UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da...

131
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS GERALDO MAGELA DANIEL JÚNIOR SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DE BERGER E LUCKMANN NATAL - RN 2007

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

GERALDO MAGELA DANIEL JÚNIOR

SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E A

SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DE BERGER E LUCKMANN

NATAL - RN2007

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

GERALDO MAGELA DANIEL JÚNIOR

SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DE BERGER E LUCKMANN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais daUniversidade Federal do Rio Grande do Norte,como requisito parcial para obtenção do títulode mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Prof. Drª. RosângelaFrancischini

NATAL - RN2007

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

GERALDO MAGELA DANIEL JÚNIOR

SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DE BERGER E LUCKMANN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais daUniversidade Federal do Rio Grande do Norte,como requisito parcial para obtenção do títulode mestre em Ciências Sociais.

Aprovado em _____ / ____ / 2007.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________Profª. Drª. Rosângela Francischini Orientadora UFRN

__________________________________________________________________Profª. Drª. Ângela de Alencar Araripe Pinheiro UFC

__________________________________________________________________Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Júnior UFRN

__________________________________________________________________Prof. Dr. José Willington Germano UFRN

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

Este trabalho dedico:

à Sandra, pelo amor e compreensão.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

AGRADECIMENTOS

À Rosângela Francischini, pela paciência e orientações queviabilizaram este trabalho.

Ao Prof. Alípio de Souza Filho (UFRN), pela amizade e apoio emminha estadia em Natal.

À Geraldo Magela Daniel e Maria do socorro Carvalho Daniel, meuspais, pelo o incentivo constante.

À Maria de Jesus Carvalho, Maria da Graça Carvalho e Maria daConceição Carvalho Araújo, minhas tias, pelo afeto e apoio gratuitos a min dirigidos, desde os primeiros momentos da minha existência, semos quais eu jamais chegaria aonde cheguei.

À Juane Ferreira Daniel, minha filha, cuja generosidade e ternura afazem capaz de compreender e amar! um pai ausente.

À Profª. Maria Audirene Cordeiro (UFAM), pelo incentivo eindispensável revisão gramatical.

À Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em especial à pessoado prof. Dr.Jefferson da Cruz, Diretor geral do Instituto de CiênciaSociais e Aplicadas e Zootecnia do município de Parintins-AM, peloapoio fundamental à conclusão e defesa deste trabalho.

Aos novos colegas professores da UFAM, em especial a José Luis deOliveira, Márcio Hoshiba, Ítalo Matos, Marcelo Ribas, MarceloRadicchi, Sandréia Lobato, Marinez de Souza, Dirceu Gama e LílianMayer, pelo calor humano e solidariedade que fazem com que eu jáme sinta em casa, apesar da enorme distância das paragens que outrora me serviram de lar e nas quais ficaram a maioria daqueles que amo.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

RESUMO

Este trabalho tratou de investigar o modo como é interpretado o processo deconstituição do sujeito nas formulações dos fundadores da Psicoligia sócio-histórica (Lev S.Vigotski, Alexei N. Leontiev e Alexander R. Luria) e na Sociologia do conhecimento de Peter Berger e Thomas Luckmann. Essas duas perspectivas teóricas, apesar tomarem porpressupostos ontológicos e epistemológicos diferentes formulações filosóficas (a Psicologiasócio-histórica, o Materialismo histórico-dialético; a Sociologia de Berger e Luckmann, aFenomenologia), chegam, não obstante, à mesma conclusão básica sobre a natureza socialdo sujeito. Nosso objetivo, por conseguinte, era o de identificar diferenças e convergênciasentre as duas perspectivas e buscar a possibilidade de uma síntese teórica entre elas, notocante à constituição do sujeito. Ao mesmo tempo, pretendíamos analisar as implicaçõesdessa possível síntese para a compreensão do modo de atuação da ideologia, tal como pensada por Louis Althusser e Alípio de Sousa Filho, nas sociedades humanas. Chegamos à conclusãode que muito embora incompatíveis do ponto de vista ontológico e epistemológico, é possíveluma síntese entre a Psicologia sócio-histórica e a Sociologia do conhecimento de Berger eLuckmann no tocante à concepção de sociedade e à compreensão do processo de constituiçãodo sujeito. A partir dos pressupostos filosóficos da Psicologia sócio-histórica, é possívelincorporar, como enriquecimentos pontuais, a concepção de sociedade e a interpretação doprocesso de contituição do sujeito que fazem Berger e Luckmann. Essa síntese possível, porsua vez, quando interpretada à luz das reflexões de Althusser e Sousa Filho sobre o fenômenoda ideologia nas sociedades humanas, se constitui numa verdadeira explicitação dosdispositivos concretos pelos quais a ideologia age de modo a transformar exemplaresbiológicos da espécie humana em sujeitos sociais específicos.

Palavras chave: Sujeito, Constituição do sujeito, Ideologia.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

ABSTRACT

This study investigated how the process of the constitution of the subject is interpreted in the formulations of the founders of socio-historical psychology (Lev S. Vigotski, Alexei N.Leontiev and Alexander R. Luria) and in the sociology of knowledge of Peter Berger andThomas Luckmann. These two theoretical perspectives, despite having different philosophicalformulations as ontological and epistemological intentions (socio-historical psychology,historical dialectical materialism; the sociology of Berger and Luckmann andphenomenology) arrive, however, at the same basic conclusion about the social nature ofthe subject. The objective of the study, therefore, was that of identifying the differences andconvergences between the two perspectives and then, try to determine the possibility of atheoretical synthesis between them in relation to the constitution of the subject. At the sametime, we intended to analyse the implications of this possible synthesis in order tocomprehend the manner in which the ideology functions in human societies as thought byLouis Althusser and Alípio de Sousa Filho. We arrived at the conclusion that, despite beingincompatible from the ontological and epistemological points of view, a synthesis is possiblebetween socio-historical psychology and the sociology of knowledge of Berger andLuckmann in relation to the conception of society and the comprehension of the process of the constitution of the subject. Starting from the philosophical intentions of socio-historicalpsychology, it is possible to incorporate, enriching points such as: Berger s and Luckmann sconception of society and the interpretation of the process of constitution of the subject. Thispossible synthesis, when interpreted in light of the reflections of Althusser and Sousa Filho on the phenomenon of ideology in human societies, is constituted in a real unveiling of theconcrete provisos by which the ideology acts in human societies in order to transformbiological examples of the human species in specific social subjects.

Keywords: Subject, Constitution of the subject, Ideology

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...........................................................................................................8

CAPÍTULO I A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E O MATERIALISMO DIALÉTICO................................................................................................................ 111.1 Os pressupostos ontológicos-epistemológicos do Materialismo dialético como fundamento filosófico da psicologia sócio-histórica ...................................................111.2 A concepção materialista da história e a consciência humana............................241.3 Atividade, linguagem e constituição do sujeito na psicologia sócio-histórica .....381.4 O signo e o significado no processo de internalização ...................................... 44

CAPÍTULO II - A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA SOCIOLOGIA DOCONHECIMENTO DE BERGER E LUCKMANN ...................................................... 552.1 pressupostos ontológicos-epistemológicos da sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann ..................................................................................................572.2 Cultura e sociedade na sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann......632.3 A constituição do sujeito em Berger e Luckmann: o processo de socialização ...76

CAPÍTULO III INTERFACE ENTRE A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DE BERGER E LUCKMANN ........................893.1 Pressupostos ontológicos....................................................................................893.2 Distinção entre as idéias de sociedade na psicologia sócio-histórica e na sociologia de Berger e Luckmann .............................................................................943.3 A constituição do sujeito na psicologia sócio-histórica e na sociologia de Berger e Luckmann ................................................................................................................101

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................119

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................125

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

8

INTRODUÇÃO

Dentre a variedade de concepções que a Psicologia produziu sobre a constituição dos

sujeitos humanos, uma das mais vigorosas e férteis, respectivamente, do ponto de vista lógico

e heurístico e que, nos últimos anos, tem granjeado bastante prestígio acadêmico possui

fundamentos teóricos provenientes de uma das matrizes clássicas do pensamento sociológico:

o Materialismo histórico-dialético, de Karl Marx e Friedrich Engels. Trata-se da designada

Psicologia sócio-histórica, surgida na primeira metade do século XX, na antiga URSS,

essencialmente pelos trabalhos de Lev Semenovich Vigotski, Alexei Nikolaievich Leontiev e

Alexander Romanovich Luria.

Posteriormente, nos Estados Unidos, durante a segunda metade do mesmo século, no

bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e

Thomas Luckmann chegaram a formulações igualmente consistentes sobre a mesma temática.

Desta feita, todavia, tomando por fundamento não o pensamento marxiano1, mas concepções

provenientes de outros pensadores, dentre os quais se destacavam Alfred Schutz, George

Herbert Mead e os dois outros grandes nomes clássicos da Sociologia: Max Weber e Émile

Durkheim.

Esta dissertação se propõe a realizar uma reflexão sobre a constituição do sujeito a

partir do paradigma sócio-histórico na Psicologia e das contribuições de Berger e Lukmann no

campo da Sociologia do conhecimento. Portanto, tem por objeto as formulações teóricas da

Psicologia sócio-histórica e da Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann sobre

a constituição dos sujeitos humanos.

Apesar de realizarem percursos metodológicos diferentes, a partir de construções

teóricas distintas, a Psicologia de Vigotski, Leontiev e Luria e a Sociologia de Berger e

1 Embora o sistema teórico de Marx e Engels não esteja, de forma alguma, na base das formulações de Berger eLuckmann, algumas idéias isoladas do materialismo histórico-dialético são incorporadas por esses autores.Essencialmente, a idéia de dialética e alguns elementos de sua concepção antropológica.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

9

Luckmann chegam a conclusões aparentemente semelhantes no tocante à natureza das

relações que se estabelecem entre indivíduo e sociedade e quanto aos elementos

determinantes da constituição de cada sujeito humano. Essas conclusões, ao tempo que se

assemelham, convergem em relação às ponderações sobre o fenômeno da ideologia (sua

origem, modo de atuação e função nas sociedades humanas) realizadas por outros autores na

Sociologia, especialmente as que se encontram nos escritos do francês Louis Althusser e do

brasileiro Alípio de Sousa Filho.

Desse modo, o objetivo desta dissertação é descobrir possibilidades lógicas para

uma síntese teórica entre as concepções de sujeito que emanam da Psicologia sócio-

histórica e da Sociologia bergeriana-luckmanniana síntese que promete ser

heuristicamente muito enriquecedora, tanto em virtude dos diferentes fundamentos teóricos de

cada perspectiva, quanto em razão da aparente semelhança das conclusões que ambas

alcançam, a partir de fundamentos distintos e descortinar as implicações dessa possível

síntese para o entendimento do modo de atuação da ideologia, tal como pensada por

Althusser e Sousa Filho, nas sociedades humanas.

Portanto, desenvolveremos este trabalho no afã de sistematizar uma solução para a

questão que se constitui no seu problema das diferenças, convergências e síntese

possível entre as concepções de sujeito na Psicologia sócio-histórica, de fundamento

marxiano, e na Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann, de orientação eclética,

a partir de concepções fenomenológicas, interacionistas, weberianas e durkheiminianas e das

implicações para o entendimento do modo de atuação da ideologia nas sociedades

humanas dessa síntese entre as duas perspectivas.

A estruturação do trabalho obedece a seguinte distribuição textual: no capítulo1,

apresentamos as idéias da Psicologia sócio-histórica concernentes à temática desta pesquisa,

demonstrando como elas surgem de desdobramentos, para o estudo dos fenômenos psíquicos,

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

10

dos pressupostos e concepções do pensamento marxiano. No capítulo 2, mostramos a obra de

Berger e Luckmann como um trabalho de síntese entre contribuições de várias perspectivas

teóricas, mas que chega a resultados aparentemente semelhantes, no tocante à constituição do

sujeito, aos da perspectiva marxista da Psicologia sócio-histórica. Por fim, no capítulo 3,

fazemos uma interface entre Psicologia sócio-histórica e Sociologia do conhecimento de

Berger e Luckmann, tentando explicitar diferenças, identificar convergências e pensar a

possibilidade de uma síntese entre as duas perspectivas. Nesse último capítulo, ainda,

analisamos as implicações de nossas análises sobre o pensamento da Psicologia sócio-

histórica e da Sociologia de Berger e Luckmann para o entendimento do modo de atuação da

ideologia tal como pensada por Althusser e Sousa filho nas sociedades humanas. Assim

procedendo, esperamos estar descortinando caminhos para uma síntese possível, no tocante à

concepção de sujeito, não apenas entre a Psicologia sócio-histórica e a Sociologia de Berger e

Luckmann, mas também entre as perspectivas teórico-metodológicas que lhes servem de

fundamento: Marx, Durkheim, Weber, Shutz e Mead, ao tempo em que analisamos as

conseqüências desta possível síntese para o entendimento do fenômeno da ideologia.

Cabe ressaltar que as teorias científicas são tentativas humanas, alicerçadas em certos

pressupostos filosóficos e fazendo uso de determinados procedimentos racionais e empíricos,

de interpretação do real. Como tais, são suscetíveis a acertos e erros . O progresso da

ciência depende, dentre outros fatores, da capacidade dos pesquisadores de cada época,

privilegiados pela visão retrospectiva, de identificar uns e outros no pensamento de seus

antecessores, refutando os últimos e fazendo convergir os primeiros em direção a sínteses

coerentes, capazes de ampliar ainda mais a visibilidade dos pesquisadores que os sucederão.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

11

1 A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E OMATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO.

A Psicologia sócio-histórica, nascida na antiga União Soviética, nos primeiros anos

após a revolução de 1917, é uma tentativa de criação de um paradigma geral para a Psicologia

a partir dos pressupostos filosóficos e das concepções histórico-sociológicas do Materialismo

histórico-dialético, de Marx e Engels.

Em 1927, Vigotski, principal expoente daquela escola, em trabalho intitulado O

significado histórico da crise da psicologia: uma investigação metodológica (apud

VIGOTSKI, 1999, p. 203-417), afirmou a existência de uma profunda crise na Psicologia

ocidental, segundo ele, carente de um referencial teórico capaz de unificar e dar coerência à

multiplicidade de dados empíricos e formulações teóricas fragmentadas e inconsistentes que

constituíam a Psicologia de sua época. A obra de Marx e Engels é tomada, então, como o

único sistema de pensamento capaz de oferecer fundamentação filosófica, sociológica e

metodológica para essa tarefa. Vigotski se propõe, desse modo, a ambiciosa tarefa também

incorporada por seus colaboradores mais próximos, dentre os quais se destacavam Leotiev e

Luria de construção, a partir do materialismo histórico-dialético, de uma teoria geral para a

Psicologia.

1.1 Os pressupostos ontológico-epistemológicos do Materialismo histórico-dialético como fundamento filosófico da psicologia sócio-histórica.

O trabalho intelectual de Marx e Engels, ou Materialismo histórico-dialético, é um

conjunto articulado a partir de determinados pressupostos ontológico-epistemológicos de

conceitos teóricos e orientações metodológicas, que fornece uma determinada interpretação da

realidade social (sua origem, estrutura e dinâmica) e uma diretriz básica para a investigação

dos fenômenos humanos.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

12

Desde o seu surgimento, na antiga Grécia (por volta dos séculos VI e V a.C.), aos dias

atuais, os problemas com os quais a filosofia se debate têm por base a problemática

fundamental das relações entre o ser e o pensamento. Essa problemática possui,

ineludivelmente, duas dimensões correlatas e indissociáveis: a ontológica (que diz respeito

especificamente à essência da realidade) e a epistemológica (que diz respeito especificamente

ao conhecimento). De modo mais claro, a dimensão ontológica refere-se à determinação do

elemento que, na constituição da realidade, é fundamental: a matéria ou a consciência, a

natureza ou o espírito; a dimensão epistemológica, por seu turno, refere-se à natureza, às

fontes e ao alcance do conhecimento. O que acima designamos de princípios filosóficos ou

pressupostos ontológico-epistemológicos do Materialismo histórico-dialético é exatamente o

posicionamento que Marx e Engels assumem em face dessas questões e que, evidentemente,

constitui-se no suporte lógico de todas as suas interpretações sobre a realidade social humana.

Segundo Marx e Engels, a realidade é, em sua natureza última, material e dialética.

Em outros termos, a matéria ocupa, no processo de constituição do real, o papel de elemento

primeiro, do qual tudo se desenvolve. A consciência é, então, na gênese histórica da realidade,

um elemento secundário, produto de uma determinada etapa do desenvolvimento da matéria.

Todavia, embora elemento secundário, a consciência também se torna um elemento

constitutivo do real a partir do momento em que é engendrada. Pois, para o Materialismo

histórico-dialético, a realidade não é apenas material, mas, além disso, dialética, conforme já

dissemos. Este atributo da realidade, a dialeticidade, quer indicar que ela (realidade), além de

material, é igualmente dinâmica e tecida por complexas relações de ação e interação entre os

diversos elementos que a constituem. Portanto, os elementos componentes do real, no curso

da própria dinâmica desse, tornam-se reciprocamente causa e efeito uns dos outros.

Assim, embora a consciência apenas possa ser pensada a partir do primado material da

realidade, ela, uma vez emergindo da e na matéria, passa também a desempenhar o papel de

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

13

causa, ao lado de outras causas, no posterior desenvolvimento e estruturação do real. Dito de

um modo ligeiramente diferente, a consciência passa a integrar, ao lado da matéria, a

realidade, e, assim, passa igualmente a ser um dos elementos a partir dos quais essa última

estrutura-se e se desenvolve. Mais do que isso, ela se torna um elemento absolutamente

singular, dado possuir:1º- a faculdade do conhecimento, isto é, a faculdade de apreender as

propriedades, os objetos, as relações e os processos objetivos do próprio real e, por

conseqüência; 2º- uma certa liberdade de escolha, ou seja, um potencial relativo de se furtar às

determinações autônomas do próprio real (determinações essas derivadas das relações

dialéticas de causa e efeito entre seus elementos), já que é capaz de conhecê-las e, desse

modo, evitá-las ou manipulá-las.

Essa perspectiva ontológico-epistemológica traz como conseqüência lógica necessária

para a compreensão da condição humana a diretriz metodológica de que esta (a condição

humana) somente pode ser pensada: a) a partir do substrato material-biológico do homem,

substrato concebido como produto de um processo natural e histórico de evolução da vida; b)

a partir do ambiente concreto de vida do homem e da atividade vital humana nesse ambiente e

c) considerando o homem como um ser (o único) dotado de consciência e, conseqüentemente,

capaz de conhecer objetivamente o mundo e de transformá-lo de forma ativa, voluntária e

consciente.

Com efeito, foi a partir destas injunções metodológicas que Marx e Engels formularam

a concepção de história e de sociedade própria do Materialismo histórico-dialético que os

próprios Marx e Engels batizaram de concepção materialista da história. Em A ideologia

alemã (MARX e ENGELS, 1989, p. 26), primeira tentativa de sistematização do

Materialismo histórico, eles escrevem de forma absolutamente clara quanto as duas primeiras

imposições acima (a e b):

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

14

Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas. São pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser na imaginação. São os indivíduosreais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles jáencontradas, como as produzidas por sua própria ação.

E quanto à última imposição (c), isto é, a forma de entendimento da atividade humana como

essencialmente consciente e espontânea, escreveu MARX (2002, p. 116) com a mesma

clareza nos Manuscritos econômico-filosóficos:

O animal identifica-se prontamente com a sua atividade vital. Não se diferenciadela. É a sua própria atividade vital. Mas o homem faz da atividade vital o objeto davontade e da consciência. Possui uma atividade vital lúcida. Ela não é umadeliberação com a qual ele imediatamente coincide. A atividade vital lúcidadiferencia o homem da atividade vital dos animais (...) Exclusivamente por estemotivo é que a sua atividade surge como atividade livre.

Os pressupostos ontológico-epistemológicos do pensamento marxiano, bem como seus

desdobramentos metodológicos, são incorporados pela Psicologia sócio-histórica na tentativa

de constituição de um novo paradigma teórico capaz de dar consistência e unidade à

Psicologia enquanto ciência. Essa incorporação pode ser identificada em várias passagens das

obras da Psicologia sócio-histórica. Por exemplo, estão na base das críticas que Vigotski

dirige, em seus escritos metodológicos traduzidos para o português na forma de uma

coletânea de textos intitulada Teoria e método em psicologia (VIGOTSKI, 1999) , às

principais escolas da Psicologia de sua época: o Behaviorismo, a Psicologia subjetiva e a

Psicanálise.

Segundo Vigotski, o Behaviorismo, ao tomar como objeto os processos sensoriais e o

comportamento reflexo, parte acertadamente do substrato biológico do psiquismo humano.

Todavia, não consegue apreendê-lo em seu aspecto histórico, em seu ambiente concreto

(cultural) de existência, nas modalidades concretas de atividade que neste ambiente o homem

desenvolve, bem como na forma específica de psiquismo que significa a consciência humana.

Isto é, o Behaviorismo incorpora acertadamente o imperativo metodológico (a) acima, mas

ignora o (b) e o (c). Já a Psicologia subjetiva, considera a consciência e os processos

psicológicos que lhes são próprios. Todavia, abstrai a consciência de seu substrato biológico e

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

15

das condições concretas de vida nas quais ela se desenvolve, transformando-a [numa] esfera

da realidade totalmente isolada, na qual não atua nenhuma das leis da matéria e constitui o

verdadeiro reino do espírito (VIGOTSKI, 1999, p. 141). Nos termos dos nossos imperativos

acima, a Psicologia subjetiva considera (c), mas desconhece (a) e (b). Por último, a

Psicanálise, embora considere tanto a especificidade do psiquismo humano como o seu

substrato biológico, isto é, as injunções (a) e (c), tentando restabelecer a conexão entre elas,

não é capaz de enxergar a ambas de uma perspectiva histórico-concreta, ou seja, a partir do

imperativo (b). Contrariamente, considera o substrato biológico da psique e a própria psique

de modo abstrato e a-histórico: o primeiro, como produto de um processo exclusivamente

natural, do qual não participam, na condição de interagentes, os produtos da atividade

humana; a segunda, como um feixe de instintos e de desejos existentes a priori e de modo

inconsciente no homem e que entram, alguns, em conflito com os conteúdos da vida cultural,

engendrando os conflitos psíquicos e os estados psicopatológicos.

De modo ainda mais claro, os princípios do Materialismo histórico-dialético se

manifestam na proposta que Vigotski faz para a solução da crise que ele diagnostica na

Psicologia: a construção de um sistema teórico-metodológico geral para os fenômenos

psíquicos que seja uma aplicação, na Psicologia, do sistema teórico criado por Marx e Engels.

Nas palavras do autor:

Proponho, pois, esta tese: a análise da crise e da estrutura da psicologia testemunhaindiscutivelmente que nenhum sistema filosófico pode dominar diretamente apsicologia como ciência sem a ajuda da metodologia, ou seja, sem criar uma ciênciageral; que a única aplicação legítima do marxismo em psicologia seria a criação deuma psicologia geral cujos conceitos se formulem em dependência direta dadialética geral, porque essa psicologia nada mais seria além da dialética dapsicologia (VIGOTSKI, 1999, p. 392).

Essa proposta, Vigotski trata de deixar claro, não significa procurar nos textos dos

criadores do Materialismo histórico-dialético a solução para os problemas da Psicologia, visto

que isso, evidentemente, não se encontra em tais escritos. Construir uma teoria geral para a

Psicologia, alicerçada no marxismo, significa, exclusivamente, a apropriação dos seus

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

16

pressupostos ontológicos e das suas injunções metodológicas para a investigação dos

fenômenos psíquicos:

É preciso saber o que se pode e o que se deve buscar no marxismo. Não se trata deadaptar o indivíduo ao sábado, mas o sábado ao indivíduo; o que precisamosencontra em nossos autores é uma teoria que ajude a conhecer a psique, mas demodo algum a solução do problema da psique, a fórmula que contenha e resuma atotalidade da verdade científica (...) O que sim pode ser buscado previamente nosmestres do marxismo não é a solução da questão, e nem mesmo a hipótese detrabalho (porque estas são obtidas sobre a base da própria ciência), mas o método deconstrução [da hipótese R.R.]. Não quero receber de lambuja, pescando aqui e alialgumas citações, o que é a psique, o que desejo é aprender na globalidade dométodo de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique(VIGOTSKI, 1999, p. 395).

Portanto, será fundamentalmente na concepção e na forma de abordagem do psíquico

próprias da Psicologia sócio-histórica que se manifestarão os princípios filosóficos acima

citados do Materialismo histórico-dialético. Vejamos, a título de ilustração, o trabalho

intitulado O desenvolvimento do psiquismo, de LEONTIEV (s/d), obra na qual o autor define

e analisa o fenômeno psíquico em sua generalidade e em sua evolução histórica, objetivando o

entendimento da consciência humana enquanto a forma própria do psiquismo do homem.

Logo no início, Leontiev explicita o que entende por psiquismo: a aptidão que possui

os organismos vivos mais complexos de captar (refletir) determinadas propriedades do meio

circundante. Segundo o autor, essa aptidão (isto é, o reflexo psíquico ou psiquismo), surge

associada à complexificação da estrutura orgânica e da atividade vital dos seres vivos, no

curso da evolução das formas de vida. Portanto, o psiquismo vincula-se, necessariamente, à

estrutura orgânica e às formas de atividade dos animais, sendo impossível compreendê-lo

fazendo abstração desses elementos. É o desenvolvimento da atividade, condicionado pela

evolução da estrutura orgânica dos animais, que determina a desenvolução do reflexo psíquico

da realidade.

A idéia de atividade refere-se, na Psicologia sócio-histórica (e, portanto, em Leontiev),

às ações desempenhadas pelos organismos tendo em vista a conservação da vida e a satisfação

de suas necessidades. O surgimento da atividade enquanto algo além do simples metabolismo

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

17

passivo entre o organismo e o seu ambiente vital (comum a todas as formas de vida), ocorre,

na filogênese, em decorrência do aperfeiçoamento dos órgãos da sensibilidade e da aparição

dos órgãos da ação (órgãos motores). Desse modo, foi enquanto dispositivo para orientação da

atividade, no transcurso filogenético, que se constituiu o psiquismo, repetimos, como

reflexo no organismo de determinadas propriedades objetivas do meio propriedades estas

às quais o organismo, fazendo uso dos seus órgãos motores, poderia responder.

Por conseguinte, a complexificação dos organismos animais produziu o concomitante

surgimento do psiquismo e da atividade, por intermédio do desenvolvimento também

concomitante dos órgãos da sensibilidade (órgãos que permitem a captação de estímulos do

ambiente externo) e dos órgãos da ação (órgãos que permitem respostas adequadas aos

estímulos captados pelos órgãos da sensibilidade). Desse modo, ele (psiquismo) forma com

ela (atividade), na estrutura orgânica dos animais, uma unidade concreta indissociável

embora, analiticamente, façam referência a coisas distintas.

Segundo Leontiev, no curso do desenvolvimento até atingir a manifestação mais

complexa, na forma da consciência humana, o reflexo do meio circundante nos organismos

vivos tomou três formas básicas distintas, progressivamente mais complexas, em

correspondência com o desenvolvimento da estrutura orgânica e da atividade vital dos

animais: o psiquismo sensorial elementar, o psiquismo perceptivo e o psiquismo intelectual.

O psiquismo sensorial elementar o tipo mais simples de psiquismo é a forma de

psiquismo existente em animais de estrutura orgânica pouco complexa, como vermes,

crustáceos e insetos. Ele caracteriza-se pelo fato do reflexo da realidade tomar a forma de

sensações isoladas, provocadas por propriedades ou grupo de propriedades isoladas dos

objetos, e jamais pela percepção do objeto em sua totalidade. Desse modo, o animal capta

propriedades isoladas do ambiente (formas, odores, vibrações etc) e orienta sua atividade em

função dessas propriedades, devido ao fato de tais propriedades terem adquirido, no decurso

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

18

da evolução da espécie à qual o animal em questão pertence (reflexo incondicionado) ou no

curso da própria experiência individual do animal (reflexo condicionado), um sentido

biológico2 relevante alimento, ameaça e outros:

Sabe-se que quando o inseto se deixa prender numa teia de aranha, esta se dirigeimediatamente para ele e começa a envolvê-lo com seus fios.O que suscita esta atividade e o que lhe determina a orientação? (...) Váriasexperiências permitiram estabelecer que é a vibração das asas do inseto que, ao setransmitirem à teia, suscitam e orientam a atividade da aranha. Logo que a vibraçãodas asas do inseto pare, a aranha deixará de se dirigir para sua vítima. Inversamente,novas vibrações bastam para fazer com que a aranha se dirija para o inseto. Poder-se-á concluir daqui que é a vibração que engendra a atividade da aranha e a orienta.Uma segunda experiência assim o mostra.Se aproximarmos da teia um diapasão em vibração, a aranha dirige-seimediatamente para ele, trepa para seus braços, envolve-os com a sua teia e tentamordê-lo com suas mandíbulas (E. Rabaud). É, portanto, o fenômeno vibratório acausa, pois o diapasão e o inseto apanhado numa teia de aranha não tem outro pontocomum a não ser a vibração (LEONTIEV, s/d, p. 22).

A diferenciação e a multiplicação dos órgãos da sensibilidade, o desenvolvimento dos

órgãos motores e a desenvolução de um órgão de coordenação entre órgãos da sensibilidade e

órgãos motores (o sistema nervoso) foram os progressos anatômicos que serviram de

substrato material à emergência do psiquismo sensorial elementar nos animais.

O psiquismo perceptivo é a etapa subseqüente no curso da evolução do psiquismo. Ela

caracteriza-se pela capacidade do animal refletir o meio circundante na forma de imagens de

objetos individualizados, e não mais na forma de simples sensações isoladas como na etapa

anterior. A atividade dos animais que se encontram nessa fase do desenvolvimento psíquico (a

grande maioria dos animais vertebrados, excluindo certos mamíferos superiores) orienta-se,

evidentemente, não mais por estímulos isolados, mas pelas condições objetivas do ambiente

no qual ela se desenvolve. Em outros termos, o animal passa a integrar variados estímulos

provenientes do meio numa única imagem do mesmo (percepção) e passa a dirigir sua

atividade em função desta última. Leontiev designa de operação o conteúdo dessa atividade

que responde agora não apenas a determinadas propriedades isoladas do objeto que a suscita,

2 Leontiev designa de sentido biológico da atividade a relação que existe entre a(s) propriedade(s) do meio queatua(m) como excitante(s) da atividade e a satisfação de alguma necessidade biológica do animal.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

19

mas também a certas propriedades do ambiente no qual ela se realiza. Desse modo, na

operação, a atividade do animal é composta por duas ou mais ações, cada qual respondendo a

determinadas propriedades específicas do meio:

Um mamífero contorna naturalmente um obstáculo colocado entre ele e o alimento.Isto significa que(...) podemos distinguir na atividade do mamífero um certoconteúdo objetivamente ligado ao obstáculo, e não ao próprio alimento que é oobjeto da atividade (LEONTIEV, s/d, p. 43).

Um conjunto significativo de modificações anatômicas e fisiológicas serviu de

suporte material ao desenvolvimento dessa forma de psiquismo. Primeiro, o desenvolvimento

e a mudança do papel relativo dos órgãos dos sentidos que agem à distância, principalmente a

visão, que passa a desempenhar, na maioria dos vertebrados, o papel de sentido principal, ao

qual se integram todos os demais. Segundo, os desenvolvimentos dos órgãos motores

exteriores, esses instrumentos naturais dos animais que permitem realizar as operações

complexas que exigem a vida no meio terrestre (correr, trepar, perseguir uma presa, transpor

obstáculos etc) (LEONTIEV, s/d, p. 46). Terceiro, o desenvolvimento e a supremacia do

córtex cerebral no controle da atividade animal, controle que no estágio do psiquismo

sensorial elementar ficava a cargo das regiões cerebrais inferiores: os gânglios subcorticais.

O posterior desenvolvimento do córtex cerebral e das suas funções, fundamentalmente

do córtex frontal por intermédio da diferenciação das áreas pré-frontais, é a desenvolução

anátomo-fisiológica que permite o surgimento da forma de psiquismo imediatamente anterior

à consciência humana: o psiquismo intelectual, que é encontrado em certos mamíferos

altamente organizados (principalmente nos símios). Nessa etapa do desenvolvimento

psíquico, o reflexo da realidade irá além da capacidade de percepção de coisas segmentadas,

passando a contemplar também determinadas relações objetivas existentes entre elas.

Paralelamente, a estrutura da atividade também se modifica, adquirindo uma forma bifásica,

isto é, a atividade passa a ser capaz de reunir duas operações distintas para a consecução do

seu objetivo: uma de preparação e outra de realização do objetivo. Experiências realizadas

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

20

com macacos demonstram, claramente, tanto a capacidade de refletir relações entre as coisas

como a atividade bifásica a ela correspondente:

Por exemplo, coloca-se um engodo fora da gaiola onde se encontra o animal, a uma certa distância das barras. Um pouco mais perto da gaiola, mas sempre fora dealcance para o símio, encontra-se um pau comprido. Na gaiola, pomos outro pau,muito mais curto que o primeiro, que permite alcançar o pau comprido, mas não oengodo. Para resolver este problema, o símio deve primeiro apoderar-se do paupequeno para alcançar o grande, que deverá ser utilizado para se apoderar doengodo.Em geral, os símios chegam ao fim deste tipo de problemas bifásicos sem custo(LEONTIEV, s/d, p. 55).

A etapa seguinte do desenvolvimento psíquico, a consciência humana, representa,

segundo Leontiev, um tipo de psiquismo qualitativamente distinto das três formas até aqui

apresentadas e que é exclusivo da espécie humana. Nesse sentido, escreve o autor:

O comportamento intelectual que se encontra nos mamíferos superiores e que atingeum desenvolvimento muito particular nos símios antropóides representa o limitesuperior do desenvolvimento psíquico, para além do qual começa a história de umpsiquismo diferente, de um tipo fundamentalmente novo, que é exclusivo dohomem, a consciência humana (LEONTIEV, s/d, p. 63).

