta do acúmulo de propriedades (dons, salários, oblações, etc.). Este tipo de

organização pode ter diversas formas. Há um governo teocrático, propriamente dito

quando dois poderes estão nas mesmas mãos [...] Este governo aparece em todas as

monarquias de origem sagrada no extremo Oriente, na Pérsia e no fim do Império

296

Roger Bastide, Elementos de sociologia religiosa, São Paulo, UMESP, 1990, p.100. 297

Idem, p.101. 298

Idem, p.103. 299

Roger Bastide, Elementos de sociologia..., p.102. 300

Luís Lorenzetti, “Poder” em Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Editora Paulus, 1997, p.968. 301

Roger Bastide, Elementos de sociologia..., p.103.

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romano, pois “em tal estado social a obediência torna-se, de alguma maneira, um dever

religioso”(Joussain).302

4.8 - Conclusão

Desse modo, pode-se notar que, de fato, existem na base do judaísmo, pelo

menos dois grupos bem distintos: de um lado, os sacerdotes ligados ao templo de

Jerusalém e, do outro, o campesinato judaíta, isto é, herdeiros da mais pura tradição

tribal. Desse modo, a partir dos assuntos desenvolvidos neste capítulo 4, constatou-se

que o Judaísmo, nunca foi um projeto que teve sua origem nos longínquos tempos do

início do período monárquico, mas sim, que sua gênese pode ser localizada com muita

certeza na transição do período persa para o período grego. É aqui, neste período que

entram em choque diferentes forças sociais (diferentes grupos sacerdotais?) na luta pela

posse do poder tanto religioso quanto político.

Nesse sentido, diferentes são as visões do sacerdócio israelita a partir dos textos

do Antigo Testamento. Alguns textos falam em “sacerdotes levitas”, outros em

“sacerdotes e levitas”, “aaronitas e levitas” ou ainda, “sadocitas e levitas”. Como se

verá, o conceito que prevaleceu no período do segundo templo foi o de sacerdotes que

oficiavam no altar do templo e de levitas (como uma espécie de baixo clero) com outros

deveres. Essa diversidade nos textos reflete uma intensa luta dentro do templo no

sentido de que grupo ficaria responsável, propriamente, pelo exercício do ofício do

culto. É certo que o grupo que prevaleceu fez uso da literatura bíblica como forma de

legitimação de seu status e poder.

Diante desses fatos, pode-se concluir que os textos do Antigo Testamento,

relativos ao sacerdócio, particularmente, os livros do Levítico e Números, foram

ideologicamente escritos em função das lutas dentro do sacerdócio antes de terem sido

canonicamente assumidos por toda a sociedade judaíta.

302

Idem, p.104

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III PARTE

Capítulo V - JUDAÍSMO

“No que diz respeito à religião, a crítica da religião, no essencial, terminou, e a crítica da religião é condição preliminar de toda crítica” karl Marx

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O Judaísmo a princípio dá a entender que foi um projeto querido, organizado e

conduzido em todas as suas diferentes fases por uma divindade. Um projeto que

vingou que deu certo, apesar de ter passado por inúmeras crises ao longo dos séculos,

finalmente teve êxito. Um projeto que desde Adão e Eva, passando pelos patriarcas,

pelas 12 tribos, pela monarquia, pelo exílio e pela restauração no período do 2º

templo, tudo parece que já estava pré-determinado no desígnio divino. Mas, é de se

perguntar:

O que deu certo?

Para quem deu certo?

Quem arcou com as consequências?

Toda a nação israelita, que no contexto do período do segundo templo se

resumia à província de Judá, lucrou com o êxito desse projeto? Algum grupo social

teve algum tipo de prejuízo com a implantação desse projeto? Enfim, que conclusão

pode-se tirar baseado nas desastrosas consequências socioeconômicas,

particularmente, em relação à população campesina?

O judaísmo tradicionalmente é tido como a religião do livro, pelo fato de ter

seus fundamentos alicerçados em alguns escritos, principalmente daqueles que se

originaram no período do segundo templo. Foi no contexto desse período que livros

como Ezequiel 40 – 48, Esdras e Neemias, 1 e 2 Crônicas e Pentateuco foram editados.

Mas, muito mais do que pura teologia, especulações sobre Deus e seus desígnios,

neles temos a oportunidade de identificar nitidamente seu caráter ideológico, o que

nos levará a concluir de maneira significativa de que tipo foram as relações de poder

que se estabeleceram entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.

Para Richard A. Horsley, citado por Blenkinsopp, o “judaísmo” não se

caracterizou por ser uma forma essencialmente religiosa da vida, mas constituiu-se

numa faceta de uma entidade político-étnica, uma forma que se caracterizou num

estado agressivo e expansivo alegando legitimidade religiosa, mantendo e ampliando

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seu poder por meios militares, incluindo a utilização de mercenários estrangeiros.303

Nesse sentido, no fundo da questão, não estão problemas teológicos, mas questões

identitárias, uma terrível disputa pelo controle do templo, pois as facções religiosas em

disputa sabiam da importância que era ter esse poder nas mãos. Portanto, o judaísmo

no fundo, é muito mais uma crença política do que uma crença religiosa.

Por exemplo, os livros de Esdras e Neemias, atualmente, são considerados

muito mais como emblemáticos de posições ideológicas do que como objeto de

interesse biográfico. São inúmeros os debates inconclusivos sobre a formação do livro,

a confiabilidade histórica das memórias e dos documentos citados, os tipos de

narrativas que eles contêm.304

Passo a desenvolver nos próximos tópicos alguns temas que julgo pertinentes

ao se tratar da questão das relações de poder dentro do contexto do segundo templo,

– mais especificamente do judaísmo – temas que, aliás, ainda hoje são assuntos que

tem provocado intenso debate entre os estudiosos.

Segundo Roger Chartier, as obras de Michel Foucault, Michel de Certeau e Louis

Marin propõe uma questão fundamental:

[...] como pensar as relações que mantêm as produções discursivas e as práticas sociais? *...+ Para eles “a ordem do discurso, segundo a expressão de Foucault, é dotada de eficácia: ela instaura divisões e dominações, é o instrumento da violência simbólica e, por sua força elocutória, pode fazer advir o que designa”.305

De fato, as produções discursivas que fundamentam o judaísmo, como poderão

ser verificadas, resultaram em práticas sociais onde a característica principal foi a

instalação de uma profunda divisão social. Os escritos que fundamentam essas

relações de poder foram tão eficaz que instauraram divisões e dominações, tornando-

se um verdadeiro instrumento da violência simbólica.

303

Richard A. Horsley, Scribes, Visionaries, and the politics of Second Temple Judea, London, Westminster John Knox Press, 2007, p.188. 304

Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.9. 305

Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p.119.

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5.1 – Judaísmo: projeto imperial persa.

É muito sugestiva a ideia de que o judaísmo pós-aquemênida, possa ser fruto

da todo um trabalho organizado e desenvolvido pelo poder imperial persa, como meio

de neutralizar qualquer revolta de caráter político que pudesse inviabilizar seus

objetivos na região da província. Para os persas interessava, acima de tudo, a

regularidade no pagamento de tributos e que Jerusalém, apesar de não ser

estrategicamente a melhor opção, deve ter servido para eventuais paradas de

destacamentos militares. Mas, com certeza, as cidades fenícias da costa mediterrânea

despertavam um interesse muito maior, pois seu domínio representava uma estável

“cabeça de ponte” para suas incursões na região do delta do Nilo.

Partir da hipótese de que as bases do judaísmo tenham sido arquitetadas por

experientes estrategistas persas junto aos exilados, particularmente em conjunto com

grupo sacerdotal denominado “sadocita” faria do sistema religioso judaico, nada mais

nada menos do que, como afirma Althusser, um aparelho ideológico de poder do

sistema de dominação do império persa.

Como logo será visto no tópico abaixo, segundo Joseph Blenkinsopp, Ez 40 – 48

teria sido o projeto ideológico resultante da estratégica política persa para a província

de Judá. Um projeto com iniciativa dos experientes estrategistas persas em conjunto

com a classe sacerdotal sadocita. O projeto não teve o êxito esperado, pelo menos da

parte da classe sacerdotal em particular, tanto que os livros de Esdras e Neemias

deixam entrever, que são na verdade dois projetos ideológicos distintos que quando

foram escritos – possivelmente no início do período de domínio grego – refletem

muito mais, uma disputa interna entre grupos rivais pelo domínio do poder político e

pelo controle do templo de Jerusalém do que um escrito meramente

(auto)biográfico.306

306

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase – the place of Ezra and Nehemiah in the origins of Judaism, U.K., Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2009, p.117-159.

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No tocante à questão das relações de poder entre o campesinato judaíta e a

classe sacerdotal jerusolimitana, o problema de se aceitar ou não que o judaísmo foi

no seu princípio um projeto cuja origem esteve relacionada com o grupo dos exilados é

muito relevante, pois para o grupo sacerdotal que deteve o poder político e o controle

do templo, ter o império a seu favor foi de extrema importância para justificação e

legitimação de suas pretensões. Já o campesinato nada podia fazer contra a força

ideológica do projeto e muito menos contra a força das armas do exército persa.

Hans Kippenberg confirma essa hipótese quando diz que:

O Estado judaico, depois do exílio, foi também obra dos dominadores persas, os quais participaram do retorno dos exilados, da reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém, da ereção de uma satrapia independente de Samaria e da introdução das leis judaicas sob Esdras. Estes acontecimentos sozinhos não são ainda suficientes para avaliar a tolerância dos dominadores persas. Todos eles tem por base uma meta, que pode ser considerada como a de favorecer um Estado sacerdotal. A “oposição ao carisma político dos heróis recomendou aos povos dominadores, em todo lugar, a hierocracia como meio de acalmar os povos subjugados”, escreve Max Weber, e continua: “Helenismo e judaísmo são, a meu ver, em seus traços mais importantes, produtos de defesa da soberania persa de um lado, e da submissão, do outro”.307

Seguindo a mesma linha de raciocínio, também Joseph Blenkinsopp, acredita

que o templo de Jerusalém, depois de sua reconstrução, sete décadas mais tarde, não

serviu como um santuário nacional, mas foi utilizado enquanto instrumento de

controle social e político do império persa.308 Judá, segundo Blenkinsopp, se encaixava

no padrão estado-templo-cidade sob o controle de um oficial persa e administrada por

um sacerdócio isento de impostos. Era comum na Ásia Menor, encontrar este tipo de

organização, por exemplo, Xanto, na Licia, Comana na Capadócia e Zela em Pontus e,

em uma escala muito maior, na Mesopotâmia.309

Outro estudioso que também postula ter sido o judaísmo no seu início, nada

além de um mero projeto do poder imperial persa é Peter Frei. Desde 1982 quando

307

Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia: estudo socioreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social, São Paulo, Paulinas, 1988, 308

Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase…, p.6. 309

Idem, p.7.

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apresentou um primeiro trabalho sobre o tema até 1994, quando apresenta o mesmo

tema sob novas luzes, Peter Frei pode aprofundar mais ainda esta temática.

Segundo Peter Frei, esse fenômeno só ocorreu como estratégia do império

Aquemênida. Por definição, foi um processo pelo qual as normas estabelecidas pela

autoridade central foram inteiramente assumidas pelas autoridades locais. Desse

modo, as normas centrais assumidas localmente eram sempre hierarquicamente

superiores e obrigatórias para todos. Frei designa essa normatização do poder imperial

central como sendo uma “autorização imperial”.310

Para Peter Frei, foi Esdras que recebeu do governo persa a “autorização

imperial” para introduzir um livro de leis de caráter religioso conforme Esd 7,26-27.

Frei se questiona no sentido de tentar esclarecer se a “lei de Deus” seria idêntica à “lei

do rei”? Para ele o artigo “e” expressa a identidade das duas leis ou estaríamos lidando

com duas leis formalmente distintas? Apesar, do fundo histórico da missão de Esdras

ser um tanto controverso, o que toca à questão do regime imposto pelo império

Aquemênida, para Frei é o que verdadeiramente importa. Em verdade, foi uma

verdadeira intervenção na estrutura da comunidade que estava subordinada à

“autorização imperial”.311

Quanto à missão de Neemias, que Frei considera de caráter nitidamente

político e organizacional, portanto, bem diferente com relação à “suposta” missão de

Esdras. Um detalhe que Frei chama a atenção é quanto às insistentes referências que o

texto faz como sendo “norma do rei”.312 Nesse sentido, Esdras para Frei teve uma

participação muito mais decisiva com relação a Neemias, pois foi aquele que

introduziu na província de Judá a “lei de Deus e a lei do rei”.

E antes de tecer sua conclusão com relação à suposta “autorização imperial”,

ele leva em conta diferentes referências antigas, tais como: a chamada “carta de

310

Peter Frei, “Persian imperial authorization” em James Watts (editor), Persia and Torah: the theory of imperial authorization of the Pentateuch, Society of Biblical Literature, Atlanta, 2001, p.7 311

Peter Frei, “Persian imperial authorization…, p.11-12. 312

Idem, p.13-14. Para mim pessoalmente é de se questionar se um rei do porte do imperador persa iria se preocupar com tantas minúcias da vida social de pequena província quase que perdida na imensidão do império. Ao que tudo leva a crer, deve ter sido um recurso literário utilizado pelo redator para conferir autoridade ao livro, isto é, legitimar as normas ali prescritas.

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páscoa de Elefantina”, a aprovação do “regulamento do purim” no livro de Ester, A

disputa de fronteira entre Mileto e Myus, a inscrição trilíngue de Letoon, o oficial

egípcio Udjahorresne, os regulamentos de Dario para a seleção de sacerdotes, a

obrigação legal dos jônios por Aetaphernes, a inscrição de Sardis, o documento do

oeste da Ásia Menor, especialmente Cária. Na verdade, Frei faz todo um esforço de

mapeamento de possíveis elementos que ajudam a corroborar a ideia de uma

“autorização imperial” como algo passível de ter existido de fato.

Concluindo Frei argumenta que o império Aquemênida pode ser considerado o

primeiro império supra nacional de esfera cultural do Mediterrâneo, que merece esse

nome, não somente em função das suas dimensões, mas porque ele manifesta um

modo todo peculiar e imperial de pensar. Frei está consciente de que não é possível

verificar o grau de lealdade em todas as partes não iranianas do império onde foram

implantados tal projeto.313

Na avaliação de James Watts, Peter Frei afirma que os persas autorizaram uma

legislação local em várias partes do império. Tal “autorização imperial” teria criado um

arranjo federativo pelo qual as comunidades locais ganharam um grau legal de

autonomia permanecendo ao mesmo tempo sob o domínio do poder imperial. Assim,

para Peter Frei, a lei de Esdras (Esd 7) seria presumivelmente o livro do Pentateuco.

Uma ação típica dos persas, só do império persa.314

Mas, não são todos os estudiosos que estão de acordo com Peter Frei.

Participando de um simpósio no ano de 2000, em Nashville diversos estudiosos da área

foram convidados a fazerem uma avaliação da teoria da “autorização imperial” persa e

sua aplicação ao livro do Pentateuco.315

Joseph Blenkinsopp concluiu de forma bem equilibrada, afirmando que

“autorização imperial” tendo o livro do Pentateuco como objeto central da polêmica,

permanece como uma possibilidade, embora não tão forte como Peter Frei teria

afirmado. Blenkinsopp argumenta que a iniciativa para se consolidar o aparato jurídico

313

Peter Frei, “Persian imperial authorization…, p.39-40. 314

James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.1. 315

Idem, p.2.

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do judaísmo pode muito bem ter sido dada pelas autoridades persas, mas afirmar que

o livro do Pentateuco foi de fato editado, mediante uma ideologia totalmente criada

pelo poder persa não tem nenhuma evidência.316

Lisbeth Fried argumentou que a comissão chefiada por Esdras que fora enviada

por Artaxerxes foi limitada à nomeação de juízes persas na província de Judá. Eles

teriam agido de acordo com a lei persa, e não segundo as leis presentes no Pentateuco

ou outras tradições jurídicas judaicas. Embora, Lisbeth Fried acredite que os

governantes locais, citando o exemplo de Neemias, podem muito bem ter emitido

alguns decretos, baseados em sua autoridade, com base nas tradições jurídicas da

província de Judá.317

Lester L. Grabbe partilhando da opinião de que o Pentateuco teria surgido em

sua forma atual no final do período persa, questiona, no entanto, a historicidade das

tradições de Esdras, portanto, de qualquer “autorização imperial”.318

Gary Knoppers observa que na literatura dos períodos persa e helenístico a

distinção entre lei real e sagrada é aplicada a uma grande variedade de configurações

e não apenas para as leis imperiais ou do templo. Ele sugere que os líderes locais, sob

os persas desfrutavam de muito mais autonomia do que a teoria de Peter Frei

admite.319

Donald Redford examina as referências à lei e os usos do direito nos textos

egípcios citados por Frei e, mais nitidamente, a preocupação dos egípcios nos dois

séculos antes da conquista persa. Redford concluiu que o interesse de Dario na coleta

316

Joseph Blenkinsopp, “Was the Pentateuch the civic and religious constitution of the Jewish ethnos in the Persian period” em James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.41-62. 317

Lizbeth S. Fried, “’You shall appoint judges’: Ezra’s mission and the rescript of Artaxerxes” em James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.63-89. 318

Lester L. Grabbe, “The Law of Moses in the Ezra tradition: more virtual than real?” em James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p. 91-113. 319

Gary Knoppers, “An achaemenid imperial authorization of Torah in Yehud?” em James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p. 115-134.

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de leis egípcias estava em continuidade com as práticas anteriores e serviu apenas

para informar os persas das tradições existentes.320

A partir das avaliações citadas acima de cada um dos estudiosos que

participaram de simpósio em Nashville no ano de 2000, James Watts conclui, com

relação ao tema da “autorização imperial” que tomados em conjunto, estes artigos

sugerem que a evidência disponível não suporta a comparação da política persa feita

por Peter Frei das legislações modernas que regem as relações entre um governo local

e um governo nacional. Os exemplos da influência persa sobre as leis locais parecem

muito diversificada e esporádica para ser produto de uma sistemática política do

império persa. No entanto, a evidência existente mostra que existiu algum

envolvimento persa em assuntos jurídicos. Desse modo, pode ter havido um

envolvimento dos persas na designação do Pentateuco quanto a ter sido considerado

como a lei oficial da comunidade do templo de Jerusalém. Isto não quer dizer que os

persas possam ter interferido em seu conteúdo, mas que apenas deram um caráter

oficial a um documento elaborado pela comunidade do templo.321

Blenkinsopp faz uma investigação quanto ao aspecto ideológico presente nos

livros de Esdras e Neemias. Ele argumenta que a ideologia ali presente foi

incubada no período da diáspora babilônica, durante um século e meio, que foi

o tempo que separou as primeiras deportações até a época de Esdras e

Neemias. Esta ideologia estaria ligada com “lei do templo” de Ez 40 – 48. As

principais prescrições deste programa visionário tem a ver com a exclusão de

estrangeiros no culto e, portanto, da comunidade. Faz uma distinção entre

sacerdotes do altar (Sadocitas) e sacerdotes do templo (levitas); estando os

levitas num nível inferior aos sadocitas, com uma função muito diminuída e

“teocratizada”, do governante secular; e repartição de terra. Blenkinsopp

sugere que este grupo foi influenciado ou talvez fosse até membro da escola de

Ezequiel na diáspora babilônica, grupo que poderia ser identificado em Esd 9 -

320

Donald Redford, “The so-called ‘codification’ of Egyptian law under Darius I” em James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p. 135-159. 321

James Watts (editor), Persia and Torah: the authorization of imperial authorization of the Pentateuch, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001, p.3

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10 como “aqueles que tremem diante da palavra do Deus de Israel”, cuja

missão era lançar a base para uma nova política teocrática na província de

Judá.322

Mas, não se pode deixar de fazer menção das famosas tábuas do tesouro de

Persépolis e das tabuas da fortificação de Persépolis. Elas são um contributo

importante ao estudo dessa temática, pois iluminam o conhecimento dos tempos

pérsico, ou mais especialmente, da esfera administrativa e da área econômica. Uma

das características mais interessantes segundo H.G.M. Willianson (1991), citado por

Grabbe, são as inscrições sobre pagamentos de rações e suporte para vários

sacerdotes e atendentes do culto. Nesse sentido, chega-se à conclusão de que era

política geral do império persa apoiar a religião, os templos e como essa peculiaridade

impactava toda a extensão do império.323

Segundo Amélie Kuhrt (1983) o alegado incentivo a cultos e religião sob os

persas é frequentemente exagerado na literatura moderna. Isto acontece em parte

devido à propaganda que os reis persas faziam deles mesmos. Na prática os persas

continuaram o que já era política geral nos impérios do Oriente Próximo: declarar sua

piedade pessoal em suas inscrições, de como eles foram diligentes em obedecer a seu

deus ou deuses, sempre seguindo sua vontade. Tolerar cultos locais desde que não

ameaçassem a ordem política. Caso contrário, puniam e destruíam sem a menor

piedade os cultos que fossem considerados subversivos (conforme M.A. Dandamaev e

Lukonin: 1989).324

Concluindo este tópico, acredito que no tocante às relações de poder entre o

campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana se houve ou não uma

“autorização imperial” para aplicação de uma suposta “lei do Deus de Esdras e do rei”

(Esdras 7) que Peter Frei sugeriu como sendo o livro do Pentateuco na sua forma final,

não é de todo irrelevante, mas o que importa na análise tendo em vista meu objeto de

pesquisa que será visto no tópico seguinte, quando analisarei mais detidamente o

conteúdo de alguns livros, dentre os quais está o livro do Pentateuco, é quanto ao fato

322

Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.10. 323

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1…, p.214. 324

Idem, p.215.

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ou não do judaísmo, e com ele todo o sistema religioso – templo e classe sacerdotal –

terem utilizado o campesinato como trampolim para a conquista de seus interesses.

5.2 – A ideologia como estratégia do grupo sacerdotal sadocita

Se o Pentateuco foi ou não um projeto “financiado”, isto é, estrategicamente

orquestrado pelo poder imperial persa, como quer dar a entender Peter Frei, ainda se

pode questionar, mas não perceber o caráter ideológico de alguns textos,

principalmente daqueles – de origem inquestionavelmente sacerdotal – que tiveram

influência decisiva na ascensão e estruturação do judaísmo e, particularmente, na

justificação e legitimação do grupo sacerdotal sadocita, implica em continuar refém de

uma leitura infantil como diz S.E.McEvenue citado por Norbert Lohfink325, isto é, sem

nenhum critério ou parâmetros críticos, mas guiado segundo a hermenêutica

tradicional, ou seja, aceitando cegamente que os textos bíblicos são livros divinamente

inspirados e revelados, crendo no caráter de inerrância dos hagiógrafos, na veracidade

dos eventos históricos ali narrados e etc..

A partir do contexto de meu objeto de pesquisa – relações de poder – esta tese

tem por objetivo também demonstrar que o Judaísmo teve como uma de suas

principais características se configurar como um projeto ideológico, isto é, se constituir

num sistema de crença ideológico. Em verdade, este sistema estava configurado como

uma falsa representação da realidade e por isto, pode-se afirmar seu caráter

ideológico.

Se como afirma Marx, que “não é a consciência dos homens que determina

(bestimmt) sua existência, mas, pelo contrário, é sua existência social que lhe

determina a consciência”326, pode-se conjecturar que foi a partir da realidade histórica

das relações que foram sendo estabelecidas entre o campesinato judaíta e a classe

sacerdotal jerusolimitana que posteriormente foram editados os principais livros que

fundamentam esse sistema de crença ideológico denominado judaísmo.

325

Norbet Lohfink, Theology of the Pentateuch: themes of the priestly narrative and Deuteronomy, Mineapolis, Fortrees Press, a994, p.143. 326

Henri Desroche, O marxismo e as religiões, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra LTDA., 1968, p.11.

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Os textos foram redigidos num segundo momento, isto é, num momento em

que, provavelmente, estava-se vivendo um momento de forte crise, de lutas entre

diferentes grupos tendo em vista a sua legitimação no poder. Os textos, nesse sentido

foram redigidos com a finalidade de não só interpretar a realidade, mas também de

justificar e legitimar o grupo sacerdotal sadocita como autêntico grupo no controle e

poder do templo de Jerusalém.

Conforme esquema apresentado na página 68, o Judaísmo, com todo seu

arcabouço teológico, quando submetido à luz da teoria marxista, isto é, aos conceitos

e categorias filosóficas do materialismo histórico, não resiste, não se sustenta, mas

pelo contrário, se desmancha como um castelo de areia. Como um sistema de crença

ideológico, o Judaísmo se configura, conforme o título que dei ao esquema que a

ideologia percorre – processo ideológico real – até cumprir todas as etapas

relacionadas à noção de “falsidade”: ideologia como falsa apresentação, falsa

consciência, falsa motivação e falsa representação.

Se de fato como já observado anteriormente, as relações de poder entre o

campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana funcionam como uma chave

de leitura na compreensão de muitos textos do período do segundo templo,

submeterei os seguintes livros – Ezequiel 40 – 48, Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas e

Pentateuco – a um estudo de conjunto, pois ambos os livros se completam e são o

fundamento ideológico da dominação sacerdotal.

Mas, por outro lado, ter uma postura moderada como Erhard S. Gerstenberger,

quando afirma que os textos não querendo ser um relato histórico, mas refletindo a

vida da comunidade pós-exílica, isto é, de grupos ligados a esta comunidade, teriam

sido os promotores de um “projeto de reconstrução nacional” baseado na lei, não se

dá conta do elemento ideológico presente nesse projeto. É óbvio que avançou muito

em relação a estudiosos como Jacob Milgrom327, Rolf P. Knierim328 que se

fundamentam numa hermenêutica um tanto quanto historicista dos textos. Assim,

327

Jacob Milgrom, Leviticus – A Continental Commentary, Minneapolis, Fortress, 2004, 388p. 328

Rolf P. Kinierim, The task of Old Testament theology, 1995.

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Gerstenberger se pergunta se não seria ele, o grupo sacerdotal, que estaria por trás

das formulações legais presentes, por exemplo, no livro do levítico.329

Segundo Nancy Cardoso Pereira, a dinâmica desse projeto sacerdotal obedece

não só a critérios civis, mas também a critérios religiosos, resgatando antigas

tradições, tabus e interditos, que irão legitimar os interesses políticos e econômicos da

classe sacerdotal como grupo dominante.330 É o que confirma também Elaine Gleci

Neuenfeldt ao constatar que esse projeto sacerdotal se insere dentro daquela

“dinâmica onde os símbolos, ritos e crenças são tomados de seu contexto de origem e

cooptados/integrados por um grupo detentor do poder político e econômico, que

busca um poder hegemônico, no âmbito ideológico”331.

No fundo da questão, isto é, no campo das motivações, ao que me parece, o

grupo sacerdotal sadocita esteve interessado muito mais em se garantir

economicamente do que em construir um projeto que fosse autêntica e genuinamente

representativo da identidade do povo de Israel. Muito mais do que fazer teologia e ser

legítimos mediadores da vontade divina, o grupo sacerdotal não economizou na tinta e

nas benesses. Comer e beber, desfrutando do bom e do melhor, que naquele contexto

a sociedade poderia lhes fornecer e, o melhor, sem ter que trabalhar para isso, esse

foi, economicamente falando, seu objetivo de vida.

Se, como disse Marx, mais importante do que o que produz uma determinada

sociedade é o como esta sociedade se organiza para executar essa produção. Deste

modo, o conceito de modo de produção adquire aspecto central para se avaliar o

campo econômico de qualquer sociedade. Por isso, se torna prioridade descobrir quais

são as relações específicas que são postas em movimento pelos agentes sociais numa

dada sociedade, com a intenção de produzir e reproduzir sua vida material.

Essas relações sociais de produção correspondem a um determinado estágio de

desenvolvimento das forças produtivas, isto é, ao tipo do modo de produção

329

Erhard S. Gerstenberger, Leviticus, p.10-16. 330

Nancy Cardoso Pereira, Comida, sexo e saúde: Lendo o Levítico na América latina, p.138-139. 331

Elaine Gleci Neuenfeldt, “Menstruação, parto e impureza no Levítico: controle de corpos e líquidos das mulheres”, em Estudos Bíblicos, Sexualidade e homossexualidade na Bíblia, nº 66, Petrópolis, Vozes, 2000, p.31-32.

