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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

ReitoR

José Jackson Coelho Sampaio

Vice-ReitoR

Hidelbrando dos Santos Soares

editoRa da UeceErasmo Miessa Ruiz

conselho editoRial

Antônio Luciano PontesEduardo Diatahy Bezerra de Menezes

Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso Francisco Horácio da Silva Frota

Francisco Josênio Camelo ParenteGisafran Nazareno Mota Jucá

José Ferreira NunesLiduina Farias Almeida da Costa

Lucili Grangeiro CortezLuiz Cruz LimaManfredo RamosMarcelo Gurgel Carlos da SilvaMarcony Silva CunhaMaria do Socorro Ferreira OsterneMaria Salete Bessa JorgeSilvia Maria Nóbrega-Therrien

conselho consUltiVo

Antônio Torres Montenegro | UFPEEliane P. Zamith Brito | FGV

Homero Santiago | USPIeda Maria Alves | USP

Manuel Domingos Neto | UFF

Maria do Socorro Silva Aragão | UFCMaria Lírida Callou de Araújo e Mendonça | UNIFORPierre Salama | Universidade de Paris VIIIRomeu Gomes | FIOCRUZTúlio Batista Franco | UFF

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1a EdiçãoFortaleza - CE2019

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HISTÓRIA, MEMÓRIA, ORALIDADE E CULTURAS – Vol. III© 2019 Copyright by William J. Mello, Zilda Maria Menezes Lima, Altemar da Costa Muniz e Silvia Marcia

Alves Siqueira

Impresso no Brasil / Printed in BrazilEfetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECEAv. Dr. Silas Munguba, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria – Fortaleza – Ceará

CEP: 60714-903 – Tel: (085) 3101-9893www.uece.br/eduece – E-mail: [email protected]

Editora filiada à

Coordenação EditorialErasmo Miessa Ruiz

Capa e DiagramaçãoNarcelio Lopes

Revisão de TextoOrganizadores

Ficha Catalográfica Thelma Marylanda Silva de Mello

H673 História, memória, oralidade e culturas / Organizado por William J. Mello… [et al.]. - Fortaleza : EdUECE, 2019. Livro eletrônico. v. 3 318p. ISBN: 978-85-7826-729-2 1. Cultura. 2. História. 3. Ciências sociais. I. Mello, William J. II. Lima, Zilda Maria Menezes.III. Muniz, Altemar da Costa. IV. Siqueira, Silvia Marcia Alves. V. Título.

CDD: 300

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INTRODUÇÃO

É com imensa satisfação que apresentamos o volume III da co-leção História, Memória, Oralidade e Culturas. Esta edição busca dar prosseguimento ao trabalho de investigação intelectual dos grupos de pesquisa Mundos do Trabalho; História, Politica, Cultura e Sociedade; História da Saúde e das Doenças bem como do ARCHEA: Arqueolo-gia e Estudos da Antiguidade, todos ligados à linha de pesquisa História, Memoria e Oralidade do Mestrado Acadêmico em História (MAHIS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Os trabalhos publicados neste tomo são representativos dos debates e apresentações ocorridos durante o III Encontro Internacional História, Memória, Culturas e Oralidade, realizado no Campus do Itaperi, Universidade Estadual do Ceará, em dezembro de 2016, bem como são ilustrativos da diversidade temática e perspectivas históricas dos grupos de pesquisa da linha Me-mória e Oralidade do MAHIS e das pesquisas dos autores convidados, que gentilmente, aceitaram participar desta edição.

O livro está divido em três partes. A primeira parte, intitulada Mundos do Trabalho, examina diferentes perspectivas históricas da experiência dos trabalhadores, seja no local de trabalho ou na educa-ção formal. Nesta seção, a contribuição do Pablo Pozzi (Universidade de Buenos Aires-Argentina) Educando o Historiador: Um Acadêmico e as Escolas de Estudos do Trabalho, traz para os leitores um exercício pouco experimentado no Brasil ao apresentar a experiência do autor no meio operário dos Estados Unidos, nas Escolas de Estudos de Trabalho nas Universidades dos EEUU. Já os textos de William Mello (Indiana Uni-versity-Estados Unidos) Mecanização Portuária: Classe, Poder e Política No Porto de Nova Iorque (1955-1962) bem como o do Edgar Ávila Gan-dra (UFPel) e Elvis Silveira Simões (UFPel) A Beira do Cais: Trabalho e

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Continuidade entre os Portuários de Rio Grande (Brasil) e Lisboa (Portu-gal) exploram a experiência dos trabalhadores portuários no Brasil e nos Estados Unidos.

Na segunda parte, que nomeamos Doenças, Instituições e Pro-fissionais de Saúde no Brasil, os trabalhos publicados refletem múl-tiplas olhares que integram as pesquisas históricas acerca da doença e da saúde no Brasil, no seu sentido amplo. O texto da Zilda Maria Menezes Lima (UECE), O Preventório Eunice Weaver - Para os Filhos Indenes dos Leprosos Cearenses, examina as complexas experiências dos filhos dos leprosos, isolados na instituição preventorial cearense e os desdobramentos dessa política de isolamento. A partir de um estudo sobre a Doença de Chagas, Gisafran Nazareno Mota Jucá (UECE), analisa A Doença de Chagas num Princípio de Dialogo Interdisciplinar: Uma Possibilidade de Superar os Monólogos Científicos e explora questões metodológicas ao buscar reforçar o diálogo entre o texto cientifico e a pesquisa histórica. Nadia Maria Weber Santos (UFG-IHGB/RS), no texto A Loucura Transformada em Memória: Manicômios, Museus e Arte aprofunda o debate sobre a loucura a partir da memória e representações culturais. Claudia Freitas de Oliveira (UFC), em seu artigo A Literatura Como Produtora de Inteligibilidade sobre Temáticas Cientificas, apresenta a literatura como possibilidade para examinar temas de cunho cientifico na área da saúde. Georgina da Silva Gadelha (PNPD-UECE) no tex-to A Profissionalização dos Professionais de Saúde no Ceará: A Criação da Faculdade de Farmácia e Odontologia (1916) explora o processo de intro-dução da educação medica no Ceará a partir da criação das escolas de farmácia e odontologia. Ainda nesta seção, distintas perspectivas acerca da questão do cólera no Brasil ganham particular atenção. Inicialmente no artigo de Sebastião Pimentel Franco (UFES) e André Luís Lima Nogueira (UFES), intitulado Entre Livros, Lentes e Miasmas: As Teses Medicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Epidemia de Cólera (1855-1856) os autores buscam os entendimentos acerca da epidemia

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da cólera no Rio do Janeiro de meados do XIX, a partir das teses medi-cas sobre o tema. Jucieldo Ferreira Alexandre (IFCE), no texto, Entre Limões, Glóbulos e Drogas: Receitas Contra a Cólera no Seminário Cratense O Araripe (1855-1862), examina os esforços para deter cólera no Ceará a partir do semanário O Araripe entre os anos de 1855-1862.

A terceira e última parte do livro, Cultura Escrita e Arte na An-tiguidade e no Medievo traz para o debate histórico novos temas e questões inscritos no âmbito dos estudos antigos e medievais. Gilvan Ventura da Silva (UFES) traz uma importante contribuição para este debate com seu artigo Corpo, Performance e Transgressão em Antioquia: João Crisostomo e a Censura aos LUDI THEATRALIS. No artigo A His-tória das Religiões Segundo a Metodologia de Ugo Bianchi: “Fragmentos de uma Lição” ad usum disciplulorum, Ennio Sanzi (Liceo Classico -Italia) oferece, um renovado olhar sobre a metodologia na pesquisa da história das religiões.

Seriamos omissos se não colocássemos aqui as crescentes dificul-dades enfrentadas pelas universidades públicas em geral e os programas de pós-graduação em particular, para desenvolver a pesquisa histórica no Brasil. Se o fomento à pesquisa histórica, se comparado a outras disciplinas, foi sempre menor e seus recursos limitados, infelizmente os contínuos cortes e reduções a fomento sofridos pelas universidades públicas foram aguçados pelo governo federal e seus mandatários ile-gítimos que usurparam o poder em 2016. O ataque a pesquisa na uni-versidade pública tem um alvo claro: busca cercear o debate amplo e restringir o papel histórico da universidade como centro de formação de ideias, papel essencial para qualquer pais democrático. Neste sentido os recursos para realizar o III Encontro Internacional História, Memória, Culturas e Oralidade foram inteiramente dos grupos de pesquisa e do Mestrado Acadêmico em História (MAHIS). É neste espirito que este volume também se apresenta como testemunho da nossa disposição e

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compromisso com um estudo da história que fortaleça e amplie um de-bate mais amplo na universidade. Como historiadores, sabemos muito bem o que acontece com os detentores do poder que ignoram as lições que a história oferece. Assim, esperamos que em breve o nosso pais retorne à normalidade democrática e que suas instituições possam ser respeitadas bem como possamos observar um retorno e ampliação aos investimentos públicos destinados ao ensino superior público, gratuito e de qualidade.

Fortaleza, 2019

William J. MelloZilda Maria Menezes Lima

Altemar da Costa MunizSilvia Márcia Alves Siqueira

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SUMÁRIO

PARTE IMUNDOS DO TRABALHO ...............................................................................11

EDUCANDO O HISTORIADOR: UM ACADÊMICO E AS ESCOLAS ESTU-DOS DE TRABALHO .........................................................................................12Pablo Pozzi e Tradução de Jairo Sarfati

MECANIZAÇÃO PORTUÁRIA: CLASSE, PODER E POLÍTICA NO PORTO DE NOVA IORQUE (1955-1962) .......................................................................39William J. Mello e Traduzido por Gregório Magno Viana Oliveira.

A BEIRA DO CAIS: TRABALHO E COTIDIANIDADE ENTRE OS PORTUÁ-RIOS DE RIO GRANDE-RS E LISBOA-PT. ......................................................85Edgar Ávila Gandra e Elvis Silveira Simões

PARTE IIDOENÇAS, INSTITUIÇÕES E PROFISSIONAIS DE SAÚDE NO BRASIL ....... 123

O PREVENTÓRIO EUNICE WEAVER – PARA OS FILHOS INDENES DOS LE-PROSOS CEARENSES: DISCIPLINA E ISOLAMENTO (1940-1970). ..........124Zilda Maria Menezes Lima

A DOENÇA DE CHAGAS NUM PRINCÍPIO DE DIÁLOGO INTERDISCIPLI-NAR: UMA POSSIBILIDADE DE SUPERAR OS MONÓLOGOS CIENTÍFI-COS. ...................................................................................................................138Gisafran Nazareno Mota Jucá

A LOUCURA TRANSFORMADA EM MEMÓRIA: MANICÔMIOS, MUSEUS E ARTE ..................................................................................................................159Nádia Maria Weber Santos

A LITERATURA COMO PRODUTORA DE INTELIGIBILIDADES SOBRE TE-MÁTICAS CIENTÍFICAS. (O CEARÁ EM FINS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX) ..............................................................................................................182Cláudia Freitas de Oliveira

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A PROFISSIONALIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE NO CEARÁ: A CRIAÇÃO DA FACULDADE DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA (1916) ...202Georgina da Silva Gadelha

ENTRE LIVROS, LENTES E MIASMAS: AS TESES MÉDICAS DA FACULDA-DE DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO E A EPIDEMIA DE CÓLERA (1855-1856) .................................................................................................................226Sebastião Pimentel Franco e André Luis Lima Nogueira

ENTRE LIMÕES, GLÓBULOS E DROGAS: RECEITAS CONTRA O CÓLERA NO SEMANÁRIO CRATENSE O ARARIPE (1855-1862) ................................262Jucieldo Ferreira Alexandre

PARTE IIICULTURA ESCRITA E ARTE NA ANTIGUIDADE E NO MEDIEVO ...........287

CORPO, PERFORMANCE E TRANSGRESSÃO EM ANTIOQUIA: JOÃO CRI-SÓSTOMO E A CENSURA AOS LUDI THEATRALIS ....................................288Gilvan Ventura da Silva

A HISTÓRIA DAS RELIGIÕES SEGUNDO A METODOLOGIA DE UGO BIAN-CHI: “FRAGMENTOS DE UMA LIÇÃO” AD USUM DISCIPULORUM. .........308Ennio Sanzi

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Parte I

Mundos do Trabalho

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HISTÓRIA, MEMÓRIA, ORALIDADE E CULTURAS – Vol. III

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EDUCANDO O HISTORIADOR: UM ACADÊMICO E AS ESCOLAS ESTUDOS DE TRABALHO

Pablo Pozzi1

Tradução de Jairo Sarfati2

“Toda educação que vale o nome envolve a relação de mutualidade, uma dialética: e nenhum educador louvável concebe seu material como uma classe de recipientes inertes de instrução. Mas, na educação liberal de adultos, nenhum professor provavelmente durará uma temporada - e é provável que nenhuma classe permaneça no curso com ele - se ele estiver sob a equivocada compreensão de que o papel da classe é passivo. O que é diferente sobre o estudante adulto da experiência que ele traz para o relacio-namento. Esta experiência modifica, por vezes de forma sutil e por vezes mais radical, todo o pro-cesso educativo: influencia os métodos de ensino, a seleção e maturação dos tutores, o programa: pode mesmo revelar lugares frágeis ou vagas nas disci-plinas acadêmicas recebidas e levar à elaboração de novas áreas de estudo” 3

Educação é central para a média de consideração argentina e au-tovalorização. Pois educação da classe média é a rota para mobilidade social, que é o porquê de ser secundário e a educação universitária se

1 Professor, Departamento de História, Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires (Ar-gentina)2 Publicamente conhecido como Jairo Sarfati, Sebastião Jairo Lima Braga Junior é tradutor graduado em letras, pela Universidade Estadual do Ceará. 3 Edward Palmer Thompson. “Education and Experience” in E.P. Thompson. The Romantics. New York: The New Press, 1997; p.4.

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mantém gratuita a todos os cidadãos. Para a classe trabalhadora, educa-ção está relacionada à liberdade e a rota para “um universo mental mais largo” 4. Para ambos os grupos sociais, educação, história e política estão intimamente ligados. Governos diferentes e tendências políticas têm usado a história como uma fonte de legitimidade ou como uma afir-mação política. Ativistas de causas trabalhistas têm recorrido à história para atingir um ranque mobilizado e dossiê. Assim, não há consenso em termos de nossa história nacional, ou até mesmo em termos de nossos fundadores, desde que imputar a um e a outro implica um modelo de desenvolvimento nacional.

No caso argentino, embora haja pouco dinheiro ou poder em nossa profissão, há muito prestígio. História é debatida com paixão por pessoas em geral, houve um número significativo de Best Sellers em livros acadêmicos de história5. Até alguns anos atrás, uma importante parcela da vida da classe trabalhadora argentina era “Vendedor viajante de livros”, que vendiam a maioria dos livros de história em parcelas sua-ves, assim como as bancas de jornal vendiam coleções históricas a preços acessíveis. Uniões trabalhistas, movimentos sociais e partidos políticos todos tinham “seus” historiadores, e incluíam a matéria em seus currí-culos em várias instituições de ensino. Para a maioria dos argentinos, história é importante.

Ao tempo que historiadores têm uma infinidade de problemas. Nós fomos treinados em academias e nosso foco tende a ser às faculdades e universidades, e ainda a sociedade insiste que não só temos uma “fun-ção social”, mas que história é importante para eles. Ao mesmo tempo,

4 Edward Palmer Thompson. “Education and Experience”, 20.5 Por exemplo, os três volumes de Robert Potash no exército argentino (El Ejército y la política en la Argentina, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1984-1994)), ou os quatro volumes de Eric Hobsbawm sobre História Contemporânea (Biblioteca E.J. Hobsbawm de Historia Contemporánea, Buenos Aires: Editorial Grijalbo Mon-dadori, 1998). Osvaldo Bayer. Los vengadores de la Patagonia Trágica (Buenos Aires: Editorial Galerna, 1972-1976) tem sido reimpresso inúmeras vezes e vendeu centenas de milhares de cópias. Não tão perto do sucesso como esses autores, meus dois livros (sobre Guerrilhas Argentinas) entraram na lista dos jornais de Buenos Aires de mais vendidos “não-ficção” e ficaram na lista por três semanas, sendo também reimpressos inúmeras vezes.

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“a profissão” tende a considerar isso como uma forma de “populismo”, e é raramente incluída como parte da descrição do nosso trabalho. Como apontado por E.P. Thompson, nossa cultura é uma “classicista educa-da e manipuladora” onde, de um lado temos classes que respondem ao anti-intelectualismo, enquanto intelectuais tendem a fecharem-se e se tornarem isolados da sociedade em sua maioria. Em adição, há pouco ou nenhum fundo para ensino informal, então àqueles que “saem pela sociedade” o fazem por “passagem de ônibus”.

Fora a rejeição pela academia, poucos de nós combinamos nossos papéis como professores universitários com o ensino em comunidades e favelas em um esforço para contornar a desigualdade.6 Isso é tanto um desafio às nossas habilidades como também contribui para nosso traba-lho como historiadores. Por exemplo, enquanto ocupei uma cátedra na universidade, fiz parte de vários sindicatos trabalhistas na escola para ativistas7; participei entre 2001 e 2003 da popular “asambleas” dando aos participantes uma noção de história, desde que estavam convictos que isso era crucial para entender o que estava acontecendo em suas vidas; e compartilhei o que sabia sobre “história oral” com trabalhadores rurais ávidos a preservar sua história e tradições. 8 As perguntas deles, e às vezes suas respostas, tendiam a informar o que escrevo e imaginar meus “estudantes trabalhadores” como leitores em potencial dos meus livros; embora às vezes tenha falhado miseravelmente em minha meta. E não sou o único historiador na Argentina a falhar. Poucos de nós ensinam dentro e fora da academia e o retorno que temos desse relacionamento claramente tem um impacto em nossa historiografia. Minha experiência

6 Na Argentina, isso não é considerado “educação para adultos”, desde que educação universitária inclui muitos “adultos”. Especialmente as Humanidades, muitos de nossos graduandos têm mais que 25 anos. Adicionalmente, tirando o fato que aproximadamente 10% dos estudantes universitários vêm de famílias da classe trabalhadora, “aulas noturnas”, escolas sindicais trabalhistas e terciários (professores em faculdades) são considerados “classe trabalhadora”. 7 Adicionalmente às “escolas para ativistas”, muitos sindicatos trabalhistas têm estalecido suas próprias escolas secundárias, para membros de suas famílias. 8 Gerardo Necoechea Gracia y Pablo Pozzi (comps.). Cuéntame tu vida. Una introducción a la historia oral. Buenos Aires, 2008.

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é que a principal questão perguntada por meus “estudantes trabalhado-res” era o porquê de tão poucos de nós saíamos de nossos “corredores sa-grados” para ensiná-los? Nunca obtive uma resposta para isso. Na verda-de, minha experiência tende a concordar com Henry Giroux quando ele insiste na necessidade de conectar atividades em sala de aula com a vida cotidiana de estudantes “marginalizados”.9 Nesse processo, descobrimos que há uma relação entre “expor-se” à sociedade e “boa história”.10

Esse artigo pretende discutir alguns dos problemas em ensinar História fora da academia, assim também como nós reagimos às fer-ramentas de evolução pedagógicas, abordagens e linguagem de acor-do com cada grupo. Esse foi um processo de aprendizado onde fomos transformados, pelo menos, tanto quanto nossos alunos. Adicionalmen-te, o artigo indicará alguns dos modos como minha própria pesquisa histórica foi beneficiada pelo ensino campal de história. Perdoem-me por referir-se a mim mesmo, mas o artigo apresenta uma revisão no tra-balho pessoal do autor como profissional e ativista historiador. A ideia subjacente é contribuir para a discussão proposta por Raphael Samuel em termos de “história da classe trabalhadora, história popular”11, en-quanto levando em conta as observações provocativas de E. P. Thomp-son na educação e experiência e os desafios postos pela pedagogia crítica de Henry Giroux.12 Tal como essa é uma história “imediata”, “recente” ou “do dia de hoje”. A premissa subjacente é que essa história pertence a uma pesquisa em andamento para uma compreensão mais completa das histórias e processos da classe trabalhadora.

9 Henry Giroux. Theory and Resistance in Education: Towards a Pedagogy for the Opposition. Westport, Ct.; Bergin and Garey, 2001.10 Claro que há muita “história boa” feita sem sair da academia, e essa não é, de modo algum, “uma rejeição à cultura educada em favor à experiência”, como diz Thompson. A questão é que novas perguntas e respostas podem ser sugeridas pela inserção de diferentes perspectivas fora da academia. Essas podem ser úteis ou não, mas elas forçam o historiador a repensar suas premissas. Vid Edward Palmer Thompson. “Education and Ex-perience”, 27.11 Raphael Samuel, ed. Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Editorial Crítica, 1984.12 Henry Giroux. Teoría y Resistencia en educación. Mexico, 1992. Henry A. Giroux and Peter McLaren. eds. Critical Pedagogy, the State, and the Struggle for Culture. New York, 1989.

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I.

Desde o início entendi história como “experiência” e como “li-ções” para o presente. Nesse sentido, meu interesse era na história que as pessoas fazem de si mesmas, e para tanto, fui incentivado a estudar o processo onde eles “fazem história”; isto é, como seus interesses e ações se tornam a força comovente por trás de desenvolvimentos históricos. No início da década de 70 estudei História Espanhola do século XIX, especialmente o Carlismo Espanhol, um movimento que levou a sete revoltas contra o governo de Madrid. Esse foi um movimento Católico, tradicionalista e muito conservador. A questão era porque pobres fa-zendeiros e gente do interior dariam suporte a isso, o que era, aos meus olhos, uma decisão completamente irracional. A explicação tinha que ir além de uma resposta superficial como “eles eram atrasados” ou ignoran-tes, ou que estavam presos ao passado.

Ao mesmo tempo, aqueles eram tempos de políticas de ativismo pessoal, onde a academia estava de um lado e “a revolução” de outro. Lembro que um colega “vivido” insistiu que ambas as coisas não eram incompatíveis, mas que você tinha que estudar coisas “úteis” como com-putação ou engenharia e não gastar seu tempo em coisas como História e Literatura. Anos depois recontei isso para um velho trabalhador auto-motriz na casa dos 50 (naquela época ele era um “homem velho” cheio de “experiência”). Ele me olhou de cima a baixo e disse que ele desejava ter sido capaz de estudar ambas disciplinas (História e Literatura) “pois estudar abre sua cabeça e a história das pessoas ainda mais”, reformu-lando o velho ditado que a educação te torna livre. “Você pode ser um historiador – ele disse – mas se vai ser politicamente útil, você vai ter que pensar não só no quê, mas também para quem e como”. De algum modo, o que ele disse 45 anos atrás me guiou e torturou ao mesmo tempo: como preparar a história científica para a classe trabalhadora sem superimpor jargões Marxistas nas práticas acadêmicas tradicionais?

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Minha primeira reação foi absolutamente esquemática: aban-donei história espanhola e vim para a historia da classe trabalhadora argentina. Nos meus estudos, naquela época, eu considerava cada pro-blema, cada ideia, livros que li e artigos que escrevi como uma luta de vida ou morte comigo segurando uma bandeira vermelha nas barricadas. Um dia, em 1979, nos Estados Unidos, o sociólogo James Petras me convidou para sua aula na SUNY Binghamton para falar sobre a classe trabalhadora argentina. Levei meu discurso militante e Petras, bem sua-ve e diplomaticamente, salientou que eu não fazia ideia do que estava falando, desde que confundi história com política. Envergonhado, fui forçado a repensar tudo e assim comecei a estudar novamente por uma perspectiva diferente.

Um ano depois, em 1980, por meio de um amigo ativista, arrumei um emprego na Faculdade Empire State no Centro de Estudos Técni-cos. Minha tarefa era ensinar a história trabalhista americana no pro-grama de aprendizado International Brotherhood of Electrical Workers (IBEW). Foi um desafio que amplamente excedia minhas habilida-des. Por um lado, sabia quase nada sobre o assunto, não me interessava muito, desde que estava firmemente convicto que a classe trabalhadora americana desfrutava dos benefícios do imperialismo. Adicionalmente, meus alunos eram muito especiais: quase todos homens brancos que tra-balhavam 9 horas diárias e que tinham então de encarar quatro horas de “educação universitária”. Era um programa progressivo que embora en-sinasse as habilidades técnicas tradicionais também incluía história do trabalho, união política, sociologia e economia. E ainda assim, era uma tortura para o grupo de trabalhadores que tiveram um dia cansativo de trabalho por pouco dinheiro e que queriam um dia tornar-se “artífices”. Em outras palavras, meus alunos não queriam estar lá e mostravam isso como um nível de hostilidade que eu nunca havia sentido até então. Era uma combinação letal para meu futuro empregatício; tinha que manter o interesse deles de modo a controlar a aula e manter meu emprego.

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Levado às lágrimas e preocupado como o desemprego eminente, um dia decidi contá-los o que pouco sabia sobre o trabalho americano do ponto de vista de um argentino.

Os contei sobre o primeiro de maio em Chicago e Chivilcoy13; falamos sobre a IWW nos Estados Unidos e na América Latina. Le-vamos uma hora e meia falando sobre um monte de outras coisas que eu sabia mais devido ao meu ativismo político do que estudos. Devo ter produzido paixão, pois eles estavam entusiasmados. Acredito que eles nunca tinham pensado que suas vidas poderiam influenciar outros seres humanos, ou que eles poderiam ser tidos como exemplos de trabalhado-res em outros países. De repente, história deixou de ser algo morto e se tornou algo vivo e bem presente. Nós nos tornamos envolvidos em uma longa discussão onde a imaginação voava e história se tornava ligada aos interesses e necessidade deles. Desse momento em diante, eu realmente precisava estudar, não só história do trabalho, mas também sobre IBEW e seus membros. Aprendi algo crucial: história é importante para pes-soas comuns, mas somente quando ligada à vida real.

Foi difícil de entender, desde que fui treinado dentro da tradição de “história objetiva”. Como um graduando, muitos acadêmicos pare-ciam a mim incrivelmente sérios embora chatos; enquanto os revisio-nistas eram “popularizadores”, mas fascinantes. Levei um bom tempo para me dar conta que o último era popular não porque eram “simplifi-cadores”, mas porque eles eram relevantes e discutiam passionalmente coisas que importavam para pessoas comuns. Ambos, acadêmicos e revi-sionistas podiam ser sérios, ou podiam inventar suas próprias conclusões (e às vezes até mesmo suas pesquisas e fontes). Não havia sensibilidade e pouca, senão nenhuma, paixão em meu treinamento acadêmico e pa-recia estar “se afastando do universo da experiência onde a sensibilidade

13 Chivilcoy é uma pequena cidade na província de Buenos Aires (Argentina) onde em 1890 a federação local de trabalho, liderado por anarquistas fizeram greve em favor às 8 horas diárias. Eles descobriram sobre a ação mundial quando o chefe de polícia da cidade apareceu no hall da união para contar a eles que era proibido dar suporte à chamada da Segunda Internacional.

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foi fundada”.14 Um historiador sério era um sem paixão, objetivo, embo-ra história importasse para nós, e “a tensão era expressa no maior meio de instrução, a linguagem”.15

Meus alunos da IBEW me levaram a ler muitas pessoas que eram desconhecidas a mim, tais como Howard Zinn, David Montgomery e Staughton Lynd. Estava fascinado; esses autores pareciam pensar que para estar na Esquerda, com a classe trabalhadora, não era uma ques-tão de discurso “Marxista”, mas sim uma prática social, uma lingua-gem, uma relação entre intelecto e a vida cotidiana de um trabalhador. Os livros deles era acessíveis, calorosos e sérios. Ao mesmo tempo, eu também descobri, enquanto tentava ensinar meus alunos da IBEW, que você tem que saber sua própria história de modo a ser capaz de explicá--la de um modo acessível e claro. E que apesar do meu preconceito, onde eu retinha “o conhecimento” e eles não, meus alunos podiam facilmente dizer quando eu não sabia o que estava falando.

Essa não foi a primeira vez que isso acontecera a mim e ainda experiência não se traduzia imediatamente em conhecimento prático. Como Raymond Williams escreveu “o problema da relação entre ex-periência e linguagem educada e costumeira, em outra forma como a relação difícil entre o sentimento intenso e consciência intelectual.”16 Por exemplo, alguns anos antes, fui enviado para ensinar Marxismo para uma célula fabril. Lá eu era quem “sabia” Marxismo e eles eram os que tinham que “aprendê-lo”. Entre eles estava Pepa, uma velha fazedora de roupas. E lá estava eu ensinando mais-valia a eles. “Você entendeu, Pepa? ” “Não”, ela disse. Repeti. “E agora? ” “Nem uma palavra”. Continuei a pensar, “que trabalhadora ignorante e retógrada”. Então pensei em perguntar como eram as coisas na fábrica dela. Depois de um tempo, tínhamos discutido sobre exploração, alienação e mais-valia. Pepa olhou ao redor e disse: “Era isso? Por que você não disse? Você fala muuuuito engraçado”.

14 Edward Palmer Thompson. “Education and Experience”, 20.15 Edward Palmer Thompson. “Education and Experience”, 21.16 Raymond Williams, “Thomas Hardy”. Critical Quarterly, Winter, 1964, 341-351.

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Evidentemente, quem não entendera nada fui eu; muitas leituras do Ca-pital de Marx e não ver a realidade social. Como Thompson nos lembra sobre Wordsworth, Pepa era “ativamente desconfiada da educação formal que talvez possa inibir ou desviar crescimento experiencial”. 17

Ao mesmo tempo, História é “por definição, absolutamente social” 18 em seu sentido mais amplo do que fora ensinado por meus professores: para Pepa e meus alunos no IBEW história não era uma matéria, era vida. Em outras palavras, “classe social” como um conceito teórico pode ser insuficiente para descrever a complexidade da realidade, mas ao mesmo tempo representa uma realidade existente para Pepa e milhões de outros trabalhadores. “Classe social” foi útil não por conta de Karl Marx ou Max Weber usarem-na, mas porque com todos os seus problemas, essa foi a melhor descrição de comportamentos existenciais e práticas coletivas.

O grande historiador do trabalho americano, David Montgomery, uma vez explicou que entrara para a lista negra em sua fábrica, pois era um Comunista. Ser listado não permitia que ele fosse um trabalhador, então ele decidiu ser a segunda coisa que ele mais gostava: um historia-dor. E ele insistiu que não escrevera história na classe trabalhadora, ele escrevera a própria história. 19 Acredito que escrevo não só história da classe trabalhadora, mas também minha própria.

II.

Os últimos quarenta anos têm sido períodos de intensas transfor-mações para a Argentina e para o trabalho argentino. Inicialmente hou-ve as intensas represálias políticas, aliado ao monetarismo econômico da ditadura de 1976 a 1983; mais tarde houve uma série de políticas sociais

17 Edward Palmer Thompson. “Education and Experience”, 14.18 Lucien Febvre. Combates por la historia. Barcelona: Ariel, 1970, pp. 39-40.19 Mark Naison and Paul Buhle. “Interview with David Montgomery”, en MARHO. The Radical Historians Organization. Visions of History. Nueva York: Pantheon Books, 1976, p. 174-175.

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e neoconservatismo econômico que foram bem similares àqueles impos-tos pela ditadura. O resultado tem sido mudanças imensas a nível social e econômico, uma crise política e, mais que tudo, uma transformação cultural. Nas últimas décadas a situação dos trabalhadores argentinos tem mudado significativamente. A participação deles na renda nacional caiu, o desemprego aumentou, empregos industriais caíram enquanto empregos de serviço aumentaram e migrantes de cidades do interior ou cidades vizinhas lotaram as cidades argentina. Isso levou a uma recom-posição de classe tanto em termos de seus setores como culturais. Houve mudanças em conscientização, assim como uma nova experiência para a classe e uma ressignificação de tradição. Essas mudanças foram tão profundas que ainda não se ajustaram aos novos parâmetros culturais e formações de classes.

Essa transformação afetou a identidade das pessoas, comunica-ções perturbadoras e experiências ressignificadas. E é no plano subjetivo que os argentinos tentam compreender e codificar essas mudanças. Isso levou a um crescimento de interesse entre movimentos sociais na edu-cação e história como um meio de derivar lições uteis para os proble-mas atuais. Por exemplo, comitês nas favelas nos convidaram a conversar com seus membros sobre “como trabalhadores lidaram com a pobreza e o desemprego na depressão de 1929”. Assim, educação se tornou tanto uma forma de resistência como também uma forma de começar a en-tender as mudanças bem destrutivas. Isso define uma série inteira de problemas de ordem prática que respondemos indutivamente: enfren-távamos desafios pedagógicos e metodológicos em nossas aulas (expe-riência) e então buscávamos entender e explicar a eles de um modo que desenvolveríamos uma resposta apropriada que engajaria nossos alunos e se tornaria útil a eles.

O problema com a linguagem e de como tornar ideias complexas acessíveis foi um desafio que não tivemos de lidar em nossas educações universitárias. Como Henry Giroux apontou que:

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“Nada disso pode acontecer ao menos que entendi-mentos progressivos da educação como uma prática política e moral crucial para criar novas formas de entidade, mobilizando um desejo por mudança e provendo uma linguagem que subescreve a capaci-dade do pensar, falar e agir como se desafiasse as gramáticas de sofrimento sexistas, racistas, econô-micas e políticas pelas novas formas de autoritaris-mo. A esquerda precisa de uma linguagem crítica que permita o povo a perguntar perguntas indizíveis dentro dos vocabulários opressores existentes. Tam-bém precisamos da linguagem da esperança que está firmemente consciente dos obstáculos ideoló-gicos e estruturas que comprometem a democracia. Precisamos de uma linguagem que reestruture nos-so ativismo político como um ato criativo. ” 20

Como apontado por Giroux, na citação a cima, isso implica que o educador deve achar uma linguagem que não só seja acessível, mas que também adote o pensamento crítico. Assim, se comunicar com traba-lhadores, desempregados ou moradores de favela se torna uma questão crucial. Ao tempo que nós tivemos de aprender a aceitar que as lições que derivavam de nossos estudantes trabalhadores em nossas aulas pro-vavelmente não eram aquelas que eles queriam ou concordavam com. A meta era contribuir a reexaminar as noções culturais, seus novos signifi-cados através do tempo, o modo como a memória contribuía para lidar com transformações.

III.

No início de 1984, uma vez que a ditadura de 1976-1983 deu cami-nho às eleições, pude voltar à Argentina. Por sorte, tornei-me professor na Universidade de Buenos Aires. Eram tempos inebriantes, onde a universi-dade estava fazendo o esforço de “sair” pela comunidade. Fizemos oficinas

20 Henry A. Giroux . “Militant Hope in the Age of Trump”. T h e B u l l e t Socialist Project e-bulletin No. 1355 January 13, 2017. http://www.socialistproject.ca /bullet/1355.php

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de letramento, dei aulas para a comunidade e debatemos como mudar os currículos para que eles se adaptassem às necessidades sociais mais pron-tamente. Em 1987, alguns colegas me convidaram para ensinar história a metalúrgicos (UOM ou Unión Obrera Metalúrgica) em Quilmes. A velha liderança, tradicional. Peronista, colaborara com a ditadura e tinha acabado de perder uma eleição. A nova liderança era a mistura de ex-guerrilhei-ros, esquerdistas, Peronistas, progressistas e Trotskistas. Crucial à estratégia delas era a “Escola Sindical Para ativistas”, onde era ensinado um mix de estudos trabalhistas, história, economia básica e técnicas de barganha. Nos próximos cinco anos centenas de metalúrgicos (em sua maioria eleitos re-presentantes do sindicato, mas também muitos que queriam participar do sindicato trabalhista) passaram pela escola. O programa típico eram quatro encontros de aproximadamente três horas cada, e eles eram frequentados por 15 a 20 trabalhadores que conseguira a “licença do sindicado do traba-lho” para estudar. Todos os professores vinham da universidade e trabalha-vam de graça (ou pelo “sanduíche” como dizíamos). A maioria dos alunos tinham mal terminado o ensino médio e alguns deles eram semianalfa-betos. Ainda, eles eram conhecedores dos eventos atuais e muitos tinham uma ideia geral de eventos históricos e muitos trabalhos da literatura ar-gentina. Isso se dava devido à noção de que autoeducação é central para a cultura trabalhista argentina, especial a ideia de que educação trabalhadora deveria ser autônoma do estado. Desde o fim do século XIX trabalhadores argentinos têm resignificado o radicalismo trabalhista e acreditaram que “educação te liberará”. Nesse sentido, conhecimento não é “um despertar”, mas sim um completo entendimento da vida e do processo de exploração, tornando-se central para a dignidade humana. Esse conhecimento é ad-quirido de duas formas: através de educação formal e também através de experiência de vida oralmente peneirado através de lições passadas por um companheiro ao outro. Como um de nossos alunos me disse: “Fui para uma universidade que você nunca pisou o pé, filho; a universidade da rua. ” 21

21 Entrevista por Pablo Pozzi com Jorge Salvatori, Quilmes, Buenos Aires Província, 8 de Agosto de 1988.

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Quase que imediatamente nosso problema principal era pedagó-gico. Nossas habilidades universitárias não eram só inúteis, mas elas des-motivavam nossos alunos. Como Paulo Freire insistiu, nós rapidamente nos demos de conta que aprendizado não pode ser padronizado, pois ele sempre ocorre no contexto de conhecimento e experiência prévios dos alunos. 22 Nós tentamos coisas diferentes, muitas sem sucesso. Final-mente, depois de muitas tentativas e erros, nosso coordenador, Ernesto Crescente23, pensou num modo de manter o interesse deles e nossas aulas fluindo ao mesmo tempo. Pegando uma página de Paulo Frei-re ele propôs que nós deveríamos compartilhar conhecimento de uma maneira não hierárquica. Cada encontro começava com um professor definindo o que seria a matéria do dia. Então, todos os alunos sugeri-riam questões e temas para serem considerados. Nós escreveríamos essas questões em um quadro negro e então começávamos a aula usando-as como guia. Nós, historiadores, escreveremos questões/temas numa or-dem mais ou menos cronológica e considerávamos uma de cada vez. Rapidamente descobrimos inúmeras coisas. A primeira foi que nossos alunos prestavam mais atenção e não nos deixaria sair do caminho que eles definiram. Depois descobrimos que os alunos não sugeriam ques-tões/temas que eles desconheciam, mas sim tendiam a perguntar coisas que eles tinham pouco (ou às vezes muito) conhecimento sobre, assim eles podiam ouvir o que tínhamos a dizer e entravamos em um debate. Por fim, mas não menos importante, isso implicava que todos prestavam atenção esperando pelo “problema deles” ser debatido.

Como professor, essa foi a coisa mais difícil que já havia feito. Primeiro porque nunca sabíamos o que poderia surgir como “temas”. Então, não tínhamos tempo algum para estruturar nossa aula, enquan-to tínhamos de ser capazes de explicar coisas complexas de um modo

22 Paulo Freire. Pedagogy of the Oppressed. New York: Continuun, 1993. 23 Crescente estudou Ciência Educacional na Universidade de Buenos Aires em 1970 e se tornou um militante Montonero. Em 1983 como Esquerdista Peronista, ele desenvolveu várias escolas trabalhistas para ativistas.

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acessível. Por exemplo, para explicar a Revolução Industrial nós depen-díamos do que os livros de ensino médio diziam. Então nós os desa-fiamos (era realmente uma questão de maquinário e descobrimento de novas tecnologias ou um processo que transformou fazendeiros em tra-balhadores, o que eles tinham a ver com aquilo tudo?). Nossos alunos odiavam a história do ensino médio, era como a matéria mais chata e irrelevante; e assim, mudando o foco de tecnologia para pessoas eles se engajaram com a matéria. Frequentemente eles colocariam tópicos que nós não tínhamos pensado sobre, ou que historiadores tinham pa-rado de considerar alguns séculos atrás. Por exemplo, no meio de uma aula sobre revolução industrial, eles perguntaram o quem fizera mais pelos trabalhadores argentinos, o Político socialista Alfredo Palacios24 ou Juan Domingo Peron. Era uma questão política, claramente, assim como uma questão histórica. Na verdade, tudo o que eles propuseram tinha tons políticos e às vezes evoluíam para uma discussão aberta (às vezes acrimoniosas).

Crescente decidiu que não deveríamos rodear discussões políticas e que cada um de nós tinha direito a ter opiniões, desde que respeitás-semos as de nossos alunos. No sentido que ele concordava com Henry Giroux quando ele declarou que “tornar o político mais pedagógico tor-na-se central para qualquer noção viável de política. Isto é, para que os ideais e práticas da governança democrática não sejam perdidos, é ne-cessário que os progressistas abordem e acelerem a produção de culturas formativas críticas que promovam o diálogo, o debate e, como James Baldwin certa vez chamou, certa ousadia, certa independência mental capaz de ensinar algumas pessoas a pensar e ensinar algumas pessoas a pensar, você tem que ensiná-las a pensar em tudo 25. […] Essa fusão de

24 Palacios foi o primeiro socialista eleito na América Latina em 1905. Ele propos muitas leis protegendo os direitos trabalhistas. Como a jornada de trabalho de 8 horas, salário mínimo e proibição de trabalho infantil. As propostas dele foram promulgadas (ou enforcadas) durante o Governo Peronista 1946-1952. 25 James Baldwin: The last Interview and Other Conversations, (Polity Press, 2016: Cambridge, UK), p. 22. Citado em Giroux, “Militant Hope in the Age of Trump”.

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educação, pensamento crítico e política é necessária para criar agentes informados dispostos a combater a violência sistêmica e as formas do-mésticas de repressão que marcam as políticas autoritárias e as práticas repressivas.”26

Os anos que passei na Escola UOM foram os mais prazerosos que tive como educador e como historiador. Acredito que fizemos um trabalho incrível. Como quando depois de uma aula em especial so-bre socialismo, anarquismos e movimento trabalhista antecipado, fomos abordados por um jovem trabalhador que deveria ter entre 20 e 22 anos de idade. “Cara legal esse Mars”, ele disse. “Ok”. “Com se soletra Mars?” “M A R X”. “Legal, de que província ele é?” eu estava surpreso. Esse metalúrgico não só foi tocado pelo que ensinamos, mas também achava Marx tão relevante que não só acreditava que ele estava vivo, mas que ele também era argentino. Infelizmente, uma vez consolidado no cargo, a liderança sindical ficou desconfortável como nossos resultados. Como Giroux disse: “Pensar é perigoso, pois é um requerimento principal para a construção de uma nova instituição política que pode tanto lutar con-tra o autoritarismo eminente como também imaginar uma sociedade na qual a democracia é vista não mais como um resquício do passado, mas sim como um ideal válido de luta contínua. ”27 Como mais e mais de nossos alunos questionavam políticas e prática oficiais, muitos de nós fomos “abandonados” em 1992.

Depois de UOM de Quilmes, ensinei em muitos outros sindi-catos, às vezes eram apenas pequenas oficinas e outras vezes eram cur-sos completos. Cada grupo de trabalhadores era diferente e cada um pedia uma estratégia diferente: telefonistas (FOETRA: Federación de Obreros y Empleados de Teléfonos de la República Argentina) eram alta-mente politizados, enquanto muitos Funcionários Públicos (UPCN e ATE: Unión del Personal Civil de la Nación, Asociación de Trabajadores del

26 Henry A. Giroux . “Militant Hope in the Age of Trump”.27 Henry A. Giroux . “Militant Hope in the Age of Trump”.

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Estado) tinham pelo menos alguns anos de educação universitária 28 e Trabalhadores Gráficos (STG: Sindicato de Trabajadores Gráficos) leram mais livros que muitos colegas. Frequentemente, meus preconceitos da classe média na universidade foram postos à prova. Por exemplo, um dos mais interessantes antropologistas que já conheci foi “Pete”. Ele era um veterano trabalhador da construção, que instalava tubos de alta pressão. Embora não tenha terminado o ensino médio, Pete falava inglês melhor do que eu “porque alguém tinha que ser capaz de se comunicar com engenheiros burros que enviavam dos Estados Unidos”. 29 Ele também era fascinado por índios americanos, então lera vários livros sobre Etnia, Nativos Americanos, folclore e costumes. Pete era comunista e um ati-vista sindical que amava discussões políticas. Como estudante, Pete era um pesadelo, desde que ele adorava debater o professor, mas ele também era um daqueles que “iam para a aula”. Em cada lugar nós variávamos nossas estratégias para ensino e engajamento dos alunos. Inicialmente era muito complicado, desde que tanto alunos como professores eram presos na concepção onde os professores “tinham o conhecimento” e os alunos estavam lá “para aprender”. Fomos treinados no que Freire chamou de modelo “empilhado” de aprendizado onde conhecimento era tratado como outra forma de comodidade para transferir o mais efi-cientemente possível do remetente para o destinatário. Esse modelo era confortável, afagava nossos egos, era fácil e foi autodestrutivo quando lidamos como nossos trabalhadores estudantes.

Uma das coisas que nós mudamos em termos do que esperávamos e como diálogos desenvolvidos. Classe média e professores universitários tendiam a falar em um continuo fluxo de pensamento. Trabalhadores argentinos formularam uma ideia do início ao fim e se você os interrom-pesse, ou eles começavam novamente ou abandonavam o pensamento. Se

28 Importante: Universidades Públicas na Argentina são gratuitas e cada cidadão ao terminar o ensino médio pode ir. Nas décadas de 60 e 70 muitos trabalhadores participaram de palestras, participaram de cursos ou come-çaram a estudar. Por exemplo, o comitê de oficina da fábrica da Petroquímica Argentina estudou Química, em 1974, para poder ser melhor na mesa de negociação. 29 Interview by Pablo Pozzi with Pete, Monte Chingolo, Buenos Aires Province, 30 October 1991.