Segundo Leontiev, o que caracteriza a consciência humana enquanto forma

qualitativamente nova de psiquismo é, inicialmente, a sua faculdade de refletir a realidade de

um modo objetivo, isto é, fazendo abstração das relações concretas que se estabelecem entre

ela (realidade) e o sujeito. Em outros termos, nos estágios anteriores do psiquismo animal

(sensorial elementar, perceptivo e intelectual), a realidade é refletida apenas enquanto

propriedades, objetos e relações vinculados às necessidades biológicas dos organismos. Na

medida em que o animal entra em interação com diversos objetos do meio que age sobre ele e

transfere sobre eles as suas relações biológicas, estes objetos são refletidos por ele apenas

pelas propriedades e aspectos ligados à realização destas relações (LEONTIEV, s/d, p. 67).

Assim, no mundo animal, a realidade é refletida somente naquilo em que se encontra

vinculada às necessidades concretas do animal. Fora dessas necessidades, a realidade não

existe para ele.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

21

Se na consciência humana um triangulo é independente da relação efetiva que elepode ter com ela e se caracteriza antes de tudo, objetivamente pelo número dos seusângulos etc., para um animal capaz de distinguir as formas o triângulo só serádistinguido na medida em que tenha um sentido biológico para ele. Razão porqueuma coisa é como se não exista para o animal se não existir relação instintiva entreele e essa coisa ou um dado agente a que ele respeite e se esta coisa não estiverligada à realização desta relação. O animal manifesta, na sua atividade, umaindiferença total pelos estímulos que, se bem que possam ser objetos da suapercepção, jamais se tornem estímulos nessas condições (LEONTIEV, s/d, p. 67).

Portanto, com a consciência humana, o psiquismo é capaz de conhecer objetivamente

o mundo, pois é capaz de apreender propriedades, objetos e relações da realidade

independente do sentido biológico que tais elementos possam ter para os indivíduos humanos.

Em outras palavras, o sujeito reflete a realidade independente de ela possuir ou não alguma

relação com suas necessidades concretas:

O reflexo consciente, diferente do reflexo psíquico próprio do animal, é o reflexo da realidade concreta destacada das relações que existem entre ela e o sujeito, ou sejaum reflexo que distingue as propriedades objetivas estáveis da realidade.Na consciência, a imagem da realidade não se confunde com a do vivido do sujeito:o reflexo é como presente ao sujeito (LEONTIEV, s/d, p.75).

A consciência humana também se distingue dos estágios anteriores do psiquismo

animal pela capacidade de diferenciar o reflexo psíquico da realidade e a realidade em si .

Essa faculdade torna possível para ela (além da observação e compreensão objetiva da própria

realidade exterior, frisada no parágrafo acima) também a observação e a compreensão de si,

ou seja, do próprio sujeito. Por fim, a consciência também se diferencia em razão da

capacidade de criar signos lingüísticos e, por intermédio deles, estabelecer um mecanismo

constante e eficaz de comunicação objetiva entre os homens (a linguagem), e, desse modo,

compartilhar e acumular experiências, planejar e coordenar atividades e projetar o futuro.

Segundo Leontiev, foi o trabalho (enquanto atividade propriamente humana) e as

modificações anátomo-fisiológicas associadas a ele que permitiram a emergência dessa forma

de reflexo psíquico exclusivo do homem que é a consciência. Nesse ponto, a Psicologia sócio-

histórica passa a considerar também, além dos princípios filosóficos do Materialismo

histórico-dialético, a interpretação da história e das sociedades humanas próprias dessa

perspectiva teórica, isto é (conforme já fizemos referência p. 7), a concepção materialista da

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

22

história. Antes de abordarmos essa questão, no entanto, explicitemos claramente a presença

dos pressupostos ontológico-epistemológicos e das injunções metodológicas do pensamento

marxiano nas idéias, até aqui sintetizadas, da obra em foco: O desenvolvimento do psiquismo.

Inicialmente, conforme demonstramos, o autor aborda o psiquismo (e o define) a partir

da materialidade do real, como reflexo da realidade em determinados organismos vivos,

tomando, assim, como ponto de partida, o pressuposto ontológico primeiro do Materialismo

histórico-dialético, a saber, que a matéria é o elemento primordial na constituição da

realidade, a partir do qual tudo se desenvolve.

Em seguida, Leontiev trata das diferentes formas de manifestação do psiquismo,

tentando explicitar o processo através do qual cada forma vai emergindo da forma anterior,

em função de determinadas transformações na estrutura anátomo-fisiológica e na atividade

dos animais, no transcurso natural da evolução das espécies. Portanto, considerando a

realidade, além de material, também dinâmica e constituída por complexas relações de causa e

efeito entre seus elementos constitutivos, ou seja, considerando também o segundo

pressuposto ontológico do pensamento marxiano.

Partindo desses pressupostos, as injunções metodológicas deles decorrentes se fazem

presente, de modo coerente e lógico, na estrutura da abordagem de Leontiev. Primeiro, a

consciência é tomada como uma função do corpo físico do homem e produto de todo um

processo natural de evolução do psiquismo e do seu substrato orgânico na vida animal;

portanto, conforme a primeira das três injunções da diretriz metodológica do marxismo para a

investigação da condição humana. Uma comprovação clara disso é que Leontiev dedica um

capítulo inteiro da referida obra (o capítulo 1), para analisar o desenvolvimento do psiquismo,

de suas formas mais simples até a consciência humana (conforme a síntese que fizemos p.

10-14), com o propósito último de outorgar consistência empírica à tese do psiquismo

humano como um produto natural do processo de evolução da vida. Em seguida, Leontiev

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

23

afirma, do mesmo modo, a íntima vinculação entre a consciência humana, a forma de

atividade específica da espécie humana (o trabalho, conforme também já apontamos p. 10) e

as condições de existência produzidas por essa forma de atividade (ou seja, o ambiente

cultural, conforme desenvolveremos adiante item 1.2); isto é, observa igualmente à segunda

das três injunções metodológicas referidas. Por fim, o homem também é considerado como a

única forma de vida capaz de conhecer a realidade de modo objetivo (conforme também já foi

observado p. 15-16) e de transformá-la de forma espontânea e livre (conforme

desenvolveremos também adiante itens 1.2 e 1.3); ou seja, de acordo com o pressuposto

epistemológico básico do marxismo (a capacidade da consciência de conhecer objetivamente

o mundo) e com a terceira e última das imposições metodológicas em questão.

Esses pressupostos e injunções metodológicas presentes na obra de Leontiev,

aparecem também nos textos de Vigotski e Luria. Por exemplo, na seguinte passagem de A

psique, a consciência e o inconsciente, de VIGOTKKI (1999, p. 144), é possível perceber

claramente os pressupostos do caráter material e dialético do real:

Para a psicologia dialética a psique não é, como expressara Spinoza, algo que jazalém da natureza, um Estado dentro do outro, mas uma parte da própria natureza,ligada diretamente às funções da matéria altamente organizada de nosso cérebro.Assim como o resto da natureza, não foi criada, mas surgiu num processo dedesenvolvimento (...)Em algum lugar, em um determinado nível de desenvolvimento dos animais,produziu-se uma mudança qualitativa no aperfeiçoamento dos processos cerebrais,que, por um lado, fora preparada por toda uma marcha precedente dodesenvolvimento e, por outro, constituía um salto em seu curso, já que representavao surgimento de uma nova qualidade, que não podia ser reduzida mecanicamente afenômenos mais simples.

Um pouco adiante, têm-se, em linhas gerais, as injunções metodológicas decorrentes desses

pressupostos:

O reconhecimento da unidade desse processo psicofisiológico conduz-nosobrigatoriamente a uma exigência metodológica completamente nova: não devemosestudar os processos psíquicos e fisiológicos de forma separada (...) devemos (...)abordar o processo em sua totalidade (...)Não obstante, assumir a unidade do psíquico e do físico reconhecendo, em primeirolugar, que a psique surgiu em um determinado nível de desenvolvimento da matériaorgânica e, em segundo, que os processos psíquicos constituem parte inseparável deconjuntos mais complexos, fora dos quais não existem e, portanto, não podem serestudados, não deve nos levar a identificar o psíquico com o físico (...)

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

24

A psicologia dialética (...) não confunde os processos psíquicos com os fisiológicos,reconhece o caráter irredutível da singularidade qualitativa da psique e afirmaapenas que os processos psicológicos são únicos. Chegamos, por conseguinte, aoreconhecimento de processos psicofisiológicos singulares e únicos, que constituemas formas superiores de comportamento do homem, aos quais propomos denominarde processos psicológicos... (VIGOTSKI, 1999, p. 145-146).

Em LURIA (1990, p. 23-25), na obra intitulada O desenvolvimento cognitivo, também

se identificam esses pressupostos e injunções metodológicas, talvez de forma um pouco mais

condensada:

A psicologia soviética, usando o conceito de consciência enquanto existênciaconsciente como ponto de partida, rejeitou o enfoque segundo o qual a consciênciarepresenta uma propriedade intrínseca da vida mental , invariavelmente presenteem qualquer estado mental e independente do desenvolvimento histórico.Alinhando-se com o pensamento de Marx e de Lênin, a psicologia soviética sustentaque a consciência é a forma mais elevada de reflexo da realidade; ela não é dada apriori, nem é imutável e passiva, mas sim formada pela atividade e usada peloshomens para orientá-los no ambiente (...)A idéia de que os processos mentais dependem das formas ativas de vida numambiente apropriado tornou-se um princípio básico da psicologia materialista. Essapsicologia também admite que as ações humanas mudam o ambiente de modo que avida mental humana é um produto das atividades continuamente renovadas que semanifestam na prática social (...)A consciência humana deixa, portanto, de ser uma qualidade intrínseca do espíritohumano , sem história e inacessível à análise causal. Começamos a entendê-la comoa forma mais elevada da reflexão da realidade criada pelo desenvolvimento sócio-histórico.

Passemos agora a considerar como esses princípios filosóficos e essas injunções

metodológicas ganham ainda maior concreticidade conceitual e analítica por intermédio da

incorporação, nas análises do psiquismo humano realizadas pela Psicologia sócio-histórica,

das concepções históricas e sociológicas do pensamento marxiano, sistematizadas na

concepção materialista da história.

1.2 A concepção materialista da história e a consciência humana

Ao passar da análise dos tipos de psiquismo animal para análise da consciência

humana, Leontiev, no supracitado O desenvolvimento do psiquismo, afirma que, nesse novo

estágio da evolução psíquica (estágio esse, recordemos, qualitativamente distinto dos estágios

anteriores), as leis gerais que regem o desenvolvimento psíquico sofrem uma alteração

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

25

fundamental. Até então, nas etapas anteriores da desenvolução psíquica, essas leis eram as leis

da evolução biológica; com o advento da consciência humana, elas cedem lugar às leis do

desenvolvimento sócio-histórico3. Em outros termos, o desenvolvimento psíquico, alcançando

o estágio do psiquismo humano, passa a ser determinado não mais por processos peculiares à

natureza, mas por processos sociais processos produzidos pela própria atividade humana. É

exatamente nesse ponto que a Psicologia sócio-histórica começa a incorporar, para a análise

do psiquismo humano, além dos pressupostos ontológico-epistemológicos do Materialismo

histórico-dialético, também as concepções de história e de sociedade próprias desse sistema

teórico, ou seja, a concepção materialista da história.

Segundo Marx e Engels, o trabalho (isto é, a forma característica da atividade humana,

que consiste na transformação ativa da natureza pelo próprio homem tendo em vista,

inicialmente, a satisfação das suas necessidades elementares e, depois, também das

necessidades secundárias) produz um universo de artefatos materiais, de símbolos lingüísticos

(linguagem), de instituições jurídicas e políticas e de formas de representar o mundo, que não

existe na natureza, mas que resulta exclusivamente dele (trabalho). Desse modo, por

intermédio do trabalho, o homem edifica sobre a natureza um mundo próprio e novo (o

mundo social humano) e transcende a condição natural da animalidade, da simples imersão no

mundo dado da natureza. Por conseguinte, para a concepção materialista da história, o

trabalho é a atividade hominizadora do homem por excelência, a pedra angular para a

constituição da cultura e para a aquisição da consciência4.

3 A passagem à consciência humana, assente na passagem a formas humanas de vida e na atividade do trabalhoque é social por natureza, não está ligada apenas à transformação da estrutura fundamental da atividade e aoaparecimento de uma nova forma de reflexo da realidade; o psiquismo humano não se liberta apenas dos traçoscomuns aos diversos estágios do psiquismo animal, que acabamos de analisar; não reveste apenas traçosqualitativamente novos; o essencial, quando da passagem à humanidade, está na modificação das leis quepresidem ao desenvolvimento do psiquismo. No mundo animal, as leis gerais que governam as leis dodesenvolvimento psíquico são as da evolução biológica; quando se chega ao homem, o psiquismo submete-se àsleis do desenvolvimento sócio-histórico (LEONTIEV, s/d: 73).

4 A seguinte passagem de O capital exprime, de forma clara e sintética, tanto a concepção de trabalho nopensamento marxiano como a do seu papel realizador das potencialidades humanas: Antes de tudo, o trabalho é

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

26

Portanto, a afirmação do trabalho como a forma singular da atividade humana,

associada à consciência enquanto forma, também singular, do psiquismo humano, não é

originária da Psicologia sócio-histórica. Trata-se, na verdade, de uma incorporação, por essa

escola da Psicologia, do pressuposto antropológico e sociológico básico do pensamento

marxiano: o trabalho como atividade hominizadora do homem, através da qual o homem

domina a natureza e desenvolve as potencialidades latentes em seu organismo. Nos termos

contundentes de ENGELS (In MARX e ENGELS, s/d, p. 269):

O trabalho é a fonte de todas as riquezas, afirmam os economistas. Assim é, comefeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é muito mais que isso. É a condição básica efundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemosafirmar que o trabalho criou o próprio homem.

Essa relevância outorgada ao trabalho pelo Materialismo histórico, na análise da

condição humana, é justificada em razão do fato, evidente para seus autores, do trabalho,

enquanto forma da atividade vital dos homens, ser necessariamente o primeiro pressuposto

de toda a existência humana e, portanto, de toda a história . Pois, na condição humana, para

viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais

(MARX e ENGELS, 1989, p. 39), que os homens conseguem obter unicamente pela

mediação do trabalho.

Assim, para a concepção materialista da história, foi essencialmente pelo trabalho que

os homens foram desenvolvendo a estrutura anátomo-fisiológica que hoje possuem, inclusive

o cérebro mais desenvolvido e complexo, e a linguagem. Conforme escreve ENGELS em

Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem (In MARX e ENGELS,

s/d, p. 270), a mão do homem, principal órgão do trabalho, somente adquiriu a configuração

um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula econtrola seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fimde apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento,sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Eledesenvolve as potências nele adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio (MARX, 1988,p. 142).

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

27

que ela possui hoje em razão do próprio trabalho, pela adaptação a novas e novas funções .

Também a postura ereta, com pés e pernas totalmente adaptados, foi uma decorrência do

trabalho. O trabalho fez emergir ainda a necessidade de uma comunicação constante e precisa

entre os homens, de modo que a linguagem verbal (conforme desenvolvemos melhor a seguir)

igualmente aparece no mundo humano em decorrência do trabalho e imediatamente após

ele. E, sob os estímulos do trabalho e da linguagem articulada, o cérebro humano foi se

complexificando e, paralelamente, os órgãos do sentido foram se aperfeiçoando, de modo a

dar forma final ao atual corpo orgânico do homem.

Incorporando a afirmação do pensamento marxiano de que a linguagem se constituiu a

partir e sob as determinações do trabalho, a Psicologia sócio-histórica irá, não obstante (ainda

por meio de Leontiev, novamente no supracitado O desenvolvimento do psiquismo),

desenvolver de forma mais detalhada o processo pelo qual a linguagem foi emergindo e se

desenvolvendo a partir das imposições do trabalho. Leontiev, seguindo as pegadas de Marx e

Engels, irá recordar que o trabalho humano sempre foi uma atividade coletiva, ou seja, uma

atividade levada a cabo pela cooperação entre diversos indivíduos5. Desse modo, o homem,

pelo trabalho, não se relaciona apenas com a natureza, mas também com os demais membros

de sua coletividade. É apenas por intermédio desta relação a outros homens que o homem se

encontra em relação com a natureza , escreve LEONTIEV (s/d, p. 80). Assim, foi a partir da

necessidade de comunicação para a realização da atividade coletiva do trabalho que os

homens começaram a desejar e a precisar dizer alguma coisa uns para os outros. O

5 O termo indivíduo aparecerá em vários momentos desta dissertação ao lado do termo sujeito , sendo usadoquase como sinônimo do mesmo nas passagens em que faz referência a indivíduos humanos . Contudo, há certadiferença denotativa entre ambos os termos. O vocábulo indivíduo será mais utilizado quando quisermosenfatizar a dimensão biológica do sujeito, ou seja, o fato de que cada ser humano é, inicialmente, um organismosingular. Já o termo sujeito, por sua vez, buscará enfatizar não a dimensão biológica do homem, mas as idéias,crenças, valores, sentimentos e padrões de conduta que caracterizam o psiquismo de cada indivíduo humano.Como não existe, a rigor, um momento preciso em que o indivíduo (organismo humano) deixa de ser apenas umindivíduo (organismo) e se transforma em sujeito (organismo portador de idéias, crenças, valores, sentimentos

e padrões de conduta próprios), os termos indivíduo e sujeito serão utilizados paralelamente quandoquisermos enfatizar uma ou outra dimensão do ser humano.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

28

nascimento da linguagem só pode ser compreendido em relação com a necessidade, nascida

do trabalho, que os homens sentem de dizer alguma coisa (LEONTIEV, s/d, p. 92).

Entrando necessariamente em relação uns com os outros pelo trabalho, os homens têm

inicialmente em suas próprias ações um mecanismo primeiro de comunicação social.

Originariamente, as suas ações [dos homens], o trabalho propriamente dito, e a sua

comunicação formam um processo único (LEONTIEV, s/d, p. 92). Desse modo, as ações do

trabalho desempenhavam primitivamente uma dupla função: produtiva e comunicativa.

Posteriormente, contudo, essas duas funções se separaram, dando origem primeiramente aos

gestos, isto é, aos movimentos desvinculados de sua função produtiva e possuidores apenas de

uma função comunicativa; e, em seguida, às palavras, isto é, às representações vocais dos

gestos, representações estas que, muito provavelmente, de início acompanhavam os gestos.

Com a palavra articulada (linguagem verbal), a consciência humana ganha,

definitivamente, uma forma de cristalização e um mecanismo de operação. A linguagem

torna-se, então, não apenas um instrumento de comunicação entre os homens, mas a forma e

o suporte (LEONTIEV, s/d, p. 94) da consciência humana. A esse respeito, MARX e

ENGELS (1989, p. 43) afirmaram em A ideologia alemã:

O homem tem também consciência . Mas (...) não se trata de consciência pura .Desde o início pesa sobre o espírito a maldição de estar contaminado pelamatéria, que se apresenta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, emsuma, de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência a linguagem éa consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existetambém para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da necessidadede intercâmbio com outros homens.

Vale observar que, nos marcos da dialética marxista, linguagem e consciência,

emergindo do trabalho, passam a interagir sobre ele, permitindo, potencializando e

direcionando os seus desenvolvimentos futuros. Ao mesmo tempo, o trabalho também

continua a exercer influência sobre as formas da linguagem e sobre os conteúdos da

consciência, num eterno processo de ação e interação entre elementos que apenas

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

29

analiticamente podem ser abstraídos, mas que na realidade somente existem em indissolúvel

simbiose.

É partindo dessa leitura da condição humana, realizada pela concepção materialista da

história, que a Psicologia sócio-histórica falará do caráter duplamente mediado da atividade

humana. Conforme define Angel PINO (1991, p. 32-33), um dos melhores comentadores de

Vigotski em solo brasileiro, mediação é toda a intervenção de um terceiro elemento que

possibilita a interação entre os termos de uma relação . Assim sendo, para a Psicologia

sócio-histórica, o que, em última instância, caracteriza a atividade humana, inclusive lhe

concedendo o atributo da consciência (recordemos, o atributo de ser capaz de refletir o mundo

em suas propriedades, objetos, relações e processos objetivos, independente do sentido

biológico que esses elementos possam ou não ter para os indivíduos humanos), é o fato dela

se realizar sempre mediatizada por instrumentos, no plano físico; e por signos, no plano

psíquico. Conforme afirma VIGOTSKI:

A atividade prática do homem (...) se faz duplamente mediada: por um lado, estámediada pelas ferramentas no sentido literal da palavra e, por outro, mediada pelasferramentas em sentido figurado, pelas ferramentas do pensamento, pelos meios,com a ajuda dos quais se realiza a operação intelectual, ou seja, mediada com aajuda das palavras (apud TEIXEIRA, 2005, p. 117).

O instrumento é um mediador material que, no processo de trabalho, os homens

interpõem entre eles e o objeto de trabalho6 e que lhes ajuda a executar diferentes ações sobre

esse objeto, de modo a transformá-lo, conferindo-lhe uma forma e/ou propriedade(s) mais

adequada(s) às necessidades humanas. Portanto, o instrumento é um mediador cujo propósito

é a transformação material do mundo externo. Nos termos de MARX (1988, p. 143) em O

capital, onde o termo instrumento é substituído pela expressão correspondente meio de

trabalho : O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador

6 O objeto de trabalho é aquilo sobre o qual recaem as ações do trabalho e que será modificado por elas,adquirindo uma nova forma e/ou nova(s) propriedade(s), mais adequada(s) à satisfação das necessidadeshumanas.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

30

coloca entre si mesmo e o objeto de trabalho e que lhe serve como condutor de sua atividade

sobre esse objeto .

O signo, por seu turno, é um mediador psíquico cujo propósito é representar e

significar a realidade e que tal qual o instrumento permite a ação do homem sobre a

natureza exterior permite a ação do homem sobre sua própria natureza interior, isto é,

possibilita aos homens pensar, controlar e planejar o próprio comportamento ou o

comportamento de outrem. Nos termos de VIGOTSKI (1999, p. 93):

No comportamento do homem surge uma série de dispositivos artificiais dirigidospara o domínio dos próprios processos psíquicos. Por analogia com a técnica, essesdispositivos podem receber, de pleno direito, a denominação convencional deferramentas ou instrumentos psicológicos (...)Os instrumentos psicológicos são criações artificiais; estruturalmente, sãodispositivos sociais e não orgânicos ou individuais; destinam-se ao domínio dosprocessos próprios ou alheios, assim como a técnica se destina ao domínio dosprocessos da natureza.

Bem entendido, é pela mediação dos instrumentos que os homens manipulam e

transformam o ambiente natural, produzindo os bens que necessitam e descobrindo as

propriedades, relações e processos inerentes ao mundo físico. A mediação dos signos, por sua

vez, outorga o mecanismo por meio do qual os homens podem se comunicar e orientar

reciprocamente o comportamento, bem como a forma pela qual as experiências e os

conhecimentos podem ser socialmente objetivados, conservados e compartilhados. Portanto,

os instrumentos são orientados para o mundo físico e permitem transformá-lo; os signos, para

o mundo psíquico, permitindo o controle e o aprimoramento dele.

É necessário frisar que, quando fala de signos, a Psicologia sócio-histórica não está se

referindo apenas às palavras (signos lingüísticos) ainda que elas tenham um lugar

privilegiado e constituam o sistema sígnico por excelência do homem (a linguagem verbal) ,

mas a todo e qualquer mecanismo inventado pelo homem para representar o mundo e gerir os

próprios processos psíquicos. Assim, conforme aponta o próprio VIGOTSKI (1999, p. 93-94),

também são sistemas de signos: as diferentes formas de numeração e de cálculo, os

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

31

dispositivos mnemotécnicos, o simbolismo algébrico, as obras de arte, a escrita, os diagramas,

os mapas, os desenhos, todo tipo de signos convencionais etc .

Retornando às formulações originais do Materialismo histórico, é a partir do substrato

do trabalho, e da linguagem, que se desenvolve a partir dele e lhe é indissociável (e, portanto,

conforme acentua a psicologia sócio-histórica, pela mediação de instrumentos e signos), que

os homens constituem as diversas instituições, organizam as sociedades e dão vida à história.

Marx e Engels, dessa forma, tomam a produção material da vida, ou o que eles chamam de

modo de produção social7, em suas diversas configurações ao longo da história, como a

verdadeira infra-estrutura das sociedades humanas, a partir da qual elas desenvolvem toda

uma superestrutura social, constituída pelas instituições jurídico-políticas e pelas formas de

consciência próprias a cada uma delas. Essa concepção foi sintetizada por MARX (1982, p.

25) no famoso prefácio de Para a crítica da economia política:

Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,necessárias e independente de sua vontade, relações de produção estas quecorrespondem a uma determinada etapa de desenvolvimento de suas forçasprodutivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estruturaeconômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestruturajurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas deconsciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geralde vida social, política e espiritual.

A totalidade social constituída pela base econômica e pela superestrutura jurídica,

política e ideológica é sintetizada pela Psicologia sócio-histórica por meio do conceito de

cultura , proveniente da Antropologia (AZCONA, 1992; CUCHE, 2002; LARAIA, 1989;

7O conceito de modo de produção é o conceito cunhado por Marx e Engels a fim de dar conta do processo deprodução das sociedades humanas. O modo de produção é a forma concreta pela qual as sociedades realizam aprodução, a distribuição e o consumo dos valores de uso que necessitam. Ele articula-se em função do nível dedesenvolvimento das forças produtivas (isto é, o conjunto formado pela quantidade e habilidades da força detrabalho e pelos meios e objetos de trabalho, estes últimos também designados de meios de produção ) edas relações de produção (ou seja, as relações que os homens estabelecem entre si, com seus meios deprodução e com os produtos do trabalho, objetivando a produção, a distribuição e o consumo dos bens e serviços socialmente necessários) de cada sociedade. Segundo esses conceitos do materialismo histórico, a humanidadeconheceu até o presente seis distintos modos de produção: o primitivo, o escravista, o asiático, o feudal, ocapitalista e o socialista.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

32

MERCIER, s/d) e posterior a Marx8. Nos termos concisos de VIGOTSKI (apud COLEÇÃO

MEMÓRIAS DA PEDAGOGIA, n.2., 2005, p. 18): cultura é, simultaneamente, o produto da

vida social e da atividade social dos homens . Sendo assim, para a Psicologia sócio-histórica,

a idéia de cultura abarca a totalidade dos produtos da atividade humana, inclusive

instrumentos e signos invenções que, para a Psicologia sócio-histórica (conforme vimos),

servem de base a todas as demais invenções sociais9.

A relação entre infra e superestrutura social (ou a relação entre a dimensão de base e

as demais dimensões da cultura, se quisermos utilizar o conceito de cultura empregado pela

psicologia sócio-histórica), embora interpretada pela concepção materialista da história em

termos de determinação em última instância da segunda pela primeira, não é, todavia, para

Marx e Engels, uma relação de determinismo unilinear e mecânico de uma pela outra.

Lembremos que, para Marx e Engels, as relações entre os diversos elementos constitutivos do

real são sempre relações dialéticas, isto é (conforme já frisamos antes item 1.1), relações

que tomam a forma de ação e interação dinâmica entre seus pólos. Desse modo, se a partir da

8 Coube a Edward Burnett TAYLOR (1993, p. 64), em 1871, no seu clássico Cultura primitiva, aprimeira definição de cultura nos marcos da Antropologia: a cultura ou civilização, tomada em seu sentidoetnográfico amplo, é esse complexo total que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e outrasatitudes e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade .

A proposta de definição de Tylor realizava uma síntese entre o significado do termo alemão Kultur e osignificado do termo francês civilization. A palavra alemã Kultur fazia referência aos desenvolvimentosintelectuais da humanidade (literatura, artes, filosofia e ciências), ao tempo em que termo francês civilization eraempregado para designar os desenvolvimentos materiais vinculados à técnica e à indústria. Com efeito, paraTylor, a cultura era a manifestação da totalidade da vida social humana, tanto em seus aspectos espirituais ,como nos materiais (LARAIA, 1989; CUCHE, 2002).

Em seu aspecto descritivo, isto é, enquanto a totalidade dos produtos materiais e espirituais da atividade humana, a definição de Tylor seria conservada pela grande maioria das teorias antropológicas subseqüentes.

9É necessário dizer que não encontramos em nenhum outro texto de Vigotski, Leontiev ou Luria, umadefinição mais precisa do sentido com o qual eles empregam o termo cultura. Todavia, a afirmação de Vigotskiapresentada acima, aliada ao Materialismo histórico-dialético como a fonte filosófica e sociológica dopensamento dos autores, permite-nos interpretar, sem muita dificuldade, o sentido concreto que o termo assumenos escritos dos fundadores da Psicologia sócio-histórica. Conforme escreve PINO (2000, p. 54), interpretando o sentido do termo em Vigotski: Ao distinguir entre produto da vida social e produto da atividade social ,levando-se em conta a matriz teórica em que o autor se situa, podemos pensar no primeiro caso a culturaentendida como prática social resultante da dinâmica das relações sociais que caracterizam uma determinadasociedade e no segundo caso como produto do trabalho social, nos termos em que falam Marx e Engels. Se assim for, para Vigotski, a cultura é a totalidade das produções humanas (técnicas, artísticas, científicas, tradições,instituições sociais e práticas sociais). Em síntese, tudo que, em contraposição ao que é dado pela natureza, éobra do homem .

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

33

economia (infra-estrutura social) se constituem, num primeiro momento, a política, o direito e

as formas de pensamento de um povo (ou seja, sua superestrutura social), esses elementos,

uma vez constituídos (repetimos, a partir da economia e sob sua influência), ganharão certa

autonomia e passarão também a exercer influência sobre a economia. Portanto, a realidade

social, embora tenha no modo de produção o seu substrato ontológico, estrutura-se sempre,

segundo o pensamento marxiano, por intermédio de complexas relações de interação entre

seus elementos constitutivos. Conforme escreveu Engels (apud MARX e ENGELS, 1971, p.

37-38), a fim de dirimir qualquer dúvida:

Segundo a concepção materialista, o fator determinante da história é, em últimaanálise, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu, alguma vezafirmamos outra coisa. Se alguém pretender deformar esta frase, até a levar a dizerque o fator econômico é o único determinante, transforma-a numa proposição vazia,abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos dasuperestrutura as formas políticas da luta de classes e os seus resultados, asconstituições promulgadas pela classe vitoriosa, depois de ganha a batalha, etc., asformas jurídicas, mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dosparticipantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e odesenvolvimento posterior em sistemas dogmáticos exercem também ação nocurso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam-lhes a forma de modopreponderante. Há ação e reação entre todos esses fatores, no seio dos quais omovimento econômico acaba, necessariamente, por abrir caminho através damultidão infinita de acasos (...)Se, por vezes, os jovens dão mais importância do que a devida ao aspectoeconômico, as responsabilidades cabem, parcialmente, a Marx e a mim próprio.Perante os adversários, era necessário sublinharmos o princípio essencial negado por eles e, assim, nem sempre pudemos arranjar tempo, local, ou ocasião para pôr no seu lugar os outros fatores que participam na ação recíproca.

É no interior dessas totalidades sociais constituídas a partir de seus respectivos modos

de produção, mas estruturadas pela contínua dinâmica de ação e interação entre seus

diferentes fatores, que, segundo o Materialismo histórico, constitui-se a consciência enquanto

forma do psiquismo humano, necessariamente vinculada ao novo ambiente vital do homem (a

cultura) e por ele determinada. Com efeito, é esta a tese fundamental de MARX e ENGELS

(1989, p. 13) sobre a consciência humana (conforme os autores redigiram nas Teses sobre

Feuerbach), incorporada, evidentemente, pela Psicologia sócio-histórica: a essência humana

não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das

relações sociais . Em outras palavras, a consciência humana ou, conforme o termo usado

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

34

nas Teses, a essência humana, visto que se trata da forma específica da espécie humana

perceber e agir face à realidade é, para a concepção materialista da história, definida pelo

modo de vida social específico dos homens, ou seja, a vida cultural, vida de atividades e

relações mediadas por inventos artificiais produzidos pelos próprios homens: instrumentos e

signos. Logo, a realidade construída pelos próprios homens o conjunto de suas relações

sociais é que define a natureza última do homem a essência ou consciência

humana. Mais uma vez, o modo dialético de pensar a realidade se manifesta na abordagem

marxiana: homem e realidade social são, ao mesmo tempo, causa e efeito um do outro.

Conforme dissemos, essa abordagem é incorporada pela Psicologia sócio-histórica e

conforma o seu pressuposto psicológico básico, ponto de partida para a sua análise do

processo de constituição dos sujeitos humanos. Tal abordagem é bem sintetizada por

LEONTIEV (s/d, p. 94):

Ao estudar as condições de passagem do psiquismo pré-consciente dos animais àconsciência do homem, encontramos certos traços característicos dessa formasuperior de reflexo psíquico. Vimos igualmente que a consciência não podia aparecer a não ser nas condições emque a relação do homem com a natureza era mediatizada pelas suas relações detrabalho com os outros homens. Por conseguinte, a consciência é bem um produtohistórico desde o início (Marx).Vimos em seguida que a consciência só podia aparecer nas condições de uma açãoefetiva sobre a natureza, nas condições de uma atividade de trabalho por meio deinstrumentos, a qual é ao mesmo tempo a forma prática de conhecimento humano.Nestes termos, a consciência é a forma do reflexo que conhece ativamente.Vimos que a consciência só podia existir nas condições da existência da linguagem,que aparece ao mesmo tempo que ela no processo de trabalho. Por fim, vimos e devemo-lo sublinhar particularmente que a consciênciaindividual do homem só podia existir nas condições em que existe a consciênciasocial. A consciência é o reflexo da realidade refratada através do prisma dassignificações e dos conceitos lingüísticos elaborados socialmente.