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implantado na sociedade. Essas mesmas relações sociais de produção estão ligadas a

outras estruturas, que derivam dela e mantém entre si interações recíprocas nos

períodos de reprodução. A reprodução é possibilitada, por sua vez, exatamente por

essa interação entre as estruturas, ainda que a estrutura econômica exerça sempre a

determinação em última instância.332

Isso quer dizer que as relações sociais de produção sempre ocorrem debaixo de

uma estrutura jurídico-política (forma de Estado, sistema jurídico, conjunto de leis,

aparelho repressivo) que tem por papel legitimar e garantir a reprodução do modo de

produção, ou seja, dar possibilidade constante das condições necessárias para a sua

continuidade, inclusive frustrando a organização política das classes antagônicas.

Também a estrutura ideológica tem o papel de gerar representações das próprias

práticas e da inserção dos grupos e dos indivíduos nessas práticas, no sentido de

tornar essas relações viáveis aos olhos das classes, permitindo assim a coesão social, a

resignação e a possibilidade de a classe dominante exercer plenamente sua

dominância.333

Na província de Judá, ao longo do período de dominação do império persa, ou

mais especificamente, no fim desse período, foi a estrutura religiosa a estrutura que se

estabeleceu como estrutura dominante, isto é, foi a estrutura que serviu de base, ou

como sugere Marx, serviu de infraestrutura ao sistema de crença que se ergueu como

um edifício envolvendo a tudo e a todos. O judaísmo, enquanto um sistema de crença

complexo abarcava todas as dimensões da vida, desde os gestos mais rotineiros até

atos mais graves que uma pessoa poderia cometer. A totalidade da vida estava

completamente perpassada pelo viés religioso. Nada escapava aos olhos da divindade

que tudo via e recompensava a cada um na medida da observância de suas leis.

Nisto pode-se ver que o judaísmo se tornou símbolo de uma sociedade onde o

poder religioso que a classe sacerdotal jerusolimitana se auto conferiu evoluiu a tal

ponto, que absorveu em si mesma, além do poder religioso, também o poder político.

Aqui toco no ponto central desta tese que é o de demonstrar que no judaísmo se tem 332

Cesar Mangolim, “Conceito de modo de produção” acessado http://cesarmangolin.files.wordpress. com/2010/02/mangolin-o-conceito-de-modo-de-producao-2010.pdf em 19/04/2011. 333

Etienne Balibar, Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, volume 2, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980, 329p.

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um modelo exemplar de transição de uma forma de sociedade fundada na igualdade

social e política de seus membros, isto é, em uma sociedade sem classes sociais, para

uma sociedade nitidamente dividida em classes sociais, onde a religião e a política

estavam nas mãos de um mesmo grupo social que se arvorou no direito de

determinar, principalmente, o que lhe convinha, e de imputar aos demais, os seus

devidos deveres.

Com isso não quero afirmar que a província de Judá se comportou como uma

espécie de nação-estado, de que teve autonomia suficiente para não pagar nenhum

tributo, seja aos persas ou, posteriormente, aos gregos. De fato, isso não seria possível

devido à política de repressão adotada pelo império persa que procurava neutralizar

qualquer possibilidade de que tal coisa viesse a se tornar realidade. Por isso pode-se

falar num poder religioso com forte conotação política, pois é justamente isso o que se

conclui do estudo do conjunto final dos textos que formam a Bíblia Hebraica, mas

especialmente os textos redigidos pela classe sacerdotal jerusolimitana.

Na prática, esse projeto de absoluta autonomia política nunca chegou a se

concretizar, pelo menos nos tempos do Antigo e do Novo Testamento. Esse poder

político da classe sacerdotal jerusolimitana sempre foi exercido sob os auspícios e

vigilância de um poder maior, seja no período em questão pelos persas, ou

posteriormente no período de domínio grego ou no período romano. Gozou, talvez de

certa liberdade, nos períodos de grande crise pelas quais passaram esses grandes

centros do poder mundial, mas via de regra, pelo menos, em nível de província, este

grupo sacerdotal jerusolimitano agiu como se tivesse tal poder, influenciando toda a

população da província.

A dimensão religiosa se constituiu assim na infraestrutura que, de certa forma,

organizava todo o edifício, isto é, a superestrutura formada pelas estruturas

econômica, pela estrutura jurídico-política e ideológica, cuja materialização, se tornou

real e concreta nos seus escritos.

Afirmar, portanto, que a estrutura religiosa foi a estrutura dominante em Israel

ao longo desse período, não implica em dizer que a estrutura econômica não tenha

sido a estrutura que tudo determinava em última instância.

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Conforme Etienne Balibar salienta:

Isso quer dizer que, ainda que sempre determinante em última instância, a estrutura econômica, dependendo do modo de produção, atribui a uma das outras estruturas, ou a estrutura econômica mesma, tem um papel dominante no sentido de cumprir uma tarefa especial para a reprodução das relações sociais de produção específicas de um modo de produção específico.

A definição de um modo de produção depende, portanto, da análise da articulação específica das estruturas, sempre considerando a determinação em última instância pela estrutura econômica.

Portanto, pode-se dizer que a caracterização de um modo de produção depende do reconhecimento de como as relações sociais de produção são reproduzidas, ou seja, quais as determinações da permanência contínua da reprodução do modo de produção, o que nos leva, necessariamente, a ter que desvendar: quais são as características essenciais dessas relações sociais de produção; como estão distribuídos os meios de produção (propriedades dos meios de produção); como se dá a apropriação do que é produzido, como estão dispostos os humanos nessas relações sociais de produção (as classes sociais) a forma de estado e de todo o aparelho jurídico-político derivado dessas relações e essenciais para a reprodução, bem como as representações ideológicas que permitem até certo ponto a coesão social.334

Se a caracterização do modo de produção de uma determinada formação social

depende do reconhecimento de como as relações sociais de produção são

reproduzidas, isto nos leva à seguinte pergunta: Quais são as determinações da

permanência contínua da reprodução do modo de produção em que se configurou no

judaísmo?

No caso de Israel esta permanência continua da reprodução era, ou melhor, foi

garantida, não somente pela articulação /interação das diferentes estruturas, mas

porque as relações sociais de produção estavam ancoradas num sólido sistema

jurídico, de caráter político-religioso, que profundamente arraigado no imaginário

social, particularmente do campesinato, que se constituía na grande força de mão de

obra, condicionava-os, mesmo que inconscientemente, à manutenção, ou seja, à

permanência contínua da reprodução do modo de produção, que no caso da formação

social israelita, pode ser caracterizado como sendo tributarista.

334

Etienne Balibar, Louis Althusser, Roger Establet, Ler o capital, volume 2, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980, 329p.

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Este modo de produção tributário em Israel desenvolvido sob a forma, não só

de sansões ou penalizações morais, mas também de ofertas que justificados pela

teologia da retribuição obrigavam moralmente o infrator – pecador – a remir ou expiar

sua culpa mediante a oferta de sacrifícios que eram oferecidos no templo de

Jerusalém. Para cada tipo de infração havia uma prescrição que determinava o que

deveria ser oferecido a Deus como prova de sua remissão. Sem o cumprimento destes

preceitos homens e mulheres estavam condenados à maldição divina.335

Por isso passo agora a analisar mais de perto cada um desses livros naquilo que

eles oferecem de mais concreto como prova de seu caráter nitidamente ideológico.

5.2.1 – Ezequiel 40 - 48: Nunca descuidaremos da casa de nosso Deus –

aspectos da economia do segundo templo

“Os que restaram do cativeiro, lá na província estão em grande infelicidade e na vergonha; a muralha de Jerusalém apresenta brechas e suas portas foram

incendiadas” (Ne 1,3)

É com estas palavras que Hanani relata a Neemias, 90 anos depois do fim do

exílio babilônico, a situação daqueles que haviam retornado a Jerusalém. Já se havia

passado quase um século sem que os sonhos de reconstrução de Jerusalém e do

templo tivessem chegado a bom termo. Esses sonhos de reconstrução estão nos

projetos elaborados por Ezequiel e pelo Dêutero-Isaías. Foram dois os motivos que

impediram a execução desse projeto:

A resistência dos campesinato judaíta, provocado pelas posições separatistas

daqueles que haviam voltado por primeiro com Sassabassar e Zorobabel;

Os interesses econômicos e a força política dos povos vizinhos

Nesse sentido é de se imaginar que a corte persa estivesse realmente preocupada

com a situação na província de Judá. Em 460 a.C. já havia acontecido a revolta dos

Ínaros e, depois, em 448 a.C. a revolta de Megabises, parente do próprio rei. Se, de

335

Este conjunto de leis presentes na Torá serão posteriormente e minuciosamente ampliados, dando origem ao Talmude, que contém nada mais nada manos do que 613 mandamentos, sendo 248 positivos e 365 negativos). É o início de uma casuística que tornou a vida de seus adeptos um verdadeiro tormento psicológico.

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fato, existiu um texto em aramaico (cf. Esd 4,7-24) onde o rei exigiu que parassem

todos os trabalhos de restauração dos muros de Jerusalém, devido a instabilidade que

isto estava causando em toda a região, é compreensível que a corte persa tenha

encontrado uma solução com o envio de Neemias.

Mas o interessante é notar que Neemias não veio sem um projeto. Das duas

uma: ou Ez 40 – 48 já estava de posse daqueles que retornaram ou foi Neemias quem

o trouxe na esperança de coloca-lo em prática, garantindo assim a paz e a estabilidade

na região. Trata-se, como se poderá perceber, de um projeto com claras conotações

políticas e econômicas, estabelecendo assim, relações estáveis e duradouras em toda a

província.

5.2.1.1 – Ezequiel 40 – 48: um projeto para a província de Judá.

Se, de fato, Esdras e Neemias refletem não uma autobiografia bem como

também não são um relato histórico, mas reflexos de posições ideológicas de grupos

que estavam se enfrentando pelo controle político e religioso do templo de Jerusalém,

a base desta ideologia deve ser encontrada em Ezequiel 40 – 48.

Nesse sentido Joseph Blenkinsopp afirma que o texto de Ez 40-48 é decisivo e

razoavelmente seguro. As semelhanças entre os temas, a ideologia e a agenda são

suficientes para justificar nossa investigação. Os paralelos entre os perfis de Ezequiel e

Esdras são impressionantes. Ambos presumem serem sacerdotes sadocitas (cf. Esd 7,1-

5) e sacerdotes que manifestam traços proféticos que falando de modo autobiográfico

endereçam o texto à comunidade golah. A preocupação de Esdras com a legislação e a

interpretação jurídica é óbvia. Enquanto que em Ezequiel as fórmulas declarativas de

natureza forense e outros tipos de linguagem jurídica também estão presentes. Desse

modo tanto Ezequiel quanto Esdras, cada um à sua maneira, replica o papel de Moisés

e da promulgação da lei.336

Diferentemente de como foi assinalado acima, onde para Peter frei o

documento que estava nas mãos de Esdras, o “livro da lei de Deus (que era também a

lei do rei)” (cf. Esd 7,14.26), consistia no livro do Pentateuco, para Sandro Gallazzi, que

336

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.127.

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apoiado em outros estudiosos, aponta como hipótese provável o texto de Ez 40-48,

como o texto que Esdras tinha em mãos.337

Apesar de Ez 40,1 datar o texto de 573 a.C. tudo indica que ele é bem posterior

a esta data e ao próprio Ezequiel, talvez tenha se originado junto aos seus discípulos,

sendo que o conjunto reflete muito mais de perto a comunidade que já estava

organizada ao redor do templo, com minúcia de detalhes para quem já estava

participando de cultos e ritos sacrificais, inúteis para quem estava na diáspora (Ez

45,13 – 46,15). Segundo também Joseph Blenkinsopp existe um amplo acordo entre os

estudiosos de que estes nove capítulos se estendem para muito além da vida ativa do

próprio Ezequiel.

Sandro Gallazzi elenca quatro bons motivos que reforçam uma datação bem

posterior para Ez 40 – 48.

A distinção clara entre sadocitas e o resto do corpo clerical (Ez 44,10-31) que

até agora nunca apareceu como importante. Isso será um dos leit-motiv do

cronista;

O fato de afirmar que um grupo (os sadocitas) nunca pecou (44,15) vai de

encontro a toda a teologia da história de Ezequiel 1 – 39 que tem, como ponto

de partida, o fato que todos pecaram, desde o Egito;

O uso de palavras que nunca se encontram no resto do texto, como “sacrifício

pelo pecado”, “dízimo das massas”, que quase nunca são usados em textos

historicamente anteriores e que passarão a ter uma importância central a partir

de Esdras e Neemias;

A missão sadocita de ensinar a diferença entre sagrado e profano, impuro e

puro (Ez 44,23), já dando ao sacerdócio uma conotação legalista e uma

autoridade que nunca teve antes. Aliás, este próprio conceito está mudado em

relação a um momento precedente do pós-exílio. Vejamos, por exemplo, a

contradição definitiva entre Ez 44,19 ou Ez 46,20 e Ag 2,12 acerca da

contaminação produzida pelo sagrado.338

337

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita: sua história e ideologia, Macapá, 2002, p.55-60. 338

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.56.

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a. Direitos iguais ao “sumo-sacerdote” e ao “príncipe”

Figura de grande destaque dentro do texto, pois é aquele que deve “fazer a

expiação pela casa de Israel” (Ez 45,20), o sumo sacerdote tem privilégios significativos

no campo cultual: ocupando um lugar junto à porta oriental, ele entra e sai por essa

mesma porta, que é fechada a todos os demais. O fato curioso, é que esta porta é o

local por onde entrou “a glória do Deus de Israel” (cf. Ez 40,5-16). Ali ele come o pão

diante de Yahweh e assiste aos holocaustos e sacrifícios dos sábados e das luas novas.

“Tudo indica que o ‘príncipe’ de Ez 40 – 48 é o próprio sumo sacerdote, já pensado em

sua função hierocrática de ‘chefe do estado do templo’”339.

Esta é a nova figura, elaborada, desde a diáspora, que substituirá a figura de um rei davídico, cuja memória, neste momento, era “perigosa” tanto para os persas quanto para os judaítas da diáspora que podiam, muito mais facilmente, identificar-se como povo “religioso” ao redor do templo e do sumo sacerdote, do que como povo “político” ao redor de um rei.340

b. A lei do templo (torat habayit)

Um dos destaques que pode ser feito quanto à lei do templo é com relação às

sacristias separadas: uma para os sacerdotes do templo e a outra para os sacerdotes

do altar. Somente os descendentes de Sadoc poderiam servir no altar dos sacrifícios

(Ez 40,45-46).

O retorno da glória ao interior do santuário do templo é o evento culminante

da visão e funciona como um prelúdio para a entrega da “lei do templo” em Ez 43,12.

O paralelismo com Moisés no Monte Sinai na versão sacerdotal do evento é

impressionante. No relato do evento em Ex 24-31, a glória vem descansar na

montanha e, estando Moisés envolto totalmente pela nuvem recebe instruções para a

construção do santuário no deserto, além dos deveres e privilégios daqueles que irão

oficiar nele. A revelação do Monte Sinai conclui com o preceito do sábado (cf. Ex

31,12-18) antecipando assim a importância da celebração do sábado na visão do

339

Sandro Gallazzi, Ensaios sobre o pós-exílio (vol.1): os mecanismos de opressão, 1ª Edição, Macapá, 2003, p.23. 340

Idem, ibdem.

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templo de Ezequiel e em ambas as visões, a liturgia propriamente dita, como o início

de uma nova criação, no oitavo dia.341

Diante do templo é dada ao vidente a instrução quanto às entradas e saídas.

Somente o pessoal qualificado poderá entrar no templo para participar de suas

liturgias, além de determinadas situações que justifiquem a exclusão dele (cf. Ez 44,4-

5). Estas indicações de portas e saídas para um determinado grupo foram de grande

relevância para a ideologia presente nos livros de Esdras e Neemias.

Exclusão de estrangeiros: desde a entrada no templo e participação nas

liturgias (cf. Ez 44,4-9)

Estas instruções e admoestações se constituíram em elementos essenciais no

conjunto de regras da comunidade dos discípulos de Ezequiel. Foram assumidas

integralmente pelos membros da golah. Mas ao ler esta ordenança categórica e

rigorosamente exclusivista é importante ter em mente que ela representa a posição

adotada por um grupo particular, por um grupo que está tentando se impor, tentando

impor sua ideologia. E isto tanto é verdade que os campesinos que ficaram na terra –

província de Judá – e não foram deportados não são reconhecidos como descendentes

da golah, mas como estrangeiros – povo da terra.

Essa posição importante reflexo nos livros de Esdras e Neemias,

particularmente na questão relativa ao casamento com estrangeiros. A ênfase na

linguagem é interessante, já que a linguagem se constitui num importante índice da

identidade nacional. Segundo Blenkinsopp, este dado aponta para algo em comum

com a agenda de Neemias que pode ser descrita telegraficamente como um ritual

étnico. Neste exemplo, Neemias fez com que os transgressores fizessem um juramento

solene de não se casar com a população local (apesar de já estarem casados). Além

disso, não se está devidamente informado se Neemias seguiu o exemplo de Esdras,

forçando-os a se divorciarem de suas esposas e também que tenham despedidos seus

filhos.342

341

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.134-135. 342

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.142-143.

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Não se deve esquecer que o texto não quer ser um relato histórico, mas reflete

uma determinada circunstância que a comunidade Jerusolimitana atravessou. Esta

atitude adotada por Esdras e Neemias, com base na lei do templo de Ezequiel não teria

sido uma forma de se excluir algumas daquelas pessoas que reclamavam cidadania?

Ainda segundo a questão dos estrangeiros – povo da terra / campesinato – a lei

em Ez 44,9 por si só já é uma inovação, pois afirma que aqueles de descendência

estrangeira na província de Judá não podem entrar no templo. As medidas

implantadas por Esdras e Neemias, que implementaram a ideologia elaborada pelos

sacerdotes sadocitas na diáspora babilônica que, retornando à província de Judá

fizeram dela uma ritual de política étnica.

Blenkinsopp vê na atitude dos grupos que estiveram por trás da redação dos

livros de Esdras e Neemias um profundo processo de ritualização e segregação da

Golah. Após o seu apelo à tradição seletiva, a linha de raciocínio com base na

estipulação do direito da lei do templo de Ezequiel poderia ter se desenvolvido mais ou

menos como se segue: uma vez que a comunidade política é também, e

essencialmente, uma comunidade de culto, a participação no culto comum é uma

condição essencial para a adesão. Mas, se os descendentes estão proibidos de

entrarem no templo, não podendo participar do culto, são assim, excluídos da

comunidade.

Embora o ideal encarnado em Ez 44,9 nunca fora perdido de vista e continuou a

ser reconhecido como uma característica da crença judaica há indícios de que o

projeto de criação de uma comunidade auto-segregante ritualmente, que foi o

objetivo também assumido por Esdras e Neemias, não foi um sucesso absoluto. Se

tivesse sido, teríamos esperado uma conclusão diferente para a história de Esdras e,

no pressuposto de que Neemias teria seguido Esdras, não permanecendo como um

projeto a ser realizado alguns anos depois do desaparecimento de cena de Esdras. Ao

longo do período do segundo templo o ideal de segregação ritual, representando a

agenda de um grupo minoritário específico, nunca foi contestada. Por isso, tomando

um quadro mais amplo, a notável expansão demográfica dos judeus entre os

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aquemênidas e os romanos permanecem inexplicáveis, se o objetivo perseguido por

Esdras e Neemias tinha permanecido a única opção disponível.343

Estatuto com os respectivos deveres dos sacerdotes do templo (levitas) e

sacerdotes do altar (sadocitas) (cf. Ez 44,10-31)

A distinção entre sacerdotes do altar e sacerdotes do templo, o que

corresponde à distinção entre Sadocitas e Levitas em Ez 44,10-16, não é

inequivocamente comprovada como uma lei anterior à lei do templo de Ezequiel. No

livro do Deuteronômio, que é anterior a Ez 40 – 48, o termo padrão para os sacerdotes

que trabalham no santuário central é hakkohanim haleviyyim (“sacerdotes levitas”)

que, além de seu serviço no altar, tem funções judiciais, didáticas e de diagnóstico. Em

termos de estatuto e competência, não há distinção entre estes e os sacerdotes levitas

que serviam nos santuários locais desativados por Josias conforme 2 Rs 23,8-9.

Em Esdras e Neemias os sacerdotes nunca são identificados como aaronitas ou

sadocitas, mas apenas por sacerdotes do altar (levitas) e sacerdotes do templo. Desse

modo, segundo Blenkinsopp, os redatores, na sua luta pelo controle do templo, teriam

elevado o status e prestígio dos levitas devido ao recrutamento feito por Neemias,

financiando-os com o dinheiro do dízimo e empregando-os como guardas no templo

(Ne 13,10-13).344

Em síntese, conforme afirma Blenkinsopp, o que se pode apreender pela lei do

templo de Ezequiel a partir do início do período persa e das referências esparsas e

muitas vezes obscuras em Esdras e Neemias consiste numa imagem borrada de uma

luta pelo poder político e pelo controle e recursos do templo, tanto espirituais quanto

materiais, com tudo o que isso implicava. O compromisso que se seguiu, como será

analisado posteriormente, resulta das genealogias e histórias dos redatores do cronista

que definiram, após o desaparecimento de Neemias, uma função dominante no papel

desempenhado pelos sacerdotes jerusolimitanos.345

Os privilégios e deveres do governante secular (cf. Ez 44,1-3; 45,7-17.21-25;

46,1-18; 48,21-22). 343

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.144-145. 344

Idem, p.151-152. 345

Idem, ibdem.

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Na lei do templo de Ezequiel o termo nasi é utilizado exclusivamente para

designar o governante secular, que normalmente é designado pelo termo melek (rei).

No Pentateuco, nasi é um líder tribal. Mas este uso é atualizado nas narrativas

sacerdotais em que os líderes tribais trabalham em conjunto e estão subordinados aos

sacerdotes dentro da comunidade. O mesmo pode ser confirmado no livro de crônicas.

Não pode haver dúvida de que o autor do programa legal em Ez 40 – 48

apresenta um ideal sacerdotal ou hierocrático do governante secular, um ideal ainda

mais alto e partidarista do que o ideal constitucional monárquico do Deuteronômio..

Em Ezequiel praticamente tudo o que é dito sobre os deveres e privilégios do

governante está ligado de uma forma ou de outra ao culto do templo. A lei do templo

é, basicamente, o plano de uma teocracia em que a política está subordinada á religião

e o governante secular às mais altas autoridades religiosas.346

Portanto, se a nível político, a lei do templo previa a subordinação da

autoridade secular ao sacerdote, com efeito, uma política teocrática. Mas, em nível de

realidades políticas, no entanto, a situação era bem mais complexa.

Durante o governo de Neemias, isto é, no período em que foi escrito o livro, a

balança pendeu mais em favor do braço secular. Ao solicitar o apoio popular através

de programas de reforma social (Ne 5,1-13), e pelo recrutamento dos levitas como

aliados contra os sacerdotes (Ne 13,10-13.22), ele conseguiu manter o controle do

templo e conteve o poder da aristocracia sacerdotal. A teocracia teve que esperar por

uma ocasião mais propícia.347

Distribuição do território ao redor do templo (cf. Ez 45,1-6; 47,13-48.29).

Conforme Sandro Gallazzi coloca a questão territorial, é interessante trazer

aqui a ilustração abaixo, pois mostra o modo como Ezequiel ou o seu grupo, mais

propriamente dito, viu a questão da terra na província de Judá, isto é, todo o alcance

de seu projeto.

A realidade de Judá e o projeto de Ezequiel

346

Idem, p.153-154. 347

Idem, p. 155-156.

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Todas as partes vão do Mediterrâneo ao Jordão mas a “altura” delas não é especificada. Só a da porção santa. Uma fatia alta de 12,5 Km, se a unidade de medida for o côvado. 75 Km, se a unidade for a cana de 6 côvados, como no resto do texto e no hebraico. Completando a informação, teremos, o meio desta faixa santa, um quadrado, de 12,5 km de lado, que será repartido em três fatias: 2 de 5 Km, uma para os levitas e outra para os sacerdotes, e 1 de 2,5 Km, para a cidade. O resto é terra do sumo sacerdote, do príncipe.348

A distribuição de terras ficaria conforme a figura abaixo:

348

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita…, p.57.

---------- limites da porção santa (25.000 codos)

Se a porção fosse de 25.000 varas ocuparia todo o território de Judá.

PRÍNCIPE PRÍNCIPE

LEVITAS

SADOCITAS

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Chama atenção uma impossível cidade de 2,3 Km de largura (Ez 48,30-35) e, sobretudo, uma área santa reservada ao templo, de mais de 1,5 Km de largura (Ez 42,16-20). O templo como tal terá uma área de 250m x 250m e o lugar santo de 50m x 150m, mais de 8 vezes maior que o templo salomônico.

Se acrescentarmos a faixa ao norte, entregue à tribo de Judá e aquela ao sul para Benjamim (nota esta inversão), teremos toda a terra de Judá de então. Desta área, metade é terra de Iahweh. E isso usando a medida menor!

As outras tribos já “não existiam” há bastante tempo ou, pelo menos, ninguém podia dispor daquelas terras que, há séculos, estavam nas mãos de outros governantes locais.

Por que este texto propõe uma distribuição tão estranha de terra, que entrega aos sacerdotes a parte maior e melhor da terra entre Belém e Gabaon, o lugar onde estão muitos dos povoados relembrados em Esd 2,21-35 e em Ne 11,25-36?

Creio que aqui não se trata de nem de um plano urbanístico, nem de trabalho de agrimensor, como também não se trata do pensamento de um visionário que desde o exílio sonha, sem conhecer a situação geográfica real.349

Diante desta visão do projeto sadocita em Ez 40 – 48, percebe-se que surge no

horizonte dos deportados uma nova visão teológica da terra, ou melhor, uma visão

extremamente ideológica, da terra como algo que pertence única e exclusivamente a

Deus (Lv 25,23), e que, por isso, deve ser administrada, por direito, por seus

representantes: o príncipe, os sadocitas e os levitas.

Central se tornou a firmação de que:

Esta terra será a sua [do príncipe] possessão em Israel; os meus príncipes nunca

mais oprimirão o meu povo, antes distribuirão terra à casa de Israel, às suas

tribos (Ez 45,8).

349

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita..., p.57-58.

TEMPLO

CIDADE

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Mesmo não estando claro que terra é esta a qual o texto faz referência, se do

príncipe ou outra, é tarefa prioritária dele – do príncipe – fazer a distribuição. Em Ez

46,16-17 afirma-se que o príncipe tem o direito de recuperar alguma porção de terra

que tenha sido doada a alguém que seja estrangeiro no ano da liberdade. Mas que

terra é essa?

A partir do momento em que esse projeto ou essa lei for implantado, ninguém

mais poderá se dizer dono de nenhuma porção de terra.

Eis o porquê da estranha inversão que coloca Judá ao norte de Jerusalém e Benjamim ao sul. Todos sabiam que estava errado, mas o importante era reafirmar que ninguém, nem os de Judá, nem os de Benjamim, eram “proprietários das terras”. Só Deus!350

Mesmo que a palavra nahalah continue sendo utilizada, ela vai sofrer uma

correção quanto ao seu sentido: já não indicará mais a pequena propriedade

camponesa, mas adquirirá um sentido mais amplo, identificando a terra pertencente à

tribos. Nesse sentido, os textos sacerdotais, a começar deste, preferiram utilizar o

termo ‘ahuzah que expressa o sentido de presente, terra doada por Deus. Eis porque o

príncipe pode distribuir a terra, contudo, sem perdê-la, distribui-la, como se ela não

tivesse mais dono.351

Em síntese, percebe-se claramente que o projeto de Ez 40 – 48 tem como

objetivo: legitimar o direito do templo e da cidade de receber todo o cuidado e

atenção por parte da população do campo, isto é, do campesinato, pois a terra é de

Deus e quem trabalha nela deve religiosamente pagar os devidos tributos aos seus

representantes.

Desse modo, o templo será visto como santuário de Yahweh, palácio do

príncipe e armazém dos sacerdotes.

Nesse contexto se faz necessário trazer à baila meu objeto de pesquisa: as

relações de poder. O que se construiu claramente com esse projeto – Ezequiel 40 a 48

– são relações de poder, cuja natureza se expressa em relações de dominação, mas

350

Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita…, p.58. 351

Idem, ibdem.

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dominação numa dimensão que, até então, ninguém havia sido submetido. Ez 40 – 48

se constitui num verdadeiro sistema de crença política. A transformação da realidade

num processo ideológico real. Nesse sentido, Ez 40 – 48, como aparelho simbólico:

interpreta, dá sentido, justifica e legitima a domínio da classe sacerdotal jerusolimitana

sobre o campesinato judaíta.