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você quiser comunicar-se você tem que aprender que isso é um válido (ou frequentemente mais frutífero) processo de pensamento. Isso também varia quando lidamos com trabalhadores industriais versus rurais. Dei aula para trinta membros do sindicato rural (UATRE: Unión Argentina de Trabajadores Rurales y Estibadores) em uma cidadezinha na Provín-cia de Cordoba. Para mim, o modo como eles comunicavam suas ideias, cheio de anedotas e referências ao interior e animais, era de fato estranha; para eles o estranho era eu. Por exemplo, um dia após estabelecer nossa questão todos ficaram em silêncio. Perguntei se eles não queriam falar. Eles responderam “Por quê? Você tem algo importante a dizer”. Tomei o silêncio dele como ausência de interesse; eles atribuíram isso como parte do processo de pensamento deles. Como não pude “adotar” nem a cultura deles, nem os maneirismos de fala, decidi deixar com que eles começas-sem e terminassem cada ideia, aceitando que eu era um forasteiro e tinha que frequentemente pedi-los para explicar as coisas, admitindo que havia muito que eu não sabia. A ideia que ambos tínhamos algo a ensinar uns aos outros era nova para nós e nos tornamos uma classe qualitativamente diferente. Como Raphael Samuel apontou: “A ênfase era na informalida-de e na participação, falando um com o outro”. 30

Não somente as diferenças culturais e de classe eram cruciais, mas também o preconceito arraigado. Por exemplo, ensinei história das lutas durante a Grande Depressão para um grupo de trabalhadores das docas em Berisso, Província de Buenos Aires. Muitos negros, vestidos pobre-mente e ficavam quietos sem nem sorrirem. Minha hipótese era de que eles eram ignorantes e assim os tratei como um navio a ser preenchi-do pelo “meu conhecimento” e sabedoria. Pensei estar me saindo bem, desde que a atenção deles não divagava. Continuei falando, empolgado comigo mesmo. Em um ponto um dos rapazes pareceu ter acordado e disse: “Ok, tá bom. Deixe o microfone de lado, nossa vez de falar”. Es-tava ofendido, afinal eu era o professor. De repente, eles lançaram uma

30 Raphael Samuel, editorial introduction. History Workshop: collectanea, 1967-1991. History Workshop Jour-nal, 1991, p. 3.

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longa e realmente interessante discussão de como usar o que eu havia dito para achar respostas para seus problemas atuais. Aparências podem refletir classes e culturas diferentes, onde somos treinados para esperar que alunos se comportem e se vistam de determinada forma. Silêncio pode implicar muitas coisas entre trabalhadores argentinos e não neces-sariamente ignorância, aceitação ou consentimento.

Para lidar com diferenças nós envolvemos uma série de métodos diferentes. Às vezes pedíamos questões dos alunos (Como na UOM), outras vezes nós jogávamos “vinte perguntas” com nós escrevendo-as no quadro. Às vezes ensinávamos uma aula mais tradicional (palestra e per-guntas). Outras vezes nós simplesmente perguntávamos a eles o que eles queriam falar sobre e centrávamos nisso. Eventualmente, nós focávamos na estratégia centrada em duas “ferramentas”. Primeiro nós compiláva-mos vários livretos: sobre história do trabalho mundial; história do tra-balho argentino; “como ler seu holerite” e economia básica; saúde e se-gurança; e testemunhos de veteranos do sindicato em como ser um bom ativista. Eles tinham textos bem pequenos 31 e muitas músicas, poemas, anedotas, testemunhos, piadas ou semelhantes. Ao mesmo tempo, os primeiros cinco minutos de aula eram gastos falando da importância do trabalho na história tentando medir o nível de educação (formal ou informal) e interesse dos alunos. Linguagem e complexidade teriam en-tão de ser ajustadas ao que percebíamos em nível de meio de educação. Então nós entregávamos a cada aluno um livreto. Isso nós achávamos ser crucial então nós podíamos conduzir a aula seriamente. Ao mesmo tempo, nós descobrimos que a maioria deles levava o livreto para casa e leria-o mais a frente. Então estruturávamos as aulas de acordo com o li-vreto, lendo pedaços, cantando músicas ou fazendo referências a páginas específicas. Como muitos deles eram pelo menos cientes dos materiais no livreto, isso segurava a atenção deles e os oferecia base para a aula.

31 Por exemplo, algumas peças de Howard Zinn, que traduzimos, funcionaram muito bem. Vid Howard Zinn. “The Question period in Kalamzoo”. In Howard Zinn. You Can´t be Neutral on a Moving Train. Boston: Beacon Press, 1994; pp. 1-15.

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Adicionalmente, dávamos ênfase “ao que ouvíamos” ou “foi dito”. Muitos trabalhadores argentinos tinham uma noção de história que havia sido transmitida oralmente. Por exemplo, Brígida e Lucy, duas trabalha-doras rurais do norte da Argentina, explicaram que um tio anarquista as ensinara sobre história do trabalho. “e era tão fascinante que lemos todos os livros que achávamos sobre o assunto”.32 Nossa tarefa era organizar a discussão, promover debate e sugerir explicações alternativas. De modo que fazíamos o esforço de ter o aluno tornando-se um protagonista e um auto-professor. Era complicado, porque palestrar era mais fácil, e ainda menos ricos em termos de adotar pensamentos críticos. Era também bem esquizofrênico, desde que ensinávamos também na universidade onde nossos métodos da escola trabalhista não eram tão bem traduzidos.

Todas as estratégias a cima tiveram um impacto imenso no meu trabalho como historiador. Por exemplo, a significação da oralidade na cultura trabalhista argentina era uma descoberta importante. Por um lado, tornou-se uma ferramenta de ensino útil. Por outro, como pesqui-sador sempre considerei a história oral como um método de construção de fontes. Meus alunos me ensinaram que era mais que isso; era uma abordagem que tornava possível o estudo da subjetividade do trabalho para historiadores do trabalho. De fato, um dos aspectos mais interes-santes na tradição oral era que ela nos permitia traçar as subjetividades culturais e aquele mundo incrivelmente complexo que Raphael Samuel chamou de “teatros da memória”. 33 Especificamente, isso nos permite acessar, através de várias gerações, padrões culturais, motivações e um mundo que foi chamado de “classes subalternas”. Efetivamente, músicas, poemas, piadas e anedotas podem constituir umas fontes importantes para entender a subjetividade do explorado. A característica comum para todas essas fontes é sua oralidade: são feitas, lembradas e transmi-tidas oralmente e não tem a mesma força e significado quando elas são meramente lidas em silêncio como sua evocação fosse a sentimentos e

32 Entrevista por Pablo Pozzi com Brígida e Lucy Torres. Metán, Salta, 8 July 1995.33 Raphael Samuel, Theaters of Memory, 2 vols. London: Verso Books, 1994.

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emoções (subjetividade) e não razão. Assim, eles se tornam um elemento central para entender a persistência das “estruturas de sentimento” que constituem culturas em contraponto àquelas dominantes e hegemônicas.

Nossos alunos trabalhadores tornavam claro para nós que tra-dições que são transmitidas de geração a geração não são imutáveis e seus significados não é único e inequívoco. De fato, cada geração retira e seleciona das tradições de seu passado e as resignifica de acordo com a realidade e necessidade. O professor deve levar isso em consideração. Por exemplo, em 1991 trabalhadores argentinos grevistas entoavam “se em 1961 eles não puderam nos derrotar, em 1991 menos ainda”. A re-ferência era à greve ferroviária em 1961. Entretanto, a greve de 1961 finalizou em uma derrota e desmantelamento do movimento dos tra-balhadores ferroviários. Mas os que os trabalhadores lembravam, trinta anos depois, não era o resultado da greve, mas sim a poderosa tradição de luta baseado no que lembravam como terem lutado com dignidade de heroísmo. O que é transmitido, através de muitas décadas e com significados variados, é a noção de “nós contra eles” que é usado para dar coesão para uma classe social específica, formando uma estrutura de sentimento que fundamenta e articula comportamentos diferentes através de concessão de novo significado a tradições do passado e assim “ensinar” um comportamento coletivo “correto”. Assim, experiência e tradição são mantidas e mudadas ao mesmo tempo de acordo com o contexto social e necessidade (nesse caso de conflito) se tornando um elemento que articula cultura trabalhista e, como experiência, consciên-cia de classes. Nossos trabalhadores estudantes foram imersos nesse “senso comum”; para eles era tão “natural” como para nós professores era incomum. Levando isso em consideração, era crucial para adoção de pensamento crítico em nossas escolas sindicais.

No caso argentino tudo isso sugere aos historiadores é que um dos aspectos mais marcantes dos trabalhadores argentinos era a per-sistência a uma série de elementos e percepções que disputam e geram

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problemas sérios para a dominância das classes governantes e que são transmitidas através da tradição oral. Como estabelecido acima, esses elementos constituem uma cultura de classes, um “nós” contra “eles”, que fundamenta as práticas de mobilização popular, assim como a re-construção permanente das organizações apoiadas pela esquerda e uma combatividade notável, tudo apesar da repressão relativamente constan-te dirigida pelo estudo. Na verdade, a noção de classe social é dentro e fora de si mesma inseparável das estruturas de sentimento que formam o cimento que mantém tudo isso junto. 34

Como foi estudado por James Petras35 e Daniel James,36 trabalha-dores argentinos têm, historicamente, expressado uma fonte sentimento de classe que em alguns casos têm associado com o que é chamado Cul-tura Peronista. Longe de ser Peronista ou meramente “híbrida”, cultura trabalhista·na Argentina tradicionalmente desenvolveu um forte anta-gonismo, onde a burguesia tem se identificado não só como diferente, mas também como inimiga. Isso não implica nenhum tipo de critérios “revolucionários”, mas sim uma série de tradições, costumes e usos que são traduzidos na disputa pelo controle do ponto de produção.37 Nesse sentido muitas lutas clandestinas no ambiente de trabalho centram não só em salários e condições, mas também em tradições que são sentidas pelos trabalhadores como “senso comum”38.

34 Raymond Williams. Marxismo y literatura. Barcelona: Ediciones Península, 1980.35 James Petras, “Terror and the Hydra: the Resurgence of the Argentine Working Class,” in James Petras, Eugene Havens, Morris Morley, and Peter DeWitt, Class, State and Power in the Third World. New Jersey: Rowman and Littlefield, 1981.36 Daniel James, “Racionalización y respuesta de la clase obrera: contexto y limitaciones de la actividad gre-mial en la Argentina,” Desarrollo Económico 83 (Octubre-Diciembre 1981).37 Essa luta pelo controle de produção implica uma tácita, e em muitos casos inconsciente, disputa não só pela distribuição do produto de trabalho, mas também de propriedade privada em si. Propriedade privada sob os meios de produções é o que permite aumento constante de apropriação de valor excedente. Questionar como valor excedente é distribuído, ou quem determina o ritmo de produção, implica em atacar a propriedade privada em si.38 Nessa análise, achei particularmente útil o conceito trabalhado por E.P. Thompson. Customs in Common. Studies in Traditional Popular Culture. New York: The New Press, 1991.

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Na Argentina, o que é chamado de “cultura” ou “senso comum” está interligado como conceitos tradicionalmente ligados às noções es-querdistas: Bom é considerado uma parte da solidariedade, “companhei-rismo”, o sindicato; onde em geral, empregadores eram uniformemente considerados exploradores. Quando o líder do sindicato de trabalhado-res de Restaurante, Luis Barrionuevo, declarou “na Argentina você tem que fazer dinheiro trabalhando, ” todo mundo sabia o que estava falando sobre. Era senso comum que ricos eram ladrões.

Outras coisas se mantiveram inalteradas, por hora, no mundo éti-co e moral de trabalhador argentino. Por exemplo, o problema de vio-lência social durante ações profissionais ou como um modo de reforçar disciplina dentro de uma greve é considerado diferentemente pelos tra-balhadores estudantes pelo que nós costumávamos ensinar. A polícia era considerada, culturalmente, como um elemento repressivo que era estra-nho aos trabalhadores; embora o vigilante (policial numa batida) é levado a ser parte da comunidade. Muitos alunos tinham anedotas sobre serem parados por policiais, por serem “negros” ou de acordo com outros “se você fosse jovem você era suspeito de ser um subversivo”. Um trabalhador mais velho alegou que era melhor ser um ladrão do que ser um policial.39

Ensinar meus alunos trabalhadores na UOM me deu o incenti-vo para fazer pesquisa sobre resistência trabalhista à ditadura de 1976 e eventualmente, escrevi um livro. 40 Enquanto fazia minha pesquisa, discutia os achados com meus alunos da UOM de Quilmes. A dialética entre pesquisa e a contribuição deles me forçaram a repensar categorias, métodos, perspectivas e como abordar história da classe trabalhadora. Especificamente, eu tinha de repensar problemas chave entre os quais as questões de consciência e violência de classes eram possivelmente as mais importantes.

39 Eles insistiam que uma pessoa poderia se tornar um ladrão por necessidade, enquanto um policial escolheu um emprego cuja única finalidade era reprimir os trabalhadores.40 Pablo Pozzi. Oposición obrera a la dictadura. Buenos Aires: Editorial Contrapunto, 1989.

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O principal problema era que ciências sociais tendiam a consi-derar consciência de classes em termos positivistas. Em outras palavras era ou avançar ou voltar, isto é “verdadeiro” ou “falso”, ou às vezes não existia de jeito algum e era substituída por termos como “coesão” ou até mesmo “cultura”. Era um problema, como meus alunos tendiam a repre-sentar coisas variadas, diferentes e às vezes contraditórias. O dinamismo tendia a representar seus materiais de existência como seres humanos. Essa experiência vivida num ambiente de trabalho, em bairros e dentro de famílias é expressa através de noções culturais, em uma interpreta-ção da realidade e dos problemas que rodeavam os trabalhadores. Essa interpretação pode também ter alguns destaques nas soluções revolu-cionárias. Nesse sentido, uma consciência de trabalhador é expressa em muitas formas ao longo do tempo, em culturas diferentes ou em diver-sos processos históricos. Assim, consciência não é nem linear ou tem sentido único, nem é estática. Isso significa que um trabalhador nem sempre terá a mesma “consciência”. Mas implica que pode ser forte ou fraco, dependendo da experiência vivida pelo trabalhador. Ao mesmo tempo, consciência não é algo individual, sim coletivo. Talvez uma das coisas mais interessantes que recolhi de minhas aulas, apesar das pers-pectivas e critérios diferentes, foi como meus alunos tendiam em algum momento atingir conclusões coletivas (que nem sempre eu concordava com). E essas conclusões tendiam a ser baseado no que só pode ser chamado de antagonismo de classe. Vai além de política e ideologia. Por exemplo, como disse antes, meus alunos tendiam a considerar todos os ricos como ladrões. São experiências, e também noções culturais, e eles implicam uma noção de “nós contra eles”, em outras palavras um tipo de consciência. Não signficava que aquele grupo de trabalhadores conscientes eram “socialistas”, mas sim que eles podiam trazer suas ex-periências na vasta arca de opiniões ideológicas. Por exemplo, Argentina historicamente teve um alto nível de conflitos trabalhistas, enquanto o apoio por organizações trabalhistas de esquerda tem sido relativamente

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baixo desde 1946. A maioria dos trabalhadores argentinos têm sido, por mais da metade de um século, peronistas. Isso significa que eles não têm consciência de que isso é falso, retrógrado ou o quê? E ainda assim lutas pelo controle de produção implicam em um profundo questionamento das relações capitalistas de produção.

Violência de classes representam um problema similar. Nós, pro-fessores, rejeitamos a maioria dos tipos de violência. E ainda assim, há uma tradição de violência política durante conflitos, incluindo sabotagem e batalhas com quebradores de greve ou polícias. Nesse sentido, violência era algo diário na vida do trabalhador argentino. Tanto conflitos traba-lhistas quanto políticos incluíam esse fato. Assim, para muitos de nossos alunos violência era vista como uma expressão e resposta à violência sis-têmica. Por exemplo, um trabalhador declarou que “eles disseram que nós éramos violentos. Que violência eu pergunto? Quero dizer, na minha cidade tinha até lepra. Isso é violência”. Assim, sabotagem e violência contra quebradores de greve ainda implica em algo aceito por conflitos trabalhistas. Ao mesmo tempo em que nós, professores deles, entendía-mos como algo excepcional, para eles era parte de suas vidas cotidianas.

Henry Giroux insiste na importância da educação quando ele de-clara que: “no trabalho aqui é o fato inegável de como a educação está no centro da política e pode ser usada tanto para meios opressivos como emancipadores […] Não estou falando de um apelo fácil a uma noção de conscientização. Pelo contrário, estou enfatizando a necessidade de os progressistas trabalharem em conjunto com sindicatos, sindicatos educacionais e outros movimentos sociais. […]”41 Eu adicionaria que a ligação aos movimentos sociais, como E.P. Thompson diz no início de sua obra, “experiência modifica, às vezes sutilmente e às vezes radical-mente, o processo educacional: influencia métodos de ensino, a seleção e maturação de tutores, o programa: pode até revelar lugares fracos ou

41 Henry A. Giroux . “Militant Hope in the Age of Trump”.

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espaços nas disciplinas acadêmicas recebidos e levam à elaboração de novas áreas de estudo”. 42

Muitos anos atrás, fui empregado em uma “auto-fábrica” (na ver-dade era uma grande loja de autopeças com nível baixo de tecnologia). Consegui o emprego para “fazer a revolução” e ganhar meu sustento. Aprendi muitas coisas, por exemplo, que eu terminava meu dia de tra-balho tão cansado que eu não queria falar sobre política ou outras “coisas bobas”. Precisei de meus alunos trabalhadores para me fazer entender muitas das coisas que aprendi e que tinha ciência de.

Classe para eles não era um conceito teórico, mas sim algo que existia na vida cotidiana. Pensei que era um trabalhador como todos os outros na fábrica, até eles tornarem claro que não éramos iguais. Como quando um trabalhador mais velho, que trabalhava do meu lado, me disse uma vez: “você pode sair daqui a quando você quiser, estou aqui pelo resto da vida”. Passei algum tempo lá e então fui para outros empregos. 15 anos depois, decidi que queria me tornar um historiador. E assim concluí que meu trabalho era para aqueles “companheiros” que estavam condenados “para sempre”. Escrevo sobre eles, então um dia eles possam ser livres.

Trabalhos citados

Daniel James, “Racionalización y respuesta de la clase obrera: contexto y limitaciones de la actividad gremial en la Argentina,” Desarrollo Económico 83 (Octubre-Diciembre 1981).Edward Palmer Thompson. “Education and Experience” in E.P. Thompson. The Ro-mantics. New York: The New Press, 1997Eric Hobsbawm. Sobre la historia. Barcelona, 1997.E. P. Thompson. Customs in Common. Studies in Traditional Popular Culture. New York: The New Press, 1991.

42 Edward Palmer Thompson. “Education and Experience” in E.P. Thompson. The Romantics. New York: The New Press, 1997; p.4.

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Gerardo Necoechea Gracia y Pablo Pozzi (comps.). Cuéntame tu vida. Una introduc-ción a la historia oral. Buenos Aires, 2008.Henry A. Giroux . “Militant Hope in the Age of Trump”. The Bullet Socialist Project e-bulletin No. 1355 January 13, 2017. http://www.socialistproject.ca /bullet/1355.phpHenry Giroux. Teoría y Resistencia en educación Mexico, 1992.Henry A. Giroux and Peter McLaren. eds. Critical Pedagogy, the State, and the Struggle for Culture. New York, 1989.Henry Giroux. Theory and Resistance in Education: Towards a Pedagogy for the Opposition. Westport, Ct.; Bergin and Garey, 2001.Howard Zinn. “The Question period in Kalamzoo”. In Howard Zinn. You Can´t be Neutral on a Moving Train. Boston: Beacon Press, 1994; pp. 1-15.James Baldwin: The last Interview and Other Conversations, (Polity Press, 2016: Cam-bridge, UK), p. 22James Petras, “Terror and the Hydra: the Resurgence of the Argentine Working Class,” in James Petras, Eugene Havens, Morris Morley, and Peter DeWitt, Class, State and Power in the Third World. New Jersey: Rowman and Littlefield, 1981.José Nun, Averiguación sobre algunos significados del peronismo. Buenos Aires: Editorial Espacio, 1994.Lucien Febvre. Combates por la historia. Barcelona: Ariel, 1970Mark Naison and Paul Buhle. “Interview with David Montgomery”, en MARHO. The Radical Historians Organization. Visions of History. Nueva York: Pantheon Books, 1976, p. 174-175.Paulo Freire. Pedagogy of the Oppressed. New York: Continuun, 1993Raphael Samuel, editorial introduction. History Workshop: a collectanea, 1967-1991. His-tory Workshop Journal, 1991Raphael Samuel. Historia popular y Teoría socialista. Barcelona, 1984.Raphael Samuel et alia. “¿Qué es la historia social?”. Historia Social No. 10 (primavera--verano 1991). Valencia: Instituto de Historia Social, UNED Valencia. Raphael Samuel, Theaters of Memory, 2 vols. (London: Verso Books, 1994).Pierre Vilar. Memoria, Historia e Historiadores. Valencia, 2004.Raymond Williams, “Thomas Hardy”. Critical Quarterly, Winter, 1964, 341-351.Raymond Williams. Marxismo y literatura. Barcelona: Ediciones Península, 1980.

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Pablo Pozzi, PhD em História (SUNY em Stony Brook 1989) é um Professor Plenário Pleno no Departamento de História da Universidade de Buenos Aires (Argentina), onde ele preside a História dos Estados Unidos e leciona o seminário de dissertação sobre o trabalho argentino. Ele é especialista em história social contemporânea, espe-cificamente pós-1945, tanto na Argentina quanto nos Estados Unidos. É pesquisador nacional de classe I (um) e publicou numerosos artigos e livros sobre a Argentina e os Estados Unidos. Algumas de suas obras são La oposición obrera à la dictadura (1976-1982) (Editorial Contraponto 1988) [Oposição trabalhista à ditadura, 1976-1982], Los setentistas. Izquierda y clase obrera, 1969-1976 (Eudeba, 2000) [Pessoas dos anos 70. Cultura e Histórias de Vida da Esquerda Argentina de 1965 a 1975], Por la sendas argentinas. O PRT-ERP, a guerrilha marxista (Eudeba 2001) [Os guerrilheiros marxistas do PRT-ERP], Luchas sociais e crise nos Estados Unidos, 1945-1993 (El Bloque Editorial 1993) [Conflito Social e Crise nos Estados Unidos ( 1945-1993)], Huellas Imperia-les. Estados Unidos da crise de acumulação à globalização capitalista (Editorial Imago Mundi 2003) [Estados Unidos entre crise e globalização] y Trabalhadores e consciência de clase nos Estados Unidos (Editorial Cántaro 1990) [De Washington a Reagan: Tra-balhadores e consciência de classe nos Estados Unidos]. Historia oral e historia política. Izquierda y lucha armada en América Latina (Ediciones LOM 2012) [História Oral e História Política. A Esquerda e a Luta Armada na América Latina], y Por el camino del Che. Las guerrillas latinoamericanas 1959-1990 (Imago Mundi 21012) [No caminho do Che. Guerrilheiros latino-americanos 1959-1990]. Além disso, integra o Conselho Consultivo do Arquivo Nacional da Memória (Argentina), chefia o Programa de Histó-ria Oral da Universidade de Buenos Aires e é Diretor do Instituto de Estudos Interdis-ciplinares sobre a América Latina (INDEAL) da Universidade de Buenos Aires. Bue-nos Aires Ele foi membro do Comitê Internacional da Organização de Historiadores Americanos e ex-editor colaborador do Journal of American History. Ele também foi o representante eleito para a América do Sul para a Diretoria da Associação Internacional de História Oral (IOHA), faz parte do Conselho Científico da Associação Brasileira de História Oral e foi até 2013 Presidente da Associação Argentina de História Oral (AHORA).

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MECANIZAÇÃO PORTUÁRIA: CLASSE, PODER E POLÍTICA NO PORTO DE NOVA IORQUE

(1955-1962)

William J. Mello43*Traduzido por Gregório Magno Viana Oliveira.

Na segunda metade dos anos 1950, duas questões moldaram a luta pelo controle e regulamentação do trabalho no porto de Nova Iorque. Neste processo, a demanda dos empresários para automação se transformou numa longa batalha entre elites políticas e os estivadores. Duas questões informaram este processo. Primeiro, como a Associação Internacional de Estivadores (International Longshoremens Associa-tion – ILA) sobreviveu as pressões da combinação de forças políticas que se uniram para transformar o porto? Segundo, como os trabalhado-res responderam às complexas coalizões políticas que se delinearam ao longo deste processo? Essas questões, contudo, assumem um significado importante à luz da expansão da automação do trabalho nas docas. Estes objetivos foram alcançados com o uso sistemático do poder de liminar da Lei Taft-Hartley44, bem como outras medidas legais em combinação com as regulamentações e leis específicas para controlar a força de tra-

43 ∗ William J. Mello, Professor Doutor em História e Política, Departamento dos Estudos de Trabalho, Indiana University, Professor afiliado do Center for Latin American and Caribbean Studies (CLACS) de Indiana Uni-versity e Professor Visitante no Mestrado Acadêmico em História (MAHIS) na Universidade Estadual do Ceará. Partes deste texto foram originalmente publicado em ingles no livro New York Longshoremen, Class and Power on the Docks, University of Florida Press (2010). 44 A Lei Taft- Hartley foi promulgado pelo congresso dos EEUU em 1947 com o objetivo de conter a organiza-ção sindical, ela regulamenta e limita a organização e atividade sindical, o direito de greve e até pouco tempo a liberdade política e de afiliação partidária dos dirigentes sindicais.

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balho portuária (por exemplo, ampliando os poderes da Comissão Por-tuária). As elites econômicas e autoridades políticas, buscavam justificar o aumento dos limites impostos ao desafio dos estivadores, por controle do processo de trabalho do porto, definindo-o como uma ameaça ao bem-estar nacional.

O conflito nas docas não era um simples “conflito sindical”. Os empresários do setor de transporte marítimo representado pela Asso-ciação de Transportadoras Marítimas de Nova Iorque (New York Shi-pping Association – NYSA) foram cada vez mais ostensivos, e contaram com o apoio das autoridades políticas estaduais e federais para conter e influenciar o processo de reforma da zona portuária. A eficácia das restrições institucionais dependia, principalmente, da capacidade de empresários do transporte marítimo e das autoridades políticas federais e estaduais trabalharem cada vez mais em uníssono. Isto ocorria, não apenas como resultado das exigências da estrutura política, mas porque mecanismos como a Comissão Portuária (Bi-State Waterfront Com-mission) dependiam do apoio financeiro dos empresários para existir e funcionar.45

A articulação entre as autoridades políticas e as elites empresa-riais, foi consolidada pela sua necessidade mais imediata de implementar novas e mais modernas formas de transporte de cargas marítimas. Tanto para os empresários quanto para as autoridades políticas, o espectro de transporte de cargas automatizadas, embora incipiente, apresentava, no horizonte, a possibilidade de ampliação dos interesses comerciais dos EEUU e a drástica redução de custos trabalhistas e operacionais. Este curso de ação, aguçou a batalha pelo controle no porto, onde conver-giram os interesses dos estivadores e sua capacidade de influenciar a estrutura da divisão do trabalho no porto. As autoridades políticas bus-

45 A Comissão Portuária (Bi-State Waterfront Commision of New York and New Jersey) foi criado em 1953 como agencia reguladora dos portos com poder de regulamentar o trabalho no porto e investigar atividades considerados ilícitos.

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cavam, paulatinamente, ampliar os poderes da Comissão Portuária in-corporando outros setores da força de trabalho portuário sob sua juris-dição restritiva e intensificando seu domínio no processo de contratação no porto. Este processo, aumentou a capacidade das elites empresariais e das autoridades estaduais para responder e cercear a mobilização de estivadores com maior rapidez e precisão. Um maior poder político para elites, contudo, não teria sido possível sem o apoio legislativo e a aquies-cência de setores do sistema judiciário, que trabalhavam em consonância com as autoridades políticas estaduais e federais. Em alguns casos, suas ações chegaram a contornar procedimentos processuais preliminares a fim de garantir resultados favoráveis.

No passado, as autoridades usaram como subterfúgio uma cruza-da altamente moralista para expulsar os mafiosos do porto. Neste novo contexto porém, a existência de mafiosos na liderança da ILA parecia ser um problema menor tanto para as elites empresariais quanto para as autoridades políticas. A capacidade da liderança da ILA, ainda que temporária de reinventar sua imagem e alianças políticas realimentou a justificativa das autoridades para impor maior restrição aos estivadores e seu sindicato. As autoridades políticas argumentavam que a crescente mobilização de estivadores, apresentava um risco iminente ao bem-estar nacional, e era necessária para cercear as ações do “sindicato irresponsá-vel”. Apesar de suas alegações que as mobilizações portuárias represen-tavam uma ameaça iminente “à saúde e segurança da nação”, os níveis de produtividade no porto permaneceram estáveis enquanto a mão-de-o-bra, no porto, estava rapidamente diminuindo. Durante esse período, os limites do conflito definiam que reivindicações os estivadores podiam e não podiam fazer, como a luta da ILA por um contrato único para todos os portos ao longo da costa leste. O poder para legalmente restringir os estivadores rebelados, ia muito além daqueles permitidos pela Lei Taft-Hartley. Os empresários do transporte marítimo usaram, agressi-vamente, um arsenal recém-criado para obrigar os estivadores rebelados

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a concordar com os acordos “trabalhistas coletivos” com os quais, na verdade, não tinham concordado. Nesse sentido, o campo de jogo já de-sigual através do qual os estivadores e seus empregadores interagiam, fi-cou ainda mais distorcido, a favor das empresas de transporte marítimo.

Em 1956, a ILA concentrou suas atenções nas negociações do acordo coletivo de trabalho. Neste processo, grupos como o movimento de base Dockers News,46 pressionavam continuamente a ILA de baixo para cima, procurando radicalizar suas exigências por reforma por meio de mobilização localizada. A atividade da ILA era constantemente con-tida pela ação reguladora cada vez maior da Comissão Portuária e suas medidas cada vez mais severas. Somado a isso, estava o conflito interno entre as lideranças da ILA, por razões de interesse dos diferentes grupos que compunham a direção e visões político-estratégicas divergentes do processo de reforma da zona portuária. As negociações contratuais, al-tamente controversas e a iminente automação das docas, tornaram-se o pano de fundo no qual a luta pelo controle do processo de trabalho do porto, seria disputada. Este processo pôs as exigências econômicas dos estivadores de Nova Iorque em uma esfera política maior pelo controle do porto. A interação de diversas forças políticas concorrentes, lançou as bases para a transformação radical do processo de trabalho do porto pelos quatro anos seguintes.

Formalização da Força de Trabalho nas Docas

A crescente regulamentação dos estivadores destacava as condi-ções que definiam a luta pelo controle do processo de trabalho do porto, nos anos 1950. Esse processo reduziu severamente o número de estivado-res trabalhando no porto. Um dos efeitos favoráveis do processo regula-

46 Dockers News era um grupo de estivadores ativistas no Porto de Nova Iorque. O grupo teve seu início no final da década de 1940 por estivadores influenciados pelo Partido Comunista dos EEUU e continuou existindo até os meados da década de 1980.

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dor da mão-de-obra do porto é que finalmente se estabilizou e melhorou os horários de trabalho e os salários dos estivadores. No processo, entre-tanto, isso também transformou radicalmente os padrões de trabalho no cais. Nesse sentido, um aspecto significativo da luta para controlar a zona portuária reflete o conflito subjacente para controlar as características do próprio trabalho nas docas, que mudavam rapidamente.

Do ponto de vista político, o papel da Comissão Portuária era pernicioso porque buscava sistematicamente expulsar do porto líderes radicais e estivadores do movimento de base. A `Comissão´ cada vez mais se colocava entre as empresas de transporte marítimo e os esti-vadores, geralmente servindo de braço forte para impor as exigências dos empresários. O impacto do processo de formalização da Comissão, contudo, no que diz respeito aos salários e condições, produziu resulta-dos limitados, porém positivos para quem permaneceu nas docas. Para alcançar seus objetivos a Comissão Portuária impôs mecanismos regula-dores rigorosos aos trabalhadores portuários, enquanto consistentemen-te, buscava maior poder para aprimorar sua regulamentação e controle sobre a força de trabalho das docas. O processo de formalização do tra-balho, combinado com a exigência dos estivadores por um sistema de contratação que levasse em conta o tempo de serviço de cada estivador, era um grito distante dos dias em que milhares de trabalhadores se aglo-meravam diariamente nos píeres, buscando trabalho. Em pouco mais de 10 anos, o número de estivadores que trabalhavam no porto foi reduzido para menos de metade da mão-de-obra tradicional, eliminando a con-corrência brutal por trabalho nas docas.

No contrato anual de 1946-47, 54.442 estivadores estavam em-pregados no porto de Nova Iorque, trabalhando um total de 37.385.864 horas. Coletivamente, eles ganhavam U$ 71.983.930 — com um salário médio de U$ 1,93 por hora. Em contraste, no contrato anual de 1959-60, 23.475 estivadores trabalharam 31.968.147, 5 horas, com ganhos

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totais de U$ 106.966.894, aumentando, assim, o salário médio para U$ 3,35 por hora. A formalização da força de trabalho portuária aumentou a distribuição de horas de trabalho para os estivadores registrados. No contrato anual de 1951-52, 57% dos contratados trabalharam menos de 700 horas. Em 1960, o número de estivadores que trabalhavam menos de 700 horas caiu para 19,9%, enquanto os que trabalhavam mais de 700 horas aumentaram de 42,9% em 1951, para 78% da força de trabalho em 1960. O processo de formalização, no entanto, não aumentou auto-maticamente os salários de maneira suficiente para melhorar o padrão de vida para setores significativos da força de trabalho das docas.1

A formalização do trabalho portuário dependia, fundamental-mente, do processo de registro estabelecido pela Comissão Portuária. Este incluía a reexame contínuo dos registros de trabalho dos estiva-dores, a fim de regulamentar o fluxo de trabalhadores dentro do porto. O processo de registro dos estivadores era dividido em quatro grupos: permanentes, regulares, grupos de escotilhas e informais. Os estivadores eram definidos como empregados permanentes se um empregador es-pecífico os contratasse por um tempo determinado. Da mesma maneira, um empregado regular seria aquele que mantivesse trabalho regular com o mesmo empregador. Os empregados regulares, contudo, eram contra-tados com uma semana de antecedência. Além disso, sua situação tinha que ser revalidada, semanalmente, junto à Comissão Portuária.

Tais classificações dispensavam os estivadores de terem que com-parecer à Central de Contratação da Comissão todas as manhãs; porém, caso sua situação mudasse, teriam que se apresentar novamente. Em contraste, os grupos de escotilhas eram registrados juntos à Comissão por um período de até uma semana e tinham que se inscrever até as 4:00 da tarde do dia anterior ao início do trabalho. A designação para um grupo de escotilha, no entanto, não era garantia de trabalho, e, se um es-tivador não fosse designado para trabalhar em um dia específico, ele não

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era obrigado a se apresentar no Centro de Contratação. O quarto grupo, os informais, supriam a necessidade de trabalho nas docas quando a de-manda exigia mais trabalhadores. Eles deviam se apresentar diariamente nos Centros de Contratação da Comissão.2

O processo de formalização começou apenas nove meses depois em que o registro obrigatório dos trabalhadores das docas, entrou em vigor, ocasião em que as “rodadas de formalização” da Comissão foram postas em ação.3 Tal ação consistia em um reexame contínuo dos regis-tros de trabalho dos estivadores inscritos. De acordo com a regulamen-tação da Comissão, um estivador tinha que trabalhar, ou comparecer para trabalhar, pelo menos oito dias por mês, durante seis meses. Não fazer isso significava que a Comissão revogaria sua inscrição. Esse pro-cesso de reexame ocorria em intervalos de seis meses até 1965, quando o registro das docas foi fechado para novos candidatos. Além da constante filtragem da mão-de-obra portuária, uma maior redução foi conseguida por meio do declínio no número de empregados devido a mortes, aci-dentes, aposentadoria e mudanças de profissão, todas as que permitiam que a Comissão reduzisse o número de estivadores procurando emprego no porto. No ato de sua criação, em 1954, a Comissão Portuária tinha registrado 35.117 estivadores. Em 1960, contudo, o número de estiva-dores registrados junto à Comissão tinha caído 32%, para 24.128.4

As regras cada vez mais rigorosas da Comissão Portuária para quem procurava trabalho nas docas, era também um reexame moral e político, e não simplesmente uma avaliação da capacidade física do tra-balhador. A Comissão policiava as docas em busca de supostas “falhas de conduta” que podiam custar o sustento do estivador, com a suspensão do seu registro. Falhas de conduta incluía, além de atividade criminosa o ativismo político de esquerda. A Comissão recebia milhares de pedidos de inscrição por ano, mas se as inscrições fossem atrasadas para inves-tigação, havia pouca probabilidade de aprovação final. Por exemplo, em

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1959, a Comissão recebeu 4.301 pedidos de inscrição, dos quais 249 foram indeferidos à espera de investigação. Das 249 inscrições investi-gadas, apenas 46 foram concedidas. Mais frequentemente, o processo de investigação resultava na negação do registro para trabalhar nas docas.5

A audiência que finalmente decidia se o registro do estivador se-ria concedido ou negado era o mesmo que um julgamento, com acusa-ções proferidas, o direito à defesa, o comparecimento de testemunhas, a apresentação de provas e a transcrição estenográfica da audiência. Ainda mais perniciosa, a ação de investigação da Comissão também podia re-sultar em ações legais mais severas.6 Dessa maneira, perder o emprego no porto também podia resultar em prisão. O controle cada vez maior da Comissão, no entanto, não foi totalmente inconteste, embora pouco se conseguisse no sentido de restringir seu poder. Durante os 11 primeiros anos de existência, as decisões da Comissão Portuária foram contestadas na justiça em 142 ocasiões, em que todas as decisões foram mantidas.7

O processo de formalização e regulamentação do processo de trabalho do porto serviu como a base a partir da qual, a Comissão Portuária expandiu seu controle sobre a mão-de-obra, inicialmente re-definindo os critérios para determinar quem era considerado estivador. A Comissão considerava que estivadores, eram aqueles trabalhadores diretamente envolvidos no manuseio de cargas para dentro e para fora do porto. Isso isentava do processo de registro os profissionais auxi-liares do porto, como carpinteiros, varredores, trabalhadores de manu-tenção e marceneiros. Essas profissões envolviam cerca de 3 mil tra-balhadores no porto de Nova Iorque.8 A Comissão via essas profissões portuárias “não abrangidas” como brechas através das quais trabalha-dores, certos de que seus registros seriam negados, podiam continuar com seus empregos no porto. Ao fechar as brechas, contudo, foi posta em vigor uma ampla legislação que expandiu radicalmente os poderes da Comissão Portuária.

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Em julho de 1956, como resultado de uma iniciativa legislativa da Comissão, a definição de estivador foi expandida para incorporar aquelas profissões previamente isentas de registro nas docas, incluindo fiscais e secretários. Aprovada pelos governadores e poderes legislativos estaduais de Nova Iorque e Nova Jérsei em dezembro de 1956, a nova legislação não apenas redefinia quem devia se registrar junto à Comis-são, mas também expandia a estatura política e legal da Comissão. A nova legislação deu à Comissão Portuária o poder de conceder imunida-de a quem testemunhasse sob juramento, e os investigadores da Comis-são receberam poderes legais equivalentes aos agentes da lei, bem como poder de negar e suspender o registro de emprego dos estivadores que se recusassem a responder perguntas relacionadas à sua lealdade política.9

O mesmo processo ocorreu quatro anos depois quando a Comis-são tentou mais uma vez expandir seu controle sobre os estivadores. Em 1960, a Comissão agiu no sentido de incluir os chenangos (trabalhadores que transportavam as cargas dos navios por balsas) na definição de esti-vadores e exigiu que eles também se registrassem junto à Comissão. Em um relatório aos governadores e legisladores dos estados de Nova Iorque e Nova Jérsei, onde a inclusão dos chenangos na unidade de trabalho portuário foi proposta, a Comissão também recomendou leis que impu-sessem maior controle sobre o fundo de assistência e pensão da ILA.10

Apesar da forte oposição à medida por parte do sindicato recém-orga-nizado, o Conselho Portuário Marítimo da Grande Nova Iorque (que incluía a ILA), bem como um pequeno grupo do Partido Democrata entre os legisladores estaduais de Nova Iorque, o projeto foi transforma-do em lei. No começo de 1962, a Comissão Portuária manteve o contro-le jurídico e legal sobre todos os que trabalhavam em qualquer aspecto relacionado à carga marítima nos Portos de Nova Iorque e Nova Jérsei.

O processo de regulamentação e formalização da mão-de-obra portuária não teve impacto significativo sobre a tonelagem de cargas que passavam pelo porto de Nova Iorque entre 1950 e 1960. Em 1950,

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a carga total geral manuseada no porto de Nova Iorque foi 13.362 to-neladas longas, enquanto, em 1960, a tonelagem da mesma carga geral foi 13.736 toneladas longas11, embora o número de estivadores fosse um terço menor. A ILA e o movimento de base, contudo, continuaram a unir seus interesses econômicos em uma luta mais ampla para controlar o processo de trabalho no porto, sem o qual todas as exigências econô-micas pareciam infrutíferas. Enquanto a Comissão Portuária simboli-zava as pressões externas impostas aos estivadores de Nova Iorque e à ILA, as pressões de dentro da ILA e nas docas também eram fatores significativos que influenciaram a reforma portuária.

A Pressão Vinda de Baixo e de Dentro

Durante este processo tornou-se evidente que a liderança do sin-dicato portuário não era um grupo monolítico, mas um amálgama de líderes regionais, velhos e novos, com interesses políticos distintos. Du-rante a polêmica década de 1950, a liderança da ILA viu-se continua-mente forçada a aplacar os interesses locais de seus diferentes líderes, não apenas como uma medida para manter a unidade interna, mas também para afastar os desafios vindos de baixo. O grupo de base de esquerda, o Dockers News, continuamente, exigia reformas maiores e mais democrá-ticas do processo de trabalho do porto, que nem a NYSA nem a lide-rança da ILA pareciam interessadas em conceder. A liderança da ILA juntou elementos tão díspares quanto membros da ILA, reminiscentes da velha guarda como Tony Anastasia no Brooklyn e John Bowers das docas do lado oeste de Manhattan, com figuras aparentemente modera-das como o capitão Bradley, previamente presidente do sindicato local do barco-reboque da ILA, e o presidente do sindicato local Checkers da ILA, “Teddy” Gleason. Durante esse período, este último trabalhou de perto com o presidente da Costa Oeste do International Longshoremens

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and Warehouse Workers Union (ILWU)47, Harry Bridges, buscando, em muitas ocasiões, atrair ambos os sindicatos a uma ação comum.

Essa composição complexa ajudou a impedir desafios diretos à liderança da ILA. Ao atender os interesses dos líderes locais o sindicato se distanciava das práticas autoritárias do passado. Essa foi, contudo, a origem da disputa e conflito que limitaram o movimento por reforma do porto. Por exemplo a relação polêmica entre Gleason e Bradley e o vice-presidente da ILA, o “durão” Tony Anastasia, presidente do sindi-cato local 1814 do Brooklyn, que rapidamente se tornou objeto de es-crutínio público. A intervenção “forçada” de Anastasia nas negociações contratuais de 1956-57 levou o jornal local a apelidá-lo de “filho pro-blemático da ILA” quando rompeu com o Comitê de Salários e Escala e propôs negociar seu próprio contrato para o porto de Brooklyn.12 Suas ações aumentaram a tensão no processo de negociação, especialmente quando ele expressava dúvidas acerca da legitimidade do capitão Bra-dley como presidente da ILA.13 O conflito de Anastasia com Bradley e Gleason finalmente o levou a desafiar Bradley para a presidência. No início de sua campanha, ameaçou Bradley, tentando forçá-lo a se retirar da eleição. Ele alertou: “Se Bradley concorrer comigo e perder, ele vai voltar aos barcos-reboque como ajudante de convés. ”14 No final, sem vo-tos suficientes, foi Anastasia, e não Bradley, quem se retirou da eleição.

Até mais indicativa das relações cada vez mais complexas entre as lideranças sindicais portuárias era a questão da ILA se reintegrar à AFL-CIO.48 Esse conflito surgiu pouco antes do acordo de trabalho coletivo com a NYSA expirar em setembro de 1959. A liderança da ILA sofreu forte resistência interna para se unir novamente à federação tra-

47 O ILWU é o sindicato dos estivadores da costa oeste dos EEUU. Desde os meados da década de 1930 foi comandado pela esquerda. Durante muitos anos foi dirigido pelo Australiano Harry Bridges, e foi um sindicato que se aproximava da política do Partido Comunista dos EEUU.48 American Federation of Labor- Congresso of Industrial Organizations, neste período o único central sindical nos Estados Unidos. Durante anos as autoridades políticas junto com os empresários e setores do movimento sin-dical tentaram remover o direito a representação da ILA e pôr em seu lugar um sindicato mais `próximos´ a seus objetivos políticos. Uma parte deste processo foi a tentativa de isolar o ILA do movimento sindical, e levou o sin-dicato portuário a ser expulso da AFL-CIO sob alegação de que o sindicato estava sob o domínio de criminosos.