Explicitado o modo como o Materialismo histórico-dialético e a Psicologia sócio-

histórica compreendem a consciência humana, é necessário apontar em razão das reflexões

que faremos adiante, por ocasião da confrontação da Psicologia sócio-histórica com a

Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann (cap. 03) e do paralelo que faremos entre

essas reflexões e o fenômeno da ideologia uma última idéia de fundamental importância na

interpretação que Marx e Engels fazem da vida social, inclusive por suas implicações para a

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

35

análise da constituição do sujeito, implicações estas não completamente exploradas pela

Psicologia sócio-histórica. Segundo a concepção materialista da história, a realidade social,

uma vez constituída, ganhará certa autonomia em relação aos indivíduos humanos que a

constituem e a reproduzem em suas atividades e relações diárias, passando a governá-los. Em

outras palavras, o mundo social, produto da atividade coletiva dos homens, objetiva-se

enquanto entidade ontológica distinta e independente dos indivíduos isolados e mais do que

isso passa a comandar e a subjugar esses indivíduos. Marx e Engels designam de

alienação esse fenômeno e o explicam como conseqüência de uma série de

desenvolvimentos históricos associados: o crescimento da população, o surgimento de novas

necessidades, o incremento da produtividade e, principalmente, o desenvolvimento da divisão

social do trabalho inicialmente uma divisão apenas sexual e, depois, também em virtude de

disposições naturais (vigor físico, por exemplo), necessidades, acasos etc , até alcançar a

forma da divisão entre o trabalho material e o espiritual (MARX e ENGELS, 1989, p. 44-

45) e a divisão entre classes , isto é, em função da distribuição da propriedade10. Nos termos

de MARX e ENGELS (1989, p. 46-48):

Com a divisão social do trabalho, (...) dá-se ao mesmo tempo a distribuição, e comefeito a distribuição desigual, tanto quantitativa como qualitativamente, do trabalhoe dos seus produtos; ou seja, a propriedade (...)Além do mais, com a divisão do trabalho é dada ao mesmo tempo a contradiçãoentre o interesse do indivíduo ou da família singulares e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se relacionam entre si; e, com efeito, este interesse coletivo (...) seapresenta, antes de mais nada, (...) como a dependência recíproca de indivíduos entre os quais o trabalho está dividido. Finalmente, a divisão do trabalho nos oferece,desde logo, o primeiro exemplo do seguinte fato: desde que os homens se encontram numa sociedade natural e também desde que há cisão entre o interesse particular einteresse comum, desde que, por conseguinte, a atividade está dividida nãovoluntariamente, mas de um modo natural, a própria ação do homem converte-senum poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado.Com efeito, desde o instante em que o trabalho começa a ser distribuído, cada umdispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e daqual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e aí devepermanecer se não quiser perder seus meios de vida (...) Esta fixação da atividadesocial esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a

10 Nos parâmetros do pensamento marxiano, uma classe social é um conjunto de indivíduos que ocupam umamesma posição no interior das relações sociais de produção. Isto é, um grupo de indivíduos que: a) possuem amesma função genérica na realização do trabalho coletivo; b) se apropriam basicamente da mesma parcela dosprodutos desse trabalho e, principalmente; c) estabelecem as mesmas relações de propriedade com os meios deprodução.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

36

nós, que escapa ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz a nadanossos cálculos é um dos momentos capitais do desenvolvimento histórico que atéaqui tivemos.

A conseqüência imediata da alienação do social na consciência dos homens, isto é, no

modo como percebem e interpretam a realidade, é o fato das condições sociais da existência

serem tomadas como algo cujo estatuto ontológico não é social, histórico e humano, mas

transcendental (dado, necessário, natural e/ou divino). Em termos distintos, os homens, ao

perderem de vista o processo histórico-social que engendra a cultura e ao se defrontarem com

o poder do social estabelecido , ou, como dizem MARX e ENGELS (1989, p. 49), com a

força produtiva multiplicada que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela

divisão do trabalho , passam a tomá-lo (o social estabelecido), em suas representações

psíquicas, não mais como um produto humano, mas como algo alheio e acima dos homens, ao

qual eles têm que se conformar, e cuja natureza é dada, necessária, natural e/ou divina.

Citando mais uma vez MARX e ENGELS (1989, p. 49):

O poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que nasce da cooperação devários indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos, porque sua cooperação não é voluntária mas natural, não como seu próprio poderunificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujodestino ignoram, que não podem mais dominar e que, pelo contrário, percorre agorauma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente doquerer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige este querer e este agir.

Seguindo a sugestão dos próprios MARX e ENGELS (1989) que chamaram de

ideologia a filosofia alemã de sua época (Hegel, Feuerbach, Bauer, Stirner), em virtude

desta não ser capaz de interpretar a realidade como eminentemente material, social e histórica,

mitificando-a por intermédio de pressupostos idealistas e de categorias abstratas e metafísicas

( espírito absoluto , essência humana , único etc.) , podemos designar de ideologia,

conforme faz SOUSA FILHO (1990, 1995, 2003), as idéias que os homens fazem da vida

social sob o condicionamento da alienação e que, conseqüentemente, mascaram o seu caráter

social e histórico, interpretando-a (conforme já dissemos) como dada, necessária, natural e/ou

sagrada. As reflexões de Sousa filho sobre a ideologia, bem como as reflexões de Althusser,

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

37

serão retomadas adiante (item 3.3). Por hora, nos limitaremos à asserção de a ideologia, tal

qual a alienação, é um fenômeno inerente à vida social humana e, portanto, presente em todas

as sociedades. Como escrevem MARX e ENGELS (1989, p. 36-37):

A produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamenteentrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens,como a linguagem da vida real (...) O mesmo ocorre com a produção espiritual, talcomo aparece na linguagem da política, das leis da moral, da religião, da metafísicaetc. de um povo (...) E se, em toda ideologia, os homens e suas relações apareceminvertidos como numa câmera escura, tal fenômeno decorre de seu processohistórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorrede seu processo de vida diretamente físico.

Portanto, autônoma, superior e, por último, mitificada na consciência (ideologizada), a

realidade social passará, para a concepção materialista da história, a dominar, quando não a

oprimir, os indivíduos humanos conforme já frisamos.

Uma das formas de manifestação desse domínio é o fato da sociedade ser constitutiva

de cada sujeito humano11. Tal idéia já está implícita na afirmação do caráter social da

consciência, feita na já citada Teses sobre Feuerbach. Torna-se, todavia, ainda mais clara

quando, no também já citado prefácio de Para a crítica da economia política, MARX (1982,

p. 25), logo após afirmar o caráter condicionado da superestrutura social pela infra-estrutura

( O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social,

política e espiritual ), afirma, de forma ainda mais enfática, que não é a consciência dos

homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser que determina a consciência .

Perceba que Marx, nessa segunda afirmação, conforme argumenta FLEISCHER (s/d, p. 141-

2), usa o termo mais forte, determinar , e não o termo condicionar , usado na primeira

afirmação, que, em comparação, é mais fraco , não conotando uma determinação total

numa direção única . Por conta disso, seguindo ainda a argumentação de Fleischer, a

correlação entre o ser social e a consciência social não é a mesma que existe entre a base e a

superestrutura . Nessa última, não temos uma relação de mão única . Distintamente, na

11 O conceito de sujeito humano designa, conforme já notificamos (p. 27), as diversas e singulares manifestações empíricas da consciência humana, com suas idéias, crenças, valores, sentimentos e padrões de conduta próprios.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

38

primeira (ser social x consciência social), temos uma instância enfaticamente proeminente (o

ser social) em relação à outra (a consciência social), que assume uma posição de total

dependência, ou seja, total sujeição. Lembremos ainda que o ser social não é apenas o modo

de produção; a ele pertencem também as relações de domínio, as relações familiares e todas

as atividades práticas (FLEISCHER, s/d, p. 142). Dessa forma, Marx está enfatizando o

lugar preeminente determinante do mundo social a cultura na constituição da

consciência social , conceito esse que é uma abstração e cujo conteúdo concreto só pode ser

o conjunto das consciências individuais idéia que não podemos perder de vista para uma

exata compreensão do modo como o materialismo histórico entende as relações entre o sujeito

e a sociedade.

Portanto, o desdobramento lógico das idéias de Marx e Engels para a abordagem do

ser humano individual (o sujeito) é a sua determinação, sempre, pelo ambiente cultural (o ser

social). É por intermédio das determinações culturais que se forma o ser de cada homem

singular. Toda a teorização da Psicologia sócio-histórica sobre a psicologia humana nada mais

é do que um desvelamento e uma sistematização dos dispositivos e dos processos pelos quais

ocorre essa constituição da qual falam Marx e Engels do sujeito pela realidade social. Por

conseguinte, é disto que trataremos agora.

1.3 Atividade, linguagem e constituição do sujeito na psicologia sócio-histórica

A afirmação com a qual encerramos a seção anterior, ou seja, o caráter determinado da

consciência individual, parece contradizer a terceira das injunções metodológicas do

Materialismo histórico-dialético para a investigação dos fenômenos humanos (a injunção c ,

conforme redigimos na p. 13), isto é, a recomendação de considerar a atividade humana como

atividade voluntária, livre. Como, sendo determinado em seu psiquismo (em sua maneira de

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

39

perceber, sentir e agir) pela sociedade, o homem pode atuar de forma voluntária e livre? A

contradição, todavia, é apenas aparente.

Quando Marx e Engels se referem à liberdade humana, eles estão falando,

comparativamente, da atividade do homem enquanto espécie em paralelo à atividade das

outras formas de vida animal. Nessas, temos um agir cego , inconsciente , determinado

pela própria biologia do animal e com o qual ele imediatamente coincide . Portanto, uma

atividade que se apresenta como uma necessidade para o animal e da qual ele não pode

fugir; ou seja, uma atividade que, em relação à natureza, não é livre ou espontânea .

Distintamente, no caso do homem, temos uma atividade determinada não pela biologia do

homem, mas uma atividade que tendo evidentemente o corpo biológico do homem por

substrato é determinada por elementos produzidos pelo próprio homem: instrumentos e

signos; ou seja, um agir determinado por construtos culturais: técnicas, leis, moral, religião etc

Assim, a atividade do homem não é mais dirigida pela natureza, mas dela se autonomizou,

adquirindo o caráter de uma atividade espontânea ou livre . Em suma, a liberdade ou

espontaneidade do agir humano no pensamento de Marx e Engels, incorporado pela

Psicologia sócio-histórica, refere-se a uma liberdade ou espontaneidade do agir do homem

enquanto espécie em relação à natureza, e não à liberdade ou espontaneidade absoluta do

sujeito, do ser humano singular. A contradição, portanto, não existe. O ser humano, enquanto

espécie, é relativamente livre em relação aos comportamentos cegos e pré-fixados pela

natureza, mas é constituído (determinado) individualmente pelo mundo da cultura, decorrente

das próprias atividades que fazem o homem libertar-se da natureza: o trabalho e a

significação. De resto, afirmar o contrário seria contradizer o conteúdo da já citada VI tese

sobre Feuerbach (p.33), na qual Marx e Engels afirmam que a essência humana não é algo

inerente ao indivíduo singular , mas o conjunto das relações sociais .

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

40

O modo como a Psicologia sócio-histórica irá explicar esse processo de constituição

social do sujeito passa pela sistematização de um amplo processo de incorporação , pelos

indivíduos singulares, do patrimônio cultural de suas respectivas sociedades designado de

processo de internalização , por Vigotski, e de processo de apropriação , por Leontiev. A

diferença de terminologia entre Vigotski e Leontiev não é um problema de utilização de

termos distintos para designar o mesmo fenômeno. O fato é que Vigotski e Leontiev

compreendem de maneira sutilmente distinta o modo como ocorre esse processo de

incorporação da cultura pelo indivíduo. Assim, quanto a esta temática, é estabelecida certa

divergência entre o pensamento de Vigotski e o pensamento de Leontiev.

Para Vigotski, o processo de internalização é, essencialmente, um processo de

interiorização, pelo indivíduo, dos significados culturais outorgados à realidade por

intermédio dos signos, essencialmente os signos lingüísticos (as palavras). Isso significa que a

constituição do sujeito ocorre fundamentalmente por meio de um processo de mediação

semiótica, no qual as significações partilhadas pelos membros de uma dada cultura

(recordemos que o conceito de cultura, na Psicologia sócio-histórica, indica uma totalidade

social estruturada a partir de um modo de produção e entre cujas instâncias jurídica, política,

formas de consciência e o próprio modo de produção se estabelecem contínuas relações de

interação) são convertidas em significações pessoais para o indivíduo. Em outras palavras,

segundo Vigotski, é essencialmente a linguagem, a comunicação verbal (na ampla esfera das

relações sociais), que opera a construção dos sujeitos, na medida em que os signos são

reconhecidos e manipulados, os processos psicológicos superiores desenvolvem-se e os

significados culturais convertem-se em significados subjetivos para os indivíduos. Nos termos

de VIGOTSKI:

O homem domina o seu comportamento e o subordina a um determinado planoatravés da linguagem e com a sua ajuda (apud TEIXEIRA, 2005, p. 117).

No sentido amplo da palavra, é na linguagem que se encontra precisamente a fontedo comportamento social e da consciência (1999, p. 81).

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

41

A internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução daatividade psicológica tendo como base as operações com signos (1998a, p. 75).

Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meiode contato social com as outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas dalinguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nascrianças, distinguindo-as dos animais (1998a, p. 38).

Leontiev, por sua vez, define o processo de apropriação como um processo de

interiorização, pelo indivíduo, da experiência sócio-histórica da sua sociedade, por intermédio

de atividades que reproduzem os traços essenciais das experiências sociais acumuladas nos

objetos (materiais e não-materiais) que medeiam essas atividades. Em outros termos, para

Leontiev, a constituição do sujeito ocorre no decurso das atividades concretas do indivíduo,

na medida em que ele se defronta e precisa manipular geralmente sob a orientação de outros

sujeitos sociais os objetos materiais e ideais da cultura. São essas atividades concretas que

permitem que o indivíduo desenvolva as aptidões e as propriedades especificamente humanas,

assimile o patrimônio cultural da sua sociedade e se transforme num sujeito humano. Nas

palavras de LEONTIEV (s/d, p. 285-6):

Podemos dizer que o indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dáquando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É lhe ainda preciso adquirir oque foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana(...)Mas em que consiste o processo de apropriação deste mundo, que é ao mesmo

tempo o processo de formação das faculdades específicas do homem? Devemos sublinhar que este processo é sempre ativo do ponto de vista do homem.Para se apropriar dos objetos ou dos fenômenos que são o produto dodesenvolvimento histórico, é necessário desenvolver em relação a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade encarnada,acumulada no objeto.

A diferença entre o conceito de internalização (em Vigotski) e o conceito de

apropriação (em Leontiev) é sutil, pois Vigotski não desconhece que o uso da linguagem e a

produção e a transmissão de significados ocorra sempre em meio às atividades concretas dos

homens, e tampouco Leontiev ignora que as atividades concretas se fazem sempre

acompanhar pela linguagem. Contudo, o peso relativo que os autores outorgam a ambos os

elementos é distinto. VIGOTSKI, conforme vimos, enfatiza o papel primordial da

linguagem e dos significados culturais na constituição do sujeito:

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

42

Passamos a ser nós mesmos através de outros; essa regra não se refere unicamente àpersonalidade em seu conjunto mas a toda a história de cada função isolada. E nissoradica a essência do processo de desenvolvimento cultural [isto é, o processo deconstituição do sujeito] expressado em forma puramente lógica. A personalidadevem a ser para si o que é em si, através do que significa para os demais (...)Todas as formas fundamentais de comunicação verbal do adulto com a criança seconvertem mais tarde em funções psíquicas (apud TEIXEIRA, 2005, p. 115-6).

LEONTIEV, por sua vez, enfatiza as atividades concretas, relegando a linguagem à posição

de segunda condição do processo de apropriação:

Quando nasce, o indivíduo não encontra o nada de Heidegger, mas um mundoobjetivo, transformado pela atividade de gerações (...) Para que a natureza do mundo circundante, este aspecto humano dos objetos, surja ao indivíduo ele tem que exercer uma atividade efetiva em relação a eles, uma atividade adequada (se bem que nãoidêntica, evidentemente) à que eles cristalizaram para si (...)Mas isto é apenas uma condição deste processo específico a que chamamos deprocesso de assimilação, de apropriação (...) A outra condição é que as relações do indivíduo com o mundo dos objetos humanossejam mediatizadas pelas suas relações com os homens, que sejam inseridas noprocesso da comunicação (...) A comunicação sob sua forma primeira, de atividade comum ou de relação verbal,constitui a segunda condição inevitável do processo de assimilação pelos indivíduosdos progressos do desenvolvimento sócio-histórico da humanidade (s/d, p. 254).

Destarte, embora sutil, a diferença entre a idéia de internalização e a idéia de

apropriação aponta para modos distintos de compreensão do processo concreto de

constituição do sujeito e se constitui numa divergência que não pode ser ignorada no interior

da Psicologia sócio-histórica. Assim, discordamos de DUARTE (1999b, 2000), principal

intérprete de Leontiev no Brasil, quando ele afirma que, em razão do fato de Vigotski e

Leontiev estarem falando do interior de uma mesma corrente da psicologia, apoiada em

fundamentos filosóficos marxistas (2000, p. 164), as diferenças entre eles não sejam

relevantes. Indiscutivelmente, há muitíssimo mais afinidades entre Vigotski e Leontiev do que

diferenças, sendo o pensamento de Leontiev riquíssimo de contribuições para a construção,

como defendia Vigotski, de uma Psicologia dialética conforme, aliás, demonstramos atrás,

por meio das várias menções que fizemos às idéias de Leontiev. Todavia, no tocante à

constituição do sujeito, Leontiev parece ter aderido (ou se rendido) à estreita e dogmática

interpretação do marxismo que fazia o Estado soviético de sua época, para quem o trabalho

(atividade) tinha que ter sempre primazia sobre a linguagem (significado) e que proibiu a obra

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

43

de Vigotski, tomada como um desvio idealista do marxismo. Vigotski, por sua vez, realizou

uma leitura de maior liberdade, amplitude e profundidade do pensamento de Marx e Engels,

decorrência de uma formação filosófica mais sólida12 e do fato de, em virtude de sua morte

precoce, não ter tido a infelicidade de viver sob as agruras do regime stalinista.

A concepção de Vigotski a respeito do processo de constituição do sujeito deve,

portanto, ser tomada como preferível à concepção de Leontiev. Tal preferência, tratemos de

deixar claro, não decorre de uma simples predileção pessoal por aquele autor, mas resulta da

consideração objetiva dos dois fatos acima apontados. Primeiro, o contexto político de

restrições e vigilância em que escreveu Leontiev. Conforme afirmou ZINCHENKO (1998, p.

47), referindo-se à teoria da atividade deste autor: está claro que a decisão de enfocar as

coisas foi predeterminada pelo contexto, especialmente dado que o nome de Vigotski era

proibido, embora não esquecido, nos anos 30 . Segundo, a maior coerência da interpretação

vigotskiana com os pressupostos filosóficos e sociológicos da Psicologia sócio-histórica. Pois,

embora o trabalho, para Marx e Engels, anteceda a linguagem na filogênese humana, aquela é

um elemento imprescindível aos posteriores desenvolvimentos do homem, do trabalho e da

cultura, num contexto de interação dialética entre fenômenos. Desse modo, o elemento

secundário, a linguagem, torna-se posteriormente constitutivo e co-determinante da estrutura e

dos desenvolvimentos subseqüentes da realidade. Assim, cada novo indivíduo humano,

nascendo num contexto cultural já constituído (no qual trabalho e linguagem existem como

elementos constitutivos e estruturantes), é inserido, inicialmente, dado a sua imaturidade

biológica e a sua inaptidão inicial para o trabalho, em relações sociais (pai, mãe, tios, irmãos,

12 A maior consistência filosófica de Vigotski fora sempre reconhecida, inclusive pelos seus dois principais emais notáveis parceiros: Luria e o próprio Leontiev. Sobre isso escreveu LURIA (In VIGOTSKI, LURIA eLEONTIEV, 1988, p. 21-5): Não é exagero dizer que Vigotski era um gênio. Ao longo de mais de cincodécadas de trabalho no campo da ciência, eu nunca encontrei alguém que sequer se aproximasse de sua clarezade mente, sua habilidade para expor a estrutura essencial dos problemas complexos, sua amplidão deconhecimentos em muitos campos e sua capacidade para antever o desenvolvimento futuro da ciência (...)Reconhecendo as habilidades pouco comuns de Vigotski, Leontiev e eu ficamos encantados quando se tornoupossível incluí-lo em nosso grupo de trabalho (...) Com Vigotski como líder reconhecido, empreendemos umarevisão crítica da história e da situação da Psicologia na Rússia e no resto do mundo (...) Vigotski era também omaior teórico do marxismo entre nós .

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

44

professores, colegas de brincadeiras e jogos etc.) mediadas pela linguagem, através das quais

ele realiza as primeiras experiências e as primeiras aprendizagens que começam a lhe

converter em sujeito (como afirma Vigotski), e não em atividades concretas análogas à

atividade produtiva (trabalho) como deseja Leontiev. Conforme escreve LURIA (2001, p.

29), cuja concordância com a perspectiva de Vigotski é patente:

A ontogênese (desenvolvimento da criança) nunca repete a filogênese(desenvolvimento da espécie) como em um tempo se considerava. Odesenvolvimento da linguagem na ontogênese da criança não transcorre dentro doprocesso de trabalho, para o qual ela ainda não se encontra preparada; transcorre noprocesso de assimilação da experiência geral da humanidade e da comunicação comos adultos.

Conseqüentemente, desse ponto em diante, trataremos essencialmente de sistematizar

as idéias de Vigotski (e também de Luria) pertinentes à temática em questão, recorrendo a

Leontiev apenas nos momentos em que o pensamento desse autor venha a coincidir ou a

complementar o pensamento de Vigotski.

1.4 O signo e o significado no processo de internalização

Para uma melhor compreensão do processo de internalização em Vigotski, é útil

iniciar pelo exame do conceito de signo neste autor. Conforme já dissemos, o signo é, em

Vigotski, um mediador psíquico da atividade humana, cuja função é ampliar as possibilidades

de comunicação e conhecimento, bem como permitir o controle do próprio comportamento,

por intermédio do desenvolvimento das funções psicológicas superiores (também

designadas, pelo próprio Vigotski, de processos psicológicos superiores e de formas

superiores de conduta )13: atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos,

linguagem proposicional, linguagem abstrata, pensamento verbal e raciocínio lógico. Um

13 Neste trabalho, utilizamos a expressão funções psicológicas superiores , em preferência às expressõesequivalentes processos psicológicos superiores e formas superiores de conduta , por considerar que aprimeira exprime melhor o significado inerente a todas elas, qual seja, o modo específico de funcionamentodo psiquismo humano, qualitativamente diferente mais complexo, mais elaborado do funcionamento dopsiquismo dos demais animais, em razão da presença dos signos.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

45

mediador, recordemos, é um terceiro elemento que intervêm na interação entre os pólos de

uma relação, modificando-a. Desse modo, o signo é um elemento criado pelo próprio homem

para intervir e alterar as relações naturais entre os indivíduos humanos e, conseqüentemente,

as relações entre o indivíduo e o próprio comportamento. Explicita VIGOTSKI (1998a, p. 53-

4):

Toda forma elementar de comportamento pressupõe uma reação direta à situação-problema defrontada pelo organismo o que pode ser representado pela fórmulasimples (S R). Por outro lado, a estrutura de operações com signos requer um elointermediário entre o estímulo e a resposta. Esse elo intermediário é um estímulo desegunda ordem (signo), colocado no interior da operação, onde preenche uma função especial: ele cria uma nova relação entre S e R. O termo colocado indica que oindivíduo deve estar ativamente engajado no estabelecimento desse elo de ligação.Esse signo possui, também, a característica importante da ação reversa (isto é, eleage sobre o indivíduo e não sobre o ambiente).Conseqüentemente, o processo simples estímulo-resposta é substituído por um ato

complexo, mediado (...) Nesse novo processo o impulso direto para reagir é inibido,e é incorporado um estímulo auxiliar que facilita a complementação da operação pormeios indiretos.Estudos cuidadosos demonstram que esse é um tipo básico de organização para

todos os processos psicológicos superiores (...) O elo intermediário nessa fórmulanão é simplesmente um método para aumentar a eficiência da operação pré-existente, tampouco representa meramente um elo adicional na cadeia S R. Namedida em que esse estímulo auxiliar possui a função específica da ação reversa, ele confere à operação psicológica formas qualitativamente novas e superiores,permitindo aos seres humanos, com o auxílio de estímulos extrínsecos, controlar oseu próprio comportamento. O uso de signos conduz os seres humanos a umaestrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológicoe cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura.

Conforme sistematiza LURIA (1991, p. 80-1), no seu Curso de psicologia geral, a

mediação dos signos, essencialmente dos signos lingüísticos (a linguagem), produz ao menos

três alterações fundamentais no psiquismo do homem. Primeiro, a capacidade de discriminar,

dentre a vasta gama de estímulos exteriores, determinados objetos, dirigir-lhes

voluntariamente a atenção e conservá-los na memória (atenção e memória voluntárias).

Segundo, a capacidade de abstrair propriedades específicas dos objetos e de relacioná-las a

determinadas categorias (capacidade de abstração, de generalização, de formação de

conceitos). Terceiro, a possibilidade de conservação, de transmissão e de ampliação dos

conhecimentos adquiridos (linguagem proposicional e abstrata, pensamento verbal e

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

46

raciocínio lógico). Essas aquisições conformam o específico da atividade psíquica do homem

em comparação à atividade psíquica dos outros animais.

Assim, se nos estágios inferiores do psiquismo animal o indivíduo responde

imediatamente aos estímulos e se identifica com o próprio comportamento, na espécie

humana, em razão da presença do signo, o indivíduo tem a possibilidade da reflexão (do

distanciamento ) em relação aos estímulos e às suas próprias ações, tornando-se capaz de

pensar, controlar e planejar o próprio comportamento, bem como de coordená-lo ao

comportamento de seus pares. Em outras palavras, na espécie humana, em razão do signo, o

indivíduo transforma-se em sujeito.

O signo funciona, dessa forma, como o meio de controle do comportamento humano

criado pelo próprio homem e que converte os indivíduos humanos em sujeitos. Portanto, o

signo essencialmente na forma de signo lingüístico, de palavra é o dispositivo pelo qual o

homem constitui e controla a si próprio enquanto ser consciente, enquanto sujeito. Ora, como

o signo e a linguagem são invenções sociais, criações coletivas, o seu poder de constituição e

controle do sujeito é o poder da sociedade, do ser social , de constituição e controle do

homem singular, do indivíduo, do sujeito. Nesse sentido, escreve VIGOTSKI (2000, p. 25):

Ela [a palavra] é sempre comando. Portanto, é o meio fundamental de domínio (...)De onde vem o poder da palavra sobre a conduta? Da real função do comando. Atrás do poder psicológico da palavra sobre as funções psicológicas está o poder real dochefe e do subordinado. A relação das funções psicológicas é geneticamentecorrelacionada com as relações reais entre as pessoas: regulação pela palavra,conduta verbalizada = poder subordinação.

Tal fato significa que concomitante à constituição do sujeito, ocorre a sua constrição

às relações sociais vigentes, aos significados culturais interiorizados no processo de

internalização; em suma, sua subordinação à determinada ordem sócio-cultural. Esse aspecto

do fenômeno, embora seja apontado por Vigotski, não é desenvolvido, nem por ele, nem pelos

demais nomes da Psicologia sócio-histórica. Contudo, fora trabalhado por outros autores das

Ciências Sociais, inclusive pelos próprios Berger e Luckmann, cujo entendimento do processo

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

47

de constituição do sujeito será objeto do capítulo seguinte deste trabalho, e também por

autores que se ocuparam de pensar o fenômeno da ideologia, como Althusser e Sousa filho,

cujas concepções de ideologia serão apontadas em nosso terceiro e último capítulo

recordemos que a explicitação das implicações para o entendimento do modo de atuação da

ideologia nas sociedades humanas das interpretações que fazem do processo de constituição

do sujeito a Psicologia sócio-histórica e a Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann

é um dos objetivos deste trabalho. Por conseguinte, essa questão será retomada mais adiante,

não apenas por ocasião da análise da Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann

(cap. 02), mas também por ocasião da confrontação entre as duas perspectivas: Psicologia

sócio-histórica X Sociologia de Berger e Luckmann, e da análise das implicações dessa

confrontação para o entendimento do modo de operar da ideologia (cap. 03). Por hora,

fiquemos apenas com a indicação preliminar que faz Vigotski, para podermos então retomar a

questão da constituição social do sujeito esta sim, cuidadosamente analisada por Vigotski e

seus parceiros.

O signo, instrumento fundamental desse processo, possui, em Vigotski, uma estrutura

composta por três elementos: o significante ou sinal, o referente e o significado. Conforme

mostra o modelo abaixo:

O significante é a dimensão física do signo (o elemento sonoro, no caso da linguagem falada,

ou o elemento visual, no caso da linguagem escrita). O referente é a coisa que o significante

evoca, seja ela um objeto, uma ação ou uma propriedade; seja ela real (que possui existência

SIGNIFICANTE/SINALREFERENTE

SIGNIFICADO

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

48

objetiva) ou imaginária (que só existe na fantasia dos homens). O significado, por fim, é a

interpretação específica do referente realizada pelo significante e que define o seu ser íntimo

ou essência; em outros termos, é a significação própria que é dada pelo significante a

determinado referente, significação esta que é sempre da ordem de uma atribuição social de

sentido.

Das três dimensões constitutivas do signo, o significado é, sem dúvida, no processo de

constituição do sujeito, a mais importante. Tal fenômeno é devido ao fato do significado

conservar e veicular as experiências acumuladas pela sociedade sobre o referente em questão,

interpretando-o de determinada forma e lhe outorgando uma determinada natureza ou

essência . Assim, ao representar um referente através de uma palavra, uma sociedade não

está simplesmente substituindo uma coisa (real ou imaginária) por outra (um significante),

mas está igualmente analisando-a, identificando seu(s) traço(s) principal(is), e inserindo-a em

todo um sistema de categorias lógico-estruturais e de relações entre essas categorias, de modo

a lhe determinar um lugar e um sentido no mundo. Conseqüentemente, ao interiorizar a

linguagem, o indivíduo não está apenas aprendendo a manipular signos e, desse modo,

desenvolvendo a consciência, as funções psíquicas superiores e se convertendo em sujeito. Ao

mesmo tempo, pela linguagem, ele está assimilando os significados (interpretações, valores,

práticas, condutas etc) partilhados pelos membros de sua sociedade e se convertendo num

sujeito social específico, isto é, num sujeito de uma determinada cultura, que possui uma certa

posição dentro dela e a quem cabe determinadas crenças, valores, práticas, comportamentos

etc., bem como determinado itinerário biográfico. Portanto, se os signos e a linguagem,

abstratamente falando, constitui a todos em sujeitos sociais, são os significados inerentes aos

signos de cada cultura que nos convertem em sujeitos sociais concretos, específicos, aos quais

concerne determinada realidade, determinada personalidade e determinada vida. Afirma

VIGOTSKI (2000, p. 27-33):

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

49

O individual, o pessoal não é contra , mas uma forma superior da sociabilidade(...)O desenvolvimento [do indivíduo] segue não para a socialização, mas para aindividualização das funções sociais (...)A toda ideologia (social) corresponde uma estrutura psicológica de tipo definidomas no sentido da assimilação subjetiva e portadora da ideologia, mas no sentido daconstrução das camadas, de estratos e funções da personalidade.

O processo de internalização (processo de constituição do sujeito), destarte, pode ser

definido como o processo pelo qual o jovem indivíduo humano, nas suas relações com os

demais sujeitos sociais, aprende a identificar e a manipular os signos (especialmente a

linguagem) e a decodificar os seus significados . Ao fazê-lo, ele converte em funções

psicológicas (isto é, em processos mentais interiores), realidades que num primeiro momento

eram exteriores (funções das relações sociais), ao tempo em que também converte os

significados culturais em significados pessoais. Em outras palavras, o processo de

internalização é o processo por meio do qual realidades que existiam socialmente (como

processos interpsíquicos e como significados culturais) são convertidas em realidades

psicológicas (em processos intrapsíquicos e em significados pessoais), constituindo sujeitos

sociais concretos. Conforme escreve LURIA (In VIGOTSKI, LURIA e LEONTIEV, 1988, p.

27):

Desde o nascimento, as crianças estão em constante interação com os adultos, queativamente procuram incorporá-las à sua cultura e à reserva de significados e demodos de fazer as coisas que se acumulam historicamente. No começo, as respostasque as crianças dão ao mundo são dominadas pelos processos naturais,especialmente aqueles proporcionados por sua herança biológica. Mas através daconstante mediação dos adultos, processos psicológicos instrumentais maiscomplexos começam a tomar forma. Inicialmente esses processos só podemfuncionar durante a interação da criança com os adultos. Como disse Vigotski, osprocessos são interpsíquicos, isto é, eles são partilhados entre pessoas. Os adultos,nesse estágio, são agentes externos servindo de mediadores do contato da criançacom o mundo. Mas à medida que as crianças crescem, os processos que eraminicialmente partilhados com os adultos acabam por ser executados dentro daspróprias crianças. Isto é, as respostas mediadoras ao mundo transformam-se em umprocesso intrapsíquico. É através desta interiorização (...) que a natureza social daspessoas torna-se igualmente a sua natureza psicológica.

Portanto, o sujeito é, para a Psicologia sócio-histórica, essencialmente social, cultural.

Nos termos de VIGOTSKI (2000, p. 27): A natureza psicológica da pessoa é o conjunto de

suas relações sociais, transferidas para dentro e que se tornaram funções da personalidade e

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

50

formas da sua estrutura . Leontiev, cujo pensamento, conforme vimos, é um tanto divergente

do pensamento de Vigotski quanto ao modo de compreender a constituição social do sujeito,

não discorda, todavia, da sua natureza (do sujeito) eminentemente cultural. Assim, ele

escreve: O homem é um ser de natureza social (...) Tudo o que tem de humano nele provém

da sua vida em sociedade, no seio da cultura criada pela humanidade (LEONTIEV, s/d, p.

279).