Dentro de uma visão estrutural a ideologia cumpre seu papel de mascarar a

realidade mediante uma falsa apresentação da própria realidade. Nesse sentido são

utilizados como instrumentos de mediação diferentes aparelhos, que podem ser

caracterizados como aparelhos ideológicos. Quanto aos mecanismos de naturalização

– formas que o poder assumiu – se impõe as ideias, as teorias, os novos valores,

normas (prescrições e proscrições) e os novos princípios éticos. Estes mecanismos

foram sendo socialmente determinados pelas relações de dominação. Pensar no

surgimento das sinagogas nesse contexto não é nada fora da realidade. Como será

demonstrado posteriormente, este projeto não conseguiu ser implantado logo de

início, sofreu muita resistência, não somente por parte do campesinato, mas também

de grupos que igualmente lutavam pelo domínio do poder político e pelo controle do

templo e de seus bens, tanto materiais quanto espirituais.

No nível da racionalização, este projeto teocrático ou hierocrático, isto é, um

projeto de caráter religioso e político teve como estrutura dominante a dimensão

religiosa. Partindo da noção de derivação – racionalidade pseudológica –, ele desceu

como um véu sobre a razão, isto é, atuando sobre os instintos e sentimentos, levando

o campesinato a adquirir uma falsa consciência: de si próprio, da vida, de Deus e do

mundo. De modo que, seu próprio ethos foi sendo alterado, isto é, sua identidade, seu

sentido de vida.

Essa falsa consciência , fulcro da noção marxista, fez com que a classe

dominada – campesinato – não reconhecesse que as relações sociais estavam sendo

alteradas, isto é, que estavam sendo submetidos a uma relação de dominação pela

elite religiosa. Numa atitude de passividade e submissão serviram de estrutura para

que a classe sacerdotal se legitimasse no poder.

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Desse modo, definir a submissão imposta ao campesinato como violência

simbólica ajuda a compreender como as relações de dominação, que é uma relação

cultural, histórica e linguisticamente construída, não foram somente afirmadas como

uma construção de ordem natural, radical, irredutível e universal, mas foi uma relação

sobrenaturalizada, justificada, sacramentada e autenticada em “cartório divino”.

Nesse sentido, averiguar o caráter ideológico do judaísmo como crença política

permite na verdade, tirar conclusões significativas a respeito das relações de poder a

que a crença se refere. O judaísmo no fundo da questão ideológica é muito mais uma

crença política do que uma crença religiosa.

No tocante à falsa motivação, que consiste na terceira etapa do

desenvolvimento do processo ideológico real e que implica em fazer com que todos os

que estão submetidos a um ideológico sistema de crença, dominadores e dominados,

que segundo Pierre Bourdieu “pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que

não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”352, tem por

função, exatamente, dar sentido e coerência entre aquilo que se vive e aquilo que se

crê.

Nessa fase, a consciência que poderia ser a primeira a se rebelar contra o

sistema vigente, já está como que condicionada por asserções de fatos e juízos de

valor formulados e veiculados pelas estruturas que compõe o próprio sistema.

Seguindo o pensamento de Bourdieu, o sistema de crença se apresenta como

estruturante, porque a objetividade do sentido do mundo define-se pela concordância

das subjetividades, onde senso é igual ao consenso.353 Nesse sentido, bom senso é

seguir o modelo que já está devidamente configurado na consciência dos agentes,

impossibilitando outra atitude.

Uma vez erigido como verdade os escritos que fundamentam o judaísmo

prestaram esse desserviço, pois se é verdade que as “palavras tem poder” como

afirma o próprio Bourdieu quando se refere às estruturas simbólicas que estão

presentes em todo discurso. Diz ele que:

352

Pierre Bourdieu, O poder simbólico, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil Ltda.,2002, p.8 353

Idem, ibdem.

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[...] aceitar o modelo saussuriano e seus pressupostos é o mesmo que tratar o mundo social como um universo de trocas simbólicas e reduzir a ação a um ato de comunicação [...]. Embora seja legítimo tratar as relações sociais como interações simbólicas, isto é, como relações de comunicação que implicam o conhecimento e o reconhecimento, não se deve esquecer que as trocas linguísticas – relações de comunicação por excelência – são relações de poder simbólico.354

É desse modo que no dia a dia das trocas linguísticas que as diferenças vão se

superpondo no âmbito das relações sociais, diferenças que delimitam não somente as

fronteiras entre os diferentes grupos sociais, mas acima de tudo, o status que cada

grupo adquiri dentro da sociedade como um todo.

A quarta fase que a ideologia percorre até se consolidar no imaginário da

sociedade ou de um grupo em particular é quanto às falsas representações, isto é, do

caráter de “falsidade” da ideologia como falsa representação. Segundo Serge

Moscovici:

Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tratam, distribuem e

representam o conhecimento. Mas o estudo de como, e por que, as pessoas partilham o

conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, de como elas

transformam ideias em prática – numa palavra, o poder das ideias – é o problema

específico da psicologia social.355

Se, conforme alusão já feita acima, determinadas palavras em alguns contextos

são carregadas de um poder simbólico, esse poder aumenta ainda mais –

simbolicamente falando – quando organizado através de um discurso que vem de

certa forma ao encontro da realidade dos ouvintes. Nesse caso, o discurso ganha uma

força de representação incrivelmente sedutora.

Nesse sentido, a ideologia da centralização do templo em Jerusalém, não

somente como lugar escolhido pela própria divindade, mas acima de tudo com a

promessa de só nele habitar para todo sempre, faz com se crie uma falsa motivação

que leva necessariamente a uma falsa representação, isto é, propicia a transição da

teoria à prática.

354

Pierre Bourdieu, A economia das trocas linguísticas, São Paulo, Edusp, 2008, p.23-24. 355

Citado por Gerad Duveen, “Introdução: o poder das ideias” em Serge Moscovici, Representações Sociais: investigações em psicologia social, Petrópolis, Editora Vozes, 2003, p.8.

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Resumindo, Blenkinsopp acredita que tanto a agenda de Esdras bem como a de

Neemias, nas suas diferentes funções e situações se esforçaram para implementar o

que havia sido definido pelos discípulos de Ezequiel na diáspora babilônica. Os pontos

de concordância entre as agendas de Esdras e Neemias (independente da

historicidade) com a lei do templo de Ez 40 – 48 são impressionantes o suficiente para

sugerir uma relação de dependência com especial relevo para os limites da

comunidade, o funcionamento do culto e a criação de um sistema de governo

teocrático. É razoável concluir que os ensinamentos de Ezequiel foram mediados por

um círculo ou uma escola de discípulos, cuja existência e atividade pode ser deduzida a

partir da história redacional do livro, especialmente na lei do templo nos capítulos 40 –

48.356

5.2.2 – O Pentateuco e a Narrativa Sacerdotal (P)

A situação atual dos estudos quanto ao livro do Pentateuco estão mais do que

abertas. Eckart Otto, em 1977, quando surgiram os livros de H.H. Schimid e de R.

Rendtorff exclamou: Será que estamos hoje diante de uma revolução nas pesquisas

sobre o Pentateuco? Nada será como antes, estamos diante de uma verdadeira

revolução científica.357

A velha e ultrapassada teoria das quatro fontes: Javista (J), Eloista (E),

Deuteronomista (D) e Sacerdotal (P), foi profundamente abalada. Segundo Albert de

Pury e Thomas Romer:

Uma coisa deve ficar bem clara: a questão das origens e do desenvolvimento do Pentateuco não é um problema marginal que só interessaria a um círculo restrito de profissionais da crítica literária. As implicações do estudo do Pentateuco para o conjunto da ciência veterotestamentária – inclusive para a nossa própria percepção da história de Israel – são evidentes. Já em 1890, antes mesmo de se impor um esquema explicativo coerente, Franz Delitzch achava que a prioridade absoluta devia recair sobre a solução da “questão do Pentateuco que é a questão principal de todos os domínios”. Três quartos de século mais tarde, F. V. Winnett – desta vez atacando a

356

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.158-159. 357

Albert de Pury, Thomas Romer, “O Pentateuco em questão: posição do problema e breve história da pesquisa”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.15.

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teoria aceita – constatava que [...] os estudos do Antigo Testamento jamais encontrarão alicerce seguro, enquanto não se resolver o problema do Pentateuco.358

Meu objetivo não será desenvolver um estudo visando determinar as fontes

que foram utilizadas pelos redatores na composição do Pentateuco e nem um trabalho

minucioso de exegese, mas proceder a uma análise do Pentateuco como um todo, pois

como Rolf Rendtorff afirma, ele é a “favor de um novo enfoque em que não se comece

o estudo repartindo imediatamente os textos em ‘fontes’ ou em camadas

determinadas. A exegese deve tomar por objeto o texto em sua configuração atual”359.

Apenas destacarei a narrativa sacerdotal (P) que tem importância e peso

extremamente decisivo dentro do todo do Pentateuco e mais particularmente em

relação com meu objeto de pesquisa: as relações de poder entre o campesinato

judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana.

Segundo ainda Rendtorff:

O fundamento deste ponto de vista está muito mais na convicção de que o/os últimos autores compuseram o texto atual, exatamente como o texto se apresenta a nós, obedecendo a uma intenção bem determinada e que a tarefa principal da exegese consiste em delimitar esta intenção e interpretar o texto em consequência.360

Acredito que foram escribas ligados ao grupo sacerdotal jerusolimitano quem

foram encarregados de fazer a redação final do texto como o temos hoje. E como

afirma Rendtorff, com “uma intenção bem determinada”.

Numa perspectiva histórico-crítica procurarei mostrar que a compreensão do

Pentateuco não passa pela análise compartimentada do livro como afirmou Rolf

Rendtorff logo acima, mas pelo contrário, será lançando um olhar para o todo da obra

que se conseguirá apreender, nas entrelinhas, é claro, todo o alcance da obra. Nesse

sentido é preciso ter presente de modo bem claro, o contexto em que possivelmente o

texto final foi redigido. Pois nisso, está a meu ver, a chave de compreensão para

muitos dos problemas que envolvem os estudos sobre o Pentateuco.

358

Albert de Pury, Thomas Romer, “O Pentateuco em questão..., p.17. 359

Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens (Gn 1 – 11) no contexto da redação “sacerdotal” do Pentateuco”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.99. 360

Idem, ibdem.

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Nesse sentido, vale ressaltar também o que autores como H. H. Schmid e B. J.

Diebner disseram sobre aqueles que se lançam ao desafio de estudar o livro do

Pentateuco. Chamam a atenção dos estudiosos para o fato de que devem interrogar-se

sobre o seu próprio contexto sócio-político, bem como das motivações ideológicas

que, subterraneamente, movem suas pesquisas. Segundo os autores, as gerações de

exegetas que nos precederam foram tomadas por certa nostalgia das origens, ao passo

que os novos pesquisadores são atraídos mais pelo contexto exílico e pós-exílico, –

como é o meu caso. “Mesmo que a nova crítica não tenha dito a última palavra sobre o

enigma do Pentateuco, pelo menos tem o mérito de convidar-nos a tentar

compreender em profundidade esta época pós-exílica tão pouco conhecida e às vezes

tão desprezada”.361

Penso que de todos os períodos da história de Israel, o período pós-exílico se

reveste de uma importância fundamental, pois nele se concentram os eventos que

deram o ritmo e o compasso do judaísmo. Neste período se concentraram os diversos

grupos que com seus diferentes interesses entraram no jogo da luta pelo poder

político, econômico e social. É também o período em que foram escritos os últimos

livros que compõe o cânon da Bíblia Hebraica.

5.2.2.1 – O Pentateuco no campo das forças políticas e sociais na Província de

Judá.

Penetrar o contexto em que foi feita a redação final do Pentateuco é de certa

forma se expor. Como diria Paulo Freire, é ser obrigado a se posicionar, pois em todo

projeto de pesquisa não é possível a neutralidade, pois é aqui que se mostra nosso

caráter e nossa índole: “a favor do que e de quem eu me lanço nesse projeto? Contra o

que e contra quem me disponho para a luta?”362 Não é somente um esforço de, por

um lado, se posicionar, mas é por outro lado, de fazer jus à verdadeira história, de

resgatar a memória de um grupo social, que aparentemente, não teria nada de

extraordinário para nos mostrar, mas que, no fundo da problemática em torno ao livro

do Pentateuco, emerge a face desfigurada de camponeses, homens e mulheres

oprimidos e explorados naquilo que de mais sagrado possa existir: a fé em Deus!

361

Idem, p.84. 362

Paulo Freire, A pedagogia da autonomia, São Paulo, Paz e terra S/A, 24ª edição, 2006, 146p.

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Não é por acaso que Frank Crusemann também aponta na mesma direção:

[...] As forças que suscitaram a formação do Pentateuco atual devem ser consideradas com a mesma prioridade, tanto no plano político como social, tomando-se esses dois termos num sentido bem amplo. Só sobre este pano de fundo se poderá esperar compreender realmente o processo literário, como mostra a espinhosa questão: quem atribuir a última palavra nesta questão, às vozes sacerdotais ou deuteronomistas?363

Para Crusemann, o Pentateuco teve sua redação definitiva redigida ao final do

período persa e início do período grego, pois se admite que a tradução grega do

Pentateuco, que foi feita no Egito, aconteceu em meados do século III a.C., se de fato,

o Pseudo-Aristeu está certo. Esta conclusão pressupõe a conclusão e a autoridade

canônica. O fato de que o Pentateuco não traz qualquer traço de influência, mesmo

vindo do helenismo, nem qualquer confronto com ele, milita no mesmo sentido.364

Se é crucial para a compreensão do Pentateuco detectar o jogo das forças

político-sociais que estavam por traz de sua redação final, as descrições no livro de

Neemias são de valor inestimável, pois permitem considerar como particularmente

marcantes e duráveis dois conflitos fundamentais no seio da população da província

de Judá:

[...] De um lado, a oposição tão importante, comum a toda a antiguidade e já anterior ao exílio, entre os pequenos camponeses superendividados e seus ricos credores, como surgiu em plena atualidade da situação descrita em Ne 5. E, de outro lado, os interesses divergentes dos leigos, representados principalmente pela população camponesa, e os dos oficiantes do culto, isto é, dos sacerdotes e levitas.365

Conforme Crusemann assinala no texto acima, é em torno deste conflito social,

entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana (cf. Ne 5) que o livro

do Pentateuco tem seu eixo dinâmico e estrutural.

363

Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá: prolegômenos à interpretação de sua forma final”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.273. 364

Frank Crusemann, “O Pentateuco, uma torá..., p.278-279. 365

Idem, p.287-288.

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1Surgiu então uma forte queixa do povo e de suas mulheres contra seus irmãos judeus. 2Alguns diziam: “Nossos filhos, nossas filhas e nós mesmos somos numerosos. Gostaríamos de ter trigo para comer e viver!” 3Outros ainda diziam: “Nossos campos, nossas vinhas e nossas casas, damo-los em hipoteca para termos trigo durante a época da fome”. 4Outros ainda diziam: “Para o tributo do rei, tomamos dinheiro emprestado, empenhando nossos campos e nossas vinhas. 5No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos irmãos, e nossos filhos são semelhantes aos deles. E contudo somos obrigados a entregar nossos filhos e nossas filhas à servidão, e algumas das nossas filhas já são escravas; nada podemos contra isso; nossos campos e nossas vinhas pertencem a outros!”

[...] Na perspectiva desses conflitos fundamentais, as leis do Pentateuco manifestam uma tendência bem marcante. Por um lado a grande quantidade de leis cultuais sacerdotais que tornam obrigatórios o dízimo (Nm 18) e muitas outras contribuições cultuais. E, de outro lado, as proibições do empréstimo a juros (Ex 22,24; Dt 23,20) e a ordem de remissão periódica das dívidas entre israelitas (Dt 15,1s). Essas breves indicações já bastam para perceber nitidamente onde estava a vantagem de cada um, cui bono do qual as leis não podem justamente fazer abstração.366

De fato, quando Karl Marx afirma que a “estrutura econômica é aquela que

tudo determina em última instância” não se tem muita dificuldade em perceber esta

realidade na sociedade judaica do período persa. Apesar de a estrutura religiosa ter-se

tornado a estrutura dominante, foi tendo em vista a dimensão econômica, isto é,

aquilo que eles, os sacerdotes, poderiam lucrar e se beneficiar que foram criadas

muitas das leis presentes no Pentateuco, leis características da narrativa sacerdotal (P).

Mas, será que é possível afirmar categoricamente, que a motivação de fundo,

isto é, o leitmotiv sacerdotal, foi o de arrecadar gêneros alimentícios de primeira

necessidade sem ter que fazer o mínimo esforço pra isso? Ao se redigir todas aquelas

leis de caráter cultual, de fato os redatores já tinham em mente essa intenção de se

aproveitando das tradições oriundas do tribalismo elaborar todos estes textos que

serviram mais á uma lógica de dominação do que de libertação?

Outro fato interessante, que aponta Grabbe, está em que se constata com

facilidade é o fato de existem certa quantidade de leis bíblicas que não concordam

entre si. Isto acontece provavelmente devido a uma série de razões, incluindo a

incorporação de leis de diferentes períodos de tempo ou em diferentes estágios de

366

Idem, p.288.

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desenvolvimento. Outra razão aparente, porém, é que diferentes autores legais (ou

escritores) teve um ponto de vista diferente sobre como deveria ser a lei e sua

redação. Isto nos leva a outra consideração: poderiam estar coexistindo na mesma

época diferentes grupos que se opunham uns aos outros com seus próprios interesses

(ideologias).367

5.2.2.2 – Narrativa Sacerdotal (P)

Com esta designação fica claro que esta camada textual presente no livro do

Pentateuco dá, como já foi dito anteriormente, o tom, isto é, a capacidade de

compreensão e assimilação das leis, mas também, o ritmo, ou seja, a intensidade com

que se deve executar cada uma das prescrições e proscrições no dia a dia, sem o

menor descuido, pois do contrário, pesa sobre o faltoso, a ira e a maldição divina.

Segundo Rolf Rendtorff se faz necessárias duas observações que são

mutuamente dependentes:

De um lado foram colocadas nesta camada todos os textos que têm a ver com as realidades cultuais, em particular todo o livro do levítico com suas prescrições sobre o culto e a pureza, como também os capítulos 25 a 31 e 35 a 40 do Êxodo que dizem respeito à construção, arrumação e funções culturais do santuário do deserto, o ‘ohèl mo’êd, ou empregando a terminologia sacerdotal específica, o miskan.368

Desse modo, um dos aspectos que mais distinguem a narrativa sacerdotal do

restante do conteúdo do Pentateuco, é o parentesco linguístico. Desta peculiaridade

linguística, Rendtorff conclui que “a linguagem sacerdotal é antes de tudo uma

linguagem interna” à P. Enquanto “Wellhausen havia feito uma distinção entre o

núcleo narrativo próprio de P e diversos desenvolvimentos tardios”, Martin Noth fez

uma separação ainda mais nítida entre os elementos narrativos e cultuais, pois para

ele, P era uma obra meramente narrativa e por princípio não quis empregar o rótulo P

367

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.183. 368

Rolf Rendtroff, “A história bíblica das origens..., p.92.

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para designar os elementos cultuais que seriam representados por outra letra

qualquer.369

De acordo com Hans Heinrich Schmid:

[...] o escrito sacerdotal (que eu considero uma entidade literária primitivamente autônoma e não uma simples camada redacional, e isto precisamente em razão de seu perfil teológico tão marcante e tão fortemente divergente).370

Já Frank Cross, afirma que P jamais teria existido como documento

independente”. Segundo Cross, “seu autor – ou autores – teriam reunido, enquadrado

e sistematizado materiais tradicionais mais antigos (designados por Cross como

‘JE’)”.371 Os redatores, conforme também afirma Norbert Lohfink, não impuseram

qualquer restrição como a si mesmo. Criaram uma bela forma de praticar a violência

sobre as suas fontes. Omitiram, revisaram, alteraram e exerceram com a mais

completa liberdade em inserir coisas novas372. Assim como Cross e Lohfink

compartilho também dessa posição, de que foi o grupo sacerdotal jerusolimitano, que

na luta pelo poder político e pelo controle do templo, foram se articulando de tal

modo que conseguiram se sobrepujar por sobre os demais grupos que igualmente

lutavam para alcançar esse poder. Para isso, como afirma Cross, reuniram,

enquadraram e sistematizaram materiais mais antigos, com o único objetivo de se

justificar e se legitimar no poder e controle da sociedade judaíta, praticamente em

todos os campos: político, econômico, social e, principalmente, no campo religioso.

a) Material sacerdotal

Como não é meu objetivo entrar em detalhes quanto ao questionamento da

extensão do conteúdo de P, passo a analisar em função de meu objeto de pesquisa, 369

Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens (Gn 1 – 11) no contexto da redação “sacerdotal” do Pentateuco”, em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.89. 370

Hans Heinrich Schmid, “Rumo a uma teologia do Pentateuco” em Albert de Pury (org.), O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2ª Edição, Petrópolis, Vozes, 2002, p.315. 371

Rolf Rendtorff, “A história bíblica das origens..., p.89. 372

Norbert Lohfink, Theology of the Pentateuch: themes of the Priestly Narrative and Deuteronomy, Mineapolis, Fortress Press, 1994, p.155.

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isto é, das relações de poder que se estabeleceram entre o campesinato e a classe

sacerdotal jerusolimitana diversas passagens, com o intuito de comprovar a tese de

que o motivo que levou a classe sacerdotal jerusolimitana a fazer todo esse arranjo

com o material mais antigo, dando origem ao que ficou conhecido como o livro do

Pentateuco, não foram acima de tudo questões de ordem histórica e/ou teológica, mas

questões de ordem nitidamente política e econômica. Tanto é verdade, que como será

demonstrado, eles alteraram em muitos pontos a própria tradição em proveito, única

e exclusivamente pessoal.

Segundo Frank Crusemann, a título de resumo sobre algumas das questões que

ainda incomodam os estudiosos, conclui que um estudo sério do Pentateuco não pode

ser feito de modo compartimentado e propõe que:

[...] o Documento sacerdotal como um todo corresponde, na sequência dos livros legais, ao Código da Aliança e ao Deuteronômio. O Código da Santidade é apenas uma parte dele, exatamente aquela em que toma forma de maneira destacada a discussão com a tradição legal vigente. É evidente que a inserção literária das leis em uma moldura narrativa que se inicia com a criação do mundo significa um corte profundo na história do direito, cujo sentido é preciso captar.373

Esse “corte profundo” no modo de se apresentar um código jurídico ao qual se

refere Crusemann é um elemento de destaque que merece atenção por parte dos

estudiosos. Segundo E. Blum este estilo de composição pode estar ligado com a

questão da autorização imperial persa e assim, às referências contidas no livro de

Esdras.374

Independente do livro do Pentateuco ser ou não ser “a lei de Deus e do rei” (cf.

Esd 7,26), isto é, o livro que Esdras tinha em mãos, talvez enquanto um projeto

arquitetado sob os auspícios do império persa, o que de fato chama a atenção é o

modo como o novo código jurídico foi arquitetado. Dentro de uma moldura narrativa,

esse novo corpo jurídico ganhou não só em dinamicidade, mas acima de tudo,

utilizando-se do artifício de tudo referendar a Deus como autor, ganhou legitimidade,

373

Frank Crusemann, A torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p.386-387. 374

Frank Crusemann, A torá..., p.392.

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o que fez com que os objetivos ideologicamente arquitetados pela classe sacerdotal

jerusolimitana fossem alcançados com muito mais facilidade.

Segundo Crusemann, ter clareza quanto ao aspecto que confere unidade

intencional ao texto é de suma importância, pois na melhor das hipóteses, é

importante esclarecer que os textos relativos ao santuário, objetivavam a um processo

único,375 ou seja, transformar a pequena província de Judá, tendo como centro

religioso e administrativo o templo de Jerusalém. A partir disso, Yahweh, conforme o

projeto teocrático dos sacerdotes sadocitas em Ezequiel 40 – 48 reinariam absolutos,

obviamente, mediado por seus representantes, os sacerdotes de mesma linhagem.

Um aspecto do material sacerdotal que chama a atenção é quanto á sua

estrutura e conteúdo. Comparando o Código da Aliança (CA) com o Código

Deuteronômico e com Código de Santidade, percebe-se que a correspondência não é

fruto do acaso, mas é nitidamente intencional. Conforme segue, faço um quadro

comparativo dos eventos correspondentes:

Determinações fundamentais referentes ao altar e aos sacrifícios a serem oferecidos

Lv 17 Dt 12 Ex 20,24ss

Benção e maldição Lv 26 Dt 27s Ex 23,20ss

Ano sabático Lv 25 Dt 15,1ss Ex 23,10s

Calendário de festas Lv 23 Dt 16 Ex 23,14ss

Leis sobre escravos Lv 25,39ss Dt 15,12ss Ex 21,2ss

Proibição de cobrança de juros Lv 25,35ss Dt 23,20ss Ex 22,26

Leis sobre sexo e família Lv 18; 20 Dt 21ss

Segundo afirma Cholewinski, num parágrafo citado por Crusemann, não é só

uma questão de correspondência que está em jogo, mas, – do seu ponto de vista – o

material sacerdotal, no caso, as leis do CS (Código de Santidade) vão além daquilo que

375

Idem, p. 393.

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havia sido prescrito, por exemplo, pelo CD (Código Deuteronômico). Segundo o autor,

isso ocorreu porque “muitas de suas prescrições pareceram incompletas,

ultrapassadas, radicais demais ou com base teológica insuficiente”.376

Mas, teriam sido realmente esses os motivos que levaram os redatores

sacerdotais a efetuarem essa revisão no conjunto de leis, tanto do CA quanto do CD?

Certo é que, assim como o CD buscou dar continuidade, corrigir, complementar e

substituir o CA, também o CS, igualmente, deu continuidade, corrigiu, completou e

substituiu as leis do CD. Mas, é interessante notar que a dimensão política e social tão

palpável no Código Deuteronômico já não se faz tão presente no Código de Santidade.

A ênfase e a quase que exclusividade do aspecto religioso toma o lugar do social e do

político.

Trazendo à luz alguns exemplos é possível perceber a estratégia sacerdotal:

Ex 21,2s e Dt 15,12ss falam da libertação dos escravos: De acordo com os

mishpatim a libertação deveria ocorrer depois de sete anos. O redator

sacerdotal, segundo os objetivos do grupo, altera este período para o ano do

jubileu (cf. Lv 25,29ss), isto é, para depois de 49 anos, o que corresponde à

duração de da vida de um escravo, ou como sugere Crusemann, ao “dia de São

Nunca”.377

Dt 15,1ss fala do perdão regular das dívidas no sétimo ano. Este texto, ou

melhor, essa lei é omitida pelo redator sacerdotal. Na sua concepção não é

possível o perdão.

Do ponto de vista das relações de poder entre o campesinato e classe sacerdotal houve

um terrível decréscimo a nível social, isto é, um claro descompromisso da classe

dominante e mais abastada – a classe sacerdotal – para com a classe dominada, mais

pobre e explorada – o campesinato. Conforme pensa Crusemann:

[...] os círculos sacerdotais não levam avante a radicalidade da legislação social deuteronômica, nem mesmo a do Código da Aliança. Quase é preciso falar de revogação da legislação social deuteronômica. Isso, porém não se impôs como

376

Frank Crusemann, A Torá..., p.384. 377

Frank Crusemann, A Torá..., p.393.

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mostram os testos da época de Neemias (esp. Ne 10,32) bem como a Torá como um todo.378

Esta ruptura entre a escola ou grupo deutronômico, se assim se pode chamar,

com o grupo sacerdotal – anti-deuteronômico –379 presente no Pentateuco é, pode-se

afirmar, sintoma do que acima foi descrito, pois muitas das leis presentes no Código

Deuteronômico que refletem a realidade social do campesinato, foram abandonadas.

De acordo com Crusemann, que analisa este fato por um viés positivo, deve-se concluir

que somente a classe sacerdotal “esteve em condições de reagir à altura aos desafios

do exílio. Eles submeteram a tradição a uma transformação que, apenas ela,

possibilitou o futuro”380.

Primeiramente, com relação ao termo que Cholewinski utiliza para adjetivar a

classe sacerdotal, não é desprovido de sentido, pois como afirma o próprio

Crusemann, que solicita muito cuidado quanto à sua utilização, de fato, não só traduz a

ênfase que se deve dar às relações de poder como chave de leitura do Pentateuco,

mas deixa transparecer alguma ligação mais profunda, como já citada acima, entre o

campesinato e os redatores do Código Deuteronômico.

Outro ponto que não posso deixar de comentar é quanto ao fato de que

Crusemann não vê como negativo esse posicionamento antissocial e antipolítico da

classe sacerdotal, mas, muito pelo contrário, como algo extremamente positivo, pois

foram eles, os sacerdotes, os únicos que estiveram em condições de reagir à altura dos

acontecimentos e desafios do exílio. Sim, de fato, reagiram, mas como é possível

perceber, o pêndulo pendeu quase que totalmente a favor deles, que ficaram numa

posição suntuosa e extremamente confortável em relação ao campesinato que foi a

grande mola propulsora para que eles se legitimassem no poder.