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balhista nacional. Muitos setores de dentro da ILA sentiam que renovar sua filiação à AFL-CIO permitiria uma maior intromissão nos assuntos internos do sindicato portuário. Embora a liderança da ILA tivesse sido vitoriosa na votação geral para voltar à AFL-CIO, o resultado final ficou longe de ser impressionante. A contagem final registrou 9.970 votos a favor e 7.719 votos contra a filiação à AFL-CIO. Um dos líderes rebe-lados era John Bowers, vice-presidente do sindicato local 824 no lado oeste de Manhattan (conhecido como “o sindicato local da pistolagem”), onde 1.520 membros votaram contra a entrada e apenas 145 a favor.15

No porto de Nova Jérsei, foi relatado que a votação em algumas dos sindicatos locais foram de 10 a 1 contra o retorno à AFL-CIO. Em certo momento, Bowers até sugeriu que os sindicatos dissidentes abando-nassem a ILA, embora nada mais surgisse de sua proposta.16 A dissidência interna de Anastasia e Bowers lembrava a liderança da ILA que sua estra-tégia também tinha que ser continuamente negociada internamente. Os conflitos internos entre os líderes da ILA, contudo, não estavam baseados inteiramente em interesses próprios. Até certo ponto, o conflito sindical interno entre os líderes da ILA também refletia as visões estratégicas e políticas do papel do sindicalismo na política. Dessa maneira, a diferença política entre os líderes da ILA também mantinha as tensões altas. Um dos conflitos mais persistentes ocorria em torno da relação e apoio da-das à ILA por estivadores radicais, pelo International Longshormen and Werehouse Workers Union, (ILWU) da Costa Oeste e pelo Partido Co-munista em sua batalha contra os desafios representacionais patrocinados pelo governo entre 1951 e 1954. A ascensão de Teddy Gleason à posição de organizador geral da ILA sinalizou uma aproximação um tanto tensa entre a ILA e o ILWU, embora o sindicato portuário da Costa Leste esti-vesse constantemente (e publicamente) tentando se distanciar do sindica-to de estivadores radicais da Costa Oeste. Por exemplo, durante a greve de 1956 na Costa Leste, o ILWU convocou uma greve de solidariedade de 24 horas em apoio aos estivadores grevistas da ILA. Bradley rapidamente

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buscou rejeitar apoio do ILWU e mandou um telegrama a Harry Bridges: “Nossa organização lamenta a sua interferência e a dos seus membros na nossa negociação. ” Teddy Gleason depois informou a imprensa, contudo, que a ILA tinha enviado um segundo telegrama ao ILWU agradecendo os estivadores pelo apoio.17

Em geral, a liderança da ILA mantinha uma posição politica-mente ambígua que aumentava a tensão nas relações entre os líderes dos sindicatos portuários e sua relação com os ativistas nas docas. Enquanto continuavam precisando do apoio da esquerda, eles relutavam tornar isso conhecido. Essa relação de ambiguidade com os estivadores esquerdistas era consistentemente testada pelo apoio do sindicato ao uso do jura-mento de lealdade política49 aos Estados Unidos e não filiação ao Parti-do Comunista dos portos e sua recusa esporádica de não trabalhar nos navios com destino à Europa oriental. O apoio anterior dos estivadores radicais à combalida ILA, não implicava na sua aprovação irrestrita às políticas do sindicato portuário. À medida em que a liderança da ILA parecia consolidar seu controle sobre o sindicato portuário, os estivado-res radicais pressionaram ainda mais fervorosamente por maiores refor-mas, buscando expandir os mecanismos de representação democrática no processo. Ao tentar redirecionar o foco do processo de negociação contratual para as exigências que surgiam dos píeres, os estivadores de esquerda concentravam seus esforços em pressionar a liderança da ILA para incluir às exigências por uma maior reforma democrática.

A esquerda via o movimento para reformar o sindicato como um fator intrínseco ao movimento para reformar o processo de trabalho nas docas. Aspectos significativos das propostas contratuais dos estivadores radicais foram posteriormente incorporados à propostas do Comitê de Salários e Escala da ILA. Nos primeiros meses de 1956, o Dockers News deixou claras as exigências dos estivadores radicais: “Centrais de Contra-

49 O juramento de lealdade fazia parte do corolário de obrigações impostos pela Lei Taft- Hartley mas também foi um meio em que muitos sindicatos demonstrava sua aquiescência a campanha macarthista promovido pelo governo federal para expulsar os comunistas do meio sindical.

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tação sob controle do sindicato, com um despachante eleito anualmente pelos trabalhadores [ao invés dos existentes Centros de Contratação da Comissão Portuária]; dez dias de férias remuneradas; pagamento de fé-rias (com um mínimo de 400 horas de trabalho para se habilitar); limite da carga de eslinga de 2.240 libras; um Código de Prática Justa de Em-prego (cláusula anti discriminação); e um aumento nos salários e con-tribuições ao Fundo de Assistência da ILA.” Como afirmava o Dockers News, “Podemos ganhar essas exigências contratuais e também aqueles problemas locais que todo mundo conhece... Como? Garantindo que todas os sindicatos locais tenham eleições democráticas ao Comitê de Salários e Escala! Compareça à sua reunião local! Vote nas eleições do Comitê de Salários e Escala! Um Comitê de Salários e Escala batalha-dor é nossa melhor garantia de um contrato melhor. ”18 Havia um espec-tro que assombrava as docas, entretanto, embora não fosse o espectro do comunismo; ao invés disso, era o espectro da automação e conteineriza-ção das cargas marítimas. Postas no contexto das negociações contra-tuais altamente controversas, a automação preparava o terreno para uma transformação importante no processo de trabalho do porto, e, ao fazer isso, mudaria a natureza das exigências feitas pelos estivadores e trans-formaria radicalmente o movimento pela reforma no porto.

A Automação Chega às Docas

Desde meados dos anos 1950, novas formas de manuseio de cargas estavam sendo postas em prática, como o uso de esteiras, a construção de navios com entradas laterais, a “carona nas costas” (içar o baú inteiro do caminhão para dentro do navio), e a carga em contêineres. Esta última forma de manuseio automatizado de cargas tornava-se cada vez mais a forma dominante de transporte de cargas marítimas. Embora a quan-tidade de carga em contêineres fosse mínima durante o final dos anos 1950, seu surgimento no porto sinalizou uma transformação radical do

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setor de transporte de cargas marítimas e impôs limites significativos no controle exercido pelos estivadores sobre o processo de trabalho do porto.

A tecnologia de carga em contêineres foi concebida no final dos anos 1930, pelo proprietário da empresa de caminhões de Hoboken, Malcolm McClean, que mais tarde se tornou presidente da Sea-Land Company, uma das maiores empresas de transporte marítimo dos EUA. A ideia original de McClean era içar os baús dos caminhões diretamente para dentro navios, economizando, assim, o tempo que os caminhonei-ros, geralmente, gastavam esperando que a carga fosse descarregada de seus caminhões. Sua ideia, contudo, ajudou a reforçar o objetivo básico dos proprietários de navios, qual fosse: para que o transporte marítimo de cargas fosse lucrativo, o navio devia se mover de um porto para outro o mais rápido possível. A introdução da tecnologia de contêineres tam-bém foi importante em virtude do impacto nas dimensões internacio-nais que essa transformação causou, não apenas para os que trabalhavam nas docas, mas também na estrutura do setor de transporte marítimo. A conteinerização obrigou o setor de transporte marítimo, antes vagamen-te articulado e competitivo, a fechar acordos, definindo a padronização de contêineres, a remodelação da construção de navios, o redesenho do porto e, em última instância, a redefinição das práticas do setor e uma redução em larga escala da força de trabalho portuária. A conteineri-zação reduziu radicalmente os custos com mão-de-obra no porto, bem como as despesas dos setores auxiliares. Por exemplo, a redução drástica da perda de cargas devido a quebras e furtos reduziu os prêmios de segu-ro significativamente, bem como o tamanho das tripulações dos navios.

A introdução inicialmente lenta da carga em contêineres ocor-reu, em grande parte, por causa da transformação radical que a nova tecnologia impôs nas empresas de transporte marítimo, nas estruturas dos portos e na construção naval exigidas para acomodar os contêineres. Originalmente, petroleiros foram usados para o transporte de contêi-neres, mas a demanda crescente acabou forçando a indústria de cons-

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trução naval a modificar as estruturas básicas dos navios de modo a acomodar, com segurança, quantidades cada vez maiores de contêineres. Como afirmou Edward J. Kavney, presidente da Metropolitan Stevedore Company: “Hoje com menos pessoas trabalhando no manuseio de muito mais carga, as docas não é mais um vilarejo como no passado.”19

Antes da conteinerização do porto, um grupo de trabalho de 20 estivadores podia movimentar 20 toneladas de carga em oito horas. Em 2008, estimava-se que 10 estivadores conseguissem movimentar 40 to-neladas de carga em questão de minutos, e os navios de contêineres levam, em média, 75 mil toneladas de carga. Até hoje, o setor de trans-porte marítimo continua a ser a forma de transporte de carga mais eco-nomicamente competitiva disponível, e alguns até ousam defini-la como uma “pedra fundamental da economia global. ” Entretanto, nas negocia-ções contratuais de 1956, nem os diversos grupos que compunham o movimento de base, nem a ILA perceberam completamente o impacto que a conteinerização teria. Apesar disso, o assunto da automação por-tuária rapidamente tomou a frente das reivindicações dos estivadores. Em 1961, os inovadores da nova tecnologia no setor, como a Sea-Land, ganharam mais de U$ 3 milhões em lucros. Como declarou o executivo do setor de transporte marítimo, Karney: “Tudo que fazemos é fazer o transporte marítimo de cargas mais rápido e mais barato, não sei onde isso vai acabar. ”20 Em 1956, nem os estivadores de Nova Iorque imagi-navam o que viria.

“Não voltaremos por um Mês! ”

No dia 1º de agosto de 1956, a ILA e a NYSA, iniciaram as negociações para o Acordo Coletivo de Trabalho que findava em 30 de setembro. As exigências apresentadas pelo sindicato dos estivadores incluiam um aumento salarial de 32 centavos por hora, 12 dias de folga

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remunerados, mais benefícios sociais, oito horas de salário garantidas quando contratados, adicional de salário por trabalho perigoso, indeni-zações por rescisão, um fundo de compensação de trabalhadores finan-ciado pelos empregadores, pagamento dobrado por trabalho em feriados e a expansão da unidade de negociação.23 O sindicato propôs um contra-to único para todos os estivadores nos portos das Costa Leste e do Gol-fo, abrangendo as docas desde Portland, Maine, até Brownsville, Texas. Na proposta do sindicato, um contrato que valesse para toda a costa estipularia os salário base, as férias e as pensões, deixando de lado as práticas portuárias e regras para acordos auxiliares. Apesar das extensas reivindicações econômicas propostas pelos estivadores, as negociações e a batalha subsequente, concentraram-se na exigência por um acordo de trabalho coletivo único para toda a costa, ofuscando todas as outras exigências feitas pelo Comitê de Salários e Escala da ILA.

No passado, os acordos de trabalho coletivos entre a ILA e a NYSA serviam como base para as negociações nos portos ao longo da Costa Leste e do Golfo. Ao contrário do ILWU na Costa Oeste, que tinha um contrato único com a Associação Marítima do Pacífico, os portos da Costa Leste negociavam contratos separados. A exigência por um contrato único era mais do que um simples expediente de negocia-ção; ela refletia a continuidade de um conflito litigioso e duradouro por controle das docas. A ILA argumentava que as empresas de transporte marítimo que operavam nos vários portos ao longo da Costa Leste e do Golfo eram as mesmas que compunham a NYSA, e, nesse senti-do, os outros portos seriam representados em suas negociações com os empresários do setor de transporte de Nova Iorque. Um acordo que valesse por toda a costa iria expandir a capacidade da ILA em influen-ciar o processo de trabalho do porto ao longo de toda a Costa Leste. Por ser o mais organizado e muito mais prontamente mobilizado em comparação com os portos do Sul e do Golfo, o porto de Nova Iorque permaneceria sendo o centro pelo qual a ILA poderia interceder em to-

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dos os portos do Atlântico e da Costa do Golfo. Portanto, um contrato principal permitiria que a ILA, por meio do processo de negociação no Porto de Nova Iorque (onde as condições eram mais favoráveis para o sindicato), exercesse influência em portos onde a mobilização e organi-zação sindical fossem limitadas. Além disso, um acordo que valesse para toda a costa protegeria a liderança da ILA contra futuras contestações aos seus direitos de representação. Ao expandir a unidade de negocia-ção para todos os portos nas Costas Leste e do Golfo, seria muito mais difícil para os grupos de oposição, pois eles teriam que incluir os estiva-dores dos portos na unidade da negociação.

No primeiro dia, as negociações foram aparentemente harmo-niosas; no segundo dia, contudo, as negociações entre a ILA e a NYSA foram rapidamente interrompidas quando o sindicato apresentou sua reivindicação por um contrato para toda a costa. A NYSA posicionou--se irredutivelmente contra qualquer forma de acordo de trabalho co-letivo para toda a costa, e se recusou a discutir o assunto. Os emprega-dores do setor de transporte marítimo argumentavam que só estavam autorizados a negociar pelos 170 membros da NYSA, constituídos ao redor do porto de Nova Iorque. Em resposta, o vice-presidente da ILA, “Packy” Connelly, argumentou: “Eles [a NYSA] têm empresas-mem-bro operando em todos os portos que queremos incluir. Acreditamos que eles podem falar pelos outros.”24 A exigência por um contrato único rapidamente colocou em segundo plano toda e qualquer outra reivindi-cação feita pela ILA, fosse ela econômica ou não, causando um impasse no processo de negociação. Enquanto a ILA insistia em representar os estivadores do Atlântico e do Golfo, os empresários exigiam que o sindicato dos estivadores apresentasse suas propostas exclusivamen-te para os estivadores do porto de Nova Iorque. Em uma tentativa de pressionar a NYSA, os membros do Comitê de Salários e Escala da ILA representando o Atlântico Sul e a Costa do Golfo, romperam as

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negociações com os empresários locais, afirmando que eles, também, exigiam um acordo para toda a costa.

O ILWU e Harry Bridges imediatamente saíram em apoio às exigências da ILA. No jornal do sindicato, The Dispatcher, o sindicato da Costa Oeste elogiou a posição da ILA, notando que a reivindicação por um acordo para toda a costa fortaleceria o poder de negociação dos estivadores da Costa Oeste. Bridges via o movimento por um contra-to principal para a Costa Leste como uma maneira de promover sua própria reivindicação, no sentido de se chegar a uma data de validade única, para os contratos com a ILA e o ILWU.25 A exigência por uma data base única era resultado do compromisso mútuo feito por ambos os sindicatos, durante as audiências do congresso organizadas pelo Co-mitê da Casa da Marinha Mercante e da Pesca (House Merchant Mari-ne and Fisheries Committee) liderada pelo congressista Herbert Bonner (Democrata da Carolina do Norte). O Comitê examinou a proposta de negociação nacional entre os comerciantes marítimos e sugeriu que tal negociação iria, de fato, contribuir para a estabilização do setor.

Na medida em que a data de validade do contrato se aproximava, a ILA buscou mobilizar seus membros para o prazo final iminente e reforçar a ideia que a batalha por um contrato unico valia a pena. Em uma reunião com os delegados da Costa Atlântica e do Golfo do Co-mitê de Salários e Escala da ILA, organizada em Washington, à qual os empresários se recusaram a comparecer, o capitão Bradley afirmou: “[Os empresários] não acharam adequado vir aqui e se reunir conosco, a responsabilidade do que acontecer no dia 1º de outubro é deles... voltem e avisem seus portos que vamos insistir em uma negociação que valha para toda a costa... Não queremos entrar em greve, mas vamos fazê-lo se for necessário. A responsabilidade é dos empresários. ” Reiterando os comentários de Bradley, Teddy Gleason, organizador geral da ILA, acrescentou: “Depois de hoje, os empresários saberão que não estamos brincando com a negociação para toda a costa.”26 Com menos de uma

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semana para o prazo final em 1º de outubro, a ILA fez uma proposta aos empresários do transporte marítimo, estipulando uma prorrogação de 30 dias do contrato atual com a garantia de que qualquer aumento de salário e benefícios seria retroativo a data original de 1º de outubro. A ILA exigia que o acordo fosse aceito pelos empresários do transporte marítimo em todos os portos para que tivesse validade.

No entanto, o vice-presidente da ILA, Tony Anastasia, prejudi-cou a demonstração de unidade na reunião da ILA em Washington. Sentindo que o movimento por um contrato único menosprezava seus interesses locais no processo de negociação da ILA, ele aconselhou os estivadores do Brooklyn depois da reunião a “desconsiderarem a propa-ganda do capitão Bradley e de Teddy Gleason”.28 A posição de Anas-tasia refletia um conflito entre a liderança do sindicato local 1814 no Brooklyn e a liderança nacional da ILA por influência no processo de negociação com os empresários. O poder de Anastasia não era irreal, já que aproximadamente 10 mil, dos 30 mil estivadores no porto de Nova Iorque, era membro do sindicato local no Brooklyn. O conflito entre o líder da ILA no Brooklyn e a liderança de Bradley e Gleason, iria se agravar ainda mais. Depois de abandonar abruptamente as negocia-ções contratuais em Nova Iorque em 22 de outubro, ele supostamente ameaçou Gleason: “Fique fora do Brooklyn ou você não vai voltar vivo”, depois do que ele telegrafou para a NYSA declarando que o Comitê de Salários e Escala da ILA “não vai negociar nenhum contrato para os homens do Brooklyn”.29 Enquanto a liderança da ILA buscava resolver o conflito com o sindicato local do Brooklyn, a NYSA agiu rapidamente em uma série de desafios legais que restringiram seriamente a capacida-de de negociação do sindicato.

Em meados de outubro, o capitão Bradley notificou os sindica-tos locais da ILA na costa leste que a exigência por uma negociação que contemplasse toda a costa era uma questão de greve e que, caso os empresários quisessem evitar uma paralisação, eles teriam que abordar a

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questão”.30 No dia seguinte, a ILWU informou os oficiais do governo fe-deral que, caso a ILA entrasse em greve, podia-se esperar ações similares na Costa Oeste. As circunstâncias estavam levando rapidamente a uma situação que tanto o governo federal quanto os empresários tinham ten-tado evitar por muito tempo: uma greve nacional nas docas. A NYSA agiu rapidamente para coagir a ILA a negociar segundo os seus termos e a limitar as exigências que o sindicato portuário pudesse fazer. Um aspecto central da sua estratégia era a sua capacidade de transformar a questão de um contrato e negociação para toda a costa, era algo não negociável. No dia 24 de outubro, a NYSA registrou uma queixa contra o ILA por práticas trabalhistas injustas na National Labor Relations Board (NLRB)50. Os empresários marítimos afirmavam que, ao exigir uma negociação para toda a costa, o sindicato estava se recusando a ne-gociar um contrato para os estivadores de Nova Iorque.31 Dessa maneira, se a NLRB decidisse a favor da alegação dos empresários, a ILA poderia mais uma vez ser impedida por um tribunal federal, tornando assim ilegal a exigência de um contrato único por parte da ILA.

À medida que o novo prazo final do contrato se aproximava, a ILA começou a ganhar o controle dos conflitos internos que desviavam seus esforços do processo de negociação contratual. A liderança nacional chegou a um acordo com Tony Anastasia, que retornou ao Comitê de Salários e Escala da ILA.32 No que diz respeito às exigências econômi-cas dos estivadores, a NYSA tinha apresentado à ILA uma proposta substancial de salário e benefícios, que incluía um aumento de 32 cen-tavos na hora de trabalho por um período de 3 anos, um aumento na contribuição de benefícios sociais de 9 para 12 centavos por hora por empregado, duas férias remuneradas, Dia do Trabalho e Natal (até en-tão, os estivadores não tinham férias remuneradas), e um aumento no

50 O NLRB é um órgão do governo federal responsável para regulamentar a legislação trabalhista nos EEUU e decidir sobre disputas na área do trabalho, seja negociações de acordos coletivos de trabalho, jurisdições e eleições sindicais.

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benefício de férias.33 Isso levou os mediadores federais a sugerirem a ampliação do prazo de validade do contrato na esperança de que ambos os lados pudessem chegar a um acordo final.

Embora ambos os lados concordassem em adiar a data base para 15 de novembro, os empresários se recusaram a considerar a reivindica-ção dos estivadores por negociações contratuais que valessem para toda a costa. Isso deixaria poucas alternativas para a ILA, pois, como tinha afirmado antes, a exigência por um contrato único era uma questão de greve, e, no dia 16 de novembro, aproximadamente 70 mil estivadores desde Portland, Maine, até Brownsville, Texas, deixaram seus postos de trabalho, paralisando todo o transporte marítimo de cargas na Costa Leste. Em uma declaração pública no começo da greve, Bradley decla-rou que a recusa irredutível dos empresários estava no cerne da paralisa-ção trabalhista e que “unidos e com a ajuda de Deus, nós venceremos”. Em uma demonstração de força em resposta ao aparecimento de pi-quetes da ILA no porto de Nova Iorque, o Departamento de Polícia de Nova Iorque destacou 3 mil policiais com a tarefa de patrulhar o porto. Os estivadores grevistas receberam o apoio do Sindicato Marítimo Na-cional (NMU), que, horas antes do prazo final de 15 de novembro, orde-nou que todas as tripulações de convés saíssem dos navios atingidos pela greve. De maneira parecida, os oficiais da ILA em Montreal anunciaram que os estivadores canadenses não trabalhariam nos navios desviados da Costa Leste. A ILA também recebeu apoio do de Harry Bridges, que aconselhou todas os sindicatos locais do ILWU a marcar “reuniões de paralisação de trabalho” para discutir a greve da ILA.34

A maior greve portuária na história da costa americana tinha co-meçado, paralisando todos os portos da Costa do Atlântico e do Golfo, e com a possibilidade crescente dos estivadores da Costa Oeste entrarem no conflito. Além de sua reivindicação por um contrato único, os estiva-dores grevistas exigiam oito horas de pagamento garantido quando con-tratados e um limite de peso para cargas de eslinga. Durante as negocia-

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ções, os empresários exigiram a redução no grupo de trabalho de 20 para 16 estivadores em cargas paletizadas, um pleito que foi prontamente rejeitado pelo Comitê de Salários e Escala do sindicato.35 As questões fundamentais da greve não eram as que envolviam reivindicações eco-nômicas, mas questões acerca do controle do processo de trabalho do porto. As tensões entre a NYSA e a ILA aumentaram rapidamente logo no início da paralisação, e a esperança de uma resolução rápida para o conflito foram imediatamente descartadas. O advogado da ILA, Louis Waldman, afirmou: “Neste momento, os empresários e o sindicato estão mais distantes do que nunca.”36 Isso levou a Junta Comercial de Nova Iorque a apelar imediatamente ao presidente Eisenhower para pôr em vigor as medidas emergências da lei Taft-Hartley, uma exigência refor-çada pela avaliação da Associação do Comércio e Indústria de Nova Iorque de que uma paralisação de trabalho prolongada poderia custar ao porto U$ 1 milhão por dia. Além disso, a Associação Ferroviária Americana preparava-se para embargar toda carga destinada aos portos de Nova Iorque.37 O capitão Hewlett Bishop, diretor da Administração Marítima na Costa do Atlântico, relatou que 196 navios estavam prestes a serem paralisados nos portos da Flórida até o Maine, além de cinco outros portos no Golfo, totalizando mais de 200 navios. Além do custo econômico da greve, o Secretário do Trabalho John Mitchell, argumen-tava que greve poderia aprofundar uma já crescente crise internacional no transporte marítimo, criada pelo bloqueio do Canal de Suez.38

Na Costa Oeste, os empresários do transporte tentaram limitar os efeitos do crescente movimento solidário do ILWU. Argumentando que as reuniões de paralisação de trabalho convocadas pelo sindicato eram, de fato, uma violação do acordo de não fazer greve do sindicato, os empresários da Costa Oeste romperam as negociações salariais. Os es-tivadores da Costa Oeste responderam aprovando uma greve de solida-riedade de 24 horas em apoio aos estivadores grevistas da Costa Leste.39

No dia 19 de novembro, o quarto dia da greve, os estivadores da Costa

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Oeste juntaram-se aos da Costa do Atlântico e do Golfo, paralisando assim todos os portos nos Estados Unidos. Embora fosse apenas por 24 horas, o maior temor dos empresários americanos tinha se concretizado: o trabalho em todos os portos dos EUA tinham sidos paralizados. O governo federal rapidamente alertou os estivadores grevistas em ambas as costas que as ações trabalhistas estavam criando “repercussões que se espalharam muito além do setor marítimo”. A paralisação trabalhista nacional de um dia, combinando as Costas Leste e Oeste, aumentou os prejuízos financeiros causados pela greve em aproximadamente U$ 20 milhões.40 No quinto dia de greve, os prejuízos totais acumulados foram estimados em mais de U$ 100 milhões.41

O sólido apoio dado aos estivadores da ILA por outros sindicatos no setor marítimo e a receptividade da greve pelos estivadores nos portos do Atlântico Sul e do Golfo, onde a organização da ILA era tradicio-nalmente mais fraca, pressionaram o governo federal a entrar em ação. O governo federal e os empresários do setor de transporte combinaram esforços para acabar com a greve e reconfigurar quaisquer discussões contratuais futuras. Respondendo a uma decisão da NLRB de que a rei-vindicação da ILA por um contrato único estava de fato se recusando a negociar pelos estivadores de Nova Iorque, o juiz federal Fredrick Van Pelt Bryan proibiu os estivadores de exigir um acordo para toda a costa em suas negociações com a NYSA.42 Embora essa decisão por si só não fosse acabar com a greve, isso permitiu que os empregadores limitas-sem e reformulassem os termos e condições do processo de negociações contratuais. Menos de 24 horas depois da decisão de Bryan, o presiden-te Eisenhower solicitou que as disposições de emergência da Lei Taf-t-Hartley fossem postas em vigor, afirmando que uma continuação da greve nas docas “colocaria em perigo a saúde e segurança nacionais”.43

O desejo do governo de pôr um fim à greve era evidente pela velocidade com que a liminar Taft-Hartley foi aprovada. Apenas dois dias depois do anúncio inicial de Eisenhower, as medidas de emergên-

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cia foram postas em vigor. O governo federal evitou os procedimentos definidos pela Lei Taft-Hartley ao pedir uma liminar em um tribunal federal sem primeiro realizar a audiência necessária para aprovar as me-didas. O juiz Bryan concedeu ao governo uma liminar temporária ime-diata de 10 dias durante a qual a audiência Taft-Hartley seria marcada e realizada.44 Dessa maneira, quando a audiência para decidir a validade das ações do governo fosse realizada, os estivadores grevistas já teriam sido forçados a voltar ao trabalho. Logo após as medidas do governo, a NYSA cancelou as negociações contratuais iminentes. O advogado da ILA, Louis Waldman alertou: “Na nossa opinião, os empresários têm feito exatamente isso nas últimas quatro semanas. Eles têm esperado usar a arma da liminar para ganhar o que a conciliação e negociação não podem fazer. Esse é um retrocesso de 30 anos... Se houver a mesma atitude intransigente, não haverá um contrato em 80 dias, porque deve haver a vontade de contratar.”45 Após nove dias de greve e sob a força de duas liminares federais, os estivadores da Costa Leste retornaram aos portos ao longo das costas do Atlântico e do Golfo. O custo total da greve foi estimado em U$ 180 milhões.46 Toneladas de bens perecíveis foram afetados, por exemplo aproximadamente um quarto dos 5 mil quilos de bananas que tinham ficado retidos nos porões dos navios em greve foram vendidos com prejuízo.47 Embora a liminar Taft-Hartley tenha impedido qualquer greve antes de 12 de fevereiro de 1957, os es-tivadores continuaram a pressionar por suas exigências e por um acordo de trabalho coletivo que valesse para toda a costa.

Logo que os estivadores voltaram às docas entulhadas de cargas, os empresários começaram a relatar que uma desaceleração no ritmo de trabalho estava se espalhando por todo o porto de Nova Iorque. Eles afirmavam que os estivadores estavam levando até quatro vezes mais tempo do que o normalmente necessário para realizar seu trabalho. As empresas de transporte marítimo declararam que o movimento tinha alcançado “sérias proporções” e que muitos trabalhadores estavam se re-

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cusando a comparecer ao trabalho diariamente. Um píer em Manhattan relatou que 100 caminhões tiveram que voltar sem serem descarregados para que os navios pudessem manter seu horário de zarpar, outro navio deixou 6 mil malas do correio para trás, para que pudesse navegar dentro do horário, e o Queen Mary relatou que deixou o porto com apenas 20 das 300 toneladas que devia carregar. Embora negasse qualquer “en-volvimento direto” no movimento, a ILA demonstrou apoio às ações. Teddy Gleason afirmou: “É natural que os homens lamentem a maneira como o sindicato tenha sido tratado. O que eles esperavam que esses caras fizessem? Beijassem? … Tudo o que a lei fez foi nos proibir de entrar em greve — a lei não nos disse quantas toneladas por hora os homens têm que dar aos empresários.”48 Os empresários responderam à operação tartaruga igualando a uma “greve parcial”. Em uma carta ao presidente da ILA, o capitão Bradley, o porta-voz da NYSA Alexander Chopin exigiu que a ILA “tomasse toda ação apropriada para evitar qualquer desrespeito à linguagem específica e ao espírito da liminar de emergência nacional.”49 Apesar de suas demandas, a desaceleração con-tinuou, forçando a NYSA a voltar aos tribunais federais e solicitar ao juiz Bryan que a palavra “desaceleração” fosse incluída na sua ordem liminar.50 Enquanto o movimento entrava em sua segunda semana, o capitão Bradley prometeu aos empresários que tentaria persuadir os ho-mens a manter as escalas de transporte, mas lembrou que, caso nenhum acordo fosse alcançado até 12 de fevereiro, o sindicato não pensaria duas vezes antes de entrar em greve novamente.

Disputas menores também perturbavam as operações do porto e, subsequentemente, o processo de negociação contratual. Por exemplo, surgiu um conflito entre os representantes locais da ILA e a John W. McGrath Shipping Company no píer 10, localizado na ponta inferior do Rio Hudson. Os operadores de empilhadeira recusaram-se a movi-mentar 28 sacas de batata, cada uma pesando 50 quilos, de uma só vez. Eles argumentavam que apenas 24 sacas podiam ser levantadas com

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segurança, ao que o supervisor da empresa respondeu que, se eles não fizessem conforme ordenado, podiam “pedir as contas”. Dentro de duas horas, todo o porto estava ocioso. A NYSA acusou a liderança da ILA de convocar uma greve no píer 10 e, em retaliação, cancelou todas as futuras negociações contratuais até que os estivadores tivessem retor-nado ao píer.52 As negociações contratuais só foram retomadas depois que ambos os lados concordaram em submeter o caso ao Comitê de Relações Trabalhistas.

Em 4 janeiro de 1957, as negociações entre a ILA e a NYSA foram retomadas, embora as discussões continuassem sendo feitas de maneira superficial por todo o mês seguinte. A votação iminente da oferta final da NYSA dividiu a ILA em algumas regiões. A liderança do sindicato dos estivadores defendia a rejeição da proposta dos em-presários. No entanto, nos portos do Atlântico Sul e do Golfo, onde a organização da ILA era mais fraca, as negociações contratuais contínuas levaram a um acordo entre as organizações locais da ILA e as empresas de transporte marítimo.53 Não foi surpresa quando, em 30 de dezembro, os estivadores de Nova Orleans chegaram a um acordo com as em-presas de transporte locais. O contrato incluía um aumento geral de salário e benefícios de 31 centavos por hora, dos quais 8 centavos seria direcionado aos salários, enquanto 23 centavos seriam aplicados em be-nefícios de assistência social, pensões e férias.54 Acordos similares foram subsequentemente firmados em todos os portos ao longo das costas do Atlântico Sul e do Golfo, enfraquecendo assim a reivindicação da ILA por uma negociação que valesse para toda a costa.

Os novos acordos coletivos de trabalho no Sul, contudo, não ti-veram o efeito que a NYSA esperava no processo de negociação. De acordo com Alexander Chopin, as discussões entre o sindicato e os em-presários “não garantiam nenhum otimismo”.55 O pessimismo de Cho-pin mostrou-se correto. À medida que se aproximava o prazo final da

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liminar Taft-Hartley, os estivadores restantes no Atlântico Norte rejei-taram de maneira esmagadora a oferta final da NYSA. A contagem final registrou 14.458 contra a oferta final dos empresários, e apenas 1.185 a favor.56 Estrategicamente, já que a ILA estava impedida legalmente de exigir um contrato para toda a costa, o sindicato concentrou-se em outras exigências que buscavam dar aos estivadores maior controle sobre o processo de trabalho do porto, como um limite de 1 tonelada para as cargas de eslinga, contratação pelo critério de tempo de serviço e, e a garantia de pagamento de oito horas de trabalho, nenhuma das quais estavam incluídas na oferta final dos empresários, nem estes estavam dispostos a aceitar. Apesar da intervenção dos mediadores federais no processo de negociação, o impasse continuou.

Um dia antes de findar a validade da liminar Taft-Hartley, o ad-vogado da ILA, Louis Waldman afirmou: “Eles [a NYSA] não apenas se recusaram a nos conceder as exigências a que os mediadores acharam que nossos membros tinham direito, eles se recusaram a abandonar suas próprias exigências a que os mediadores acharam que eles não tinham direito. ” Por sua vez, os empresários continuaram intransigentes, afir-mando que tinham chegado ao seu limite. Na véspera do prazo final, Alexander Chopin declarou: “Fizemos o que acreditamos ser um mo-vimento considerável em conceder ao sindicato várias coisas que eles queriam. Evidentemente, o sindicato crê que isso não foi o suficiente. ”57 O impasse, contudo, não era sobre as exigências econômicas, como os empresários queriam retratar. A luta acerca o controle do processo de trabalho continuava, e mesmo que os estivadores não pudessem tornar pública a sua exigência, a reivindicação por um contrato único prejudi-cou qualquer solução possível para o conflito. Logo que a liminar de 80 dias expirou, os estivadores dos portos do Atlântico Norte voltaram aos piquetes, como tinham feitos tantas vezes no passado. Desde Portland, Maine, até Hamptons Road, Virgínia, cerca de 45 mil estivadores aban-donaram os portos. No Chelsea (Manhattan), relatou-se que muitos

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estivadores anteciparam o prazo das 17:00 h, gritando aos supervisores: “Só voltaremos depois de um mês”, deixando 790 passageiros em um navio de luxo da American Export Line sozinhos para carregar a própria bagagem.58

Imediatamente, 150 navios de carga foram paralisados, e a As-sociação Ferroviária Americana renovou seu embargo a todos os trens de carga destinados aos portos paralizados.59 O duradouro e polêmico movimento de reforma no porto impôs prejuízos financeiros que fo-ram maiores do que o custo da carga perdida, porque as empresas de navios de passageiros tinham criado alternativas para navios impedidos de atracar em Nova Iorque. Por exemplo, alguns navios de passageiros foram desviados para Halifax (Canada), o que obrigou as empresas de transporte a fretar aviões para transportar os inspetores alfandegários americanos e oficiais da vigilância sanitária para o porto canadense para fiscalizar os passageiros que chegavam. Depois de chegar a Halifax, os passageiros foram transportados para Nova Iorque de trem.60 Quando a greve entrou em seu quarto dia, a Associação do Comércio e Indústria de Nova Iorque contabilizou novamente os prejuízos financeiros impos-tos pela paralisação. A Associação estimou que, “caso a greve continue por um período longo de tempo, podemos esperar que se desenvolvam os padrões familiares de prejuízo”.61 Essa declaração trazia implícita a preocupação de que a greve continuaria por um tempo longo.

A NYSA tinha poucas opções além de concordar com uma exi-gência por um acordo de trabalho único para os estivadores que tra-balhavam nos portos do Atlântico Norte. Apesar da discordância de última hora por parte de três importantes sindicatos locais da ILA em Manhattan durante a reunião do Comitê de Salários e Escala, depois de quase sete meses de negociação, duas greves, duas liminares federais e uma greve nacional de 24 horas que paralisou os portos dos EEUU em 18 de fevereiro, a NYSA e a ILA chegaram a um acordo.62 Os termos do novo acordo de trabalho coletivo entre a ILA e a NYSA estipulavam

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que eram baseados num contrato unico que incluía todos os portos da costa do Atlântico Norte, regulamentando salários, horários e contri-buições para pensões e assistência social. Entretanto, as condições de trabalho locais e a administração de benefícios de pensão e assistência social continuariam a ser negociados localmente. Além disso, os esti-vadores receberiam um aumento de 32 centavos por hora de trabalho, retroativo a 1º de outubro de 1956, feriados remunerados, uma semana adicional de férias remuneradas, um sistema de contratação baseado no critério de tempo de serviço, e desconto automático de contribuições sindicais de todos os membros da ILA trabalhando no porto.63

A greve, contudo, não acabou tão rapidamente como queria a NYSA. As empresas de transporte marítimo em Baltimore, Norfolk e Filadélfia resistiram ao contrato único e atrasaram o retorno ao traba-lho. Em reposta, os estivadores em todos os portos do Atlântico Norte recusaram-se a voltar ao trabalho até que todos os empregadores se tor-nassem signatários do acordo, argumentando que o retorno só ocorre-ria depois que todos os estivadores tivessem votado no acordo. Em um dado momento, a Associação de Navios a Vapor de Baltimore (Balti-more Steamship Association) abandonou as negociações com os represen-tantes locais da ILA, recusando-se a aceitar um contrato único, embora a associação incluísse filiais das empresas de transporte marítimo de Nova Iorque.64 Essa ação levou muitos a acreditar que a “rebelião” de última hora por parte desses empresários fosse, na verdade, um esforço desesperado por parte dos empresários de Nova Iorque para renegar o contrato único. Embora a greve tivesse terminado em 17 de fevereiro, a volta ao trabalho só ocorreu no dia 23, quase uma semana depois, quan-do todos os portos se tornaram signatários do acordo coletivo de traba-lho único. A vitória da greve revigorou o debilitado sindicato portuário tanta política quanto financeiramente.

Um contrato para todos os portos da costa do Atlântico Norte, ampliou as reivindicações de representação da liderança da ILA, ao mes-

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mo tempo em que dispositivos como o desconto automático das contri-buições sindicais ajudaram a reestruturar as finanças do sindicato. O lon-go e desgastante processo de negociações contratuais, contudo, também serviu para fundir momentos distintos do processo de reforma portuária. Ou seja, ao invés de três anos de paz trabalhista que um contrato nor-malmente conseguiria, por causa das longas negociações contratuais, em apenas pouco mais de dois anos o porto de Nova Iorque, mais uma vez, se tornou o palco dos estivadores rebelados e seu movimento.

Redefinindo o Valor do Trabalho

Pouco mais de um ano antes de expirar o acordo de trabalho cole-tivo de 1956, o uso cada vez maior de métodos automatizados de acon-dicionamento definiu as bases das próximas negociações contratuais e permaneceu no centro do conflito portuário nos anos seguintes. Em 18 de novembro de 1958, a ILA organizou uma enorme manifestação de “paralização de trabalho” no Madison Square Garden para discutir o processo de mecanização dos portos e a subsequente perda de empre-gos.65 Ao meio-dia, 17,5 mil estivadores desceram dos navios ao longo do porto e marcharam pelas ruas de Manhattan.66

Durante a passeata os jornais locais reportaram que os estivadores “vibraram quando o setor de transporte marítimo foi avisado de que teria que ‘compartilhar os benefícios’ da automação com quem perdesse o emprego”. Embora Tony Anastasia tivesse declarado, na reunião que, em última instância, os estivadores não podiam impedir a mecanização dos portos, a ação serviu para mobilizar e informar os estivadores acerca da ameaça trazida pela mecanização dos portos aos empregos nas docas. Lendo uma declaração de Teddy Gleason, o presidente do Conselho Distrital da ILA, Fred Fields, alertou que o impacto da automação já estava sendo sentido. Nos dois anos anteriores, os estivadores tinham

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perdido aproximadamente 4 milhões de horas de trabalho e as opera-ções com contêineres podiam manusear 12 toneladas de carga em qua-tro minutos, “15 vezes mais rápido que o acondicionamento normal”.67

A manifestação indicava o crescente conflito entre os empresários do setor de transporte e os estivadores acerca do processo de automação. Na semana seguinte, em uma reunião entre a ILA e a NYSA, os estivado-res apresentaram sua decisão aos empresários: eles não movimentariam qualquer forma de carga que não estivesse em uso antes da assinatura do contrato atual. Depois de dar o que alguns consideraram um ultimato, a ILA deixou a reunião quando os empresários ameaçaram tomar medi-das legais contra o que consideraram um boicote ilegal.68

O conflito refletia as estratégias concorrentes em relação à meca-nização dos portos. De um lado, a ILA buscava desacelerar a introdução da nova tecnologia, mesmo que apenas momentaneamente, de forma a obter mais informações sobre o seu subsequente impacto no setor das estivas e proporcionar maior mobilização dos trabalhadores. Em con-traste, a estratégia da NYSA, de acordo com Alexander Chopin, era introduzir as mudanças primeiro e discuti-las com o sindicato em uma data posterior.69 Em 1º de setembro de 1959, as negociações contratuais entre a ILA e a NYSA estavam, mais uma vez, agitadas. Depois de pou-co mais de dois anos desde a assinatura do contrato único para os portos do Atlântico Norte, a rápida transformação tecnológica do transporte de carga marítima e suas implicações na redefinição da própria natureza do processo de trabalho serviram como catalisador para renovar a revolta no porto de Nova Iorque. Para os estivadores, a crescente mecanização do transporte de cargas marítimas não apenas trazia questões acerca do valor intrínseco do trabalho nas docas, mas se refletia em seus salários. Isso também causou preocupação sobre a continuação e influencia no processo de trabalho do porto. Em 1959, a constante batalha por con-trole das docas surgiu novamente no porto, desta vez exacerbada pela natureza em rápida mudança do processo produtivo.

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Na abertura das discussões contratuais, a ILA exigiu uma redu-ção do dia de trabalho normal de oito para seis horas, sem redução nos salários. O efeito teria sido automaticamente aumentar o salário real de U$ 2,80 para U$ 3,73 por hora. A redução do horário de trabalho, contudo, também teria o sentido de garantir o emprego estável para um número significativo de trabalhadores portuários. Seus números vinham diminuindo com o passar dos anos, devido à introdução de práticas de contratação regulatórias e às mudanças incipientes de automatização no trabalho portuário, como a carga paletizada e as esteiras de transporte mecanizadas. Como a carga em contêineres também começou a ser uti-lizada com maior frequência no porto, o medo dos estivadores de uma redução drástica de trabalho não era exagerado.

Além do crescente medo da automação, o poder cada vez maior da Comissão Portuária e sua interferência na luta por controle do pro-cesso de trabalho nas docas exacerbou e complicou as negociações entre os empresários e a ILA. Na abertura das negociações contratuais entre o sindicato e a NYSA, em 1959, a Comissão Portuária enviou intimações a 60 membros da liderança da ILA, alegando que criminosos tinham “se infiltrado novamente” no sindicato portuário.70 Entregar as intimações naquele momento indicava, claramente, a intenção dos empresários de pressionar e enfraquecer o sindicato portuário nas negociações coleti-vas aumentando o espectro de atividade criminosa logo no início da mobilização do porto. Isso não quer dizer que não houvesse atividade criminosa na ILA, mas os criminosos não se infiltraram novamente na organização: é pouco provável que eles sequer tivessem sido removi-dos. O desejo das autoridades estaduais em regulamentar o processo de trabalho do porto era a motivação política atrás de suas tentativas de reabrir as negociações e nenhum interesse mais profundo em garantir um sindicalismo democrático nas docas. Até mesmo a AFL-CIO, que tinha por muito tempo condenado os altos níveis de atividade criminosa no sindicato portuário, condenou veementemente as ações da Comissão

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Portuária. Em uma resolução exigindo o fim da Comissão Portuária, a Comissão de Comércio Marítimo da AFL-CIO argumentava: “a Co-missão tem negado aos estivadores o direito à negociação livre e demo-crática, e privado a eles e a seus empregadores do poder de autoadmi-nistração em seus centros de contratação”.71 Respondendo às pressões, a liderança da ILA ameaçou romper as negociações com a NYSA caso a Comissão Portuária continuasse a entregar as intimações, levando a mesma a atrasar a investigação.

Com o prazo final de 30 de setembro se aproximando, a NYSA propôs aumentos salariais de 8, 3 e 4 centavos sobre a hora de trabalho, respectivamente, nos três anos seguintes entre 1959 e 1962.Os empre-sários estimavam que, com o número atual de horas-homem, o aumento salarial proposto elevaria os custos de transporte em U$ 14,5 milhões nos três anos seguintes. Em troca dos aumentos salariais, os empresários exigiram uma redução no tamanho dos grupos de trabalho em navios que usavam contêineres.72 As propostas da NYSA buscavam reduzir drasticamente e desregulamentar as práticas passadas e o emprego nas docas. Dada a própria natureza de suas propostas, fica evidente que eles estavam bem cientes das drásticas transformações em curso no processo de trabalho do porto com a crescente adoção da carga em contêineres.73

Nem é preciso dizer que as propostas dos empresários ficaram muito aquém das demandas feitas pelos estivadores. Por outro lado, a liderança da ILA exigia um aumento nos salários e benefícios que che-gava a aproximadamente U$ 1,40 por hora de trabalho para o período de contrato seguinte de 3 anos. 74. Todavia, o crescente impasse nas dis-cussões de salários e benefícios foi acentuado pela luta por controle das docas. A rápida automação do processo de trabalho do porto reordenou as prioridades e exigências dos estivadores. Quatro dias antes de findar o contrato, os estivadores no porto de Nova Iorque começaram a se recusar a retirar carga dos píeres durante o fim de semana. O sindicato dos estivadores defendia que esta era uma prática normal, embora, ao se

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fazer isso, a maior parte da carga que havia sido descarregada dos navios nos dias anteriores à greve acabava ficando no porto. Isso levou a NYSA a romper as negociações contratuais, declarando que a ação do sindicato era o mesmo que declarar greve antes do término do acordo coletivo de trabalho. Chopin afirmou: “Não faz sentido negociar um novo contrato quando eles são irresponsáveis a ponto de não cumprirem o antigo. ” A ILA argumentava que a entrega de carga no fim de semana nunca tinha sido parte da sua escala normal de trabalho. De acordo com Patrick “Packy” Connelly: “Nós oferecemos para fazer nosso trabalho normal e não trabalharmos na entrega de cargas no fim de semana, não temos feito isso na vigência do contrato. ”75

Apesar da crescente controvérsia, a NYSA fez uma oferta final. Os empresários propuseram um aumento salarial de 20 centavos no pri-meiro ano e 5 centavos nos dois anos seguintes na hora de trabalho dos estivadores. Mas os empresários condicionaram sua proposta: o aumen-to salarial só seria válido se a ILA permitisse “que nós determinemos certas regras de trabalho. ” Entre as regras exigidas estava a flexibilização do processo de trabalho; o “direito do empresário de operar sua operação da maneira julgada desejável”.76 De fato, a NYSA estava exigindo que os trabalhadores desistissem de qualquer reivindicação pelo controle do processo de trabalho do porto. Essa era uma necessidade fundamental se a NYSA quisesse implementar novas tecnologias que no final das con-tas, resultariam em uma redução drástica da força de trabalho no porto.