Em suas análises do processo de internalização, Vigotski identifica três etapas ou

momentos básicos na conversão das relações sociais e dos significados culturais em funções

psíquicas e em significados pessoais. Inicialmente, o indivíduo é um ser em si , isto é, um

ser biológico, dado pela natureza, no qual ainda não se faz presente a cultura. Depois, ele se

torna um ser para os outros , ou seja, um ser ao qual os outros (o mundo cultural) atribuem

determinados significados. Por fim, ele converte-se num ser para si , num ser no qual as

significações dos outros se tornaram também significações para si, significações para o

próprio indivíduo.

VIGOTSKI (1998a, p. 74-5) ilustra essas três etapas do processo de internalização

através do seu clássico exemplo do desenvolvimento do ato de apontar . Afirma Vigotski

que o gesto de apontar, tão característico dos bebês humanos, inicialmente, nada mais é do

que um gesto em si , isto é, uma ação voltada para determinado objeto, uma tentativa

frustrada da criança de alcançar alguma coisa: a criança tenta pegar um objeto colocado além

do seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar.

Seus dedos fazem movimentos que lembram o pegar . Os adultos (outros) que cuidam da

criança, então, ao verem o gesto da criança, interpretam-no de alguma forma, dão a ele um

determinado significado, de modo que, de gesto em si , ele converte-se em gesto para os

outros , gesto portador de significado significado que, fique claro, nesse momento, ainda

não existe para a criança, no seu psiquismo, mas existe apenas para os outros, no psiquismo

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

51

desses outros, em razão das relações entre a criança e esses outros: a tentativa malsucedida

da criança engendra uma reação, não do objeto que ela procura, mas de uma outra pessoa.

Conseqüentemente, o significado primário daquele movimento malsucedido de pegar é

estabelecido por outros . Por fim, o significado que os outros atribuem ao gesto em si da

criança vai progressivamente se tornando, em razão de sucessivas repetições da mesma

situação (o gesto em si e a reação subseqüente que ele provoca nos adultos, em virtude

destes lhe atribuírem um significado), compreensível também para a criança, isto é, vai

progressivamente sendo internalizado por ela, de modo que ele ( gesto em si ) termina se

tornando gesto para si , ou seja, um gesto ao qual também a criança atribui um significado:

Somente mais tarde, quando a criança pode associar o seu movimento à situaçãoobjetiva como um todo, é que ela, de fato, começa a compreender esse movimentocom um gesto de apontar. Nesse momento, ocorre uma mudança naquela função domovimento: de um movimento orientado pelo objeto, torna-se um movimentodirigido para outra pessoa, um meio de estabelecer relações. O movimento de pegartransforma-se no ato de apontar.

O momento derradeiro do processo de internalização, o ser para si , é o momento da

constituição do sujeito; isto é, conforme escreve PINO (2000, p. 65-6), ao analisar as três

etapas do processo de internalização em Vigotski, o momento em que o indivíduo se torna

para si próprio através da mediação dos significados culturais aquilo que ele já é para os

outros:

O terceiro momento é aquele em que a significação que os outros atribuem aodado natural se torna significativo para si, ou seja, para o indivíduo singular. É o

momento da constituição cultural do indivíduo quando, através desse outro, eleinternaliza a significação do mundo transformado pela atividade produtiva, o quechamamos de mundo cultural. Portanto, o desenvolvimento cultural [a ontogênesehumana] é o processo pelo qual o mundo adquire significação para o indivíduo,tornando-o um ser cultural. Fica claro que a significação é a mediadora universalnesse processo e que o portador dessa significação é o outro, lugar simbólico dahumanidade histórica.

Portanto, é nas relações sociais, por intermédio do dispositivo da mediação semiótica

(principalmente da linguagem), que ocorre, segundo Vigotski frisemos pela última vez , a

constituição do sujeito: o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, a formação da

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

52

consciência e a estruturação da personalidade (crenças, objetivos, valores, sentimentos e

modos de conduta pessoais). Citando novamente PINO (2000, p. 66):

A problemática colocada pelo papel das relações sociais na constituição cultural dohomem nos conduz a outra questão: a do mecanismo que possibilita a conversãodessas relações em funções do indivíduo e em formas da sua estrutura. Essemecanismo é a significação veiculada/produzida pela palavra do outro (...) Oobjeto a ser internalizado é a significação das coisas, e não as coisas em si mesmas.Portanto, o que é internalizado das relações sociais não são as relações materiais mas a significação que elas têm para as pessoas. Significação que emerge na própriarelação. Dizer que o que é internalizado é a significação dessas relações equivale adizer que o que é internalizado é a significação que o outro da relação tem para o eu; o que, no movimento dialético da relação, dá ao eu as coordenadas para saber quemé ele, que posição social ocupa e o que se espera dele.

É necessário acentuar que as relações sociais no interior das quais se realiza a

comunicação, a transmissão de significados e a constituição do sujeito não podem ser

entendidas simplesmente como relações espontâneas entre individualidades humanas. Essas

relações, em Vigotski, são muito mais do que relações intersubjetivas (relações concretas

entre distintos sujeitos sociais) ainda que também sejam isso. São relações estruturais, isto

é, constitutivas de uma determinada estrutura social (cultura), que possui um modo de

produção com instância de base e, articulados a ele, uma estrutura jurídico-política e

determinadas formas sociais de consciência. Isso significa que as relações dentro das quais o

sujeito se constitui possuem necessariamente duas dimensões interligadas: a estrutural e a

interindividual. A primeira dimensão, a estrutural, diz respeito ao modo de organização da

sociedade, isto é, às instituições econômicas, políticas, jurídicas, religiosas, educativas etc.

por intermédio das quais se realiza a macro-organização social, e que definem o lugar e os

papéis de cada indivíduo dentro da sociedade como um todo. A segunda dimensão, a

interindividual, diz respeito às relações concretas que o indivíduo estabelece com

determinados sujeitos com os quais ele entra diretamente em interação, ao longo de sua vida,

relações essas que evidentemente são determinadas pela localização relativa de cada indivíduo

no interior da macro-estrutura social. Desse modo, de forma alguma é possível, na

interpretação da Psicologia sócio-histórica, separar esses dois planos e considerar as relações

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

53

interindividuais como absolutamente independentes da estrutura social como fazem muitos

intérpretes do pensamento de Vigotski, conforme denuncia DUARTE (1999, 2000). Nos

termos mais precisos de PINO (2000, p. 64-5):

Na leitura dos trabalhos de Vigotski seria um grande equívoco separar estes doisplanos, como se as relações entre as pessoas nada tivessem a ver com as estruturassociais da sociedade (...) Se Vigotski concentra suas análises nas relações sociaisconcretas entre pessoas é porque ele está preocupado em mostrar como elas setornam funções do indivíduo e formas de sua estrutura (...) Mas a lógica de suaanálise pressupõe que estas relações se situam no quadro das relações estruturais dasociedade determinadas pelo modo de produção. Independente do que o leitor pensea respeito da análise de Marx e Engels, fazer uma leitura diferente de Vigotskiconstitui, certamente, um reducionismo do pensamento do autor.

Outro elemento importante a destacar, no corpo teórico da Psicologia sócio-histórica, é

que o indivíduo humano não pode ser considerado como um ser absolutamente passivo no

decorrer do processo de sua constituição em sujeito, como pode parecer a uma análise

superficial. Pois, conforme a lógica dessa escola, o indivíduo começa a forjar a própria

consciência pessoal e a estruturar a personalidade a partir das primeiras experiências e

internalizações. Dessa forma, a partir dessa consciência e dessa personalidade incipientes, o

indivíduo (sujeito em formação) começa a interagir com o ambiente social e a resignificar os

conteúdos culturais, internalizando-os sempre de uma forma singular, isto é, convertendo-os

sempre em sentidos pessoais. O sentido pessoal dos significados sociais é, conforme

escreve LURIA (2001, p. 45), o significado individual , ou seja, a primazia e a intensificação

que realiza o sujeito, no significado social (que é sempre o sistema de relações que se formou

objetivamente no processo histórico para praticamente todas as pessoas), daqueles aspectos

ligados à situação dada e com as vivências afetivas do sujeito , no ato de sua conversão em

significado pessoal. Tal fato significa, pois, que o indivíduo possui sempre uma postura ativa

no próprio processo de sua constituição em sujeito. Desse modo, fica salvaguardada, na

Psicologia sócio-histórica, a singularidade de cada sujeito, bem como a possibilidade da sua

resistência ou mesmo insurreição aos significados culturais, às relações sociais vigentes e à

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

54

ordem social possibilidade que, todavia, tal qual a submissão à sociedade, também não é

analisada pelos teóricos dessa escola.

Neste capítulo, portanto, sistematizamos o modo como a Psicologia sócio-histórica, a

partir de fundamentos filosóficos e sociológicos marxistas, interpreta o processo de

constituição do sujeito. No próximo capítulo, trataremos da Sociologia do conhecimento de

Berger e Luckmann, vertente teórica que, apesar de partir de pressupostos decorrentes de uma

aplicação da filosofia fenomenológica de Edmund Husserl para a análise dos fenômenos

sociais, tal qual fora proposta por Alfred SHUTZ (1979), chega, não obstante, a conclusões

sobre a constituição do sujeito que são bastante semelhantes às conclusões dos autores cujo

pensamento fora objeto deste capítulo.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

55

2 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA SOCIOLOGIADO CONHECIMENTO DE BERGER E LUCKMANN

A construção social da realidade é o título, em português, da obra escrita

conjuntamente por Peter L. Berger e Thomas Luckmann, publicada pela primeira vez nos

Estados Unidos no ano de 1966. Trata-se, como indica o próprio subtítulo ( um tratado de

sociologia do conhecimento ) e a primeira frase do próprio texto, de um tratado teórico

sistemático de sociologia do conhecimento (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 05).

Subdisciplina da Sociologia, a Sociologia do conhecimento é entendida pelos autores

como a área da Sociologia encarregada de analisar o processo pelo qual a realidade social é

socialmente construída (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 14). Berger e Luckmann

esclarecem que essa compreensão do objeto de estudo da Sociologia do conhecimento difere

da compreensão que fizeram da mesma disciplina autores do passado. Dentre aqueles que se

ocuparam com a sociologia do conhecimento (Max Scheler, Karl Mannheim, Robert Merton,

Theodor Geiger etc.), a grande maioria focalizou o desenvolvimento intelectual das

sociedades, mais precisamente, a análise das relações entre condições histórico-sociais e

pensamento teórico. A maior contribuição desse enfoque foi, segundo Berger e Luckmann,

trazer à tona uma série de dificuldades epistemológicas e metodológicas relativas ao ideal de

objetividade e neutralidade do conhecimento científico. Todavia, tal enfoque obstruiu o

desenvolvimento das mais significativas possibilidades da disciplina. Para os autores, o

conhecimento teórico não é o mais importante elemento da realidade empírica das sociedades

humanas, mas sim o conhecimento comum , que tece efetivamente a grande maioria dos

significados partilhados pela maioria dos membros de uma sociedade, permitindo assim uma

existência coletiva em comum, a construção de uma realidade em comum:

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

56

Exagerar a importância do pensamento teórico na sociedade e na história é umnatural engano dos teorizadores (...) As formulações teóricas, quer sejam científicasou filosóficas que sejam até mitológicas, não esgotam o que é real para os membrosde uma sociedade. Sendo assim, a sociologia do conhecimento deve acima de tudoocupar-se com o que os homens conhecem como realidade em sua vida cotidiana,vida não teórica ou pré-teórica. Em outras palavras, o conhecimento do sensocomum, e não as idéias [conhecimento teórico], deve ser o foco central dasociologia do conhecimento. É precisamente este conhecimento que constitui otecido de significados sem o qual nenhuma sociedade poderia existir (BERGER eLUCKMANN, 1985, p. 29-30).

A razão pela qual a constituição do conhecimento comum identifica-se à própria

constituição da realidade social decorre das concepções de realidade, de conhecimento e de

sociedade próprias a Berger e Luckmann. Essas concepções serão explicitadas adiante, nas

seções que tratam, respectivamente, dos pressupostos ontológico-epistemológicos (2.1) e da

idéia de sociedade (2.2) presente na obra conjunta dos autores.

Com o intuito, então, de efetivar o projeto de elaboração de uma Sociologia do

conhecimento que trate da construção social da realidade, Berger e Luckmann tomam por

fundamento, essencialmente: concepções ontológico-epistemológicas da Fenomenologia de

Alfred Schutz; concepções sociológicas de dois clássicos do pensamento sociológico: Émile

Durkheim e, principalmente, Max Weber; bem como concepções da Psicologia social de

Georg H. Mead.

Ao tecerem sua argumentação sobre a constituição da realidade social, em razão do

modo próprio como essa (realidade social) é considerada pelos autores, Berger e Luckmann

tratam também (e inevitavelmente) do processo de constituição do sujeito. Bem entendido,

temos no pensamento de Berger e Luckmann, como parte indissociável de sua Sociologia do

conhecimento, uma teorização sobre a constituição do sujeito.

É bom frisar como, aliás, fazem os próprios autores que o entendimento que

Berger e Luckmann fazem da Sociologia do conhecimento desloca essa disciplina

precisamente para o centro da teoria sociológica, posto que ela na perspectiva deles se

debruça exatamente sobre a questão, primeira e fundamental para a Sociologia, da

constituição da própria sociedade.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

57

Além da obra supracitada em parceria com Luckmann, existem, traduzidos para o

português, outros textos de Berger, escritos individualmente ou em parceria com Brigitte

Berger, que se inserem igualmente no interior da temática da construção social da realidade:

Perspectivas sociológicas, O dossel sagrado (escritos individualmente), O que é uma

instituição social? e Socialização: como ser um membro da sociedade (escritos em parceria

com Brigitte Berger). Esses textos serão igualmente utilizados por nós neste capítulo, nos

pontos em que eles esclarecem, ilustram e/ou desenvolvem as idéias expostas em A

construção social da realidade. Não existem textos de Luckmann sobre a mesma temática

disponíveis em português.

2.1 Pressupostos ontológico-epistemológicos da sociologia do conhecimento de Berger eLuckmann

Berger e Luckmann parecem considerar que o ideal, em termos de análise da vida

social, é fazer uma sociologia eminentemente empírica, livre de pressupostos filosóficos.

Logo no início do primeiro capítulo de A construção social da realidade, eles escrevem:

Sendo nosso propósito neste trabalho a análise sociológica da realidade da vidacotidiana (...) e estando nós apenas tangencialmente interessados em saber como esta realidade pode aparecer aos intelectuais em várias perspectivas teóricas, devemoscomeçar pelo esclarecimento dessa realidade, tal como é acessível ao senso comumdos membros ordinários da sociedade (...) Nosso empreendimento, por conseguinte,embora de caráter teórico, engrena-se com a compreensão de uma realidade queconstitui a matéria da ciência empírica da sociologia, a saber, o mundo da vidacotidiana.

Deveria, portanto, ser evidente que nosso propósito não é envolver-nos na filosofia (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 35).

Todavia, como bons pensadores que são, Berger e Luckmann sabem que tal projeto é

irrealizável, utópico, que sempre subjaz a qualquer abordagem empírica da realidade, quer os

pesquisadores tenham consciência disto ou não, algum pressuposto sobre o status ontológico

último daquilo que está sendo investigado. Desse modo, logo após a passagem supracitada,

eles ponderam: contudo, considerando o particular propósito do presente tratado, não

podemos contornar completamente o problema filosófico (BERGER e LUCKMANN, 1985,

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

58

p. 36). Por conseguinte, parece que a adesão que realizam ao projeto da Sociologia

fenomenológica de Alfred Shutz decorre da avaliação que eles fazem da perspectiva

fenomenológica como uma solução adequada do problema filosófico (BERGER e

LUCKMANN, 1985, p. 36), dada a proposta metodológica de Edmund Hursserl (filósofo que

sistematiza os princípios da fenomenologia) de uma suspensão dos juízos relativos aos

objetos do pensamento o que ele chama de redução fenomenológica (epoché): a colocação

entre parênteses da concepção natural de realidade (ou seja, da crença de que ela possui

existência em si, objetiva, independente da consciência) e a consideração da mesma apenas na

sua correlação com a consciência (isto é, naquilo que ela se torna quando visada pela

consciência).

Bem entendido, Husserl não irá questionar a realidade do mundo objetivo. Todavia,

irá suspender intencionalmente uma de suas dimensões - irá se abster de qualquer juízo

sobre o status ontológico deste mundo independentemente da consciência diante da qual ele

aparece como mundo . Nas palavras mais claras de Angela Ales BELLO (2006, p. 23-4),

comentando o método fenomenológico:

Existem os fatos? Certamente existem. Mas não nos interessa os fatos enquantofatos, interessamo-nos pelo sentido deles. Por isso posso também colocar entreparênteses a existência dos fatos para compreender sua essência (...) a verdade, doponto de vista humano, reside no sentido, não no fato.

A concepção de realidade que embasa tal proposta metodológica, conseqüentemente,

será compatível com o ideal de um saber eminentemente empírico que parece mobilizar

Berger e Luckmann, posto que ela consegue se subtrair ao problema metafísico, sem, contudo,

negá-lo a rigor, abrindo, desta forma, caminho para a investigação das coisas mesmas ,

como dizia Husserl. Citando agora Rodolfo PETRELLI (2001, p. 24):

A fenomenologia é (...) uma ciência declaradamente descritiva da realidade: são osfatos, nas suas constantes relações significativas, a se constituírem como possíveis enovas teorias científicas do conhecimento (...)O que a fenomenologia garante à ciência é a sua própria pureza, defendendo-a das

contaminações ideológicas. Neste sentido, a fenomenologia se identifica com umaautêntica exigência ética, não manipuladora da realidade.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

59

O entendimento da ontologia de Husserl é facilitado se situarmos seus pressupostos

em relação à ontologia de Immanuel Kant e de Georg W. Friedrich Hegel, com as quais ela

polemiza. Em Kant, a realidade possui uma essência, a coisa em si , incognoscível para a

consciência humana. Sendo a coisa em si inatingível pela consciência (incognoscível), a

realidade e a consciência encontram-se, no pensamento de Kant, necessariamente separadas,

dissociadas. Hegel, por sua vez, nega a dissociação entre realidade e consciência empreendida

por Kant, afirmando a realidade como uma concretização da própria consciência: o modo

como a consciência se torna as próprias coisas, torna-se mundo ela mesma (CHAUÍ, 2005, p.

203). Husserl, na construção de sua ontologia fenomenológica, recusará de Kant a tese da

divisibilidade da realidade em essência e aparência (ou, nos termos do próprio Kant, em

coisa em si e fenômeno ), afirmando, como Hegel, a unidade da realidade. Todavia,

distintamente de Hegel, Husserl não dirá que a consciência se confunde com o próprio

mundo, com a própria realidade. De outro modo, a consciência é apenas aquilo que dá sentido

ou significação às coisas. Portanto, a consciência não é o mundo, a realidade, mas apenas

aquilo que transforma o dado, o existente, em mundo , em realidade , por meio da

atribuição de sentido, de significado. Conforme escreve CHAUÍ (2005, p. 203), interpretando

Husserl:

Kant equivocou-se ao distinguir fenômeno e nôumeno, pois, com essa distinção,manteve a velha idéia metafísica da realidade em si ou do ser enquanto ser ,mesmo que dissesse que não a podíamos conhecer (...) Hegel, por sua vez, aboliu adiferença entre a consciência e o mundo (...)Contra Kant, Husserl afirma que não há nôumeno, não há coisa em si

incognoscível. Tudo o que existe é fenômeno e só existem fenômenos. Fenômeno éa presença real de coisas reais diante da consciência; é aquilo que se apresentadiretamente, em pessoa , em carne e osso , à consciência.Contra Hegel, Husserl afirma que a consciência possui uma essência que é

diferente das essências dos fenômenos, pois ela é doadora de sentido às coisas eestas são receptoras de sentido. A consciência não se encarna nas coisas, não setorna as próprias coisas, mas dá significação a elas, permanecendo diferente delas.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

60

Destarte, para Husserl, repetimos, existe o dado , o material , as coisas

objetivas 14 independentes da consciência. Contudo, as coisas objetivas só constituem um

mundo , uma realidade , a partir do momento em que a consciência as toma como tal,

atribuindo-lhes sentidos , significados e, por intermédio deles, atribuindo-lhes uma

essência . Desse modo, embora o dado , o material , as coisa objetivas , existam em si

e independente da consciência, elas apenas existem como parte de um mundo , de uma

realidade que possui determinada essência através da consciência. A realidade e a sua

essência, pois, não possuem autonomia ontológica independente da consciência. É essa, por

intermédio dos significados que atribui ao dado , ao material , às coisas objetivas , que

constitui àquelas (a realidade e a sua essência). Portanto, para Husserl, a realidade é o

conjunto de coisas captadas e significadas pela consciência; ou seja, é algo destituído de

autonomia, privado de caráter absoluto, e que se manifesta apenas pela intencionalidade15 e

pelos significados atribuídos pela consciência.

É importante observar que, no bojo dessa concepção de realidade, o conhecimento

ganha o status de manifestação subjetiva da mesma. Em outros termos, na ontologia

fenomenológica, o conhecimento é a dimensão ou o correlato subjetivo da realidade, sua

manifestação na consciência humana; portanto, dimensão ao mesmo tempo inerente e

constitutiva da própria realidade o que, aliás, explica o fato, aludido atrás, da análise do

processo de constituição do conhecimento coincidir, na obra de Berger e Luckmann, com a

análise do processo de construção da própria realidade social.

14 Quando falamos de coisas objetivas não estamos nos referindo apenas às coisas físicas, mas também aosfenômenos sociais (por exemplo, às relações entre os membros de uma coletividade humana) e aos fenômenos psíquicos (por exemplo, aos sentimentos humanos).

15 Hursserl designa de intencionalidade o atributo fundamental da consciência, a saber, o fato dela estar sempreorientada para alguma coisa, de ser sempre consciência de alguma coisa. Conforme escrevem BERGER eLUCKMANN (1985, p. 37), quando explicitam, em A construção social da realidade, os pressupostosontológicos fenomenológicos que outorgam consistência lógica às suas análises da realidade social: aconsciência é sempre intencional; sempre tende para ou é dirigida para objetos. Nunca podemos apreender umsuposto substrato de consciência enquanto tal, mas somente a consciência de tal ou qual coisa .

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

61

É essa ontologia-epistemologia (sinteticamente retratada) que serve de lastro filosófico

às idéias de BERGER e LUCKMANN, conforme eles explicitam logo no primeiro parágrafo

de seu trabalho conjunto, quando definem, sem entrar em minúcias filosóficas , a realidade

como sendo uma qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos terem um ser

independente de nossa própria volição ; e o conhecimento como a certeza de que os

fenômenos são reais e possuem características específicas (1985, p. 11).

Com Alfred Schutz, essas concepções filosóficas se transformarão em uma orientação

para a abordagem dos fenômenos sociais16, na medida em que ele se dedica à investigação do

modo como os indivíduos, por intermédio das significações conscientes que outorgam às

coisas, constroem e reconstroem o mundo social, a realidade social . Nesse projeto, Schutz

irá considerar, evidentemente (posto que não existe distinção, para a fenomenologia, entre

essência e aparência na realidade como um todo e, por conseguinte, também na realidade

social), o mundo das experiências cotidianas, o mundo da vida (mundo diretamente

percebido por nossas consciências), como a realidade social por excelência - realidade esta

que, repetimos, é constituída pela própria consciência humana, ou, mais precisamente, pelos

sentidos ou significações derivados das interações ordinárias entre os indivíduos humanos.

Desse modo, a Sociologia torna-se, em Schutz, uma ciência que busca não uma explicação

causal do mundo social, mas sim uma explicação compreensiva e descritiva, isto é, uma

explicação que visa compreender as diversas significações que motivam e constituem as ações

humanas e, ao mesmo tempo, descrever as suas conseqüências em termos de ordenação do

mundo social. Assim, partindo da Fenomenologia de Husserl, Schutz chega praticamente ao

mesmo projeto da Sociologia compreensiva de Max Weber, porém dotando-a do suporte

ontológico ausente nesse autor.

16 Na verdade, o que Schurtz empreende é uma aplicação, na esfera dos fenômenos sociais, da propostametodológica desenvolvida por Husserl a partir dos pressupostos ontológico-epistemológicos apresentadosacima. Segundo BELLO (2006, p. 14), a principal sistematização do método fenomenológico feita pelo próprioHusserl encontra-se na obra Idéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

62

Com efeito, para WEBER (1989, p. 09) a Sociologia é a ciência que tem como meta a

compreensão interpretativa da ação social de maneira a obter uma explicação de suas causas,

de seu curso e dos seus efeitos . Em outros termos, Weber defendia que uma ciência empírica

da realidade social somente seria possível por intermédio de uma postura metodológica

individualista (que tomasse como ponto de partida os indivíduos isolados e as suas atividades)

e compreensiva (que tivesse como alvo a compreensão do sentido subjetivamente outorgado

pelos indivíduos às suas atividades). Destarte, tomando como fundamento filosófico a

Fenomenologia de Husserl, Shutz vislumbrará na Sociologia de Weber (contemporânea ao

pensamento de Husserl: ambos viveram suas vidas e produziram suas obras entre as últimas

décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX) várias convergências com o

pensamento fenomenológico convergências estas que ele tratará, então, de desenvolver.

A Sociologia de Shutz constitui-se, portanto, numa confluência entre a ontologia-

epistemologia fenomenológica e a Sociologia compreensiva de Weber. Na verdade, em Shutz,

conforme já dissemos, o pensamento fenomenológico é convocado a outorgar fundamentação

filosófica ao projeto weberiano da Sociologia como ciência empírica da ação social.

A proposta de Shutz de uma Sociologia fenomenológica será incorporada pela

Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann, sendo justamente a causa do

deslocamento dessa subdisciplina da periferia da teoria sociológica lugar que ele ocupava,

até então, na tradição desta ciência para o seu núcleo lugar que ela passa a ocupar na

perspectiva de Berger e Luckmann. Ora, se não existe na realidade diferença entre essência e

aparência, se a realidade é toda ela fenômeno , isto é, fusão de objetividade e significado, e

se os significados são propriedades atribuídas às coisas pela consciência humana, sendo o

conhecimento o ato mesmo de atribuir e reconhecer esses significados, então a Sociologia do

conhecimento, ao tomar como objeto o conhecimento humano, estuda o próprio processo de

constituição da realidade social. Conforme escrevem BERGER e LUCKMANN (1985, p. 14):

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

63

A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que passa porconhecimento em uma sociedade, independente da validade ou invalidade última

(por quaisquer critérios) desse conhecimento . E na medida em que todoconhecimento humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em situações

sociais, a sociologia do conhecimento deve procurar compreender o processo peloqual isso se realiza, de tal maneira que uma realidade admitida como certasolidifique-se (...) Em outras palavras, (...) a sociologia do conhecimento diz respeito à análise da construção social da realidade.

Para BERGER e LUCKMANN, a Sociologia, como ciência empírica, pode e deve se

dedicar a esta questão sem fazer uso de nenhuma especulação filosófica, tomando como dado

os fenômenos particulares que surgem dentro dela [realidade social], sem maiores

indagações sobre os fundamentos dessa realidade, tarefa já de ordem filosófica (1985, p. 36).

Conforme já aludimos, o método fenomenológico, método puramente descritivo, e como tal

empírico (1985, p. 36), é o método que eles julgam mais conveniente (1985, p. 36) para

essa tarefa. Portanto, partindo exclusivamente dos indivíduos, de suas interações e dos

significados que eles outorgam às suas próprias experiências (ou seja, incorporando as

diretrizes fenomenológicas da sociologia de Schutz), Berger e Luckmann sistematizam uma

explicação sobre o processo de constituição das sociedades humanas na qual se encontra

também presente, conforme veremos nas seções a seguir, uma concepção sobre o processo de

constituição dos sujeitos humanos.

2.2 Cultura e sociedade na Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann

Incorporando as diretrizes metodológicas da sociologia fenomenológica de Schutz,

Berger e Luckmann partem, repetimos, de uma visão de sociedade sem pressupostos , sem

suposições ontológicas, que toma como fundamento as interações concretas dos indivíduos

humanos no espaço social e os processos da consciência humana em termos de percepção e

atribuição de significados (produção de conhecimentos) aos objetos em geral das experiências

vividas (coisas, ações, relações etc.). Conseqüentemente, eles tomam a realidade cotidiana, tal

como ela se oferece à experiência ordinária do homem comum (isto é, o mundo da vida de

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

64

Schutz), como a realidade por excelência , ponto de partida e objeto da investigação

científica. Essa posição fica bem clara na lavra dos autores: a vida cotidiana apresenta-se

como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles

na medida em que forma um mundo coerente. Como sociólogos tomamos essa realidade por

objeto de nossas análises (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 35).

A partir dessa postura fenomenológica, o problema teórico central da Sociologia

consiste em determinar o modo como os indivíduos, a partir de suas interações e dos

significados que atribuem às coisas, constituem o mundo social, o mundo da sociedade.

Conforme escrevem os próprios BERGER e LUCKMANN (1985, p. 34): a questão central

da teoria sociológica pode (...) ser enunciada da seguinte maneira: como é possível que

significados subjetivos se tornem facticidade objetiva ? Ou (...) como é possível que a

atividade humana produza um mundo de coisas ? 17.

Para responder a essa questão (o que significa formular um conceito de sociedade a

partir do enfoque fenomenológico adotado pelos autores), Berger e Luckmann necessitam,

fatalmente, de uma concepção de homem a partir da qual seja possível considerar os

indivíduos humanos em suas relações. Dito de outro modo, o conceito de sociedade depende

da natureza das interações entre os indivíduos humanos e estas, por sua vez, dependem de

uma concepção determinada sobre a natureza humana . Berger e Luckmann, então, afirmam

apanhar no pensamento de Marx e na biologia humana a concepção antropológica que serve

de suporte às suas análises sobre as interações entre os indivíduos e, por conseguinte, sobre a

natureza do mundo social. Eles escrevem: nossos pressupostos antropológicos são

fortemente influenciados por Marx, especialmente por seus primeiros escritos, e pelas

17 Conforme já dissemos anteriormente, essa postura metodológica da fenomenologia coincide com o enfoqueteórico da sociologia de WEBER, que considera a realidade social como constituída pelas ações significativasdos indivíduos humanos e que toma, conseqüentemente, a ação social , isto é, a ação cuja intenção fomentadapelos indivíduos envolvidos se refere à conduta de outros, orientando-se de acordo com ela (1987, p. 09), comoo objeto da sociologia.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

65

implicações antropológicas tiradas da biologia humana por Helmuth Plessner, Arnold Gehlen

e outros (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 31)18.

Fazendo uso, assim, do que eles compreendem ser uma concepção de homem

proveniente do marxismo e da biologia humana, Berger e Luckmann irão afirmar que o que

caracteriza o homem é a ausência de uma natureza humana biologicamente determinada. Os

homens não possuem uma relação fixa , dada pela natureza, com o ambiente. Antes, o que

define o comportamento humano é a plasticidade e a abertura para a experiência.

Conseqüentemente, eles irão dizer, como fazem Marx e Engels, que o homem constrói sua

própria natureza, ou, mais simplesmente, que o homem produz a si mesmo (BERGER e

LUCKMANN, 1985, p. 72).

Esse processo de produção do homem por ele mesmo coincide com o processo de

produção da cultura e da sociedade. Nesse ponto, mais do que a concepção antropológica,

Berger e Luckmann incorporam a concepção dialética de Marx e Engels sobre as relações

homem sociedade. O homem produz a sociedade e a sociedade produz o homem o que

significa dizer: o homem produz a si mesmo por intermédio da sociedade. Escreve BERGER

em O dossel sagrado (1985, p. 15-16):

A sociedade é um fenômeno dialético por ser um produto humano, e nada mais que um produto humano, que no entanto retroage continuamente sobre o seu produtor(...) As duas asserções, a de que a sociedade é produto do homem e a de que ohomem é produto da sociedade, não se contradizem. Refletem, pelo contrário, ocaráter inerentemente dialético do fenômeno social.

18 Esses pressupostos antropológicos de Berger e Luckmann serão determinantes para certo afastamento daperspectiva dos autores em relação a outros desenvolvimentos do pensamento fenomenológico, dentre os quaisaqueles que têm como matriz o pensamento do próprio E. Husserl e da sua principal discípula: Edith Stein.Distintamente de Berger e Luckmann, Husserl e Stein têm uma concepção essencialmente idealista do homem,na qual a espiritualidade é aquilo que caracteriza fundamentalmente o ser humano (BELLO, 2006).Evidentemente, essa distinção no que se refere à concepção de homem tem como implicação diferentescompreensões das estruturas sociais que se formam a partir das interações humanas, bem como distintasconcepções da natureza das relações indivíduo-sociedade (ou pessoa-sociedade, como prefere Stein, em razão desua compreensão própria do ser humano) e dessemelhantes entendimentos do próprio processo de constituiçãodos sujeitos. Desse modo, podemos dizer que Berger e Luckmann incorporam a epistemologia e a metodologiaHusserliana, essencialmente pela apropriação que delas faz Shutz, mas recusam as conclusões antropológicas epsicológicas a que chegam Husserl e Stein e muitos outros fenomenólogos por meio da mesma epistemologia e metodologia.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

66

E esclarece, em nota de rodapé, de modo a não deixar dúvidas quanto à origem marxista desta concepção:

O termo dialético , aplicado à sociedade, é entendido aqui em seu sentidomarxista, em particular, como foi desenvolvido nos Economic and PhilosophicalManuscripts of 1844.

A produção da sociedade e de si mesmo ocorre pela própria atividade física e mental

do homem. Fazendo uso ainda do que eles acreditam ser uma Antropologia marxista,

BERGER e LUCKMANN afirmam que o homem não poderia existir sem um contínuo

processo de exteriorização sobre o mundo: O ser humano é impossível em uma esfera

fechada de interioridade quiescente. O ser humano tem de estar continuamente se

exteriorizando na atividade . Esta exteriorização contínua é decorrente da estrutura biológica

humana ( funda-se no equipamento biológico do homem ), na qual ela radica como uma

necessidade fundamental: a inerente instabilidade do organismo humano obriga o homem a

fornecer a si mesmo um ambiente estável (1985, p. 76-7).