378

Idem, ibdem. 379

Este termo “anti-deuterônomico” foi cunhado por Cholewinsk, mas que segundo Crusemann deve ser utilizado com muito cuidado. Idem, p.394. 380

Frank Crusemann, A Torá..., p.395.

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b) O ideológico culto sacrifical como elemento central do Documento

Sacerdotal

Como poderá ser constatado o Documento Sacerdotal instaurou um ideológico

sistema sacrificial que legitimado pelas inúmeras referências a deus, obrigava toda a

população a recorrer constantemente á sua intervenção, pois que açambarcando toda

a existência, era impossível para qualquer pessoa escapar à sua malha e influência.

Como o elemento central da vida judaica, a expiação e o perdão pelos pecados

pessoais de cada judeu, fazendo uma espécie de paralelo com o fracasso de Israel, se

tornou o principal carro chefe de toda a estrutura cultual e sacrifical do templo de

Jerusalém.

Nesse sentido Crusemann argumenta e se posiciona de tal modo, que para ele:

[...] o Documento Sacerdotal criou a possibilidade de manter a vinculação das exigências cultuais e legais, teológicas e éticas que ligavam toda a vida com a unidade de Deus, com a amplitude indispensável para a tradição da Torá. Ela o fez com uma transformação profunda de todo o direito existente.381

O esboço geral do Documento Sacerdotal é bem evidente [...] Aquilo que começou no Deuteronômio com a promulgação da lei [...] é levado adiante aqui com mais determinação. A lei, e acima de tudo a constituição do culto, tornou-se parte de uma narrativa que vai até os primórdios.

Apesar do longo e permanente debate quanto ao sentido e ao propósito do Documento Sacerdotal, sua estrutura e teologia, dificilmente consigo encontrar o sentido evidente e fundamental deste esboço na clareza que lhe é inerente.382

Chama a atenção na posição adotada por Crusemann de que, como ele mesmo

afirma, não conseguir encontrar o sentido evidente e o propósito do Documento

Sacerdotal.

Partindo do pressuposto, de que o valor e sentido que a religião ocupava, não

somente no contexto dos povos antigos, ou mais especificamente na região do Antigo

Oriente Próximo, era tão decisivo e fundamental para a vida de cada um, que é

possível afirmar que diante do quadro apresentado pelo conjunto do Pentateuco

qualquer pessoa em sã consciência, é claro, dento daquele contexto, não sentiria o

381

Frank Crusemann, A Torá..., p.399. 382

Idem, p.399-400.

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menor constrangimento em abraçar a novo modelo religioso que estava sendo

imposto. É certo que do modo como o projeto foi arquitetado, levou quase que uma

centena de anos depois de escrito para se enraizar na vida de todos e fazer de

Jerusalém o centro religioso e político da província de Judá.

Para Crusemann, os textos sacerdotais, particularmente aqueles promulgados

no contexto da perícope do Sinai, postulam que:

[...] a vida na presença do Deus santo só é possível quando os fracassos e pecados são sempre de novo expiados e perdoados. Por esta razão, o cancelamento da culpa concedido por Deus ocupa o centro das leis cultuais sacerdotais.383

É nesse sentido que irá se configurando a ideia de que o pecado poderia ser

perdoado somente mediante a oferta de um sacrifício, onde a morte do animal

simbolizava que o pagamento pela dívida contraída pelo pecador estava sendo

saldada. É a tese da identificação da pessoa culpada com o animal do sacrifício.

E para evitar tais acúmulos de pecado e impureza no futuro, o próprio Deus

prepara meios de expiação. O mais importante é o sangue dos animais sacrificados e o

contexto é descrito com precisão em Lv 17,11:

Pois a vida de uma criatura está no sangue: e eu vo-lo dei, sobre o altar para a

absolvição da vossa vida. Com efeito, o sangue proporciona a absolvição por ser

a vida.

É assim que, segundo Crusemann, se formula o alvo de toda a ação de expiação

dos sacerdotes: o perdão.384

Um primeiro passo em direção à consecução desse objetivo foi confirmar uma

lei deuteronômica que já previa a centralização do culto como forma de aglutinar o

religioso sob todas as suas formas de manifestação em um só local.

“Suprimireis completamente todos os lugares onde as nações que ireis despossar serviram a seus deuses, sobre as montanhas elevadas, sob as colinas e sob todas as árvores verdejantes. Demolireis os seus altares e quebrareis suas

383

Frank Crusemann, A Torá..., p.425-426. 384

Idem, p.427.

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estelas; seus vasos sagrados, os queimareis; os ídolos dos seus deuses, quebrareis; suprimireis os seus nomes deste lugar. Não procedereis como eles, em relação ao Senhor, vosso Deus, porque somente o procurareis no lugar que o Senhor, vosso Deus, houver escolhido entre todas as tribos para ali estabelecer o seu Nome, para ali morar; para lá é que irás. Para lá levareis vossos holocaustos, vossos sacrifícios, vossos dízimos e vossos tributos voluntários, vossas oferendas votivas, vossos dons espontâneos, os primogênitos de vosso gado e de vosso rebanho. (Dt 12,2-6)

Já o Documento Sacerdotal, não só assumiu essa lei deuteronômica de

centralização do culto, mas afirma que todo aquele que oferecer um sacrifício que não

seja à entrada da tenda de reunião – figura do futuro templo – a essa pessoa será

eliminada:

Se algum homem da casa de Israel degolar um boi, um cordeiro ou uma cabra no acampamento – ou até degola-lo fora do acampamento – sem trazê-lo à entrada da tenda do encontro para o levar como presente ao Senhor, diante da morada do Senhor, responderá pelo sangue que derramou: tal homem será cortado do meio do seu povo. (Lv 17,3-4)

Desse modo a vida do campesinato vai se tornando cada vez mais difícil, pois

não podendo mais sacrificar aos seus deuses nos diferentes santuários e locais de culto

que havia na província de Judá, eles são agora obrigados, por um dever de consciência,

a se dirigirem até o templo de Jerusalém, pois se fossem pegos sacrificando fora do

lugar definido pelo próprio deus, deveriam ser eliminados do meio do povo, isto é,

condenação à morte.

c) Sadocitas versus levitas

Seguindo a ideologia anteriormente prescrita na “lei do templo” de Ez 40 – 48,

o texto de Nm 16 – 18 foi, igualmente, uma narrativa criada pelos redatores do

documento sacerdotal com fins de justificação e legitimação da classe sacerdotal

sadocita em relação aos levitas, bem como também sobre a questão de quem é e

quem não é santo na comunidade. Como devia estar havendo um forte choque de

interesses e projetos quanto ao controle do templo, o grupo sacerdotal ligado à

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linhagem sadocita, inventou esta história como tantas outras, ou quando muito,

recolhendo alguns elementos e nomes da tradição, lhe deu um novo enfoque, a fim de

justificar sua superioridade e situar o grupo dos levitas numa função, poderia se dizer,

de segunda classe, num nível mais baixo em relação aos sacerdotes sadocitas.

O texto em Nm 16 começa com Qôrah, datan e Abiran, além de 250

representantes do povo, levantando sérios questionamentos contra Moisés e Aarão

dizendo:

Basta! Disseram-lhes. Todos os membros da comunidade são santos, e o Senhor

está no meio deles, com que direito vos elevais acima da assembleia do Senhor?

(Nm 16,3)

E depois de muito diálogo entre Deus e Moisés, os três insurgentes são

condenados e castigados, tendo seus corpos, familiares e bens engolidos pela terra (cf.

Nm 16,31-33). Além deles, também os duzentos e cinquenta que os apoiavam foram

exterminados por um fogo que os consumiu (cf. Nm 16,35).

O interessante é perceber que no Código Deuteronômico, que é anterior ao

Documento Sacerdotal, não faz distinção entre sacerdotes e levitas. Em Dt 18,6ss o

deuteronomista confere direitos iguais tanto aos sacerdotes quanto aos levitas no que

diz respeito ao serviço do altar. Segundo Blum citado por Crusemann:

Nm 16, como parte de um Documento Sacerdotal que não abrange o Deuteronômio, é uma rejeição forte do pensamento deuteronômico e da teologia deuteronomista. Ele faz parte de uma ampla “discussão da identidade de Israel como povo de Yhwh e dos ‘interesses contraditórios’ concretos conexos a ela”, existente entre grupos sacerdotais e deuteronomistas, mas também entre grupos sacerdotais e levíticos. [...] Nisso o problema dos privilégios sacerdotais e do direito de acesso à proximidade direta com Deus não é o único conflito, mas o mais evidente e manifesto.385

Outro texto deuteronomista que reforça esta tese é a promessa divina em Ex

19,3ss:

385

Frank Crusemann, A Torá…, p.489.

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Agora, pois, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, serei minha parte pessoal entre todos os povos – pois a terra inteira me pertence – e vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.

Segundo Perlitt citado por Crusemann, “a proximidade com Deus conseguida

no êxodo se manifesta na santidade e na condição de sacerdotes de todo o povo. Este

texto é inegavelmente deuteronomista”.386

Esse contraste quanto à proibição dos levitas de servirem diretamente ao altar,

ou seja, o contraste entre a narrativa deuteronomista e a narrativa sacerdotal, não é o

único conflito, mas o mais evidente e manifesto. Em Ex 19 e 24 tem-se um exemplo

gritante de conflitos e contrastes. Segundo Crusemann, “é difícil encontrar coisas

mutuamente excludentes colocadas tão imediata e diretamente lado a lado”387.

5.2.3 – Esdras e Neemias

A maioria dos estudiosos concorda que assim como o livro do Pentateuco,

Esdras e Neemias, que são posteriores a ele, foram também escritos em fins do

período persa e início do período helenístico.

A intenção aqui, não é proceder a um estudo de todos os detalhes dos dois

livros, mas naquilo que é essencial no tocante ao aspecto das relações de poder entre

o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana, submeterei os textos a uma

análise à luz do pensamento de alguns estudiosos contemporâneos.

A título de introdução uns breves acenos com respeito aos recentes estudos.

Tradicionalmente tem sido aceito que Esdras e Neemias, assim como 1 e 2 Crônicas

fariam parte de um só conjunto: a Obra historiográfica do Cronista (OHC). A título de

recensão Lester Grabbe sintetiza as discussões sobre o assunto da seguinte forma:

Mais recentemente, algumas dezenas de anos atrás, esta visão começou a ser

criticada. Japeht em 1968 e Willianson em 1977, mas suas visões não foram aceitas em

estudos posteriores (por exemplo Cazelles em 1979, Clines em 1984 e Blenkinsopp em

1988). Em 1988 Ackroyd discutiu as dificuldades em determinar a questão, embora

386

Idem, p.490. 387

Frank Crusemann, A Torá…, p.491.

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tenha indicado uma autoria comum em outras publicações. Thronveit em 1982

desafiou os argumentos linguísticos de Japhet e Willianson, embora se perguntando se

a linguagem poderia realmente definir a questão. D. Talshir em 1988 argumentou que

um estudo linguístico não pode suportar uma divisão entre Crônicas e Esdras-Neemias,

embora admitindo que isto não prova a sua unidade. R. L. Braun em 1979 acentuou as

diferenças teológicas entre Crônicas e Esdras-Neemias. Willianson em 1995

argumentou que Crônicas e Esdras-Neemias foram dois trabalhos independentes

escritos pelo mesmo autor, mas com perspectivas diferentes. A maioria dos

estudiosos, porém, estão cautelosos em assumir uma composição unificada com uma

perspectiva e teologia única. Segundo Willianson (1985) o trabalho unificado de

Esdras-Neemias não pode ser anterior ao início do período helenístico. Este seria agora

demonstrado pelo suposto documento persa que utiliza algumas convenções

linguísticas pós-aquemênida. Na opinião de Lester G. Grabbe, 1 Esdras em sua forma

original semita seria anterior aos livros de Esdras-Neemias em hebraico, que também

devem ser pós-aquemênida.388

Já Mario Liverani afirma que os livros de Esdras e Neemias, sem entrar no

mérito da incerteza exegética que reina sobre a sua historicidade, é da opinião de que

os dois livros foram escritos dois séculos depois dos acontecimentos a que pretendem

se referir, isto é, por volta de 250 a.C., e estão viciados por forte tendenciosidade.389

Em verdade os livros de Esdras e Neemias, conforme pensa Blenkinsopp foram

editados para promover um entendimento particular de Israel, ou mais propriamente,

reflete a agenda de um grupo em particular, e de uma ideologia importada da diáspora

babilônica inspirando-se igualmente em certos aspectos da teologia deuteronomista e

na “lei do templo” de Ez 40 – 48. O uso da narrativa em primeira pessoa, tanto para

Esdras quanto para Neemias foi uma forma de atingir esse fim e, ao mesmo tempo,

relegando aqueles que não pertenciam ao seu partido ou subscrevendo suas ideias e

388

Lester G. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1 – Yehud: a history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.71-72. 389

Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.332.

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práticas à insignificância e suas diferentes formas de ser judeu à apenas um ruído de

fundo.390

Quanto à tradição de ambos, excetuando o assim chamado Memorial de

Neemias, tanto Esdras quanto Neemias revelam muitas contradições, incongruências,

anacronismos e absurdos. A partir de uma leitura atenta do texto, particularmente de

Esdras, chega-se a uma conclusão de que qualquer tentativa de datar sua missão,

como afirma Lester Grabbe, não faz sentido.391

5.2.3.1 – Estrutura e teologia

É muito interessante perceber a semelhança e os paralelos entre os dois livros.

De acordo com um trabalho feito por T. C. Eskenazi, que segundo Lester Grabbe, é

considerado como um dos trabalhos mais bem detalhados a respeito.392

Esdras Neemias

1: delegação real (por Edito de Cirus) 1,1–2.9: delegação real (por Artaxerxes)

3: tarefa de reconstruir (templo/altar) 2–3: tarefa de reconstruir (reparar o

muro)

4–6: impedimento por ‘inimigos’ 4,6: impedimento por ‘inimigos’

6: trabalho completado com o auxílio de

Deus

7: trabalho completado com o auxílio de

Deus

7–8: Esdras e a lei 8: Esdras e a lei

9–10: ameaça de casamento 9–10: ameaça de casamento

10: resolução por testemunho público 10: resolução por testemunho público

Outras sessões de Neemias também são paralelas:

Esdras Neemias

2: lista dos retornados 7: lista dos retornados

390

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160-161. 391

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.325. 392

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.72.

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2: lista dos retornados 11,1–12,26: lista dos retornados

6,16–17: dedicação do templo 12,27–43: dedicação do muro

6,18: organização dos sacerdotes/levitas 12,44–47 : organização dos sacerdotes / direitos dos levitas

9–10: casamentos mistos /ameaças de ‘estrangeiros’ / povo da terra

13: casamentos mistos / ameaças de ‘estrangeiros’ / povo da terra

A partir deste quadro comparativo pode-se ver claramente que ambos os livros

concorriam entre si, ou seja, que a partir desta observação se pode concluir que os

dois livros representavam distintos grupos ou escolas que lutavam pelo poder político

e religioso do templo.393

Outro elemento estrutural é fornecido pela cronologia. Os dados cronológicos

em Esdras-Neemias muitas vezes tem outra função do que datar eventos, ou seja, eles

têm uma função ideológica, cujo objetivo é transmitir uma mensagem especial sobre

os eventos.394 De fato, isto já havia sido apontado anteriormente quando afirmava que

os livros de Esdras e Neemias não são um relato histórico e nem muito menos, um

relato autobiográfico de ambos, mas são dois projetos que refletem, acima de tudo, o

contexto de crise e disputa pelo poder dentro da comunidade jerusolimitana.395

Existem estudiosos, especialmente entre aqueles que duvidam ou negam

completamente a realidade histórica de Esdras, que argumentam que a narrativa em

seu livro foi criada para combater o prestígio de Neemias e foi colocada antes de

Neemias para ser um ponto de precedência. Há também a suposição comum de que a

autoridade do sacerdote é intrinsecamente maior e sempre supera a de qualquer

leigo, mesmo a de um chefe de estado ou, neste caso, do governador da província. No

entanto, interpretando a relação entre as duas partes do livro, um fato chama a

atenção: poucas são as ocasiões em que seus nomes aparecem nos textos mais tardios

de segundo templo. Eles nunca ocorrem juntos. Isto é consistente com a hipótese de

uma combinação no livro canônico das duas narrativas originalmente distintas.396

393

Joseph Blenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160. 394

Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.72. 395

Joseph Bçenkinsopp, Judaism: the first phase..., p.160-188. 396

Idem, p.161.

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A partir de um estudo das fontes disponíveis de ambos os livros Schwiderski

conclui que tais documentos seriam tardios, do período pós-aquemênida e com muita

probabilidade, seriam falsificações.397

Nesse sentido, com relação aos famosos editos presentes no livro de Esdras,

Mario Liverani conclui:

O fato é que dois séculos depois imaginou-se que Ciro tivesse promulgado logo, já no seu primeiro ano de reinado na Babilônia, um edito que permitia o retorno dos exilados e a reconstrução do templo de Yahweh. O edito (cujo suposto texto Es 1,24 menciona) é certamente falso, como demonstram quer a análise formal, quer os anacronismo. O mesmo vale para um segundo edito do mesmo Ciro (mencionado em Es 6,3-5), que teria sido encontrado nos arquivos persas no tempo de Dario e que dava até as medidas e os detalhes técnicos e financeiros do novo templo. Esses editos foram falsificados e adotados em época um tanto posterior, quando serviam para dar garantia e privilégio imperial ao templo já construído e para rebater as pretensões do templo rival de Samaria.398

Diante desses destaques é possível afirmar que suas funções contrastantes tem

um papel a desempenhar na luta partidária levando ao surgimento de seitas no

período hasmoneano, mas que não deve desviar a nossa atenção de que há uma

ideologia subscrita a ambos, tanto em Esdras quanto em Neemias.399

Já Lester L. Grabbe enfatiza que é preciso se ater à estrutura, pois seria

importante ressaltar que a unidade atual de Esdras e Neemias é uma unidade editorial.

Teria sido criada por um compilador, que tendo em separado diferentes tradições

juntou-as com cuidado e inteligência para efetuar uma unidade. Por isso, diz Grabbe, é

perfeitamente legítimo ler os dois livros como uma unidade.400

A partir disto, pode-se conjecturar que falar com precisão das figuras históricas

de Esdras e Neemias é quase que impossível a partir das fontes disponíveis. Mas nada

impede de se fazer uma tentativa de traçar os efeitos de ambos os livros ou se preferir,

de ambas as figuras – de Esdras e de Neemias – no período seguinte. Isto evidenciará

que ideologia sobreviveu que grupo levou vantagem sobre o outro.

5.2.3.2 – A problemática da terra

397

Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.78. 398

Mario Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.312. 399

Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.78. 400

Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.73.

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Assim como ainda hoje, em pleno século XXI e porque não dizer, ao longo de

toda a sua trajetória histórica, o povo judeu, assim como os palestinos, lutam por um

espaço de terra, às vezes de modo legítimo, outras vezes de modo nem tanto, mas no

contexto em que agora nos dispomos a analisar, que é o período pós-exílico, este

período está repleto de muitas controvérsias, de muitas estratégias políticas, de

usurpação de direitos legítimos, de exploração, de manipulação, enfim, de sofisticadas

literaturas recheadas de ideologias.

Como já observado anteriormente, o conjunto dos remanescentes, isto é,

aqueles que permaneceram na província de Judá e não foram deportados juntamente

com a elite para a Babilônia – o campesinato –, são agora chamados por aqueles que

retornam pela alcunha de ’am há’ares – povo da terra –, que não por acaso, no

período pré-exílico, consistiu num grupo social – aristocracia – grupo esse que detinha

o controle dos meios de produção, o comércio e que teve uma longa história de

influência política junto à monarquia. Mas no âmbito do exílio e principalmente do

pós-exílio, o termo mudou de valor e referência. Passa a designar o conjunto dos

camponeses, que fora considerado uma espécie de anexo físico da terra, sem voz e

sem direitos próprios. Não foram considerados como gente, mas sim como um

estorvo. Segundo Mario Liverani:

Com os textos pós-exílicos mais avançados (Esdras e Neemias, Crônicas) firma-se, enfim, um valor étnico, evidenciado pelo uso do plural “os povos da terra” ou também “os povos das terras”, para indicar as nações diferentes da israelita: samaritanos, edomitas, amonitas e todos os que ocupavam parte do território que deveria ter sido israelita, que não observavam o sábado e os outros traços distintivos da observância javista, que se opunham à reconstrução do templo, que procuravam de todos os modos obstaculizar a obra de restauração nacional e religiosa dos sobreviventes.

Pertinente nesse momento é perguntar-se: por que o campesinato se opôs ao

projeto que a elite, outrora deportada, e agora retornada, quis implantar? Essa

oposição não teria sido fruto das amargas experiências sofridas anteriormente? Foi

tendo em vista esse debate sobre a quem pertence a terra, entenda-se, a “província de

Judá”, que se deu início à saga literária de se tentar justificar e legitimar a posse e o

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domínio por um lado (dos exilados retornados), e a expulsão e a exclusão do outro

lado (dos remanescentes: do campesinato).

O conflito das estratégias políticas e de interesse materiais entre núcleos de sobreviventes e comunidades locais gerou “cartas de fundação” míticas sobre os títulos de propriedades da “terra” entendida em conjunto. Como no plano pessoal era importante poder aduzir títulos de propriedade ou pelo menos genealogias familiares detalhadamente para cada clã e vila, assim toda a operação do retorno dos sobreviventes devia-se basear na capacidade deles de se referir a respeitáveis tradições que atribuíssem a terra de Canaã às tribos de Israel e que identificassem como legítimos herdeiros das tribos os núcleos de sobreviventes e não as comunidades dos remanescentes. É, aliás, significativo o desvio do uso de nahalah, “propriedade hereditária”, típica dos textos de redação deuteronomista, para ‘ahuzzah, “posse fundiária”, típica dos textos de redação sacerdotal – desvio que parece marcar a passagem de uma reivindicação legal para uma tomada de posse.401

Num primeiro momento, foi com base nos “mitos de fundação”, ou seja, em

histórias inventadas – com uma finalidade bem específica – como a do “mito dos

patriarcas”, de Abraão, Isaac e Jacó, bem como também a do “mito da conquista da

terra prometida” por parte dos sobreviventes da escravidão egípcia, sob a guia de

Josué, que os redatores sacerdotais tentaram justificar a situação dos deportados.

Conforme Mario Liverani comenta:

As histórias têm uma insistente relação “etilógica” com as particularidades da paisagem, particularidades por elas explicadas [...] A proveniência extrapalestina dos Patriarcas, além de prefigurar o retorno dos sobreviventes, é sobretudo a base para a questão dos matrimônios entre primos cruzados [...].402

Portanto, nesse panorama de possíveis histórias tradicionais revisitadas por

leituras pós-exílicas se insere a ideologia sacerdotal que tem por função remeter à

consciência daqueles que permaneceram na terra, isto é, do campesinato, a relação

entre os Patriarcas que recebem a promessa divina (cf. Gn 26,3-6) de descendência e

um lugar, isto é, “estas terras” cujos seus pés tocam para que possam habitar em

segurança e aqueles que retornaram do exílio.

401

Mario Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de Israel, São Paulo, Paulus, 2008, p.318. 402

Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.324-325.

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Além desses episódios, vale destacar Jerusalém que nas histórias patriarcais,

como mostra Liverani, aparecem de um modo muito ambíguo e ocasional, quando por

exemplo, como em Gn 14,19-20, Malki-Sedeq, rei de Shalen abençoa Abraão dizendo:

“Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que cria céu e terra! Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus adversários às tuas mãos!”

É evidente a intervenção sacerdotal ao apresentar essa notícia como referida

ao Templo de Jerusalém e ao sacerdócio sadocita. Tanto a cidade de Jerusalém, como

o templo, são inseridos no contexto da passagem de um modo um tanto forçado. 403

Outra história que está ligada aos Patriarcas e que serve etiologicamente às

pretensões da classe sacerdotal é a história da venda de José como escravo a uma

caravana de mercadores que o revendem no Egito. A história pertence ao gênero da

novelística de entretenimento. O Egito foi sem dúvida o maior centro de venda e

compra de escravos asiáticos ao longo de todo o curso da história antiga.

Mas essa história, conforme entende Liverani, com suas principais forças

morais encontra paralelos que se adensam todas na época do império persa e tem

uma mensagem muito clara:

O êxito da administração de José consiste numa centralização de todas as terras nas mãos do faraó – salvo as terras dos sacerdotes, como tem o cuidado de observar o redator (certamente de ambiente sacerdotal), como salvaguarda da autonomia econômica do templo em relação à administração imperial. Nesse sentido, a história de José (ou melhor, um seguimento dela) é uma história etiológica e explicitamente marcada como tal pela observação “e é assim nos nossos dias” (Gn 47,26) [...].404

5.2.3.3 – Implicação da ideologia de Ez 40 – 48 em Esdras e Neemias

Ainda não foi com a redação definitiva – versão canônica – dos livros de Esdras

e Neemias que a classe sacerdotal jerusolimitana – sadocitas – conseguiram efetivar

seu projeto de domínio, tanto político quanto religioso. A legitimação de seu projeto

levou quase umas duas centenas de anos para que fosse efetivado, pois não se muda a

403

Idem, p.327. 404

Mario Liverani, Para além da Bíblia..., p.330.

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cultura de um povo, enfim, seu ethos, da noite para o dia com apenas alguns livros.

Será já no fim do período helênico que os Hasmoneus conseguiram reunir na

instituição do templo tanto a hegemonia do poder religioso quanto do poder político.

Na figura do sumo sacerdote concentrou-se os dois supremos poderes: o poder

espiritual e poder temporal.

Não há dúvida, conforme pensa Grabbe, de que em Jerusalém encontrava-se

algumas das características de um templo-Estado, principalmente em função da

centralidade que o templo veio a ter para toda a sociedade judaíta. Uma das principais

características deste templo-Estado estava na importância dos sacerdotes controlando

a estrutura administrativa.405

As coisas que mais desgraçaram a vida do povo, isto é, do campesinato, foram

os inúmeros sacrifícios que deveriam cotidianamente fazer para que pudessem

alcançar a benevolência divina e desse modo sustentar toda a estrutura religiosa do

templo, que sobrevivia economicamente, graças ao esforço e dedicação diários das

gentes pobres e sofridas da província de Judá.

Passemos agora á análise de alguns textos que são muito ilustrativos com

relação à realidade social e política da província de Judá.

5.2.3.4 – Esdras a partir de Esd 7 – 10.

A história de Esdras parece bastante simples à primeira vista. Ela é introduzida

por sua genealogia, traçando sua ascendência de volta para Aarão, o sacerdote (Esd

7,1-5). Ele também é identificado como um escriba dedicado ao estudo da lei (7,6-10).

Ele recebeu um documento a partir do rei Artaxerxes, permitindo-lhe que voltasse,

trazendo com ele várias pessoas além de ouro e prata para o templo, e ensinar a lei

(7,12-26). Quando ele chega, ele encontra um problema de que certas pessoas

estariam se casando com “estrangeiros”. Ele se apresenta como aquele que veio para

resolver os problemas, que é como termina Esd 7 – 10.

405

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.147.

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Segundo Lester Grabbe, o edito de Artaxerxes consiste num primeiro problema.

Este edito (cf. Esd 7 juntamente com outros documentos em Esd 4 – 6), não são

simples documentos persas. Em alguns casos eles podem ser uma completa invenção.,

enquanto em outros eles parecem ser documentos autênticos em sua essência, mas

foram fortemente editados em um momento mais tarde. A primeira afirmação é se

alguém do “povo de Israel e os seus sacerdotes e levitas” quiserem ir a Jerusalém tem

permissão para ir com Esdras (7,13), onde o Deus de Israel, cuja habitação está em

Jerusalém, os aguarda (7,15). Em 7,14 Esdras é enviado da parte do rei e de seus

conselheiros. Que o rei tivesse conselheiros nada de anormal, mas ter partilhado sua

autoridade na emissão de ordens ou decretos, é impensável.406

Em seguida, a Esdras é dada permissão de transportar a prata e o ouro que o rei

e seus conselheiros generosamente ofereceram ao Deus de Israel cuja morada está em

Jerusalém. (7,15). Até mesmo o rei e seus conselheiros tacitamente se colocam sob a

soberania de Yhwh. Além disso, toda prata e todo ouro encontrada em todas as

satrapias da Babilônia é para ser entregue à casa de Deus em Jerusalém. Esse valor

deverá ser utilizado na compra de animais, grãos e bebida que deveriam ser oferecidas

no altar do templo de Jerusalém (7,17). Se por acaso, sobrasse alguma parte desse

valor, poderia ser utilizado pelos sacerdotes no que eles quisessem, de acordo com a

vontade de Deus. Além disso, Esdras recebe instruções no sentido de que os

sacerdotes, assim como os levitas, cantores e outros servidores do templo, não

poderiam ser tributados (7,24).