Ao propor normas flexíveis sobre o processo de trabalho do por-to, a NYSA buscava introduzir a mecanização do transporte de cargas marítimas sem assumir a responsabilidade pela perda de empregos que a nova tecnologia iria criar. Em 1959, a conteinerização ainda dava seus primeiros passos e estava sendo apenas lentamente implantadas. Nem a ILA nem os próprios estivadores demonstraram um entendimento completo de como o processo de mecanização do porto ocorreria tão ra-pidamente. Os empresários do transporte, contudo, sabiam muito bem

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o impacto que a automação teria no porto. Embora a NYSA pareces-se relutante em reconhecer o impacto crescente da conteinerização no setor das estivas, a verdade é que desde de muito cedo os empresários perceberam que o futuro do transporte marítimo de cargas estava ligado à crescente tecnologia de contêineres e seus planos para tal, tinham sido postos em ação havia muito tempo.

Em uma reunião realizada com 300 executivos do setor de trans-porte em Nova Iorque e autoridades do governo em janeiro de 1959 especificamente para discutir a mecanização dos portos, os líderes do setor referiram-se à carga em contêineres como uma “obrigação” caso eles quisessem ficar à frente dos cada vez mais altos custos de manuseio de cargas. Lewis A. Rapham, presidente da Grace Line, argumentou que 55% dos custos operacionais da empresa correspondiam ao manuseio de cargas. Respondendo às queixas dos ansiosos transportadores, Fran-cis Ebel, chefe-adjunto da Divisão de Projetos Navais da Administra-ção Marítima, informou aos presentes que o uso crescente de carga em contêineres implicaria modificar o projeto dos navios e construir navios maiores e mais mecanizados para “reduzir os custos de manuseio e fixar o tempo de retorno nos portos”.77

Conflito e Automação

No que já tinha se tornado rotineiro, em 1º de outubro de 1959, os estivadores desde o Maine até o Texas abandonaram os portos. En-tretanto, desta vez, a greve foi iniciada pelos estivadores de Nova Or-leans e se espalhou rapidamente ao longo de todo o litoral leste. Mais surpreendente foi o fato da ILA já ter assinado uma prorrogação de 15 dias do contrato em vigor apenas dois dias antes do fim de sua va-lidade, mesmo que tenha enfrentado resistência interna significativa para assinar o acordo. O sindicato local 791 declarou que não aceitaria

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a prorrogação do contrato e ameaçou convocar uma greve sem o aval do sindicato. Essa posição também foi apoiada pela esquerda do movimen-to de base.78 A rápida resolução com que os estivadores de Nova Iorque paralisaram o porto, apesar da ILA ter assinado uma prorrogação de 15 dias, também era reflexo da incapacidade dos principais líderes da ILA controlarem as facções concorrentes que dominavam píeres indivi-duais.79 Os empresários de transporte no Sul dos EEUU recusaram-se a aceitar a retroatividade dos salários e benefícios baseados em qualquer acordo futuro.

A ILA via as empresas de transporte marítimo do Sul como re-presentantes regionais das empresas sediadas em Nova Iorque e perce-beu que, ao recusar um acordo com a retroatividade nos portos do Sul, a NYSA tentava enfraquecer o processo de negociação do contrato único, que não incluía o Sul. A liderança do sindicato rapidamente assumiu a paralização em Nova Iorque, embora os sindicatos locais de Manhattan foram quem inicialmente convocaram a paralisação. O capitão Bradley entendia a estratégia dos transportadores: “Eles sabem que nossos ho-mens no Sul não trabalham com retroatividade, mas perceberam que, através da prorrogação no Distrito do Atlântico Norte, nós teríamos que trabalhar com navios desviados do Sul... Mas não faremos isso — não vamos colocar nossa organização em uma concorrência.”80 No total, aproximadamente 70 mil estivadores participaram da greve. As empre-sas rapidamente se mobilizaram. Tentaram minimizar os efeitos da gre-ve e forçar a intervenção das autoridades federais, do mesmo modo que tinham feito em greves passadas. A Associação Ferroviária Americana novamente embargou toda a carga com destino aos portos paralisados, enquanto a Junta Comercial de Nova Iorque pressionava o presidente Eisenhower a mais uma vez pôr em vigor as medidas emergenciais da lei Taft-Hartley. Em um telegrama enviado a Eisenhower, a associação comercial definiu a situação como uma “emergência nacional” e apelou para que ele “invocasse todas as leis e tomasse todas as ações que julgasse

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apropriadas para acabar com a greve e evitar prejuízos irreparáveis aos indivíduos e empresas e à cidade e ao porto de Nova Iorque”.81

A greve paralisou imediatamente 200 navios de passageiros e de carga — 87 dos quais estavam atracados no porto de Nova Iorque. Aproximadamente 3 mil passageiros em seis navios foram forçados a procurar suas bagagens em meio a 12 mil malas e atravessar os piquetes de estivadores grevistas.82 Os empresários estimavam que a greve estava impondo prejuízos de U$ 20 milhões por dia à economia americana — U$ 50 mil por dia em salários e benefícios perdidos, apenas no porto de Nova Iorque.83 A greve dos estivadores também teve impacto no setor da defesa. Os portos da costa leste manuseavam 81% das cargas americanas e mais de 75% do total de importações nacionais de manganês, cromo, cobalto, borracha e outras fontes primárias que ajudavam a manter a produção de material de guerra para as forças da OTAN na Europa.84

Outros sindicatos marítimos apoiaram a greve; particularmente expres-sivos em seu apoio aos estivadores foram o NMU (Sindicato Marítimo Nacional), o SIU (Sindicato Internacional dos Marinheiros) e a IBT (Irmandade Internacional dos Caminhoneiros), todos os que promete-ram “tomar todos os passos legais possíveis para apoiar os esforços dos estivadores para obter um contrato justo e imparcial”.85

Em retaliação à paralisação geral da ILA, a NYSA rompeu as negociações, afirmando que só iria reiniciar as conversas depois de 15 de outubro, a data em que se encerraria a prorrogação da data base. Os empresários argumentavam que a greve era ilegal. Mais uma vez, o governo federal agiu para invocar as medidas de emergência da lei Taft-Hartley,86 que tinham sido invocadas contra sindicatos 16 vezes em 12 anos, incluindo quatro greves de estivadores, o que fez da ILA o sindicato que tinha sido objeto da maioria das liminares Taft-Hartley. Menos de 24 horas após sua decisão, o presidente Eisenhower instruiu que o Procurador Geral William P. Rogers pedisse uma liminar para acabar com a greve.87 O relatório investigativo presidencial, mais uma

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vez argumentava que, caso continuasse, a greve dos estivadores das cos-tas Leste e do Golfo iria “por em risco a saúde e a segurança da nação”. O relatório indicava que uma paralisação prolongada nas costas Leste e do Golfo paralisaria a distribuição de produtos perecíveis e de comida para os principais centros urbanos.88 Na noite de 8 de outubro de 1959, o juiz federal Irving Kaufman ordenou que todos os estivadores ao lon-go do litoral leste interrompessem a greve e voltassem ao trabalho. A liminar adiou o prazo final do contrato para 27 de dezembro de 1959. Uma semana depois, Eisenhower invocaria as medidas Taft-Hartley mais uma vez, obrigando os trabalhadores a acabarem com uma greve que já durava uma semana na indústria do aço.

Os empresários estimavam prejuízos totais da greve em aproxi-madamente U$ 160 milhões.89 Apesar do conflito se estender ao longo da costa leste, o Porto de Nova Iorque continuava a ser o centro por meio do qual a maioria do comércio nacional e estrangeiro era proces-sado, tornando-o o porto mais lucrativo dos Estados Unidos. De acordo com um relatório publicado pelo Corpo de Engenheiros do Exército, em 1958, o porto de Nova Iorque lidava com 41.474.764 toneladas de comércio estrangeiro avaliadas em aproximadamente U$ 8,5 milhões. Além disso, durante o mesmo ano, o porto manuseou 104,1 milhões de toneladas de carga nacional. Era a maior tonelagem de carga manuseada no porto em todos os tempos.90

O principal entrave da greve não era simplesmente sobre os salá-rios mas, a exigência da NYSA em implementar a tecnologia de auto-mação “à vontade” e suas implicações na definição de quem controlava o processo de trabalho do porto. No começo da greve, quando a ILA e a NYSA voltaram à mesa de negociação, ambas chegaram rapidamente a um acordo quanto às questões econômicas, mas continuaram a dis-cutir a implementação da tecnologia. As questões acerca da automação continuaram a mobilizar tanto os estivadores quanto os empresários. No acordo proposto, os estivadores receberiam um aumento geral nos

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salários e benefícios de centavos por hora, adequadamente divididos: 22 centavos para os salários; 7 centavos para pensões; 4 centavos para con-tribuições sociais; 3 centavos para as clínicas médicas da ILA/NYSA; e 5 centavos para férias e feriados remunerados.91 As preocupações dos estivadores acerca da automação foram apenas parcialmente atendidas quando a NYSA propôs compensar a redução do tamanho do grupo de trabalho, apenas para os estivadores que trabalhavam com carga em contêineres. Para compensar a perda de emprego devido à introdução da mecanização, os empresários ofereceram um pacote de indenizações por demissão. Dada a natureza informal do emprego no porto, essa proposta foi rapidamente rejeitada pela ILA.92 O sindicato argumentou que não apenas a automação reduzia a mão-de-obra portuária, mas poderia tam-bém reduzir o número de horas trabalhadas para quem permanecesse.93

A ILA propôs que os empresários contribuíssem com um fundo baseado na tonelagem da carga em contêineres manuseada pelos estiva-dores. Os empresarios, enfim, desistiram da sua proposta de pagamen-to de indenizações por demissão em favor do esquema de royalties dos contêineres, mas a quantia a ser paga continuou indefinida. A NYSA ofereceu 25 centavos por tonelada de carga conteinerizada, enquanto o sindicato exigia 75 centavos. A fórmula para calcular o bônus por ma-nusear carga conteinerizada foi submetida a arbitragem obrigatória, e posteriormente os estivadores ganharam a causa. Chamado de Fundo de Bônus por Contêiner, a NYSA concordou em pagar um bônus que era calculado pela quantia de carga em contêineres que fosse manuseada. este fundo era depositado em uma conta que seria posteriormente distribuído aos estivadores.94

A decisão da junta de arbitragem das docas, no entanto, refletia a constante incerteza criada pela introdução desigual da tecnologia de contêineres no setor de transportes e a incapacidade de se prever a veloci-dade com que ela se tornaria a forma dominante de transporte de cargas marítimas. O padrão para se definir o pagamento do royalty dos contêi-

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neres era composto em três classificações: 35 centavos por tonelada para contêineres descarregados de navios de carga tradicionais, 70 centavos por tonelada para cargas descarregadas em navios parcialmente automa-tizados, e U$ 1,00 por trabalho feito em navios completamente contei-nerizados.95 Mesmo assim, o fundo estabeleceu o precedente para incluir a exigência dos estivadores: de que as empresas de transporte marítimo deviam assumir o ônus pela perda de empregos devido à automação.

Em dezembro de 1959, com o Porto de Nova Iorque atingindo ganhos recordes, no comércio internacional, foi fácil ver por que as exi-gências econômicas dos estivadores eram rapidamente resolvidas, e por que as que envolviam a questão da automação persistiam. De acordo com relatórios publicados pela Capitania dos Portos de Nova Iorque e Nova Jérsei, as docas de Nova Iorque movimentaram 4.261.972 tonela-das de carga a mais do que em 1958. Comparado com o mesmo período do ano anterior, o volume de carga a granel e geral movimentadas no porto de Nova Iorque tinha aumentado 23,5%. Alguns dos principais produtos que passaram pelo porto eram veículos, enxofre, bebidas al-coólicas, bananas, café, cacau, madeira e borracha.96 No dia 10 de de-zembro de 1959, os estivadores do Maine até Virgínia aprovaram de maneira esmagadora o acordo proposto. Em Nova Iorque, quatro de cada cinco estivadores votaram a favor do novo contrato principal para os portos do Atlântico Norte. Nos portos do Sul e do Golfo, os empre-sários resistiram, mas, com a ameaça de uma nova paralisação no dia 27 de dezembro, no Natal, primeiro os empresários do Golfo e, depois, os do Sul concordaram com termos similares aos assinados no contrato principal no Atlântico Norte.

No fim do ano, o capitão Bradley da ILA e Alexander Chopin da NYSA, ficaram lado a lado, com pás banhadas a ouro nas mãos, em uma cerimônia para inaugurar uma nova clínica médica da ILA em Manhat-tan.97 Apesar das aparências, não foi uma volta aos “negócios como sem-pre” nas docas altamente conflituosas de Nova Iorque. Se, originalmente,

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os empresários do transporte tinham imaginado que, resolvendo a ques-tão da representação no contrato único e a automação, a paz industrial iria reinar no porto, eles estavam muito enganados. A automação portuá-ria em rápida expansão iria reacender cada vez mais a luta pelo controle do processo de trabalho nos seus termos mais básicos. Ao mesmo tempo a luta dos estivadores por controle do processo produtivo no porto con-tinuaria a alimentar o ativismo do movimento de base nas docas.

Notas

1. NYSA Research Department. New York Longshore Data Book, June 6, 1962. P. 14. Tambem ver Vernon H. Jensen, in Hiring of Dockworkers and Employment Practi-ces in the Ports of New York, Liverpool, London, Rotterdam, and Marseilles. Harvard University Press, 1964. Ele argumenta, que ao examinar os dados estatísticos de salários e horários dos estivadores, deve-se considerar horas-extras, que correspon-dem a 25-30% de todo o trabalho do porto. Portanto, 1.500 horas de trabalho po-deriam, na realidade, ser iguais a 1.750 horas de tempo de emprego contínuo. Neste sentido, em 1960, “20% de todos os estivadores (4.373) ainda trabalhavam menos de 700 horas por ano, o nível de emprego exigido para se estabelecer a elegibilidade para os benefícios de férias, pensão e de assistência social. Outros 15% (3.470) trabalhavam entre 700 e 1.200 horas. Pode-se argumentar, portanto, que entre um quarto e um terço dos estivadores recebiam rendimentos insuficientes.... Os ho-mens que recebiam menos de 1.200 horas de trabalho duro de experiência. ” P.89.

2. Jensen, Vernon, H. Hiring of Dockworkers and Employment Practices in the Ports of New York, Liverpool, London, Rotterdam, and Marseilles. Harvard University Press, 1964, PP.58-59.

3. Axelrod, Donald. “Government Covers the Waterfront: An Administrative Study of the Background, Origin, Development and Effectiveness of the Bi-State Waterfront Commission 1953-1966. Tese de doutorado (DPA) em Ciência Política, Syracuse University, 1967. P. 253.

4. US Department of Labor, The Impact of Longshore Strikes on the National Economy, Washington D.C. 1970. P.44. Veja também: Annual Report of the Bi-State Wa-terfront Commission, 1959, e Axelrod, “Government Covers the Waterfront”, P. 235.

5. Axelrod escreveu: “Em muitos casos, as provas também são passadas ao Promotor Distrital local para o início do processo criminal. ” in Axelrod, “Government Co-vers the Waterfront”, PP. 236-37.

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6. Ibid. Axelrod, P. 236.

7. Ibid. Axelrod, P. 236.

8. Ibid. Axelrod. PP. 241-42.

9. Ibid. Axelrod. P. 243.

10. Op.Cit. New York Longshore Data Book, P. 6.

11. New York Times, 20 de setembro de 1956.

12. Jensen, Vernon, H. Strife on the Waterfront. The Porto of New York Since 1945. P.231. Ele argumentou: “A presença de Anastasia foi sentida em outra questão, embo-ra não fosse somente de sua parte. Os principais líderes da ILA nunca tinham realmente concordado com a sucessão de Ryan pelo Capitão Bradley. Ele tentou bastante, mas na situação de relativa anarquia interna, com “Impérios” localmente controlados, sua falta de perspicácia ou autoridade na liderança era acentuada.

13. Ibid. Jensen, Strife on the Waterfront. P. 232.

14. New York Times, 25 de setembro de 1959.

15. New York Times, 25 de setembro de 1959.

16. New York Times, 20 de novembro de 1956.

17. New York Times, 20 de novembro de 1956.

18. Dockers News, abril de 1956.

19. The Great Ships: The Freighter, A&E Television Network (1996).

20. The Great Ships: The Freighter, A&E Television Network (1996).

21. New York Times, 2 de agosto de 1956.

22. New York Times, 2 de agosto de 1956.

23. New York Times, 3 de agosto de 1956.

24. New York Times, 3 de agosto de 1956.

25. The Dispatcher, jornal da ILWU, edição extra, 25 de maio de 1956. Veja também: New York Times, 27 de agosto de 1956. Bridges, contudo, também tinha interesses específicos nas negociações contratuais da ILA. As negociações contratuais recen-temente concluídas na Costa Oeste tinham proporcionado apenas um aumento de 2 centavos na hora de trabalho, com a compreensão de que, caso o contrato da ILA proporcionasse um aumento superior a 2 centavos, ele seria automaticamente repassado aos estivadores da Costa Oeste.

26. New York Times, 31 de agosto de 1956.

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27. New York Times, 26 de setembro de 1956.

28. New York Times, 20 de setembro de 1956.

29. New York Times, 23 de outubro de 1956.

30. New York Times, 23 de outubro de 1956.

31. New York Times, 25 de outubro de 1956.

32. New York Times, 26 de outubro de 1956.

33. New York Times, 8 de novembro de 1956.

34. New York Times, 16 de novembro de 1956.

35. New York Times, 16 de novembro de 1956.

36. New York Times, 18 de novembro de 1956.

37. New York Times, 17 de novembro de 1956.

38. New York Times, 21 de novembro de 1956.

39. New York Times, 18 de novembro de 1956.

40. New York Times, 20 de novembro de 1956.

41. New York Times, 21 de novembro de 1956.

42. New York Times, 22 de novembro de 1956.

43. New York Times, 23 de novembro de 1956.

44. New York Times, 25 de novembro de 1956.

45. New York Times, 24 de novembro de 1956.

46. New York Times, 25 de novembro de 1956.

47. New York Times, 27 de novembro de 1956.

48. New York Times, 30 de novembro de 1956.

49. New York Times, 30 de novembro de 1956.

50. New York Times, 1 de dezembro de 1956.

51. New York Times, 3 de dezembro de 1956.

52. New York Times, 28 de dezembro de 1956.

53. New York Times, 23 de janeiro de 1957.

54. New York Times, 31 de janeiro de 1957.

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55. New York Times, 31 de janeiro de 1957.

56. New York Times, 8 de fevereiro de 1957.

57. New York Times, 11 de fevereiro de 1957.

58. New York Times, 13 de fevereiro de 1957.

59. New York Times, 13 de fevereiro de 1957.

60. New York Times, 14 de fevereiro de 1957.

61. New York Times, 16 de fevereiro de 1957.

62. New York Times, 16 de fevereiro de 1957.

63. New York Times, 18 de fevereiro de 1957.

64. New York Times, 19 de fevereiro de 1957.

65. New York Times, 19 de novembro de 1958.

66. New York Times, 19 de novembro de 1958.

67. New York Times, 19 de novembro de 1958.

68. New York Times, 27 de novembro de 1958.

69. New York Times, 8 de outubro de 1959.

70. New York Times, 4 de setembro de 1959.

71. New York Times, 17 de setembro de 1959.

72. New York Times, 19 de setembro de 1959.

73. Op. Cit. Jensen, Strife on the Waterfront, P. 237. Ele escreveu: “Eles querem um acordo de três anos, flexibilidade no uso do trabalho — tanto em número quanto em tarefas, e na troca de grupos de trabalho de um navio para o outro, e de homens dentro dos grupos entre o convés e as docas — um horário de almoço flexível, redução do absenteísmo, direito de cancelamento em caso de não chegada de um navio, remoção de práticas alfandegárias restritivas, revisão dos fundos de pensão e assistência social. ”

74. New York Times, 24 de setembro de 1959.

75. New York Times, 26 de setembro de 1959; Veja também Jensen, Strife on the Wa-terfront, 243.

76. New York Times, 29 de setembro de 1959.

77. New York Times, 21 de janeiro de 1959.

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78. Op. Cit. Jensen, Strife on the Waterfront. P. 244. Ele observou que “O Dockers News também estava incitando os estivadores. ”

79. Ibid, Jensen, Strife on the Waterfront, P. 245. Ele escreveu: “O problema básico era que não havia ninguém na ILA que pudesse controlar as várias facções. Também era óbvio que a AFL-CIO não poderia intervir efetivamente, pois os que se opo-nham à reentrada na AFL-CIO eram aqueles que estavam furiosos se rebelando em Nova Iorque. ”.

80. Ibid. Jensen, Strife on the Waterfront, P. 246.

81. Ibid. Jensen, Strife on the Waterfront, P. 246.

82. New York Times, 3 de outubro de 1959.

83. New York Times, 4 de outubro de 1959.

84. New York Times, 9 de outubro de 1959.

85. New York Times, 4 de outubro de 1959.

86. New York Times, 7 de outubro de 1959.

87. New York Times, 8 de outubro de 1959.

88. New York Times, 8 de outubro de 1959.

89. New York Times, 11 de outubro de 1959.

90. New York Times, 9 de novembro de 1959.

91. New York Times, 2 de dezembro de 1959.

92. Op.Cit. Jensen, Strife on the Waterfront, P.248. Ele observou: “A ILA argumentou corretamente: ‘É quase impossível identificar quem está deslocado... o homem não perde seu emprego, a automação reduz os horários. ’ Além disso, as indenizações por demissão sem justa causa e um registro fechado reduziriam o número de mem-bros locais; isso alguns líderes da ILA não queriam. ”

93. Ibid. Jensen, Strife on the Waterfront, P. 251.

94. Ibid. Jensen, Strife on the Waterfront, P. 252.

95. Ibid. Jensen, Strife on the Waterfront, P. 253.

96. New York Times, 10 de dezembro de 1959.

97. New York Times, 18 de dezembro de 1959.

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A BEIRA DO CAIS: TRABALHO E COTIDIANIDADE ENTRE OS PORTUÁRIOS DE

RIO GRANDE-RS E LISBOA-PT.

Edgar Ávila Gandra51

Elvis Silveira Simões52

O presente trabalho insere-se em uma pesquisa de maior abran-gência que busca analisar a participação/militância dos trabalhadores portuários da cidade de Rio Grande (Brasil) e da cidade de Lisboa (Por-tugal) inspirada em uma perspectiva comparativa. O recorte temporal diz respeito à década de 1960, momento em que ambos os países estão sob o controle de um estado autoritário, a ditadura civil-militar no Bra-sil (de 1964 a 1985) e o Estado Novo em Portugal (1933 a 1974). Neste artigo, como ficará evidente ao longo de sua exposição, abordaremos com maior ênfase o cenário do Porto de Rio Grande-RS53, visto que, ainda estão sendo sistematizadas as fontes do Porto de Lisboa-PT54. Em referência aos trabalhadores portuários portugueses, as fontes são vinculadas ao Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e

51 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e pesquisador do CITCEM da Universidade do Porto-PT52 Mestrando em História pela Universidade Federal de Pelotas-RS (UFPEL).53 As entrevistas referentes ao porto de Rio Grande-RS estão vinculadas à dissertação de mestrado O cais da Resistencia: A Trajetória do Sindicato dos Trabalhadores nos Serviços Portuários de Rio Grande-RS. Defendida por Edgar Ávila Gandra em 1998. E as fontes relacionadas a sindicato dos trabalhadores arrumadores de Rio Grande-RS estão vinculadas ao projeto de pesquisa, em andamento, desenvolvido no Programa de Pós Gra-duação em História da Universidade Federal de Pelotas, sobre a trajetória de fundação dos mesmo, por Elvis Silveira Simões.54 Estas foram coletadas durante o Estágio Sênior (CAPES) no exterior de Edgar Ávila Gandra, junto a Uni-versidade do Porto-PT, entre 2014-2015

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Conferentes Marítimos, com abrangência de todo centro sul de Por-tugal. No contexto riograndino, os dados coletados estão diretamente relacionados aos sindicatos dos Portuários e Arrumadores.

Pretende-se uma aproximação com a experiência dos trabalhado-res portuários e de suas lideranças em ambos os contextos. A abordagem proposta privilegia a descrição e a análise da memória reavivada dos ato-res à luz do debate historiográfico. Neste artigo, como já citado, vamos nos ater à experiência dos trabalhadores portuários, que desempenham semelhantes funções, em diferentes continentes e que têm como carac-terística agregadora o fato de possuírem o mesmo idioma e raízes cultu-rais comum em uma perspectiva de longa duração, marcada, entre outras coisas, pela colonização portuguesa e seu contato no comércio exterior. Essa experiência emergiu através da memória reavivada dos trabalha-dores portuários portugueses e riograndinos. De acordo com Candau memória e história não são sinônimos, mas se colocam em contínuo confronto pelas suas representações do passado. A negociação coleti-va da memória em relação ao que se deve perpetuar e ao que se deve esquecer, se dá, conforme explica o autor, através dos quadros sociais da memória. Assim, os sujeitos que vivenciaram as mesmas situações históricas e compartilharam o mesmo espaço social tendem a ter relatos parecidos sobre o passado, estabelecendo o que se considera pertinente de ser lembrado (CANDAU: 2002, p. 56-86).

É digno de nota o aspecto que esta pesquisa, conforme já cita-do, foi construída a partir das fontes orais, aspecto que, dependendo da qualidade das entrevistas, pode representar o acesso a um material rico o suficiente para uma aproximação da experiência dos atores com vistas a fornecer uma descrição do modo de vida, das percepções, ações polí-ticas e identidades dos trabalhadores. A importância atribuída a Histó-ria Oral decorre das características da investigação proposta, já que as fontes escritas não são fartas, e a historiografia sobre a temática é pouco profícua.

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Um dos recursos possíveis para preencher as numerosas lacunas é o processo de converter em fonte escrita, através das entrevistas, as memórias de alguns trabalhadores portuários de Rio Grande-RS e de Lisboa-PT. Contudo, mais importante que suprir lacunas documentais é o fato de que a metodologia da história oral permite escrever uma his-tória mais próxima da leitura dos próprios atores e, nesse sentido, dando protagonismo/credibilidade aos atores sociais. Importante também sa-lientar, que não pretendemos entrar na questão que aborda a discussão de credibilidade ou não da fonte oral enquanto documentação histórica, pois, como fonte não induz a mais erros que as demais fontes utilizadas pelo historiador. Dessa forma, no nosso entender, o documento oral é portador de subjetividade tanto quanto o escrito. É neste limite que se dá o trabalho do historiador. Dar voz as pessoas silenciadas por estru-turas de dominação reconstruindo a memória dos esquecidos faz parte da vocação da História Oral que se manifesta no seu procedimento me-todológico.

Nesse sentido, conversas e entrevistas realizadas com trabalhado-res e sindicalistas ensejaram um processo de reavivamento da memória dos atores fornecendo as informações e representações para análise do cotidiano e da ação política destes coletivos com destaque para as mani-festações de resistência. Outrossim, na pesquisa foi utilizada a entrevista temática semiestruturada de final aberto, que caracteriza-se pelo dire-cionamento a um tema especifico e, por outro lado, também abre pos-sibilidades para que o entrevistado seja espontâneo e apresente temas e questões próprias.

O foco desta pesquisa insere-se naquilo que os historiadores vêm nomeando de História Imediata ou História do Tempo Presente, uma vez que utilizamos o depoimento e a memória dos homens que viveram suas experiências num tempo ainda vivido em suas memórias. Através dos depoimentos desses “arquivos vivos” localizados no contemporâneo

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do processo histórico, haverá reconstrução, em parte, de suas vidas diá-rias. Então, é no conjunto de fontes produzidas através da análise da me-mória reavivada dos trabalhadores, é que encontramos o relato de suas posições frente aos aspectos de trabalho, vida e sobre suas lutas mesmo que internas, revelando-se então o caráter e a importância das mesmas para reconstrução, mesmo que parcial, de seus anseios e objetivos.

Além das questões pertinentes ao mundo do trabalho, buscamos refletir ainda sobre aspectos que envolvam questões identitárias vincu-ladas ao universo portuário como masculinidade, lazer e moradia, ense-jando ampliar os aspectos circunscritos ao conceito de trabalho. Desta forma, esta pesquisa se insere em um universo de estudos que visam compreender as atividades destes sujeitos sob o prisma social e cultural. Perspectiva está que por intermédio das fontes, como as orais, se:

[...] descobriu e redescobriu outros atores que por muito tempo ficaram à margem da narrativa mestra da história social: não apenas as mulheres (desco-brindo, por exemplo, que a “classe operária tem dois sexos”), mas também os escravos e trabalhadores livres pobres na cidade e no campo, os marginali-zados, o mundo do trabalho “informal” e precário, o mundo colonial e pós-colonial, em suas dimensões sociais e culturais. (LIMA, 2011. p. 14)

Esses fazem parte do aspecto central desse nosso trabalho, uma vez que nossas discussões são permeadas pela questão da sazonalidade dos trabalhos e sua reverberação no cotidiano e na precariedade de vida dos obreiros das docas tanto em Lisboa-PT como em Rio Grande -RS.

Dessa forma, compreender o movimento intrínseco à dinâmica cotidiana que caracteriza o Porto, no que tange sua relevância social, é discorrer sobre os diversos interesses que perpassam as relações que o mesmo estabelece com a sociedade. Sob esta perspectiva, este deve ser percebido como um espaço tanto físico, como simbólico, que abarca um

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mosaico multifacetário de possibilidades de questionamentos, a saber: um espaço predominantemente masculino; de meretrizes; fronteiras fí-sicas e simbólicas; zona de contrabando; de lutas operarias; repressão; e sociabilidade. Desta forma, o mesmo deve ser refletido enfatizando seus aspectos em níveis econômicos – locais, regionais, nacionais e interna-cionais –, assim como respectivamente nas diversas relações de trabalho existente em tal sistema55, de forma indissociável. É a partir deste con-texto que podemos lançar luzes aos múltiplos olhares sociais que com-preendiam o Porto como um espaço de desconfiança56, pois:

[...] a chamada “zona portuária” constitui-se de es-paços e sujeitos pouco admirados pela sociedade: traficantes, jogadores, biscateiros, prostitutas, além dos próprios portuários, historicamente vistos como brutos. É a “zona portuária” provocando medo na cidade, como se fosse uma cidade à parte, ou uma “cidade” dentro da cidade.” (OLIVEIRA, 2007. p. 2)

Pedroso (2012), ao refletir sobre a conjuntura social brasileira do século XIX, nos permite problematizar os estigmas do trabalho portuá-rio. Para o autor, a representação que o pobre assume no pensamento das elites, permitiu que estes tenham sido vistos como uma ameaça ao padrão civilizacional almejado a época (PEDROSO, 2012, p. 24).

Aprofundamos esta questão observando que, para Fernando Tei-xeira da Silva (2003), a imagem que produz tais estigmas é acentuada por esse constituir-se em um espaço masculino, sem uma demarcação clara de tempo entre lazer e trabalho, assim como um ambiente que ostentava a valentia e a virilidade, e pelas violentas disputas de emprego em um mercado instável (SILVA, 2003, p. 129). Acrescido a isto, há a desvalori-

55 Cabe ressaltar que a vida do trabalhador portuário não se restringe as atividades exercidas dentro do Porto, uma vez que tal atividade impacta no estilo de vida que os mesmos levam em sua vida cotidiana, fora do am-biente de trabalho portuário.56 Para Gitahy (1992), tais estigmas surgem do caráter instável e pesadíssimo de seu oficio, onde “[...] as cha-madas classes laborieuses confunde-se com as classes dangereuses” (GITAHY, 1992, p. 19).

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zação desta forma de ofício, principalmente se referindo as categorias de estivadores, portuários e arrumadores, a qual era compreendia um con-junto de atividades geralmente marcadas por serviços braçais e pesados. Alguns autores afirmam que os operários que exercem atividades mus-culares, como é o caso das categorias mencionadas, geralmente são estig-matizados pela sociedade. Endossando essa posição, Ingrid Sarti ressalta:

[...] uma certa imagem predomina nos círculos aca-dêmicos e é extrapolada para a sociedade. Trata-se do operário que exerce sua força muscular dentro do esquema de corporação sindical mantida pela corrupção de uma liderança mafiosa como a que Elia Kazan registrou em seu “clássico” do cinema, ‘On the Waterfront’. (SARTI, 1981, p. 13).

No caso específico do operário das docas de Rio Grande, essa es-tigmatização possuía uma profunda relação com o seu elevado estado de miserabilidade. Os portuários, como já mencionamos, possuíam precá-rias condições de vida, sejam em relação à moradia, à alimentação ou ao vestuário. Prestavam qualquer tipo de serviço braçal, a fim de minimizar sua pobreza. Os próprios trabalhadores reconhecem que a sua pobreza atraía a desconfiança da classe abastada, que os consideravam potencial-mente capazes de violências e furtos. Neste sentido, são recorrentes nos periódicos locais de Rio Grande, as notícias sobre o “perigoso” bairro Getúlio Vargas, local considerado um antro de toda espécie de gente, e que deveria ser evitado57. No caso português é também destaque o desprestígio social destas categorias, vinculadas a sua pobreza, baixa es-colaridade e “propensão para a violência”.58

O estigma de ladrão, imputado aos portuários, possui relação com o trabalho que exercem. O contato direto com a carga e o grau de pobre-

57 Entrevista realizada pelo autor, com Maria Antônia Puccinelle, em 29 de maio de 199758 Vide Sob o Olhar de Leviatã: Portuários Portugueses e Brasileiros Vivenciando Regimes Autoritários. Pro-jeto de Pós Doutorado, Estágio Sênior (CAPES) no exterior de Edgar Ávila Gandra, junto a Universidade do Porto-PT, entre 2014-2015.

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za dos trabalhadores influenciava muitos a furtarem, geralmente gêneros alimentícios. O caso de Adão Marques da Silveira, um avulso, é muito elucidativo. Em sua ficha de identificação consta a seguinte observação: “Pelo proc. 1347, de 07/10/1956, foi suspenso do exercício de função pelo prazo de 30 dias, por ter sido preso quando conduzia em seu poder 1 saco com sete quilos de arroz, em 19/09/56”59. No porto de Lisboa, também há documentação dos órgãos de vigilância sobre furtos e casos de violência no ambiente de trabalho.60

Ressaltamos que são corriqueiros nas fichas de identificação dos trabalhadores os casos de furto de alimentos, como o mencionado acima. Para o portuário, esse comportamento relacionava-se com a necessidade de prover sua família, enquanto que para o restante da sociedade, esta atitude era a de um ladrão61. Esses furtos eram considerados normais pelas famílias dos portuários e, inclusive, havia uma certa tolerância por parte dos vigias do porto. As palavras de Maria Antônia Avila Pucci-nelle exemplificam nossa afirmação: “Ah! [risos] Claro; se defendiam [furtavam] né? Ganhavam pouco, quando podiam passara mão [...] eles roubavam era assim, carnes, [...] roubavam toucinho, roubavam essas coisas [...] enlatado [...] o guarda [...] para aqueles que eram mais ami-gos dele, com certeza, se ele visse ele não ia denunciar [...].”62

Tais questões se acentuavam na condição de vida de outra catego-ria de trabalho portuário, os arrumadores, uma vez que se constituíram ao longo de sua trajetória sindical em uma das categorias que estava

59 Fichas de Identificação do Arquivo do Departamento de Recursos Humanos da Superintendência do Porto de Rio Grande.60 Sob o Olhar de Leviatã: Portuários Portugueses e Brasileiros Vivenciando Regimes Autoritários. Projeto de Pós Doutorado, Estágio Sênior (CAPES) no exterior de Edgar Ávila Gandra, junto a Universidade do Porto-PT, entre 2014-2015.61 Embora possa parecer que estamos fazendo um juízo de valores, nossa intenção é, mesmo relativizando, justamente contrapor as necessidades de sobrevivência dos portuários à “moral burguesa”, da classe abastada do município.62 Entrevista realizada pelo autor, em 29 de maio de 1997. Grifo nosso.

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mais sujeita as sazonalidades e precariedade dos serviços63. Desta forma, ao longo de nossas entrevistas, os relatos sobre os furtos, nos permitem elucidar a condição precária de vida, na qual os indivíduos praticavam estas ações como forma de poderem se alimentar. Contudo, com o de-senvolvimento da concepção de segurança no porto, estas práticas se tornaram cada vez mais difíceis, porém não inexistentes.

Em nossas entrevistas percebemos que se tornava mais arriscado furtar mercadorias ou gêneros alimentícios com a ampliação da segu-rança no porto, uma vez que a possibilidade de ser pego e perder o serviço crescia. Dentro dos sindicatos, o furto também configurava com um elemento que poderia fazer o indivíduo perder seu trabalho, no en-tanto mesmo não sendo abertamente exposto percebemos uma certa tolerância com tais práticas sobretudo no aspecto da alimentação. Nes-te sentido, compreendendo a condição de vida desses sujeitos, embora salientamos que nem todos os fiscais agissem desta forma, mas como mencionado, havia uma compreensão e conivência sob tal prática dentro do porto. Em nossa entrevista com o ex trabalhador arrumador Duarte Nunes Botelho, o mesmo nos conta que na época em que entrou para o sindicato, década de 60, os armazéns do Porto Novo e Porto Velho estavam cheios de arroz, e quando seu terno “chegando no Porto Velho para trabalhar, o ajudante de fiel, chegou e disse: olha, se vocês quiserem um arroz, um pouquinho de arroz, vocês não peguem esse ai do chão que tá com veneno. Tem aquele saco que eu deixei para vocês ali. Que era pros cara não rasgar os sacos, né.”64 Segundo este relato do trabalhador, o ajudante de fiel já sabia que os furtos aconteceriam, porém dessa forma ele prevenia de avarias a carga.

63 Na medida em que outras categorias, como os portuários e estivadores, se fixaram apenas nas atividades dos serviços portuários, e assim, através da luta sindical, conquistaram importantes direitos que os possibilita-ram melhores qualidade de vida, os arrumadores constituíram-se e permaneceram como trabalhadores avulsos, atuando tanto no porto como no comércio. Suas atividades dentro do porto se davam apenas na necessidade de mão de obra, ou seja, apenas supriam a demanda sazonal das movimentações de mercadoria ou atividades a serem exercidas dentro deste espaço. 64 Entrevista realizada pelo autor em 20 junho de 2017, com o ex-trabalhador arrumador Duarte Nunes Botelho.

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No caso português também há várias referências a furtos de carga, sobretudo alimentos. Parece que esse tipo de ação é recorrente, no perío-do em tela, e na memória reavivada dos entrevistados é entendida, dos dois lados do oceano, como uma forma de complementação alimentar e não como furto. A entrevista de José Domingues destaca a visão dos operários portugueses sobre este aspecto “as cargas do porto de Lisboa serviam, a que se dizer, para ajudar no alimento dos estivadores lisboe-tas. O que se podia comer era nosso (risos)”65

Além das estigmatizações referidas acima, os trabalhadores por-tuários de Rio Grande e Lisboa também eram enquadrados como vaga-bundos e alcoólatras. A primeira adjetivação relaciona-se com a já men-cionada, prática da “cera” que eles desenvolviam e, não resta dúvida, o alcoolismo estava significativamente disseminado entre eles. A ficha de identificação do trabalhador portuário avulso, Anastácio Pio, é esclare-cedora sobre esse último comportamento dos operários: “Excluído pela portaria n° 1375.57, e processo 3.638/57, da D. R.G. Por abandonar seu posto, o podão n° 4, para ingerir bebidas alcoólicas - nas cantinas em frente ao portão n°4 do porto novo”66.

Os trabalhadores, neste contexto, sofriam várias restrições, sob o olhar desconfiado da classe dominante. Os depoimentos permitem reconhecer que eram comuns as humilhações pela sua condição social. Dentre estas, o não fornecimento de crédito pelo comércio para com-pras67, ou a necessidade de se tornarem pedintes para suprir sua carência de roupas68.

65 Entrevista José Domingues, no Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfico e Conferentes Marí-timos, LISBOA-PT, janeiro 2015. Sob o Olhar de Leviatã: Portuários Portugueses e Brasileiros Vivenciando Regimes Autoritários. Projeto de Pós Doutorado, Estágio Sênior (CAPES) no exterior de Edgar Ávila Gandra, junto a Universidade do Porto-PT, entre 2014-2015.66 Fichas de Identificação no Arquivo do Departamento de Recursos Humanos da Superintendência do Porto de Rio Grande.67 Entrevista realizada pelo autor em 20 de fevereiro de 1997, com o portuário aposentado Hélio Amaro Soares.68 Entrevista realizada pelo autor, em 21 de fevereiro de 1997, com o portuário aposentado Moacir Martins Rodrigues.

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Por fim, ressaltamos que esses problemas criaram “[...] a crença partilhada pelos portuários de que os ‘outros da sociedade’ os conside-ravam um grupo de Status baixo’.” (SILVA, 1995, p. 12). No entanto, estes preconceitos, serviram para colocar em movimento a “máquina da unidade”, bem como o sentimento, já mencionado, de pertencimento a uma mesma classe social.

Os obreiros das docas enfrentaram todos os tipos de privações ma-teriais, bem como sofreram preconceitos, que acarretaram em um senti-mento de marginalização social. Assim, o argumento dominante, neste período, entre os trabalhadores portuários, era o da miserabilidade, ou seja, em determinados períodos da vida, alguns aspectos do dia a dia ressaltam--se entre outros. Neste, a marca principal da cotidianidade dos portuários é sua pobreza. Pobreza que concorreu para irmanar a todos, terminando por torná-los suficientemente coesos. As experiências em comum estabe-leceram fortes laços de solidariedade e contribuíram para a consolidação, mesmo com ressalvas, da consciência de classe69 destas categorias.

Uma questão singular é que os portuários ressignificaram o as-pecto da valentia e tornou-se um elemento importante em sua consti-tuição simbólica. E para que possamos melhor compreendê-lo, a entre-vista com Luiz Carlos Silva Amaral70, atual vice-diretor do Sindicato dos Arrumadores, exemplifica a valentia nesse espaço:

E na época não existia muito carro. O trabalhador andava muito de bicicleta, né. Então era assim... em cada período de chamada, em cada local de traba-lho, se aglomerava 300 a 400 homens. Imagina tudo isso, 70% de bicicleta? Quantas bicicletas no pátio,

69 Expressão utilizada no sentido que é dado por E. P. Thompson (1987a, p.10). Para o autor “[...] a consciência de classe é a forma como [...] experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais”. Toda vez que nos referimos a consciência de classe em nossa análise estaremos nos apropriando do conceito deste autor.70 Entrevista realizada pelo autor em 23 de maio de 2016, com o Vice-Presidente do Sindicato dos arrumadores Luiz Carlos Silva Amaral.

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né. Então, naquelas bicicletas mais antigas, existia aquele farol [...] então, o Vargas, ele chegou com a bicicleta dele, e colocou na parede. Ai chegou os outros e foram colocando, as bicicletas. Ai a dele ficou lá por último. Ai depois dá dele, tinha a do outro cidadão também, que não gostava de virar as costas pra ninguém. E ai que, quando foram remo-ver bicicleta pra tirar dali, no tirar, a do cidadão caiu no chão e quebrou o farol. Quebrou o farol e ai já o cidadão, dono da bicicleta, se envolveu com o ho-mem, e deu uma confusão, e partiram para as vias de fato. E eu sei que, isso ai eu me lembro, que a briga começou na frente da [sic] e foi parar em frente do portão do Porto. Os caras tiveram que chamar a brigada, né, por que já envolveu o dono da bicicleta e os parentes dos donos, e aquilo já virou quase uma guerra [...] total por causa de uma bicicleta.71

A narrativa acima evidencia esta demonstração pública de va-lentia as quais, por vezes, eram cometidas por motivos banais. E isto só pode ser entendido tendo em vista que “[...] os portuários definem, em grande medida, sua própria identidade a partir de um forte senso de masculinidade, em que a coragem é um valor moral definidor dos relacionamentos sociais” (SILVA, 2003, p.150). Isto também é referên-cia entre os trabalhadores portugueses que destacavam o uso de força e violência para se fazer respeitar. Sendo comum brigas e atos de demons-tração de virilidade entre estes trabalhadores, os quais eram motivo de orgulho e foram relatados pelos depoentes.

Em uma de nossas entrevistas com trabalhadores portugueses, José Domingues, relata que presenciou uma divergência entre seus colegas de trabalho, na qual como demonstração simbólica de força e virilidade, um dos operários ergue dois sacos de cinquenta quilos e os arremessa aos pés de outro trabalhador. Segundo José Domingues, isto teria sido uma

71 Entrevista realizada pelo autor em 23 de maio de 2016, com o Vice-Presidente do Sindicato dos arrumadores Luiz Carlos Silva Amaral.