O resultado integral e objetivado da contínua exteriorização humana é denominado,

por Berger e Luckmann, de cultura . Portanto, tal qual faz a Psicologia sócio-histórica,

Berger e Luckmann concebem a cultura como a totalidade dos produtos, materiais e ideais, da

atividade humana. Assim escreve de modo bastante claro BERGER, ainda em O dossel

Sagrado (1985, p. 19) aliás, em passagem que poderia muito bem passar por um trecho de

Vigotski, Leontiev ou Luria sobre o caráter duplamente mediado da atividade humana que

engendra a cultura:

A cultura consiste na totalidade dos produtos do homem. Alguns destes sãomateriais, outros não. O homem produz instrumentos de toda espécie imaginável, epor meio deles modifica o meio ambiente físico e verga a natureza à sua vontade. Ohomem produz também a linguagem e, sobre esse fundamento e por meio dele, umimponente edifício de símbolos que permeiam todos os aspectos de sua vida. Háboas razões para pensar que a produção de uma cultura não-material foi sempre depar com a atividade do homem de modificar fisicamente o seu ambiente.

Em nota de rodapé, ao final do trecho acima, BERGER afirma o conceito de

trabalho , tal como formulado por Marx, como a categoria sociológica capaz de representar a

atividade humana, material e não-material, constitutiva da cultura: o vínculo entre produção

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

67

material e não-material foi desenvolvido por Marx no conceito de trabalho (que não pode

ser entendido meramente como categoria econômica) (1985, p. 19).

É no bojo desse mundo cultural edificado pela atividade humana que surge, enquanto

dimensão específica e fundamental, a sociedade conforme a compreendem Berger e

Luckmann. Para esses autores, ela se constitui na dimensão da cultura que se ocupa de

determinar o modo das interações entre os homens. Nas palavras do próprio BERGER (1985,

p. 19-20): a sociedade, naturalmente, nada mais é do que parte e parcela da cultura não-

material. A sociedade é aquele aspecto desta última que estrutura as incessantes relações do

homem com seus semelhantes .

Trazendo para o nosso cenário o conceito de instituição social , fundamental no

pensamento de Berger e Luckmann, a sociedade pode ser também definida talvez de forma

mais apropriada como a totalidade das instituições existentes em uma cultura. O conceito de

instituição designa uma padronização compartilhada das ações cotidianas em esferas

específicas da vida social. Tais padronizações, quando se consolidam (isto é, quando se

cristalizam no tempo, sendo transmitidas de geração para geração, e assim se convertem, a

rigor, em instituições ), transformam-se em programas para a conduta individual impostos

pela sociedade (BERGER e BERGER in FORACCHI e MARTINS, 1977). Desse modo,

consistindo concretamente num conjunto articulado de idéias, normas, valores e sentimentos

engendrados socialmente e que orientam a ação em campos específicos da conduta humana

(trabalho, sexualidade, comunicação, relações sociais, relações com a natureza, relações com

o sobrenatural etc.), as instituições se constituem, efetivamente, em métodos pelos quais a

conduta humana é padronizada, obrigada a seguir por caminhos considerados desejáveis pela

sociedade (BERGER, 1986, p. 101). Portanto, para Berger e Luckmann, a sociedade consiste

no complexo de valores, normas, regras e papéis sociais que não apenas estruturam, mas

também coagem (conforme logo desenvolveremos), as ações humanas na cultura.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

68

Enquanto dimensão da cultura, a sociedade é um produto humano como qualquer

outro elemento cultural, resultado da contínua exteriorização humana. Nos termos de

BERGER (1985, p. 20): como apenas um elemento da cultura, a sociedade compartilha do

caráter desta como produto humano. A sociedade é constituída e mantida por seres humanos

em ação. Não possui ser algum, realidade alguma, independente de tal atividade .

Todavia, embora diga respeito apenas a uma dimensão da cultura, a sociedade é,

conforme já dissemos, uma dimensão fundamental, pois compartilha com os instrumentos e

os sinais lingüísticos a condição de elemento imprescindível à própria constituição da cultura.

Pois esta, enquanto produção humana, só é possível pela sociedade, isto é, pela atividade

conjunta e coordenada dos homens. Assim, se a sociedade é uma dimensão da cultura, ao

mesmo tempo, é apenas em sociedade que os homens produzem a cultura19. Citemos mais

uma vez BERGER (1985, p. 20-21):

A atividade humana de construir um mundo é sempre e inevitavelmente umempreendimento coletivo (...) É trabalhando juntos que os homens fabricaminstrumentos, inventam línguas, aderem a valores, concebem instituições, e assimpor diante (...) A sociedade é, portanto, não só o resultado da cultura, mas umacondição necessária dela. A sociedade estrutura, distribui e coordena as atividadesde construção do mundo desenvolvidas pelos homens. É só na sociedade que osprodutos dessas atividades podem durar.

Mais do que necessária à constituição da cultura, a sociedade, enquanto um conjunto

de instituições específicas, constitui-se num sistema que é fundamental para a configuração

particular de cada cultura. Em outros termos, a natureza das instituições de cada cultura

(isto é, as normas, crenças, valores, sentimentos e papéis sociais concretos que constituem os

conteúdos de cada instituição particular) e as articulações que se estabelecem entre elas

formam aquilo que as Ciências Sociais designam de estrutura social , que é um dos

componentes básicos da identidade de qualquer cultura. Nas palavras de BERGER e

LUCKMANN (1985, p. 52): a estrutura social é a soma dessas tipificações e dos padrões

19 Nesse ponto, mais uma vez, a dialética marxiana se faz presente na Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann, não obstante a orientação metodológica fenomenológica deles.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

69

recorrentes de interação estabelecidos por meio delas. Assim sendo, a estrutura social é um

elemento essencial da realidade da vida cotidiana .

O processo de constituição das instituições sociais e, conseqüentemente, de

constituição de cada sociedade e de sua estrutura específica é explicado, por Berger e

Luckmann, como um processo de tipificação recíproca das ações habituais por parte dos

sujeitos sociais. Em outros termos, os indivíduos humanos, nas interações diárias (dada à

ausência de instintos e em face da propensão natural de economizar esforços e maximizar

resultados) tendem a repetir padrões de comportamento experimentados anteriormente com

sucesso. Desse modo, o comportamento torna-se um hábito, sendo recorrentemente executado

e libertando os indivíduos do desgaste de tomar novas decisões a cada novo momento.

Ainda mais, qualquer indivíduo humano se torna capaz de perceber os padrões que regem o

comportamento dos demais e de reproduzir, se necessário (a partir ou não de um treinamento

adequado), esses padrões processo que configura os papéis sociais : respostas tipificadas a

situações tipificadas. Esse processo de formação de hábitos coletivos e de papéis sociais é o

que engendra as instituições. A institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação

recíproca das ações habituais por tipos de atores. Dito de maneira diferente, qualquer uma

dessas tipificações é uma instituição (BERGER e LUCKMANN, 1985 p. 79).

BERGER e LUCKMANN (1985, p. 81-2) ilustram esse processo por meio da situação

imaginária de duas pessoas, provenientes de culturas diferentes, que, por uma razão qualquer,

encontram-se isoladas numa ilha deserta:

Logo que A e B entram em ação comum, qualquer que seja a maneira, produzir-se-ão rapidamente tipificações. A observa B executar. Atribui motivos às ações de B e,ao ver repetirem-se as ações, tipifica os motivos como recorrentes. À medida que Bcontinua operando, A pode logo ser capaz de dizer para si mesmo: Ah! Lá vai elede novo . Ao mesmo tempo, A pode admitir que B está fazendo a mesma coisa comrelação a ele. Desde o início tanto A quanto B admitem esta reciprocidade datipificação. No curso de sua interação estas tipificações serão expressas em padrõesespecíficos de condutas. Isto é, A e B começarão a desempenhar papéis vis-à-vis umdo outro. Isto acontecerá mesmo se cada qual continuar a realizar ações diferentesdas do outro. A possibilidade de tomar o papel do outro aparecerá com relação àsmesmas ações executadas por ambos. Isto é, A apropriar-se-á interiormente dosreiterados papéis de B, fazendo deles o modelo do seu próprio desempenho (...)

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

70

Assim surge uma coleção de ações reciprocamente tipificadas, tornadas habituaispara cada qual em papéis, alguns dos quais se realizarão separadamente e outros emcomum. Embora essa tipificação recíproca ainda não seja uma institucionalização(visto que, havendo somente dois indivíduos, não existe possibilidade de umatipologia dos atores), é claro que a institucionalização já está presente in nucleo.

As instituições sociais, uma vez constituídas, adquirem, na própria dinâmica da vida

social, o caráter de entidades objetivas, ou seja, passam a fazer parte da realidade cotidiana

dos homens na qualidade de facticidades exteriores, de coisas cujo ser difere e se defronta

com o ser de seus produtores. As instituições (...) defrontam-se com o indivíduo na qualidade

de fatos inegáveis. As instituições estão aí, exteriores a ele, persistentes em sua realidade,

queira ou não. Não pode desejar que não existam. Resistem a suas tentativas de alterá-las ou

evadir-se delas (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 86). O movimento pelo qual as

instituições tornam-se objetivas é denominado por BERGER e LUCKMANN (1985, p. 87) de

processo de objetivação.

Nesse ponto, fica clara a apropriação que Berger e Luckmann começam a fazer, em

sua Sociologia do conhecimento, da perspectiva sociológica de Émile Durkheim. Durkheim

(também contemporâneo à Weber e a Husserl) enxergava a sociedade como uma realidade

eminentemente objetiva em relação aos indivíduos. A sociedade se constituía, segundo ele,

num complexo concreto de fatos sociais : maneiras de agir, de pensar e de sentir que

apresentam a propriedade marcante de existir fora das consciências individuais

(DURKHEIM, 1990, p. 02). De resto, o próprio Berger faz questão de deixar claro sua dívida

para com Durkheim, quando escreve em nota de rodapé de O dossel sagrado: a nossa

discussão da objetividade da sociedade segue Durkheim de perto (BERGER,1985, p. 24) .

A objetivação do mundo institucional exige, segundo Berger e Luckmann,

representações simbólicas que interpretem o seu status ontológico. Pois, o mundo social,

sendo o resultado das interações humanas ao longo de uma história compartilhada, não possui

para as sucessivas gerações humanas a transparência ontológica que possuía para a geração

inicial. Como dizem os autores, as instituições sociais, adquirindo objetividade, passam a

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

71

fazer parte da experiência de vida das sucessivas descendências da primeira geração (a

geração que as constituiu) não na qualidade de memória biográfica (como era inicialmente

para essa geração inicial), mas na qualidade de tradição. Desse modo, as instituições sociais

passam a demandar por legitimações que as consolidem uma a uma e em conjunto ao

longo do transcurso das gerações. As legitimações emergem então como objetivações de

segunda ordem , que explicam e legitimam as objetivações de primeira ordem . Em outros

termos, as legitimações são objetivações de caráter normativo e cognitivo que explicam

aos novos indivíduos os padrões por meio dos quais eles devem orientar a conduta, porque

eles devem agir conforme esses padrões e porque a realidade é da forma que é. Nas palavras

de BERGER e LUCKMANN (1985, p. 128):

A legitimação não é necessária na primeira fase da institucionalização, quando ainstituição é simplesmente um fato que não exige nenhum novo suporte, nemintersubjetivamente nem biograficamente. É evidente para todas as pessoas a quemdiz respeito. O problema da legitimação surge inevitavelmente quando asobjetivações da ordem institucional (agora histórica) têm de ser transmitidas a umanova geração. Nesse ponto, como vimos, o caráter evidente das instituições nãopode ser mais mantido pela memória e pelos hábitos do indivíduo. Rompeu-se aunidade de história e biografia. Para restaurá-la, tornando assim inteligíveis ambosos aspectos dessa unidade, é preciso haver explicações e justificações doselementos salientes da tradição institucional. A legitimação é esse processo deexplicação e justificação.

As objetivações lingüísticas, evidentemente, conformam a matéria-prima pela qual as

legitimações são construídas, na forma de prescrições para a conduta, provérbios,

conhecimentos específicos, cosmogonias sagradas ou profanas etc. Berger e Luckmann

afirmam que é possível identificar, analiticamente, diferentes níveis de legitimação embora

empiricamente eles se interpenetrem e, desse modo, coincidam em parte. O primeiro nível diz

respeito a simples atribuição de sinais lingüísticos às coisas, o que significa, necessariamente,

identificar suas localizações e suas relações num universo de outras coisas que também são

lingüisticamente representadas. Nesse nível rudimentar de legitimação, Berger e Luckmann

colocam também todas as prescrições tradicionais para a ação do tipo é assim que as coisas

são feitas . É, portanto, um nível pré-teórico de legitimação. O segundo nível abarca as

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

72

proposições teóricas rudimentares, de natureza eminentemente pragmática, na forma de

provérbios, máximas morais e adágios de sabedoria popular. O terceiro nível já é constituído

por formulações teóricas explícitas. Nele são construídos corpos específicos de conhecimento,

portadores de certos graus de complexidade, e que dizem respeito a campos específicos da

realidade institucional. O último nível de legitimação, por fim, é aquele que diz respeito à

ordem institucional como um todo, sendo constituído, segundo BERGER e LUCKMANN

(1985, p. 131), por corpos de tradição teórica que integram diferentes áreas de significação e

abrangem a ordem institucional em uma totalidade simbólica . Esse nível é designado pelos

autores de nível de legitimação simbólica, sendo o termo simbólico compreendido como

processos de significação que se referem a realidades diferentes das pertencentes à

experiência da vida cotidiana (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 131). Portanto, o nível de

legitimação simbólica caracteriza-se pelo seu caráter altamente abstrato, referente a realidades

distintas das experimentadas na vida cotidiana.

É por intermédio das legitimações simbólicas que o mundo institucional se constitui

finalmente em uma realidade , isto é, num conjunto de experiências articuladas e portadoras

de um sentido e de uma explicação. Nos termos de BERGER e LUCKMANN (1985, p. 132):

Neste nível de legitimação (...) um mundo inteiro é criado. Todas as teoriaslegitimadoras menores são consideradas como perspectivas especiais sobrefenômenos que são aspectos deste mundo. Os papéis institucionais tornam-se modosde participação em um universo que transcende e inclui a ordem institucional.

Retornando, então, à idéia de sociedade em Berger e Luckmann, podemos apresentá-

la, agora, como atividade humana objetivada na forma de padrões de comportamento: normas,

regras, valores, sentimentos, papéis sociais etc (ou seja, instituições sociais), que são

explicadas, justificadas e ordenadas (numa palavra, legitimadas) por intermédio de

representações normativas e cognitivas (ou seja, conhecimentos ), representações essas que

nada mais são do que objetivações de segunda ordem , isto é, significações atribuídas às

significações primeiras que padronizam o comportamento social.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

73

Outro ponto importante a salientar na concepção de sociedade de Berger e Luckmann

(ao qual já fizemos referência), é que essa, uma vez constituída, além de existência objetiva,

possuirá igualmente poder de constrição sobre os indivíduos. Em outras palavras, a sociedade

converte-se numa realidade não apenas objetiva, mas também coercitiva. Isso significa que

ela passa a determinar praticamente tudo o que fazemos: nossa linguagem, nossos

sentimentos, nossas idéias, nossos objetivos na vida, os horários em que realizamos nossas

atividades etc. Nesse ponto, mais uma vez, Berger e Luckmann seguem a perspectiva de

Durkheim. Com efeito, para Durkheim, mais do que objetiva, a sociedade caracteriza-se pelo

poder de coerção sobre os indivíduos. Ele escreve: Esses tipos de conduta ou de pensamentos

[os fatos sociais] não são apenas exteriores ao indivíduo, são também dotados de um poder

imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem, quer queiram, quer não

(DURKHEIM, 1990, p. 02).

Berger e Luckmann explicam o poder coercitivo da sociedade como uma decorrência

da facticidade das suas instituições e dos mecanismos de controle a elas associados. Dito de

outra forma, a simples existência das instituições, por si só, já restringe as possibilidades

humanas de ação, na medida em que elas (instituições) se apresentam como os únicos padrões

legítimos, socialmente aceitos, de conduta, fazendo assim desaparecer quase que

completamente para os indivíduos, em condições normais, a possibilidade de ações outras, de

padrões outros, isto é, de alternativas para as ações distintas daquelas que determinam os

modelos institucionais. Todavia, se, por uma razão qualquer, a simples facticidade

institucional não for suficiente e o indivíduo relutar em aceitar o modelo institucional,

orientando suas ações por outros parâmetros, as instituições dispõem de um verdadeiro

arsenal de mecanismos de controle capaz de dissuadir e reencaminhar o indivíduo

recalcitrante. Esses mecanismos variam enormemente de instituição para instituição e de

cultura para cultura. Uma lista com os mais comuns deles, contudo, incluiria: o ridículo, a

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

74

maledicência, a discriminação, o opróbrio, a expatriação, os castigos físicos, as sanções

econômicas, a perda da liberdade e a morte. Desse modo, conforme faz Durkheim, Berger e

Luckmann vão afirmar que a objetividade da sociedade manifesta-se sobretudo na forma de

coerção. Nos termos de BERGER (1985, p. 24):

Acima de tudo, a sociedade se manifesta pelo seu poder coercitivo. O teste finalde sua realidade objetiva é a sua capacidade de impor-se à relutância dos indivíduos. A sociedade dirige, sanciona, controla e pune a conduta individual. Nas suas maispoderosas apoteoses (...) a sociedade pode até destruir o indivíduo.

A objetividade e a coercitividade da sociedade significa, pois, que essa possui

efetivamente um poder de controle, de subordinação, sobre indivíduos humanos. BERGER,

em Perspectivas sociológicas (1986, p. 86-90), para ilustrar a condição do homem em face

das distintas instituições sociais e, consequentemente, em face do poder da sociedade, usa a

imagem de um indivíduo no centro e oprimido por uma sucessão de círculos concêntricos:

Podemos, então, considerar que estejamos no centro (isto é, no ponto de maiorpressão) de um conjunto de círculos concêntricos, cada um dos quais representas umsistema de controle social. O círculo exterior bem poderá representar o sistema legale político sob o qual somos obrigados a viver (...)Outro sistema de controle que exerce pressão contra a figura solitária no centro doscírculos é o da moralidade, costumes e convenções (...)Além desses amplos sistemas coercitivos exercidos sobre todos os indivíduos, háainda outros círculos de controle, menos gerais. A ocupação escolhida por umindivíduo (ou, como geralmente acontece, a ocupação a que ele foi levado)inevitavelmente o subordina a vários controles, muitas vezes bastante rígidos (...) Contudo, além das pressões da ocupação de uma pessoa, seus outros envolvimentossociais também acarretam sistemas de controles, muitos dos quais rígidos, outrosainda mais inflexíveis (...)Por fim, o grupo humano no qual transcorre a chamada vida privada da pessoa, ou

seja, o círculo da família e dos amigos pessoais, também constitui um sistema decontrole.

Berger e Luckmann argumentam, no entanto, que esse poder coercitivo da sociedade

raramente é sentido pelos indivíduos, em decorrência de um outro poder, ainda maior, da

sociedade sobre os mesmos: o poder de transformá-los em sujeitos. Em outras palavras, o

poder de controle da sociedade sobre os indivíduos advém principalmente e nisso reside a

sua maior força da sua faculdade de constituí-los em sujeitos. Nas palavras de BERGER

(1986, p. 106-7):

Até aqui, abordando a sociedade sobretudo segundo o aspecto de seus sistemas decontroles, temos encarado o indivíduo e a sociedade como duas entidades

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

75

antagônicas. A sociedade foi vista como uma realidade externa que pressiona ecoage o indivíduo. Se essa imagem não for modificada, obteremos uma impressãobastante errônea da relação, ou seja, uma imagem de massas humanasconstantemente forçando seus grilhões, cedendo às autoridades coatoras de dentesrilhados, sendo levadas sempre à obediência pelo medo do que poderá ocorrer seagirem de outra forma. Tanto o conhecimento ordinário da sociedade como a análise sociológica propriamente dita nos mostram que não é esse o caso. Para a maioria denós o jugo da sociedade parece suave. Por quê? Certamente não porque o poder dasociedade seja menor do que indicamos (...) Nesse caso, por que esse poder não noscausa maior sofrimento? Já se fez referência à resposta sociológica à perguntaporque quase sempre desejamos exatamente aquilo que a sociedade espera de nós.Queremos obedecer às regras. Queremos os papéis que a sociedade nos atribui. Eisto, por sua vez, é possível não porque o poder da sociedade seja menor, e simporque é muito maior do que até agora afirmamos. A sociedade determina não só oque fazemos, com também o que somos. Em outras palavras, a localização socialnão afeta apenas nossa conduta; ela afeta também o nosso ser.

Conforme já fizemos referência, segundo Berger e Luckmann os indivíduos humanos

vêm ao mundo sem padrões inatos de comportamento, abertos para a experiência, e são

constituídos em sujeitos pela sociedade, através do que eles designam de processo de

socialização: a ampla e consistente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma

sociedade ou de um setor dela (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 175).

Bem entendido, mais do que um processo de aprendizagem, a socialização se constitui

num processo de constituição do sujeito. Conforme escreve BERGER (1985, p. 28):

A nova geração é iniciada nos sentidos da cultura, aprende a participar de suastarefas estabelecidas e a aceitar os papéis bem como as identidades que constituem aestrutura social. Mas a socialização tem uma dimensão decisiva que não éadequadamente aprendida se se fala de processo de aprendizado. O indivíduo não sóaprende os sentidos objetivados como se identifica com eles e é modelado por eles.Atrai-os a si e fá-los seus sentidos. Torna-se não só alguém que possui essessentidos, mas alguém que os representa e exprime.

Desse modo, o caráter coercitivo das instituições sociais normalmente não é sentido

pelos indivíduos, dado que elas (instituições) constituem o seu ser (a sua condição de sujeito)

e, assim, se incrustam na consciência de cada um deles. Por conseguinte, os imperativos

sociais são interpretados, pelos indivíduos, como imanentes, necessários, inevitáveis etc., ou

seja, como se fizessem parte de uma ordem natural (cósmica, sagrada) das coisas e não

como imposições do sistema social.

Posto isso, interessa-nos, agora, focalizar os dispositivos pelos quais, segundo Berger

e Luckmann, ocorre o processo de socialização, processo de constituição do sujeito.

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

76

2.3 A constituição do sujeito em Berger e Luckmann: o processo de socialização

O conceito de socialização de Berger e Luckmann, na verdade, é proveniente da

Psicologia social de George Herbert Mead. Mead, em obra publicada em 1934 e intitulada

Mind, self and society (Espírito, si-mesmo e sociedade), definiu e analisou a socialização

como o processo social de construção de uma identidade (de construção do sujeito) por

intermédio da interação (comunicação) com os outros (DUBAR, 2005). Berger e Luckmann

incorporam as reflexões de Mead e inserem-nas no esquema sociológico sistematizado no

item anterior (2.2.) resultado de uma síntese, conforme vimos, entre as sociologias de Shutz

(principalmente), Weber e Durkheim.

Seguindo, então, esse percurso teórico, Berger e Luckmann tratam a socialização

como um processo de interiorização , nos indivíduos, da realidade objetiva da sociedade,

processo pelo qual as estruturas do mundo social objetivo convertem-se também em estruturas

subjetivas da consciência. A interiorização , para os autores, consiste na apreensão ou

interpretação imediata de um acontecimento objetivo como dotado de sentido, isto é, como

manifestação de processos subjetivos de outrem, que dessa maneira torna-se subjetivamente

significativo para min (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 174). Desse modo, é por

intermédio dela (socialização) portanto, por intermédio das interiorizações que se efetuam

por meio dela que se realiza a constituição do sujeito, sempre a partir dos padrões objetivos

da sociedade. Nos termos de BERGER (1985, p. 28):

A interiorização é (...) a reabsorção na consciência do mundo objetivado de talmaneira que as estruturas deste mundo vêm a determinar as estruturas subjetivas daprópria consciência. Ou seja, a sociedade funciona agora como ação formativa daconsciência individual.

Assim, nessa perspectiva, a sociedade desempenha uma função semelhante à de uma

matriz de fundição, a partir da qual se fabrica uma determinada peça no caso, os sujeitos

sociais. Esses terão em si, como estruturas de sua consciência, os contornos do molde

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

77

social dentro do qual se constituíram, de modo que uma simetria, maior ou menor

(dependendo do grau de êxito do processo de socialização, dado que o indivíduo não é, nesse

processo, um ser passivo, mas ativo, conforme veremos mais adiante), se estabelece entre a

sociedade e a realidade interior (a condição de sujeito) de cada indivíduo.

Segundo Berger e Luckmann, o processo de socialização divide-se em socialização

primária e socialização secundária. A socialização primária pode ser definida como a primeira

socialização do indivíduo, pela qual ele interioriza os significados em geral da sociedade, de

modo a tornar-se um membro dela. É por obra da socialização primária que o indivíduo

consegue compreender não só os processos significativos dos outros que coabitam o seu

universo social, mas também compreender o próprio mundo social objetivo em que vive e

fazer dele o seu mundo. A socialização secundária, por sua vez, diz respeito a processos

subseqüentes de socialização, que pressupõem a socialização primária e que têm por meta

introduzir o indivíduo agora já constituído em sujeito em novos e específicos setores do

mundo social.

O processo da socialização primária é, dessa forma, aquele que, a rigor, ocupa-se de

transformar o indivíduo humano, de um simples exemplar biológico da espécie, em um

sujeito social específico, pertencente a essa ou aquela sociedade. A socialização secundária

ocupa-se apenas de realizar acréscimos ou modificações ulteriores em sujeitos sociais já

constituídos. Assim, é essencialmente por meio da socialização primária que as sociedades

humanas constituem os sujeitos sociais de que necessitam. Por conseguinte, é principalmente

sobre ela que recaem as análises de Berger e Luckmann sobre as quais nos debruçamos.

O processo de socialização em geral (tanto a socialização primária como a secundária)

é levado a cabo pelas instituições sociais que conformam cada sociedade concreta e por

mecanismos específicos dispostos no interior delas (instituições). O primeiro e o mais

importante desses mecanismos é a aquisição da linguagem.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

78

A linguagem, com efeito, é o veículo primordial da socialização (...) elemento

essencial do processo de socialização (BERGER e BERGER in FORACCHI e MARTINS,

1977, p. 205-6). É principalmente por intermédio da linguagem que a socialização desenrola-

se, pois todos os seus mecanismos (interação e identificação com os outros significativos,

reconhecimento e assunção de papéis sociais, aprendizagem de saberes e reconhecimento do

outro generalizado) pressupõem a linguagem. Nesse sentido, escrevem BERGER e

LUCKMANN (1985, p. 181):

É a linguagem que tem que ser interiorizada acima de tudo. Com a linguagem, epor meio dela, vários esquemas motivacionais e interpretativos são interiorizadoscom valor institucional definido.

Em texto escrito em parceria com Brigitte Berger: Socialização: como ser um

membro da sociedade (in FORACCHI e MARTINS, 1977, p. 205-6), Peter Berger faz notar

que (em passagem que, aliás, concorda totalmente com as análises da Psicologia sócio-

histórica, especialmente as de Vigotski) as habilidades mentais indispensáveis para que o

indivíduo possa interiorizar os padrões sociais quais sejam: pensamento abstrato;

capacidade de captação, retenção e transmissão de significados sociais; capacidade de

integralização das diversas experiências e significados sociais num todo relativamente

coerente e dotado de sentido; capacidade de percepção da própria individualidade somente

se desenvolvem a partir da linguagem. A aquisição da linguagem, portanto (dizemos mais

uma vez), mais do que veículo, é o pressuposto de toda a socialização:

Ao assenhorear-se da linguagem, a criança aprende a transmitir e reter certossignificados socialmente reconhecidos. Adquire a capacidade de pensarabstratamente, isto é, consegue ir além da situação imediata com que se defronta. E é também por meio da linguagem que a criança adquire a capacidade de refletir. Asreflexões incidem sobre a experiência passada que se integra numa versão coerente e cada vez mais ampla da realidade. A experiência presente é continuamenteinterpretada em conformidade com essa visão e a experiência futura não pode serapenas imaginada, mas também planejada. É através dessa reflexão cada vez maisintensa que a criança toma consciência de si mesma como uma individualidade, nosentido literal de re-flexão, isto é, do fenômeno através do qual a atenção retorna domundo exterior para incidir sobre ela própria (BERGER e BERGER in FORACCHIe MARTINS, 1977, p. 206).

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

79

Além da aquisição da linguagem, Berger e Luckmann citam a interação e identificação

com os outros significativos como outro mecanismo capital do processo de socialização. O

conceito de outros significativos é proveniente da psicologia de Mead e diz respeito aos

grandes protagonistas , para a criança, do processo da socialização, isto é, as pessoas que

com maior freqüência se tornam objeto da interação da criança, com as quais ela mantém

relações emocionais mais intensas e cujas atitudes assumem importância crucial na situação

em que se encontra (BERGER e BERGER in FORACCHI e MARTINS, 1977, p. 205-6).

Perceba que apenas analiticamente é possível dissociar esses dois mecanismos (linguagem e

interação/identificação com os outros), pois a linguagem só pode ser adquirida por intermédio

da interação com os outros (que, na situação infantil, necessariamente serão os outros

significativos) e, inversamente, a interação da criança com os outros sempre ocorre na

presença da linguagem, isto é, em relações nas quais necessariamente a linguagem se faz

presente, ainda que num primeiro momento apenas na forma de falas proferidas pelos outros e

dirigidas à criança20. Desse modo, a aquisição da linguagem e a interação/identificação com

os outros, fundamentalmente os outros significativos , são os dois mecanismos básicos,

concretamente indissociáveis, pelos quais se realiza a socialização (constituição do sujeito) do

pequeno filho do homem.

Assim, toda criança humana, ao nascer, encontra um determinado ambiente social,

ambiente esse estruturado, segundo Berger e Luckmann (conforme vimos no item anterior,

2.2), essencialmente por intermédio dos significados socialmente partilhados (isto é, pela

linguagem, veículo fundamental de objetivação, conservação e transmissão desses

significados) e encontra determinados outros significativos encarregados da sua

socialização. A sua constituição enquanto sujeito, desse modo, dependerá enormemente tanto

dos significados sociais partilhados em sua sociedade que conformam uma realidade social

20 Logo logo, porém, a criança começa a compreender e a também fazer uso da linguagem para se comunicarcom os outros, tornando-se ela não apenas destinatária, mas também remetente de mensagens codificadaslinguisticamente.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

80

específica como das particularidades dos outros significativos encarregados de sua

socialização. Com efeito, são os outros significativos que apresentam, filtram e interpretam o

mundo para a criança, não apenas conforme as instituições e saberes próprios às suas

sociedades, mas também conforme suas peculiaridades pessoais. Por conseguinte, os outros

significativos de cada pequeno candidato a sujeito funcionam, ao lado da linguagem e da

realidade social específica que por intermédio dela é configurada, como mediadores entre a

criança e o mundo, artífices da futura consciência madura. Nos termos de BERGER e

LUCKMANN (1985, p. 175-6):

Todo indivíduo nasceu em uma estrutura social objetiva, dentro da qual encontraoutros significativos que se encarregam de sua socialização. Estes outrossignificativos são-lhe impostos. As definições dadas por estes à situação deleapresentam-se como realidade objetiva. Desta maneira, nasceu não somente em umaestrutura social objetiva mas também em um mundo social objetivo. Os outrossignificativos que estabelecem a mediação deste mundo para ele modificam omundo no curso da mediação. Escolhem aspectos do mundo de acordo com suaprópria localização na estrutura social e também em virtude de suas idiossincrasiasindividuais, cujo fundamento se encontra na biografia de cada um. Assim, a criançadas classes inferiores não somente absorvem uma perspectiva própria da classeinferior a respeito do mundo social, mas absorve esta percepção com a coloraçãoparticular que lhe é dada por seus pais (ou quaisquer outros indivíduos encarregadosde sua socialização primária). A mesma perspectiva da classe inferior podeintroduzir um estado de espírito de contentamento, resignação, amargoressentimento ou fervente rebeldia. Como conseqüência uma criança da classeinferior não somente irá habitar um mundo grandemente diferente do que é próprioda criança de uma classe superior, mas pode chegar a ter um mundo inteiramentediferente daquele da criança de classe inferior que mora na casa ao lado.

A criança, ao longo do seu convívio e face sua dependência material e afetiva dos

outros significativos, começa a tomar as suas atitudes21 e a identificar e reproduzir os seus

papéis sociais . A criança absorve os papéis e as atitudes dos outros significativos, isto é,

interioriza-os, tornando-os seus (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 176). Lembremos que

por papel social Berger e Luckmann designam um tipo de resposta socialmente pré-definida

a uma situação social também pré-definida. Assim, a criança começa a imitar o papai , a

mamãe , a vovó etc; começa a reconhecer os seus respectivos papéis e, nas brincadeiras

21 Berger e Luckmann continuam aqui seguindo de perto as formulações de Mead: a idéia de tomar as atitudesdo outro é proveniente da obra deste autor.

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

81

infantis, começa a colocar a si própria nesses papéis e a desempenhá-los. Por intermédio desse

contínuo exercício, a criança vai progressivamente interiorizando a estrutura institucional de

sua sociedade e aprendendo a atuar dentro dela. Desse modo, vai adquirindo uma

identidade22, vai se constituindo enquanto sujeito. Escrevem BERGER e LUCKMANN

(1985, p. 176-7): Por meio desta identificação com os outros significativos a criança torna-se

capaz de identificar a si mesma, de adquirir uma identidade subjetivamente coerente e

pausível .