No dizer de Grabbe, toda esta generosidade deve ser examinada com muito

cuidado, pois oferecer um presente é uma coisa, outra bem diferente, é a quantidade

de riqueza pródiga que foi oferecida a Esdras, para que fossem celebrados cultos num

local muito distante. Em verdade, este não parece em nada com um decreto de um rei

persa, mas apenas ilusão de um apologista judeu.407

Depois das riquezas veio o poder político: Esdras foi encarregado de nomear

funcionários e juízes para julgar todas as pessoas na região de Ebir-nari, tanto aqueles

que conheciam a lei como aqueles que não a conheciam, e isto, de acordo com a

406

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.326. 407

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.327.

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sabedoria da lei que estava em suas mãos (7,25-26). O curioso é que a sua autoridade

se estende por toda a satrapia. E segundo o próprio texto, não há nenhuma base para

que se limite o poder de Esdras somente ao contexto dos judeus. Qualquer um que

não obedeça deve ser punido conforme o caso. E a extensão desses poderes é

insinuado claramente em Esd 8,36, onde as ordens do rei são para serem entregues à

“sátrapas e a governadores da província do além rio”. É pouco provável que Esdras

tenha tido todo esse poder, embora o poder e o ofício de um sátrapa devessem variar

conforme sua localização.

No capítulo 8, onde se tem a descrição apenas alguns detalhes da viagem a

Jerusalém, chama a atenção o fato de Esdras não ter solicitado uma escolta militar

para conduzir toda a riqueza que conseguiram ajuntar. Por vergonha, escolheu

sacerdotes e proclamou um jejum conforme Esd 8,21-23. Segundo Grabbe, aqui a

história se torna incrível, pois tiveram que transportar 650 talentos de prata, mais 100

talentos de ouro e vários vasos caros para o templo. Procedendo às conversões,

constata-se que Esdras transportou três toneladas métricas de ouro e mais 19

toneladas de prata. O difícil nessa história é entender porque toda essa riqueza foi

destinada a uma localidade sem expressão alguma e o pior, escoltado apenas por 12

sacerdotes. Tanto que Heródoto chega a relatar que só a satrapia de Ebir-nari, num

determinado ano chegou a recolher em tributos a quantia de 350 talentos de prata..408

Nos capítulos 9 e 10, têm-se os episódios relativos ao casamento com “esposas

estrangeiras”. Provavelmente Esd 9 – 10 é uma criação a partir de Ne 9 – 10. Esdras ( -

10 teve um maior desenvolvimento do Ne 9 – 10. Esd 10, 18 – 44 contêm uma lista

daqueles se separam de suas esposas estrangeiras. Mas, de onde surgiu esta lista?

Será que esta lista teria sido uma criação do redator para favorecer a alguns

descendentes do grupo que retornou do exílio? Segundo Gunneweg (1985), esta lista

parece ter sido criada com base na lista que está em Esd 2//Ne 7. Isso adiciona suporta

à ideia de que Esd 9 – 10 é uma criação literária, que se utilizou de Ne 9 – 10 como

modelo, mas recorrendo também a outras fontes textuais. Nesse sentido, Esd 9 – 10

está intimamente relacionada com a teologia da terra, pois a posse da terra foi

408

Idem, p.328-329.

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utilizada como justificativa para que se tomassem drásticas medidas contra os

“estrangeiros”.409

A partir desses dados, isto é, de que as narrativas em Esdras 7 – 10 tem muito

mais de invenção do que de um relato histórico, é interessante se perguntar pela

intenção do redator: no fundo da questão está a problemática da terra – a quem ela

pertence?

5.2.3.5 – Neemias

a) Neemias 5,1-13

O capítulo 5 do livro de Neemias, que é visto pelos estudiosos como que

fazendo parte de um conjunto maior, ou seja, das assim chamadas “Memórias de

Neemias”. Segundo Lester L. Grabbe existe um consenso geral de que esse memorial

talvez tenha sido feito pelo próprio Neemias e que, se mesmo alguém tão cético como

Gunneweg, acredita que de fato ele tenha existido, é porque esses dados merecem ser

levados em conta. Segundo Kellermann, há várias razões para postular tal fonte devido

à grande quantidade de material na primeira pessoa, uma situação incomum na

literatura bíblica.410

Ao que parece este capítulo 5 está deslocado em relação ao conjunto do bloco

das memórias de Neemias. Enquanto a tônica do conteúdo das memórias recai sobre

os inimigos e a reconstrução dos muros da cidade, a cena descrita no capítulo 5 foge

totalmente ao restante do conjunto. Nesse sentido, pode-se conjecturar que existe a

possibilidade deste capítulo 5 ter sido inserido dentro do “memorial de Neemias” por

algum dos grupos que estavam em luta pela conquista do poder. Trabalho com a

hipótese de que tenha sido o grupo sacerdotal que tenha feito este acréscimo, pois no

período em que foi realizado esse acréscimo a situação dos sacerdotes no templo

devia ser de grandes penúrias.

409

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the second temple period: vol.1…, p.314-315. 410

Idem, p.78-79. Segundo T. Reinrnuth (2002), que é quem mais recentemente fez uma análise desse material, chega à conclusão de que existe grande probabilidade desse memorial ter existido.

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Mas, independente disso, o texto é muito ilustrativa no sentido de que retrata

muito da realidade social. O cenário que se tem é o de que o campesinato está

passando por um período de grande exploração por parte da aristocracia. Neemias na

qualidade de governador ouve o clamor dos empobrecidos e humilhados por tal

situação e, ao que o texto parece indicar, chama seus concidadãos à responsabilidade,

pois, estes que sofrem, eram também judeus como eles.

Deixemos que o próprio texto nos coloque dentro da cena:

Surgiu então uma forte queixa do povo e de suas mulheres contra seus irmãos judeus. Alguns diziam: “Nossos filhos, nossas filhas e nós mesmos somos numerosos. Gostaríamos de ter trigo para comer e viver!”. Outros diziam: “Nossos campos, nossas vinhas e nossas casas, damo-las em hipoteca para termos trigo durante a época da fome”. Outros ainda diziam: “Para o tributo do rei, tomamos dinheiro emprestado, empenhando nossos campos e nossas vinhas. No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos irmãos, e nossos filhos são semelhantes aos deles. E contudo somos obrigados a entregar nossos filhos e nossas filhas à servidão, e algumas de nossas filhas já são escravas; nada podemos contra isso; nossos campos e nossas vinhas pertencem a outros!” (Ne 5,1-5)

A partir da leitura deste texto é possível perceber que ele tem uma grande

abrangência, pois os problemas que saltam aos olhos de qualquer observador são

tanto de ordem econômica, quanto de ordem social, política e, principalmente,

ideológica.

Milton Schwantes nos dá uma dica preciosa quando alerta para os equívocos que

podem ser cometidos ao se fazer uma leitura descontextualizada:

[...] interpretar não é só reler o que está escrito. Ao interpretar também necessito avaliar a trajetória social percorrida pelos textos. Uma leitura que reproduz o texto final tende a nivelar e a perder a postura dialética. Não se trata de desfazer a validade de genealogias, itinerários e promessas, mas de validá-los, em sua contribuição específica, no contexto da especificidade dos demais textos, ou partículas das narrativas. Exegese não são só relê sentidos, igualmente perscruta a história; dá-se na dinâmica entre sentidos e história.411

411

Milton Schwantes, A família de Sara e Abraão, São Paulo, Paulinas, p.38.

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De fato, Milton tem razão quando reforça a necessidade que se tem de avaliar

a trajetória social percorrida pelo texto, mas no caso do texto acima, ele se propõe a

ser uma releitura de fatos ocorridos quase uma centena de anos antes. Se os fatos

aqui narrados foram verídicos, não tem grande importância. O importante consiste no

presente a quem ele foi dirigido. Ao que parece, o texto quer propor uma nova

relação, particularmente, entre a aristocracia e o campesinato. No fundo, da questão

estavam o sacerdócio e o templo que necessitavam do campesinato, pois sendo

numericamente muito superior ao grupo que detinha o poder econômico na província

de Judá, isto é, a aristocracia, eram eles que de fato sustentavam o templo com seus

sacrifícios, oferendas e dízimos. Eram eles que estavam sendo integrados dentro de

um novo sistema de crença que possibilitaria a justificação, afirmação e legitimação do

grupo sacerdotal como poder dominante em toda a região da província de Judá. Aos

olhos do campesinato o grupo sacerdotal aparecia como extremamente relevante do

ponto de vista da mediação, tanto entre a divindade e a sociedade em geral, como

também, de forma bem particularizada, entre o campesinato e a aristocracia, pois,

aparentemente, tinham a classe sacerdotal ao seu lado, contra a aristocracia.

No versículo 5: No entanto, nossa carne é semelhante à carne dos nossos

irmãos, e nossos filhos são semelhantes aos deles, o texto dá a entender que quem

estava reclamando da situação tinha a mesma descendência daqueles que estavam

explorando. Como já visto anteriormente, aqueles que haviam ficado na província de

Judá e tomado posse das terras desocupadas pelos deportados, foram discriminados

pela golá, isto é, por aqueles que retornaram do exílio. Segundo o novo sistema de

crença que estava sendo implantado, os remanescentes, ou seja, os sobreviventes que

escaparam ao massacre babilônico e haviam dado início a um processo de

retribalização em toda a província foram considerados como impuros, indignos de

fazer parte daquele novo projeto que o próprio deus estava realizando. Por isso, todas

aquelas listas genealógicas412 foram criadas com o fim de justificar, por um lado, a

412

Conforme Robert R. Wilson em Genealogy and History in the Biblical World, citado por Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1..., p.80., estudos de genealogias nas sociedades modernas mostram que elas podem ter outras funções do que ser um simples registro de descendência de sangue. Elas podem ser fruto de relações socais em crise ou que contenham mensagens teológicas. Segundo o próprio Grabbe, as listas em Esdras e Neemias tem muitas vezes, um propósito teológico.

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quem pertenciam aquelas terras que haviam sido ocupadas pelo campesinato e por

outro, descredenciá-los, caracterizando-os com o termo pejorativo de “povo/gente da

terra”413.

É bem possível que estes homens e mulheres que estavam lutando por sua

sobrevivência, bem como também pela sobrevivência de seus filhos e filhas, sejam os

mesmos que também tiveram que enfrentar a ideologia do projeto sacerdotal.

A economia de todo esse período como nos informa Grabbe, foi agrária. O

comércio teve um importante nicho em cada período, mas foi sempre muito

secundário à agricultura. Apesar de alguns desenvolvimentos tecnológicos ao longo

dos séculos, o trabalho sobre a terra mudou pouco no Oriente Próximo (e em grande

parte do mundo Mediterrâneo) ao longo de vários milênios. Os métodos agrícolas

eram primitivos e a mão de obra intensiva, gerando em média apenas um pequeno

excedente. A grande maioria da população – campesinato – estava empregada em

atividades agrárias.414

Apesar de Lester Grabbe colocar o contexto de Ne 5 em meados do século V

a.C., o que eu não concordo, pois no início do século V a.C., a província de Judá era

uma terra de ninguém, ou seja, não havia ainda um controle de fato sobre suas terras.

Nesse período ainda se estava no meio do processo de retribalização que deve ter ido

até fins do século IV a.C.. Grabbe afirma que as estimativas da população de Judá

indicam apenas um pequeno número de habitantes. Judá deve ter sido uma pequena

província, e que não havia muitas pessoas habitando por lá, sugerindo assim que devia

haver pouca terra disponível para cultivo.415

Esse dado levantado por Grabbe, nos faz sustentar a hipótese de que Ne 5 é

acréscimo ao conjunto designado por “Memorial de Neemias” e que deve ter sido feito

num período bem posterior, isto é, no período grego. Outro dado do próprio texto que

nos ajuda nesta argumentação é quanto à realidade da escravidão, ou seja, do

413

Em Ageu 2,4 “Podo da terra” tem uma conotação bem diferente da que é encontrada em Esdras e Neemias onde são, de certa forma, demonizados. Em Ageu parecem fazer parte da comunidade. 414

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1 – Yehud: A history of the Persian Province of Judah, New York, T&T Clark International, 2004, p.191. 415

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1, p.207.

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trabalho escravo nas grandes fazendas e latifúndios: algumas de nossas filhas já são

escravas.

Segundo Finley (1985) e Whittaker (1980), citados por Grabbe, a espinha dorsal

da economia na província de Judá do período persa ainda era o agricultor ou o

trabalhador livre. No período grego e romano haviam latifúndios, que eram grandes

propriedades com trabalhadores escravos.416

Já para Dandamev (1984) e Lukonin (1989), citados por Grabbe, em ambas as

partes orientais e ocidentais do mundo mediterrâneo, havia um espectro completo de

trabalhadores agrários, todo um caminho de alienação fiduciária de escravos para

libertar camponeses. A escravidão era característica da área da Babilônia e de outros

centros culturais da Pérsia, bem como, talvez, de muitas das áreas gregas da Ásia

Menor. No entanto, mesmo aqui a economia não foi baseada principalmente no

trabalho escravo: o trabalho escravo ainda não desempenha o papel principal na

economia, nem eram os escravos amplamente utilizados em trabalho agrícola em

grandes propriedades, seja de fazendeiros ou do rei. Além disso, argumenta Zaccagnini

(1983), que enquanto alguns artesãos eram escravos (tecelões, por exemplo), a

situação geral era de que os artesãos eram indivíduos livres, mas geralmente

dependentes do palácio, portanto, muito semelhantes aos servos na área agrária.417

A nível de conclusão, Grabbe, citando Hamel (1990) diz que ninguém, de fato,

saúda a cobrança de impostos, mas que sempre, em algum momento, queixam-se,

mas tentar quantificar até que ponto esta cobrança tornou a vida das pessoas se torna

muito difícil. A maioria das pessoas vivia em nível de subsistência e seria considerado,

segundo os padrões modernos, uma situação de opressiva pobreza, de extrema

miséria. Homens ou mulheres sabem-se pouco sobre eles. Não havia classe média para

falar, mas apenas um grande número de pobres e uma minoria de ricos. A diferença de

riqueza entre as classes altas e as massas era enorme. Ainda assim, o que se chama de

pobreza extrema parece ter sido amplamente aceito na Antiguidade.418

416

Idem, p.193. 417

Idem, ibdem. 418

Lester L. Grabbe, A history of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: volume 1…, p.193-194.

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E é dentro desse contexto que a religião foi utilizada como instrumento de

justificação e legitimação da riqueza como portadora da bondade divina e da pobreza

como fruto, no contexto do judaísmo, da falta de observância das leis presentes na

Torá.

b) Neemias 10

Em Ne 10 pode-se detectar uma forte influência num primeiro plano do Livro

do Pentateuco que tem por sua vez a “lei do templo” de Ez 40 – 48 como background.

Em Ne 5 o texto deixa entrever que a província de Judá como um todo estava

passando por grandes dificuldades. Em vista da construção acelerada dos muros, os

contrastes apareceram de modo intenso e aberto, conforme salienta Kippenberg,

citado por Crusemann419.

Ne 10 trás uma série de leis que, segundo o texto, foram assumidas pelo povo

como um compromisso por escrito. São as seguintes:

Não realizar casamentos mistos (v. 31);

Guardar o sábado (v. 32a);

Guardar o ano sabático, com o perdão das dívidas (v. 32b);

Contribuir com um terço de um siclo anualmente como imposto para o

templo, para manter os pães da proposição bem como os sacrifícios

coletivos públicos, inclusive os sacrifícios pelos pecados do povo (v. 33-34);

Abastecer o templo regularmente de lenha (v. 36);

Entregar as primícias (v. 36);

Entregar os primogênitos (v. 37);

Ofertar cereal, frutas, vinho e azeite, por parte dos sacerdotes (v. 38a);

Dar o dízimo (v. 38b-40a);

Cuidar do templo (v. 40b).

Como se pode notar, o texto reflete nitidamente a influência do livro do

Pentateuco nos redatores de do livro de Neemias, que assim como em Esdras,

419

Frank Crusemann, A Torá…, p.464.

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refletem igualmente o contexto histórico do seu tempo, ou seja, a agenda de ambos os

grupos na tentativa de assumir o controle político e religioso da província de Judá.

Diante deste texto se pode concluir que, assim como os redatores da narrativa

sacerdotal presente no Pentateuco tinham como objetivo a sua justificação e

legitimação à frente da comunidade, o texto de Neemias vem reforçar esse ideal de

modo etiológico, isto é, relegando a um passado, que mesmo que não tão distante, um

compromisso já assumido por toda o povo, isto é, pelo campesinato.

Nesse sentido é claro perceber que a província de Judá estava sob grande

pressão social e política. De um lado estava a aristocracia pressionando o campesinato

para que saldassem as suas dívidas (cf. Ne 5,1-5) e do outro a classe sacerdotal que

também pressionava o mesmo campesinato, pois somente eles poderiam fazer com

que o projeto sadocita saísse do papel, isto é, funcionasse adequadamente segundo os

interesses da classe sacerdotal.

O que deve ser percebido é que a ideologia sacerdotal foi sendo sutilmente

instalada no inconsciente, no imaginário do campesinato como algo naturalmente

normal e, acima de tudo, querido por Deus, pois não podendo resistir a um

compromisso assumido anteriormente por seus pais, viu-se obrigado a dar o devido

suporte para que o regime teocrático fosse paulatinamente implantado.

5.2.4 – 1ª e 2ª Crônicas

O livro de Crônicas, 1º e 2º, tem recebido uma considerável atenção nesses

últimos tempos. Alguns dos novos estudos são muito, de fato, muito importantes para

um estudo histórico mais detalhado. A datação de Crônicas tem variado desde o início

do período persa até o tempo dos Macabeus. A dificuldade é que não existem critérios

claros fazendo com que os estudiosos recorram a meios indiretos, que são

frequentemente muito subjetivos. Assim, Martin Noth (1987: 69 – 73) argumenta que

o livro foi escrito no período helenístico. Vários estudos da década de 70 tendem a

favorecer o período posterior Aquemênida (Japhet 1971: 533 – 34); Williamson 1977:

83 – 86). Embora Steins tenha datado o livro para o período dos Macabeus, há certo

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consenso para a datação de Crônicas para o início do terceiro século (Japhet 1993: 27 –

28; Albertz 1994: 545; Peltonen 2002: 261 – 71).420

Os livros não parecem estar essencialmente preocupados com os gregos, mas

sim em se concentrar em questões que ficaram do período persa, pois assim, nos

dizem algo dobre a comunidade naquele momento. Um dos problemas de Crônicas é

de se saber se 1 Cr 1 – 9 é parte integrante da composição. O problema com a

utilização de Crônicas para fins históricos é que a maior parte do material é uma

versão da história de Israel sob a monarquia, em paralelo com Samuel – Reis. A maioria

dos estudiosos vê Samuel – Reis como a fonte principal. O acesso à história pós-exílica

tem de ser encontrada de forma indireta. Uma área onde tal coisa parece existir é em

relação ao templo: há um amplo consenso de que Crônicas reflete a estrutura do

sacerdócio e do funcionamento do culto no templo no fim do período persa ou início

do período grego. Há algumas indicações de que os profetas do culto no templo

estavam sendo absorvidos pelas fileiras dos cantores levitas do templo. Assim, o livro

parece indicar de modo fundamental que a música e o canto estavam tendo grande

importância no culto.421

Quanto a 1 Cr 1 – 9, no tocante à questão das genealogias, elas perecem refletir

a estrutura e padrões de assentamento da comunidade pós-exílica. T. Willi argumenta

que essas genealogias são “listas de cidadania” (Burgerrechtslisten) com Judá e

Judaísmo sendo os continuadores de toda a tradição de Israel. As genealogias das

tribos não são apenas um resumo da tradição mais antiga, mas representam uma

mensagem renovada para os atuais habitantes de Judá, isto é, para o campesinato.422

5.3 – O sistema sacrifical sacerdotal como eficiente sistema tributário

A partir do conceito de “modo de produção” quero demonstrar que toda a

estrutura sacrifical criada pelo grupo sacerdotal jerusolimitano foi uma estrutura que

ao invés de solucionar os problemas normais relativos à vida de toda e qualquer

420

Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.98. 421

Lester L. Grabbe, A history of the Jews.. Vol.1.., p.98-99. 422

Idem, p.99.

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sociedade, trouxe, em verdade, muito mais dificuldades e sofrimento. Portanto, é de

se desconfiar desse deus apresentado pela narrativa sacerdotal como o grande deus

libertador, que livrou o povo das terras do Egito para subjuga-lo ainda mais à

autoridade dos sacerdotes.

O conceito de “modo de produção”, que na elaboração da teoria marxista,

apresenta-se como elemento central, possibilita analisar de que modo diferentes

sociedades migram de um modelo de organização social para outro. Não deixa de ser

uma tentativa de interpretação da história, pois revelam quais são as estruturas

essenciais dentro de uma dada sociedade, explicando os seus fundamentos e

extraindo as leis de sua evolução. Retomando uma hipótese, já formulada antes de

mesmo de Marx e Engels, de que “história é a história da transição de formas de

organização social sem classes às sociedades de classe”, o judaísmo nos proporciona

excelente exemplo de um modelo de sociedade que fez a passagem de um modo de

produção a outro, ou seja, do sistema de produção tribal ao sistema de produção

tributário.423

Se, de fato, se pode falar num processo de aparente retribalização da província

de Judá no período pós-exílico, se pode afirmar também que, com o retorno do grupo

dos deportados, iniciou-se mais uma vez um processo de mudança na configuração

social da província de Judá, que não se processou de modo imediato, mas que durou

pelo menos dois séculos até se solidificar definitivamente, mediante o recurso das

escrituras como forma de legitimação da classe sacerdotal jerusolimitana sobre o

campesinato judaíta.

Conforme outras tantas experiências anteriores, esta também não deixou de

ser igualmente traumática para as pessoas que habitavam as regiões da província. Os

grupos sociais, estabelecidos em aldeias e clãs, tendo fugido do raio de ação dos novos

senhores imperiais, não conseguiram resistir à sua influência externa por muito tempo.

Foram submetidos a um novo regime de vida imposto pela classe sacerdotal

jerusolimitana. Abandonando seu peculiar modo de vida, cujo fundamento estava nas

423

François Houtart, Religião e modos de produção pré-capitalistas, São Paulo, Edições Paulinas, 1982, p.13-14.

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relações de parentesco, passou a ter que sustentar economicamente o templo e toda a

sua estrutura de pessoal a ele ligada, isto é, ao clero sacerdotal jerusolimitano.

Por “modo de produção”, conforme salienta François Houtart, pode-se defini-lo

como sendo:

[...] a representação simplificada, ideal, de diversas formas de organização social, isto é, de natureza dos elementos que as compõem, de suas relações e das bases estruturais de sua própria transformação.424

Como poderá ser constatado, o modo de produção imposto a toda a província

de Judá foi o sistema tributarista, isto é, sistema no qual todo habitante foi obrigado

por lei a ter que constantemente, além de pagar os pesados tributos cobrados pelo

império persa, ter que doar também, seja em forma de oferta ou sacrifícios, parte de

sua produção. Nesse sentido, como afirma Nancy Pereira Cardoso, proceder a uma

releitura do corpo de textos produzidos neste contexto, ganha um novo colorido se for

feito em “chave econômica”, pois:

[...] recoloca a discussão sobre as relações entre economia e religião no antigo Israel, exigindo um redimensionamento do metabolismo produtivo-reprodutivo das análises de modo de produção tributário que são utilizadas. A oferta/sacrifício como ritualização do processo de criação de valor não pode ser analisada na superfície dos mecanismos de manutenção da economia do templo e do clero, mas deve possibilitar o acesso às formas sociais de organização da produção e reprodução da vida material.425

De fato, o judaísmo, enquanto sistema de governo político-hierocrático deixa

entrever que o sistema religioso foi o sistema dominante em toda a província.

Utilizando as categorias pertinentes ao materialismo histórico, é possível afirmar que o

judaísmo preenche satisfatoriamente todos os seus pressupostos.

Desse modo, afirmar que a estrutura religiosa se configura como a

infraestrutura que deu sustentação a toda as demais estruturas criadas pela classe

sacerdotal, não está fora de propósito, pois que, apoiadas na estrutura religiosa, todas

424

Idem, p.14. 425

Nancy Cardoso Pereira, “Fabricação do corpo e economia: produção e reprodução de valor no Levítico”, em Revista de Interpretação Bíblica latino-Americana, nº 51, Economia: solidariedade e cuidado, Petrópolis, Vozes, 2005/2, p.35.

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as demais estruturas, ou seja, a estrutura econômica, jurídica e política, deram

sustentação aos seus objetivos – controle do templo (poder religioso) e irrestrito poder

político-social.

Mas, se a infraestrutura religiosa continuou sendo a estrutura dominante

dentro do judaísmo, nada nem ninguém impediu que a estrutura econômica fosse a

estrutura determinante em última instância. Assim, quem teria sido capaz de colocar-

se contra o sistema imposto pelos sacerdotes, se era Deus quem os legitimava?

Portanto, proceder a uma leitura dos textos deste período em “chave econômica”

como sugere Nancy Cardoso, é crucial para que se possa entender em que nível se

processou as relações de poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal

jerusolimitana.

Conforme pode ser constatado nas linhas seguintes são inúmeras as

prescrições nas quais os textos explicitam o valor e a quantidade a ser ofertada no

templo:

Quando um homem ou uma mulher se tornam infiéis ao Senhor cometendo um dos pecados em que costuma cair todo ser humano. Confessarão o pecado que cometeram; o culpado restituirá àquele a quem prejudicou o objeto e mais um quinto de seu valor. Se a vítima não tiver parente a quem se possa restituir o objeto do delito, este deverá ser restituído ao Senhor, isto é, ao sacerdote, sem contar o carneiro expiatório. (Nm 5,6-10)

Quando um homem ou uma mulher se comprometer por voto de nazirado a consagrar-se ao Senhor o nazir [...] se alguém morrer de morte súbita perto dele, tornando impura sua cabeça consagrada, ele raspará a cabeça no dia de sua purificação [...] levará ao sacerdote duas rolas ou dois pombinhos [...] e levará um cordeiro de um ano como sacrifício de reparação. Eis a lei referente ao nazir: no dia em que se completa o tempo de seu nazirado, ele [...] apresenta uma oferenda ao Senhor: um cordeiro de um ano sem defeito, em holocausto, uma ovelha de um ano, em sacrifício pelo pecado, e um carneiro sem defeito, em sacrifício de paz; um cesto de pão sem fermento, feito de flor de farinha, bolos amassados com azeite, e obreias sem fermento, untadas com azeite (Nm 6,2-15)

Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: uma vez que tiverdes entrado na terra à qual vou conduzir-vos, quando comerdes do pão da terra, reservareis um tributo para o Senhor. Como primícias de vossas fornadas, reservareis um pão a título de tributo; reservá-lo-eis do mesmo modo como o tributo da colheita. Das primícias das vossas fornadas, dareis um tributo ao Senhor; e assim por todas as gerações. (Nm 15,17-21)

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Quando, por inadvertência faltardes contra um desses mandamentos que o Senhor ditou a Moisés [...] a comunidade inteira oferecerá ao Senhor um novilho em holocausto de odor aplacável, com a oferenda e a libação requerida segundo o costume, assim como também um bode em sacrifício pelo pecado. [...] Mas a pessoa que age deliberadamente, seja um nativo ou um migrante, comete uma injúria contra o Senhor; tal pessoa será cortada de seu povo. Visto que desprezou a palavra do Senhor e violou os seus mandamentos, é mister que seja eliminada. (Nm 15,22-31)

Se como afirma Nancy Cardoso Pereira, numa citação logo acima, a

oferta/sacrifício como ritualização do processo de criação de valor não pode ser

analisada na superfície dos mecanismos de manutenção da economia do templo e do

clero, mas deve possibilitar o acesso às formas sociais de organização da produção e

reprodução da vida material. De fato, foi bem isso que se sucedeu dentro da província

de Judá: uma reestruturação da sociedade, uma reorganização do modo de produção

bem como também das relações sociais de produção.

Nesse sentido, se pode afirmar que a caracterização do modo de produção

tributário é dada pelo reconhecimento de como se processa a reprodução das relações

sociais de produção dentro da província. De acordo com a estrutura estabelecida pelo

novo sistema implantado – sistema político-religioso –, cria-se uma relação de extrema

dependência do campesinato para com a classe sacerdotal. Esta se tornou a

característica principal das relações sociais de produção dentro da província de Judá.