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ameaça, pois, se possuía força suficiente para erguer tais sacos, também, e com facilidade, poderia jogar o colega com que divergia ao mar.72

Mediante as entrevistas, os trabalhadores rememoraram diversas situações e motivações destas brigas, porém o relato de Duarte Nunes Bo-telho nos trouxe o elemento que nos permite lançar luzes sobre esta ques-tão: “[...] se os caras brigarem lá dentro, ninguém vai dizer que os homem brigou... Eu me lembro um dia, que dois caras na jamanta, eles tavam lá se agarrando, e nos fechamos a jamanta e deixamos eles lá dentro. Ia fazer o que? Chamar a guarda e botar os caras pra rua?”73. Assim como no caso dos furtos, as brigas não eram bem vistas, seja pela administração do porto ou pelos sindicatos, contudo como fazia parte do cotidiano dos trabalha-dores, havia certa conivência com estas ocorrências, entre os operários.

Uma das possíveis chaves de leitura consiste em observar que o alto grau de exploração conscientizado pelos operários das docas, per-mite entender o elevado número de abandono de emprego. A maioria dos operários das docas, aguardava apenas uma oportunidade para de-senvolver outras atividades, que lhes propiciassem melhores condições de trabalho e de remuneração. A conscientização da sua exploração tam-bém se manifestava na sua relação com os capatazes da administração portuária de Rio Grande e entre eles próprios, pois ela era marcada por conflitos e violências. Agressões físicas e verbais eram comuns e estavam ligadas geralmente às condições de trabalho. Esse clima motivou a cria-ção, no porto, de uma cadeia para os indisciplinados. Exemplificamos com as palavras de Antônio Nailem Espíndola:

[...] então um companheiro que era da minha escala por sinal, estava em cima do lote de couro, arrian-do, que pegava entre dois e jogavam lá em baixo, (para que) os que estavam lá em baixo colocarem

72 Entrevista José Domingues, no Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfico e Conferentes Maríti-mos, LISBOA-PT, janeiro 2015.73 Entrevista realizada pelo autor em 20 junho de 2017, com o ex-trabalhador arrumador Duarte Nunes Botelho.

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no carrinho e empurrar UI até a beira do cais para os que estavam lá fazerem a lingada, e ai [...] subiu o capataz e reclamou que ele estava demorando. E o coitado do rapaz, ali trabalhando que nem um ani-mal e [irritou-se com] o capataz, que chamavam de Cavanhaque. O rapaz deu-lhe um soco no meio dos olhos e ele rolou. Prenderam o cara porque naque-la época, inclusive, tinha presídio dentro do porto. Tinha o chefe da guarda que se chamava Campos [...] então tiraram o rapaz dali já preso, detiveram o rapaz [por] 72 horas no xadrez [...] lá dentro para qualquer coisa que o trabalhador discutia, já vinham dois e algemavam e levavam para o xadrez [...].74

As Fichas de Identificação dos trabalhadores portuários avulsos estão repletas de ocorrências, que endossam a situação que estamos ana-lisando identificada como “brigas”, sejam elas entre os próprios trabalha-dores, como com as autoridades do porto. Na Ficha de Antônio Marques da Silva, por exemplo, consta a seguinte repreensão, “[...] pela portaria n° 448, de 6 de maio de 1950, D.R.G, foi suspenso do exercício da função pelo prazo de 15 dias. Período de 11 à 25.5.50, em virtude de haver bri-gado em serviço, com o seu capataz Herondino Ricardo de Oliveira.”75

Chalhoub (1986), trabalhando com o cotidiano dos operários, demonstra-nos que a violência não é estranha ao mundo do trabalho, e tendo vista como um fenômeno comum, em nosso objeto de estudo cor-roboramos com essa afirmação. As brigas, neste sentido, cumpre tanto um aspecto simbólico de virilidade e defesa da “honra”, principalmente em um ambiente predominantemente masculino como é o caso do por-to; como, o grande número de atitudes de violência e de indisciplina por parte dos portuários no seu cotidiano de trabalho, podem ser avaliadas como práticas de resistência às duras condições de trabalho a que eram submetidos para garantir sua sobrevivência.

74 Entrevista realizada pelo autor em 25 de fevereiro de 1997. Grifos nossos.75 Fichas de identificação do Arquivo do Departamento de Recursos Humanos da Superintendência do Porto de Rio Grande.

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Zona portuária: também local de moradia

Embora não nos estendamos neste momento sobre isto, cabe nota de outro aspecto importante que compõe o ambiente portuário, os Bairros Operários, os quais se construíram no entorno do Porto. E em Rio Grande, os dois principais bairros onde se estabelecia a moradia destes trabalhadores são o Bairro Getúlio Vargas e o Bairro Santa Tere-za76. Este ambiente era predominantemente habitado pelas classes mais pobres, e neles moravam trabalhadores das mais diversas atividades la-borais77, como os pescadores, carroceiros, cabungueiros e os que estavam ligados às indústrias. Segundo Pedroso:

O bairro dos Cedros, atual Bairro Getúlio Vargas, surgiu exatamente da necessidade que essa popula-ção migrante tinha de residir perto dos locais onde havia empregos. Os chamados “ratos do porto”, em sua maioria, vinham da região da campanha, e pro-curavam em Rio Grande a oportunidade de cons-truir uma nova vida. Eram atraídos pela oferta de mão de obra, porém nesse período, principalmente na área portuária, nem todos empregos eram fixos, ou seja, essas pessoas trabalhavam como diaristas, o que de alguma forma acentuava a necessidade de residir próximo aos locais de trabalho, pois era pre-ciso ir todos os dias conferir se havia ou não serviço. (PEDROSO, 2012, p. 66)

A baixa remuneração dos operários das docas refletia-se de for-ma incisiva nas suas condições de moradia. A maioria deles residia em bairros próximos ao porto, como os já referenciados, Getúlio Vargas e vila Santa Teresa.

76 Inicialmente o Bairro Getúlio Vargas era conhecido como Vila dos Cedros, e o Bairro Santa Tereza como Vila Verde.77 É importante que se enfatize que muitos desses também participaram como avulsos no Porto, uma vez que era um trabalho esporádico e de ganho momentâneo, o qual não tinha como pré-requisito vínculos.

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O bairro Getúlio Vargas78 foi, na década de 1950, o local que teve a primazia das habitações dos portuários. Sua formação esta ligada, principalmente, com a migração de trabalhadores de outras cidades que rumavam em direção de Rio Grande-RS na busca de melhores opor-tunidades de trabalhos, principalmente no Porto e no frigorifico Swift, segundo o atual vice diretor do sindicato dos arrumadores:

Sempre assim, o BGV o bairro Getúlio Vargas se criou em função da Swift quando ela veio pra cá, na época empregava muita gente, e veio muita gente do interior, Pedro Osório, Dom Pedrito...essa imigração que tá na volta do porto, e foram se acampando ao redor da orla portuária, era um espaço meio desco-berto... e o pessoal foi usando e foi usando e se criou o bairro Getúlio Vargas, com o pessoal de Dom Pedrito, Pedro Osório,Piratini e o próprio Cangu-çu, meu próprio avô veio de Dom Pedrito para cá e aí formou família, o crescimento do bairro Getúlio Vargas se deu em função do Porto e da Swfti.79

Este era conhecido como “o bairro que crescia à noite”, pois era neste horário que os moradores construíam suas casas80 já que o local era terreno de marinha, estando proibidas as construções. Assim, le-vantando a casa durante a noite, evitavam-se possíveis problemas com as autoridades. A necessidade de trabalho dos habitantes da localidade, que ocorria no período diurno, era outro motivo para as construções serem feitas à noite.

As casas de madeira eram, geralmente, construídas em regime de “mutirão”, isto é, vários trabalhadores reuniam-se e edificavam uma

78 O bairro Getúlio Vargas foi projetado no inicio do século para ser um bairro modelo, de características bur-guesas. Entretanto, a proximidade do porto fez com que grandes contingentes de trabalhadores se deslocassem para esta região, desviando o projeto inicial.79 Entrevista realizada pelo autor em 23 de maio de 2016, com o Vice-Presidente do Sindicato dos arrumadores Luiz Carlos Silva Amaral.80 Segundo Maria Antonia Avila Puccinell, alguns optavam por construírem suas casas aos domingos e feriados.

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residência, o que reduzia custos com mão-de-obra. Sobre esta questão são valiosas as informações de Maria Antônia Avila Puccinelle:

Faziam, [...] o churrasquinho, a lingüiça assada, [...], chimarrão, as mulheres iam para lá assar lingüiça e fazer chimarrão, pra eles fazerem a casa [...] tudo colega, os colega juntavam. Um dizia, por exemplo, ‘olha comprei madeira, na madereira à prestação, queria fazer minha casa, queria iniciar sábado, vocês vão ou não vão me ajudar? Vão. Quantos vão? Vai oito, vai dez’, levantava a casa num dia, às vezes [...] Fazia duas, três pecinhas, levantava, deixava tudo prontinho.81

Esse sistema demonstra o alto grau de solidariedade existente en-tre os trabalhadores das docas de Rio Grande, como retrata, também, o caráter social deste mutirão, prática que E. P. Thompson denominou de “solidariedades comunitárias”. (THOMPSON, 1992, p. 74).

O entrevistado Moacir Martins Rodrigues descreve, com muita propriedade, as residências dos obreiros do cais: “Eram uns barracos de madeira, se fazia de acordo com às possibilidades. Aquilo que a gente con-seguia [...] para fazer um barraquinho para poder ir morando. Ir vivendo.”82

No entanto, as casas foram assumindo um padrão melhor de construção, neste se inseriram quase todas as moradias do bairro. Essa evolução está exposta no relato de Cristóvão Barbosa dos Santos: “[...] ali [os trabalhadores] faziam um barraco. Desse barraco, passavam para uma casa de 5.40 [metros] por 5.40, quer dizer, quatro peças iguais”83.

Os cômodos da casa, quase sempre, eram ocupados na seguinte disposição: dois quartos, uma cozinha e uma sala de visitas. O banheiro

81 Entrevista realizada pelo autor, em 29 de maio de 1997.82 Entrevista realizada pelo autor, em 21 de fevereiro de 1997.33 O bairro Getúlio Vargas foi projetado no início do óculo para ser um bairro modelo, de características burguesas. Entretanto, a proximidade do porto fez com que grandes indigentes de trabalhadores se deslocassem para essa região desviando o projeto inicial.83 Entrevista realizada pelo autor. em 17 de fevereiro de 1997. Grifos nossos.

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ficava ao lado da casa e era denominado patente84. Na fala de Maria An-tônia Avila Puccinelle: [...] o banheiro era daqueles de fossa profunda, como chamam. Havia aquele buraco assim bem grande, né? Botava cal virgem e depois fazia o banco para sentar, tudo tapadinho, tudo pinta-dinho, tudo direitinho”85.

Pelo acima descrito, podemos afirmar que as condições de moradia ofereciam muito pouco conforto e condições de higiene para os obreiros do porto de Rio Grande, bem como para suas respectivas famílias.

O bairro Getúlio Vargas, também denominado de “Vila do Ce-dro” e a vila Santa Teresa86, ambos adjacentes ao porto de Rio Grande, apresentavam, neste período, praticamente as mesmas características, que descrevemos acima. A proximidade com o cais impelia o trabalha-dor portuário a fixar-se nesses bairros, facilitando seu acesso ao local de trabalho, não lhe onerando com o transporte e o dispêndio de tem-po. Caso análogo ao bairro Baixa do Chiado, em Lisboa-PT. Fernando Teixeira da Silva (2003) nos apresenta que esta questão é comum aos ambientes portuários, visto que esta relacionada ao caráter sazonal das suas atividades “O trabalho ocasional estreitava, portanto, a proximidade entre moradia e fontes de emprego, fazendo com que os trabalhadores do cais fossem vizinhos e habitassem nas localidades contiguas ao cais [...]” (SILVA, 2003, p. 137).

Na medida em que o serviço no porto era inserto, os operários não possuíam garantias de serem requisitados para realizarem trabalhos, e essa característica de trabalho fazia com que morar perto do serviço permitia que soubessem sempre que novas embarcações chegassem, assim como se deslocar rapidamente até o cais. Segundo Luis Carlos Silva Amaral:

84 Cavava-se um buraco, colocando em cima deste, uma armação fechada de madeira, com uma tábua recortada no meio para o assento. Quando a cavidade ficava repleta, enterrava-se o material orgânico repetia-se o processo em outro local do quintal. Uma outra variação desta, consistia em engendrar uma lata no local do buraco e, quando a mesma estivesse Malmente ocupada, retirava-se o material, limpando o recipiente.85 Entrevista realizada pelo autor, em 29 de maio de 1997.86 A Vila Santa Teresa é um desmembramento do bairro Getúlio Vargas.

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[...] na época o horário do porto era diferente, às vezes o porto acabava às quatro da manhã e alguns alongavam até as seis.... Então tinha a facilidade de se deslocar, até mesmo de bicicleta, porque a vio-lência não era tanta... Depois as leis mudaram os horários, mas mesmo assim é muita comodidade morar perto do serviço... Olha posso dizer que uns 10% moram fora do perímetro do trabalho, o resto é tudo encostado aqui, Santa Tereza, Lar Gaúcho, Vila Santinha, tudo colado aqui.87

A cercania das moradias entre si também concorreu para estreitar as relações de solidariedade e, provavelmente, solidificou o sentimen-to, entre eles, de pertencerem a um “mesmo mundo”. Os trabalhadores compartilhavam não apenas o trabalho, mas também o lazer, como o futebol de fim-de-semana nos terrenos baldios de seu bairro, os mesmos bares, as festas em comum, esse conjunto de atividades concorreram para ampliar as relações de amizade entre as famílias operárias.

Reconhecemos que esses aspectos devem ser relativizados, pois utilizando os mesmos exemplos acima, tanto o futebol, como a “roda de bar” e mesmo as relações entre as famílias dos obreiros do cais poderiam ocasionar discórdias, e, algumas vezes, estas ocorreram, atuando em sen-tido contrário à “máquina da unidade”.

Portanto, este espaço deve ser discutido em sua complexidade e contradição, uma vez que a zona portuária é o ambiente onde se estabe-leciam as principais redes de relações, as quais influenciariam tanto nas solidariedades dos grupos e aprendizagens dos ofícios, bem como nas disputas pelo mercado de trabalho.

Cumpre papel relevante para destacarmos que o Porto, percebe-mos que tanto em Lisboa-PT como em Rio Grande-RS, o ambiente urbano é moldado em seus entorno por uma rede de interesses econô-

87 Entrevista realizada pelo autor em 23 de maio de 2016, com o Vice-Presidente do Sindicato dos arrumadores Luiz Carlos Silva Amaral.

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micos e sociais especificas, vinculados às características próprias deste ambiente. Desta forma, observamos o estabelecimento de industrias, as quais visavam aproximar-se do porto para o escoamento de suas merca-dorias, e a emergência de zonas de sociabilidade, como bares, prostíbu-los, os quais lucravam com o ir e vir das embarcações e movimentação dos trabalhadores; além de quarteis e postos policiais para vigilância, vistos a importância do porto para a circulação de mercadorias e o po-tencial reivindicativo desta categoria.88

No caso lisboeta, o local de preferência de moradia era o bairro denominado Baixa do Chiado, onde os trabalhadores portuários portu-gueses estabeleceram-se pela proximidade do Porto de Lisboa e pelos custos reduzidos de aluguel e compra de casas. Guardadas as diferenças era um local de periferia com pouca qualidade de vida. Era um am-biente que também levava desconfiança aos setores abastados da so-ciedade portuguesa. Os portuários também eram estigmatizados por serem “homens rudes” e com pouco grau de instrução. Em sua maioria os portuários portugueses vinham de regiões rurais tentar melhorar de vida na capital do País89. Este local também se caracterizava por ser um espaço de solidariedade e aproximação entre os doqueiros portugueses. Foram relatados vários bares e prostíbulos perto do porto de Lisboa e dos sindicatos dos trabalhadores. Era um ponto de encontro “para tomar uns copos”, jogar cartas e conversar suas atividades diárias, pode-se di-zer que há uma certa padronização urbana próxima as zonas portuárias. Também em pequenas residências na orla do porto que as famílias dos doqueiros interagiam entre si e estabeleciam laços de pertença. Logica-mente, temos presente que esta proximidade poderia ocasionar rusgas e desafetos entres os trabalhadores e suas famílias, mas de qualquer forma, esta presença marca a tessitura do bairro supracitado.

88 Apesar de reconhecer a importância de tais temáticas, não aprofundaremos essa discussão no presente artigo.89 Reiteramos, como exposto anteriormente, que estamos em fase de transcrição de entrevistas efetuadas com portuários de Lisboa-PT. Contudo, percebemos uma tendência nas falas, no que se refere à localização de mora-dia de portuários estabelecidas próximas ao lócus de trabalho, como verificado no caso riograndino.

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Destacamos, frente ao contexto histórico exposto, que o trabalho no porto estava sujeito ao sistema sazonal de prestação de serviços. Com isto, os trabalhadores não possuíam garantias de suprir suas necessida-des básicas de subsistências, visto que recebiam de acordo com a execu-ção dos trabalhos requisitados.

A sujeição a este regime, como constatamos, era marcado pelo ingresso pelos segmentos menos abastados da sociedade, uma vez que o Porto proporcionava oportunidades constantes de serviços, ainda que não garantisse ganhos semanais ou mensais aos trabalhadores. Desta forma, ao associarmos o espaço portuário com um ambiente predomi-nantemente habitado por indivíduos pobres, e que necessitavam cons-tantemente reinventar suas estratégias de sobrevivência, nos indicam as possíveis motivações das estigmatizações sociais que os mesmos sofriam.

Gitahy (1992) nos apresenta o trabalho sazonal não como um fenômeno exclusivamente nacional, mas sim mundial90. Para a autora, este sistema apareceu historicamente como a resposta dada pelos em-pregadores às constantes flutuações da carga e descarga de mercadorias nos portos. “O traço básico do sistema é uma extrema flexibilidade na contratação dos trabalhadores” (GITAHY, 1992, p. 105). É importante que se enfatize que historicamente o trabalho avulso está relacionado à este caráter de sazonalidade de serviço no Porto.

Esta questão é compreendida, pela bibliografia que trata do tema sobre o sistema ocasional de trabalho, como sendo uma estratégia que visa a atender o fluxo de atividade no porto, buscando maximizar a lu-cratividade. Em outras palavras, é uma forma de reduzir os custos do trabalho, viabilizando maiores lucros aos empresários do setor portuá-rio. E isto possibilitava, segundo Marlene Monteiro André (1998), a existência de uma mão de obra, desqualificada e subempregada que era

90 Hobsbawm (2015), em seu texto Sindicato Nacionais Portuários, nos possibilita observar como este sistema de trabalho impactou no cotidiano das relações de trabalho na Inglaterra do final do século XIX e início do XX.

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compelida a aceitar quaisquer condições impostas a sua dinâmica de trabalho.

Tendo em vistas o desenvolvimento histórico do porto, e como se organizava as condições de trabalho, devemos nos perguntar: O que é ser um trabalhador avulso submetido a tal regime sazonal de serviços? É necessário reafirmar que na história portuária mundial, a relação en-tre o caráter de sazonalidade do trabalho portuário e o trabalho avulso, esta intrinsecamente ligada. Esta, por sua vez, possibilitou a forma uma forma peculiar de organização e relações de trabalho, as quais são en-contradas em diferentes portos, de diferentes países.91

Desta forma, o Porto caracterizou-se historicamente como um espaço de incertezas para os trabalhadores, os quais viam na sazonalida-de do serviço, uma dificuldade estrutural para garantirem seus sustentos. Isto, segundo Fernando Teixeira da Silva (2003), um paradigma que tanto ligava o Porto com os bairros operários, e ao mesmo tempo:

Esta condição sazonal das operações portuárias era não apenas responsável pela acirrada disputa entre operários e patrões para controlar o mercado e a or-ganização do processo de trabalho nos portos, mas também pela ruidosa rivalidade e competição entre os próprios trabalhadores (SILVA, 2003, p.149).

Neste intuito o a sazonalidade das atividades portuárias, as quais impactavam objetivamente sob a renda dos trabalhadores, ao mesmo tempo possibilitava a solidariedade entre os mesmos, seja no caso men-cionado das construções de moradias, ou como na “caixinha” onde jun-tavam dinheiro para períodos de baixa movimentação de mercadorias

91 É notável pela historiografia que versa sobre o trabalho avulso, que ele remonta ao período de colonização, e se estende até os dias de hoje, no Brasil. Este processo foi de grande importância para o desenvolvimento da dinâmica econômica agroexportadora, e consequentemente para o desenvolvimento das principais cidades portuárias, visto que era onde se concentrava este mercado. Para tanto, utilizou-se, em períodos mais longínquos, a exploração da força de trabalho indígena, tendo sido substituída posteriormente pelos negros, a partir do avanço da escravidão. (ANDRÉ, 1998)

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no porto; também propiciava um ambiente de disputa por trabalho, ha-vendo por vezes desavenças que levavam a violência física.

As discussões estabelecidas até este momento demonstram o es-paço complexo e por vezes ambíguo que se caracteriza o trabalho por-tuário. Sendo este um espaço marcado por uma cultura que tem nas marcas das experiências adquirida historicamente suas formas de se relacionar com as dificuldades do dia a dia. Desta forma, encaramos estas questões como pertencentes ao “fazer-se” da classe operária e expe-riência (THOMPSON, 1981), bem como o de Insegurança Estrutural de Mike Savage (2004). Isto, por que não acreditamos que o processo socio-histórico seja um objeto a parte a ser analisado, mas sim como parte constitutiva das experiências dos sujeitos, ou seja, de onde brotam suas ações e reações em contextos específicos. Portanto, a fim de que possamos compreender suas peculiaridades, também é importante ob-servarmos a dinâmica sob a qual estes indivíduos se inseriam, para que assim possamos “visualizar tempo e espaço, não como um pano de fun-do da análise histórica, mas, fundamentalmente, como parte intrínseca do próprio processo de mudança histórica” (SAVAGE, 2004, p.44). Em suma, elucidando nossa discussão a respeito da formação e cotidiano dos portos e o seu caráter historicamente marcado pela precariedade e sazonalidade dos ganhos e do trabalho.

Neste sentido, a insegurança é uma característica peculiar para nosso estudo, pois está fortemente presente na vida dos trabalhadores avulsos92. E assim sendo, foi pertinente para nossa perspectiva, nos apro-priar da concepção de Insegurança Estrutural, de Mike Savage (2004)93, pois é fundamental para compreender uma formação dinâmica da cate-goria portuária avulsa portuária, pois:

92 Lembramos que isto se torna uma peculiaridade no caso dos Arrumadores, pois diferentemente dos estivado-res e Portuários, estes operários se edificaram como avulsos sem vinculo exclusivo com o Porto.93 Recorreremos constantemente ao autor, pois sua concepção de Insegurança, aplicada ao contexto portuário de trabalho avulso/sazonal, nos permite perceber como essa estratégia capitalista de flexibilização do contrato, implicava em incertezas e conseguinte em formas diversas de organização dos operários.

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Essa formulação nos possibilita reconhecer certas pressões estruturais sobre a vida operária, embora também pontue a urgência de examinarmos a enor-me variedade de táticas que os trabalhadores podem escolher para cuidar de seus problemas – da luta con-tra seus empregadores à formação de cooperativas, à demanda de amparo estatal, à tessituras de redes de apoio nas vizinhanças [...]. (SAVAGE, 2004, p. 33)

E assim, a partir desta formulação conceitual, o autor também nos possibilita contornar os reducionismos que o conceito de Classe pode gerar. Na medida em que ela possibilita múltiplas abordagens, e as-sim podemos abranger nosso estudo para as experiências de estratégias e organizações em bairros, nos lares e nos processos de trabalhos. Sem que isso implique em uma homogeneidade que não observe os conflitos internos e de exploração que se estabeleciam dentro do grupo, visto que a insegurança para o autor “Não implica união do operariado, em detri-mento de suas rivalidades internas. Mas reforça a necessidade de olhar para os fatores contextuais que explicam como a própria carência dos trabalhadores em lidar com tal insegurança conduz a diferentes tipos de resultados culturais e políticos” (SAVAGE, 2004, p. 33-34).

Sob este viés, Fernando Teixeira da Silva (2003) é enfático ao des-tacar os problemas de uma abordagem histórica que não evidencie os con-flitos, as heterogeneidades e as contradições dentro da cultura portuária:

São grandes os riscos dos estudos sobre cultura e comunidade operárias que pressupõem uma vida integrada, socialmente coesa e harmônica, a partir de testemunhos que tendem a idealizar a homoge-neidade em contraponto à dispersão e à variabilida-de de referencias e atitudes sociais. Antes de analisar a complexa e heterogênea organização da indústria portuária que explica, em grande parte, algumas das diferenças [...], faz-se necessário, então, incorporar ao conceito de comunidade referências ativas, am-bíguas e dissonantes. (SILVA, 2003, p. 145)

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Portanto, o conceito apresentado nos parece uma forma de lei-tura importante para problematizar o mundo portuário. Através dele poderemos enfatizar como as contradições se expressavam no cotidiano, uma vez que, por um lado percebemos estratégias de apoio coletivo as inseguranças94, bem como a expressão da contradição, as quais culmi-navam em relações de trabalho fortemente marcadas por privilégios e exploração. Sob o prisma deste conceito e da construção histórica da cultura portuária, podemos compreender tais problemáticas como for-mas de lidar com as inseguranças que o trabalho portuário proporciona.

Trabalho no Porto: relações e estratégias

Podemos perceber que questões de exploração e estratégias se en-contram fortemente marcadas nas relações de trabalho e no cotidiano dos operários portuários, uma vez que segundo Fernando Teixeira da Silva (1995) havia neste ambiente uma necessidade constante de inten-sificar a exploração do trabalho.

Voltando nosso olhar para o contexto riograndino, podemos ob-servar a série de péssimas condições que iam ao encontro dos trabalha-dores do Porto. Gandra (1999) nos possibilita compreender que nem sempre o Porto garantia regularidade no pagamento dos trabalhadores. Desta forma nem a diária, além dos atrasos nos pagamentos, supriam completamente as necessidades destes operários. Isto, concomitante-mente, os condicionava a se subjugarem a pesadas cargas horárias de trabalhos, a fim de complementar sua renda. Em seu estudo, encon-tramos a dura experiência de que muitos dos trabalhadores, ainda que pudessem trabalhar cerca de 10 horas por turno, aguardavam para a cha-mada do turno noturno.

94 Segundo Marlene Monteiro André (1998) nos trás algumas estratégias que os trabalhadores utilizavam, como a Caixa de Socorro Mútuo, a qual tinha como objetivo ajudar que ninguém passasse fome.

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Para os trabalhadores avulsos a questão da carga horária de traba-lho era flexível, podendo assim exceder 12 horas de trabalho, como nos afirma Duarte Nunes Botelho:

Naquela época não tinha esse problema de fica 6 horas, 8 horas. A gente fazia 24 horas direto, e não tinha problema nenhum. Virava dia e noite. A gen-te pegava no porto, por exemplo, as sete e meia, e ai virava o meio dia, e ia de novo até a uma. A uma pegava de novo, e ia até as dezenove. E das deze-nove até as quatro, até as seis ou as sete do outro dia. Virava sempre. Então nos não tínhamos aquele intervalo obrigatório, lá. Nos virávamos direto.95

Todavia, é de suma relevância que se enfatize, que a necessidade destas cargas horárias era servir como complemento de renda, as quais não se expressavam apenas para cumprimento de suas necessidades diárias, mas também deve ser compreendia como uma estratégia para manutenção futura destas necessidades, ou seja, para períodos de escassez de trabalho.

Na entrevista que realizamos com o diretor do Sindicato dos Ar-rumadores, Amarante Couto96, destaca suas memórias de infância. Par-tindo de seu relato, era comum entre os trabalhadores a necessidade de gerir seus ganhos, a fim de garantir sua subsistência em períodos de dimi-nuição nas atividades portuárias. Como exemplo, Amarante Couto, nos contou que em sua casa havia provisões de alimentos que se estendiam do chão ao teto, e que isto se dava como uma forma de garantir as con-dições básicas alimentícias, nos períodos em que o serviço fosse escasso.

A partir das memórias deste trabalhador podemos compreen-demos como se expressava, na vida cotidiana familiar e nas formas de organizações de seus ganhos, a insegurança do trabalho avulso. O traba-

95 Entrevista realizada pelo autor em 20 junho de 2017, com o ex-trabalhador arrumador Duarte Nunes Botelho.96 Entrevista realizada pelo autor em 20 março de 2016, com atual diretor do Sindicato dos arrumadores Ama-rante Greque Couto.

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lhador portuário, sujeito a sazonalidade deste sistema necessitava cons-tantemente se adaptar as condições adversas que seu ambiente impunha. E é a partir das experiências que estes acumularam ao longo da trajetória das relações de trabalho, que neste contexto de adversidade puderam nascer as diferentes estratégias como resposta ao meio.

A discussão sobre experiência e estratégias pode ser aplicada a di-versos contextos da organização cotidiana portuária. E para além das for-mas de gerenciamento dos ganhos, também podemos discutir estas atra-vés da circulação de crianças no ambiente portuário97, a qual faz parte de um tema bastante debatido pela historiográfica que versa sobre o Porto.

Tema este que se faz imprescindível por pelo menos dois moti-vos: por um lado, nos conduz a uma das possibilidades de compreensão característica da profissão de trabalhador portuário, a qual tendia passar de pai para filho; e ao mesmo tempo ela evidência a precariedade de suas condições de vida, visto que também poderia ser entendida como uma estratégia de complemento na renda familiar.

Tais perspectivas são corroboradas pelo estudo de Vivian (2008), uma vez que esse nos trás a importante compreensão de que a partir de suas entrevistas, o mesmo percebe que as crianças, ao longo da traje-tória histórica portuária, também possibilitavam compor o orçamento, mesmo que de forma não monetária, mas adquirindo bens de consumos para a família.

O fato de crianças oriundas de famílias da classe trabalhadora contribuírem para o custeio das des-pesas domésticas através dos resultados do seu tra-balho não foi um acontecimento específico da reali-dade portuária porto-alegrense da década de 1920, pois fenômeno semelhante, como veremos mais adiante, se verificava em outras cidades, incluindo

97 É importante deixar claro que muitos motivos faziam com que houvesse o contato entre o Porto e as crianças, contudo um dos aspectos que daremos ênfase é na possibilidade de ganhos financeiros, a fim de complementar a renda.

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Rio Grande, onde .o envolvimento dos guris com trabalhadores da região portuária sempre foi muito forte. (VIVIAN, 2008, p. 57)

Se tomarmos esta questão a partir da historiografia e da forma-ção conceitual de Savage (2004), ela pode ser entendida como corres-pondente a percepção de que “Na sociedade capitalista, a retirada dos meios de subsistência das mãos dos trabalhadores significa constran-gê-los a acharem estratégias para lidar com a aguda incerteza da vida diária, que deriva de seu estado de impossibilidade de reprodução autô-noma [...]” (SAVAGE, 2004, p. 33). E assim sendo, temos a liberdade de discutir a circulação de crianças também como uma das possibilidades, em um dado contexto histórico, de garantia de subsistência das famílias, que estava intimamente relacionada à insegurança do trabalho avulso.98

E ainda que Vivian (2008) perceba a prática de circulação de crianças dentro do Porto como um ato não consentido por suas respec-tivas autoridades, também nos revela que:

A sociabilidade entre crianças e trabalhadores avul-sos, no entanto, podia ser construída de outras ma-neiras e não somente através de atividades que gera-vam algum ganho às primeiras. Afinal, muitas vezes quem estava atuando nas instalações portuárias ou no porão das embarcações era o pai, o avô, o tio ou o irmão dos próprios meninos que circulavam pela orla ou residiam próximo a ela, permitindo que as incursões destas crianças e jovens ao cais constituís-sem uma espécie de encontro entre membros de uma mesma família portuária. (VIVIAN, 2008, p. 89).

Esta sociabilidade apresentada por Vivian (2008), bem como a proximidade entre bairros e Porto, possibilitava a inserção, desde a mais

98 É importante deixar claro que não pressupomos que esta questão se restringia ao trabalho avulso, apenas o direcionamos nesta forma de organização do trabalho, a fim de evidenciar um elemento do caráter histórico de nossa pesquisa.

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tenra infância dos filhos desses trabalhadores, neste mundo. Possibili-tando desta forma, o que pontua Gitahy (1992), em seu estudo sobre o Porto de Santos, de que os filhos destes trabalhadores compreen-diam profundamente suas rotinas de trabalho. Portanto a nosso ver foi esta prática de circulação dentro do Porto, assim como de convívio em bairros operários, que possibilitavam este conhecimento dos ofícios de trabalho.99 Nas entrevistas sobre o porto de Lisboa, os trabalhadores também destacam a presença constante de suas famílias no seu local de serviço, tanto para levar alimentos, como para trocar informações100.

Até este momento, em nossas entrevistas, não exploramos a pos-sibilidade dos filhos desses Arrumadores terem contribuído junto ao orçamento. Todavia, a partir das memórias de nossos entrevistados, foi possível constatar que eles compreendiam estas atividades portuárias, assim como exposto por Gitahy (1992). Neste sentido, a aproximação entre bairros e Porto se mostra um meio que além de facilitar o des-locamento dos trabalhadores, também potencializava a transmissão do conhecimento sobre os ofícios. Outro ponto a ser observado é que pos-sivelmente a precariedade e insegurança de vida também contribuam para problematizar as relações parentais de ingresso nos serviços por-tuários. Oliveira (2007) corrobora com nosso pensamento na medida em que afirma:

“Não é de se estranhar o número de parentes e agre-gados que foram incluídos nas relações de trabalho nos serviços de estiva, pois a cultura familiar entre os estivadores sempre esteve presente no cenário portuário brasileiro, em função até da própria des-continuidade do trabalho, pois os estivadores não têm segurança assim como uma regularidade sala-rial, recebendo apenas quando existem navios. [...]

99 Deixamos claro, neste momento, que conhecer o oficio é diferente de possuir as habilidades necessárias para executá-lo. A prática do ofício faz parte de um aprendizado passado dos mais velhos aos mais jovens na própria dinâmica do dia a dia de trabalho.100 Entrevista José Domingues, no Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfico e Conferentes Maríti-mos, LISBOA-PT, janeiro 2015.

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Com o passar dos anos, o filho assume a garantia de sua aposentadoria, ajudando o pai no sustento da família, razão, existia no Porto famílias inteiras trabalhando. ” (OLIVEIRA, 2007, p. 5)

O método de História Oral101 nos proporcionou perceber que todos entrevistados possuíam relações de parentescos no Porto. Na en-trevista que realizamos com Diógenes Souza102, torna-se evidente esta relação familiar ligada ao Porto. Quando perguntamos se este possuía vinculo familiar no Porto, inicialmente sua resposta foi não. Todavia, aparentemente, havia compreendido se o parentesco era junto ao “sin-dicato dos Arrumadores”, pois logo após nos relata que “O meu pessoal trabalhava quase todos no Porto. Mas eram Portuários. Como vou te di-zer... eram funcionários do Porto [...]: Tio, meu pai, meu irmão também era portuário [...]”103. Aspecto semelhante é encontrado na entrevista com o estivador português José Domingues.

Este aspecto faz parte da cultura operária portuária e que se es-tende por diferentes portos. Silva (2003) nos possibilita expandir nossa visão, até aqui restrita a Rio Grande - RS, para compreender que no contexto do Porto de Santos as relações de parentesco também se fa-ziam presente. Assim como enfatizamos na cidade de nosso estudo, o autor também estabelece relações entre a sazonalidade dos serviços e o estabelecimento das vilas operárias como um dos meios explicativos, uma vez que nestes ambientes se estreitavam as relações e possibilitavam as redes de relações:

Relações preexistentes às estabelecidas nos locais de trabalho fortaleciam-se, assim, por meio de laços pessoais de contratação da mão de obra, sendo co-

101 Este consiste em tomar relato de indivíduos que viveram um determinado período, dando voz e permitindo que se tornem protagonistas dos acontecimentos históricos, visto que é para Albert (2008) “[...] o estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências, incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas.” (ALBERTI, 2008, p.166).102 Entrevista realizada pelo autor em 14 de abril de 2015, com o ex-trabalhador arrumador Diógenes Sampaio Souza.103 Entrevista realizada pelo autor em 14 de abril de 2015, com o ex-trabalhador arrumador Diógenes Sampaio Souza.

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mum a constituição de linhagens familiares de por-tuários, que transmitiam uma cultura de trabalho de geração para geração. (SILVA, 2003, p. 137)

Desta forma, podemos concluir que para compreender a com-plexidade do trabalho portuário, faz-se necessário ir além do Porto. É preciso identificar as diferentes conexões que ligam as relações de traba-lho, assim como as estratégias de lidar com seu cotidiano, percebendo-as como elementos relevantes na compreensão da dinâmica do operariado.

A fim de que possamos melhor esclarecer o exposto, tomemos a liberdade de retomar a discussão estabelecida sobre o momento em que os trabalhadores não encontravam serviços no Porto de Rio Grande - RS, porém desta vez a luz da entrevista que realizamos com Luiz Ama-ral. Semelhante à matéria do jornal de Pelotas, os trabalhadores que não moravam próximos ao Porto, por vezes também buscavam permanecer nas proximidades do Porto riograndino. Isto se dava, segundo o entre-vistado, por motivos diversos “as vezes não iam em casa por que não ti-nham dinheiro, ou vinham só com o dinheiro da passagem, né.”104; e essa dificuldade cotidiana, a qual nos referencia, também possibilitava que se criasse um hábito de circulação dos trabalhadores na região do Porto.

E nesta circulação, associada ao enfrentamento da precariedade do dia a dia, que compreendemos como um dos elementos possíveis de estabelecer as conexões de relações de trabalho, assim como de estraté-gias de grupo, uma vez que propiciavam fortalecimento das relações de amizades e de companheirismo:

“às vezes a convivência com o pessoal da área por-tuária, faziam ficar, né... e ai faziam a famosa cota: um compra uma galinha, outro compra um pouco de óleo, um compra um arroz, e ai faziam um rango

104 Entrevista realizada pelo autor em 23 de maio de 2016, com o Vice-Presidente do Sindicato dos arrumado-res Luiz Carlos Silva Amaral.

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ali, em determinado local da chamada ou na casa de algum e com isso foi se tornando esse vinculo de ficar na volta do Porto, né.”105

Em frente às dificuldades vividas, podemos perceber estas cotas como uma forma de organização que viabilizassem que, na medida em que cada um contribuía com o pouco que podia, estes grupos pudessem dispor de uma melhor alimentação enquanto aguardavam, na incerteza de novos serviços.

Esta convivência reforça nossas proposições, de que possuía im-pacto concreto na vida desses trabalhadores, na medida em que pode-mos dizer que estas redes influenciavam em pelo menos dois aspectos: podemos perceber através de Marlene Monteiro André (1998) que his-toricamente, no processo das chamadas, as relações de amizade pode-riam levar a regimes de preferência no processo de requisição de mão de obra; assim como para incorporar uma rede de comunicações, que compunha uma série de atores sociais, os quais poderiam informar sobre locais onde havia necessidades de contratação de mão de obra (SILVA, 2003, p. 136-137).

Desta forma, podemos perceber que o “ser um trabalhador por-tuário” não se reduz a mera execução das tarefas para as quais foram contratados, mas se insere em um universo maior que corresponde a relações de trabalhados, tanto dentro como fora do Porto.

Discutiremos apenas outro elemento constantemente destacado pela historiografia, o qual podemos relacionar com o trabalho avulso, que é a solidariedade. Vemos nela um elemento interessante a ser dis-cutido, por conta das incertezas cotidianas, a qual vemos como um dos fatores explicativos de algumas formas de organização dentro do Porto.

105 Entrevista realizada pelo autor em 23 de maio de 2016, com o Vice-Presidente do Sindicato dos arrumado-res Luiz Carlos Silva Amaral.

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Para Marlene Monteiro André (1998), a organização da expe-riência dos trabalhadores se dava no grupo devido à precariedade e di-ficuldade das situações que lhes eram postas em seu cotidiano. Diversas formas os trabalhadores elaboraram de se organizar e para que pudes-sem obter suas subsistências enquanto grupo. Uma, dentre muitas ques-tões que podemos destacar no centro de nossa discussão, é a de que os ganhos tinham que passar por todos. Lembramos que em um sistema de trabalho sazonal e avulso, a tendência é que muitos trabalhadores tives-sem que disputar por uma vaga, e neste processo muitos eram excluídos do mercado. Neste sentido, para a autora, estas organizações eram uma medida de resistência, ou seja, de ir contra a contradição inerente ao sis-tema e que minimizassem as disputas entre os trabalhadores. As formas de resistência, para Marlene Monteiro André (1998):

Para os trabalhadores flutuantes [...] possibilitou formas de aprendizado para criarem não só as con-dições objetivas e subjetivas de sua existência, mas, sobretudo, os potencializaram como sujeitos para se articularem no processo de correlação de forças sociais iniciado nos principais portos do país entre 1889 a 1920. (ANDRÉ, 1998, p. 51)

Fernando Teixeira da Silva (1995), quando trata sobre a solida-riedade em seu livro A carga e a culpa, corrobora com esta perspectiva, na medida em que à apresenta como uma das marcas das relações de trabalho a solidariedade como um valor chave (SILVA, 1995, p. 3). Em seu livro Operários sem Patrões, o autor também aprofunda esta questão na medida em que nos diz que este sistema potencializava aprendizados de formas de resistência coletiva, as quais estão ligadas a sobrevivência dos trabalhadores, a partir da formação dos grupos:

Assim, o estreitamento de relações de solidarie-dade era favorecido em grande parte pelo modelo de cooperação simples do processo de trabalho no

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qual as turmas de operários interagiam em um ci-clo operacional de atividades interdependentes. Os trabalhadores eram divididos em ternos, grupos que realizavam uma atividade de acordo com a natureza das mercadorias, do local e das condições de carga e descarga. (SILVA, 2003, p. 136)

Desta forma o sistema organizado por Ternos e em escala de ro-dizio, potencializava as relações de solidariedade a partir da distribuição dos serviços, e consequentemente dos ganhos. Podemos observar tam-bém, sob este viés, que a própria chamada não era apenas um espaço de disputa entre os trabalhadores, mas um momento de conversas, de en-contro entre amigos, ou seja, um ambiente que fortalecia a “capacidade de agirem coletivamente” (SILVA, 2003, p. 136). A pesquisa desenvolvi-da por Thiago Cedrez da Silva (2016), sobre os estivadores do Porto de Rio Grande, vem a corroborar com a perspectiva de Marlene Monteiro André (1998) e Fernando Teixeira da Silva (1995):

O sindicato passou a administrar a atuação dos estivadores sob a forma de rodízio, em equipes de trabalho, que eram denominadas “ternos”. Esse sistema permitia que todos os filiados pudessem trabalhar durante o mês, garantindo a segurança financeira. (SILVA, 2016, p. 63)

Aspecto também observado também no porto de Lisboa com a diferença que eles indicavam os trabalhadores, no entanto, o controle efetivo no local de trabalho ficava a cargo das empresas, sendo que os re-presentantes sindicais não possuíam, via legislação, o direito de atuarem como fiscais do trabalho dentro do ambiente portuário, o que faziam na flexibilização da norma. Portanto, estes sistemas de organização repre-sentam de forma objetiva na práxis, a forma com que os trabalhadores buscaram em lidar com as incertezas que o trabalho no Porto propor-cionou ao longo de décadas.

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Considerações Finais

Enfeixando este texto, convém observar a capacidade dos por-tuários em conseguir, ao longo das décadas de 50 e 60, estabelecer no-vas formas de resistência e solidariedades, mesmo em ambientes mar-cadamente autoritários. Digno de nota que os trabalhadores em suas atuações interagem com o tecido social das cidades estudadas, deixando reflexo de sua presença no cenário urbano.

Observando que nosso trabalho, assim como em Savage (2004), também se fundamenta em Thompson, o qual foi de grande importância para renovação da história do trabalho e social. Enfatizamos sua relevân-cia para nosso trabalho na medida em que Thompson pôs em perspecti-va os conflitos sociais e os costumes, e trazendo para o centro do debate historiográfico o protagonismo dos grupos a partir das experiências que os mesmos adquiriam ao longo de suas relações socio-históricas.

O já clássico “fazer-se” estão relacionados às experiências práti-cas que estes trabalhadores estabeleceram com o mundo que os cerca. Visto que, as contradições deste, as resistências, as formas de organiza-ções e ações estratégicas, são próprias deste ambiente portuário em nível Global em nosso entender. Desta forma, comungamos com Thompson (1981) na perspectiva de experiência a qual é considerada a partir do conjunto de fenômenos sociais, na qual os indivíduos estão inseridos, e dos quais participam no processo histórico. Portanto, é um mecanismo que condiciona os sujeitos nas práticas sociais, atuando de forma con-creta sobre suas vidas, a saber a formação portuária e sua relação com a cidade. A experiência coloca o individuo ou o grupo enquanto seres atuantes no meio social, visto que ela pressupõe que estes pensam e agem de forma dinâmica sob determinada realidade:

Esta abordagem dinamiza e flexibiliza a ideia de cultura operária, pois enfatiza as peculiaridades distintivas, ainda que não deixe de com-preendê-los enquanto categoria.