O desfecho desse processo é o reconhecimento do que Berger e Luckmann chamam,

seguindo ainda a psicologia de Mead, de outro generalizado , isto é, uma abstração (...) dos

papéis e atitudes dos outros particulares para os papéis e atitudes em geral (BERGER e

LUCKMANN, 1985, p. 178). Em outros termos, a criança passa a compreender que as

atitudes e papéis dos adultos que lhe são próximos não são peculiaridades individuais, mas

atitudes e papéis do mundo dos adultos em geral, isto é, da sociedade:

Por exemplo, na interiorização das normas há uma progressão que vai da expressãomamãe está zangada comigo agora a esta outra mamãe fica zangada comigo toda

vez que eu derramo a sopa . Desde que mais outras pessoas significativas (pai, avó,irmã mais velha, etc.) apóiam a atitude negativa da mãe com relação ao ato dederramar sopa, a generalidade da norma é estendida subjetivamente. O passodecisivo ocorre quando a criança reconhece que todos são contra o fato de entornar a sopa, e a norma generaliza-se tomando a expressão não se deve derramar a sopa ,sendo o se parte de uma generalidade que inclui, em princípio, toda a sociedade,na medida em que é significativa para a criança. Esta abstração dos papéis e atitudesdos outros significativos concretos é chamada o outro generalizado. Sua formaçãona consciência significa que o indivíduo identifica-se agora não somente com osoutros concretos mas com uma generalidade de outros, isto é, com a sociedade(BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 178).

Esse momento de reconhecimento do outro generalizado é tomado por Berger e

Luckmann como paradigmático da conclusão e do êxito da socialização primária, pois

significa que o mundo social como um todo foi interiorizado pelo indivíduo. Pode-se dizer

que, a partir desse estágio, certa simetria é estabelecida entre o mundo objetivo da sociedade e

o mundo subjetivo do indivíduo, adquirindo o indivíduo uma identidade social , isto é,

22 Berger e Luckmann não utilizam, no texto em análise, o termo sujeito . De um outro modo, preferem ovocábulo identidade . O sentido com o qual empregam o termo identidade , contudo, é muito próximo dosentido que estamos denotando, nesta dissertação, ao utilizarmos o termo sujeito .

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

82

transformando-se ele, para além da condição de indivíduo , num sujeito social específico.

Nos termos de BERGER e LUCKMANN (1985, p. 179):

A formação na consciência do outro generalizado marca uma fase decisiva dasocialização. Implica a interiorização da sociedade enquanto tal e da realidadeobjetiva nela estabelecida e, ao mesmo tempo, o estabelecimento subjetivo de umaidentidade coerente e contínua. A sociedade, a identidade e a realidade cristalizamsubjetivamente no mesmo processo de interiorização (...)Quando o outro generalizado cristalizou na consciência estabelece-se uma relação

simétrica entre a realidade objetiva e a subjetiva. Aquilo que é real foracorresponde ao que é real dentro . A realidade objetiva pode ser facilmentetraduzida em realidade subjetiva, e vice-versa.

A realidade social global interiorizada pelo indivíduo ao longo da socialização

primária, a partir da qual ele forja uma identidade (se constitui enquanto sujeito), é uma

realidade socialmente construída e, portanto, convencional e relativa. Ela depende, conforme

vimos, da cultura como um todo da sociedade (principalmente da linguagem), da localização

do pessoal socializador (os outros significativos) na rede de relações que constituem a

estrutura social e das características pessoais dos indivíduos responsáveis pela criança.

Todavia, essa relatividade do mundo social interiorizado não é percebida, ao longo de todo o

processo de socialização (e, na maioria das vezes, ao longo de toda a vida do sujeito), pela

consciência do indivíduo objeto da socialização. Muito pelo contrário, para o indivíduo que

está sendo socializado, o mundo social objetivo apresenta-se como absoluto; as suas normas,

padrões e valores não se apresentam como convenções sociais cambiantes no tempo e no

espaço, mas como as normas, os padrões e os valores.

Segundo Berger, duas características básicas do processo de socialização são,

inicialmente, as responsáveis principais por esse fato: primeiro, a extrema fragilidade e

dependência da criança face aos adultos; segundo, o desconhecimento, por parte da criança,

de padrões sociais alternativos. Nos termos de BERGER e BERGER (in FORACCHI e

MARTINS, 1977, p. 204-5):

Sob o ponto de vista do observador estranho, os padrões impostos durante oprocesso de socialização são altamente relativos, conforme já vimos. Dependem nãoapenas das características individuais dos adultos que cuidam da criança, mastambém dos vários agrupamentos a que pertecem esses adultos. Assim, por exemplo, a natureza dos padrões de conduta aplicados a uma criança depende não somente do

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

83

fato de ser a mesma um gusii ou um americano, mas também da circunstância depertencer à classe média ou à classe operária dos Estados Unidos. Mas, sob o pontode vista da criança, estes mesmos padrões são sentidos de forma bastante absoluta(...)

O caráter absoluto com que os padrões sociais atingem a criança resulta de doisfatos bastante simples: o grande poder que os adultos exercem numa situação comoaquela em que se encontra a criança e a ignorância desta sobre a existência depadrões alternativos.

Desse modo, todo processo de socialização não obstante o fato de despertar as

potencialidades do homem, tornando-o apto para a vida social é um processo de engodo.

Pois, aquilo que é fruto de convenção social e, assim, é relativo no tempo e no espaço (e que,

por cima, muitas vezes oprime o sujeito, conforme apontam os próprios Berger e Luckmann

item 2.2.) é tomado, na socialização, como absoluto e necessário. Escrevem BERGER e

LUCKMANN (1984, p. 180-1):

A criança não interioriza o mundo dos adultos que são significativos para ela comosendo um dos muitos mundos possíveis. Interioriza-o como sendo o mundo, o únicomundo existente e concebível, o mundo tout court (...) A socialização primáriarealiza assim o que (numa visão retrospectiva, evidentemente) pode ser consideradoo mais importante conto-do-vigário que a sociedade prega ao indivíduo, ou seja,fazer aparecer como necessidade o que de fato é um feixe de contingências (...).

Se os dois fatos elencados acima (o poder dos adultos face às crianças e o

desconhecimento, por estas, de padrões alternativos) explicam porque os conteúdos da

socialização são percebidos, inicialmente, como absolutos, são as representações simbólicas

de cada sociedade (incorporadas pelo indivíduo, na socialização, juntamente com as atitudes,

os papéis e a identidade social), as principais responsáveis pela persistência dessa percepção

no tempo, ao longo de toda a vida do indivíduo, até mesmo nas situações em que o sujeito

toma consciência de padrões alternativos. Conforme vimos (item 2.2), para Berger e

Luckmann, as representações simbólicas (ou apenas legitimações , como usualmente

preferem os autores) são objetivações de segunda ordem, de caráter normativo e cognitivo,

cuja função é explicar e legitimar as objetivações de primeira ordem, isto é, as instituições

sociais (tipificações sociais da conduta), e que, dessa forma, fornecem ao indivíduo uma

macro-visão do mundo. As representações simbólicas têm êxito no seu propósito de

conservação da realidade interiorizada na infância na medida em que apresentam razões para

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

84

que o mundo interiorizado na primeira socialização seja sempre tomado como o único mundo

possível , óbvio , correto , digno da condição humana etc., mesmo diante da presença

de mundos alternativos presença essa seja na forma de concreticidades históricas (isto é,

outras culturas), seja na forma de possibilidades lógico-históricas (ou seja, utopias)23. Mais

adiante (item 3.3), incorporando as reflexões de ALTHUSSER (1985) e SOUSA FILHO

(1990, 1995, 2003) sobre a ideologia , trataremos do dispositivo concreto, presente nas

representações simbólicas, que produz esse efeito. Por hora, nos limitemos às indicações de

BERGER (1986, p. 131-2) sobre o efeito das representações simbólicas na conservação da

realidade interiorizada na infância:

O indivíduo (...) adquire sua cosmovisão quase da mesma forma como adquireseus papéis e sua identidade. Em outras palavras, tanto quanto suas ações, suasemoções e sua auto-interpretação são pré-defenidas para ele pela sociedade, damesma forma que sua atitude cognitiva em relação ao universo que o rodeia (...)A sociedade fornece nossos valores, nossa lógica e o acervo de informações (ou

desinformações) que constitui nosso conhecimento. Raríssimas pessoas, e mesmoessas apenas em fragmentos dessa cosmovisão, estão em condições de reavaliaraquilo que lhe foi imposto. Na verdade não sentem nenhuma necessidade dereavaliação porque a cosmovisão em que foram socializadas lhes parece óbvia. Umavez que ela também será considerada assim por quase todos os membros de suaprópria sociedade, essa cosmovisão ratifica-se, valida-se.

Portanto, juntamente com a linguagem, os valores, as condutas etc., a criança vai

progressivamente interiorizando também os saberes (representações simbólicas) por meio dos

quais a sua sociedade explica e legitima suas instituições. Desse modo, à fragilidade e à

ignorância infantis como fundamento da solidez do mundo interiorizado na socialização

primária, se sucede, na vida adulta, um sincero convencimento, pautado nos saberes

consensuais da sociedade, de que as coisas realmente são tal qual foram aprendidas, tal qual

praticamente todos acreditam que sejam.

23 Evidentemente, na medida em que o indivíduo vai interiorizando algumas significações sociais, ele vaiadquirindo uma capacidade sempre crescente de resignificar, a partir dos próprios significados já interiorizados,os significados sociais objetivos. Via de regra, contudo, o processo se desenvolve sem que haja umquestionamento dos significados sociais mais importantes as resignificações do sujeito tendem a se acomodar e a não contradizer os significados socialmente sancionados (essa questão será tratada na seqüência imediata dopróprio texto e também no item 3.3.).

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

85

Nesse ponto, é importante observar que, para Berger e Luckmann, o processo de

socialização, enquanto interiorização do mundo objetivo e construção de uma identidade, é

um processo contínuo, que nunca chega ao fim, mantido perenemente pela contínua

conversação com os outros. Com efeito, é pela conversação com os outros que confirmamos

todos os dias tanto a realidade do mundo social objetivo como a nossa própria identidade

dentro dele. Nossos interlocutores, ao validarem com suas falas e com suas atitudes a

realidade do mundo objetivo e de nossa própria identidade, ratificam e consolidam, em nossa

consciência, a realidade interiorizada na socialização primária que se torna, dessa forma, a

cada momento, mais sólida e indubitável. Nos termos de BERGER e LUCKMANN (1985, p.

202-3):

O veículo mais importante da conservação da realidade é a conversa. Pode-seconsiderar a vida cotidiana do indivíduo em termos de funcionamento de umaparelho de conversa (...) A conversa significa principalmente, sem dúvida, que aspessoas falam umas com as outras. Isto não nega o rico halo de comunicação não-verbal que envolve a fala. Entretanto a fala conserva uma posição privilegiada noaparelho total da conversa. É importante acentuar contudo que a maior parte daconservação da realidade na conversa é implícita, não explícita. A maior parte daconversa não define em muitas palavras a natureza do mundo. Ao contrário, ocorretendo por pano de fundo um mundo que é tacitamente aceito como verdadeiro.Assim uma troca de palavras, como, por exemplo, bem, está na hora de ir para aestação e ótimo, querido, passe um bom dia no escritório , implica um mundointeiro dentro do qual estas proposições aparentemente simples adquirem sentido.Em virtude desta implicação, a troca de palavras confirma a realidade subjetivadesse mundo.

Se a socialização é consumada nesse contínuo fluxo de conversação entre os

indivíduos, segue que o indivíduo, inclusive a criança, não é passivo nesse processo. De um

outro modo, o indivíduo participa ativamente do processo de socialização, interagindo com os

outros e continuamente resignificando os padrões sociais. É tal fato, inclusive, o que explica a

perene tendência que toda sociedade tem à mudança tendência essa que opera ao lado de

outras forças tendentes à conservação: os mecanismos de controle e sanção social, conforme

vimos (item 2.2). Caso a socialização fosse um simples processo de moldagem, com o

indivíduo objeto da socialização passivo no processo, os padrões e as legitimações sociais,

uma vez estabelecidos, seriam eternamente reproduzidos, sem que houvesse nenhuma

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

86

possibilidade de mudança social, pois os indivíduos tratariam simplesmente de interiorizar e

reproduzir mecanicamente as realidades do mundo objetivo da sociedade. Sobre essa questão

escrevem BERGER e BERGER (in FORACCHI e MARTINS, 1977, p. 206):

É muito fácil dizer, e até certo ponto não deixa de ser correto, que a socialização éum processo de configuração ou moldagem. A criança é configurada pela sociedade, é por ela moldada de forma a fazer dela um membro reconhecido e participante. Mas é importante que não se veja nisso um processo unilateral. Mesmo no início da vida,a criança não é vítima passiva da socialização. Resiste à mesma, dela participa e nela colabora de forma variada. A socialização é um processo recíproco, visto que afetanão apenas o indivíduo socializado, mas também os socializantes. Não é difícilobservar este fato na vida cotidiana. Geralmente os pais alcançam um êxito maior ou menor em moldar a criança de acordo com os padrões gerais criados pela sociedadee desejados por eles. Mas a experiência também produz modificações nos pais. Areciprocidade da criança, isto é, sua capacidade de exercer uma ação individual eindependente sobre o mundo e as pessoas que o habitam, cresce na razão direta dacapacidade de usar a linguagem.

O fato de o indivíduo ser uma força ativa na socialização abre a possibilidade do que

Berger e Luckmann chamam de fracasso do processo de socialização: a não interiorização,

pelo indivíduo, dos significados sociais básicos para que ele se torne um sujeito efetivamente

integrado na sua sociedade. Com isso, dizem Berger e Luckmann, no lugar da simetria entre

as estruturas da sociedade e as estruturas subjetivas da consciência do sujeito (que ocorre

quando a socialização é bem sucedida), se estabelece, pelo contrário, uma assimetria entre a

realidade objetiva da sociedade e a realidade subjetiva do indivíduo o que efetivamente

significa um fracasso da sociedade no seu dispositivo de constituição do sujeito conforme sua

própria imagem e semelhança. Nos termos de BERGER (1985, p. 28):

O êxito da socialização depende do estabelecimento de uma simetria entre o mundo objetivo da sociedade e o mundo subjetivo do indivíduo. Se se imagina umindivíduo totalmente socializado, cada sentido objetivamente disponível no mundosocial teria seu sentido análogo dado subjetivamente na sua própria consciência.Essa socialização total é empiricamente não-existente e teoricamente impossível (...)Há, no entanto, graus de êxito na socialização. A socialização de amplo êxitoestabelece elevado grau de simetria entre o objetivo e o subjetivo, enquanto osmalogros da socialização conduzem a vários graus de assimetria.

É importante frisar que do êxito da socialização depende a reprodução da estrutura

social. Caso uma sociedade não consiga interiorizar-se como realidade subjetiva na maioria de

seus integrantes, sua existência é posta em xeque. Nas palavras de BERGER (1985, p. 28-9):

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

87

se a socialização não conseguir interiorizar pelo menos os sentidos mais importantes de uma

determinada sociedade, torna-se difícil manter esta última como empreendimento viável .

Na maioria das vezes, no entanto, o processo de socialização obtém êxito no seu

propósito, constituindo sujeitos que, em razão da semelhança subjetiva com o mundo social

objetivo, estão bem integrados na sociedade em que vivem. Esses sujeitos, dessa forma,

reproduzem com suas idéias, valores e atitudes o mundo social objetivo em que vivem. Se

considerarmos que, em sua relação com os indivíduos, o mundo objetivo da sociedade sempre

tem, segundo Berger e Luckmann, um caráter impositivo e coercitivo (portanto, castrador da

liberdade e das possibilidades dos indivíduos humanos, conforme vimos item 2.2), podemos

dizer, como faz Berger, que os sujeitos são cúmplices de sua própria opressão pela sociedade.

As imposições sociais que muitas vezes asfixiam o sujeito, assim, não são geralmente

questionadas, mas simplesmente aceitas, validadas e até mesmo desejadas pelos homens:

Apenas uma compreensão da internalização dá sentido ao fato incrível de que amaioria dos controles externos funcionem durante a maior parte do tempo para amaior parte das pessoas de uma sociedade. A sociedade não só controla nossosmovimentos, como ainda dá forma a nossa identidade, nosso pensamento e nossasemoções. As estruturas da sociedade tornam-se as estruturas de nossa própriaconsciência. A sociedade não se detém à superfície de nossa pele. Ela nos penetratanto quanto nos envolve. Nossa servidão para com a sociedade é estabelecidamenos por conquista que por conluio. Às vezes, realmente, somos esmagados esubjugados. Com freqüência muito maior caímos na armadilha engendrada pornossa própria natureza social. As paredes de nosso cárcere já existiam antes deentrarmos em cena, mas somos nós que a reconstruímos eternamente. Somosaprisionados com nossa própria cooperação (BERGER, 1986, p. 136).

Portanto, para Berger e Luckmann, é fundamentalmente por obra da socialização que

as realidades sociais se reproduzem no tempo. Pois, os indivíduos humanos, sendo

constituídos em sujeitos pela sociedade, na interação com os outros, por intermédio da

interiorização da linguagem, das instituições e dos saberes sociais, são intrinsecamente

inclinados à submissão e à reprodução dos padrões sociais vigentes, tomados por eles como

inevitáveis . Conforme discutiremos adiante (item 3.3), o conceito de ideologia de Althusser

e de Sousa Filho permite um tratamento mais adequado desse fenômeno, ao tempo em que as

formulações de Berger e Luckmann (e também as formulações da Psicologia sócio-histórica)

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

88

sobre o processo de socialização (na Psicologia sócio-histórica, processo de internalização)

permitem vislumbrar alguns dos dispositivos concretos pelos quais a ideologia atua nas

sociedades humanas.

Tratamos, pois, neste capítulo, de sistematizar o pensamento de Berger e Luckmann

no que diz respeito aos seus pressupostos ontológicos, sua concepção de sociedade e seu

entendimento do processo de constituição do sujeito. Estamos aptos agora para comparar, no

capítulo seguinte, os dois sistemas teóricos objetos deste trabalho: a Psicologia sócio-histórica

de Vigotski, Leontiev e Luria e a Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann. Nosso

intuito, recordemos, é verificar as diferenças e convergências, visando uma possível síntese,

no que tange ao processo de constituição do sujeito, entre essas duas teorias que afirmam,

peremptoriamente, em suas conclusões, a natureza social do homem. Ao mesmo tempo,

pretendemos analisar as implicações dessa possível síntese para o entendimento do modo de

atuação da ideologia, tal como pensada por Althusser e Sousa Filho, nas sociedades humanas.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

89

3 INTERFACE ENTRE A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA E A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTODE BERGER E LUCKMANN

3.1 Pressupostos ontológicos

Vigostski, Leontiev e Luria, por um lado, e Berger e Luckmann, por outro, partem,

conforme vimos (itens 1.1 e 2.1), de concepções de realidade que nada têm em comum.

Enquanto a Psicologia sócio-histórica é um desenvolvimento, para o campo dos fenômenos

psíquicos, do Materialismo dialético de Marx e Engels, a Sociologia do conhecimento de

Berger e Luckmann esposa, pela mediação de Schutz, a Fenomenologia de Husserl.

Os resultados de nossas investigações sobre o Materialismo dialético e a

Fenomenologia mostram a concepção de realidade de Marx e Engels como sendo muito mais

clara, consistente e plausível que a concepção de realidade de Husserl. Marx e Engels tomam

por fundamento um dado imediatamente acessível aos sentidos humanos: a objetividade do

mundo físico, material, e a partir daí constroem sua ontologia, considerando a realidade como

um produto de desenvolvimentos inerentes ao próprio mundo físico mundo este tomado por

eles como essencialmente dinâmico. Nos termos de A ideologia alemã, no contexto do debate

com a tradição idealista da filosofia alemã (dentro da qual o próprio Husserl, posteriormente,

iria inscrever-se):

Totalmente ao contrário do que ocorre na filosofia alemã, que desce do céu à terra,aqui se ascende da terra ao céu. Ou em outras palavras: não se parte daquilo que oshomens dizem, imaginam ou representam, e tão pouco dos homens pensados,imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso;parte-se dos homens realmente ativos e, a partir do seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. E mesmo as formações nebulosas no cérebro dos homens são sublimaçõesnecessárias do seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado apressupostos materiais (MARX E ENGELS, 1989, p. 37).

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

90

Partindo desses pressupostos, o Materialismo dialético toma o ser humano e a

consciência como modalidades de manifestação do mundo físico, em determinada etapa do

seu desenvolvimento, modalidades de manifestação estas possuidoras de suas peculiaridades,

mas sujeitas (como qualquer outra) às leis próprias do mundo físico que se constitui na

essência comum, isto é, no substrato ou substância de toda e qualquer manifestação ôntica.

Desse modo, o ser humano é uma forma particular de vida que, como qualquer outra, resulta

dos processos naturais que regem a evolução da vida. A consciência, por sua vez, é um

atributo da matéria que emerge no animal humano e que se caracteriza pelo potencial de não

apenas refletir a realidade (como qualquer formação psíquica), mas também de conhecê-la.

A Fenomenologia de Husserl, por sua vez, embora reconheça a objetividade do mundo

físico, não o toma como o substrato da realidade, furtando-se a qualquer discussão sobre o

estatuto ontológico desse mundo. Conforme escreve BELLO (2006), o mundo físico em si

não interessa à Fenomenologia, mas apenas os significados que a ele os homens atribuem por

intermédio da consciência. Nas palavras da própria autora, que inscreve a si própria na escola

fenomenológica inaugurada por Husserl:

Como o que nos interessa é o sentido das coisas, deixamos de lado tudo aquilo que não é o sentido do que queremos compreender e buscamos, principalmente, osentido. Husserl diz, por exemplo, que não interessa o fato de existir, mas o sentidodesse fato (BELLO, 2006, p. 23).

Por conseguinte, distintamente do Materialismo dialético, o elemento constitutivo por

excelência da realidade não é, para a Fenomenologia, a substância material que conforma o

mundo objetivo. Embora Husserl reconheça que não existe realidade sem o elemento material,

é efetivamente a consciência o elemento constitutivo da realidade, por meio da

intencionalidade e dos significados que ela atribui às coisas o que outorga, conforme já

apontamos, caráter idealista à filosofia fenomenológica.

Não fica claro, todavia pelo menos nos textos em que pesquisamos , o modo como

Husserl interpreta a consciência. Contudo, parece que ela é por ele considerada, de certa

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

91

forma, como algo transcendental em relação ao mundo físico e cuja essência é da ordem de

uma espiritualidade humana. O espírito , para a Fenomenologia, conforma a consciência

juntamente com os processos psíquicos esses últimos interpretados por Husserl como

processos mentais estimulados fisiologicamente. Mais do que conformar a consciência ao

lado do psiquismo, o espírito constitui-se, efetivamente, na dimensão essencial da mesma

(consciência), posto que ele tem a capacidade de controlar os processos psíquicos e o próprio

corpo. Conforme escreve BELLO (2006, p. 39), fundamentando a existência do espírito pela

capacidade humana de controle da mente e do corpo:

Identificamos outros atos que não são de caráter psíquico (...) nem de carátercorpóreo (...) podemos controlar o nosso corpo e a nossa psique (...) o ato decontrole (...) não é de ordem psíquica nem de ordem corpórea, e nos faz entrar numaoutra esfera a que os fenomenológos chamam de esfera do espírito.

O espírito , portanto, para a Fenomenologia, é a dimensão fundamental da

consciência criadora do mundo. Para justificar o emprego do termo pelos fenomenólogos e, ao

mesmo tempo, definir melhor o âmbito denotativo do mesmo, escreve BELLO (2006, p. 39):

Por que usam a palavra espírito? Porque o termo alma era usado para indicar tudoaquilo que não era corpo. Normalmente se diz, então, corpo e alma. Husserl e seusdiscípulos analisam a alma em duas partes: uma é formada pelo impulso psíquico (otermo impulso se refere a uma serie de atos que são de caráter psíquico) que são atos não queridos ou não controlados por nós. Além disso, não somos nós a origem deles, nem nós que os provocamos, mas os encontramos (...) Essa é a parte psíquica, aoutra parte é a que reflete, decide, avalia e está ligada aos atos da compreensão, dadecisão, da reflexão, do pensar, é chamada de espírito.

Assim, sob o pretexto de não se deixar capturar por especulações metafísicas e de

procurar o sentido das coisas, a Fenomenologia desemboca num idealismo dos mais

radicais, que compartilha com o pensamento religioso a idéia empiricamente carente de

evidências de uma dimensão espiritual fundante da realidade. Conseqüentemente, a

Fenomenologia dá forma a um sistema filosófico contraditório no seu próprio interior, pois

realiza a princípio um questionamento radical de todo o conhecimento (a chamada redução

fenomenológica ou epoché ), recusando todas as ontologias existentes, apenas para afirmar,

em suas conclusões, teses dogmáticas, empiricamente insustentáveis e tão antigas quanto a

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

92

própria humanidade. A seguinte passagem de PETRELLI (2001, p. 37) ilustra bem o que

estamos afirmando:

Enfim, para um fenomenólogo a verdade não se cria, não é dada a priori, não é umdogma. A verdade se busca, se colhe e se respeita. Não se cultua, pois é provisória,histórica, submetida a mutações do devir temporal. Só uma verdade é imutável, o espírito absoluto. Todavia ele é inacessível e

indescritível, a não ser que ele se revele, mesmo assim, não de forma direta, masindireta, na imanência dos signos, das palavras, das pessoas e das obras. Nessemomento, o fenomenólogo sabe que a fé faz parte da epistemologia.

Ao incorporar a Fenomenologia, Berger e Luckmann incorporam, inevitavelmente, as

contradições e ambigüidades da mesma, pois trazem para os fundamentos do seu sistema

teórico que eles querem que seja filosoficamente neutro uma ontologia que tende a

desaguar numa concepção religiosa do Ser e do homem. Tal como a citação de Petrelli acima

não deixa dúvidas quanto à visão religiosa de mundo que a Fenomenologia tende a inspirar, a

citação abaixo de BELLO (2006, p. 53-4) revela a noção religiosa de homem decorrente desta

mesma filosofia:

Iniciando com Brentano, o seu interesse pela vida psíquica, Husserl chega aexplicitar, diferentemente de Freud, que a característica da vida humana é ser umavida espiritual; reconhece uma dimensão espiritual, âmbito das avaliações edecisões, que se diferencia da dimensão psíquica. Tratando-se de atos diversos, nãopodemos considerar como Jung, que inclui a dimensão espiritual na dimensãopsíquica. Se são atos diferentes, não podem ser de uma só dimensão (...)A diferença radical entre a abordagem psicanalítica e a abordagem fenomenológicaé a descrição da dimensão psíquica pré-consciente e depois inconsciente. A distinçãoentre as dimensões psíquicas e a espiritual é importante para compreender ocomportamento do ser humano (...) Na concepção freudiana a dimensão inconsciente é a que comanda, e tudo o que acontece no nível consciente é, na verdade, umproduto daquilo que acontece no nível inconsciente (...) Husserl observa que navivência psíquica, considerada como dimensão propriamente psíquica, a dimensãodo inconsciente é importante, mas o ser humano tem também uma dimensãoespiritual. Ele não é totalmente comandado pela dimensão psíquica, por isso pode edeve ativar também a dimensão espiritual. E este é também um fundamento da vidamoral, que implica em responsabilidade e liberdade.

Se Berger e Luckmann comprometem a coerência de seu projeto teórico ao tomarem

por fundamento de uma Sociologia do conhecimento que não pretende envolver-se com

questões filosóficas um sistema filosófico que termina por apresentar uma visão idealista

do Ser e do homem, a Psicologia sócio-histórica, distintamente, edifica-se sobre um sistema

filosófico (o Materialismo dialético) consistente, internamente coerente e compatível com os

pressupostos da ciência moderna. Afirmamos a consistência do Materialismo dialético em

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

93

razão da incontestabilidade de seus pressupostos: a materialidade e a dinâmica do mundo

objetivo; sua coerência, por sua vez, em razão da ausência de contradições internas entre seus

pressupostos ontológicos e suas conclusões em termos de História, Sociologia e Antropologia;

sua compatibilidade com a ciência, por fim, em decorrência da coincidência entre os seus

pressupostos básicos e os da ciência moderna. Conforme sabemos, a ciência moderna surge,

no século XVI, afirmando o mundo material objetivo como a única realidade empiricamente

acessível, que pode ser tomada como objeto de estudo, e sobre a qual o conhecimento humano

pode judiciosamente se posicionar num movimento de rompimento filosófico com a visão

religiosa de mundo prevalecente na sociedade medieval, que considerava o espírito divino

(Deus) como a origem e essência de tudo o que existe. Além de consistente, internamente

coerente e compatível com a ciência moderna, o Materialismo dialético é, igualmente,

totalmente conciliável com as formulações de Vigotski, Leontiev e Luria sobre o psiquismo

humano que é tomado por esses autores, repitamos mais uma vez, como a capacidade do

organismo humano, decorrente de sua própria estrutura anátomo-fisiológica, de refletir o meio

circundante de um modo objetivo, voluntário e criativo.

O contraste entre os fundamentos filosóficos da Psicologia sócio-histórica e os da

Sociologia de Berger e Luckmann nos conduz, então, ao contra-senso de duas formulações

teóricas que, partindo de pressupostos ontológicos opostos, chegam, não obstante, a

conclusões muito semelhantes no que diz respeito ao processo de constituição do sujeito

afirmando, ambas, a natureza social do homem. Para explicitar o percurso que tornou possível

essa confluência de leituras sobre o sujeito a partir de perspectivas ontológicas distintas,

necessitaremos antes de confrontar o processo de constituição do sujeito nas duas

perspectivas comparar a concepção do elemento que, tanto para a Psicologia sócio-histórica

como para a Sociologia de Berger e Luckmann, é o determinante da natureza humana: a

sociedade.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

94

3.2 A distinção entre as idéias de sociedade na Psicologia sócio-histórica e na Sociologiade Berger e Luckmann

Conforme exposto antes (item 1.2), a sociedade é compreendida pela Psicologia sócio-

histórica da forma como é definida pela concepção materialista da história de Marx e Engels,

ou seja, como o ambiente vital do homem, constituído pela própria atividade humana (pelo

trabalho, forma específica de atividade do homem) e estruturado na forma de uma base

econômica (ou modo de produção) a partir da qual emerge uma superestrutura configurada

por instituições jurídico-políticas e por formas de consciência social. Vigotski, Leontiev e

Luria apenas se apropriam do conceito de cultura formulado pela Antropologia e usam-no

recorrentemente para sintetizar, num único termo, essa totalidade dos produtos da atividade

do homem. Portanto, nessa concepção, os termos sociedade e cultura são tomados como

sinônimos, ambos denotando o produto integral da atividade humana. Conseqüentemente, o

trabalho, como forma própria de atividade do homem, é alçado à condição de atividade

constitutiva, em última instância, do mundo social humano (ou mundo cultural) e de tudo o

que nele se encontra incluso: utensílios materiais, signos, linguagem, instituições sociais etc.

Mais do que constitutivo do mundo social, o trabalho também é, para a Psicologia

sócio-histórica (conforme também já vimos item 1.2), o elemento responsável pela

conformação da própria estrutura biológica do homem, visto que a filogênese humana foi se

desenvolvendo a partir de pressões seletivas decorrentes da necessidade humana de se adaptar

ao mundo cultural originário do trabalho pelo qual o homem conseguia satisfazer suas

necessidades fundamentais e reproduzir a sua existência enquanto espécie.

É bom frisar que todas as descobertas e desenvolvimentos no campo da Paleontologia

humana, desde a época em que Marx e Engels escreveram seus textos até o presente,

confirmaram espetacularmente as teses dos dois co-autores do Materialismo histórico. De

fato, os resultados das análises de fósseis humanos pré-históricos convergem em direção à

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

95

tese de Marx e Engels de que a postura bípede, característica de nossa espécie, foi se

desenvolvendo lentamente ao longo dos anos, em consonância com os progressos do trabalho

e da tecnologia pré-histórica, até alcançar a postura completamente bípede do atual Homo

sapiens sapiens. O mesmo foi ocorrendo com o cérebro humano, que conforme hoje

sabemos passou de 450/500 cm3 nas primeiras espécies humanas (pertencentes ao gênero

Australopithecus) para os atuais 1.400 cm3 em média do sapiens sapiens. Também a estrutura

da mão do homem, nesse período, foi evoluindo de uma estrutura que era mais propícia para

agarrar galhos e subir em árvores, em razão do dedo polegar anteposto aos demais, para uma

estrutura mais adaptada à manipulação de objetos (portanto, ao trabalho), com o dedo polegar

praticamente se alinhando aos outros (LEAKEY e LEWIN, 1980; SHAPIRO, 1982;

LEAKEY, 1995; LINTON, 2000). Enfatizamos que esses fatos são evidências vigorosas do

desenvolvimento do homem e da cultura a partir dos desenvolvimentos do trabalho e de

seus instrumentos.

Os fósseis humanos igualmente reforçam a tese marxiana, aceita pela Psicologia sócio-

histórica, do desenvolvimento da linguagem verbal a partir e sob as pressões do trabalho. A

estrutura anatômica que permite ao homem a emissão de uma ampla variedade de sons

desponta, no caminho filogenético da espécie, muito tardiamente: de forma incipiente com o

Homo erectus (há aproximadamente 1,5 milhão de anos) e, cabalmente, apenas com o Homo

Sapiens (há cerca de 200.000 anos). Portanto, ela aparece somente após os primeiros

desenvolvimentos da tecnologia material (os instrumentos de pedra lascada e de pedra polida)

e concomitantemente à prática da caça de grandes animais. Desse modo, podemos supor de

forma razoável, conforme faz o Materialismo histórico e, dentro dele, a Psicologia sócio-

histórica além de outros pensadores que não possuem filiação teórica ao marxismo que a

linguagem verbal somente se desenvolveu em razão das pressões advindas das necessidades

de comunicação, cooperação e planejamento para a execução de trabalhos coletivos,

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

96

especialmente a caça a grandes animais, no momento em que os homens começaram a tomar

esses animais como uma possibilidade alimentar relativamente acessível (LEAKEY e

LEWIN, 1980; SHAPIRO, 1982; LEAKEY, 1995; LINTON, 2000).

Portanto, a idéia marxista do trabalho como a causa última de todos os

desenvolvimentos, não apenas da sociedade, mas também da estrutura anatômica da espécie

humana, tem um vigoroso suporte empírico na Paleontologia. Ela necessita ser considerada

por quem se debruça sobre as questões humanas (pelo menos quando se preza pelo rigor

lógico nas Ciências Sociais) e não pode ser simplesmente desconsiderada, como fazem alguns

inclusive Berger e Luckmann.