Tendo presente o valor e o espaço que a divindade – criada a imagem e

semelhança dos sacerdotes426 – foi ocupando no imaginário social de todos os

habitantes da província, não demorou muito para que o projeto sacerdotal sadocita

fosse implantado.

Mediante esse projeto de caráter político-religioso, instaurou-se não só a

divisão do trabalho, mas o que foi pior, a divisão da sociedade em classes sociais.

426

Conforme argumenta Henri Desroche, O marxismo e as religiões, Rio de janeiro, Paz e terra, 1968, p.27-30. Citando L. Feuerback, “Não foi a necessidade de consolação religiosa, mas a dificuldade nascida da ignorância” que tem levado os seres humanos de todos os tempos a procurar uma explicação para a vida e a para morte. “De uma maneira absolutamente análoga, é pela personificação das potências naturais que nasceram os primeiros deuses...”. Desse modo o autor conclui que foi “em um determinado estágio porque passam todos os povos civilizados, ele as assimila, personificando-as. Foi este instinto de personificação que criou deuses em toda parte”.

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Enquanto aos sacerdotes ficou reservado o trabalho de serem os mediadores,

autorizados e consagrados pela divindade, entre Deus e o povo, ao campesinato restou

trabalhar a terra para dela tirar seu sustento bem como também o necessário para

oferecer a deus para assim estar em estado de pureza e poder sonhar com sua

benevolente bondade.

Nesse sentido, conforme argumenta Nancy Cardoso Pereira, as citações feitas

acima – dos livros de Números e Levítico – deveriam ser vistas como justificadoras e

legitimadoras de uma nova ordem, ou seja, como:

[...] um momento de transição das antigas formas rituais de produção de valor para um tecido social-novo que, a partir da religião, faz da fabricação/controle social dos corpos – pessoal e social – o mecanismo básico de produção e reprodução de valor, infraestrutura fundamental para a consolidação de uma forma social de produção: a escravidão.427

O Documento Sacerdotal/Pentateuco foi, de fato, um projeto idealizado pelo

império persa, conforme pensa Max Weber (Hans G. Kippenberg).

“Se não me escutardes e não puserdes em prática todos os meus

mandamentos, se rejeitardes as minhas leis, se tiverdes aversão aos meus costumes a

ponto de não por em prática todos os meus mandamentos, quebrando assim a minha

aliança, então, eis o que farei:”

Mobilizarei contra vós, para apavorar-vos, o definhamento e a febre, que esgotam a vista e acabam com a vida

Voltar-me-ei contra vós outros, e sereis feridos diante de vossos inimigos; os que vos aborrecerem assenhorear-se-ão de vós e fugireis, sem ninguém vos perseguir. Se ainda assim com isto não me ouvirdes, tornarei a castigar-vos sete vezes mais por causa dos vossos pecados

Quebrantarei a soberba da vossa força e vos farei que os céus sejam como ferro e a vossa terra, como bronze. Debalde se gastará a vossa força; a vossa terra não dará a sua messe, e as árvores da terra não darão o seu fruto. E, se andardes contrariamente para comigo e não me quiserdes ouvir, trarei sobre vós pragas sete vezes mais, segundo os vossos pecados

427

Nancy Cardoso Pereira, “Fabricação do corpo..., p.35-36.

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Porque enviarei para o meio de vós as feras do campo, as quais vos desfilharão, e acabarão com o vosso gado, e vos reduzirão a poucos; e os vossos caminhos se tornarão desertos. Se ainda com isto não vos corrigirdes para volverdes a mim, porém andardes contrariamente comigo, eu também serei contrário a vós outros e eu mesmo vos ferirei sete vezes mais por causa dos vossos pecados

Trarei sobre vós a espada vingadora da minha aliança; e, então, quando vos ajuntardes nas vossas cidades, enviarei a peste para o meio de vós, e sereis entregues na mão do inimigo. Quando eu vos tirar o sustento do pão, dez mulheres cozerão o vosso pão num só forno e vo-lo entregarão por peso; comereis, porém não vos fartareis

Se ainda com isto me não ouvirdes e andardes contrariamente comigo, eu também, com furor, serei contrário a vós outros e vos castigarei sete vezes mais por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas. Destruirei os vossos altos, e desfarei as vossas imagens do sol, e lançarei o vosso cadáver sobre o cadáver dos vossos deuses; a minha alma se aborrecerá de vós (Lv 26,14-29)

Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas como à tua alma te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses, que não conheceste, nem tu, nem teus pais, dentre os deuses dos povos que estão em redor de ti, perto ou longe de ti, desde uma até à outra extremidade da terra, não concordarás com ele, nem o ouvirás; não olharás com piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas, certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-lo-ás até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão (Dt 13,7-11)

São estes os mandamentos que o SENHOR ordenou a Moisés, para os filhos de Israel, no monte Sinai (Lv 27,34)

5.4 – Uma releitura da ideologia sacerdotal à luz de Michel de Certeau

De um determinado ponto de vista, não se trata de construir nada, senão que,

desconstruir. Proceder a uma análise histórico-crítica das relações de poder entre o

campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana implica em descortinar, em

desvelar a trama que está por trás das narrativas construídas de muitos textos bíblicos.

Mas, por outro lado, se trata sim de construir aquela parte esquecida – omitida – da

história de que nos fala Rigoberta Menchú, daquele real de que nos falará em seguida

Michel de Certeau. Sim, a proposta é também de construção, de escrever o não dito da

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realidade campesina, de encontrar no verso – da narrativa bíblica – o reverso de sua

triste e dolorosa realidade: suas lutas para sobreviverem diante dos avanços imperiais,

o drama de terem que renunciar aos seus mais nobres valores, costumes, enfim, à sua

identidade cultural.

A tese que eu defendo e procurarei demonstrar é a de que as relações de

poder entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana foram tecidas

de tal modo, que as relações de poder claramente se transformaram em relações de

dominação e exclusão para os dominados – campesinato judaíta –, pois, os

dominadores – classe sacerdotal jerusolimitana – que tendo na escritura hebraica seu

principal instrumento de empoderamento e legitimação de seu status quo, conforme

acentuou Max Weber, “domesticaram os dominados”428.

Segundo Michel de Certeau enfatiza em seu livro “A Escrita da História”:

[...] recusar a ficção de uma metalinguagem que unifica o todo é deixar aparecer os procedimentos científicos limitados e aquilo que lhes falta do real ao qual se referem. É evitar a ilusão necessariamente dogmatizante, própria do discurso que pretende fazer crer que é “adequado” ao real, ilusão filosófica oculta nos preâmbulos do trabalho historiográfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambição tenaz: “O relato dos fatos reais é doutrinal para nós”. Este relato engana porque acredita fazer a lei em nome do real.429

Diante dessa observação de Certeau, não é possível fechar-se à realidade de

que – quase na totalidade da obra do AT – existe, de fato, uma “metalinguagem que

unifica o todo”. Citando Schelling, Certeau desconcerta quando diz que aceitamos de

bom grado a ilusão de que “relatos de fatos reais são doutrinais para nós”. E o que não

dizer do impacto desses relatos na consciência de homens e mulheres que viveram a

2500 anos atrás, à mercê de um mundo divinamente encantado.

Desse modo, partindo daquilo que a “nova história” caracterizou como sendo

uma história a ser contada a partir do ponto de vista dos dominados, isto é, daqueles

que sempre estiveram por baixo, daquele “real” de história que sempre foi omitido,

428

Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,1982, p.32. 429

Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1982, p.10-11.

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conforme os interesses escusos dos dominadores, daqueles que sempre estiveram por

cima.

Com o fim dos discursos universais e seguindo uma das tendências filosóficas

que marca profundamente a contemporaneidade da reflexão, como novo norteador

ético, o corpo é assumido atualmente como critério para julgamento. Mas conforme

preconiza os arautos da “nova história” nem sempre foi assim. Estudar a história do

corpo humano, que é constantemente afetado de maneiras variadas, tanto pela

cultura quanto pela sociedade, jamais deveria ser encarado sem levar em conta as

considerações (culturais) da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia.430

Para a Nova História é de importância básica uma compreensão do local

subordinado, destinado ao corpo nos sistemas de valor religioso, moral e social da

cultura, tanto do presente como do passado. Se há como afirma Roy Porter, “um

enorme campo de ação para os historiadores políticos para serem mais sensíveis à

realidade do corpo, produzidas pela autoridade do estado sobre os corpos de seus

súditos”431, o judaísmo se apresenta como um valioso objeto de estudo, pois, como

religião do corpo, de corpos marcados com o sinal da morte, de corpos marginalizados

e excluídos da vida, de corpos prostituídos e manipulados segundo os interesses de

outros corpos, corpos vergados pela fome e pela dureza do trabalho escravo diante de

corpos, aparentemente, emoldurados pelas ideológicas bênçãos dos céus.

Não foi por menos que Michel de Certeau inaugurou seu livro analisando

aquela pintura de Jan Van der Straet, onde o artista pintou o descobridor que vindo do

mar, e tendo atrás de si as naus que levaram muitos de nossos tesouros, se encontra a

“América Índia, mulher estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo

que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos”. Mas, conforme aponta o

próprio Michel de Certeau:

[...] o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a escrita conquistadora. Utilizará o novo mundo como uma página em branco (selvagem) para nele escrever o querer ocidental. Transforma o espaço do outro num campo de expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre um sujeito e um

430

Roy Porter, “História do Corpo”, em Peter Burke, A escrita da história, 2ª Reimpressão, São Paulo, Editora UNESP, 1992, p.291-326. 431

Michel de Certeau, A escrita da História..., p.325.

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objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever) fabrica a história ocidental.432 (o grifo é meu)

De fato, o que se disfarça no discurso divino repleto de moralidade, de

prescrições e proscrições, é a colonização da mente, num primeiro momento, para em

seguida proceder à colonização do corpo, colonização essa que transforma o corpo do

outro num excelente “campo de expansão para um sistema de produção”.

Daí que o autor se pergunta: “Que aliança é esta entre a escrita e a história?” E

responde, dizendo: “Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das

Escrituras”.433

Este “discurso do poder” do qual nos fala Certeau, logicamente tem a ver com

os diferentes discursos, mas aqui, particularmente no contexto desta tese, com os

discursos presentes na escritura judaico-cristã. Segundo o próprio Certeau estes

discursos tem mais “aspecto de fabricação” e não mais de leitura ou interpretação. O

que está por trás é claramente um “problema político” e em jogo, a “questão do

sujeito (do corpo e da palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou

do silêncio pela lei de uma escrita científica”.434

[...] Quanto melhor se vê a que serve e como atua o religioso no seio do social, menos se é tentado a igualar o social ao religioso. Quanto melhor se compreende a história resolutamente disposta na mente, em que sentido a religião constituiu, em quase toda a duração das sociedades humanas, o elemento essencial de seu dispositivo político e como que a matéria da ligação entre seus membros, mais nos deligamos do mito de sua pretensa necessidade trans-histórica.435 (o grifo é meu)

[...] Nada de despossessão mais completa e mais estrita do que aquela que garante a relação com a verdade instituída em outro tempo, tempo de antes, tempo da origem, uma vez por todas terminado, povoado de seres, heróis ou ancestrais, de outra estatura que não a nossa, e tempo cuja realidade presente não constitui, e não pode constituir, senão uma cópia conforme e uma repetição exaustiva. Sempre fizemos assim, isso nos vem da origem: a fórmula parece benigna em seu tradicionalismo; ela é, no entanto, aquela da alteridade religiosa máxima.436 (o grifo é meu)

432

Idem, p.9-10. 433

Michel de Certeau, A escrita da História..., p.11. 434

Idem, ibdem. 435

Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma, São Paulo, Radical Livros, 2009, p.58. 436

Idem, p.71.

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5.5 – O judaísmo à luz da teoria da etnicidade.

Outro instrumental oriundo das ciências humanas que possibilita uma

compreensão ainda mais aprofundada das relações sociais estabelecidas em Israel pela

classe sacerdotal jerusolimitana, se constitui na teoria da etnicidade, que tem em

Fredrik Barth, seu mais renomado teórico, pois se pode falar numa teoria da

etnicidade antes de Fredrik Barth e numa outra teoria da etnicidade pós Fredrik Barth.

A grande contribuição de Barth à teoria da etnicidade é quanto à detecção e a

elucidação do valor que representam as “fronteiras étnicas” entre os diferentes grupos

sociais que compõe uma determinada formação social.

Para Barth, etnicidade pode ser definida como sendo:

[...] forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validada na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores.437

Conforme Poutignat resume, o campo designado pelo conceito de etnicidade é

aquele do estudo dos processos variáveis e nunca terminados pelos quais os atores

sociais identificam-se e são identificados pelos outros na base de dicotomizações

Nós/Eles, estabelecidas a partir de tradições culturais que se supõem derivadas de

uma origem comum e realçadas nas interações étnicas.

Quanto à questão da “atribuição categorial” que é chave no campo da

etnicidade, teóricos como L. Drumond e I. Wallerstein estão de acordo em afirmar que

a identidade étnica nunca se define puramente de maneira endógena, mas que é

sempre um produto de atos significativos de outros grupos. Essa categorização étnica

de um grupo social por outro grupo dominante possui um verdadeiro poder formativo:

O fato de nomear tem o poder de fazer existir na realidade uma coletividade de indivíduos a despeito do que os indivíduos assim nomeados pensam de sua pertença a uma determinada coletividade [...] De modo geral as exo-definições tendem a ser globalizantes e a ativar categorias “simultaneamente unificantes e diferenciantes”.438

437

Philippe Poutignat; Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, 2ª Reimpressão, São Paulo, Editora UNESP, 1997, p.141. 438

Idem, p.143-144.

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Aplicando a teoria da etnicidade a Israel, encontramos dois relatos (Gn 49,1-27;

Dt 33,1-29), onde se percebe claramente, aquilo que Barth conceitualiza como

“atribuição categorial”, ou seja, além da nomeação dos diferentes grupos sociais –

tribos – o redator ainda faz uma descrição qualitativa de cada um dos grupos sociais.

Mas, a pergunta que nos inquieta é a seguinte: quem tem o poder de nomear?

Quem foi a pessoa ou qual foi o grupo que se arvorou nesse trabalho de categorização

social? A resposta, a princípio, não é tão simples de ser levantada, mas se levarmos em

conta a temática de nosso projeto – análise histórico-crítica das relações de poder

entre o campesinato judaíta e a classe sacerdotal jerusolimitana – notaremos que

houve, de fato, uma manipulação da narrativa, para que ela servisse, de fato, aos

interesses de um determinado grupo social. Se olharmos atentamente, principalmente

para Gn 49,8-10 (“Judá é a ti que teus irmãos celebrarão, tua mão pesará sobre a nuca

dos teus inimigos, os filhos de teu pai se prostrarão diante de ti [...] O cetro não se

apartará de Judá, nem o bastão de comando de entre os seus pés”), perceberemos o

destaque e supremacia concedida à tribo de Judá, que não por acaso é onde tem

origem e está instalado o clero sacerdotal jerusolimitano.

Outra característica da teoria da etnicidade que chama a nossa atenção é

quanto ao conceito de “fronteira étnica” elaborado por Fredrik Barth. Conforme

salienta S. Wallman:

[...] a pertença étnica não pode ser determinada senão em relação a uma linha de demarcação entre os membros e os não-membros. Para que a noção de grupo étnico tenha um sentido, é preciso que os atores possam se dar conta das fronteiras que marcam o sistema social ao qual acham que pertencem e para além dos quais eles identificam os outros atores implicados em um outro sistema social. Melhor dizendo, as identidades étnicas só se mobilizam com referência a uma alteridade, e a etnicidade implica sempre a organização de agrupamentos dicotômicos Nós/Eles. Ela não pode ser concebida senão na fronteira do “Nós”, em contato ou confrontação, ou por contraste com “Eles”.439

Assim, constatamos que são as fronteiras étnicas e não o conteúdo cultural

interno, que definem um grupo étnico, permitindo assim, que se dê conta de sua

439

Idem, p.152-153.

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existência. Desse modo, a elucidação dos fenômenos de etnicidade passam pela

análise gerativa das condições de estabelecimento, manutenção, transformação das

fronteiras entre os grupos. Na concepção barthiana, a manutenção das fronteiras

étnicas necessita da organização das trocas entre os grupos e da ativação de uma série

de proscrições e de prescrições regendo suas interações.440

Nas narrativas bíblicas esses detalhes das proscrições e prescrições são por

demais palpáveis. Vejamos alguns exemplos de prescrições que enalteciam, por

demais, a classe sacerdotal :

vestes sacerdotais (Ex 28,1-43)

consagração sacerdotal (Ex 29,1-37)

Os holocaustos cotidianos (Ex 29,38-46)

Impostos para o santuário (Ex30,11-21)

Às ofertas, somente o sacerdote tem acesso (Lv7,22-38)

Quanto às prescrições relativas ao campesinato, que se constituía na grande

maioria de pessoas, as leis e regras eram tantas, que tornavam a vida cotidiana um

verdadeiro fardo para ser carregada. Eis algumas prescrições, que quando infringidas

obrigavam o infrator, para se reconciliar com Deus, a oferecer inúmeros sacrifícios,

pois do contrário, pesaria sobre ele, uma terrível maldição.

Lv 5,1-13: Quando alguém, pelo simples fato, de ter visto ou ouvido alguém cometendo alguma coisa contrária à lei e não denuncia o infrator comete pecado.

Lv 5,14-26: Quando alguém, por inadvertência, se esquecer de ofertar as primícias e os dízimos de sua colheita ao Senhor, deverá oferecer os devidos sacrifícios como forma de reparação. Mas, se pecar conscientemente, o culpado deverá pagar com a morte (Js 7).

O projeto persa foi tão bem estruturado e articulado com as tradições que não

deixou margem a qualquer possibilidade de alguém, que pertencesse a um

440

Idem, ibdem.

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determinado grupo étnico, mudar de grupo. Para que as fronteiras ficassem bem

marcadas, as narrativas se ativeram a pequenos detalhes, quanto:

As categorizações fenotípicas de cada um dos grupos

Criação de listagens genealógicas determinando a que grupo étnico

pertencia cada membro da população.

O impacto, o reflexo e o condicionamento que as narrativas obtiveram sobre o

imaginário da população israelita, mesmo que sendo em longo prazo, foi

profundamente construtivo e constitutivo, de uma nova ordem identitária, figurada

pelo judaísmo.

No imaginário da sociedade construiu-se a figura como de uma pirâmide, isto é,

um escalonamento social, onde no topo estava a classe sacerdotal, caracterizada pela

eleição divina e pela qualidade e excelência do serviço prestado, em primeiro lugar à

divindade e em segundo a sociedade como um todo. Eles detinham, de certo modo, a

supremacia, tanto social quanto política. Eram os supremos guardiões do novo sistema

social, além de contar com o apoio e proteção do império persa. O único ofício desta

classe era oferecer continuamente holocaustos em agradecimento e sacrifícios pelos

pecados que eram constantemente cometidos pela comunidade.441

E na base da pirâmide, se encontrava o campesinato, sustentáculo da economia

do novo sistema social que estava, não somente sob o controle da classe sacerdotal,

mas também, de uma aristocracia, que aos poucos foi dominando toda a

infraestrutura econômica da província, obrigando os campesinos a, não só venderem

seus campos e colheitas para sobreviverem, mas a se vender como escravos para os

novos possuidores de terras na região.

De fato, isto é verdade, pois como afirma Poutignat:

[...] as fronteiras entre os grupos são tanto menos permeáveis quanto mais a organização das identidades étnicas esteja ligada à divisão diferencial das atividades

441

Devido à casuística que se foi instalando em função de um controle ainda maior da vida da população, imagina-se que a quantidade de animais (gados de pequeno e grande porte, ovelhas, cordeiros e aves) e outros gêneros que eram ofertados em holocaustos e sacrifícios, deveria ser um algo de terrivelmente espantoso. Em pouco tempo a classe sacerdotal desfrutou de bem estar material, jamais visto ao longo da história de Israel. Diz Joaquim Jeremias.

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no setor econômico. Quando as identidades étnicas estão fortemente correlacionadas a um sistema de estratificação socioeconômico (ou seja, quando as características fenotípicas ou culturais são associadas de maneira sistemática a posições de classe), a fronteira étnica superpõe-se à fronteira social, uma reforçando a outra.442

5.6 – Tribalismo e profetismo

Ao que tudo parece estar a indicar, existe uma relação intrínseca entre o

tribalismo israelita e o movimento profético. A partir dos textos, particularmente de

Amós e Oséias, oriundos do reino de Israel, portanto do norte, que foram profetas

mais ligados ao campesinato – enquanto classe explorada – do que à classe política,

isto é, ao setor dominante da sociedade norte-israelita, pode-se constatar essa

realidade quanto aos fatos:

Qual a origem do profeta?

Qual a base social da profecia?

A favor de quem ele profetiza?

Contra quem se dirige a denúncia profética?

Nesse sentido é possível desde já perceber que tanto Amós quanto Oséias,

além também de Miquéias, que desenvolveu seu profetismo no Reino de Judá, isto é,

na região sul de Israel foram pessoas profundamente engajadas em favor da causa do

campesinato, isto é, a favor da preservação dos valores morais ligados às tradições do

tribalismo.

5.6.1 – Amós

Dos três profetas citados acima, Amós é o primeiro em termos cronológico. Por

volta da metade do século VIII a.C., Amós se levanta em defesa campesinato, isto é, da

classe explorada e dominada economicamente pela elite samaritana. Originário de

Tecua, um povoado ao sul de Jerusalém, profetizou no norte, incomodando por

demais à classe dominante: ao rei e sua corte, bem como ao poder religioso,

representado pelo sacerdote Amasia, de quem ouviu as seguintes palavras: “A terra

442

Philippe Poutignat, Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da etniidade..., p.155.

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não pode suportar suas palavras” (Am 7,10) . Segundo Milton Schwantes que

fundamentado em tese de Hans Walter Wolf, afirma que:

[...] É possível que Tecua tenha sido uma das aldeias em que a sabedoria popular era especialmente cultivada. Em todo caso, a sabedoria clânica é a matriz intelectual da profecia de Amós. Tradições cúlticas ou inteligência cortesã não são o lar espiritual de nosso profeta. Seu ninho efetivamente é a cultura sapiencial popular do jeito como era cultivada em aldeias interioranas. Amós é a voz do campo.443

Como membro do campesinato pauperizado pela economia expansionista de

Jeroboão II, Amós se tornou porta voz das dores de todo o conjunto social camponês

extorquido. Sua palavra é direta e cortante, pois aponta de forma clara a exploração a

que estavam sendo submetidos os campesinos que habitavam as vilas e aldeias que

faziam parte desse mini império, chamado: Reino de Israel. Todas as denúncias são de

caráter social e, até mesmo quando se opõe ao culto, Amós o faz movido pela injustiça

social, promovida pelo templo. Portanto, como poderá ser constatada logo abaixo, a

crítica social está no âmago das denúncias proféticas de Amós.

Nesse sentido, adentremos ao texto. Vejamos o que também foi visto pelo

profeta Amós (cf. Am 7,1.4.7; 8,1;9,1). Como poderemos constatar, a situação era,

realmente, de “total terror”.444

“porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias” (Am 2,6b)

“porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a cabeça dos indigentes e desviam os recursos dos humildes” (Am 2,7a).

“o filho e o pai vão à mesma moça” (cf. Am 2,7b).

“olhai que desordem em seu seio, que opressões no meio dela”(Am 3,9b).

“violências e rapinas” (Am 3,10b)

“explorando os indigentes, triturando os pobres”(cf. Am 4,1).

“Mudam o direito em veneno e arrastam por terra a justiça”(Am 5,7).

443

Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Am 7,10): reflexão e estudo sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.50. Hans Walter Wolf, Dodekapropheton: 2 Joel and Amos, Neukirchen, Neukirchiner, 1969, (Bibbblllischer Kommentar Altes Testament, 14/2). 444

Conforme Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Am 7,10): reflexão e estudo sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.87, ver estudo de Hans Walter Wolf com relação ao termo “total terror” que Milton utiliza para descrever a realidade social em Israel. Hans Walter Wolf, Dodekapropheton: 2 Joel and Amos, Neukirchen, Neukirchiner, 1969, (Bibbblllischer Kommentar Altes Testament, 14/2).

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“pressionais o indigente tomando-lhe sua parte de cereal”(Am 5,11)

“opressores do justo, que extorques resgates; no tribunal enxotam os pobres” (Am 5,12b).

“Escutai, vós que vos encarniçais contra o pobre, para aniquilar os humildes da terra”(cf. Am 8,4).

Enquanto os camponeses são “triturados” pela classe citadina, estes, ao

contrário, conforme nos relatou o profeta, desfrutavam do bom e do melhor, pois, “a

prosperidade, a exploração e o lucro eram os aspectos mais marcantes da sociedade

que Amós contemplava. Os pobres eram realmente pobres e desavergonhadamente

explorados”445, como pode ser constatado abaixo.

“eles não conhecem o reto agir esses amontoadores de violências e rapinas nos seus palácios”(Am 3,10)

“essa gente instalada em Samaria, na fofura de um divã, no conforto do leito”(Am 3,12b)

“ferirei a casa de verão e depois a casa de inverno”, as casas de marfim desaparecerão e grandes mansões tombarão” (Am 3,15)

“vacas de Basã, que pastais na montanha de Samaria” (Am 4,1)

“Detesto, desprezo vossas peregrinações, não posso suportar vossas assembléias, quando me fazeis subir holocaustos … vossos sacrifícios de animais cevados … o alarido de teus cânticos, o toque de tuas harpas” (Am 5,21-23)

“Ai dos que fundaram sua tranqüilidade em Sião e dos que puseram sua segurança na montanha de Samaria, elite da primeira das nações” (Am 6,1)

“Recostados em leito de marfim, estirados em divãs, regalam-se com carneiros novos e com vitelos escolhidos nos currais; improvisam ao som da harpa … bebem vinhos em taças perfumam-se com o óleo das primícias” (Am 6,4-6)

Como podem ser constatadas, todas essas citações se inserem num conjunto

de cinco visões, que não deslocam o profeta para fora de seu contexto social, mas o

lançam para dentro do seu âmago.. As duas primeiras se referem ao campo, isto é, ao

trabalho do campesinato, que sofre não só nas mãos do pessoal e das instituições

ligadas à cidade, mas também sofrem a ameaça da seca, de reis estrangeiros e

gafanhotos que devoram as suas plantações. As três últimas visões dizem respeito à

445

J.A.Motyer, O dia do leão: a mensagem de Amós, São Paulo, 1984, p.1.

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cidade. São relativas aos muros da cidade e às festas que lá dentro aconteciam. Delas

fazem parte os seus lugares sagrados, às suas dinastias, palácios, templos e sacerdotes.

Conforme Milton Schwantes salienta:

A base real das cinco visões constitui, pois, o conflito entre campo e cidade. Essa é a contradição elementar no tributarismo, o modo de produção do mundo bíblico em geral e dos tempos de Amós (século VIII a.C.) em especial. O campo é o local da produção. Gerador de riqueza social é o clã agrícola. A cidade sobrevive à base e à custa do campo. Arrecada parcelas de seus produtos e convoca sua população para o trabalho forçado junto às construções públicas [...] Exército, templo e burocracia são os esteios de tais cidades-Estados.446

É bem provável que o campesinato tenha conseguido resistir por certo tempo

às investidas do setor citadino no sentido de arregimenta-los visando aumento das

arrecadações, pois os clãs mantinham uma significativa autonomia, controlando assim,

seu processo produtivo. “Desse modo, cidade e Estado tem certa dificuldade em se

apropriar dos produtos do campo e em requisitar sua força de trabalho. Não raro

recorrem à repressão militar e à força bruta para ‘convencer’ lavradores ao pagamento

de tributos”.447

Conforme Milton Schwantes também salienta, e religião e toda a estrutura a

ela associada – templo, cultos, ritos, sacrifícios, dízimos, festas e sacerdotes – foram

utilizados como instrumento eficaz como forma alternativa na espoliação do

campesinato. Nesse sentido, o templo se tornou dentro do modo de produção

tributarista uma central de arrecadação de excedentes.

Assim, tem-se de modo bem sucinto a realidade que está por trás das cinco

visões descritas por Amós. Curioso é que, com relação às duas primeiras visões, Amós

deixa entrever que existe solução e esta está a caminho para o bem do campesinato,

mas, quanto às três últimas visões, o prognóstico é aterrador: não existe solução e a

consequência será a destruição.

Portanto, Amós, bem como também, seu grupo social, – pois é de se supor que

ele não estivesse sozinho, mas que tenha tido um grupo com quem ele dividia sua

446

Milton Schwantes, “A terra não pode suportar…, p.199. 447

Idem, p.200.