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[...] ao analisar a construção da identidade operá-ria em um determinado contexto e local, penso ser necessário levar em conta [...] os particularismos da esfera local com suas peculiaridades e desdobra-mentos e,[...] que essa construção identitária não ocorre de forma isolada, tanto no que diz respeito à sociedade na qual esta inserida o grupo de identi-dade quanto, em um contexto mais amplo, à época e aos acontecimentos nacionais e internacionais [...] (BILHÃO, 2008, p.11)

Nossa perspectiva foi enfocar a cultura operária, a partir do tra-balho portuário, pensando-a como um espaço de discussão, e dessa maneira percebendo e enfatizando as diferenças e aproximações dessa condição operaria em um nível Global. Ao contrário de pensá-la como sendo uma base comum que dá unidade a uma determinada sociedade, é imprescindível compreender a existência de conflitos e as diferenças fundamentais que a constitui na sociedade sem, no entanto, perder o referencial dos possíveis pontos de encontro.

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Luiz Carlos Silva Amaral. História do Sindicato dos Arrumadores de Rio Grande-RS. Rio Grande. 23/05/2016. Entrevista concedida a Elvis Silveira Simões e Edgar Ávila Gandra.

José Domingues, no Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfico e Conferentes Marítimos, LISBOA-PT, entrevista concedida a Edgar Avila Gandra em janeiro 2015.

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Parte II

Doenças, Instituições e Profissionais de Saúde no Brasil

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O PREVENTÓRIO EUNICE WEAVER – PARA OS FILHOS INDENES DOS LEPROSOS

CEARENSES: DISCIPLINA E ISOLAMENTO (1940-1970).

Zilda Maria Menezes Lima106*

Este ensaio tem por objetivo, estabelecer alguns níveis de com-preensão acerca da primeira e única instituição Preventorial do Ceará: o Preventório Eunice Weaver (criado para abrigar e educar filhos saudá-veis de leprosos, isolados compulsoriamente ou não nos leprosários cea-renses), no período situado entre 1940 e 1970. A partir de um conjunto de documentos e entre esses, os depoimentos de duas senhoras, filhas de leprosos, que em virtude da doença que acometeu seus pais, viveram infância e juventude segregadas na instituição acima citada. As práticas cotidianas da Instituição Preventorial narradas pelas duas senhoras, a quem chamarei D. Virgínia e Dona Célia (nomes fictícios), inserem-se grosso modo, na longa página das tentativas de profilaxia da endemia leprótica, forjadas pelos poderes e saberes da época, diante da impossibi-lidade de promover a cura da doença bem como na tentativa de proteger os filhos indenes dos leprosos.

Tentar desnudar a história e o cotidiano do Preventório Cearense Eunice Weaver a partir de um conjunto de um conjunto de fontes e entre elas - as reminiscências de quem viveu numa dessas instituições é com-

106 * Doutora em História Social (UFRJ). Professora Associada da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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preender que ao narrar, estão “fazendo referência ao passado e projetando imagens numa relação imbricada com a consciência de si mesmas”. Deste modo, entendo que as falas das duas senhoras podem possibilitar proble-matizar um tipo de experiência de segregação que é resultante e resultado de outra forma de isolamento, aquela advinda dos antigos leprosários e/ou colônias de leprosos, porém com suas especificidades.

Para a composição deste ensaio, foram realizadas duas entrevistas semi-abertas, enquadradas no formato metodológico da oralidade, clas-sificadas como “entrevistas temáticas” ou em outras palavras, “narrativas de memórias que oferecem elementos, informações, versões e interpre-tações sobre temas específicos”. Também lancei mão de documentos oficiais do Ministério da Educação e Saúde (MES), do Serviço de Pro-filaxia da Lepra (SPL) e da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra (FSALeDCL) .

No que concerne ao aporte teórico-metodológico, aproprio-me das palavras de Eclea Bosi. Disse a autora: “não pretendi escrever uma obra sobre memória nem uma obra sobre velhice. Colhi memórias de velhos. Fiquei na intersecção dessas realidades”. Assim, do mesmo modo, também me situo na fronteira da tênue linha apontada por Bosi: colhi memórias de velhas senhoras sobre uma temática específica, compreen-dendo que elas estão inseridas numa teia social muito singular e são protagonistas – neste caso, de uma dolorosa história: tanto por herança social como por descendência.

A LEPRA NO CEARÁ

A lepra, hoje hanseníase é uma das doenças mais antigas que aco-metem a humanidade. Citada no texto bíblico como doença da impure-za e do pecado, cobriu de estigma os seus portadores durante os séculos. As hipóteses acerca do surgimento da endemia leprótica no Brasil e no

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Ceará são várias e não comportam neste ensaio, no entanto, a maioria dos estudiosos credita a inserção desta enfermidade no país aos colo-nizadores estrangeiros. Porém, no Ceará, é o Dr. Guilherme Studart, o Barão de Studart, quem vai apontar os primeiros casos de lepra nos últimos anos do século XIX em minucioso estudo .

A década de 1920 vai marcar, efetivamente, a constituição de um aparato em saúde pública no Brasil. O Código Sanitário de 1920 possi-bilitou ao Governo Federal maior intervenção no âmbito dos estados da Federação, com o objetivo de tentar estabelecer uma agenda mínima de Saúde Pública, na perspectiva de combater as endemias e epidemias que grassavam, principalmente, nos rincões mais distantes do país.

No caso do Ceará, a instauração dos primeiros aparatos em saúde pública é lenta e ocorre vinculada à agenda do governo federal. A moro-sidade em parte, credita-se à ausência de interesse das elites que gover-navam o Estado na saúde da maioria. Por outro lado, as práticas médi-cos-científicas nesse período, não haviam conquistado completamente a confiança do cearense comum, ainda habituado a recorrer à medicina popular. Não é possível também desconsiderar, certa rede de filantropia existente na cidade de Fortaleza que sob alguns aspectos, desenvolvia algumas práticas de saúde junto aos menos favorecidos.

Quando surgem nos jornais cearenses as primeiras notícias sobre uma possível epidemia de lepra em Fortaleza, a população foi tomada pelo pânico. Era comum, nos primeiros anos da década de 1920, um grande número de notícias em que a imprensa denunciava com gran-de alarde, a presença de leprosos a “desfilar suas chagas pelas artérias centrais da cidade, em completa promiscuidade com a população sã”. Pululavam na imprensa cartas da população, supostamente, exigindo das autoridades competentes ações que coibissem o transitar dos leprosos andrajosos em meio à sociedade “civilizada”.

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Depois de algumas tentativas frustradas que objetivavam impro-visar abrigos para leprosos nos arredores de Fortaleza, ficou claro para os médicos e higienistas cearenses e para os poderes constituídos, que a única solução viável para este grave problema que a todos assombrava indistintamente, era a construção de um abrigo definitivo para os doen-tes de lepra, afastado da capital e das pessoas indenes.

É necessário informar que nos primeiros anos do século XX, não havia em Fortaleza, atividades sistemáticas de combate à lepra. Porém, em 1918, o Dr. Carlos da Costa Ribeiro, compareceu a I Conferência Sul Americana de Dermatologia e Sifilografia e comunicou um plano de combate à lepra no Ceará, organizado pela Inspetoria de Higiene do Estado. Segundo Dr. Carlos Ribeiro, tal plano consistia no “isolamento domiciliar dos abastados”, que seria rigorosamente observado, mediante as normas da Diretoria Geral de Higiene. Consoante a estatística dos enfermos de lepra no Ceará apresentada pelo médico, apenas 4% dos doentes seria contemplado pelo citado Plano.

Em 1926, o Serviço de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas, através do Dispensário Oswaldo Cruz, divulgou os resultados de um censo realizado entre 1920 e 1926, cujo intento era identificar o número de doentes no estado do Ceará. Foram 26 municípios pesquisados e detectados 276 doentes entre capital e interior. É valido enfatizar que a cada censo realizado o número de enfermos crescia e a solução encon-trada pelos poderes oficiais, amplamente apoiados pelas elites fortale-zenses, e mais ainda pelos saberes médicos, foi indubitavelmente aquela do isolamento compulsório.

A 1º. de agosto de 1928, foi inaugurada a primeira instituição ofi-cial do Ceará cujo objetivo era abrigar os lázaros: o Leprosário da Ca-nafístula, assim chamado em virtude do local que foi escolhido para sua edificação, no Distrito da Canafístula, em Redenção, à 82 km de Fortale-za. É forçoso destacar que durante oito anos, vários grupos filantrópicos

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ligados à Igreja Católica, desenvolveram inúmeras campanhas cuja inten-ção era arrecadar verbas para sua edificação. Tais campanhas consistiam na realização de bailes, rifas, espetáculos de teatro, chás beneficentes entre outros, cuja renda era destinada à construção da Leprosaria. O recolhi-mento de doações em domicílio foi outra estratégia muito utilizada pelos organizadores das campanhas. Após sua edificação e inauguração, foram intensificadas as campanhas filantrópicas que o mantiveram e continua-ram mantendo-o exclusivamente até a década de 1930, quando final-mente o leprosário passou a receber subsídios tanto dos poderes estaduais como federais, embora estes não fossem suficientes para sua manutenção.

Pátio Interno da Colônia Antônio Diogo, hoje Centro de Convivência Antônio Diogo. Foto dos meus arquivos pessoais.

Logo após a inauguração do Leprosário, ficou evidente a necessi-dade de um local onde os filhos sadios dos leprosos pudessem estar a salvo do contágio. Se a principal medida profilática era isolamento compulsório com o objetivo de proteger a sociedade da terrível lepra, como permitir que os filhos, permanecendo próximo aos pais, contraíssem a doença?

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OS PREVENTÓRIOS

O Preventório foi uma instituição integrada, ao processo de com-bate ao Mal de Hansen e na tripeça profilática, ele se apresentava com um encanto todo especial. No fundo de um quadro escuro de sofri-mentos, ele projetava uma nova luz de esperança para muitas e mui-tas criaturas sobre as quais pesava uma amargurante condenação. Na realidade da grande tragédia que dissolveu o lar, que distanciou pais e filhos, a ação benemérita do Preventório e seu destacado papel na formação educacional dos menores, preparava os para o futuro que não será o mesmo dos genitores”. O Preventório concederia aos pais doentes a restauração da sua tranqüilidade, afastando os infindos temores sobre a sorte da sua prole.

Os Preventórios eram instituições destinadas a acolher, man-ter, educar e instruir menores sadios, filhos e conviventes de doentes de lepra, desde que estes não tivessem parentes idôneos que quisessem assumir esse encargo e que dispusessem de recursos para educá-los e mantê-los sob vigilância das autoridades sanitárias competentes. Tais instituições, criadas e mantidas inicialmente por sociedades filantrópi-cas independentes, foram, principalmente após os anos 1930, agrega-das pelas Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa e Combate a Lepra (SAL&DCL), já presentes em todas as capitais do país e em algumas grandes cidades no período em tela.

Em princípios da década de 1940, havia no Brasil vinte e sete (27) Preventórios, totalizando 1.852 crianças isoladas dos seus pais, fa-mília e sociedade em geral. Para a instalação de Preventórios pelo país, representantes da FSAL&DCL visitavam as principais cidades de cada estado e encetavam uma campanha, objetivando envolver a sociedade na “batalha contra o grande mal”. Instituições como a Igreja Católica, sociedades e associações em geral eram convidadas a participar da “luta”. Assim, por volta de 1945, todos os estados possuíam um Preventório,

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com exceção de Minas Gerais (quatro), São Paulo (dois) e Pará (tam-bém dois) .

Ainda no início da década de 1940, surge uma legislação especí-fica no sentido de nortear a prática já existente do isolamento dos filhos saudáveis dos lázaros. O Regulamento dos Preventórios para Filhos de Lá-zaros instalados no Brasil, organizado pela Comissão Técnica e Diretoria da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros, aprovado em 27 de janeiro de 1941, pelo Exmo. Sr. Dr. Samuel Libânio, Diretor Ge-ral Interino do Departamento Nacional de Saúde. Publicado no Diário Oficial de 13 de Março de 1941, no seu artigo Primeiro esclarecia que:

Todas as crianças nascidas nos leprosários serão admitidas nos Preventórios, acompanhados de uma guia dos diretores daqueles estabelecimentos e uma ficha com todas as indicações referentes às mesmas e também a seus país e parentes doentes, tão com-pleta possível, especialmente das mães, indicando a forma da moléstia, o decurso da gravidez, etc .

O Artigo 4º do Regulamento enfatizava que a ordem de preferência na admissão dos menores nos Preventórios era a seguinte: a) os nascidos nos leprosários, b) os que se acharem em focos que ofereçam maior perigo de contágio, c) os mais necessitados, por falta absoluta de recursos ou as-sistência, d) os de mais tenra idade, e) os que não possam ser submetidos à vigilância adequada. Em Fortaleza, desde a inauguração do Leprosário Antônio Diogo, imprensa veiculava a necessidade urgente de isolar os filhos indenes dos leprosos, segregados com os pais nesta instituição. Po-rém, um espaço destinado aos filhos sadios dos doentes de lepra, a Creche Souza Araújo, foi instituída somente dois anos depois, em 23 de maio de 1930, também como parte das medidas de isolamento compulsório.

A creche, edificada em quadrilátero cuja construção obedeceu aos rigorosos e indispensáveis preceitos higiênicos, mede 19 metros de frente e 33 de fun-

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dos. É amplamente ventilada e varrida de luz solar. De um lado fica o gabinete da administração e do outro, a residência das irmãs que vão administrá-la.

A instituição, no entanto, recebia e mantinha apenas os bebês nascidos no Leprosário Antônio Diogo. Destarte, as crianças maiores deveriam, em tese, ficar com avós ou parentes próximos. Porém, em muitos casos, os familiares não queriam (ou não podiam) responsabili-zar-se por essas crianças, que via de regra, permaneciam com os pais no Leprosário. Somente no início da década de 1940, com a inauguração do Preventório Eunice Weaver, o problema do abrigo aos filhos indenes dos leprosos no Ceará foi “solucionado”.

Assim, a admissão das crianças no Preventório na sua grande maioria, ocorria com base item a do Artigo 4º, já citado. Havia uma grande preocupação por parte dos médicos e higienistas da época com as crianças que nasciam nos leprosários. Apesar da tese da hereditarie-dade da doença não mais encontrar defensores nesse momento entre os especialistas, a preocupação de todos era a possibilidade do contágio. Porém, a partir da documentação oficial e também das falas das duas ex--internas do Preventório Eunice Weaver, é possível estabelecer alguns níveis de compreensão acerca do cotidiano dessa instituição. Dona Vir-gínia e Dona Célia são testemunhos da rede de solidariedade construída entre essas crianças, “órfãs de pais vivos” e onde todos de algum modo se consideravam “irmãos de sina”.

O PREVENTÓRIO EUNICE WEAVER

O Preventório Cearense Eunice Weaver iniciou suas atividades em 22 de novembro de 1942, após a inauguração da Colônia de Leprosos Modelo do Ceará: a Colônia António Justa em 1941. Segundo uma das narrado-ras, o Preventório cearense, possuía três pavilhões com vários dormitórios para meninas e mais três com dormitórios para meninos. Contava com

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amplo refeitório, cozinha, enfermaria, consultório odontológico, farmácia e ainda creche para os recém-nascidos. Quando as crianças chegavam ao Preventório, não eram colocadas imediatamente com as demais. Eram dirigidas, inicialmente, para uma espécie de pavilhão de desinfecção onde permaneciam em quarentena. Depois que fossem consideradas indenes, aí sim, eram colocadas com as demais de acordo com a idade .

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O cotidiano do Preventório era dividido da seguinte forma: às cinco da manhã, as crianças eram enviadas à capela. Após as orações, faziam a primeira refeição do dia. Depois da refeição as crianças eram divididas em duas turmas: aquelas que iam às aulas e as que iam realizar tarefas domésticas posto que fossem as crianças que as realizavam. Após o almoço, havia uma alternância de tarefas. Os que tinham ido às aulas, iam agora realizar as atividades necessárias para manter o funcionamen-to do Preventório.

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As tarefas realizadas pelas crianças, na Instituição, variavam con-forme escala estabelecida pela Diretora. Um sistema de “rodízio” situava as crianças às vezes no trabalho da copa, outras na arrumação dos dormi-tórios, lavando roupas e havia aquelas que trabalhavam permanentemen-te da cozinha, segundo uma das entrevistadas, aquelas que não tinham muito “pendor para os estudos”. Para a outra, porém, as que realizavam as tarefas da cozinha eram aquelas que “caiam em desgraça com a diretora”.

Nos Preventórios de modo geral, era garantida a educação bási-ca às crianças: ler, escrever, realizar as operações matemáticas básicas. Aquelas que se destacassem e mostrassem “um natural talento para as letras” eram incentivadas, pelos professores principalmente, a prosseguir estudando. Uma boa parte dessas crianças chegava a cursar o equivalen-te ao ensino médio. Nestes casos, saiam para estudar fora dos muros do Preventório.

A equipe de administração do Preventório Cearense era com-posta de uma Diretora e, aproximadamente, seis Inspetoras para cerca de 300 crianças nos anos 1950. As Inspetoras tinham como função, o “acompanhamento” das crianças nas suas várias atividades. Na verdade, no âmbito da instituição, tais funcionárias representavam “os olhos e ouvidos” da Diretoria e eram responsáveis pela disciplina e ordem na instituição. Mantinham permanente vigilância sobre as crianças, tanto nos raros momentos de lazer, bem como nos afazeres em geral .

É perceptível na fala das entrevistadas, dois tipos de sentimentos ao evocarem o tempo em que viviam no Preventório: a saudade da rede de relações que os internos estabeleciam entre si: as brincadeiras, as raras ocasiões de festas, o amor às professoras bem como revolta/amargura, por não possuírem uma estrutura familiar e uma casa, por exemplo. As que eram levadas com mais idade ao Preventório, sentiam muitas sauda-des da vida anterior com seus pais e irmãos e geralmente, tinham mais dificuldades de adaptação à rotina rígida da instituição.

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É importante esclarecer ainda que segundo o artigo 6º. do Re-gulamento, os internados “ darão baixa ou sairão dos Preventórios por: a) falecimento, b) doença de lepra, c) limite de idade estabelecido pelo regulamento, d) vantajosa colocação ou casamento, e) existência de pa-rentes ou solicitação de pessoas estranhas reconhecidamente sadios e idoneidade moral e capacidade financeira para mantê-los e educá-los e ainda com o compromisso de sujeita-los à vigilância das autoridades sanitárias competentes, e) contumaz indisciplina ou inveterados maus hábitos, tratando-se de internados maiores de 15 anos e que tenham resistido a todos os meios de correção permitidos.

Porém, as narradoras, não era fácil deixar o Preventório mesmo após o limite de idade estabelecido por lei. E por várias razões. Segundo as mesmas, a razão mais comum era o fato do Preventório depender em muitos casos, do auxílio físico e intelectual das próprias internas. Aque-las que se tornavam professoras ministravam aulas para as crianças me-nores na instituição e as que não haviam conseguido estudar, realizavam (com a ajuda das crianças de menor idade) os trabalhos domésticos. Por outro lado, afirmaram que, era praticamente impossível conseguir um casamento “vantajoso” morando numa instituição que abrigava filhos de leprosos. Além do preconceito, elas também não participavam de atividades sociais fora do Preventório. Por estes e outros motivos, muitas fugiam às escondidas, na calada da noite, em busca de um futuro melhor e principalmente, fugiam porque queriam formar a família que lhes fora negada na infância.

Na minha compreensão, outra razão pode ser apontada para a di-ficuldade em deixar o Preventório além daquelas enfatizadas por minhas recordadoras. Para muitas, principalmente aquelas que não estudaram para conseguir alguma colocação vantajosa ou não, deixar o Preventório significava ser responsável por si, cuidar sozinha da própria vida. Acredi-to que muitas não vislumbravam tal possibilidade. Por outro lado, como afirmaram as entrevistadas, algumas conseguiram ser promovidas a ins-

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petoras e estavam satisfeitas vivendo ali. Umas porque se afeiçoavam às crianças que chegavam a cada ano e outras porque desenvolveram certo prazer naquela “função de autoridade”. Porém, as fugas eram comuns e na maioria das vezes, sem volta.

Na perspectiva dos poderes e saberes do período, o Preventório cumpriu uma importante finalidade na campanha de profilaxia contra a lepra. Neste sentido, o governo federal concedeu verbas consideráveis para a construção e instalação dessas instituições fazendo uso do seguin-te discurso:

Após vários anos de esforço porfiado se pode afir-mar, hoje, que a obra preventorial no Brasil constitui uma das grandes realizações da campanha contra a lepra. Este esforço despendido pode ser interpretado pelas cifras empregadas nesta empreitada. Construí-dos e instalados pela União com o auxilio benfazejo de uma plêiade de Sras. Brasileiras que se dedicam, demonstrando patriótico e humanitário interesse pela cruzada anti-hanseniana, aí estão pouco mais dois milhares de crianças assistidas pela mão carido-sa que as arrancou do foco perigoso e que as afaga no novo lar que lhes foram preparados e indica um ca-minho novo que deverão seguir para se reabilitarem perante a sociedade, viveram sadias e felizes.

Como é possível observar pelo fragmento, acima os poderes ins-tituídos defendiam o isolamento compulsório como a forma por exce-lência de combate à lepra. No entanto, verifiquei nos anos posteriores, um aumento considerável do número de enfermos, provando que isolar somente não resolvia o problema. Porém, somente na década de 1970, com a medicação eficaz para a cura, os leprosos começam a ter alta dos leprosários e consequentemente, houve maior flexibilidade na política das “baixas” dos preventórios ou em outras palavras, houve o entendi-mento que não mais havia razão para manter os Preventórios .

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‘Notas de fim’

1. Na cidade de Maranguape, pequena cidade serrana, situada a aproximadamente 30 km de Fortaleza, estava situada o Proventório Eunice Weaver.

2. ALBERTI, Verena. Ouvir, contar textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

3. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral: memória, tempos, identi-dades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

4. Esses documentos estão disponibilizados nos Arquivos Capanema-CPDOC/FGV, Rio de Janeiro.

5. (BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979.

6. O médico Guilherme Studart, o Barão de Studart, publicou na Revista da Aca-demia Cearense, por volta de 1897, um longo estudo abordando o que nomeou de os primeiros 32 casos de lepra em Fortaleza. No citado artigo, o médico analisa as formas da enfermidade bem como a origem social dos doentes, sexo, raça, idade, ocupação profissional.

7. LIMA, Zilda Maria Menezes. Uma enfermidade à flor da pele: a lepra em Forta-leza (1936-1942). Fortaleza: Museu do Ceará-SECULT, 2009.

8. Jornal O Nordeste. Fortaleza, 20 de Julho de 1923, p.2.9. Duas foram às tentativas infrutíferas de isolar provisoriamente os leprosos forta-

lezenses, porém, ambos os locais destinados a tal fim, eram espaços de isolamentos informais, sem normas ou estrutura que pudesse manter os doentes.

10. A Conferência Sul-Americana de Dermatologia e Sifilografia ocorreu na então capital federal, Rio de Janeiro, em 1918.

11. O citado plano do Dr. Carlos Ribeiro consistia no isolamento domiciliar dos doen-tes abastados, a realização de um censo de leprosos no estado bem como o exame dos suspeitos nos 84 municípios cearenses.

12. A Liga das Senhoras Católicas mapeou a cidade de Fortaleza, dividiram-se em grupos, e saíram de porta em porta com o objetivo de arrecadar fundos para a construção do leprosário.

13. Documento do Ministério da Educação e Saúde, Departamento Nacional de Saú-de: A Assistência Preventorial na Campanha contra a Lepra no Brasil. Serviço de Profilaxia da Lepra, 1943. Rio de Janeiro: Arquivos Capanema-CPDOC/FGV

14. Uma campanha de Solidariedade Humana e Interesse Nacional: Preventórios do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. Arquivos Capanema. CPDOC/ Fundação Getúlio Vargas.

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15. Regulamento dos Preventórios para Filhos de Lázaros instalados no Brasil. Fede-ração das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Serviço Nacional da Lepra. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro: 1942. Arqui-vos Capanema-CPDOC/FGV

16. Jornal O Nordeste, Fortaleza: 1930 p 04.17. Depoimento de Dona Virgínia, 66 anos, em 11 de maio de 2015. Dona Virgínia

foi levada ao Preventório com três anos de idade, em 1943, em virtude da doença de sua mãe e do abandono do pai.

18. Posteriormente, o termo Preventório foi substituído por Educandário no sentido de minimizar o estígma ligado à doença, os doentes e seus descendentes.

19. Depoimento de Dona Célia, 68 anos, em 11 de maio de 2015. Dona Célia foi levada ao Preventório por seu pai, diagnosticado como leproso. Sua mãe não tinha como manter a ela e a irmã.

20. Depoimento de Dona Célia, em 11 de maio de 2015. 21. Depoimento de Dona Virgínia, dia 25 de novembro de 2015, 17hs, na sua resi-

dência.22. Regulamento de Preventórios para filhos de lázaros instalados no Brasil. P. 13/14.

Arquivos Capanema – CPDOC/FGV, Rio de Janeiro.23. A Assistência Preventorial na Campanha contra Lepra no Brasil, p 04. Arquivos

Capanema – CPDOC/FGV, Rio de Janeiro.

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A DOENÇA DE CHAGAS NUM PRINCÍPIO DE DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR:

UMA POSSIBILIDADE DE SUPERAR OS MONÓLOGOS CIENTÍFICOS.

Gisafran Nazareno Mota Jucá107

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES:

A troca de opiniões, os debates acadêmicos, são algumas das pers-pectivas de melhor compreender o processo histórico em suas diferen-tes versões. Um tema escolhido, para elaboração de uma produção do conhecimento, se afigura como algo mais do que um campo delimitado, com rígidas fronteiras. Qualquer que seja a sua denominação ou o seu conteúdo, a primeira preocupação de quem dele trata é deixar explícita a área de conhecimento indicada.

Assim, na trilha histórica do saber acadêmico, o peso definidor dos espaços ocupados e produzidos constitui uma herança bendita, do legado positivista, sempre malvisto. Por mais que seja condenada, a força do pensamento positivista foi significativa na definição de cada campo do conhecimento científico. O significado simbólico do século XIX, em diferentes áreas do saber, é reconhecido como mais promissor do que “o medonho século vinte” (RICOEUR, 2002, p.32).

107 Professor Titular do Curso de História da Universidade Estadual do Ceará, e do Mestrado Acadêmico em História, (MAHIS), (UECE) e Professor da Pós-Graduação em Educação, na Linha Temática História da Edu-cação Comparada, da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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O problema é que, na prática, os limites propostos e/ou impos-tos pelo legado positivista persistem nas práticas acadêmicas, através da manutenção das rígidas fronteiras em cada campo do conhecimento, apesar dos discursos em contrário. “Uma história brasileira das doenças” (FRANCO;NASCIMENTO;SILVEIRA,2015) constitui uma revela-ção do avanço da produção acadêmica, no campo da história, numa de-monstração explícita de que as enfermidades não são temas de interesse exclusivo dos profissionais da saúde. Mesmo com a ampliação dessa área de pesquisa, o hiato entre profissionais da saúde e historiadores ainda é visível entre nós.

A composição de mesa redonda, trazendo ao diálogo um repre-sentante da área médica tem um significado revelador da troca de ex-periências e olhares no setor acadêmico. Não é nosso intuito discorrer, ao longo desta nossa exposição, sobre a validade ou não do conceito de “transdisciplinaridade,”na busca de uma “inteligência coletiva,”. O impor-tante é reconhecer o mérito do seu alcance, demonstrado pelos que a ela se dedicam, pois “a experiência da transdisciplinaridade exigirá a reinvenção das atividades científicas e intelectuais” (DOMINGUES, 2005, p.27). Mais do que a defesa de um especialista disciplinar, nosso objetivo, nesta mesa redonda, “Apontamentos Sobre a Doença de Chagas no Ceará, ” é saber ouvir para melhor aprender com os especialistas da saúde e das doenças.

A Doença de Chagas, na sua denominação e no seu histórico, se nos apresenta como uma temática transdisciplinar, que requer uma aproximação espontânea e contínua de pesquisadores, de diferentes áreas, decididos a romper com as rígidas barreiras acadêmicas. A pre-sença da Professora Doutora Maria de Fátima Oliveira, da UFC, muito representa, para nós, pois nos possibilita tornar realidade um velho an-seio até hoje mais discursivo do que prático.

Assim, a composição desta mesa redonda expressa o alcance desse viés transdisciplinar e mesmo o envolvimento de dois profissionais de

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uma mesma área, como é o nosso caso, meu e da Zilda, representa uma oportunidade de abrir o leque demonstrativo de práticas metodológi-cas diferenciadas, mas interligadas, afinal a proposta de nosso estudo apresenta como realce uma modalidade diferenciada de coleta de in-formações. Enquanto os dados coletados, pela colega, são extraídos de órgãos oficiais e de outras fontes documentais, no campo da saúde local, as nossas fontes não são tão formais, pois elas revelam o valor de uma característica específica da história oral, como opção metodológica, que garante aos agentes envolvidos com a doença de Chagas a possibilidade de expressar espontaneamente as suas opiniões, acerca de experiências cotidianas. É como se costuma afirmar a respeito dos depoimentos orais, eles são fontes especiais, fontes que falam, dialogam e muitas vezes con-testam o que lhes é apresentado como informação consagrada.

DE UM RECONHECIMENTO CIENTÍFICO AOS SEUS SIG-NOS E SIGNIFICADOS:

O trabalho pioneiro, no histórico da Doença de Chagas, do nosso conhecimento, foi o da Professora Simone Petraglia Kropf (2009), da coleção história e saúde, da Fundação Carlos Chagas, que remete o leitor ao longo trajeto da moléstia, no Brasil, desde as primeiras décadas até os anos sessenta, do século passado. As questões básicas, por ela levantadas, giram em torno do enlace entre a ciência e “o mal de Chagas,”o seu reconhecimento como um problema de saúde pública, enfatizando-a como um “produto da história.”(CAMPOS in KROPF,2009.p.10). E se ela é um produto da história, mais abrangente se revela o seu históri-co, permitindo aos profissionais da saúde e aos pesquisadores da saúde e das doenças a abertura de novas vias de estudo, que nos remetem ao cruzamento de experiências inseridas no local, no regional, no nacional, e num contexto bem mais abrangente, numa sociedade denominada “... sociedade líquido-moderna de consumidores” (BAUMAN, 2009,p.63).

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Outra publicação, que nos permitiu uma melhor compreensão do histórico dessa doença, a nível nacional, foi o da Dra. Rachel Lewin-sohn, (2003, p. 189-297).O estudo constitui apenas um capítulo de li-vro, mas a análise apresentada, embora sintética, nos faz compreender as ações e contradições, que envolvem o seu histórico, ficando patente que

É importante não esquecer que a doença de Chagas é essencialmente uma moléstia da pobreza (embora não mais exclusivamente dela, dada a facilidade da transmissão transfusional) e que o desenvolvimento de quimioterápicos e profiláticos depende de estudos cada vez mais demorados e de investimentos cada vez mais volumosos. (LEWINNSOHN, 2003, p. 277)

No mundo globalizado onde tudo se transforma em mercado-ria, ela não é reconhecida apenas como uma questão exclusiva de pro-fissionais da saúde, mas se projeta como um problema social, com sua acentuada contradição, tornando-se configurada como uma daquelas enfermidades que se apresenta na modalidade de um mercado pouco promissor para a indústria farmacêutica. Assim, ela se agrava a cada dia e a omissão dos governos se acentua, apesar dos discursos otimistas, fican-do patente, mais uma vez, o senso de irresponsabilidade social, revelado em diferentes espaços sociais e entidades assistenciais, em nosso país.

Nessa perspectiva, as ações e contradições sociais se imbricam, de forma cada vez mais acentuada e as manchetes em revistas e jornais re-velam o impacto crescente e o pesado ônus social, que constitui o campo da saúde, apesar da indicação das determinantes do velho dilema não constituir um enigma. Para os pneumologistas Dr. Marcelo Alcantara Holanda, professor associado de Medicina da Universidade Federal do Ceará e para o Dr. Plínio Câmara, médico, no Sistema de Saúde Públi-ca, há “três categorias de atores,” envolvendo a população, os profissio-nais de saúde e o governo e “As três [categorias] se acham insatisfeitas com o atual sistema.” (Fortaleza, O Povo, 02 jan. 2016, p. 9.)

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Os artigos persistem nos diários locais como reconheci-mento da necessidade de uma discussão ampla sobre um novo modelo de assistência à saúde, mas a cada dia vivido, novos desa-fios à vida humana se projetam e permanecem à beira das solu-ções. A Para o conhecido literato e médico, Dr. Ronaldo Correia de Brito,

O Chefe do serviço, onde trabalho [no Recife] con-fessa sua preocupação com os pacientes idosos. A espera por cirurgia ultrapassa as três semanas. Fal-ta material: parafusos, hastes, etc... Os laboratórios não recebem pagamento e não reabastecem as cai-xas, nos blocos cirúrgicos. Os velhinhos esperam a resolução do impasse. Acamados, desenvolvem es-caras de decúbito, infecção respiratória e urinária, insuficiência renal, agravam as doenças cardíacas e o diabetes. Perdem as condições clínicas para a cirur-gia. São tratados das complicações e não do trauma que provocou o internamento. Deixam de ser ope-rados, ou, quando se operam fora de prazo, morrem. (Fortaleza, 31 jan. 2016, p. 28)

Reconhece-se “a multiplicidade de crises”, com destaque na saúde e “No esgoto, vamos adoecer todos. Hoje, além de dengue, a zika atinge drasticamente a saúde das crianças nordestinas acometidas da microce-falia. Tragédia” (Fortaleza, 24 jan. 2016, p. 17). Em pleno carnaval, na primeira página de um jornal local, maior do que o destaque às come-morações carnavalescas é a seguinte manchete: “ZikaVirus. Cientistas estudam riscos de transmissão por urina e saliva. ONU sugere Liberação do Aborto Em Países Afetados”. Nas páginas seguintes, a questão da saúde, no Ceará, assim é indicada: “DUI! O médico Roberto da Justa deixou o cargo de diretor do Hospital São José por questões particulares, mas, segundo servidores, por enfrentar problemas de caixa. A médica Tânia Mara deve ocupar a vaga.” E na terceira página a definição das condições dos órgão estaduais é mais impactante: “Saúde. A Defenso-

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ria Pública da União no Ceará (DPU) aciona Estado,após anúncio de fechamento de UTIs.Após ofício comunicando bloqueio de seis leitos de UTI,no Hospital Geral Dr. César Cals, A DPU entrou na Justiça.” (Fortaleza,O Povo, 06 fev. 2016, p. 1,2 e 3).

Até nas propagandas profissionais o drama se propaga. Na Revis-ta Carta Capital, em duas páginas se apresenta um protesto contunden-te: na primeira quatro fotos demonstrativas do caos nos serviços assis-tenciais com a seguinte manchete “De Um Lado, Falta Quase Tudo” e na página seguinte o protesto do Conselho Federal de Medicina (CFM) e dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs),com a seguinte men-sagem: “Do Outro, Sobra Dedicação E Luta Pela Sua Saúde”.

A ação redentora do Estado e dos Funcionários Públicos, fruto do senso moral dos pensadores iluministas, foi tragada pelo ímpeto co-mercial da decantada pós-modernidade? Ou esse conceito, genérico e contraditório foi superado pela comercialização do saber e do poder, que agrava ainda mais o serviço de assistência e saúde pública, em diferentes espaços, “sem fronteiras”? Que o problema não é apenas local ou regio-nal, ninguém duvida. Para os mais críticos, é o caos de um túnel sem saí-da, definido como a “A Grande Degeneração” (FERGUESON, 2013).

Se observarmos o panorama atual da globalização, com um senso crítico aguçado, as indagações suplantam as possíveis soluções, especial-mente se o panorama visualizado for o do Ceará de hoje, mas para quem reconhece a luminosidade do olho clínico da história, por mais pesados que sejam os impasses sofridos, as crises não constituem um ponto final no processo civilizatório, mas elas representam um desafio, o ponto de partida de novas proposições em busca do “tempo perdido”. Foucault, endossando o valor do senso crítico de Nietzsche, já enfatizara: “o sen-tido histórico está muito mais próximo da medicina do que da filosofia, (...) [A história] deve ser a ciência dos remédios.” (FOUCAULT apud DREYFUS e RABINOW, p. 265).

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Embora pareça atemporal, a “alteridade” ainda é reconhecida como um pressuposto importante na condução de um comportamen-to profissional responsável, na área da saúde, apesar de cada vez mais o saber científico ser induzido e ameaçado pelos valores de mercado. Nessa possível saída do impacto brutal do mercantilismo, a ação de uma medicina social ainda se afigura como uma possibilidade de melhor en-frentar os impactos brutais da propagação de doenças e moléstias, que persistem em demonstrar a fragilidade do racionalismo como farol úni-co do avanço social e econômico de uma almejada civilização. E nesse desafio a ação dos órgãos governamentais deve ser considerada como indispensável ao enfrentamento das contradições contínuas, que sempre se manifestam em diferentes espaços sociais. Para quem é um profissio-nal no campo da psiquiatria,

Os direitos humanos e ordenamento social deman-dam dela [alteridade].Ela está em mãos dadas com a ética no regular dos nossos ímpetos dominadores e de repreensão.Ela é uma mistura de divino e filosó-fico.Mais do que palavra,a alteridade é a essência do viver,pois, sem ela, não viveremos,mas,sim,nos ex-terminaremos.A sua construção, o seu significado e a sua importância são de responsabilidade de todos. (BARROS, Fortaleza,O Povo, 25 jan. 2016, p. 13).

E essa alteridade, voltada a uma assistência médica com respon-sabilidade social, foi revelada nos primeiros passos de nossa pesquisa, de acordo com os depoimentos coletados, de pessoas atingidas pela temida doença de Chagas. Como era de se esperar, a nossa expectativa é que os depoimentos de pessoas atingidas pela doença de Chagas fossem pesa-dos, reveladores do impasse dos sintomas sentidos e das barreiras im-postas aos atingidos pela doença, em virtude da fragilidade de assistên-cia médica dos órgãos públicos. Entretanto, as três primeiras entrevistas realizadas, com pessoas atingidas pela doença, aqui em Fortaleza, como

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ponto de partida de nossa pesquisa, nos trouxeram outras revelações, bem diferentes daquelas que imaginávamos encontrar. Situações como essa, cada vez mais me convencem do valor do uso da história oral como um recurso metodológico mais revelador. Entrevistas não constituem um simples complemento dos documentos provenientes de órgãos pú-blicos ou de Relatórios Oficiais. Além de dar vez e voz, aos silenciados na história oficial, ela nos fornece dados e conteúdos muitas vezes des-considerados, ou melhor, não revelados, mas representativos de situações cotidianas, indispensáveis a uma criteriosa avaliação das condições da Saúde Pública, em diferentes espaços sociais.

A proposta de entrevistas a serem realizadas, no caso da Doen-ça de Chagas, tem por base uma experiência anterior, cujos resultados consideramos significativos, quando do estudo da Hanseníase no Ceará (2016), sob nossa responsabilidade. Elencamos três categorias de pes-soas entrevistadas: os profissionais da saúde - médicos, enfermeiros, au-xiliares de enfermagem -, os Hansenianos, das Ex-Colônias, de Antônio Diogo/Redenção e de Antônio Justa/Ce e os filhos de Hansenianos, em sua maioria ex-internos do Educandário Eunice Weaver, em Maran-guape/Ce.

À medida que as entrevistas foram sendo realizadas, as informa-ções coletadas se complementavam e essa divisão em três categorias dei-xava claro o seu resultado positivo. Entretanto, uma questão ficou explí-cita, desde a fase inicial das entrevistas, a importância e significância dos depoimentos dos hansenianos, cujo conteúdo não representava apenas uma função secundária, com informações complementares, mas a reve-lação de testemunhos de um significado maior, uma vez que em muitas ocasiões, o que eles diziam e indicavam revelava algo mais do que o esperado ou o conhecido, com a indicação de situações peculiares e não apenas como depoimentos lamentosos, de vítimas de um processo social preconceituoso, controlador em demasia das suas condições de vida.

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Os contatos iniciais, com os primeiros entrevistados, nos remete-ram ao significado de “O Normal e o Patológico”, revelado por Canguilhem

Nenhum fato dito normal, por ter se tornado nor-mal, pode usurpar o prestígio da norma da qual ele é a expressão, a partir do momento em que mudarem as condições dentro das quais ele tomou a norma como referência. Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores – quanto à estabilidade, à fecundidade e à variabilidade da vida – às normas específicas an-teriores, serão chamadas patológicas. Se, eventual-mente, se revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio -, serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normativi-dade. O patológico não é a ausência de norma bioló-gica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida. (CANGUILHEM, 2009, p. 56)

Através dessas normas ou nesse modus vivendi, específico de cada doente em alguma enfermidade, revelado tanto no cotidiano dos atingi-dos pela Hanseníase e/ou pela doença de Chagas, nos defrontamos com a possibilidade de perceber o doente não como um ser passivo, vítima de um processo de despersonalização, mas como um agente histórico, ca-paz de enfrentar como viável o que nos espaços sociais em confronto são considerados como anomalias. A diversidade dos indivíduos e a “plura-lidade dos mundos” se associam ao que Badiou denomina “conotação subjetiva,” onde “...o vivente é precisamente um centro de referência,” conforme ele deixa expresso ao recorrer às próprias palavras de Cangui-lhem: “É impossível anular na objetividade do saber médico a subjeti-vidade da experiência vivida pelo doente.” (BADIOU,2015,p.57; p.61).

Para tornar tal proposição uma realidade social torna-se impres-cindível trazer à baila o papel do Estado, dos Órgãos públicos como

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agentes educadores de um processo de vida conduzido em campo com-plexo, onde as técnicas e a ciência se defrontam com os impasses do absoluto. E não serão as aplicações mecânicas de postulados acadêmicos, que apresentarão uma solução imediata a uma questão plural, da saúde e das doenças, apesar do peso dos dois pólos conceituais do continuum da história atual cada dia se revelem mais decisivos: “consumidores” e “ob-jetos de consumo” (BAUMAN, 2009, p. 20). É imprescindível recorrer ao inconsciente coletivo e defender a necessidade de um sentido social mais abrangente, além do consumismo imediato e a educação é o campo propício ao alimento desse anseio social.

Das três entrevistas, até agora realizadas, apesar do elo comum que associa os entrevistados a um estilo de vida com alguns traços co-muns – decorrentes da doença de Chagas e suas sequelas - cada uma delas apresenta a especificidade de uma experiência de vida, definidora de uma individualidade.

A primeira entrevistada foi Francisca Ednir Mesquita Ferreira, técnica de enfermagem, com trinta e oito anos de idade. Embora nunca tenha trabalhado em Hospital, durante dois anos fez o Curso de “Home Care”, o curso de “cuidadora de idosos”, no Hospital São Camilo de Lelis e mesmo antes de concluir o curso já começou a trabalhar a do-micílio.Atualmente desistiu “trabalhar para ser mãe novamente.” Ela descobriu que tinha a doença, ou melhor, era portadora do vírus por acaso.A sua avó, com oitenta anos, estava hospitalizada no Hospital dos Acidentados e como teria se submeter a uma transfusão de sangue,pre-cisava que houvesse doadores de sangue e ela decidiu ser um deles. Al-guns dias após, Lea foi chamada ao hospital, onde teve de submeter-se a novo exame, que a indicou como soropositiva da doença de Chagas. Ela contava com apenas 27 anos de idade. O impacto foi grande e a pri-meira ideia que lhe veio a mente é que iria morrer do coração. O curioso é que “alguns enjôos, algumas náuseas”, sentidos, não eram sintomas da doença de Chagas, como imaginava, mas uma demonstração concreta

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da sua primeira gravidez. E o receio maior era que a doença iria afetar a sua gestação, mas os exames solicitados, eletro, ecocardiograma, endos-copia, colonoscopia e os resultados foram compensadores. A apreensão foi contínua, mas os resultados positivos: “Graças a Deus foi constatado que no meu sangue eu tenho um vírus, ele está lá no cantinho dele como o doutor mesmo falou, mas que não afetou em nada meu organismo, em nada, em nada.” Por prevenção, anualmente ela tem de se submeter ao acompanhamento de um cardiologistas e de um infectiologista. A descoberta foi feita na Faculdade de Medicina da UNIFOR, onde uma irmã sua trabalha e o acompanhamento médico vem sendo desenvolvi-do. Após a saída da sua irmã desta instituição, o acompanhamento do seu caso vem sendo feito pelo plano de saúde HAPVIDA.

Hoje ela tem três filhos e o primeiro deles já atingiu os dez anos. A gestação dos dois últimos não lhe trouxe preocupações, mas a do pri-meiro foi a que mais pesou. O impasse a principio, como ressaltamos, foi sua grande apreensão, motivada pela falta de informações, afinal era considerada paciente de risco, “mesmo sem sentir nada eu era conside-rada uma paciente de risco” e foi a sua curiosidade de ler, de ser informar sobre a doença que lhe trouxe a tranquilidade almejada. O receio foi tão grande que nem a uma médica, com quem trabalhou temporariamente, ela teve coragem de falar sobre o seu caso.

O importante foi uma boa acolhida, sentida no próprio seio da sua família: “na minha casa nós somos dez irmãos. Quando souberam que eu estava com problema, eu senti acolhimento de todo mundo”, mas mesmo assim algumas pessoas “olhavam pra mim com uma pena, pare-cia que eu estava com o pé na cova, mas eu sempre levei na esportiva e elas sabem que eu vivo bem.”

Ao lembrar o seu local de origem, no interior cearense, Choró Limão, que pertencia ao município de Quixadá, ela associou a possibili-dade de contaminação pela doença, ao local de residência

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Meu pai sempre foi muito pobre, pobrezinho mes-mo,a casinha era uma casinha de taipa,chão bati-do,aquela coisa bem humilde mesmo....Eu nasci e vivi numa casinha dessas até os meus sete anos de idade...[quando] meu pai mudou-se e a gente foi para o interior de Quixadá,onde até hoje ele mo-ra...A casinha era muito antiga,era de tijolo, mas não era rebocada,cheia de buraquinho,assim,... eu tinha sete anos e me lembro de ter visto o barbeiro.