A desconsideração do verdadeiro lugar do trabalho na antropogênese é, pois, o

principal erro no qual incorrem Berger e Luckmann ao incorporarem a Fenomenológia como

metodologia para a investigação dos fenômenos sociais. Esses autores, conforme vimos (item

1.2.), seguindo os ditames do método fenomenológico, embora reconheçam no trabalho a

origem da cultura, e não obstante se considerarem partidários de uma Antropologia marxista,

partem da condição biológica humana como um dado , não como um produto histórico (cuja

gênese encontra-se na relação dialética com o trabalho), e tentam explicar o trabalho, a

linguagem e seus desdobramentos em termos de cultura e de sociedade a partir dessa

condição. Nos termos do próprio BERGER (1985, p. 16-18):

A exteriorização é a contínua efusão do ser humano sobre o mundo, quer naatividade física quer na atividade mental dos homens (...) É através da exteriorização que a sociedade é um produto humano (...)A exteriorização é uma necessidade antropológica. O homem, como o conhecemos

empiricamente, não pode ser concebido independentemente da contínua efusão de simesmo s obre o mundo em que ele se encontra. O ser humano é exteriorizante poressência desde o início. Esse fato antropológico de raiz com muita probabilidade sefunda na constituição biológica do homem (...)O homem precisa fazer um mundo para si. A atividade que o homem desenvolve

em construir um mundo não é, portanto, um fenômeno biológico estranho, e sim aconseqüência direta da constituição biológica do homem.

Berger e Luckmann alteram, dessa forma, no plano metodológico, a relação histórica

de causalidade entre biologia humana e trabalho: no lugar de uma interação dialética entre

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

97

esses elementos (como apontam Marx, Engels e os psicólogos sócio-históricos), eles colocam

a biologia como o elemento originário e a causa absoluta do trabalho. Desse modo, a

estrutura anatômica do homem é tomada como um dado da natureza, em virtude do qual se

desenvolvem o trabalho, a linguagem e a cultura e não é vista como sendo ela própria (a

estrutura anatômica humana), em grande parte, já um produto do próprio trabalho, da

linguagem e da cultura (como apontam, repetimos, o Materialismo histórico e a Psicologia

sócio-histórica em harmonia com as descobertas e desenvolvimentos teóricos da

Paleontologia). A metodologia da ciência pensada em moldes fenomenológicos termina,

assim, por obstar (pelo menos nesse aspecto), a reprodução, pelo conhecimento, dos processos

reais constitutivos da realidade humana. Consequentemente, no lugar de realizar, ela termina

por impedir o propósito fundamental da metodologia da ciência: fazer refletir, no pensamento,

os processos reais do mundo objetivo.

Verifica-se, pois, que a abordagem do homem empreendida (a partir do Materialismo

histórico e dialético) pela Psicologia sócio-histórica (a partir da qual se desenvolve a noção de

sociedade desta perspectiva teórica) é muito mais plausível que a abordagem de Berger e

Luckmann (da qual também vai se desenvolver uma concepção de sociedade), visto estar

respaldada por dados empíricos.

No que diz respeito, agora, à concepção de sociedade de Berger e Luckmann, eles não

fazem coincidir, distintamente da Psicologia sócio-histórica, os conceitos de cultura e de

sociedade (ver item 2.2). Como a Psicologia sócio-histórica, os dois sociólogos

fenomenólogos compreendem a cultura como a totalidade dos produtos do homem. Todavia,

de um modo diferente de Vigotski, Leontiev e Luria, Berger e Luckmann não identificam

cultura à sociedade, definindo essa última como apenas uma dimensão da cultura: aquela que

se ocupa da contínua estruturação das relações dos homens entre si.

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

98

Numa argumentação bastante semelhante à Psicologia sócio-histórica, BERGER

(1985, p. 19) afirma, em citação já feita anteriormente (pág. 66), a transformação do mundo

material e a linguagem como os modos de exteriorização do organismo humano no mundo,

por meio dos quais a cultura se constitui:

O homem produz instrumentos de toda espécie imaginável, e por meio delesmodifica o meio ambiente físico e verga a natureza à sua vontade. O homem produztambém a linguagem e, sobre esse fundamento e por meio dele, um imponenteedifício de símbolos que permeiam todos os aspectos de sua vida .

Contudo, ele não admite, como faz a Psicologia sócio-histórica, nenhuma primazia do

trabalho sobre a linguagem na gênese da cultura. Citando Marx, Berger até afirma o conceito

de trabalho como a categoria sociológica capaz denotar a atividade criadora do homem, mas

interpreta essa categoria de um modo demasiadamente inclusivo (em relação às formulações

originais de Marx), fazendo-a transcender a dimensão econômica (ver pág. 67). É obvio que

Marx sabia da impossibilidade de qualquer trabalho coletivo sem linguagem, de modo que

ele, juntamente com Engels (numa perspectiva que é continuada pela Psicologia sócio-

histórica), fala da linguagem como emergindo do e potencializando o trabalho. Todavia,

isso não é o mesmo que fazer diluir a linguagem, enquanto categoria teórica, na categoria

trabalho, que diz respeito às atividades de transformação da natureza externa pelo homem.

Conforme escreve de forma bastante clara o próprio MARX (1988, p. 142), em passagem de

O capital, também por nós já citada (pág. 26): o trabalho é um processo entre o homem e a

Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu

metabolismo com a natureza . Desse modo, traduzindo o pensamento de Berger e Luckmann

para os conceitos da Psicologia sócio-histórica, podemos dizer que, como a Psicologia sócio-

histórica, eles atribuem ao trabalho e à linguagem a origem da cultura; porém, distintamente

dela, eles não outorgam ao trabalho nenhuma primazia sobre a linguagem.

Retornando então ao conceito de sociedade em Berger e Luckmann, essa enquanto

instância ôntica constitutiva do sujeito diz respeito apenas a uma dimensão da cultura: o

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

99

conjunto de instituições, com seus respectivos papéis sociais , que regula as relações dos

homens em coletividade. Ela não é a totalidade dos produtos do homem (realidade para a qual

eles reservam o conceito de cultura, repetimos), mas apenas uma parcela desses produtos.

Enquanto parcela dos produtos da atividade humana, a sociedade constitui-se, para

Berger e Luckmann (conforme vimos no item 2.2), pela padronização recíproca das ações por

parte dos agentes sociais. Considerando que a linguagem é o instrumento por excelência desta

padronização (pois somente por intermédio da linguagem podemos objetivar e compartilhar

normas de conduta), a constituição da sociedade é fundamentalmente um ato simbólico ou,

como preferem dizer Berger e Luckmann, um ato de atribuição de significados , pela

consciência, às ações humanas.

Desse modo, percebe-se que a sociedade é, tanto para a Psicologia sócio-histórica

como para Berger e Luckmann, uma construção social. Porém, é uma construção diferente e

empreendida por processos dessemelhantes em cada uma das perspectivas. Para a Psicologia

sócio-histórica, é uma construção totalizante, decorrente, em última instância, do trabalho

incluindo aí seus requisitos em termos forças produtivas, padrões de comunicação

(linguagem) e relações de produção. Para Berger e Luckmann, distintamente, uma construção

específica (parte de uma outra construção maior, também humana, que eles designam de

cultura), derivada da padronização recíproca do comportamento nas atividades cotidianas.

Temos, portanto, na Psicologia sócio-histórica e na Sociologia de Berger e Luckmann

(apesar de ambas as perspectivas afirmarem uma constituição social do homem), concepções

um tanto distintas do processo de constituição do sujeito, já que ambas não estão falando

exatamente da mesma realidade quando apontam a sociedade como instância constitutiva

do ser humano. Vigotski, Leontiev e Luria, com esse termo, querem denotar a totalidade dos

produtos da atividade humana, atividade essa que possui no trabalho, repetimos mais uma

vez, sua forma primeira e paradigmática. Já Berger e Luckmann, por sua vez, quando falam

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

100

de sociedade, estão se referindo apenas a uma dimensão embora uma dimensão fundamental

do universo da cultura engendrado pelos homens: as normas, valores e sentimentos que

regulam o conjunto das relações que os homens estabelecem com a natureza, com seus

semelhantes e com os produtos de sua exteriorização sobre o mundo.

Muito embora distintas, as duas perspectivas convergem em muitos pontos, como não

poderia deixar de ser, pois o conceito de sociedade de Berger e Luckmann, embora diferente

do conceito marxiano, não o contradiz. Dito de outra forma e em termos denotativos, a

sociedade bergeriana/luckmaniana, enquanto uma dimensão da cultura , insere-se no

interior da sociedade da Psicologia sócio-histórica, que se identifica com a idéia de

totalidade cultural de Berger e Luckmann. Assim, podemos pensar numa síntese entre

ambas as concepções de sociedade síntese que seria amplificadora do potencial cognitivo e

heurístico de cada conceito tomado separadamente.

Enquanto o conceito de sociedade de Marx, Engels e da Psicologia sócio-histórica

aponta para os processos sociais e históricos amplos e fundantes das sociedades humanas de

uma forma em geral (o trabalho, a linguagem, as forças produtivas, as relações de produção

etc.), o conceito de Berger e Luckmann enfoca processos sociais mais restritos (as

padronizações da conduta que ocorrem em áreas específicas da vida social: direito,

sexualidade, educação etc.), que compreendem os primeiros (isto é, os processos sociais mais

amplos apontados pelo Materialismo histórico) e se desenvolvem a partir deles. Com efeito, a

vida social humana é um mosaico de atividades mais ou menos bem definidas e padronizadas,

atividades essas que só podem se desenvolver se os homens já padronizaram, previamente, o

comportamento econômico imprescindível para a sobrevivência física (material) da espécie.

Desse modo, as relações de produção podem ser pensadas como a primeira forma de

padronização recíproca da conduta (instituição social): a padronização da conduta econômica

(ou trabalho). Tal padronização, por sua vez, exige como requisito um novo tipo de

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

101

padronização: a linguagem ou padronização da conduta comunicativa. A partir dessas duas

instituições primeiras: o modo de produção e a linguagem, ambas surgindo a partir da

atividade do trabalho, edificam-se a totalidade das sociedades humanas, quer pensemo-la na

forma de uma superestrutura jurídico-política e de modalidades de consciência social, como

fazem Marx, Engels e a Psicologia sócio-histórica, quer pensemo-la como um conjunto de

instituições sociais com suas respectivas legitimações simbólicas, como fazem Berger e

Luckmann. A síntese entre ambas as perspectivas, todavia, tem a vantagem fazer ver tanto os

processos amplos e constitutivos (enfatizados pelo Materialismo histórico) como os processos

restritos e derivados (enfatizados por Berger e Luckmann), bem como os problemas que deles

emergem para a vida social humana. Ela é, portanto, como apontamos, cognitiva e

heuristicamente enriquecedora.

Feitas essas observações, podemos passar para a comparação da leitura que ambas as

perspectivas teóricas fazem do processo de constituição do sujeito pela sociedade.

3.3 A constituição do sujeito na Psicologia sócio-histórica e na Sociologia da Berger eLuckmann

O sujeito é constituído pela sociedade, essencialmente por intermédio da linguagem.

Essa é a tese básica e comum à Psicologia sócio-histórica (pelo menos na sua vertente

vigotskiana) e à Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann. Essa tese é, ao mesmo

tempo, o substrato teórico que permite, no tocante à constituição do sujeito, o diálogo entre as

duas perspectivas, não obstante as divergências ontológicas e sociológicas. Conforme

dissemos atrás, a Psicologia sócio-histórica é uma teoria de pressupostos ontológicos

materialistas, enquanto a Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann encontra suas

bases ontológicas na perspectiva idealista da Fenomenologia de Husserl. No tocante às

concepções sociológicas, a Psicologia sócio-histórica entende por sociedade o mesmo que

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

102

cultura, isto é, a totalidade dos produtos da atividade humana , enquanto Berger e Luckmann

definem a sociedade como apenas uma dimensão da cultura: o complexo de instituições que

regula as condutas e relações humanas . Essas duas concepções de sociedade, embora

distintas, não são logicamente incompatíveis, pois as instituições sociais também são

produtos da atividade humana . Desse modo, a partir da perspectiva da Psicologia sócio-

histórica (que possui um entendimento mais amplo do que seja a sociedade), é possível

incorporar, como um enriquecimento pontual (no que diz respeito à natureza e ao

funcionamento das instituições), a concepção bergeriana-luckmanniana de sociedade.

Portanto, opostas em seus pressupostos ontológicos e distintas, mas compatíveis, em suas

concepções de sociedade, a Psicologia sócio-histórica e a Sociologia do conhecimento de

Berger e Luckmann convergem no que se refere à compreensão do processo de constituição

do sujeito, que possui em ambas as perspectivas a sociedade como agente e a linguagem como

principal dispositivo.

Para a Psicologia sócio-histórica a constituição do sujeito ocorre essencialmente pela

internalização, ao longo das atividades e das interações das crianças e dos sujeitos de um

modo em geral com os outros, dos significados sociais veiculados pela linguagem. Os

significados sociais existentes fora dos indivíduos, como funções e conteúdos das relações

sociais, passam a existir também dentro dos próprios indivíduos, como funções e conteúdos

da própria consciência. Vigotski, Leontiev e Luria, no entanto, não tratam detalhadamente dos

padrões de interação que se estabelecem entre a criança e os adultos, a partir dos quais são

realizadas as internalizações dos significados culturais. Suas afirmações restringem-se à

genericidade da afirmação de que essas internalizações são feitas na vida prática e nas

interações dos indivíduos, essencialmente pelo dispositivo da linguagem.

Berger e Luckmann, por sua vez, fazendo a mesma afirmação da constituição do

sujeito na interação com os outros, fundamentalmente pela interiorização da linguagem e de

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

103

seus significados (no processo por eles designado de socialização), irão, distintamente de

Vigotski, Leontiev e Luria, analisar os padrões que se apresentam nas relações das crianças

com os adultos. Assim, eles acabam complementando, nesse campo específico, as reflexões

da Psicologia sócio-histórica. Logo, podemos dizer que enquanto Vigostski, Leontiev e Luria

investigam a atuação da cultura de um modo em geral na formação do sujeito, Berger e

Luckmann analisam a atuação da dimensão específica da cultura que eles chamam de

sociedade . Conforme já pontuamos, a concepção de sociedade de Berger e Luckmann é

compatível e pode logicamente ser inserida no conceito de sociedade (sinônimo de cultura) da

Psicologia sócio-histórica, pois a primeira nada mais é que uma dimensão específica dessa

última: os modelos sancionados de conduta oriundos da própria atividade humana. Por

conseguinte, ao elegerem como foco de suas análises sobre a constituição do sujeito uma

dimensão específica da concepção de sociedade (cultura) da Psicologia sócio-histórica, Berger

e Lukcmann aprofundam, em relação à Psicologia sócio-histórica, a análise sobre os

dispositivos e as influências próprias dessa dimensão da cultura no processo de constituição

do sujeito.

O enriquecimento que a perspectiva de Berger e Luckmann traz para as ponderações

da Psicologia sócio-histórica, sobre o processo de constituição do sujeito, pode ser

sistematizado nos termos a seguir: Berger e Luckmann acrescentam que os significados

sociais também e principalmente são assimilados na forma de modelos de conduta para

situações específicas, ou seja, na forma de papéis sociais . Esses papéis a criança identifica

na interação com os outros, vendo-os repetidamente desempenhar os mesmos papéis nas

mesmas situações. Ao imitar esses mesmos outros em suas brincadeiras infantis, a criança vai

paulatinamente aprendendo ela mesma a desempenhar os papéis do seu mundo social e, nesse

processo, vai interiorizando os significados objetivos desse mundo. Portanto, Berger e

Luckmann, na verdade, apenas enfatizam determinada dimensão do processo de

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

104

internalização não focado pelas análises da Psicologia sócio-histórica: os padrões (ou

tipificações) que regem as interações humanas no mundo social e a influência deles sobre a

constituição da consciência individual.

Não obstante a compatibilidade acima apresentada entre as duas concepções do

processo de constituição do sujeito (processo de internalização, para a Psicologia sócio-

histórica, e processo de socialização, para Berger e Luckmann), uma distinção não perceptível

a um primeiro olhar emerge da comparação mais apurada da concepção de Berger e

Luckmann sobre o sujeito com a concepção da Psicologia sócio-histórica sobre o mesmo

objeto. Berger e Luckmann apontam para a possibilidade de conflitos no interior do sujeito

entre os significados socialmente aprendidos e as inclinações ou desejos subjetivos do sujeito.

Berger, inclusive, em texto já citado em parceria com Brigitte Berger, chega a evocar os

conceitos de eu e me de Mead a fim de equacionar teoricamente esses conflitos. Diz ele:

o eu representa a consciência espontânea ininterrupta da individualidade que todos temos. Já

o me representa a parte da individualidade que foi configurada ou moldada pela sociedade

(BERGER e BERGER apud FORACCHI e MARTINS, 1977, p. 211). Essas duas dimensões

da consciência dialogam e conflitam no interior do sujeito:

Essas duas facetas da individualidade podem conversar uma com a outra. Ummenino que esteja sendo criado na sociedade americana, por exemplo, aprendecertas coisas que, segundo se supõe, ficam bem a um menino, como a coragemdiante da dor. Suponhamos que o menino machuque o joelho e que este comece asangrar. O eu registra a dor e, ao que imaginamos, quer irromper em prantos. O me,de outro lado, aprendeu que um bom menino deve ser corajoso. É o me que faz omenino morder o lábio e suportar a dor. Ou então, suponhamos que o menino estejamais velho, e tenha uma professora muito simpática na escola que freqüenta. O euregistra a atração sentida pelo menino e não quer outra coisa que não agarrar aprofessora e fazer amor com ela. Mas o me assimilou a norma social segundo a qualsimplesmente não se faz uma coisa dessas. Não é difícil imaginar uma conversaçãointerior mantida entre essas duas faces da individualidade. Uma delas dirá: Ande,agarre-a , enquanto a outra advertirá: Pare, isso não está certo (BERGER eBERGER apud FORACCHI e MARTINS, 1977, p. 211-2).

A explicação que nos oferece Berger para tal fato é a de que a socialização, embora

configure parte significativa do sujeito, não o constitui na totalidade, sempre restando algo

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

105

alheio e distinto dos conteúdos interiorizados na socialização e que, por vezes, a eles se

opõem. Nos termos do autor:

Vê-se que num ponto muito importante a socialização configura a individualidade.Não pode configurá-la em toda a extensão. Sempre restará algo de espontâneo eincontrolável, que vez por outra irrompe de forma imprevisível (BERGER eBERGER apud FORACCHI e MARTINS, 1977, p. 212).

Não fica claro na sociologia de Berger e Luckmann, porém, o que é essa coisa

espontânea e incontrolável , que por vezes insurge-se contra a dimensão socializada do

sujeito. Temos aqui, muito provavelmente, uma manifestação da ontologia idealista dos

autores na sua concepção do sujeito. O espontâneo e incontrolável do sujeito, não tendo

uma origem material e social, e dado à inexistência de padrões biológicos de comportamento

na espécie humana conforme os próprios autores defendem (item 2.2) só pode advir da

dimensão espiritual do homem da qual fala o pensamento fenomenológico (item 2.1), no

qual o sistema de Berger e Luckmann finca suas raízes mais profundas. Assim, emerge aqui,

novamente, de forma sutil, a contradição inerente ao projeto bergeriano-luckmaniano de fazer

uma ciência empírica, livre de pressupostos filosóficos, tomando por suporte filosófico uma

ontologia-epistemologia de natureza idealista.

Destarte, apesar da convergência no modo de entender a constituição do sujeito, a

relação sujeito/consciência não é a mesma em Berger e Luckmann e na Psicologia sócio-

histórica.

Para os dois sociólogos fenomenólogos, o sujeito se constitui pela interiorização, na

sua consciência, dos significados objetivados do mundo social. A consciência humana,

todavia, não é definida e tampouco problematizada. Ela aparece na análise dos autores como

um dado antropológico , condição da humanização do homem (tanto no sentido filogenético

como no sentido ontogenético), no qual se alojam os significados do mundo social

transmitidos por intermédio da socialização. A consciência é, portanto, em Berger e

Luckmann, um elemento anterior e um requisito à constituição do sujeito. Desse modo, ela

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

106

pode ser tomada, legitimamente, como manifestação da dimensão espiritual do homem

embora isso, evidentemente, não seja literalmente dito pelos autores (deduz-se, entretanto, nas

entrelinhas, tendo em vista o suporte filosófico fenomenológico do sistema sociológico em

questão).

Já a Psicologia sócio-histórica, distintamente, não toma a consciência como um

dado , mas investiga a sua natureza própria a partir da consideração das formas psíquicas do

mundo animal e dos princípios que regem a evolução da vida. O resultado, conforme

demonstramos (ver item 1.1), é a concepção da consciência como o reflexo psíquico da

atividade humana mediada por instrumentos e signos. Desse modo, nessa perspectiva, a

consciência é também ela própria e não apenas os seus conteúdos um produto social e

histórico. Ele emerge, no plano filogenético, em razão da utilização, pelos primeiros

hominídeos, de mediadores materiais e psíquicos para a atividade; e, no plano ontogenético,

pela mediação social da linguagem. Por conseguinte, ela não toma o caráter de um a priori

indefinido, dado , espontâneo , requisito para a constituição do sujeito (como em Berger e

Luckmann); distintamente, ela se constitui como um produto da atividade e das relações

humanas, como a dimensão fundamental e não o requisito do sujeito.

Apesar de entremeado pelos pressupostos idealistas, imprecisões e ambigüidades que

estamos apontando, o pensamento de Berger e Luckmann tem, porém, em relação ao

pensamento da Psicologia sócio-histórica, o mérito de acenar para a existência de conflitos

internos ao sujeito conflitos que nenhum ser humano honesto, portador de alguma

maturidade psíquica, negaria ao recordar com um olhar introspectivo suas próprias

experiências de vida. Embora não seja impossível ou incoerente pensar tais conflitos a partir

do referencial conceitual da Psicologia sócio-histórica, o fato é que essa problemática não

emerge no quadro das obras de Vigotski, Leontiev e Luria. Esses autores falam apenas de

internalização e resignificação, por parte do sujeito, dos significados sociais. Não fazem

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

107

referência à possibilidade de conflitos entre os significados sociais objetivamente disponíveis

na cultura e as possíveis resignificações desses significados empreendidas pelo sujeito

muito embora isso, evidentemente, apareça como uma possibilidade lógica a partir do

momento em que, ao sujeito, é dada a faculdade de resignificar os significados objetivos do

processo de internalização. Portanto, embora mal equacionado, Berger e Luckmann apontam

para um fenômeno aparentemente esquecido pela Psicologia sócio-histórica e que pode ser

sistematizado de um modo mais coerente a partir da perspectiva ontológica desta última

escola.

Com efeito, não precisamos postular uma dimensão do sujeito distinta ou

transcendente em relação à materialidade e à cultura para justificar a existência de conflitos,

internos ao sujeito, entre os significados sociais objetos da internalização/socialização e as

inclinações ou desejos subjetivos. Se, como aponta a Psicologia sócio-histórica, tudo no

psiquismo do homem tem uma origem material e social, também os conflitos internos ao

sujeito terão uma causa material e social. Ora, como já escrevemos (item 1.4), seguindo as

idéias de Vigotski, Leontiev e Luria, cada indivíduo vai forjando sua consciência individual e

se constituindo enquanto sujeito a partir de suas primeiras experiências, internalizações e

afetos. Desse modo, a partir de sua consciência incipiente24 (e sempre em formação), o sujeito

vai sempre resignificando os significados internalizados a cada momento, isto é, vai

transformando significados culturais em sentidos pessoais. Por conseguinte, os conteúdos

psíquicos próprios ao sujeito e que se opõem aos conteúdos culturais não precisam ser vistos

como a dimensão misteriosa, espontânea e incontrolável do psiquismo do homem, da qual

fala Berger. Eles podem ser interpretados simplesmente com sentidos pessoais, isto é,

24 Bom pontuar que a consciência humana é uma dimensão dinâmica do homem, isto é, está sempre em processo de formação e transformação. Todavia, nos anos iniciais da vida, ela está a se constituir, de modo que podemosdizer que, nesta fase, ela é uma consciência incipiente . Após isso, embora já constituída , ela estará sempresujeita à mudanças, em razão das novas experiências e aprendizagens do sujeito.

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

108

significados sociais reinterpretados pelo sujeito em função de suas vivências pessoais

(cognitivas e afetivas) concretas.

O fato da existência de conflitos, no sujeito, entre tendências (sentidos) pessoais e

conteúdos sociais, indica que o poder da sociedade de constituição do sujeito a partir dos seus

próprios padrões objetivos, embora vigoroso o suficiente, não é infalível. Essa afirmação

encontra-se presente, em sua forma básica, tanto na obra de Berger e Luckmann como nos

textos da Psicologia sócio-histórica. Em ambas as perspectivas o sujeito é constituído

essencialmente pelos significados socialmente constituídos por intermédio da linguagem e

sempre fica dada a possibilidade desses significados serem reinterpretados e/ou recusados

pelo sujeito. A diferença é que para Berger e Luckmann a recusa ou reinterpretação é feita por

uma dimensão do psiquismo que de alguma forma é alheia aos processos sociais e históricos:

a consciência espontânea ininterrupta da individualidade ; para a Psicologia sócio-histórica,

por uma dimensão também ela produto desses mesmos processos: a singularidade de cada

consciência individual.

Alcançando esse ponto, nossa análise precisa traçar um paralelo entre a tese da

Psicologia sócio-histórica e a da Sociologia de Berger e Luckmann de que o sujeito é

constituído fundamentalmente pelos significados socialmente partilhados por uma sociedade

(essencialmente na forma da linguagem) e o conceito de ideologia tal qual fora desenvolvido

por Louis ALTHUSSER (1985) e Alípio de SOUSA FILHO (1990, 1995, 2003). Esse

paralelo nos levará a vislumbrar as implicações de nossas análises sobre o processo de

constituição do sujeito na Psicologia sócio-histórica e na Sociologia de Berger e Luckmann

para a compreensão do modo de atuação da ideologia nas sociedades humanas.

Segundo ALTHUSSER (1985, p. 85), a ideologia é a representação da relação

imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência . Essa representação

imaginária mistifica as relações concretas reais que se estabelecem entre os indivíduos e a

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

109

sociedade e é, em última instância, determinada pela natureza das relações de produção da

sociedade. No caso das sociedades de classes, as expressões fundamentais da ideologia

realizam a mistificação da divisão da sociedade em classes e do conflito entre elas,

apresentando a perspectiva, os interesses e os valores da classe dominante como universais,

naturais e necessários, bem como apresentando a dominação de classes ou como não existindo

ou como benfazeja e necessária. Escreve ALTHUSSER (1985, p. 88):

Toda ideologia representa, em sua deformação necessariamente imaginária, não asrelações de produção existentes (e as outras relações delas derivadas) mas sobretudoa relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e demais relações daí derivadas. Então, é representado na ideologia não o sistema das relações reaisque governam a existência dos homens, mas as relações imaginárias dessesindivíduos com as relações reais sob as quais eles vivem.

Compreendida então como o conjunto das representações imaginárias sobre as

relações sociais reais, que mistifica a verdadeira natureza dessas relações, a ideologia,

segundo Althusser, existe não apenas no plano das representações, mas também no plano

material concreto, pois ela se desdobra em atos e práticas concretos. Desse modo, existindo

também materialmente , na forma de atos e práticas, a ideologia é um dos dispositivos

capitais (talvez o mais importante) à reprodução das relações sociais concretas que estruturam

as realidades sociais. A eficácia da ideologia para a reprodução dos sistemas sociais está no

fato de que, ao interpretar de forma mistificada as relações reais, ela orienta a ação dos

homens no sentido da aceitação e do não questionamento dos padrões sociais vigentes em

suas respectivas sociedades. Assim, a ideologia manipula os sujeitos para os atos e as práticas

que efetuam a reprodução das relações sociais vigentes. No trecho abaixo, ALTHUSSER

(1985, p. 89-92) explicita claramente tanto o caráter material da ideologia como o seu papel

na reprodução das relações sociais:

Vejamos o que se passa com os indivíduos que vivem na ideologia, isto é, numarepresentação do mundo determinada (religiosa, moral etc) cuja deformaçãoimaginária depende de sua relação imaginária com suas condições de existência, ouseja, em última instância das relações de produção e de classe (...) Diremos que essarelação imaginária é em si mesma dotada de uma existência material.Constatamos o seguinte: Um indivíduo crê em Deus, ou no Dever, ou na Justiça, etc. Esta crença provem

(para todo mundo, isto é, para todos que vivem na representação ideológica da

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

110

ideologia, que reduz a ideologia, por definição, às idéias dotadas de existênciaespiritual) das idéias do dito indivíduo enquanto sujeito possuidor de umaconsciência na qual estão as idéias de sua crença. A partir disso, isto é, a partir dodispositivo conceitual perfeitamente ideológico assim estabelecido (um sujeitodotado de uma consciência aonde livremente ele formula as idéias em que crê), ocomportamento material do indivíduo decorre naturalmente.

O indivíduo em questão se conduz de tal ou qual maneira, adota tal ou qualcomportamento prático, e, o que é mais, participa de certas práticas regulamentadasque são as do aparelho ideológico do qual dependem as idéias que livrementeescolheu com plena consciência, enquanto sujeito. Se ele crê em Deus, ele vai àIgreja assistir à Missa, ele se ajoelha, reza, se confessa, faz penitência (...), enaturalmente se arrepende, e continua etc. Se ele crê no Dever, ele terácomportamentos correspondentes, inscritos nas práticas rituais, segundo os bonscostumes . Se ele crê na Justiça, ele se submeterá sem discussão às regras doDireito, e poderá mesmo protestar quando elas são violadas, assinar petições, tomarparte em uma manifestação etc.

Em todo esse esquema, constatamos portanto que a representação ideológica daideologia é, ela mesma, forçada a reconhecer que todo sujeito dotado de umaconsciência e crendo nas idéias que sua consciência lhe inspira, aceitando-as

livremente, deve agir segundo suas idéias , imprimindo nos atos de sua práticamaterial as suas próprias idéias enquanto sujeito livre (...)

Diremos portanto, considerando um sujeito (tal indivíduo), que a existência dasidéias de sua crença é material, pois suas idéias são seus atos materiais inseridos empráticas materiais, reguladas por rituais materiais, eles mesmos definidos peloaparelho ideológico material de onde provêm as idéias do dito sujeito.

Dando continuidade, a partir daí, à sua argumentação, Althusser chega então à sua tese

central: a de que o modo essencial de ação da ideologia no interior das estruturas sociais é o

da constituição de sujeitos. Na verdade, ela ideologia somente existe para e pelos sujeitos.

Nos termos do próprio ALTHUSSER (1985, p. 93):

Só há ideologia pelo sujeito e para os sujeitos. Ou seja, a ideologia existe parasujeitos concretos, e esta destinação da ideologia só é possível pelo sujeito; isto é,pela categoria de sujeito e de seu funcionamento (...)Toda ideologia tem por função (é o que a define) constituir indivíduos concretosem sujeitos.

O que faz a ideologia, portanto (e isso é o seu modo fundamental de operar), é

interpelar e constituir os indivíduos em sujeitos que somente se convertem em tais pela

interiorização (ou internalização, se preferirmos os termos da Psicologia sócio-histórica) dos

conteúdos ideológicos. Assim, ascender da condição natural de um exemplar vivo da

espécie à condição de um sujeito de determinada coletividade humana é um percurso que os

homens somente fazem por intermédio das diretrizes da ideologia. Como dizia São Paulo

admiravelmente, é no Logos , leia-se na ideologia, que aprendemos o ser, o movimento e a

vida (ALTHUSSER, 1985, p. 94).

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

111

É bom frisar que, na perspectiva de Althusser, o conceito de indivíduo aparece

apenas como uma abstração e um recurso do discurso, pois desde antes do seu

nascimento a ideologia já dele se apropria (do indivíduo) e o converte em sujeito. Portanto,

para a ideologia, o indivíduo é sempre/já sujeito : os indivíduos são (...) abstratos em

relação aos sujeitos que existem desde sempre (ALTHUSSER, 1985, p. 98). Bem entendido,

embora em sua subjetividade o indivíduo não seja a princípio um sujeito, pois (conforme

temos demonstrado até aqui pelas reflexões de Vigotski, Leontiev, Luria, Berger e Luckmann)

todo um longo processo de interiorização (internalização) dos significados sociais se torna

necessário para a sua conversão em tal, socialmente, no entanto, ele já é um sujeito,

predestinado, pela ideologia, a ocupar um lugar e a realizar determinadas práticas num mundo

social específico. Escreve ALTHUSSER (1985, p. 98):

Que um indivíduo seja sempre/já sujeito, antes mesmo de nascer, é no entanto amais simples realidade, acessível a qualquer um, sem nenhum paradoxo (...) Todossabemos como e quanto é esperada a criança a nascer. Deixando de lado ossentimentos isto, prosaicamente, quer dizer que as formas de ideologia

familiar/paternal/maternal/conjugal/fraternal, que constituem a espera do nascimento da criança, lhe conferem antecipadamente uma série de características: ela terá onome do pai, terá portanto uma identidade, e será insubstituível. Antes de nascer acriança é portanto sujeito, determinada a sê-lo através de e na configuraçãoideológica familiar específica na qual ele é esperado após ter sido concebido.

As formulações de Sousa Filho sobre a ideologia significam uma ampliação da

perspectiva de Althusser na medida em que, nesse autor, a ideologia não se restringe às

representações mistificadoras da divisão da sociedade em classes e do conflito entre elas.

Mais do que isso, para Sousa Filho, a ideologia é a representação mistificadora do poder da

sociedade sobre os indivíduos, representação essa que faz desaparecer o caráter histórico,

convencional e relativo das instituições sociais tomadas, pela ideologia, como naturais (ou

divinas), necessárias e absolutas. Nos termos do autor:

A ideologia consiste na representação que torna as instituições sociais autônomas,eliminando todos os vestígios da historicidade do processo que lhes deu origem.Simplesmente, na ideologia, o que é resultado, produto, obra da prática dos homens,aparece como coisa dada, natural, sagrada, independente do agir humano, assumindo a forma de algo fantasmagórico (no dizer de Marx, em O capital) ignorado pelospróprios homens (SOUSA FILHO 1995, p. 40).