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aflição e angústia pelo sofrimento de seus coirmãos, bem como, lhe dando o devido

apoio e suporte, para que não sucumbisse nos momentos de perseguição – é de se

supor, devido não somente pela sua opção de estarem ao lado dos economicamente

explorados e oprimidos, além de socialmente injustiçados, mas pela sensibilidade

humana e pelos valores morais que cultivavam em clara oposição frente às atitudes da

classe citadina fossem descendentes diretos do tribalismo.

Por isso se torna claro qual era o fundamento de sua posição frente à classe

citadina, isto é, frente ao rei e sua corte, às suas instituições, de modo especial, a

religião estatal com seus sacerdotes, ritos e festas.

5.6.2 - Oséias

Assim como Amós, também Oséias, poucos anos mais tarde, vivenciou a

mesma situação a que estava sendo submetida a população campesina. O livro de

Oséias, apesar de ter sido posteriormente muito retrabalhado pelos escribas ligados à

corte judaíta (deuteronomistas), guardou alguns resquícios da intuição profética de

Oséias e de seu grupo:

Pois é o amor que me agrada, não o sacrifício; E o conhecimento de Deus, eu o prefiro aos holocaustos. (Os 6,6)

A partir desse pequeno extrato do livro do profeta Oséias é possível intuir o

contexto sócio-político, bem como também, o contexto religioso e econômico de sua

época, além do lugar social a partir de onde ele fala. O cenário que o profeta tem

diante de si, além do quadro já pintado por Amós que havia profetizado ali poucos

anos antes, é de extrema miséria e de um desvario moral sem precedentes.

Este versículo é como uma espécie de síntese profética da missão que Oséias

desenvolveu, não somente junto às autoridades políticas e religiosas de seu tempo,

mas também junto das comunidades aldeãs, isto é, junto ao campesinato, do qual foi

também, não somente um porta-voz, mas um líder que assumiu a responsabilidade de

resgatar alguns dos mais nobres valores e ideais do tribalismo: a solidariedade que

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fundada num autêntico conhecimento de Deus, possibilitaria uma profunda renovação

do tecido social totalmente corrompido.

Por outro lado, expressa também a religiosidade que de fato animava as

comunidades campesinas: amor, lealdade, bondade, solidariedade e misericórdia.

Foram estes os valores que sempre forjaram estas comunidades. Religião templar, com

sacrifícios e holocaustos, não! Esta, na verdade, foi o instrumento utilizado pela classe

dominante para manipular e extorquir o campesinato. Oséias como Amós se

mostraram claramente em oposição à estrutura religiosa imposta pela monarquia

norte israelita. São absolutamente contra os sacrifícios e holocaustos, por isso, contra

o sacerdócio e o templo.

Joseph Blenkinsopp, apoiado nos estudos de Wellhausen vê na religião do

legalismo ou da lei e na observância do culto supervisionado e mantido pelo

sacerdócio, com suas expressões típicas na narrativa sacerdotal ( P ) e em Crônicas, um

gritante contraste com a religião natural de Israel no seu início, e mais ainda, com a

profecia.448

Nesse contexto é fácil de perceber que a estrutura do templo servia

principalmente aos interesses da classe dominante: ao rei e sua corte e à classe

sacerdotal. Segundo Carlos Mario Vasquez Gutierrez a sociedade israelita da segunda

metade do século VIII a.C. deve ser abordada segundo uma dupla perspectiva:

internamente, devido à crise moral que se abatia sobre toda a população e por outro

lado, externamente, isto é, tendo consciência do avanço militar do império assírio:

“estas dos perspectivas son inseparables para la comprensión del mensaje

profético”.449

Para fazer frente ao império assírio que avançava pelo norte, a classe

dominante encontrou na religião um instrumento por demais estratégico para a

consecução de seus interesses, que eram: aumentar a arrecadação de alimentos, não

448

Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.2. 449

Carlos Mario Vasquez Gutierrez, Os 6,6 – “Reconstruyendo el tejido social”: la solidaridad, una alternativa frente a la violencia institucional, São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 1995, p.158 (Dissertação de Mestrado).

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somente em função de si próprio, mas também tendo presente o outro fator: a

procriação, que de certa forma, gerava mais pessoas, não somente para servirem no

exército, mas também para trabalharem nos campos.

Nesse sentido, o campesinato foi sendo violentado, não somente em seus

princípios e valores morais, mas também em seus corpos. Homens e mulheres foram

submetidos a um regime de quase escravidão, em nome de um projeto nitidamente de

caráter ideológico, por isso, profundamente desumanizante. Carlos Mario Vasquez

Gutierrez confirma essa intuição quando diz:

Esta violencia fue justificada por el Estado con la ayuda y apoyo de los sacerdotes, quienes vehiculaban en las fiestas religiosas y los cultos (Os 4,4-19; 5,1-7; 8,1-7) el proyecto estatal de aumentar la recaudación de los tributos y, por medio de los cultos de fertilidad, alterar el ritmo procreativo dentro de la comunidad, ejerciendo así una mayor opresión sobre las mujeres, pues buscaba “manipular” sus vientres con el objetivo de tener más brazos para el trabajo y para la guerra. Entendemos, entonces, que el ejercicio oficial de la violencia está invariablemente acompañado del aumento en la producción de bienes y simbolizaciones religiosas *…+.450

Aqui se vê de que modo a religião – templo e sacerdócio – estão sendo

utilizados pelo Estado no sentido de sacralizar uma determinada prática, que do ponto

de vista pragmático, poderia ser até justificada, mas na realidade, foi uma finalidade

totalmente execrável no seu fim e, principalmente, corrompida nos seus meios,

mostrando mais uma vez, que os fins jamais justificam ao meios.

Shigeyuki Nakanose acena pra essa realidade quando diz que a “religião assume

função ideológica de legitimar o poder da instância política quando acontece a quebra

da reciprocidade entre o grupo no poder e os grupos de base”.451

De fato, o campesinato estava sendo condicionado pela religião a servir única e

exclusivamente aos interesses da classe dominante. Não houve um compromisso de

reciprocidade. Enquanto o campesinato foi convidado, ou melhor, estimulado

ideologicamente a sacrificarem suas vidas em prol de um projeto real revestido de

religiosidade, O Estado, através da religião só lhe retribuía como disse o profeta Oséias

450

Carlos Mario Vasquez Gutierrez, Os 6,6 – “Reconstruyendo el tejido social..., p.159. 451

Shigeyuki Nakanose, A leitura sociológica do sacrifício em 1 Sm 1-1 Rs 12, p.227.

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em Os 4,2: imprecações, mentiras, assassinatos, roubos e adultérios. Sangue

derramado seguindo a sangue derramado. Por isso a terra ficou desolada e todos os

seus habitantes desfaleceram (tradução livre).

Desse modo, como afirma Peter Berger, fica claro que temos diante de nós dois

projetos claramente opostos. Enquanto Oséias toma partido em favor do campo em

contraposição à cidade os sacerdotes apoiam exclusivamente a elite citadina. Nesse

sentido, conclui-se que os profetas são defensores de um estilo de vida mais tribal,

cimentado nos valores clânicos. Profetas e sacerdotes são, em síntese, promotores de

diferentes projetos políticos, econômicos, sociais e ideológicos.452

Nesse sentido, pode-se afirmar que a religiosidade tribal foi promotora de um

projeto que podia ser caracterizado pela igualdade e solidariedade entre os membros,

enquanto que a religião no contexto do Estado, que estava edificada pelos sacerdotes

em oferendas e sacrifícios, rituais e festas, podendo assim, ser caracterizada como um

autêntico instrumento ideológico do Estado.

As festas com seus rituais, que no âmbito das sociedades tribais eram

oportunidades de encontro festivo e partilha do excedente arrecadado nas colheitas,

no contexto do Estado, as festas são institucionalizadas e, fator marcante, são

promotoras de opressão e violência. Aconteceu como diz René Girard: “a festa perdeu

todas as suas características rituais e acabam mal, no sentido em que retorna a suas

origens violentas; ao invés de dominar a violência, ela incita a um novo ciclo de

vingança”453.

E esta violência se generalizou de tal modo que, como já afirmado acima,

afetou até mesmo o comportamento dos campesinos, que se esquecendo dos

sagrados valores que foram capazes de manter a ordem e a unidade, é agora

abandonado em favor de um “vale-tudo” ou “salve-se quem puder”.

Ao ver esta situação de total perversão moral, que segundo o profeta se

constitui num “espírito de prostituição” que envolve a todos, somente uma atitude de

solidariedade – hesed – poderá ser sustento e remédio nesse momento de crise. Como

452

Peter Berger, Carisma e inovação social: a localização social da profecia israelita....., p.88. 453

René Girard, A violência e o sagrado, São Paulo, Paz e Terra, 1990, p.156.

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se sabe, a capital Samaria foi destruída em 722 a.C. pelo império Assírio, que tinha

como tática de guerra, passar a tudo e a todos a fio de espada. Os que sobrevivessem,

eram deportados para outras partes do império, assim como outros também eram

deportados para essa região. É certo que muitos camponeses conseguiram escapar

para o sul, em direção a Judá. Mas, a sua sorte não deve ter sido melhor, pois mais

cedo que pensavam em Jerusalém teve início um projeto semelhante ao realizado no

Reino do Norte – Israel.

A partir desses destaques, conforme pensa Luis Maldonado:

Lo típico de las cosas sociales es este carácter de penetración íntima y de separación, de inmanencia y transcendencia. Están fuera y dentro del individuo. Son como lo sagrado. Mejor, las cosas sagradas no son sino las cosas sociales. Es decir, lo religioso – los dioses – es un símbolo, una cifra de lo social.454

É nesse sentido que Oséias tenta resgatar de modo profético, a solidariedade,

pois para ele, nada mais sagrado do que a unidade e a igualdade, virtudes que

forjaram as sociedades primitivas.

5.6.3 - Conclusão

Diante do exposto acima, conclui-se que o tribalismo e o profetismo foram duas

vias que caminharam paralelamente, ou seja, o profetismo bíblico, particularmente os

recolhidos nos livros de Amós, Oséias e Miquéias foram frutos da experiência de vida

tribal, de homens e mulheres que lutaram para preservar, não só na memória, mas

acima de tudo, na prática, atitudes que revelam aqueles valores as quais Rigoberta

Menchú Tum faz referência. Foram manifestações que recolhidas em textos exprimem

o frescor de uma atitude de resistência frente aos poderes estatais que se organizaram

para manipular e extorquir o campesinato.

Teve início assim, em termos bíblicos, um ideológico processo de desarticulação

social, ou seja, de relações de poder baseadas na dominação e na subjugação de uma

454

Luis Maldonado, La violencia de lo sagrado: crueldad “versus” oblatividad o el ritual del sacrifício, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, p.21

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classe social por outra, situação não muito diferente do que acontecia em outras

realidades geográficas do mundo. A peculiaridade do Judaísmo esteve em que na sua

gênese o grupo sacerdotal atuou apenas como coadjuvante nesse processo. Somente

no período pós-exílico, na transição do domínio persa para o domínio grego, e por

motivos externos alheios à sua vontade, foi que o grupo sacerdotal assumiu o papel de

protagonista, isto é, nas relações sociais estabelecidas na província de Judá, quem teve

a última palavra, seja em questões de ordem política ou religiosa, foi o grupo

sacerdotal.

O tribalismo, assim como a profecia forma sendo neutralizados e inseridos num

novo modelo de organização social, onde o sumo-sacerdote, que estando à frente de

um grande de homens que formavam a classe sacerdotal, assumia integralmente em

sua própria pessoa os poderes religioso e político dentro da província de Judá.

Apesar do peso exercido pela classe sacerdotal no âmbito das relações de

poder dentro da província de Judá, o tribalismo sobreviveu, não quanto à sua forma de

organização social conforme sua configuração clânica originária, mas conforme

testemunho de historiadores como Flávio Josefo e textos do Novo Testamento, é

possível concluir que nas aldeias e vilas, muitas delas escondidas nas florestas das

montanhas da Judéia e da Galileia e em regiões desérticas como beduínos, preservou-

se muitos dos seus mais nobres valores tribais, tais como a igualdade e a solidariedade

como formas supremas e divinas de se manter a unidade do tecido social

No período pós-exílico os profetas desaparecem. A profecia, praticamente está

ausente da literatura produzida nesse período. Qual teria sido o motivo?

Não teria sido devido ao fato de que as sociedades tribais já não mais uma

realidade. Devido a uma série de circunstâncias históricas – geopolíticas, sócias,

econômicas e religiosas – as sociedades tribais foram se desintegrando diante do

avanço dos impérios e das cidades. Muitas se embrenhando nas matas, refugiaram-se

como última solução. Amós, Oséias e Miquéias foram frutos destas comunidades, que

no contexto do período pré-exílico, souberam ser testemunhas daqueles valores

universais que Rigoberta Menchú Tum nos lembra. Porém, como no período pós-

exílico já não são mais uma realidade como foram outrora antes da instalação da

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monarquia nos século X e IX a.C., a profecia, assim como os profetas – literariamente

falando – foram tragados pelo sistema de crença do templo de Jerusalém.

5.7 – As relações de poder no judaísmo à luz de Michel Foucault

Vigiar e punir455

A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do

comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso, como o

objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que

apareça pela primeira vez na história esta figura singular, individualizada – o homem –

como produção do poder.456

É passível de verificação que nas obras de Foucault não se encontra uma

definição acabada de poder, pois este não seria seu objetivo, no entanto uma de suas

grandes contribuições foi intuir que em determinadas situações o poder está

descentralizado, não se limitando apenas ao Estado.

Neste sentido o poder estaria disseminado por toda a estrutura social, ou seja,

em subestruturas ou microestruturas, onde todos, de certa forma, estariam sujeitos ao

domínio desse poder instituído sob a forma de uma lei e onde todos,

simultaneamente, também seriam agentes desse poder. Assim, escreve Roberto

Machado, “O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício de

poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas”457.

Pode ser um paradoxo querer fazer uso de alguns conceitos foucaultianos, tais

como: genealogia, disciplina, vigiar, punir, verdade e poder, pois, conforme opções

“intelectuais” feitas anteriormente deixam claro que há uma contradição, devido ao

sentido e ao efeito que procuram. Mas, segundo o modo como os entendo à luz do

pensamento de Foucault e os aplico ao contexto de meu objeto de pesquisa, penso

poder justificar algumas de minhas proposições.

5.7.1 – Vigilância em rede

455

Michel Foucault, Vigiar e Punir, 29ª Edição, Petrópolis, Editora Vozes, 2004, 262p. 456

Roberto Machado, “Introdução: por uma genealogia do poder” em Michel de Foucault, Microfísica do poder, 15ª Edição, Rio de janeiro, Edições Graal LTDA., 2000, p.XX. 457

Roberto Machado, “Introdução..., p.XI.

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É bem esta a situação que pode ser constatada no caso específico do judaísmo.

O que Michel Foucault chama de microfísica do poder significa uma espécie de

deslocamento no espaço de análise das relações de poder quanto também do nível em

que esta se efetua. Isto se evidencia num poder estruturado e estruturante como diria

Pierre Bourdieu458, cuja função foi submeter toda sociedade judaíta a um rigoroso

controle religioso, isto é, a um controle dos gestos, dos corpos, das atitudes, dos

comportamentos, dos hábitos e dos discursos. Nada mais ardiloso do ponto de vista do

domínio e da subjugação do que estar preso a uma rede de poder: a escravidão como

fim! Por isso Michel Foucault pôde falar, a partir desta visão, “numa ‘economia’ do

poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma

ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada’ em todo o corpo

social”459.

Assim se instaurou um regime disciplinar no judaísmo que supera qualquer

outro regime ou sistema político de vigilância social, pois em nome da divindade e por

um dever de consciência, todos se tornavam vigias do seu próximo. Essa vigilância

consistiu num regime disciplinar fundado numa legislação todo bom senso, ainda mais

quando se tem por referência uma lei ditada pelo próprio deus. Nesse sentido,

comenta Foucault:

[...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) [...]. Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.460 (grifo pessoal)

458

Nesse sentido Pierre Bourdieu afirma que “é enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço de sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados” em Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1982, p.32. 459

Michel Foucault, Microfísica do poder, 15ª Edição, Rio de janeiro, Edições Graal LTDA., 2000, p.8. 460

Idem, p.119.

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É em vista da dominação e da manutenção econômica que essa microfísica do

poder ganhou forma. Como acentua Foucault, a exploração econômica pelo viés da

disciplina também pode ser igualmente aplicado à realidade do campesinato judaíta.

Usando a força de trabalho do campesinato, a classe sacerdotal jerusolimitana obtinha

suas vantagens através da exploração econômica desta mesma força de trabalho

mediante o que Foucault chama de coerção disciplinar, isto é, coerção da lei que em

nome da divindade disciplinava a vida nos seus mínimos detalhes, quase que a

tornando impossível de ser vivida, trabalho de sol a sol para garantir a benção e a

prosperidade. Por isso, com ênfase e em nome da divindade, afirma o redator

sacerdotal:

Ele disse à Adão: “Por teres escutado a voz da tua mulher e comido da árvore da qual eu te havia formalmente prescrito não comer, o solo será maldito por tua causa. É com fadiga que te alimentarás dele todos os dias da tua vida; ele fará germinar para ti o espinho e cardo, e tu comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o pão, até voltares ao solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó e ao pó voltarás. (Gn 3,17-19)

Deste modo, o trabalho que se constitui num excelente instrumento de

dignificação da condição humana, se tornou um peso, algo profundamente

desagradável, pois a partir deste dito, pesou sobre o campesinato a ira e a

abominação, enfim, o castigo divino. Não deve ter sido nada fácil para eles ter que

assimilar esse novo modo de vida com relação à nova religiosidade.

De um tempo e uma realidade onde não havia ninguém e nenhuma instância

mediadora entre a divindade e os seres humanos, tempo onde ninguém tinha a

incumbência de vigiar e delatar seu próximo a um superior passa-se a uma nova

ordem, desumana porque fundada na divindade, totalmente ineficaz porque

atormenta o viver. Assim Foucault vê na lei que disciplina os corpos um instrumento

muito útil para o bom adestramento do indivíduo.

[...] O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura liga-las para multiplica-las e utiliza-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos

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individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, seguimentos combinatórios.461

No contexto das relações de poder dentro do judaísmo, ou mais

especificamente, entre a classe sacerdotal e o campesinato, o poder disciplinar tem,

verdadeiramente, este objetivo: adestrar as consciências, para que os corpos possam

estar inteiramente sujeitos ao sistema.

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. [...] O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.462

Essa atitude de vigilância de cada um dos membros da sociedade sobre todos

os demais membros torna cada um, ao mesmo tempo, um operador econômico

decisivo, na medida em que é uma peça interna no aparelho de produção e uma

engrenagem específica do poder disciplinar. Para estar de bem com a divindade é

necessário vigiar o outro.

E Foucault conclui afirmando que:

[...] O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte as escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente “discreto”, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio.463

Disseminado por todo o corpo social articulado piramidalmente, o poder

disciplinar dentro do judaísmo, apesar de estar sob a tutela de um chefe – sumo

sacerdote – impregnava toda a estrutura de tal forma que era quase impossível se

461

Michel Foucault, Vigiar e Punir..., p.143. 462

Idem, ibdem. 463

Michel Foucault, Vigiar e punir..., p.148.

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imiscuir das obrigações legais, sob pena de carregar, uma tremenda culpa moral pelos

desvios e erros cometidos.

Desse modo, as relações de poder que no tribalismo eram marcadas pela

igualdade e pela solidariedade entre os membros, passam a ser, no judaísmo, marcada

pela desconfiança de que sempre tem alguém me vigiando, pois se se cultiva a ideia de

que pelos erros de um a divindade é capaz de condenar todo o povo, é preciso então

cumprir esta tarefa.

*...+ A disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às técnicas de vigilância, à “física” do poder, o domínio sobre o corpo se efetuam segundo as leis da ótica e de mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos “corporal” por ser mais sabiamente “físico”.464

Nesse sentido, à luz das teorias foucaultianas, as relações de poder entre a

classe sacerdotal jerusolimitana e o campesinato judaíta se tronaram relações

disciplinares, relações de vigilância, relações de domínio e extorsão econômica. Pobres

campesinos, que em nome da divindade tiveram que sujeitar a toda essa nova ordem

de coisas.

5.7.2 – Punindo não tanto o corpo, mas principalmente a alma

Para Michel Foucault os métodos punitivos tem sofrido uma variação ao longo

da história. Foucault argumenta em favor do desenvolvimento de uma tecnologia

política do corpo a partir da qual se poderia ler uma história comum das relações de

poder, bem como também das relações de objeto. Estando o corpo diretamente

mergulhado num campo de forças que interagem socialmente e de forma constante,

isto é, num campo político, cujas relações de poder tem alcance imediato sobre ele.

Para Foucault, esses métodos punitivos ou essas tecnologias política do corpo:

464

Idem, ibdem.

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[...] o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo ligações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição [...].465

De fato, o Judaísmo como sistema político-religioso foi um sistema que sujeitou

a si todos os habitantes da província de Judá. Presos por um sistema, que como círculo

vicioso, não permitia sua emancipação, mas pelo contrário, fazia com que o

campesinato estivesse condenados ad infinitum a um terrível condicionamento e

escravização.

Mas, diferentemente do modo como pensa Michel Foucault quanto a um início

histórico da vigilância e punição do corpo e daquilo que ele caracteriza como uma

punição da alma, ou seja, punição moral, punição da consciência do infrator, o Antigo

Testamento, particularmente no tocante à narrativa sacerdotal (P) já havia

desenvolvido essa forma letal de punição das consciências e por consequência, dos

próprios corpos.

Citando Rusche e Kirchheimer, Foucault concorda com os autores quando

afirma que existe uma intrínseca:

[...] relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-obra suplementar – e constituir uma escravidão servil ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio.466

Partindo do fato de que o modo de produção estabelecido na província de Judá

seria algo bem similar ao modo de produção tributário, pois segundo o corpo de leis

presentes nas narrativas do Pentateuco, prescrevem uma grande quantidade de

tributos a serem pagos ao templo em função de faltas que se cometiam quase que

diariamente.

Conforme pensa Foucault, é esse mecanismo punitivo que garante uma

economia servil, isto é, de pessoas transformadas em servos, porque não dizer,

465

Idem, p.25-26. 466

Idem, p.25.

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escravizadas a sistema, cujo fim é manter unicamente a estrutura econômica do

templo, ou seja, da classe sacerdotal que vive à custa dessa escravidão servil

5.7.3 – Da “verdade do poder” ao “poder da verdade”

Foucault parte da afirmação de que não existe “verdade” fora do poder ou sem

poder. Ela não pertence a um mundo, que poderia ser classificado como sendo

sobrenatural ou do além, mas:

[...] A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.467 (grifo pessoal)

Portanto, se a “verdade” pertence a este mundo conforme afirma Foucault, é

preciso questionar, não somente o regime de verdade propugnado pelos sistemas de

poder, mas principalmente, os efeitos de poder provocados por essas “verdades”. Por

isso, é necessário que se discirna “o regime político, econômico, institucional de

produção da verdade”.468

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento.469

Aplicado ao judaísmo que tendo seu fundamento de poder e verdade

alicerçada em um discurso, cuja legitimação, proclamou-se, ter sido auferida pela

própria divindade, que por ele – pelo seu discurso – se auto revelou, desse modo, se

apresenta como uma narrativa que se impõe como verdade eterna, universal e

imutável. Seguindo a orientação de Foucault, se faz necessário desvincular do texto

467

Michel Foucault, Microfísica do poder..., p.12. 468

Idem, p.14. 469

Idem, ibdem.

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desse tom de verdade acabada que tantos enganos têm causado ao longo desses mais

de dois milênios.

O que Foucault propõe discernir objetiva-se na questão de saber quais são os

efeitos desse poder que circula no âmbito, político, econômico, cultural e porque não

dizer também, no âmbito religioso.

Esse poder oriundo dessa “verdade religiosa”, hoje, assim como ontem,

continua servindo aos interesses da classe dominante, no sentido de que encobre as

reais motivações da classe dominante, mascara seus interesses espúrios e submete a

classe subalterna, isto é, a classe dominada a uma submissão passiva e ordenada.

Toda a cultura, por estar mergulhada e fundamentada nessa falsa verdade

ainda influencia, quase que na totalidade, todos os sistemas de crença, possibilitando

assim, que a classe dominante continue a usufruir das vantagens que esse poder lhe

oferece.

5.8 – Judaísmo: religião da “saída da religião”.

Michel Gauchet ao caracterizar o fenômeno religioso ou mais propriamente

dito, a religião das sociedades primitivas como sendo religiões “puras” quer dar a

entender por um lado que:

Se tiene sentido hablar de algo así como de un “final” o de una “salida” de la religión no es tanto desde el punto de vista de la conciencia de los actores como desde el punto de vista de la articulación de su práctica. El criterio no es lo que piensan y creen a título personal los miembros de una sociedad dada. Lo que cuenta y decide en la materia es el orden de sus operaciones de pensamiento, el modo de su coexistencia, la forma de su inserción en el ser y la dinámica de su actividad.470

Como já salientado anteriormente, esta religião dos povos primitivos, que

Marcel Gauchet qualifica como sendo “pura” tinha na religião a dimensão que em

termos de economia geral relacionada aos fatos humanos, estruturava

470

Marcel Geuchet, El desencantamiento del mundo…, p.145.

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indissoluvelmente não somente a vida espiritual daquelas gentes, mas também sua

vida material e social.

Quando Gauchet fala em “saída da religião” ele postula que a lógica

conservadora da integração que reinava absoluta no ser e na solidariedade como um

dado natural ou cultural se inverteu.471 Segundo Gauchet, citando Benjamin Constant a

quem considera um pensador penetrante e agudo em suas observações, é salutar que

se distinga o “sentimento religioso” – que tem seu fundamento num enraizamento

antropológico, constituindo-se assim, num núcleo subjetivo que habita subjacente

independente de qualquer crença socialmente determinada e organizada – das

“instituições religiosas”. Para ele, segundo Benjamin Constant, estas instituições

enquanto fenômeno religioso se constitui num fator invariante e num inesgotável

princípio seminal, cujas construções dogmáticas ou cultuais não são mais do que

formações derivadas e flutuantes desse núcleo antropológico fundamental presente

em cada ser humano.472

Nesse sentido Gauchet afirma que o ponto decisivo para que compreendamos

esta mudança, ou seja, esta passagem de uma realidade onde a religião podia ser

qualificada como “pura” para uma nova situação, onde eu qualifico, por uma questão

de lógica, como “impura”, está no caso exemplar da trajetória feita pela revelação

judeo-cristã.473

A tese que Gauchet propõe está no fato de que com o judaísmo teve início um

processo que culminou na implantação completa de uma articulação entre o divino e o

humano, que corresponde à inversão, ponto por ponto, à estrutura primordial da

dívida com o invisível. Para o autor existe algo de muito artificial nesse processo de

mudança que implicou numa separação entre a ordem da estrutura com a ordem do

acontecimento. Conforme ele mesmo explica:

Nos hemos esforzado por mostrar que no hay nada semejante en realidad, sino una reorganización de la economía de lo otro anteriormente reinante; reorganización de las virtualidades por doquier latentes en la matriz política de las “altas civilizaciones”, que explota de manera más sistemática y más profunda *…+ Pero al mismo tiempo,

471

Idem, ibdem. 472

Idem, p.146. 473

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.149

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cuando se miran las condiciones concretas en las que se efectuó esta cristalización en un pequeño pueblo al margen, en forma de respuesta a su situación de opresión, nos encontramos ante el enigma de una improbabilidad radical.474

Improbabilidade que se aprofundaria mais ainda com o advento do

cristianismo, pois com a reinvenção do divino começada em Moisés e concluída em

Paulo de Tarso a revelação judeo-cristã se constitui numa inversão espiritual do

sistema de poder universal. Wellhausen observou em sua Prolegomena, citado por

Joseph Blenkinsopp, que a teologia dogmática do judaísmo não passa de um mero

abismo vazio sobre o qual o AT funcionaria como uma espécie de mola para o NT.475

Para Gauchet, em particular, é possível medir este desenvolvimento quando voltamos

nosso olhar para as religiões circundantes, mesopotâmicas ou egípcias, banhadas pelas

quais nasceu o deus de Israel.