A casinha era composta de dois pequenos quartos, duas salas e no quarto dos pais dormiam os mais novos e o uso das redes melhor atendia a ocupação do espaço domiciliar. Aos setenta anos, mesmo com a aposentadoria do FUNRURAl, quando a estação de chuvas é regular, o plantio do feijão e o do milho os ajudam a sobreviver, quando não, os carros pipas amenizam a precária situação do abastecimento de água.

Em um semblante tranquilo através de um olhar expressivo de vitalidade se revela uma força interior que a faz insistir em afirmar o valor da existência e reafirmar os laços de afeto que a aproximam de seus familiares. Esses laços se afiguram mais representativos, quando o perfil firme e decidido do pai é evocado, sempre configurado como o grande guia do seu roteiro de vida.Uma particularidade é indicada nessa relação familiar: esse venerando pai sempre a deixou agir por conta própria, como quando da sua decisão de deixar a vida interiorana e vir residir na capital e, mais ainda, quando ela resolveu sua opção de religião: “Eu só mais evangélica do que católica.”A Igreja escolhida é a Canaã. O pai continua como fiel da igreja católica, mas um hábito dele a motivou a aceitar a opção protestante: a leitura da Bíblia. “Meu pai li a Bíblia, mes-mo católico... e ele dizia assim: a verdade ta na Bíblia.” E a atenção dada pelos fieis ao pronunciamento do pastor lhe parece bem diferente do que ela observou na Igreja católica, onde as pessoas não manifestavam concentração, as cerimônias eram representadas mais como uma obriga-ção social do que manifestação religiosa.A princípio, a oportunidade de

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emprego oferecida, a quem vinha do interior, era na condição de domés-tica, mas com o aumento gradativo de pessoas idosas, nos últimos anos, em uma cidade como Fortaleza, a auxiliar de enfermagem, dedicada ao cuidado domiciliar de velhos tornou-se uma oportunidade de emprego cada vez mais requisitada.

As suas duas irmãs foram as primeiras a virem para Fortaleza. A mais velha saiu do sertão aos quinze anos e a função de empregada doméstica foi o primeiro passo em busca de uma definição profissional.Ela também seguiu a rota fraterna: deslocamento a Fortaleza,emprego doméstico e a recompensa da Escola Pública, que lhe garantiu a con-clusão do segundo grau e a possibilidade de fazer um curso de enfer-magem, na “NBL Saúde”, uma instituição de ensino que não mais atua no setor.A função de enfermeira, como melhor remuneração, era uma atribuição exclusiva àquelas que concluíssem o curso universitário de enfermagem.Indagada se não tinha sido encaminhada para o serviço prestado pelo Hospital Universitário, da UFC, aos doentes de Chagas, ela respondeu que não procurou porque ainda não se sente atingida, mas tem ouvido reconhecidas referências positivas ao serviço prestado por essa instituição.

A respeito do papel da religião em sua vida, ela explicou que o que a levou a uma igreja protestante, “foi eu mesma, a necessidade... eu não alimento em mim aquela coisa negativa... eu tenho que reclamar menos e agradecer mais.” Em uma conversa com uma médica, infectologista, ela usou a expressão “soro positivo” para definir a sua situação e a respos-ta foi taxativa: “Aí ela falou assim: nunca mais fale isso, porque se você abrir a boca para falar que é soro positivo, ninguém vai assimilar Doença de Chagas, vão assimilar o HIV.Vão dizer que você é uma aidética. ”

Sobre a sua relação com o esposo após a descoberta da doença, ela afirmou:

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Foi duas descobertas, uma da doença de Chagas e outra que eu estava gestante. E a preocupação maior foi por conta da gravidez, por conta que tanto ele queira o neném, quanto eu queria. E então quando ela [uma médica] falou em interromper a gravidez, a gente ficou com muito medo. Mais aí depois a gente viu que não era nenhum bicho papão.

No decorrer da conversa, a referência à crença em Deus é marcan-te e contínua. Graças “á pura fé que tenho”..., assim, eu passei a encarar numa boa, acho que com certeza a minha fé ajudou muito. É tanto que hoje eu digo:eu não sou doente, porque Deus me curou... Eu acredito...eu acredito nisso.Eu sei que eu tenho um vírus, mas eu acredito que eu não sou doente... Você se aproxima de Deus pelo amor ou pela dor. É mais pela dor. ... Eu acho que quem salva não é a religião, o que salva é teu jeito de ser, tuas atitudes, tua oração”.

A lembrança sobre a atenção especial, que lhe era dedicada pelo pai, na condição de filha caçula revela “... aquela parceria dele”, fosse na venda do queijo feito em casa, fosse para comprar corda ou arame, sempre era ela “que resolvia tudo para ele.” Até na volta do Colégio à noite, “quan-do eu fiz o segundo grau... todo o dia eu saia de casa três horas da tarde e retornava às onze,no caso vinte e três e meia da noite e era ele quem ia me pegar...Ele todo dia ia me pegar lá no ponto, onde ficava o carro.”

O segundo entrevistado, o Sr. José Aécio Dias de Oliveira, de 56 anos, natural do município de Cedro/Ce, desde os 12 anos reside em Fortaleza.Ele descobriu a doença após um exame de sangue, mas antes: “Eu sentia um entalo, a falta de ar, respiração e o intestino não funcio-nava bem.”A doença de Chagas não era estranha a sua família, pois um irmão fora atingido.O Exame que acusou a doença foi feito no Posto de Saúde da Praça José de Alencar, de onde foi encaminhado para o Hos-pital das Clínicas, da UFC, onde dois médicos o tem acompanhado:O Dr. Fernando Siqueira, que lhe comunicou sobre a doença: “Olha, essa

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doença, ela não tem cura, ela ficou, você vai ter que continuar com ela.... e o Dr. Miguel....., não me lembro do nome de fampilia dele.”

O incômodo maior por ele sentido é proveniente da diarréia, acom-panhada por um cansaço nas pernas:” qualquer comida me dá diarréia, eu tenho que está tomando ‘emozec’ o tempo todo. ... Eu fiz a cirurgia do esô-fago, que tava muito fechado.Tava muito fechado mesmo que não entrava nada.” A falta de ar é freqüente,embora não contínua e o refluxo em geral se manifestava, após o almoço: “quando eu termino de almoçar,me alimen-tar,me deitava, a comida voltava todinha...Se eu fosse dormir voltava pelo nariz.”A cirurgia, a que se submeteu, melhorou muito a sua situação, mas mesmo assim “... o entalo tá começando tudo de novo.” Após o almoço, na fábrica onde trabalha, costuma descansar em uma rampa, para evitar in-cômodos. Ele não toma remédios constantemente, sendo os mais comuns o “emozec,” para diarréias, que toma três vezes ao dia e o “emoprazol.” O retorno ao médico e é de seis em seis meses.Nas suas recordações, desde os oito a nove anos de idade, quando residia no interior, febre e desarranjos intestinais eram freqüentes e o remédio caseiro, sempre usado, era o chá.

Após a sua vinda para a capital, a situação melhorou considera-velmente, mas a cura da incômoda e constante diarréia ele atribui a uma promessa, efetuada por sua irmã, efetuada a São Francisco do Canindé. Nas suas palavras, “Era do interior... vim pra cá, passou esses anos, me casei, tive quatro filhos, vim me cuidar e fiquei bom.” E foi somente aos 53 anos que passou a sentir os incômodos refluxos, que o levaram à cirurgia. Para ele, no interior, essa doença é conhecida “como doença de Chagas escondida” ... “o pessoal escondia porque tinha medo da doença, achavam que era uma doença sem cura.” O seu irmão, vítima da doença, quase morre e teve de se submeter a uma cirurgia cardíaca e “... hoje ele não tem mais aquela saúde toda, mas “mesmo sentindo aquela moleza no corpo ele continua trabalhando, mesmo depois de aposentado.”

O mais positivo no depoimento prestado é a referência ao serviço médico do Hospital das Clínicas: “a assistência médica foi muito boa,

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com muitos estudantes, eles atendem a gente muito bem.” Quanto aos remédios, alguns são doados, mas vez por outra ele tem que comprar alguns medicamentos indicados. O bom atendimento recebido no Hos-pital das Clínicas, onde a assistência maior é prestada por estudantes da medicina, ele considera importante e enfatiza que o seu tratamento continua, graças “à uma doutorazinha, aqui do posto de saúde [do seu bairro]: “foi nesse posto de saúde que conversei com a Dra. Aline Sarai-va, uma moça de vinte e poucos anos, e dizendo pra ela o que tava sen-tido.... ela fazia pouco tempo que tava formada e descobriu que eu tava com a doença de Chagas.Aí ela fez o2 bilhetinhos, lá pra Faculdade,pra eu falar com o Dr. Fernandes e o Dr. Miguel.” “Sem pagar nada” foram feitos todos os exames recomendados. O mais compensador foi que o médico disse que poderia tomar a cervejinha, aos domingos, ”porque domingo é feito pra relaxar, pra tomar ...”, desde que não esteja com incômodos ou a possível diarréia. Sobre a Dra. Aline, ele acrescenta: ”Eu juro que quando eu falo com ela, eu me emociono. ”

Mesmo afirmando que o início da sua doença tenha sido, talvez desde a infância, com a forte diarreia e a febre que o deixava prostrado, a sua melhora, após sua vinda a Fortaleza, ele atribui à graça alcançada com a promessa efetuada por sua irmã a São Francisco e a sua ida a Canindé teve continuidade até à morte da irmã, responsável pelo com-promisso assumido com o santo protetor.

Uma informação que nos prendeu a atenção foi relacionada ao seu trabalho, na Brimaz, uma fábrica de portas de aço, blindadas, de segurança: “Trabalho normal, de segunda a sexta e às vezes pego serviço fora, extra, nos finais de semana, como na fabricação de moveis para apartamentos.” O grande incômodo inicial, antes da cirurgia, era o das refeições, muitas vezes a comida era acompanha com água e a farinha e o cuscuz, tão desejados, eram impedidos. Hoje uma importante medida é mastigar os alimentos com paciência, “... almoçar devargazinho e a carne eu como pouco, de pedacinho em pedacinho.” Um grande benefício por

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ele obtido foi fruto de uma decisão sua, de continuar o estudos, à noite, um período de seis anos que lhe representou: “fiz quase completo o pri-meiro grau.Foi bom para mim e cada dia que passa você pega mais coisa” e os poucos anos que passou estudando “foi a melhor coisa que eu fiz.”

Mesmo sabendo que, com o passar dos anos, “.... quando você vai ficando mais velho, a doença vai piorar, o atendimento garantido no Hospital Universitário lhe dá tranquilidade, conscientizando-o de que a assistência médica programada não lhe faltará, porque “eu já tenho meu prontuário lá.” E acrescentou: “É eu sei que a tendência é piorar, mais cada dia que a gente passa vai ficando mais velho.É um dia a menos que você tem.É o destino.É uma coisa que você não pode esconder.É a natureza.Você sabe que a cada dia que passa a morte ta cada vez mais aproximada.Eu vou é viver e deixar a morte pra lá.”

O ponto sempre reconhecido é o relativo ao tratamento recebido no Hospital das Clínicas, dada à atenção prestada aos pacientes pelos profissionais da saúde. O saber ouvir e olhar nos olhos do cliente, algo que pose parecer banal, para eles tem um significado especial, uma situa-ção bem diferente daquela prestada pelos planos de saúde, onde o que é pago não tem retorno. O perfil do “médico atencioso, que conversa com você, pergunta” é bem diferenciado daquele “médico com a cara ruim...pensava que a gente tava pedindo favor a ele...”, diferente do DR. Fer-nandes Siqueira,do Dr. Miguel, que “são muito bons.Gostei demais.”

CONSIDERAÇÕES REFLEXIVAS

No oceano da saúde e das doenças, os limites são indefinidos, não existem pontos terminais, mas um enredo histórico envolto numa continuidade existencial. Vida e morte se enlaçam num cruzamento de realidades e inverdades, mas permanece sempre a busca de um signifi-cado esclarecedor.As dúvidas e as indagações foram geradas para serem

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confrontadas com múltiplas contestações, afinal é do impacto conflitan-te que surgem as novas versões no campo do conhecimento humano. O uso de condicionantes tem um significado revelador, mas na explicação buscada aos grandes impactos descobertos no sentido existencial, o tem-po condicional é infinito, o que alimenta a busca de novas indagações.Para quem partiu em busca dos signos,

Não existem coisas nem espíritos, só existem cor-pos;corpos astrais,corpos vegetais... A biologia teria razão se soubesse que os corpos em si já são uma linguagem. Os linguistas teriam razão se soubessem que a linguagem é sempre a dos corpos. (DELEU-ZE, 2006, p. 86)

Mesmo na realidade prática, sabendo-se que a linguagem não é exclusiva dos corpos, eles representam uma revelação intrínseca da en-trosagem entre cultura e sociedade. Assim, por mais conhecimento que se tenha acerca de uma determinada enfermidade, a compreensão da mesma não se restringe a um caso ou a casos selecionados. O importan-te é respeitar a manifestação da livre iniciativa, como um direito social adquirido, mas não colocar a reboque o valor do altruísmo, como opção social na superação dos grandes dilemas, provenientes das condições da saúde e das doenças. O maior problema no confronto entre conheci-mento científico e a realidade social é a indicação dos limites entre o público e o privado, em especial num país chamado Brasil, conforme destaca o jornalista Elio Gaspari

OS NÚMEROS DA SAÚDE NÃO SÃO OUVI-DOS. Os números da Saúde falam claro, mas quan-do são colocados em planilhas não são ouvidos, ou as respostas do governo vêm sob a forma de projeto marqueteiro.Sem ter nada a ver com o mosquito,sa-be-se que o sistema de saúde privado brasileiro pa-dece dos males de uma contabilidade de padaria, e a

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quebra dos planos Unimed está aí para expor o risco dessa conduta. Elas devem R$ 1,2 bilhão à Viúva porque cobram dos associados,mas não pagaram seus impostos. Os médicos receitam,os hospitais gastam,os planos pagam, e a conta explode no bolso do freguês. (Fortaleza,O Povo, 24 jan. 2016, p. 25)

Diante do impacto demolidor da crise dos sistemas, através de três entrevistas com os atingidos pela Doença de Chagas, fica evidente uma verdade, bem expressa nos depoimentos coletados, a importância da ação de entidades públicas, como o Hospital Universitário de Fortaleza, no atendimento das doenças que atingem sobretudo os menos favoreci-dos, dado o caráter regenerador da assistência médico hospital, prestadas por uma entidade pública.Através do acompanhamento dos casos ali atendidos fica evidente a importância da ação assistencial de órgão pú-blicos no confronto com os surtos de enfermidades, que atingem as áreas sociais mais carentes. E as salas de aulas, da área da saúde, não devem ser apenas um espaço de estudos de casos e atualização de conhecimentos, voltados a uma assistência médica hospitalar bem estruturada.

Paulo Freire foi condenado, em nosso país, nos anos sessenta do século passado, pela prioridade por Ele dada à educação como um canal de consciência crítica do cidadão, mas a realidade social dos dias atuais, prensada nas condicionantes da globalização, tem levado os cientistas sociais a retomarem a defesa da educação como uma condição básica de conscientização. E não é mais um grito de emancipação, partido do outrora chamado “terceiro mundo”, mas o ressurgimento de uma “pe-dagogia crítica” contra o peso cada vez mais opressor do mercado atual, sem fronteiras, onde tudo se torna mercadoria e a medicina é um campo fértil para constatação dos deslizes e dilemas entre a ciência, a saúde e o mercado consumista. (BAUMAN, 2009, p. 21). A memória social dos entrevistados constitui um testemunho valioso,a ser ouvido e refletido, pois indica o papel decisivo dos órgãos públicos em prol da saúde.A fé

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e a mensagem ética das religiões se apresentam como uma possibilidade de conscientização social, que transforma o paciente em um agente ativo nos tratamentos oferecidos e não apenas num objeto submisso. A persis-tência, no combate à omissão e ao mercantilismo da assistência médica, como se manifesta no Hospital das Clínicas da UFC precisa continuar vencendo a carência de recursos humanos e assistenciais nesse mundo sem fronteira.

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A LOUCURA TRANSFORMADA EM MEMÓRIA: MANICÔMIOS, MUSEUS E ARTE

Nádia Maria Weber Santos (CNPq/IHGRGS)Médica-psiquiatra, Dra. em História (UFRGS), Pós-doutorado na Université Laval

(Quebec), Bolsista de produtividade do CNPq.

INTRODUÇÃO

Como pensar historicamente os espaços que abrigaram A LOU-CURA durante o século XX no Brasil? Em nosso país existiram alguns manicômios de referência para o “tratamento” da loucura fundados no século XIX e início do XX. A maioria se perpetuou até a segunda meta-de do século XX e alguns ainda existem, mesmo após a criação da Lei da Reforma Psiquiátrica no Brasil (2001). Os principais foram: Hospício Pedro II (1852, Rio de Janeiro, RJ), Hospício São Pedro (1884, Por-to Alegre, RS), Hospício Juquery (1898, Franco da Rocha, São Paulo), Hospital Colônia de Barbacena (1903, Barbacena, Minas Gerais), en-tre muitos outros. Serão apresentados os diferentes encaminhamentos históricos e memoriais que foram dados a eles, a partir de imagens (fo-tografias e vídeos). A história da criação, no Brasil, desses lugares de ex-clusão social e de sua perpetuação, que atravessa desde meados do século XIX todo o século XX, passa por diversas facetas historiográficas, entre elas, o assistencialismo religioso, a exclusão de pessoas consideradas à margem da sociedade (“higienização moral”, ordem e disciplina urbana das cidades em processo de modernização) e o advento da psiquiatria

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como especialidade médica. Além disto, a experiência com a loucura, no Brasil, realizada sob diferentes enfoques e em diversos momentos, foi estímulo, no final do século XX, para a criação de espaços de Memória da loucura. É o caso, por exemplo, do “Museu da loucura”, fundado em 1996, em Barbacena (Minas Gerais), cujo vídeo veiculado no canal digi-tal Youtube demonstra seu intuito memorial; e do Memorial da Loucura do Hospital Psiquiátrico São Pedro, fundado em 2002, em Porto Alegre (Rio Grande do Sul). Ambas instituições fazem de seus locais “espaços de memória” da exclusão, para que não se esqueça do que ali aconteceu. Mas também pode se tratar do “Museu de imagens do inconsciente”, fundado em 1952 em Engenho de Dentro (Rio de Janeiro) e do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, criado no ano 2000, na antiga Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro. Ou mesmo da constituição do acervo do MASP (Museu de Arte de São Paulo), em 1972, de traba-lhos plásticos de pacientes internos no Hospício Juquery (Coleção de Arte Psicopatológica do médico e artista Osório César) das décadas de 1940-50. Esses três últimos privilegiam a produção artística de pacien-tes internos em hospitais, sugerindo a memória da loucura através de suas manifestações criativas. Teremos assim, pois, algumas ligações entre loucura, memória, manicômios e arte, enfocando a memória das prá-ticas de exclusão - realizadas historicamente sobre a loucura, seja pela criação de museus da loucura que expõem as crueldades cometidas, seja pela manutenção dos trabalhos criativos que perpetuam o imaginário e a sensibilidade dos doentes internados. Trabalhamos com a noção de estetização da loucura.

Vamos iniciar pensando o processo histórico que originou a ins-titucionalização dos espaços que a abrigaram desde meados do século XIX e ainda a abrigam em algumas cidades. Logo após, vamos parti-cularizar alguns destes espaços, mostrando imagens (fotografias) histó-ricas, retiradas de fontes jornalísticas e imagens contemporâneas (foto-grafias e vídeos) destes mesmos espaços.

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A historiografia sobre a loucura no Brasil está estreitamente re-lacionada com a história da criação dos manicômios brasileiros. Porém, antes do surgimento do primeiro, durante o Império (1852), há a dis-cussão de leis e posturas sobre o que fazer com o grande contingente de alienados mentais que perambulavam pelas ruas e cidades do país. No Segundo Império muitos manicômios (hospícios) foram criados pelo Brasil. Posteriormente, na República, a entronização do perito psiquia-tra mudou mais uma vez a forma como se tratou da doença mental e passou ao domínio médico especializado o que antes havia sido matéria de leis e governantes. Nas últimas duas décadas do século XX, seguin-do uma corrente mundial, surgiu a Luta Anti-manicomial, ganhando o país, na virada para e século XXI, sua primeira Lei da Reforma Psiquiá-trica. Já existe uma quantidade grande pesquisadores brasileiros que se ocupam em escrever esta história vivida durante dois séculos em nosso país, sob o enfoque tanto da História Social, como da História da Ciên-cia, da História da saúde e da doença, e da História Cultural. Aqui vou privilegiar a História Cultural, corrente historiográfica à qual me filio.

A LOUCURA NO BRASIL COLONIAL

A Loucura começou a ser pensada no Brasil, mais efetivamente, no momento da chegada da família imperial em 1808. Antes disto, os loucos perambulavam pelas ruas e ajudavam a lotar as cadeias públicas, ou eram internados em asilos religiosos. Alguns até permaneciam em porões de casas particulares, prática comum ainda na Idade Média. Du-rante muito tempo, os hospícios brasileiros não se caracterizaram como casa de loucos, mas sim, um lugar, geralmente administrado por religio-sos, que acolhia os pobres, órfãos, doentes sem recursos, velhos aban-donados, peregrinos e outros necessitados. O hospício no Brasil serviu antes aos hansenianos (portadores de Lepra) que aos doentes mentais: “Existe em São Paulo, um hospício para o recolhimento dos infelizes

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atingidos pela morféia, horrorosa enfermidade, que só a caridade pode impedir de ser olhada sem enorme repugnância.” [Saint Hilaire, s/d]

A vinda da família imperial ao Brasil, no início do século XIX, sob a coroa de D. Maria I, foi fundamental para a criação do ensino médico no Brasil e para a realização das primeiras discussões sobre “psi-quiatria” em solo colonial. A primeira rainha a pisar em solo brasileiro foi D. Maria I, de Portugal, chegou louca e interditada, em 1808. Ela ti-nha em torno de 55 anos quando foi interditada. Médicos do momento referiam-se à sua doença como loucura, vesânia, demência, entre outros. Júlio Dantas, considera “fora de dúvida que muito concorreu para sua doença uma série de choques psíquicos determinados por emoções de caráter político, religioso e doméstico”. [Figueiredo, 1998]

Foi o cirurgião-mor do reino, o pernambucano José Correia Pi-canço, formado em Lisboa e com estágio em Paris, que, ao assinar o laudo de interdição de D. Maria I (juntamente com o doutor Francisco de Mel-lo Franco) e assumir seu tratamento na sua chegada à colônia em 1808, ficou conhecido como o fundador do ensino médico brasileiro (por sua influência e solicitação foi assinada neste ano a lei para a fundação da Es-cola Médico-cirúrgica da Bahia) e mentor da psiquiatria legal brasileira. Além disto foi ele que, durante anos, assistiu a rainha louca em sua longa enfermidade, até que ela viesse a falecer, em 1816, no Rio de Janeiro.

Em meados do século XIX, no Brasil, seres humanos rotulados como “improdutivos, inadaptados e inúteis” vagueavam pelas ruas das cidades, havendo a necessidade dessas serem “limpas” destes desafor-tunados seres indesejáveis – que muitas vezes iam parar em porões de casas particulares, em hospitais gerais e mesmo nas cadeias públicas. [Medeiros, 1977]. Foi um período que marcou a emergência de uma nova sensibilidade quanto à loucura e a internação especializada destas pessoas foi sendo paulatinamente requerida. A modernização crescen-te das cidades, a economia competitiva e a necessidade de “higieniza-

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ção moral” da urbe levou à exclusão de muitos destes indivíduos não adaptados aos padrões de vida aceitáveis pela sociedade, improdutivos que eram economicamente. Estes “desajustados sociais”, os loucos ou “alienados mentais” como foram chamados na época, precisavam de um lugar que os contivesse e excluísse da sociedade. [Santos, 2008]. Pode--se dizer que a partir de motivações diversas, lutas políticas distintas e brigas por poderes e saberes, o resultado foi um só: a construção de manicômios nas cidades brasileiras cada vez mais populosas. O hospício surgiu, assim, como uma necessidade de uma época histórica, ligada a outras transformações do período, sociais e urbanas.

A LOUCURA NO IMPÉRIO

Em 1830, quando o relatório da Comissão de Higiene da Socie-dade de Medicina e cirurgia do Rio de Janeiro recomendava “Aos loucos, o Hospício!!”, ocorreu o reconhecimento da loucura como objeto de ca-ridade e não qualquer outro tipo de abordagem. Esse relatório revelava, no que diz respeito aos doentes mentais, tendência maior para o tra-tamento moral, posição inicial da nascente medicina brasileira sobre o problema. Além disto, inaugurava-se na época a fase de saneamento das cidades: cada problema deveria ter um lugar apropriado para resolvê-lo. O hospício ingressou no cenário brasileiro para exercer sua função de controle social numa sociedade em transformação e, portanto, geradora de conflitos e contradições localizados no coração do governo e da so-ciedade. [Engel, 2001].

Existiu uma relação estreita entre criação de hospícios de aliena-dos e práticas de caridade e de controle social, numa sociedade tradicio-nalmente católica e num século em que a libertação de escravos, imi-gração, explosão demográfica e urbanização conduziram a contradições sócio-econômicas que impunham políticas de confinamento para “des-

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classificados, inadaptados e inúteis”. Também o princípio do isolamento, fundamentado na escola institucional francesa de Pinel e Esquirol, para alienados mentais, legitimou o discurso médico da época e reforçou os princípios da caridade e a necessidade do Estado de implementar novas formas de exclusão social.

Encabeçada pelos médicos da Academia Imperial de Medicina e fortalecida pelo apoio político do prestigiado provedor da Santa Casa do Rio de Janeiro, José Clemente Pereira, a recomendação acima citada foi aceita em 1841 e tornou-se realidade edificada em 1852, junto à Praia da Saudade, no Botafogo: “O Hospício Pedro II, fundado por decreto de 18 de julho de 1841, debaixo da Augusta Proteção de Sua Majestade o Imperador, he destinado privativamente para asylo, tratamento e curati-vo dos alienados de ambos os sexos de todo o Império, sem distinção de condição, naturalidade ou religião.” A escolha da denominação hospício foi providencial, tendo em vista que a noção de caridade contida na expressão podia ser adaptada às idéias do tratamento moral em voga. E nenhuma outra instituição assistencial brasileira tinha mais força moral e tradição de caridade do que a Santa Casa de Misericórdia. Então: “O mesmo hospício, em virtude do Decreto da sua fundação, e do termo da sua incorporação na Santa Casa de Misericórdia da cidade do Rio de Janeiro, he igual em direitos, prerrogativas e isenções aos outros pios Estabelecimentos da mesma Santa Casa.” [Coleção de Leis do Império do Brasil de 1852 – apud Figueiredo, 1998]

Cabe ressaltar que o asilo Provisório de Alienados da capital de São Paulo, ao ser instalado a 14 de maio de 1852, antecipou-se his-toricamente à inauguração do Hospício Pedro II, que ocorreu a 5 de dezembro do mesmo ano. Mas devemos lembrar que no Rio de Janeiro, o Asilo provisório foi instalado em 1941, no mesmo terreno onde poste-riormente foi construído o Pedro II, portanto 11 anos antes daquele de São Paulo, o que confere à cidade do Rio de Janeiro, a primazia na inau-guração de modelos assistenciais para alienados no Brasil.[Uchôa, 1981]

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Durante o Segundo Império no Brasil, houve a criação de 15 instituições exclusivas para alienados, como segue: 1841 - Asilo Provi-sório, RJ; 1852 - Hospício Provisório de alienados, SP; 1852 - Hospício Pedro II, RJ; 1860 - Casa de Saúde Dr. Eiras, RJ; 1864 - Hospício de alienados Ladeira de Tabatinguera, SP; 1864 - Hospício de Visitação de Santa Isabel, Olinda-Recife; 1865 - Enfermaria do Hospital de Ca-ridade, Belém; 1873 - Hospício de Alienados, vizinhança do Hospital dos Lázaros, Belém; 1874 - Asilo de São João de Deus, Salvador; 1875 - Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, Paraíba; 1878 - Enfermaria do Hospital de São João Batista, Niterói; 1883 - Hospício de alienados Tamarineira, Recife; 1884 - Hospício São Pedro, Porto Alegre; 1886 - Asilo de alienados de São Vicente de Paula, Fortaleza; 1887 - Asilo de Loucos, Maceió. [Medeiros, 1977]

As intenções de tratamento e cura enunciadas no decreto imperial não alcançaram os seus objetivos, sendo o hospício mais uma organização cujos fins eram de proteção social e secundária, e eventualmente cura-tivos, tendo em vista que a psiquiatria chegou no Brasil décadas depois dos primeiros hospícios. Os hospícios de alienados atravessaram toda a segunda metade do século XIX superlotados, de tal maneira que só mesmo o controle social podia dar conta, ainda assim nem sempre, bem como revelou a rebelião de 1852 no Hospício Provisório de São Paulo. O Hospício de Pedro II foi inaugurado para receber 350 pessoas e já exce-dia este número um ano depois. O hospício de São Paulo, já no primeiro ano de sua existência, devido à superlotação, foi “palco de uma rebelião que teve como consequência a total depredação do edifício” da rua São João. O hospício São Pedro, em Porto Alegre, conhecido como “cadeião”, estava abarrotado no final do século e o Hospício de Visitação de Santa Isabel, em Olinda, “não tinha as acomodações e condições indispensáveis para recolher 82 alienados quando não devia seu número exceder de 40”, que é o quanto podia comportar a casa. [Figueiredo, 1998]

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O Hospício São Pedro de Porto Alegre (HPSP), que no início da República já era o terceiro maior hospício do país, foi fundado no final do Império, em junho de 1884, bem longe do centro da cidade, na “Estrada do Mato Grosso”, atual avenida Bento Gonçalves, vizinha ao Arraial do Partenon. As preocupações do governo iam no sentido de que o terreno não ficasse junto à cidade, tal como a maioria dos ou-tros hospícios, favorecendo o distanciamento daqueles que se queriam “sadios” e perpetuando a exclusão sempre presente. Somavam-se a isto as recomendações médicas de que “os infelizes” ficassem em sítios cam-pestres, “onde o ruído e o movimento popular não vá perturbar o repou-so que lhe é mister.” [Schiavoni, 1997]. Passaram-se doze anos entre a primeira sugestão (1872) do Provedor da Santa Casa de Misericórdia - local onde eram internados este tipo de doentes - para a construção de um asilo próprio para alienados e sua inauguração.

A idéia da construção de um lugar para guardar doidos, em Porto Alegre, foi de iniciativa deste provedor, e não de uma sociedade de mé-dicos, como o foi na capital brasileira. O movimento deflagrado pelos protestos do então provedor da Santa Casa, José Antonio Coelho Junior, em 1873, apoiava-se em três argumentos principais: a) as péssimas con-dições em que viviam, no asilo da Santa Casa, os alienados enviados para a capital de todos os pontos da Província, sem que se pudesse minorar seus sofrimentos; b) a confusão existente entre alienados e criminosos, fazendo com que ocupassem os mesmos lugares de reclusão, ou seja, a Cadeia Pública, por não existirem lugares suficientes no Hospital de Misericórdia para receber os primeiros; c) a responsabilidade da socie-dade cristã e civilizada que não devia fechar seus olhos para tais proble-mas. [Wadi, 2002]

O HPSP tem como um “orgulho” de sua história ter sido visitado pela princesa Isabel em 1885, numa de suas visitas à Província. Sua assi-natura está registrada num livro de visitantes, inaugurado nesta ocasião

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e guardado como relíquia da Instituição até hoje. Esta visita, como foi registrada, corrobora, de certa forma, o que se vem dizendo sobre a fun-ção que os “governantes” viam neste tipo de instituição: “casa de carida-de”. [Santos, 2005/2013] Encontramos o registro que a Princesa fez em seu Diário de Viagem, neste ano: ela foi “... juntamente com a Baronesa (de Suverhy) e o Presidente (da Província) ao Hospício de Alienados, obra caridosa quanto é possível, tirando 70 e tantos infelizes de cadeias, onde não podem senão piorar. Pareceu-me bem atendido, bem dirigido e será imenso, pois o que está construído é a quarta parte e já é muito grande”. [Franco, 1987]

Vendo sob esta perspectiva histórica, problemas específicos de-marcaram as práticas de exclusão destes indivíduos: o doente mental sendo considerado um ser excluído da sociedade urbanizada foi-lhe negado o papel de agente/sujeito da História, marginal à sua própria contemporaneidade, estigmatizado frente o convívio social; as repre-sentações da loucura que a sociedade fez, as quais, nesta prática social de exclusão, foram legitimadas pelo discurso médico oficial ou serviram para legitimar este próprio discurso; o imaginário da exclusão que favo-receu a formação de espaços urbanos que privilegiaram o isolamento e o confinamento do doente, criando verdadeiros depósitos de seres hu-manos, fora de toda a prática social integradora. A estes “excluídos da História”, os loucos, a sociedade negou o papel de cidadãos, privando-os de sua dignidade respeitada, de sua autonomia realizada e seus direitos e deveres exercidos em todas as instâncias individuais e sociais. [Santos, 2005/2013] A sua identidade foi privada de sentido social, sendo nega-tiva e estigmatizada, e sua cidadania constrangida em “camisas-de-força sociais”, sejam estas camisas confeccionadas pela sociedade como um todo, pela medicina ou pela família.

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A LOUCURA NA REPÚBLICA

O decreto n. 142-A, de 1890, na República nascente, “desanexa do hospital da Santa Casa de Misericórdia desta capital (RJ) o Hospício Pedro II, que passa a denominar-se Hospício Nacional de Alienados”. [Coleção das Leis do Império e da República, 1891] Assim pode-se constatar que caiu D. Pedro II, mas não caiu o hospício. Já estava consa-grado! E foi assim que também atravessou a República, chegando a Be-lém (1892), Manaus (1894), Sorocaba (1895), São Paulo (1898), Natal (1911), Vitória (1944) e Goiânia (1950). [Medeiros, 1977]

Quando a nascente psiquiatria brasileira, no final do século XIX ingressou no hospício, os psiquiatras assumiram a direção de alguns hos-pícios como os do Rio de Janeiro e São Paulo, e progressivamente foram ampliando o domínio da psiquiatria em outros manicômios. Porém, ao entrarem, no contexto existente de caridade e controle social, os psiquia-tras brasileiros e demais profissionais de saúde mental herdaram esta cultura, encontrando dificuldades para conciliar estas práticas com as recomendações contidas no edifício teórico construído pela psiquiatria e ciências afins. Desta forma, tratamento psiquiátrico, caridade e controle social conviveram um bom tempo num complexo relacionamento e des-ta interação surgiram muitas intervenções. [Machado, 1978] E o hospí-cio, de um lugar para peregrinos, órfãos, velhos abandonados, doentes, transformou-se, em instituição exclusiva para loucos.

Em 1890, bem no início da República, o jovem doutor Franco da Rocha ingressou no corpo clínico do Hospício Provisório de São Paulo, fazendo duras críticas à Instituição, denunciando seu modelo arcaico, “superado e anticientífico”. Ele pregou o monopólio do setor médico so-bre a loucura, em contraposição ao hospício leigo, buscando assim equa-cionar a contradição do social com o científico. Propôs a clínica e o trata-mento para os doentes mentais e elaborou o discurso científico brasileiro sobre a questão, sendo considerado, na época, o “nosso Pinel”. Em 1896,

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com a autoridade do saber médico, ele assumiu a direção deste hospício e, em seguida, com o apoio de setores políticos importantes da Repúbli-ca, desenhou os contornos daquele que viria à luz em 1898, o grande e majestoso hospício de São Paulo, o Juqueri. Até meados dos anos 20 do nosso século, a loucura vai sendo incorporada pelo saber psiquiátrico e o grande hospício é inaugurado como sede deste saber. Fundamentados nas teorias organicistas da época, Franco da Rocha e seus seguidores reproduziam no interior do Hospício uma prática questionável no plano científico e que no plano microssocial da instituição reproduzia os mo-delos adequados para a República oligárquica e de ascensão da burguesia industrial e comercial da época. [Figueiredo, 1998] Quanto às interven-ções, no interior dos hospícios – não importa se estamos falando do Rio de Janeiro ou de São Paulo – eram utilizadas “camisolas de força, jejuns impostos, cacetadas, maus tratos e até assassinatos.” [Medeiros, 1977]

Em relação ao Rio de Janeiro, com a República veio também a modernização da capital brasileira, que coincidiu com a reforma no Hospicio Pedro II, Hospício Nacional de Alienados. Já sob a direção de Juliano Moreira, desde 1903, as novas instalações (ampliações de pavi-lhões e construção de outros) foram inauguradas em 1905, com o intui-to de desfazer a superlotação que existia em algumas unidades.

Diferentemente do Império, as primeiras administrações republi-canas estariam mais atentas às reivindicações dos psiquiatras. Em 22 de dezembro de 1903 era finalmente aprovada a lei que fazia do psiquiatra a maior autoridade sobre a loucura, nacional e publicamente reconheci-do. [Engel, 2001] Mesmo assim, não houve uma mudança substancial na questão de enclausurar os loucos. Sobre as práticas “republicanas”, “reeditavam-se, assim, os mesmos argumentos utilizados nos textos mé-dicos da década de 30 do século XIX: internar os loucos nos hospícios significava proteger a sociedade, a paz, a tranquilidade e a moral públi-cas, mas representava, sobretudo, um benefício para o próprio louco.” [Engel, 2001]

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O fato é que, no Brasil republicano, aumentou o número de inter-nações psiquiátricas. Faltava, ainda, uma mudança de paradigma no que dizia respeito à própria maneira de encarar a doença mental, pois per-maneciam os meios coercitivos que, aos poucos, foram sendo trocados por terapêuticas químicas, elétricas, como o eletrochoque, e cirúrgicas. Estas seriam tão deteriorantes do psiquismo normal, como o fator social de exclusão.

A LOUCURA NA FRONTEIRA DO SÉCULO XXI – ENTRE A PSICOLOGIA, AS NEUROCIÊNCIAS E A REFORMA PSI-QUIÁTRICA

O hospício continua até hoje se transformando; adaptando-se à modernidade, evoluiu, mas carrega consigo, neste percurso, traços cultu-rais que merecem discussões permanentes. No contexto contemporâneo desta virada de século, discutimos a dualidade que sempre atravessou a história da psiquiatria e da loucura: o enfoque organicista, que hoje culmina nas neurociências, e o enfoque psicológico, que no século XX teve seu expoente máximo no pensamento freudiano da Psicanálise e que nesta virada de milênio reencontra seu sucedâneo na teoria de C G Jung. No Brasil, foram os trabalhos da psiquiatra carioca Nise da Silvei-ra no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, que deu um novo enfoque à psiquiatria hospitalar, trabalhando com terapêutica ocupacional nos moldes junguianos com pacientes psi-cóticos. Porém, na maioria dos hospícios que ainda existem no país (por exemplo, o HPSP de Porto Alegre ainda não fechou suas portas) a te-rapêutica é medicamentosa e ainda é utilizada a Eletroconvulsoterapia (ECT ou eletrochoque) em muitos serviços públicos e privados. Neste início do século XXI, em um momento em que se discute amplamen-te o fim dos manicômios, isto é, a “desinstitucionalização da loucura”,

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vê-se uma crescente proliferação de novos medicamentos e condutas terapêuticas, respaldados nas neurociências que tomam um vulto qua-se hegemônico na atualidade. A “camisa-de-força” de pano e também aquela “social” foram substituídas pela “camisa-de-força” química. A “luta anti-manicomial” no Brasil iniciou na década de 1980 por grupos independentes, ONGs e entidades privadas. Porém, a reforma psiquiá-trica, que começou na metade da década de 1970 a partir das comissões de saúde mental, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e do MTSM (Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental), tomou forma na Lei Federal 10.216 (Lei da Reforma Psiquiátrica e também chamada Lei Paulo Delgado), sancionada somente em 6 de abril de 2001, que regulamentou as internações psiquiátricas e promoveu mu-danças no modelo assistencial aos pacientes portadores de sofrimen-to mental. Destaca-se o processo de “desospitalização”, implementado através da criação de serviços ambulatoriais, como os hospitais-dia ou hospitais-noite, os lares protegidos e os centros de atenção psico-so-cial (CAPS). Seu objetivo foi, inicialmente, humanizar o tratamento, de modo que a internação fosse o último recurso - e ainda assim, cercado dos devidos cuidados e do absoluto respeito à cidadania do paciente. [Amarante, 2003]. Há, ainda, a preocupação de se evitar as internações prolongadas e em reduzir as compulsórias. A proposta foi, desde então, privilegiar o convívio do paciente com a família. Neste novo modelo, a sociedade é chamada a assumir sua responsabilidade com os portadores de transtornos mentais, o que certamente implica a conscientização de que o doente mental não é um incapaz e de que a inserção social é mais eficaz para a sua recuperação. Esta forma ideal ainda está longe das práticas sociais de exclusão realizadas nas cidades brasileiras há mais de duzentos anos.

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O ‘ESTADO DA ARTE’ [EM IMAGENS] NO SÉCULO XXI

Neste momento quero trazer a vocês alguns exemplos, em ima-gens, de formas memoriais da loucura, que a discutem tanto pela noção de memória e de patrimonialização dos espaços, como da sua relação com a arte e manifestações artísticas. O importante, aqui, é perceber-mos, através do viés da imagem, as diferentes formas de abordar e de dar visibilidade à loucura no mundo contemporâneo e a todos os seus meandros, sociais, culturais e médicos. Tive que fazer escolhas para co-locar neste texto, mas há mais filmes e imagens que seriam pertinentes para a discussão que quero instalar neste momento. Por exemplo, há o filme muito recentemente lançado em salas alternativas do Brasil, um documentário chamado “A loucura entre nós”, da diretora Fernanda Va-reille e inspirado no romance homônimo do psiquiatra Marcelo Veras, que pretende abordar quais os limites de nossa sanidade e o que é con-siderado normal. A diretora mergulhou por 3 anos no cotidiano do hos-pital psiquiátrico Juliano Moreira em Salvador e conta, de forma muito sensível e em imagens, a vida de duas internas, até a alta de ambas e suas reinserções na sociedade através do Criamundo, uma ONG para um projeto de reinserção social destes pacientes através da arte e da geração de renda. https://aloucuraentrenos.wordpress.com/about/ 108

O importante, para nossa discussão, é a estetização da loucura, que se transforma em memória no século XXI, enquanto que, referente à realidade médica, deixo a questão: houve solução para o problema da loucura?

A seguir, então, alguns ‘espaços de memória da loucura’, atestando a importância do tema e também os encaminhamentos que a sociedade e os poderes médicos conseguem dar a ele.

108 Todos os links de internet colocados neste texto foram acessados em 22 de junho de 2017 e estão em pleno funcionamento, podendo ilustrar minhas reflexões neste artigo.

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Rio de Janeiro, RJ

MUSEU DE IMAGENS DO INCONSCIENTE NISE DA SIL-VEIRA

“Pinturas, desenhos, esculturas, a arte para estancar a dor, a so-lidão; para desvendar a mente humana. O Museu e Imagens do In-consciente teve origem nos ateliês de terapêutica ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II em Engenho de Dentro, subúrbio de Rio de Ja-neiro, fundados por Nise da Silveira em 1946. Hoje chama-se Instituto Municipal Nise da Silveira. Ela formou-se em Medicina na Bahia em 1926, foi presa política do governo Getúlio Vargas e, na década de 1940, ela revolucionou o tratamento das doenças mentais no Brasil, a partir da teoria do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Ela se recusou a utilizar os métodos agressivos da psiquiatria tradicional da década de 40, como eletrochoque, medicamentos indiscriminados. Ao contrário, a partir do referencial junguiano, ela começou a trabalhar com práticas de expressão com os pacientes. Os pacientes podiam se expressar livremente e isto fazia diferença na relação deles com seu mundo interior de fantasias. Ela trabalhava com afinco próxima de todos os pacientes. Em 1952 foi inaugurado o Museu de Imagens do Inconsciente a fim de ter um es-paço onde as obras pudessem servir também para pesquisa da ciência preocupada em reestabelecer parâmetros para tratar a doença mental. Existem hoje mais de 300 mil trabalhos plásticos entre pinturas, dese-nhos e esculturas feitos por pacientes internados. No final da década de 1970, no contexto político da luta pela redemocratização no Brasil, as péssimas condições de todos os hospícios brasileiros começaram a ser denunciadas. A violência cometida sobre este tipo de pacientes era vista como fazendo parte de uma violência maior da ditadura (como traba-lhadores, presos políticos, etc). Também o processo de reforma sanitária no início da década de 1980- teve influência no movimento da luta an-

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timanicomial no Brasil. Nise da Silveira recusou-se a utilizar eletrocho-ques e outros métodos. Ela foi pioneira nesta luta no Brasil, trocando o eletrochoque pelo afeto e pelas expressões plásticas.” ‘O que melhora no atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra; o que cura é a alegria, é a falta de preconceito’”. Retirado de https://www.youtube.com/watch?v=fNezZ92yQ_w

Indico o filme “Nise, o coração da loucura”, também recentemen-te lançado no Brasil em 2016 em circuito comercial (estrelado por Gló-ria Pires e dirigido por Roberto Berliner), que, mesmo trabalhando com a estética cinematográfica contemporânea, é bastante fidedigno ao tra-balho que Nise realizou em Engenho de Dentro. https://www.youtube.com/watch?v=iD7uUXYbn8s

Porto Alegre, Rio Grande do Sul (RS)

HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO (ainda existente)

Em 1950, o diretor do hospital foi denunciado por má admi-nistração (Santos, 2013). Algumas imagens que recolhi no periódico gaúcho Diário de Notícias (Porto Alegre), de 1951, onde foi escrita uma reportagem de denúncia sobre os maus tratos, promiscuidade e proble-mas graves de administração atestam as más condições dos pacientes no manicômio. Abaixo, algumas destas imagens:

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Fonte: Diário de Notícias, 22/3/1951, p.12. Legenda: Fujões e depredadores, nus, encaveirados, cabelo raspado, indefinível palidez, ensimesmados pelos cantos, empoleirados pelas camas tipo beliche, pesando um bafio insuportável a provocar vômitos incoercíveis. Um outro, completamente despido tinha esparramado pela cama a comida e sobre ela sentado.