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

112

Segundo Sousa Filho, o fundamento da ideologia encontra-se não somente nas

relações de produção, mas no fenômeno mais amplo da alienação do social. Em outros

termos, a instituição do social é sempre acompanhada pela perda da memória dos processos

sociais e históricos que engendram tal instituição, de modo que a realidade social passa a

tomar o caráter, na experiência dos homens, de coisa dada , independente do querer e agir

humanos, e à qual esse querer e agir têm que se subordinar. É o fenômeno da alienação do

social, ao qual já fizemos referência, pois se trata de um fenômeno contemplado tanto pelas

reflexões da Psicologia sócio- histórica (ver item 1.2) como pelas reflexões de Berger e

Luckmann (ver item 2.2) embora sob enfoques um tanto quanto distintos. Pois bem, o

fenômeno da ideologia nada mais é do que o reflexo na consciência dos homens do fenômeno

da alienação do social. Ora, se as instituições sociais apresentam-se, na experiência cotidiana

dos homens, como realidades autônomas, cuja origem é ignorada, e que precisam ser

observadas nas práticas do dia-a-dia, é uma conseqüência natural então lembremos da

afirmação de Marx de que a consciência é determinada pelo ser social (ver item 1.2) que,

na consciência, tais instituições sejam representadas como independentes e acima dos

homens, portadoras de um caráter necessário, absoluto e natural/sagrado. Assim é que

SOUSA FILHO (1990, p. 66) afirma ser a ideologia o próprio modo do aparecer social para

os homens:

Na ideologia, ocorre não aparecer exatamente as mediações e as relações queconstituem o processo real. Por permanecerem ocultas, não temos senão umaimagem da realidade, dada pela maneira como o real aparece à observação. Dissopodemos dizer, a ideologia é o modo do aparecer social.

Ao naturalizar/sacralizar o modo do aparecer social, a ideologia legitima a sujeição

dos indivíduos (sujeitos) aos padrões sociais vigentes dentre eles, as relações sociais de

produção, mas não apenas elas em sua cultura. Desse modo, a ideologia converte-se num

discurso da dominação da cultura sobre os indivíduos que, dado sua existência (da

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

113

ideologia) material (como aponta Althusser), é eficaz para a reprodução da ordem vigente em

cada sociedade.

Vale frisar que quando fala de dominação social , Sousa Filho não está se referindo

apenas à dominação de classe enfatizada por Althusser , que tem lugar, nas sociedades

humanas, com o advento da propriedade privada dos meios de produção e da exploração do

trabalho do homem pelo homem. De um modo distinto, Sousa Filho está se referindo a um

fenômeno mais amplo e anterior (contemporâneo à própria instituição da sociedade), do qual

a dominação de classe é apenas uma faceta: a dominação dos indivíduos pelos sistemas

culturais (crenças, normas, valores e padrões de comportamento) dentro dos quais e pelos

quais eles se constituem em sujeitos.

O que aqui estou fazendo entender por dominação não é a experiência do podercomo algo destacado da sociedade (...) a dominação deve ser entendida comosempre-já a experiência da submissão à vida em sociedade, pois essa experiêncianão existe senão como tal para os indivíduos humanos. A vida em sociedade, todaela organizada sob a forma de padrões, normas e crenças, coloca o indivíduo na mira de diversos mecanismos de controle social, que são eles as formas pelas quais adominação se exerce (SOUSA FILHO, 1995, p. 41).

Tal fenômeno, conforme vimos anteriormente, já fora apontado pelas reflexões da

Psicologia sócio-histórica (ver item 1.4) e discutido pela Sociologia de Berger e Luckmann

(ver item 2.2). Sendo um fenômeno mais vasto e anterior à dominação de classe, deve

logicamente ser pensado como um dos fundamentos sobre os quais repousa ao lado da

propriedade privada dos meios de produção e da violência física organizada dos dominadores

a dominação de classe. Com efeito, é nesta direção que nos conduz as reflexões de SOUSA

FILHO (1995, p. 42):

Torna-se possível pensar a precedência histórica do ponto de vista da história dahumanidade e a precedência cronológica se quisermos pensar a biografia doindivíduo de uma experiência que se dá antes e algures à divisão da sociedade emdominantes e dominados. Isto é, as sociedades humanas, antes de organizarem adominação calcada na divisão em classes, organizaram formas de dominação aosseus membros que não passam pelo poder das classes e do Estado (...) Estando osindivíduos submetidos à ideologia, desde seu ingresso na cultura, se constituirãosujeitos destinados a acreditarem no Estado e nas classes dominantes comonecessários, inevitáveis, naturais e divinos.

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

114

A ideologia é, pois, as representações que legitimam a condição de sujeição a que os

homens estão inevitavelmente submetidos na vida cultural, e que o faz pelo mascaramento do

caráter histórico, convencional e relativo das instituições sociais, que passam, na ideologia, a

serem tomadas como naturais e/ou sagradas, necessárias e absolutas.

Sousa Filho afirma, ainda, que é fundamentalmente pela linguagem, isto é, pelos

significados sociais objetivados e veiculados na forma dos signos lingüísticos embora não

apenas por eles que a ideologia adquire status ontológico. Em outros termos, os significados

mascaradores do caráter histórico, convencional e relativo da realidade (a ideologia)

objetivam-se e transitam no espaço cultural primordialmente pelos intercâmbios lingüísticos.

Nas palavras do autor:

A linguagem é a forma mais perfeita de condução das representações sociais, cujanatureza serve ao ocultamento do processo de institucionalização da realidade (...) Em vista do seu caráter, a linguagem é o suporte de operações essenciais à

produção da alienação: permite o ocultamento de caráter de convenção que lhe éintrínseco e a origem social dela própria e permite o ocultamento da naturezahistórico-social das instituições, dando suporte às representações que tornam o realobjeto autônomo objeto sem o concurso da ação dos homens (...)A linguagem é responsável pela fixação das idéias segundo as quais existe uma

natureza das coisas cuja prova são os signos que as representam (SOUSA FILHO,1995, p. 26-7).

Interpretadas a partir do conceito de ideologia, conforme os desenvolvimentos acima

de Althusser e Sousa Filho, as reflexões da Psicologia sócio-histórica e da Sociologia do

conhecimento de Berger e Luckmann constituem-se em teorizações sobre a constituição do

sujeito pela ideologia embora o termo ideologia não apareça, a rigor, nas formulações

teóricas das duas perspectivas25. Ora, os significados sociais constitutivos do sujeito,

objetivados e veiculados pela linguagem na forma de representações (enfatizados pela

Psicologia sócio-histórica e, também, por Berger e Luckmann) e na forma de

instituições/papéis sociais (enfatizados por Berger e Luckmann), nada mais são do que as

representações ideológicas (isto é, as representações produzidas a partir da experiência da

25 Única exceção apenas para a passagem de Vigotski, citada atrás (pág. 48), que afirma que a toda ideologiacorresponde uma estrutura psicológica de tipo definido (VIGOTSKI, 2000, p. 33). Essa passagem, no entanto, éoriunda de apontamentos aos quais o autor ainda não tinha dado uma forma acabada e que, em função de suamorte prematura, foram publicados posteriormente na forma em que se encontravam.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

115

alienação) e suas manifestações materias que, no dizer de ALTHUSSER (1985),

interpelam os indivíduos e os constituem em sujeitos.

Temos, pois, na Psicologia sócio-histórica e na Sociologia do conhecimento de Berger

e Luckmann, uma sistematização dos dispositivos pelos quais a sociedade, por intermédio da

ideologia, transforma indivíduos humanos em sujeitos sociais específicos. Em outros termos,

as formulações sobre a constituição do sujeito dessas duas escolas teóricas constituem-se

numa explicitação dos dispositivos por meio dos quais a ideologia captura os indivíduos

humanos e passa a dominá-los a partir do próprio processo social (internalização ou

socialização) que os constitui em sujeitos. Portanto, o que nos mostram as análises da

Psicologia sócio-histórica e da Sociologia de Berger e Luckmann, quando interpretadas sob a

luz das reflexões de Althusser e Sousa Filho, é o modo de operar da ideologia na constituição

de indivíduos humanos em sujeitos a ela (ideologia) subordinados.

Essa convergência na abordagem de ambas as perspectivas, todavia, não nos impede

de ver as divergências entre elas no que se refere ao modo como os significados sociais (isto

é, a ideologia) são erigidos em cada perspectiva: na Psicologia sócio-histórica, sob o primado

e as injunções do trabalho e das relações que os homens estabelecem para executá-lo numa

abordagem inteiramente compatível com os pressupostos ontológicos materialistas dessa

perspectiva; na Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann, por sua vez, por meio das

interpretações que os homens fazem de suas interações tipificadas o que nos remete, em

última instância, para uma consciência que, de certa forma autônoma, elege significados para

o mundo. Conforme já pontuamos em outras passagens, essa visão da Sociologia de Berger e

Luckmann decorre dos pressupostos ontológicos idealistas (fenomenológicos) do sistema

teórico dos autores e está em franca contradição com a intenção dos mesmos de fazerem uma

ciência empírica, livre de pressupostos filosóficos.

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

116

Divergências a parte no modo de entender a gênese dos significados sociais

(ideologia), as formulações da Psicologia sócio-histórica e da Sociologia de Berger e

Luckmann convergem no que tange ao papel dos referidos significados na constituição do

sujeito. Pois, o que ambas as perspectivas mostram consistentemente, repetimos, é que a

passagem do ser humano de simples exemplar biológico da espécie (indivíduo) a ator social

portador de determinadas crenças, idéias, valores, objetivos, sentimentos e padrões de conduta

(sujeito) é algo que não ocorre senão pelos significados que cada sociedade atribui ao mundo,

ou seja, pela ideologia. Nesse sentido, podemos dizer que toda a sistematização teórica de

ambas as perspectivas pode ser condensada no essencial pela asserção e esta é uma

implicação importante das reflexões dos dois sistemas teóricos para o entendimento do modo

de operar da ideologia de que é a ideologia o que constitui o homem em sujeito.

A implicação mais importante dessa leitura para a compreensão do modo de atuação

da ideologia nas sociedades humanas, no entanto, é que sendo a ideologia a legitimação da

dominação, a constituição do sujeito pela ideologia é a sua constituição para a dominação.

Em outros termos, o sujeito social é constituído na e para a sujeição ao modelo de

sociedade no qual ele vive. Os seres humanos são, portanto, por sua própria condição de

sujeitos sociais, constituídos não para a autonomia como geralmente as representações

ideológicas vigentes nas sociedades capitalistas modernas nos fazem crer mas para a

subordinação. Essa ambigüidade de um sujeito (isto é, alguém que se determina princípios,

valores, objetivos e ações) que se constitui na e para a sujeição é expressa no próprio

significado corrente do termo sujeito , conforme bem observou ALTHUSSER (1985, p. 103-

4):

Na acepção corrente do termo, sujeito significa 1) uma subjetividade livre: umcentro de iniciativas, autor e responsável por seus atos; 2) um ser subjugado,submetido a uma autoridade superior, desprovido de liberdade, a não ser a delivremente aceitar sua submissão.

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

117

O fato da sujeição do sujeito aos sistemas culturais não escapa, como já

demonstramos, às reflexões da Psicologia sócio-histórica e da Sociologia do conhecimento de

Berger e Luckmann. No entanto, ganha contornos mais nítidos é enfatizada quando

abordada a partir do conceito de ideologia. Pois, o que o conceito de ideologia nos faz ver é

um pouco mais que a simples subordinação do sujeito a seu ambiente cultural: é sua

subordinação às mistificações produzidas pelos homens, sob a experiência da alienação, sobre

esse ambiente cultural subordinação essa que alimenta a própria alienação e outorga ainda

mais pertinência às representações ideológicas, num círculo vicioso do qual os homens,

normalmente, não têm como sair. Nos termos contundentes de ALTHUSSER (1985, p. 103)

em passagem que, aliás, converge em tudo com as ponderações feitas por Berger e Luckmann

sobre a cooperação dos homens para com sua própria dominação e sobre os mecanismos de

controle sociais que agem quando, por ventura, essa cooperação arrefece:

Os sujeitos caminham , eles caminham por si mesmos na imensa maioria doscasos, com exceção dos maus sujeitos que provocam a intervenção de um outrosetor do aparelho (repressivo) do Estado. Mas a imensa maioria dos (bons) sujeitoscaminha por si , isto é, entregues à ideologia (...) Eles se inserem nas práticasgovernadas pelos rituais dos AIE [aparelhos ideológicos de Estado]. Elesreconhecem o estado de coisas existentes (...), que as coisas são certamente assim

e não de outro modo , que é preciso obedecer a Deus, a sua consciência, ao padre, ade Gaulle, ao patrão, ao engenheiro, que é preciso amar o próximo como a simesmo , etc. Sua conduta concreta, material, inscreve na vida a palavra admirávelde sua oração: Assim seja! .

Já que assim é , que assim seja : é o que diz eternamente a ideologia aos homens,

ao longo de toda vida e, principalmente, no processo mesmo (internalização ou socialização)

que os constitui em sujeitos. Que assim sejamos, pois, sempre submissos, sempre sujeitos de

nossa própria sujeição, sempre privados de nossa autonomia e liberdade por aquilo mesmo

que nos liberta da submissão aos ditames do mundo natural: a cultura. O pensamento da

Psicologia sócio-histórica e da Sociologia de Berger e Luckmann, portanto, quando

interpretados a partir do conceito de ideologia, explicita os dispositivos pelos quais as vozes

da ideologia se convertem nas vozes do interior do homem: vozes que dão vida à sua

consciência, determinam as suas idéias, estabelecem os objetivos e os valores de sua vida e

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

118

manipulam as suas ações e os seus sentimentos. Vozes que constituem, em suma, na sujeição,

o sujeito.

É importante frisar, no entanto, que existem possibilidades de superação da ideologia

e, por conseguinte, possibilidades de que o sujeito adquira uma certa autonomia face aos

padrões culturais aos quais a ideologia tende a aprisioná-lo. Embora não seja o propósito desta

dissertação discutir tais possibilidades de superação da ideologia e da sujeição, vale a pena

acenar ligeiramente à título de reflexões que precisam, numa outra ocasião, de um

desenvolvimento maior para um dos mais pertinentes tratamento do assunto na literatura

filosófico-sociológico: a obra do filósofo theco Karel KOSIK (2002) intitulada Dialética do

concreto. As reflexões de Kosik podem ser sintetizadas, superficialmente, da forma que

segue.

Para Kosik, as representações ideologizadas , via de regra, resultam da práxis

utilitária imediata dos homens, isto é, das atividades que objetivam simplesmente a

manipulação das coisas, e não o seu conhecimento ou transformação. Ele escreve:

A práxis utilitária cotidiana cria o pensamento comum em que são captadas tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a técnica detratamento das coisas como forma de seu movimento e de sua existência. Opensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias(...) Arepresentação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: éa projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricaspetrificadas (KOSIK, 2002, p. 19).

Para superar tais representações comuns , ideologizadas , o sujeito cognoscitivo,

segundo Kosik, precisa fazer um detóur, isto é, um desvio , uma abstração da práxis

utilitária imediata , das preocupações ordinárias do cotidiano, em favor de determinadas

atividades que busquem, mais que a simples manipulação das coisas, o conhecimento e/ou a

transformação das mesmas. Nos termos do autor:

Como as coisas não se mostram ao homem diretamente tal qual são e como ohomem não tem a faculdade de ver as coisas diretamente na sua essência, ahumanidade faz um detóur para conhecer as coisas e a sua estrutura (...) tal detóur éo único caminho acessível ao homem para chegar à verdade (KOSIK, 2002, p. 27).

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

119

Segundo o pensador theco, as atividades que permitem esse detóur da prática utilitária

imediata e, por conseguinte, o conhecimento da verdadeira essência (estrutura) da realidade

o que significa a superação das representações ideológicas são a prática teórica (filosófica

e/ou científica), a prática artística e a prática política.

Desse modo, pois, para Kosik, é por intermédio das atividades que buscam a

transformação ou o conhecimento da realidade (a política, a arte, a filosofia e a ciência) que o

homem pode romper o círculo vicioso acima referido (alienação-ideologia-alienação) e

transcender à ideologia. Nesse processo, o sujeito pode tomar consciência das determinações

sociais que o constituíram num sujeito para a sujeição e, talvez, alcançar alguma autonomia

e liberdade enquanto sujeito.

As reflexões de Kosik, portanto, apontam os caminhos através dos quais é possível a

constituição de um sujeito crítico face à ideologia e, por conseguinte, portador de uma certa

autonomia face ao mundo sócio-cultural que o constituiu em sujeito.

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomamos como objeto deste trabalho as formulações da Psicologia sócio-histórica de

Vigotski, Leontiev e Luria e as formulações da Sociologia do conhecimento de Berger e

Luckmann sobre o processo de constituição do sujeito, em razão do fato de ambas afirmarem,

peremptoriamente, não obstante os distintos fundamentos filosóficos (o Materialismo

histórico-dialético, para a Psicologia sócio-histórica, e a Fenomenologia, para a Sociologia de

Berger e de Luckmann), a natureza social do homem. Nosso propósito era identificar as

diferenças e as convergências entre as duas teorias, de modo a pensar a possibilidade de uma

síntese entre elas no que tange à temática de nosso trabalho: a constituição do sujeito. Ao

mesmo tempo, nos propomos a pensar as implicações dessa possível síntese para o

entendimento do modo de atuação da ideologia, tal como pensada por Althusser e Sousa

Filho, nas sociedades humanas. Os resultados aos quais chegamos podem ser sintetizados da

forma que segue.

Do ponto de vista ontológico, as duas teorias situam-se em pontos diametralmente

extremos do acervo filosófico, sendo absolutamente incompatíveis. Pois, enquanto a

Psicologia sócio-histórica, alicerçada no pensamento materialista e dialético de Karl Marx e

Friedrich Engels, pressupõe a matéria como substrato último da realidade, a Sociologia do

conhecimento de Berger e Luckmann, alicerçada na filosofia idealista de Edmund Husserl,

pressupõe a consciência como a dimensão fundante da mesma realidade.

Curiosamente, as concepções de sociedade de ambas as perspectivas, não obstante

seus fundamentos filosóficos divergentes, convergem num ponto fundamental: ambas

consideram a sociedade algo criado pelo próprio homem, um produto da atividade humana.

O conceito de sociedade em ambas as perspectivas, todavia, é diferente. Para a

Psicologia sócio-histórica, trata-se da totalidade dos produtos da atividade humana, ou seja,

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

121

aquilo que algumas escolas da Antropologia chamam de cultura. Para a Sociologia do

conhecimento de Berger e Luckmann, a sociedade restringe-se apenas a uma dimensão

específica da cultura: as normas, regras, valores e papéis sociais que constantemente orientam

as interações entre os homens.

Da perspectiva da Psicologia sócio-histórica, as atividades humanas que estão na base

do processo de constituição da sociedade (ou cultura) são o trabalho e, a partir dele, a

significação. Para a Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann, trabalho e

significação edificam a cultura, e não a sociedade. Essa, como apenas uma dimensão da

cultura, resulta das padronizações recíprocas das ações por parte dos sujeitos sociais e dos

significados que os mesmos atribuem a essas padronizações.

Compreendida enquanto a dimensão da cultura que resulta da padronização e da

significação das ações pelos sujeitos, a concepção de sociedade de Berger e Luckmann não

contradiz a concepção de sociedade mais vasta (sinônimo de cultura) da Psicologia sócio-

histórica. Pois, a partir da perspectiva ontológica materialista da Psicologia sócio-histórica e

da sua concepção de sociedade como o produto integral da atividade humana, é possível

incorporar a concepção bergeriana-luckmanniana como um enriquecimento pontual: a

atividade humana (trabalho e significação) que constitui a sociedade também é uma atividade

que padroniza e interpreta as ações, criando os padrões recorrentes de interação enfatizados e

analisados, sob o nome de instituições sociais , por Berger e Luckmann. Dessa forma, a

partir da perspectiva ontológica e sociológica mais ampla da Psicologia sócio-histórica,

podemos considerar a sociedade de Berger e Luckmann como apenas uma dimensão da

sociedade. Igualmente, podemos considerar os processos que Berger e Luckmann consideram

constitutivos da sociedade, a padronização recíproca das ações e a respectiva atribuição de

significados a essas padronizações, como desdobramentos e/ou dimensões da atividade

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

122

humana (cuja essência está no trabalho e na significação) efetivamente constitutiva da

sociedade em sua totalidade.

No que se refere ao processo de constituição do sujeito, a Psicologia sócio-histórica e

a Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann afirmam a linguagem como o

dispositivo básico para a conversão, pela sociedade, dos indivíduos em sujeitos. Todavia,

como as duas perspectivas compreendem por sociedade realidades diferentes, enfatizam

distintos aspectos do processo social real que constitui os sujeitos. Para a Psicologia sócio-

histórica, esse processo é, essencialmente, um processo de internalização subjetiva das

funções e dos significados sociais veiculados pela linguagem. Para a Sociologia do

conhecimento de Berger e Luckmann é, principalmente, um processo de interiorização dos

padrões de conduta e dos seus respectivos significados objetivados na forma de

legitimações cognitivas e axiológicas. Portanto, para ambas as perspectivas, a linguagem e

os significados sociais objetivados por intermédio dela são os dispositivos capitais do

processo de constituição de sujeitos pelas sociedades humanas. A principal diferença reside

no fato de que, para a Psicologia sócio-histórica, esses significados se objetivam

fundamentalmente na forma de signos lingüísticos; para a Sociologia do conhecimento de

Berger e Luckmann, na forma de padrões sancionados para a conduta e de suas respectivas

legitimações simbólicas.

A diferença entre Psicologia sócio-histórica e Sociologia do conhecimento de Berger e

Luckmann, no que tange ao processo de constituição do sujeito é, pois, sutil. Ambas

enfatizam o papel crucial da linguagem e dos significados dela para a transformação do

indivíduo humano em sujeito. A diferença encontra-se tão somente na ênfase que Berger e

Luckmann outorgam aos significados sociais objetivados na forma de tipificações

sancionadas para a conduta (instituições sociais). Desse modo, as duas perspectivas

convergem e, de certa forma, complementam-se. Pois, Berger e Luckmann acrescentam aos

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

123

significados sociais objetivados na forma da linguagem, enfatizados pela Psicologia sócio-

histórica, aqueles que se objetivam na forma de modelos para a conduta. Em outros termos,

para a Psicologia sócio-histórica, o processo de constituição do sujeito é um processo de

internalização da linguagem e de seus significados; para a Sociologia do conhecimento de

Berger e Luckmann, é também um processo de internalização da linguagem e de seus

significados, mas é principalmente um processo de assimilação de padrões sociais de conduta.

O pensamento de Berger e Luckmann no que diz respeito ao processo de constituição

do sujeito pode, assim, ser incorporado pela Psicologia sócio-histórica como um

enriquecimento pontual: o processo de internalização das funções e dos significados sociais

também ocorre na forma da assimilação subjetiva de padrões de conduta e de suas respectivas

legitimações simbólicas.

Essa possibilidade de síntese entre a Psicologia sócio-histórica e a Sociologia de

Berger e Luckmann, todavia, não nos impediu de ver uma diferença fundamental entre as

concepções de sujeito de ambas as perspectiva diferença essa proveniente de suas distintas

filiações filosóficas. Para a Psicologia sócio-histórica, alicerçada no marxismo, o sujeito é, em

sua integridade, um construto social: um complexo de relações sociais personificadas em um

indivíduo. Inclusive a consciência, essência do sujeito, é um construto social: é o reflexo

psíquico das condições de vida (culturais) próprias do homem. Para a Sociologia do

conhecimento de Berger e Luckmann, edificada a partir dos pressupostos da Fenomenologia,

o sujeito também é um construto social: um repertório de padrões de comportamento

apreendidos, pelo indivíduo, do mundo social. Todavia, para Berger e Luckmann, existe uma

dimensão fundamental do sujeito que não apenas antecede, mas é requisito, para o processo

de assimilação dos padrões de conduta objetivos do mundo social (processo de socialização):

a consciência. O sujeito, portanto, para a Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann,

somente é social na medida em que é portador de um atributo misterioso : a consciência,

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

124

anterior a qualquer experiência social, e que permite que essas experiências se consolidem

subjetivamente.

No corpo deste trabalho, essa incompatibilidade entre Psicologia sócio-histórica e

Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann quanto à natureza da consciência do

sujeito foi resolvida pela recusa dos pressupostos filosóficos de Berger e Luckmann, tomados

como idealistas e incompatíveis tanto com o ideal de ciência da modernidade como com a

própria intenção confessada de Berger e Luckmann de fazer uma Sociologia livre de

pressupostos filosóficos. Assim, afirmamos o sistema teórico da Psicologia sócio-histórica

como mais coerente em sua estrutura argumentativa e filosoficamente compatível com o ideal

de conhecimento da ciência moderna. A partir disso, o sistema teórico de Berger e Luckmann

foi tomado como um sistema capaz de trazer enriquecimentos pontuais à tese da Psicologia

sócio-histórica de constituição social do sujeito, mas um sistema que precisa ser recusado em

seus fundamentos, em razão dos pressupostos filosóficos idealistas e da incoerência lógica.

Por fim, vimos que as reflexões sobre a constituição do sujeito empreendidas tanto

pela Psicologia sócio-histórica como pela Sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann

afirmam, de uma maneira diferente, o mesmo que as reflexões de Althusser e Sousa Filho

sobre o modo de atuação da ideologia nas sociedades humanas. Sousa Filho define a ideologia

como representações mistificadoras do caráter histórico, social e convencional da cultura

que se apresenta, nas representações ideológicas, como algo sagrado, natural e absoluto.

Althusser, por sua vez, faz notar que o modo fundamental de operação da ideologia é o da

constituição de indivíduos humanos em sujeitos. A partir dessa interpretação da ideologia, as

ponderações da Psicologia sócio-histórica e da Sociologia do conhecimento de Berger e

Luckmann se constituem em teorizações que explicitam alguns dos dispositivos concretos

(significações lingüísticas, interação e identificação com os outros, reconhecimento e

assunção de papéis etc.) por meio dos quais a ideologia opera no sentido de converter

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

125

exemplares biológicos da espécie humana em sujeitos sociais submissos a seus respectivos

modelos de sociedade e às respectivas relações muitas vezes de dominação e de opressão

que têm lugar dentro desses modelos sociais. Em outros termos, as ponderações de Vigotski,

Leontiev e Luria, por um lado, e as de Berger e Luckmann, por outro, se constituem numa

explicitação teórica do modo de operar da ideologia no processo (internalização ou

socialização) por meio do qual indivíduos humanos são constituídos em sujeitos, bem como

numa explicitação das razões pelas quais, enquanto sujeitos (e apesar de sujeitos), os seres

humanos, via de regra, são submissos às realidades sociais, em muitos aspectos opressivas,

dentro das quais transcorrem as suas existências.

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

126

REFERÊNCIAS

ABRÃO, Bernadette S. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro; Graal,1985.

_________________ . Freud e Lacan. Marx e Freud. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

ANDERY, Maria Amália... et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica.Rio de Janeiro: Espaço e tempo, São Paulo: EDUC, 1986.

AZCONA, Jesus. Antropologia I: história. Petrópolis:Vozes, 1992.

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

BELLO, Angela Ales. Introdução à fenomenologia. Bauru, SP: Edusc, 2006.

BERGER, P. e LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.

BERGER, Peter. O dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. SãoPaulo: edições Paulinas, 1985.

_____________. Perspectivas sociológicas. Petrópolis:Vozes, 1986.

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

CAPALBO, Creusa. Fenomenologia e ciências humanas. Rio de Janeiro/ São Paulo: J.Ozon + Editor, s/d.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.

______________ . Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2005.

COLEÇÃO MEMÓRIAS DA PEDAGOGIA, n. 2. Liev Seminovich Vygotsky / editorManuel da Costa Pinto, Rio de janeiro: Ediouro; São Paulo: Segmento- dueto, 2005.

CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru, SP:EDUSC, 2001.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru-SP: EDUSC, 2002.

DARTIGUES, André. O que é a fenomenologia? São Paulo: Moraes, 1992.

DOMINGUES, José M. Teorias sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2001.

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

127

DUARTE, Newton. A individualidade para si: contribuições a uma teoria histórico-socialdo indivíduo. Campinas, SP: Autores Associados, 1999a.

________________. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski.Campinas, SP: Autores Associados, 1999b.

________________. Vigotski e o aprender a aprender : crítica às apropriaçõesneoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.

________________. Formação do indivíduo, consciência e alienação: o ser humano napsicologia de A. N. Leontiev . In: Cadernos Cedes vol.24 no.62. Campinas, 2004a.

DUARTE, Newton (org.). Critica ao fetichismo da individualidade. Campinas, SP: Autores Associados, 2004b.

DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. SãoPaulo: Martins fontes, 2005.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Ed. Nacional, 1990.

________________. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Civilização Brasileira, 1987.

FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: forense Universitária, 2000.

______________. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem . InMARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-ômega, s/d.

FLEISCHER, Helmut. Concepção Materialista da história. Lisboa : Edições 70, s/d.

FORACCHI, Marialice Mencarini e MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade:Leituras de introdução a Sociologia. Rio de Janeiro: Ltc, 1977.

KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2002.

LARAIA. Roque Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

LEAKEY, R. E. e LEWIN, R. Los orígenes del hombre: la aparición de nuestra espécie y suposible futuro a la luz de los más recientes descubrimientos. Madrid: Aguilar Ediciones, 1980.

LEAKEY, R. E. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

LEFEBRE, H. Lógica formal, lógica dialética. Rio de janeiro: civilização brasileira, 1995.

LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: editora Moraes, s/d.

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

128

________________. Atividade e personalidade In Atividade, consciência epersonalidade. Disponível em <marxists.anu.edu.au> Acesso em 06/08/2007.

LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à antropologia. São Paulo: Martins Fontes,2000.

LURIA, Alexander R. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais.São Paulo: ícone, 1990.

_________________ . Curso de psicologia geral. Vol.1. Rio de Janeiro: Civilizaçãobrasileira, 1991.

_________________ . Curso de psicologia geral. Vol.4. Rio de Janeiro: Civilizaçãobrasileira, 1991.

_________________ . Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. PortoAlegre, Artes Médicas, 2001.

MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: abril cultural, 1982.

__________. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova cultural, 1988.

__________. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1989.

__________. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

MARX, K. e ENGELS, F. Sobre a literatura e a arte. Lisboa: Editoral Estampa, 1971.

_____________________. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1989

_____________________. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1990.

MERCIER, Paul. História da antropologia. São Paulo: Morais, s/d.

OHLWEILER, Otto Alcides. Materialismo histórico e crise contemporânea. Porto Alegre:mercado aberto, 1985.

PETRELLI, Rodolfo. Fenomenologia: teoria, método e prática. Goiânia: Ed. da UCG, 2001.

PINO, A. O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na explicação dopsiquismo humano . In: Cadernos Cedes. n.24. Campinas: Papirus/Cedes, 1991.

_______. O social e o cultural na obra de Vigostsky". In: Revista Educação e sociedade. n.71. Campinas: Papirus/Cedes jul. 2000.

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

129

_______. As marcas do humano: as origem da constituição cultural da criança naperspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.

_______. Psicologia concreta em Vigotski . In: PLACCO, Vera (org.). Psicologia &Educação: revendo contribuições. São Paulo: Educ, 2000.

RATNER, Carl. A psicologia Sócio-histórica de Vygotsky: aplicações contemporâneas.Posto-alegre: artes médicas, 1995

ROSE, Michael. O espectro de Darwin: a teoria da evolução e suas implicações no mundomoderno. São Paulo: Jorge Zahar, 2000.

SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1983

SÈVE, Lucien. A personalidade em gestação . In: SILVEIRA, P. e DORAY, B. Elementospara uma teoria marxista da subjetividade. São Paulo: Vértice, 1989.

SHAPIRO, Harry L. Homem, cultura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

SHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

SLOAN, Tod e MOREIRA, Virgínia. Personalidade, ideologia e psicopatologia crítica. SãoPaulo: Escuta, 2002.

SOUSA FILHO, Alípio de. Ideologia, cultura e sociedade: uma discussão em torno deconceitos. Natal: UFRN, 1990 (dissertação de mestrado).

______________________. Medos, mitos e castigos: notas sobre a pena de morte. SãoPaulo: Cortez, 1995.

______________________. Cultura, ideologia e representações . In: Representaçõessociais: teoria e pesquisa. Mossoró, RN: fundação Guimarães Duque/Fundação VingtunRosado,2003.

STEVENSON, Leslie F. Dez teorias da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

TAYLOR, Edwad B. La ciencia de la cultura . In: BOHANNAN, Paulo e GLAZER, Mark(orgs.). Antropologia: leituras. Madri: McGraw-Hill, 1993.

TEIXEIRA, Edival. Vygotsky e o materialismo dialético: uma introdução ao pensamentofilosófico da psicologia histórico-cultural. Pato Branco: FADEP, 2005.

VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins fontes, 1998a.

_____________. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins fontes, 1998b.

_____________. Teoria e método em Psicologia. São Paulo: Martins fontes, 1999.

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · bojo de uma sistematização da Sociologia do conhecimento, os sociólogos Peter L. Berger e Thomas Luckmann chegaram

130

_____________. Manuscrito de 1929 . In: Revista Educação e sociedade. n. 71. Campinas: Papirus/Cedes jul. 2000.

VIGOTSKI, L. S., LURIA, A. R. e LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento eaprendizagem. São Paulo: Ícone: EDUSP, 1988.

WEBER, Max. Conceitos básicos de Sociologia. São Paulo: Ed. Moraes, 1989.

___________. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo : Pioneira, 1992.

WERTSCH, James V. Estudos sócioculturais da mente. Porto Alegre: Artmed, 1998.

YAMAMOTO, Oswaldo H. Marx e o método. São Paulo: Moraes, 1994.