Así, inventa un dios como no se lo había conocido nunca: un dios construido en oposición a cualquier otra especie de dioses. El deus de la salida de Egipto: un dios inconmensurable con los dioses de los egipcios, completamente aparte y mucho más poderoso que ellos; potencialmente, pues, el único verdadero dios.476

Portanto, foi num contexto de uma situação de opressão externa e de

desarticulação social a nível interno, que o judaísmo foi se configurando, através de

um processo político-religioso, cheio de altos e baixos, conforme o ímpeto das

poderosas nações que dominaram toda aquela região ao longo do primeiro milênio

a.C..

[…+ la dinámica intrínseca de la acción del Estado – dinámica interna de la opresión, dinámica externa de la expansión – crea las condiciones de un pensamiento religioso en completa ruptura con la economía primitiva del Uno, cómo permanece esencialmente conservada en los politeísmos clásicos. Y ello según tres grandes ejes: la subjetivación del fundamento sagrado a medida del estrechamiento de la presión del encarnador entre los hombres; la universalización de la perspectiva terrestre a medida de la ampliación del imperio-mundo, con sus efectos de relativización de las pertenencias locales o grupales de cualquier orden; y, finalmente, la disyunción entre este mundo y el más allá a medida, por una parte de la elevación suprema del señor en

474

Idem, p.150. 475

Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.4. 476

Idem, p.154.

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este mundo y, por otra, de la suma de lo visible bajo un único báculo, cuyo último principio conspiran, una y otra, desplazar al orden de lo separado.477

O que conta nesse sentido, conforme pensa o próprio Gauchet, consiste no

mecanismo político que permite sua reformulação. A divindade, ausente por

excelência que estava no passado fundador, se muda numa presença sob a forma de

uma capacidade constitutiva de supremo ordenador podendo intervir a qualquer

momento nos assuntos humanos.

E, de fato, segundo as narrativas de caráter histórico do Antigo Testamento, o

que não falta, são historietas falando de um tempo quando a divindade fez e

aconteceu pessoalmente. Praticamente se incluem no rol dessas narrativas todos

aqueles textos relativos ao período anterior à época do exílio babilônico.

E esta divindade que segundo os textos, se auto revela pessoalmente, também

se dispõe a se relacionar, particularmente com alguns homens previamente

escolhidos, no sentido de torna-los seus interlocutores, aqueles que tiveram a missão

de relatar cada uma das leis presentes na Torá e em outros livros do Antigo

Testamento. Nesse sentido, Gauchet afirma:

*…+ Limitémonos a destacar en esta línea que el triunfo de la religión universal del dios personal adviene al término (y en la zona) de una serie de sacudidas imperiales de extensión jamás vista: la expansión romana es seguramente el contexto inmediato, matricial, pero también son un transfundo próximo las conquistas de Alejandro e incluso, justo antes, la unificación persa del Oriente Próximo y Medio. La transformación religiosa más profunda, la que representa la ruptura cristiana, está al término de una prodigiosa ampliación del horizonte de los pueblos; sin duda se cumple u se impone allí donde el manejo de lo heterogéneo y el descentramiento consecutivo de las perspectivas humanas fueron más lejos, en el epicentro del más amplio seísmo.478

Nesse sentido, pode-se falar numa história da diferença do fundamento social:

477

Idem, p.151. 478

Marcel Gauchet, El desencantamiento del mundo…, p.152.

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Características gráficas:

2 economias da diferença do fundamento social;

2 regimes: de eficácia muito desigual / diferença de duração e ritmos;

Com a aparição do estado, em outros termos, passa-se da religião pura, na

história propriamente dita, mesmo que essa continue a ser rigorosamente

denegada. Segundo Gauchet, isto é apenas a secessão de um epicentro de

poder.

Segundo Marcel Gauchet, a transição de um período denominado “religião

pura” para “religião impura” marca o que ele chama de: “saída da religião”.479

Diante desses pressupostos a revelação judeu-cristã se traduz no suprassumo

da experiência, a excelência do movimento de saída. Implica no conceito weberiano de

processo de “desencantamento do mundo” que tem início justamente com a ascensão

do judaísmo, culminando de forma mais pragmática, no período da modernidade.

Nesse sentido, Paulo Barrera Rivera, explicitando a tese de Gauchet afirma que:

A tese de Gauchet se coloca frontalmente contra as teorias – as que considera falsas – que pretendem explicar o fenômeno religioso em termos de superestrutura. Para Gauchet, é precisamente nas sociedades que saem da religião que o religioso pode ser considerado como superestrutura, em relação a uma infraestrutura que funciona muito bem sem ela. Nas sociedades anteriores ao fenômeno de saída da religião, o

479

Marcel Gauchet, A democracia contra ela mesma..., p.66.

Religião Pura

(Unidade do Ser)

Religião Impura

- institucionalizada -

(Dualidade do ser)

Evento Central

(ruptura: mudança de paradigma)

Emergência do ESTADO

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religioso faz parte integrante do funcionamento da sociedade. A saída da religião é a passagem para um mundo onde as religiões continuam existindo, mas no interior de uma forma política e de uma ordem coletiva que não é determinada por elas.480

Desse modo, Paulo Barrera vê no conceito “saída da religião” de Gauchet, no

seu sentido mais profundo, a “transmutação do antigo elemento religioso em algo

diferente da religião”, isto é, ele pensa que a proposta de Gauchet combina muitíssimo

bem com a teoria weberiana sobre o desenvolvimento das religiões. Diz ele:

[...] Nos estudos de Weber sobre a religião podemos seguir um processo de desenvolvimento que vai desde a antiga magia até as formas mais desenvolvidas de religião: a formação de deuses universais e logo do deus transcendente. Nesse processo, a ação religiosa racional desenvolve-se paralela à religião, mas ela chega a um limite no qual a racionalidade religiosa não tem mais sentido, porque os fins perseguidos se alcançam por outros caminhos que não o religioso; é aqui que a religião se torna irracional. Não desaparece, mas se torna íntima e privada.481

Esta mesma ideia é também compartilhada por Blenkinsopp, que citando

Wellhausen, afirma que o judaísmo se revelou como um movimento ou processo de

descontinuidade de um “precoce naturalismo religioso israelita” bem como também

de “individualismo ético dos profetas” para o “sufocante legalismo e ritualismo da

hierocracia sacerdotal”. Para Wellhausen a Lei não marcou o início de Israel, mas do

judaísmo.482

E o mesmo Blenkinsopp, citando Richard Horsley, afirma que o judaísmo:

[...] não está para uma forma essencialmente religiosa da vida, mas constitui-se numa faceta de uma entidade político-étnica, uma forma de caracterizar um estado agressivo e expansivo alegando legitimidade religiosa através da usurpação do cargo de sumo sacerdote e controle do templo mantendo e ampliando seu poder por meios militares, incluindo uso de mercenários estrangeiros.483

480

Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo e declínio dos compromissos religiosos. A transformação religiosa antes da pós-modernidade. Texto acessado em http://seer.ufrgs.br/ CienciasSociaiseReligiao/article/view/2247 em 18/07/2012, p.102. 481

Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo…, p.99. 482

Joseph Blenkinsopp, Judaism – The first phase: the place of Ezra and Nehemiah in the origins of Judaism, United Kingdom, Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2009, p.2. 483

Idem, p.188.

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Deste modo, utilizando-se da forte precedência que o elemento religioso tinha no

imaginário, isto é, na consciência do homem primitivo, uma determinada classe de homens –

classe sacerdotal – usa desta prerrogativa para se estruturar e se sobrepor como classe

superior no cenário social da província de Judá.

Por consiguiente, podemos imaginar que cuando las condiciones han permitido a

ciertos hombres, a determinados grupos, personificar en ellos mismos el bien común o

tener acceso exclusivo a las potencias sobrenaturales que, según ellos, tenían el

control de las condiciones de reproducción del universo y de la sociedad, esos

hombres y esos grupos han parecido elevarse por encima de los hombres corrientes,

aproximándose a los dioses, avanzando mucho más que cualquier otro hombre en el

espacio que separa, desde el origen de los tiempos, a los hombres de los dioses *…+

Alejarse de los hombres y dominarlos, aproximarse a los dioses y hacerse obedecer por

ellos son probablemente dos aspectos simultáneos de un mismo proceso, aquél

mediante el cual comienza el camino que conduce a las sociedades de clases y al

Estado *…+ Pero esta vez, lo que había comenzado por una dominación sin violencia se

ha convertido en opresión ideológica y explotación económica, sostenida e prolongada

mediante a violencia armada. Por consiguiente, no hay quizás por qué buscar si es la

política la que adopta una forma religiosa o inversamente, cuando se trata, en este

caso, de dos formas del mismo proceso, dos elementos de un mismo contenido que

existe simultáneamente en diversos niveles.484

É deste modo que se instaura novamente, na província de Judá, uma profunda divisão

de classe. De um lado a classe sacerdotal e do outro o campesinato, que subjugado

ideologicamente, serve aos interesses tanto do clero religioso de Jerusalém, quanto aos

interesses do império persa. Aos poucos, aquilo que conhecemos por Judaísmo, vai se

configurando como um novo modo de ser, a verdadeira identidade do povo israelita que tinha

na lei – na Torá – o fundamento de sua vida, tanto religioso quanto político.

484

Maurice Godelier, Economia, Fetichismo…, p.14-15.

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CONCLUSÃO

“A crítica da religião termina com este ensinamento:

o homem é a realidade suprema para o homem e,

também, com o imperativo categórico de liquidar todas

as condições que tornam o homem uma realidade

humilhada, escravizada, abandonada, desprezível”.

Karl Marx

Vivendo num mundo ainda marcado pela conivência entre o poder político e o

poder religioso, aliança esta que ultimamente se alinha a uma concepção que na

prática descaracteriza o ser humano, transformando-o em mero instrumento no jogo

das forças sociais, políticas e principalmente, econômicas. Na ânsia por sobrevivência,

este mesmo ser humano se permite ser humilhado, em pleno século XXI, com todo

avanço científico e tecnológico alcançado, ainda é aviltado por trabalho escravo.

Muitos desses já perderam até a noção da própria dignidade. Para eles, a vida

não existe e a morte continua sendo solução. Para os outros, “felizes e de bem com a

vida” a insensibilidade petrificou lhes o coração, tornou seus olhares frios, distantes e

desumanos. Tornaram-se incapazes de se compadecer da dor e sofrimento alheios.

Mais ainda. Como citado na epígrafe acima, transformaram o ser humano em algo

humilhado e escravizado, por isso, desprezado e abandonado como algo inerme, sem

possibilidade de ser redimido.

No fundo, é o próprio ser humano que por se tornar opressor de seu

semelhante, se perde em seu caminhar, buscando assim, anuviar sua consciência com

sofismas religiosos requentados por uma tradição caduca que já não faz mais sentido

nos dias atuais.

Mas, não é o fim. Ainda existem pessoas de bem, pessoas dispostas a

reescrever esta história mesmo que à custa do derramamento do próprio sangue.

Pode parecer pouco e de fato é, mas o texto que abre nossa carta magna, a

Constituição Federal de 1988 é, não somente elucidativo, mas acima de tudo, é

pragmático no sentido de que nos dá o norte, a direção para onde tudo e todos devem

caminhar:

O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde,

sem casa, portanto, sem cidadania. A constituição luta contra os bolsões de miséria

que envergonham o país. Diferentemente das sete constituições anteriores, começa

com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o

homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a constituição cidadã.

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Cidadão é o que ganha, come, sabe, mora, pode-se curar. A constituição nasce do

parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade. Por isso,

mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do governo e a administração dos

impasses. O governo será praticado pelo executivo e o legislativo. Eis a inovação da

constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades. Contra a

ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos.

É a constituição coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu, destroçou

tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei. A constituição durará com a

democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e

a justiça.485

Ao eleger os conceitos de religião e política como título dessa tese, parti do

pressuposto, não só pelo fato de que são as duas dimensões da vida humana que mais

concretamente condicionam o comportamento da sociedade, mas porque a história

está repleta de casos particulares que demonstram a incompatibilidade e o desastre

social que é quando se tem essas duas dimensões ou poderes presentes numa mesma

instituição. A história não deixa dúvida de que hoje, assim como ontem, não pode

haver a mínima chance de uma nação como um todo realizar-se plenamente se for

simultaneamente governada pelos poderes, religioso e político.

Nesse sentido, de posse dos conceitos optei por fazer um estudo de um caso

particular. Para isso, escolhi o judaísmo, pois acredito ser um caso exemplar que

fornece, não somente elementos suficientes para corroborar esta tese, mas possibilita

também, dando sequência à análise, fornecer subsídios para um questionamento dos

seus subsequentes desenvolvimentos na história.

A partir da escolha do título defini como específico objeto de pesquisa as

relações de poder, pois que ambas as instituições, tanto a instituição religiosa quanto a

instituição política, reivindicaram o reconhecimento do status de seus plenos poderes

ao longo desses últimos cinco milênios de história.

Como pano de fundo desta tese priorizei, à luz do espírito da nova história,

regatar a memória de um grupo social profundamente marginalizado tanto na

escritura judaica como praticamente, na história de todos os povos: o tribalismo ou as

assim chamadas sociedades primitivas. Foi, portanto, a partir deles, do sofrimento que

lhe foi imposto, das injustiças e da usurpação a que foram submetidos, da ideologia a

que foram condicionados a se submeter, que me propus, particularmente pela sua

ótica, a reconstruir parte da história desse grupo social, que no contexto do judaísmo

485

Texto de abertura da Constituição Federal de 1988 acessado em 8 de Agosto de 2012: http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf

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ainda incipiente, foi execrado e marginalizado como gente impura, indigna de fazer

parte do assim chamado novo “povo de deus”, cognominado também pela alcunha de

o “pequeno resto de Israel”.

Tendo estabelecido de modo bem concreto como objetivo desta tese

demonstrar a incompatibilidade que existe em se ter numa mesma instituição os

poderes, religioso e político, – pois como a história demonstra esta situação não só

acirrou ainda mais a divisão social que já havia se inserido no tecido social – defini

também como objetivos específicos:

Levando em conta que os redatores dos principais textos que servem de

fundamento ao judaísmo não são relatos históricos como ficou demonstrado,

mas sim, histórias inventadas, passei a me perguntar pela motivação que teria

levado esses redatores a escrever o que escreveram, ou mais especificamente,

a procurar identificar que teologia/ideologia é essa que está ali desenvolvida.

Desse modo, procedi a uma espécie de desconstrução do modo como esses

textos são tradicionalmente interpretados, pois que foram escritos visando

objetivamente possibilitar a ascensão da classe sacerdotal jerusolimitana como

classe social dominante em toda a região da província de Judá.

À luz das palavras de Rigoberta Menchú Tum que afirma que:

[...] a concentração dos poderes em poucas mãos condena os pobres a serem mais

pobres e torna mais evidente a urgência de retomar os sagrados valores que deram

origem à nossa humanidade; isto é em essência, o que reivindicamos os povos

indígenas e os povos originários do mundo [...] O respeito aos valores e direitos

individuais e coletivos, ou seja, a vitalidade e a validade do equilíbrio como requisitos

indispensáveis de um mundo justo e pacífico.486 (grifo pessoal)

Em verdade, o problema não está na concentração de poder numa única mão ou numa

única instituição, mas sim, na forma de gestão desse poder. O importante que merece

ser destacado nas palavras de Rigoberta, como penso que procurei fazer, está no fato

de identificar qual ou quais foram esses “sagrados valores que deram origem à nossa

humanidade”. Segundo Rigoberta, esses valores estão associados com um grupo social

específico: com os “povos indígenas e os povos originários do mundo”. Conforme

testemunho de alguns trabalhos de caráter etnológico analisados, foi possível

identificar a igualdade e a solidariedade como sendo esses “sagrados valores” aos

quais se refere Rigoberta, que ainda hoje como ontem, moldam e mantém o tecido

social dessas sociedades tribais. De posse desse dado fundamental das sociedades 486

Giulio Girard, Os excluídos construirão a história? – O movimento indígena, negro e popular: “Durante cinco séculos outros falaram por nós, hoje queremos começar a falar com voz própria”, São Paulo, Editora Ática, 1996, p.13.

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primitivas me perguntei: por que será que o judaísmo que de tal modo se vangloria de

ser fruto dessas sociedades tribais, não assumiu como próprio também esses valores,

mas pelo contrário, se apresentou como uma sociedade profundamente dividida, ou

seja, estruturada piramidalmente.

Outro elemento advindo das sociedades tribais e que pra eles tem um caráter

igualmente fundamental, consiste no fato de seus chefes não possuírem poder. São

chefes, mas chefes se poder. Essa é uma das grandes lições políticas que as sociedades

tribais nos ensinam. Os chefes tinham como missão zelar para que o sentido de

unidade entre os membros da tribo superasse qualquer desejo pessoal de

superioridade. Por isso, o chefe era de certo modo guardião das tradições e por

incumbência o artífice da igualdade entre todos os membros da sociedade.

Outro objetivo de caráter específico que merece destaque e de certa forma

também está relacionado às sociedades tribais é quanto á questão da

politização da pessoa humana.

Nesse aspecto, as sociedades tribais viviam um mínimo de politização, isto é, toda a

sua vida em sociedade já estava pré-determinada pelo mito. Como observado no item

anterior, isto possibilitou a preservação desses magníficos valores de ordem social,

mas por outro lado, mitigou qualquer possibilidade de uma evolução social tendo em

vista o seu crescimento demográfico.

De um mínimo de politização avançamos para quase, um máximo de politização.

Conforme tese apresentada por Marcel Gauchet, partindo da assim chamada

“revelação” judaico-cristã teve início, conforme conceito weberiano, um processo de

“desencantamento do mundo”, isto é, partimos de uma situação onde a religião

dominava e impunha a partir de fora a ordem social, passamos agora a vivenciar um

período onde a religião já não determina quase que mais nada no âmbito sócio-

político. A sociedade passa de uma situação de total heteronomia para uma situação

de plena autonomia.

Já não se faz necessário perguntar ao além sobre questões de ordem puramente

humana. O ser humano evoluiu de tal modo que hoje está plenamente consciente

daquilo que precisa ser feito para que todos os povos possam viver com dignidade, isto

é, viver desfrutando de condições básicas para uma vida significativamente feliz.

No tocante à questão da metodologia empregada, a utilização da teoria marxista, ou

seja, de todo o arcabouço teórico referente ao materialismo histórico, concluo que,

apesar de muitos intelectuais – de direita – atualmente acharem que Marx e sua teoria

estão ultrapassados, os resultados desta tese mostram que os instrumentais teóricos

continuam, mais do nunca, sendo passíveis de aplicação e, não somente aos períodos

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anteriores ao capitalismo, mas também ao período em que nos encontramos, pois

viver exclusivamente à mercê das diretivas econômicas é totalmente fora de propósito

bem como também contrário aos verdadeiros parâmetros e valores antropológicos.

De fato, a dimensão econômica sempre foi e continua, ainda hoje, determinante em

última instância e com relação ao judaísmo não foi diferente. O templo de Jerusalém

se tornou um grande armazém possibilitando à classe sacerdotal viver desfrutando de

tudo o que ali era oferecido, e isso, sem ter que fazer levantar um dedo, mas tudo

produzido à custa do trabalho do campesinato.

Aos poucos a classe sacerdotal sadocita depois de ter assumido o controle do templo e

o poder religioso em toda a região da província de Judá, também assumiu o poder

político em toda a província. Foi, na verdade, um projeto tecido com os fios da

ideologia. Com inúmeros retalhos cooptados à tradição oriunda do tribalismo, escribas

ligados à classe sacerdotal criaram uma série de narrativas visando única e

exclusivamente justificar e dar legitimidade ao status adquirido pela classe sacerdotal,

bem como também, definir a posição social de todos os demais grupos na estrutura da

sociedade judaica.

Desse modo o judaísmo se apresentou como um sistema de crença nitidamente

ideológico, pois estruturado sob o conceito de falsidade, os livros que servem de

fundamento a esse sistema de crença cumpriram exatamente todo o itinerário de um

processo ideológico real. Mostraram-se, não somente como uma “falsa apresentação”

e como “falsa consciência”, mas também como “falsa motivação” e “falsa

representação” de um sistema em que a classe sacerdotal dominava em todos os

sentidos o campesinato.

Nesse sentido, se pode concluir que as relações que se estabeleceram entre a classe

sacerdotal jerusolimitana e o campesinato judaíta, foram relações de poder baseadas

em dominação, subjugação e exploração, e isso, não somente no âmbito do campo

religioso, mas também no campo social e, principalmente, no campo econômico.

Se os livros do Antigo Testamento que deram sustentação a esse desumano sistema de

crença são ainda hoje aceitos como depositários de uma ética e uma moral que se

apresentam como universais, porque teriam sido divinamente revelados, já passou da

hora de desdivinizá-los, isto é, mostrar que de teologia esses escritos possuem muito

pouco ou quase nada. Alguns chamarão isso de rebeldia, mas como afirma Girard:

A rebeldia é sobretudo intelectual. Implica a rejeição do ponto de vista do mais forte,

da sua cultura, seu sistema de valores, sua interpretação da história. Esta rejeição está

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baseada na defesa da própria identidade dos resistentes, do seu próprio ponto de vista

sobre a conquista e a história, de sua própria cultura.487

Em verdade, a chancela divina sobre as prescrições e proscrições contidas nos textos

do Antigo Testamento, tem servido de justificativa para que algumas religiões

institucionalizadas ainda se sintam no direito de intervir no âmbito político e social,

mas sempre salvaguardando seus interesses.

Enquanto milhões e milhões de pessoas ainda vivem abaixo da linha da pobreza os

representantes dessas instituições que deveriam por uma questão de ética e moral

estarem do lado e a serviço dessa imensa multidão, se calam, não sendo capazes de

vociferar contra esse sistema vigente, sistema que exclui que mata de modo incruento.

Isso, de fato acontece porque estas ditas instituições estão de certa forma

macumunadas com o sistema. Na grande maioria das vezes contribuem para um

estado de profunda alienação política, agindo como asseverou Marx quando disse que

a religião é o ópio do povo. Se transformam num autêntico aparelho de estado

segundo Althusser.

No fundo, as religiões institucionalizadas precisam dos pobres, necessitam da pobreza

alheia para que sua suposta teologia seja plenamente justificada e, assim, continuem

servindo-se destes mesmos pobres como suporte de sua milenar estrutura dominante,

pois como diz alguns versículos de seus textos:

Pobres sempre os tereis

Bem aventurados os pobres

Nada mais ridículo, antissocial e antidemocrático do que ser porta voz desses

pensamentos. Nada mais desumano do que utilizar esses versículos para não somente

aliviar a consciência desobrigando-se do dever de ajudar o próximo, mas acima de

tudo, profundamente falso e imoral, quando se utiliza tais pensamentos para confortar

aqueles que estão nessas condições. Se de fato, Deus existe, ele deve rir, ou melhor,

ficar profundamente consternado com essa nossa atitude de inversão da realidade.

A pobreza e a miséria que batem à porta de nossas consciências. Jamais poderemos

dormir tranquilos sabendo que em alguma parte do mundo alguém não comeu, passa

frio, não tem acesso à educação, a uma moradia digna e até ao bem mais fundamental

da vida humana: a família.

A instauração de uma nova ordem que tenha como paradigma o desenvolvimento

integral de todas as pessoas exige daqueles que detêm o poder que façam uma

487

Giulio Girard, Os excluídos construirão a história..., p.25

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honesta avaliação entre a ética que anima o poder que possuem, pois como afirma

Luís Lorenzetti:

[...] Entre ética e poder a relação será sempre difícil, porém necessária: como o poder

se refere sempre ao outro, corre o risco de ser perversão e puro domínio quando não

se exerce e não se cultiva alto sentido da dignidade humana, da liberdade e dos

direitos humanos.

Na base de todo poder está a relação fundamental do mandato e da obediência. A

decisão antes de tudo, como ato de poder, é o que constitui o problema moral. [...] A

partir do momento em que o bem comum está constituído pelo reconhecimento e

pela promoção dos direitos do homem e da convivência, pode-se dizer que a justiça é

o elemento moral determinante do poder.488

Nesse sentido, ser movido por uma ética profundamente antropológica, isto é,

centrada nos direitos inalienáveis da condição humana, leva a considerar todo ser

humano como igualmente digno de viver e ter acesso a uma qualidade de vida

condicente com sua natureza.

Já um poder que manipule que distorça esse sentido mais profundo da vida de todo

ser humano, deve ser enfrentado, pois não existe razão mais sublime do que lutarmos

para que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 16,.......). Como orienta

Lorenzetti:

O que mais importa é encontrar os caminhos e os modos de dobrar o poder para

adaptá-lo à causa do bem do homem e da humanidade e ir verificando sucessivamente

se isto é possível, apesar de difícil. A utopia de uma sociedade “sem chefes” deve

empregar toda a sua força para tornar concebível o uso dos chefes para a realização

deste desígnio.489

Devido à complexidade de nossas cidades, é impensável que não existam pessoas

preparadas para exercer a função de “chefes” – coordenadores, talvez fosse um termo

mais apropriado. O exemplo que as sociedades primitivas e ainda hoje, as sociedades

indígenas nos dão, é a de que aqueles que lideram que o façam com um verdadeiro

espírito altruísta, buscando acima de tudo o bem comum.

Mas as circunstâncias não são nada favoráveis para que esse tipo de discurso seja

aceito facilmente. Segundo Luís Lorenzetti:

“Temos que reconhecer que se tem ensinado mais a respeitar a lei do que a

questionar a nossa consciência, e que o culto da norma, da ordem, do poder

488

Luís Lorenzetti, “Poder”...., p.971. 489

Idem, p.972.

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constituído, da ideologia dominante nos levou a ignorar de fato o caráter absoluto da

consciência” (Th. Rei Mermet).

Em nenhuma época, e muito menos na nossa, a meta da formação moral pode

consistir em obter pessoas submissas e obedientes; e também não é o contrário, a

saber: obter desobedientes e rebeldes. O fim da formação moral é conseguir pessoas

livres, que em diálogo e reciprocidade com as pessoas livres saibam quando é certo

obedecer e quando se é obrigado a desobedecer. O fim de toda meta educativa é

formar pessoas capazes de viver criticamente na sociedade, capazes de valorizar o seu

estar no mundo, capazes de ser pessoas que se constroem em liberdade para a

solidariedade e para a justiça, e, portanto, capazes, justamente por obediência a estes

valores, de discordar e de objetar. 490

Por isso, como diria Juvenal Arduini, é preciso ousar, pois ousar é pulsação criadora, é

tentar realizar o que ainda não foi feito. Ousar não é arrogância, mas compromisso,

estilo de vida. Ousar é suscitar o acontecer, é fazer acontecer. É mergulhar no tumulto

das possibilidades e edificar nova fase histórica e nova estrutura social.491

Trata-se de uma tomada de partido não só moral e política, mas também, intelectual e

cultural. Neste nível, tomar partido pela resistência significa afirmar que seu ponto de

vista é mais idôneo para aproximar-se da verdade sobre o sentido da vida e da história;

que na atual crise da civilização, os excluídos emergentes como sujeitos são os mais

idôneos para analisar objetivamente a situação do mundo, para identificar os

problemas de vida e de morte, para perceber os caminhos rumo a alternativas de

vida.492

Desse modo, completa Giulio Girard:

Assumir o ponto de vista dos oprimidos resistentes sobre a história e a civilização atual

significa em primeiro lugar, assumir a sua causa, por ser moral e politicamente justa. A

opção pela resistência é uma expressão particular e particularmente importante da

opção pelos excluídos como sujeitos. Nossa hipótese é de que uma atitude moral e

politicamente justa favorece uma busca intelectual honrada da verdade.493

Por isso, continuar a compactuar com o sistema de crença que condiciona a maioria de

nossa gente a uma atitude de aceitação e passividade diante de tanta opressão é negar

490

Luís Lorenzetti, Poder..., p.973 491

Juvenal Arduini, Antropologia: ousar para reinventar a humanidade, 2ª Edição, São Paulo, Editora Paulus, 2002, p.38-41. 492

Luís Lorenzetti, Poder..., p.973 493

Giulio Girard, Os excluídos construirão..., p.27.

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que somos de uma mesma raça, que temos consciência e não somos zumbis

teleguiados. Por isso:

Ficar do lado da resistência significa assumir suas opções éticas, políticas e culturais,

somando-nos assim à própria resistência. Significa, portanto comprometermo-nos com

ela na revelação do passado, na reinterpretação da história, no resgate das culturas,

religiões, identidades reprimidas.494

Nesse sentido, conforme alusão feita a um texto de Paulo Freire (A pedagogia

da autonomia) na introdução cada um de nós é convidado a se posicionar de forma

bem concreta:

A favor do que estou lutando?

A favor de quem estou lutando?

Contra o que estou lutando?

Contra quem estou lutando?

Que cada um de nós possa se abrir ao novo que já está surgindo, que não menospreze

os sinais dos tempos, pois é um processo irreversível.

494

Idem, p.28.

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