Fonte: Diário de Notícias, 22/3/1951, p.12. Legenda: É a falta de talheres: não possuem uma colher sequer, comem com a mão, levam o prato à boca, brutalmente

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Fonte: Diário de Notícias, 22/3/1951, p.5. Legenda: A nota que fere todas as dependências do São Pedro é o ajuntamento promíscuo, criando dificuldades insuperáveis para o tratamento de recuperação dos doentes. Certo como é depender a cura de um relativo isolamento em que possa novamente o espírito reencontrar-se a si próprio. Belos dormitórios e refeitórios são o congestiona-mento acotovelante que aberra das normas mais comezinhas de saúde e equilíbrio psíquico.

Este hospital ainda existe, com internação de pacientes (foi um dos raros que não fechou após a lei da reforma psiquiátrica, como já disse) em um prédio bastante deteriorado fisicamente; e nele há um Memorial, que funciona mais como museu de peças do hospital e alguns livros de registros e um Atelier de Criatividade, numa das alas de espa-ços não fechados do hospital, Atelier Nise da Silveira, concebido inicial-mente por uma psicóloga que se diz junguiana, onde os pacientes, sob a supervisão de estagiários, trabalham com materiais plásticos em alguns momentos da hospitalização. A Oficina de Criatividade do Hospital

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Psiquiátrico São Pedro foi criada em 1990, inspirada nos trabalhos de Nise da Silveira. Atualmente, as atividades contam com a participação de ex-internos, moradores do hospital psiquiátrico (pessoas internadas há décadas) e  frequentadores interessados em arte, arteterapia ou no desenvolvimento de atividades expressivas diversas, tais como pintura, bordado, escultura em argila e escrita criativa. O Acervo da Oficina de Criatividade conta com cerca de 200 mil obras. Há um filme-docu-mentário, recentemente veiculado em espaços alternativos de cinema de Porto Alegre, intitulado “Epidemia de Cores” (2016, dirigido por Mário Eugênio Saretta) que ilustra o trabalho nele.

https://www.youtube.com/watch?v=7YpW52hbTW4https://www.youtube.com/watch?v=t0_iWg2144E

Já o Memorial, criado em 2002, serve mais como museu e, se-gundo o historiador que lá se encontra, serve também para pesquisa histórica sobre a instituição.

http://www.simers.org.br/2016/10/conheca-um-pouco-da-historia--do-memorial-cultural-do-hospital-psiquiatrico-sao-pedro/

Barbacena, Minas GeraisMUSEU DA LOUCURA

Aqui, vou colocar um link para um vídeo de 6 minutos, veiculado no Youtube, que mostra por si mesmo o que foi e o que é hoje este espa-ço do antigo manicômio de Barbacena (Hospital Colônia), transforma-do em Museu, e talvez o museu deste gênero mais importante do Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=-2O0WlW5pFc

Há outros filmes sobre Barbacena, que vocês podem procurar na internet, por exemplo, o documentário “Dos loucos e das rosas”, falando sobre o cotidiano do hospício e sua relação com a cidade. https://www.youtube.com/watch?v=dQMIUqj6tPw

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Encontra-se na mídia brasileira notícias sobre a reabertura do Mu-seu da Loucura em 2014 e, posteriormente, em 2016. Este local de me-mória é ainda uma grande polêmica na região e, importa aqui, pensarmos na estetização da loucura através de suas imagens e representações que permanecem no imaginário social de uma população, de uma sociedade.

http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2015/09/museu-da--loucura-deve-ser-reaberto-ainda-este-ano-em-barbacena.htmlhttp://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2016/05/museu-da--loucura-e-reaberto-com-objetivo-de-conscientizar-sociedade.html http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/mg/2014-01-09/museu-da-lou-cura-leva-visitantes-a-reflexao-sobre-holocausto-brasileiro.html

São Paulo Franco da Rocha: JUQUERI (HOSPÍCIO)

Coloco aqui um link que demonstra em vídeo um pouco da his-tória do Juqyery, veiculado no canal Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=sBPmiIE_xEs

Porém, quero me restringir ao trabalho com arte que o médico Osório César fez com os pacientes lá internados e que originou um dos primeiros livros sobre arte e loucura no Brasil, ‘A expressão artística dos alienados’, de 1929.

MASP (Museu de Arte de São Paulo)

Em 2015, foi realizada uma exposição no MASP em São Paulo, um dos museus de arte mais importantes do Brasil, como vocês sabem, que se chamou Histórias da Loucura: desenhos do Juquery. Ela abrangeu 102 obras de doentes mentais, internos no Juquery e colecionadas pelo psiquiatra Osório César, no período de 1952 a 1960. Este médico, que

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seguia a corrente da psicanálise de Freud, foi o primeiro no Brasil a se debruçar sobre os doentes mentais sugerindo que se expressassem livre-mente de forma plástica. Porém, há uma diferença com os trabalhos de Nise da Silveira: enquanto aquele, via nas produções artísticas dos doentes sintomas de seus problemas mentais, esta via nas manifestações do in-consciente possibilidades de cura. Foi criado no Juquery, a Seção de Artes Plásticas em 1949 e em 1956 passou a ser Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, sob a direção de Osório César, e funcionou por mais de 20 anos e foi abandonada. Em 1985, em seu espaço, no terreno do hospital, foi inaugurado o Museu Osório César que, atualmente, está em reforma.

Vamos às imagens desta exposição do MASP. https://www.youtube.com/watch?v=zd1TvfLgBCE

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste momento, deixo mais questionamentos do que respostas. Não entrei, de propósito, na seara da Arte Bruta ou Art Naif, teorizada pelo francês Jean Dubuffet, pois as discussões estéticas teriam que ser mais abrangentes. Apenas tentei mostrar que, mesmo no Brasil, o pro-cesso de memorializar e estetizar a loucura deixa seus rastros históricos, com os (nem sempre) desmanches das instituições asilares e com os caminhos da reforma psiquiátrica.

Seguindo o pioneiro da reforma psiquiátrica italiana, Franco Ba-saglia, ele assim nos ensina, ao referir-se à possibilidade de reconstrução do conceito de saúde-doença mental:

Possível no sentido de que, se junto com o desmante-lamento dos velhos hospitais, não se ficasse limitado a organizar simples serviços ambulatoriais; mas se criou, para os novos e velhos doentes, a possibilidade de viver de maneira diversa o próprio sofrimento,

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visto como o produto de um conjunto de fatores e não apenas como sinal de periculosidade social a re-primir. (Basaglia apud Amarante, 1996, p. 12)

A crítica ao modelo ‘hospitalocêntrico’ não é nova e ganhou no Brasil um adepto contemporâneo que pensa a questão e já publicou muitas obras a respeito: Paulo Amarante. Em uma reflexão ainda ante-rior à reforma, ele faz referência a algo de interesse à nossa pesquisa, às nossas preocupações:

A desinstitucionalização é um processo ético porque, em suma, inscreve-se em uma dimensão contrária ao estigma, à exclusão, à violência. É a manifestação ética, sobretudo, se exercitada quanto ao reconheci-mento de novos sujeitos de direito, de novos direitos para os sujeitos, de novas possibilidades de subjetiva-ção daqueles que seriam objetivados pelos saberes e práticas científicas e inventa – prática e teoricamente – novas possibilidades de reprodução social desses mesmos sujeitos. (AMARANTE, 1996, p. 27)

Porém, longe ainda de possuirmos um sistema médico, social e político ideal para o tratamento da loucura e para reintegrar essas pes-soas à sociedade, continuamos caminhando na marcha cuja preocupação maior deve residir realmente em transformar o paradigma da doença mental e, consequentemente, a relação que se estabelece com seu trata-mento e com a inserção na sociedade das pessoas acometidas por sofri-mentos psíquicos.

E é desta forma que questiono este afã de memorializar a loucura e seus espaços, e expor os doentes, que ainda existem sob o jugo de gran-des doses medicamentosas, a uma estetização talvez desnecessária. Ao mesmo tempo, acredito que é pela arte e pelo trabalho com a imagem (nos moldes dos preceitos da Psicologia Analítica de Jung) que a doen-ça psíquica pode ser curada. Fica, então, a necessidade de mudança de paradigma em relação à doença: mais arte e menos química.

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Referências

AMARANTE, P. Loucos pela Vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.AMARANTE, P. O Homem e a serpente – outras histórias para a psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996.CONFERÊNCIAS. IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial. 2010.http://conselho.saude.gov.br/web_saudemental/index.htmlENGEL, MG. Os delírios da razão - médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2001.FIGUEIREDO, G; FERRAZ, M. Século XIX no Brasil: D. Maria I, fundação do ensino e hospício de alienados. In: Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria. RJ, 20 (3): 75-85, 1998.FRANCO, SC. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: editora da Universidade/UFRGS, 1987.Guia de serviços de saúde mental do Rio Grande do Sul, 2002. Disponível em http://www.sipergs.org.br/guia.pdf. Acessado em 15/04/2013.MACHADO, ROBERTO et. al. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.MEDEIROS, T. Formação do Modelo Assistencial psiquiátrico no Brasil. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psiquiatria da UFRJ, 1977. SAINT-HILAIRE, A. Viagem à Província de São Pedro e resumo das viagens no Brasil, Província Cisplatina e missões do Paraguai. São Paulo: Martins Editores, SP, s.d.SANTOS, NMW. Histórias de vidas ausentes – a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2005. 2ED Revista e ampliada 2013, edições Verona, são Paulo.SANTOS, NMW. Narrativas da loucura & Histórias de sensibilidades. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2008.SCHIAVONI, A. A institucionalização da loucura no Rio Grande do Sul: o Hospício São Pedro e a Faculdade de Medicina. Dissertação de Mestrado. PPG em História, UFRGS, 1997. UCHÔA, DM. Organização da Psiquiatria no Brasil. São Paulo: Sarvier, 1981.WADI, YM. “Palácio para guardar doidos”: uma história das lutas para a construção do hospício de alienados e da psiquiatria no RGS. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 2002.

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A LITERATURA COMO PRODUTORA DE INTELIGIBILIDADES SOBRE TEMÁTICAS

CIENTÍFICAS.(O Ceará em fins do Século XIX e início do XX)

Cláudia Freitas de Oliveira109

A natureza é sempre um fator ( J. Carlos Júnior, Apontamentos Esparsos IN A Quinzena).

Revista A Quinzena: a vitória da razão na sociedade moderna.

1.1. A Literatura e as ciências: naturalismo, indivíduo e sociedade.

A revista literária A Quinzena, fundada em 1886, circulou no Ceará nos anos 1887 e 1888. Pertencente à agremiação Club Literário, ela autodenominava-se artística, literária e científica. Em sua composi-ção, havia 36 homens e 02 mulheres que desempenharam funções diver-sas; eles eram literatos, estudantes, professores, jornalistas, advogados, além de alguns exercerem cargos públicos. Escreveram na A Quinzena: João Lopes (fundador), Francisca Clotilde, Ana Nogueira Batista, Ro-dolfo Theófilo, Farias Brito, Guilherme Studart, Antônio Bezerra de Menezes, Justiniano de Serpa, Juvenal Galeno, Manuel de Oliveira Pai-va, entre outros.

109 Prof.ª Dra. Adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC); Coordenadora do Núcleo de Documentação (NUDOC/UFC); Coordenadora do GT História, Saúde e Doenças (ANPUH-CE). E-mail: [email protected].

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Enquanto gênero literário, A Quinzena, acompanhou as trans-formações ocorridas durante a segunda metade do século XIX relativas ao cenário intelectual europeu. Embora alguns integrantes do Club Li-terário permanecessem fiéis ao romantismo, como Francisca Clotilde e Juvenal Galeno, a maioria defendia o estilo realista ou naturalista entre os quais se destacaram Rodolfo Teófilo, Oliveira Paiva e Papi Júnior. Havia, contudo, espaço para ambos os gêneros literários na revista. Nas poesias, a presença do romantismo foi mais significativa, enquanto nos artigos e ensaios sobressaíram-se temáticas de forte conteúdo realista ou naturalista. Foram essas prosas que defenderam um culto à razão e às ciências e que iremos analisar nesse artigo.

No artigo Num Album, o redator Abel Garcia fez aberta apologia ao naturalismo, retratando-o com elemento da evolução do pensamento em contraponto direto ao romantismo, considerado superficial e postiço para a sua contemporaneidade:

O grande remedio eil-o: o methodo naturalista. Desprendei-vos da falseada supposição de que o ro-mantismo é forma immutavel em poesia, é a verda-deira intuição no romance ou no drama, quando essa phase litteraria, transitoria, que já passou, não pode ser hoje mantida sem pervertimento do bom gosto, da verdade e da emoção esthetica. Marca elle uma evolução do pensamento humano: não serve hoje de fóco de inspiração senão àquelles que, sem origina-lidade inventiva, porfiam em imitações trapentas.110

O naturalismo era referenciado como expressão sincera e espontâ-nea cuja composição apoiava-se na observação, na análise e no estudo direto do meio físico sobre o social. Para Abel Garcia, a literatura pas-sava por uma evolução onde não havia mais lugar para percepções do mundo sob o signo do romantismo.

110 GARCIA, Abel. Num Album, IN A Quinzena. 31 de julho de 1887, p.111.

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De forma semelhante, comungava dessa ideia o contista Oliveira Paiva segundo o qual, ao abraçar o naturalismo, a Europa entrava fran-camente nas avaçadas da evolução litteraria111, pois o mesmo representava a tendencia universal da Arte112. Na nova fase estilística, o literato não deveria se apegar a imaginação ou afastar-se do mundo real. Ao con-trário, deveria voltar-se para a sua própria realidade, concreta, palpável e não idealizada. Através da observação do meio, ele poderia apreender a belleza suprema da verdade, na tendência continua para o real113.

A arte nova quer isto: a expressão sincera e espon-tanea dos sentimentos, as idéas adquiridas pela ob-servação e analyse das coisas e dos factos. O que della afastar-se será factício, superficial ou postiço. A emoção e a verdade há de escassear-lhe.

Na poesia, no romance, como em qualquer outra manifestação artistica, o processo naturalista em-prega, em substituição às explicações phantasistas do idealismo, o estudo directo do mundo physico – a natureza e do mundo moral – o homem.114

O poliglota e professor de línguas, José Carlos Júnior, no artigo Apontamentos Esparsos, ampliou a temática do naturalismo ao não res-tringi-lo apenas ao âmbito da literatura, mas ao estabelecer uma relação direta entre a natureza, indivíduo e sociedade, a partir da perspectiva psicológica:

A psychologia do individuo, que vive a braços directamente com a natureza, é que deve ser o ponto de partida. Depois então apliquem-se os mesmos processos à sociedade, discriminando-se os elementos ad-venticios, para se ter idea firme sobre a nossa nevrose nacional.

111 PAIVA, Oliveira. O Naturalismo IN A Quinzena., 15 de janeiro de 1888, p. 3.112 PAIVA, Oliveira. O Que vem a ser uma obra naturalista? IN A Quinzena, p. 11.113 PAIVA, Oliveira. O Que vem a ser uma obra naturalista? IN A Quinzena, p. 11.114 GARCIA, Abel. Num Album, IN A Quinzena. 31 de julho de 1887, p.111.

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No Brazil, a acção da natureza sobre o homem ge-ralmente é morbida, acabrunhadora; ella tira-lhe as forças inhabilita-o para a lucta. A natureza é pujan-te; por isso o homem é mesquinho. A noticia dos commettimentos, das emprezas, do movimento as-cencional do espirito humano, o contacto com o es-trangeiro, a visita à Europa, os livros, tudo isso exci-ta-nos o espirito, accende-nos idéas e ambições que nos põem o cerebro em encandescencia mas que vem naufragar no escolho ineluctavel da fraqueza apathica e morbida que nos incutiu a natureza.Eis a nossa nevrose nacional, eis a razão do descala-bro geral de que todos nos queixamos.Eis tambem um campo vasto para desenvolver-se a escola naturalista brazileira 115.

E mais adiante:

só depois de ter-se [o romancista brasileiro] estudado a acção directa do meio physico, do clima, da natureza sobre o homem, é que se podera com segurança tratar dos phenomenos sociaes, acompanhar o desenvolvimento dos factos que determinam a actual ordem das cousas.116

A psicologia individual e os comportamentos coletivos seriam, para o autor, resultados diretos da ação da natureza sobre as pessoas; tema este amplamente acolhido por outros intelectuais brasileiros con-temporâneos aos literatos da A Quinzena, como Sílvio Romero e Nina Rodrigues que conceberam uma ideia de caráter e identidade brasileiros e detectavam os problemas de atraso nacional a partir de determinantes físicos e biológicos117.

115 CARLOS JÚNIOR, José Apontamentos Esparsos, IN A Quinzena, 26 de agosto de 1887, parte I p. 2.116 Idem, p.2. 117 ABREU, Marta, SOIHET, Raquel CONTIJO, Rebeca. Cultura Política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. RJ: Civilização Brasileira, 2007. FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000. IANNI, Octávio. A Idéia de Brasil Moderno. SP: Brasiliense, 1992. IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil- capítulos de historiografia brasileira. RJ. Nova Fronteira, Belo Horizonte. UFMG, IPEA, 2000. IGLÉSIAS. História & Literatura: Ensaios para uma história das idéias no

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1.2. O Naturalismo e a concepção da mulher cearense.

O naturalismo não pode ser visto apenas como um gênero literá-rio; ele atravessou várias esferas do conhecimento humano em fins dos oitocentos, como podemos observar em outro artigo de Abel Garcia intitulado A Mulher Cearense118 no qual o tema da psicologia de dado povo ganhou novamente espaço na A Quinzena. Desta vez, contudo, o objetivo do autor foi discutir as peculiaridades dos habitantes do Ceará comparando-os ao typo nacional das demais províncias brasileiras, a par-tir de um fundamento verdadeiramente scientifico acerca da marcha evolu-tiva do indivíduo na natureza. A intenção de Abel Garcia era explanar evidências científicas que comprovassem a differença que há entre o carac-ter cearense e a indole dos demais habitantes do pais 119, através de infinita variedade de agentes ou influencias locaes, que têm aqui actuado sobre a vida humana. Para isso, o autor utilizou-se do methodo historico-naturalista, mencionou cientistas de grande credibilidade científica e social à época, como Darwin, Lamarck, Comte, Buckle e Taine e sustentou argumen-tações cujos pressupostos referiam-se à influência da ação do meio físico não apenas sobre as espécies animais, mas quanto ao comportamento individual e social. No que tange especificamente sobre a ação do meio natural árido na formação do povo cearense, ele afirmou:

Si é certo que as acções do homem são sempre in-fluenciadas pelo meio que habita, por seu organis-mo e por suas aptidões adquiridas hereditariamente,

Brasil. São Paulo: Perspectiva; BH: Codeplar-FACE-UFMG, 2009. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 9ª ed. RJ: Olympio, 1976; LEITE, D.M. O Caráter Nacional Brasileiro – história de uma ideologia. 4ª ed. SP: Pioneira, 1983; MORAES, J.G.V. de, REGO, J. M. Conversa com Historiadores Brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-74). SP: Ática, 1990. MOTA, Lourenço Dantas (org). Introdução ao Brasil – um banquete no Trópico. SP. Ed Senac, vol1, 2001, 3ª Ed. PRADO. Paulo. Retrato do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998. REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999. VELOSO, M. MADEIRA A. Leituras Brasileiras: Itinerários no pensamento social e na literatura. São Paulo: Paz e Terra, 1999.118 GARCIA, Abel. A Mulher Cearense IN A Quinzena, 30 de janeiro de 1887, parte I, n°2, p. 9.119 Idem, p. 10.

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convem explanar o processo pelo qual o typo fisico physico e moral do cearense chegou a differenciar-se das feições caracteristicas dos brazileiros em geral 120.

No Ceará o homem é activo, arrojado e impressio-navel. As fatalidades do meio deram-lhe às formas da vida a mais forte organisação. Educado na luta, energico pela necessidade, tem mais de uma vez at-testado brilhantemente profundo de sua força121.

As singularidades do tipo cearense seriam decorrentes do inces-sante e regular fenômeno climático das secas que, submetendo-o às ta-manhas dificuldades, exerceria influência direta sobre suas funções orga-nicas e mentais dos indivíduos.

D´ahi resultou o facto de observar-se no cearense notavel desenvolvimento intellectual e uma quasi hypertrophia da sensibilidade.

Bracejando com grandes difficuldades, arrastado no fluxo e refluxo de uma vida accidentada de perigos e aventuras dramaticas, em emigrações forçadas, obtinha [o cearense] essa energia caracteristica e vivacidade de imaginação que, irisações fulguran-tes, transluz na poesia natural dos contos populares. Adaptando-se ao meio, conseguia resistir às forças geologicas conspiradas contra todo o principio de vida organica. Pela selecção depuravam-se as ener-gias, triumphando os mais forte 122.

Em seu artigo, Abel Garcia tematizou, inicialmente, o povo cea-rense para em seguida abordar a mulher daquela província, objetivo central de suas análises. Para tal, também se utilizou do método compa-rativo em relação às demais mulheres brasileiras ao atribuir que aquela

120 Idem.121 Idem. P. 9122 Idem, p. 10

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estaria em estágio evolutivo superior a estas. Segundo o autor, tal supe-rioridade configurava-se como resultado da convivência das mulheres cearenses com uma área extremamente inóspita em que se apresentava o território provincial:

Não será ocioso, para corroborar este nosso concei-to, delinear, syntheticamente, a evolução da mulher desde os tempos primitivos até ao seu mais elevado ponto de civilisação actual.

Além da abordagem geográfica, Abel Garcia mencionou a etno-logia, em referência aos estudos sobre crânios, para defender a existência de diferentes graus e escalas do desenvolvimento humano apresentados em distintos povos. No que concerne às mulheres, o autor considerou que, em sociedades onde o meio apresentava-se adverso, elas teriam mais e melhores condições de exercitar suas atividades cerebrais, ao pas-so que nas sociedades onde havia maiores facilidades de ambientação, o cérebro atrofiava-se e a inferioridade feminina mostrava-se de maneira mais acentuada:

Assim, ainda mesmo nas sociedades onde os costu-mes se tem tornado mais suaves e polidos, o cerebro da mulher, à mingua de exercicio, tem-se atrophia-do, accentuando-se cada vez mais sua inferioridade psychica em relação ao homem123.

Para sustentar sua explicação científica, o literato Abel Garcia re-ferenciou Gustave Le Bon, considerado um dos fundadores da psicolo-gia social do século XIX, que destinou tempo e energia para atacar as mulheres ao estabelecer uma retrospectiva histórica que ‘comprovaria’ sua inferioridade intelectual. Segundo as pesquisas do médico francês, nas sociedades ditas primitivas, as mulheres seriam pouco mais desenvolvidas do que as das sociedades contemporâneas por desempenharem uma série

123 GARCIA, Abel. A Mulher Cearense IN A Quinzena, 15 de fevereiro de 1887, parte II, idem, p. 24.

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de atividades nas quais exercitavam suas funções cerebrais. Com o tempo, entretanto, pelas vantagens proporcionadas pelo progresso material às so-ciedades modernas, a mulher teria se acomodado, gradativamente, ao de-sempenhar funções quase sempre restritivas às atividades do lar. A tese de Le Bon versava sobre a seguinte ideia: à medida que a sociedade desen-volvia-se e civilizava-se, mais as mulheres, inversamente ao que acontecia com a sociedade beneficiada pelo progresso, atrofiava-se intelectualmente.

Nas raças mais inteligentes, como é o caso dos pa-risienses, existe um grande número de mulheres cujo cérebro se aproxima mais em tamanho ao do gorila que ao do homem, mais desenvolvido. Essa inferioridade é tão óbvia que ninguém pode jamais contestá-la; apenas seu grau é digno de discussão. Todos os psicólogos que estudam a inteligência feminina, bem como os poetas e os romancistas, hoje reconhecem que as mulheres representam as formas mais inferiores da evolução humana e que estão mais próximas das crianças e dos selvagens que de um homem adulto e civilizado. Elas se des-tacam por sua inconstância, veleidade, ausência de idéias e de lógica, bem como por sua incapacidade de raciocínio. Sem dúvida, existem algumas que se destacam, muito superiores ao homem mediano, mas são tão excepcionais quanto o aparecimento de qualquer monstruosidade, como um gorila com duas cabeças; portanto, podemos deixá-las comple-tamente de lado.124

Gustave Le Bon publicou seus escritos na segunda metade do século XIX, na França, e Abel Garcia, do outro lado do Atlântico, no Ceará, foi provavelmente seu leitor haja vista que ele o mencionou, em artigo da A Qunzena, no que diz respeito às concepções sobre a evolução dos povos, em geral, e das mulheres, em particular. Ele afirmou:

124 Gustave Le Bonn apud GOULD, S. A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991, col. ciência aberta, p.99-100.

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Um notavel anthropologista, o dr. Le Bon, em inte-ressante estudo de craneologia, affirma que – “o estu-do dos cerebros femininos mostra que as raças mais civilisadas, como os Parisienses contemporaneos, há notavel proporção da população feminina cujo cra-neo se approxima mais do gorilla que dos craneos do sexo mascolino mais desenvolvidos”. Conclue, pon-do o volume cerebral em relação com o desenvolvi-mento da intelligencia, que a capacidade das mulhe-res das raças superiores, onde o papel é quasi nulo, é menor que a das mulheres das raças inferiores.125

Especificamente quanto à mulher parisiense, afirmou Abel Garcia:

Em que distingue-se, em geral a mulher parisiense? Tendo parca cultura mental, nenhuma participação no torvelinho da vida publica, apenas apura a sensibilidade em alguns trabalhos artisticos, nas festas fugaces, nas modas bonitas e inconstantes, permanecendo psychologi-camente em paridade com a criança.

A partir desse momento, Abel Garcia intencionou estabelecer contrapontos entre as mulheres civilizadas e uma típica e originalmente cearense, a indígena:

´Numa raça inferior, porem, ´numa tribu de indios das margens de qualquer de nossos grandes rios centraes, a mulher mostra-se sinão superior, ao me-nos igual ao homem; pois este concentrado no ofi-cio da guerra e da caça, deixa-lhe a tarefa de curar da pequena agricultura, a fabricação dos utensilios domesticos e guerreiros, os delicadismos trabalhos da tecelagem e da arte ceramica, em que avigora a potencia cerebral.126

125 Idem, p.24.126 Ibdem.

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Abel Garcia, em seu discurso, parecia esforçar-se em convencer o leitor sobre a veracidade da exposição de suas ideias. Considerava a ciência um conhecimento acima de quaisquer suspeitas, reiterava sua crença na autoridade dos saberes científicos da sua época e ressaltava o rigor dos métodos de observação e análises baseados em seus argumen-tos:

Observamos, analysamos os factos à luz de um cri-terio philosophico-positivo que não permitte des-vios nem dá ensanchas a devaneios da imaginação poetica127.

É oportuno observar que cultura e natureza foram pensadas de forma imbricadas; a natureza era tida como agente influenciador dos comportamentos humanos e estes, por sua vez, interagiam com a natu-reza. Assim, a seca e os elementos primitivos, ou seja, os naturalmente indígenas atuavam na constituição genética e social da mulher cearense. É importante, por fim, destacar, que Abel Garcia, em seu artigo, não objetivava depreciar as mulheres da província do Ceará. Ao contrário, ele acreditava estar prestando-lhe homenagens:

Sim. Si nesta vasta extensão do paiz há um abati-mento das energias, podemos affirmar a existencia, ´neste recanto do Norte, de um povo vigoroso, a que falta somente conveniente cultura intellectual para revelar o seu poder de iniciativa em todos os proble-mas politicos-socieas. A mulher é a demonstração d´essa superioridade128.

Assim, as narrativas literárias e científicas, em sintonia, ofereciam leituras e explicações sobre povos distintos a partir de construções dis-cursivas amparadas sob o mesmo legado da razão e do progresso.

127 GARCIA, Abel. A Mulher Cearense IN A Quinzena, 28 de fevereiro de 1887, parte III, p. 26.128 idem, p. 26.

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1.3. Discurso em contraponto: a filosofia e a psychologia ethnographica.

As ciências como campo de possibilidades e instrumental de ex-plicação para temáticas de viés social também se tornaram objeto de reflexão para o filósofo cearense Farias Brito em artigo da A Quinzena intitulado Duas Palavras Sobre a Psychologia Ethnographica. Inicialmen-te, ele observou que as ciências naturais atuavam em sua época de ma-neira tão intensa que invadiam o dominio do pensamento, apossaram-se como soberanas do campo das investigações philosophica129. Ponderava o au-tor acerca da forte ingerência das ciências em torno do indivíduo como objeto de distintas investigações, entre as quais se encontrava a Psicologia Etnográfica 130 cujos estudos buscavam articular os elementos físicos e sociais pertinentes aos indivíduos em sua relação com a frenologia.

Ao contrário do que se observou nos textos publicados por Abel Garcia, o teor do artigo de Farias Brito era de crítica ao exagero cientí-fico de seu tempo, por considerar que determinados elementos consti-tutivos da vida do indivíduo em sociedade – como o direito, a moral, a linguística – não poderiam ser explicados de forma pragmática e exata. Farias Brito criticava a associação direta entre psicologia e frenologia e o reducionismo quanto à atribuição das ações individuais condicionadas às localizações e funções cerebrais 131.

Segundo Farias Brito, enquanto a frenologia realizava estudos sobre as atividades intelectuais com base na constituição e formação do crânio e do cérebro, a psicologia etnográfica deveria oferecer explicações sobre os comportamentos humanos em sua relação com o meio social. Contudo, para o autor, ambas as disciplinas investigavam as complexi-dades do universo humano de maneira metodológica, empírica e ob-jetiva. O filósofo cearense opunha-se a tal objetividade ao argumentar

129 BRITO, Farias. Duas Palavras Sobre a Psychologia Ethnographica. 15 de fevereiro de 1887, ano I, n °3. 19.130 Idem, p.19.131 BRITO, Farias. Duas palavras sobre a Psychologia Etnographica., parte I. Ano I, n°3, p. 19.

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que fenômenos sociais e, mesmo de âmbito espiritual, não poderiam ser investigados sob os mesmos paradigmas dos fenômenos físicos. Sobre a psicologia etnográfica, ele afirmou:

Por mais que se torne geral a tendencia de explicar to-dos os phenomenos da natureza em função da materia e do movimento, é impossivel deixar de reconhecer que na ordem moral existe sempre uma ultima parte a que não se pode aplicar o conceito de força.132

A crítica de Farias Brito, nesse artigo, apresentou-se como um contraponto e resposta à ânsia dos cientistas de sua época em dese-jar desvendar mistérios e segredos da alma humana e que despertava grande número de entusiastas não apenas no cenário europeu, como adentrava no território nacional, ganhando espaço no Ceará na segunda metade dos oitocentos. Portanto, as críticas elaboradas por Farias Brito constituíam-se mais como uma exceção do que a regra observada nas publicações da A Quinzena.

2. Jornal O Libertador e os saberes médicos.

Boa parte dos intelectuais da província do Ceará via com bons olhos o avanço social dos saberes médicos e destinou-lhes espaços em seus jornais e revistas para as novidades científicas, a exemplo disso des-tacamos duas matérias no jornal de Fortaleza dos anos de 1880, O Li-bertador, lido pelas elites progressistas locais.

A primeira matéria intitulou-se O Futuro - Revelado pelo Estudo do Craneo e da Mão133 e foi publicada na seção dos classificáveis. Ela referia-se a divulgação de consultas realizadas por um médico francês que estava em temporada em Fortaleza. Tratava-se do Dr. Viremont,

132 BRITO, Farias. Duas palavras sobre a Psychologia Etnographica. - 28 de fevereiro 1887, parte II. Ano I, n°4, p. 27.133 LIBERTADOR, O Futuro Revelado Pelo Estudo do Craneo e da Mão, 21 de maio de 1887.

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que, vindo de outras províncias brasileiras como Pernambuco e Bahia, onde fez brilhantes sucessos134, estaria, a partir de maio de 1887, no Ceará. O objetivo de sua estada na capital era oferecer consultas a quem tives-se interesse em conhecer o futuro das pessoas, suas disposições e aptidões naturais a partir do estudo das mãos e da fisionomia. Para tal, o Dr. Viremont utilizava-se de seus conhecimentos em frenologia, fisiogno-monia e quiromancia, este último defendido como saber sem nenhuma conotação mística. Todos os conhecimentos eram retratados como com-provadamente científicos. O público a quem se destinava Viremont era tanto o infantil como o adulto e, para este especificamente, o médico garantia aos pais:

Quem pois desejar conhecer a importancia das en-fermidades do cerebro e as disposições naturaes e organicas d´um menino para dirigir consoante ellas os seus estudos, quem desejar conhecer os aconteci-mentos futuros de sua existencia conforme as regras da phrenologia, da phisiognomonia e da chiroman-cia combinadas, tudo lhe será desvendado nos me-nores detalhes, pois tudo é visivel na palma da mão à lente do Dr. Viremont.

É importante destacar que os intelectuais de Fortaleza circulavam e mantinham relações entre si e em vários espaços da cidade. O consul-tório do Dr. Viremont, por exemplo, situava-se na mesma sala onde se reuniam os integrantes do Club Literario, agremiação literária respon-sável pela publicação da A Quinzena. No jornal O Libertador, também colaborava membros do Club Literario. Em geral, nesses espaços, respi-rava-se o mesmo ambiente de celebração da medicina e nutria-se das mesmas expectativas acerca dos avanços das ciências.

A segunda matéria data de abril de 1888 e também foi publicada no O Libertador. Trata-se de um anúncio intitulado CURA CERTA DA

134 Idem.

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CHOREA, DA HISTERIA...135 no qual visava à comercialização de de-terminado medicamento capaz de oferecer cura para quatro males: his-teria, convulsões, nervosismo das mulheres quando estavam no período menstrual e epilepsia. Tudo junto e com base apenas na ingestão de um único remédio, as Grageas Gelineau.

Na matéria, observa-se a reverberação de diversas narrativas produzidas durante o século XIX em que se articulavam os temas da menstruação, epilepsia e histeria, muitas vezes, de maneira associativa e integrada. Na literatura naturalista, a associação entre menstruação e histeria produziu distintas narrativas em prosas e poesias; no campo da jurisprudência, o epiléptico foi classificado tanto como doente como um tipo de criminoso e na medicina, a relação entre menstruação e histeria tornou-se alvo de diferentes e especializadas hipóteses e teses136.

O remédio anunciado na matéria do O Libertador, o Grageas Ge-lineau, fazia alusão ao médico francês, Jean Baptiste Gelineau que, em 1882, ao estudar 14 casos de pessoas que sofriam de sonolência excessi-va diurna, descobriu uma síndrome nomeada de narcolepsia, descreven-do-a como manifestação de várias patologias. Como resultado de suas pesquisas, o Dr. Gelineau concluiu que a doença estava correlacionada a eventos carregados de conteúdos emocionais dos pacientes, descritos muitas vezes, como ataques de fraqueza137.

A partir das matérias publicadas no jornal O Libertador e na re-vista A Quinzena, observa-se que entre as elites literárias de Fortaleza,

135 LIBERTADOR, Cura Certa da Chorea, da Histeria..., 9 de abril de 1888.136 DARMON, P. Médicos e Assassinos na Bella Époque – a medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. GOULD, S. A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991, col. ciência aberta. HARRIS, Ruth. Assassinato e Loucura – medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de janeiro. Rocco, 1993.MOTA, André. Quem é Bom já Nasce Feito – sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. DP&A, 2003. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. SP: Cia das Letras, 1993. SODRÉ, Nélson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, col. Vera Cruz (Literatura Brasileira), vol. 82. 137 PROENÇA, Carmen Sylvia A. Oliveira. Narcolepsia: muito além do sono; eficácia adaptativa do ego equi-líbrio psíquico e destinações inconscientes. Dissertação de mestrado, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. SP, 2003.

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em fins dos anos de 1880, havia de modo em geral significativa defesa do primado da razão como critério promotor de progressos e desenvol-vimentos tanto ao nível individual como social. Contudo, a primazia da razão também abarcava o seu oposto, o desprestigiado: a desrazão.

3. Gustavo Barroso e os tipos sociais: anormais e normais.

Gustavo Barroso foi outro literato cearense que exerceu influên-cia no ambiente intelectual do estado, na primeira metade do século XX. Formado pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras, em 1912, publicou a obra Terra do Sol 138, dividida em cinco partes em que retratou aspectos da vida dos moradores do sertão do Ceará, a partir da utilização de elementos natu-rais e sociais. A estrutura da obra é condizente com as teses construídas durante o século XIX em que se atribuía aos elementos relativos ao am-biente físico os fatores determinantes para a constituição dos indivíduos e da sociedade.

Na parte O Homem, Gustavo Barroso analisou os tipos cearenses dos sertões em uma época acentuadamente marcada pela construção de projetos identitários nacionais em que se definiam imagens anta-gônicas em torno do sertão e do litoral como espaços marcados pelo atraso e progresso, respectivamente. A obra está inserida nesse cenário cultural intelectual e o autor descreve os moradores do sertão cearense, enumerando-os em três tipos populares: os desaparecidos, os anormais e os normais. Iremos analisar neste item os dois últimos tipos sociais.

Segundo Gustavo Barroso, existiam dois grupos de anormais no Ceará: os cangaceiros e os curandeiros; ambos descritos de forma bas-tante pejorativa. Os cangaceiros foram definidos como: selváticos, fero-zes, perversos e covardes e, antes de tudo, classificados como criminosos.

138 BARRROSO, Gustavo. Terra do Sol. Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza. ABC Editora, 2006, p.76.

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Suas ações seriam decorrentes de problemas de ordem biológica, étnica e climática, posto serem eles resultados de descalabro nervoso e produto da ancestralidade do cruzamento étnico139.

O aspecto racial em torno da mestiçagem foi evocado pelo autor para justificar a composição étnica e o comportamento social criminoso dos cangaceiros, ao afirmar inicialmente que raramente havia cangacei-ros brancos e ao sentenciar mais adiante que eram sempre mestiços. O autor utilizou-se de descrições anatômicas sobre sua constituição facial para destacar semelhanças com animais, em especial, os orangotangos ao se referir à boca e aos dentes, além de mencionar aspectos relativos à higiene, pois para o autor, os cangaceiros apresentavam-se de modo sujo. Assim, eles são descritos, como: (...) mal formados, possuíam faces hor-rendas, assemelhavam-se aos simiescas com contração de orangotango (...), eram nomeados de negro de bocarra (...) sujos (...) lembram dentes de um bicho que vivesse afocinhando o lodo 140. Por fim, o cangaceiro era descrito como um tipo de gente muito baixa pelo cruzamento e pelas taras141.

O ambiente físico e os elementos biológicos foram descritos pelo autor como os fatores responsáveis pelos comportamentos do cangacei-ro, ao afirmar que: a vida selvagem do cangaço atrai cérebros predispostos ao crime. O autor reforça ainda a imagem do sertão como lugar do atraso e construtor de seus próprios valores, regras e leis, ao afirmar:

Matar não é crime hediondo no sertão. É coisa co-mum. Crime lá é o crime contra a honra e não o crime contra a vida. Assim estabelecem as usanças e querem as condições climatéricas e étnica. Havendo ocasião, todos matam, mas nem todos roubam. O ladrão é raro, o assassino é comum142.

139 Idem, p. 83.140 Ibidem, p. 83-86. 141 Ibidem, pp.88, 107.142 Ibidem, p.98.

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Gustavo Barroso define ainda os cangaceiros como seres degene-rados e tarados pelo atavismo e que possuíam nevroses de todas as espécies. Atribuía como causas para os seus atos os determinantes psicológicos de bastardia étnica e dos instintos degenerativos; astenia última dos degenerados e que possuíam predisposições redutíveis ao roubo, ao estupro e ao assassí-nio143. Além do viés criminoso, os cangaceiros possuíam muitas supers-tições, sofriam de nevroses místicas e agiam como psicopatas sanguinários. Eram, portanto, infinitamente miseráveis degenerados completos, nevropa-tas ignóbeis, além de possuírem demência do cérebro144.

A partir do exposto, observa-se que, embora não houvesse men-ção direta aos teóricos da medicina ou do direito em sua obra, Gustavo Barroso partilhava de teses publicadas e aceitas em sua época como as de Cesare Lombroso acerca da teoria do criminoso nato, no campo da jurisprudência e as de Pinel e Esquirol, sobre as monomanias, no campo alienismo e psiquiatria145.

O segundo tipo anormal retratado por Gustavo Barroso foi o curandeiro, também considerado indivíduo resultado de má composição étnica a partir do cruzamento das raças africanas e indígenas, tidas como inferiores em suas heranças culturais históricas devido às reminiscências das bruxarias africanas e indígenas. Para o autor, quase sempre o curandeiro era negro, além de ser idoso, sebento, embruteado, ou um mestiço esquáli-do, sujo, com tiques nervosos no rosto (...) e estava imerso na indiferença de profundo cismar, dizem as velhas com espanto e que vai cochichando com o diabo146. Sobre o ambiente social, Barroso menciona o local onde residia e

143 Ibidem, pp. 83-89.144 Ibidem, pp. 84, 95.145 BIRMAN, J. A Psiquiatria do Discurso da Moralidade. Editora Graal. CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. RJ: Forense Universitária, 2006.CASTEL, R. A Ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1978.GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2005. FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva 1972. FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. 3ª edição. RJ: Tempo Brasileiro, 1988. FOUCAULT, M. Os Anormais, SP: Martins Fontes, 2001.PORTER, Roy. Uma História Social da Loucura. Ed. Zahar, 1987.146 Ibidem, p.109.

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trabalhava o curandeiro, descrevendo-o como sala imunda e lôbrega e con-clui que ele era um charlatão que agia sob o efeito de sugestão moral. Ape-sar disso, o autor reconhecia sê-lo um tipo bastante popular nos sertões.

Para Gustavo Barroso os tipos normais do Ceará eram os sertane-jos, fazendeiros e vaqueiros, descritos e repletos de bons adjetivos. Con-siderava-os um povo bom, honrado, inteligente, corajoso, orgulhoso, cal-mo e sereno. O meio e a hereditariedade foram novamente referenciados para defini-los. Tratava-se de um povo hospitaleiro como todo homem pri-mitivo e rotineiro por educação e por hereditariedade. Mas, apesar de boa índole, era também um povo infeliz como infeliz é a terra147 porque ele atuava em eterno combatente com o meio, com uma natureza que se mostra impiedosa e muda. Porém, mesmo com as adversidades, esse tipo social não se perturbava com a maior desgraça, como epidemias, por exemplo.

Em menção a Euclides da Cunha, Gustavo Barroso afirmou ser esse tipo a rocha viva de nossa nacionalidade. Entretanto, não ignorava nem atenuava seus defeitos, pois também o considerava descuidado e in-dolente, sobretudo em época de inverno ou fartura; além de criticar sua forma de falar, mal e arrastada, e afirmar serem poucos os alfabetizados148.

Gustavo Barroso buscou adentrar-se no universo das populações do sertão longínquo utilizando-se de arcabouços teóricos em que arti-culava tanto as referências do discurso médico acerca das noções de nor-malidade e anormalidade como de determinismos étnicos, geográficos, climáticos e biológicos.

Contudo, seus argumentos e fundamentos pretensamente cientí-ficos estavam fortemente atrelados a uma narrativa em que se eviden-ciava um teor moral no qual eram expostas as descrições sobre as etnias negras e indígenas de maneira recorrentemente depreciativa e em que se

147 Ibidem, pp.117,8.148 Ibidem, pp 121, 129.

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reforçava a imagem da mestiçagem como elemento formador de tipolo-gias sociais tidas como atrasadas na sociedade brasileira149.

Considerações Finais

Tanto os intelectuais do Club Literario e do O Libertador, em fins do século XIX, como Gustavo Barroso, no início do século XX, estavam inseridos em semelhante e vasto campo de informações propostos por diversas matrizes científicas; o que nos permite afirmar que esses litera-tos foram não somente consumidores, mas em sua maioria, defensores e adeptos das reflexões acerca das temáticas das ciências, medicina, razão e da desrazão.

Tal cenário intelectual não se configurava como um universo de abstrações ou de meras divagações e deleites individuais. Ele tinha pro-funda relação com o cotidiano da cidade de Fortaleza e da província e do estado do Ceará na medida em que, durante os séculos XIX e XX, surgiram espaços, instituições, ideias e práticas com a finalidade de exercer controle e vigilância em relação a determinados sujeitos que in-comodavam e transgrediam as normas sociais, como cangaceiros, curan-deiros e loucos. No que tange especificamente a este segmento social, é importante frisar que, no mesmo ano da fundação do Club Literario, em 1886, foi inaugurado o primeiro asilo para alienados no Ceará, o São Vicente de Paula150.

As noções de ciência, psicologia, razão e desrazão não possuíam exclusividade ou pertencimento natural às narrativas científicas e mé-

149 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Nem Rothschild Nem Trotsky. O pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Revista de História, Brasil, n. 129-131. 1994. JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega. O anticomunismo de Gustavo Barroso como instrumento para um discurso intolerante. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011.150 OLIVEIRA, Cláudia Freitas de. O Asilo de Alienados São Vicente de Paula e a Institucionalização da Loucura no Ceará (1871-1920). Tese de Doutorado. UFPE. Recife, 2011.

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dicas; ao contrário, foram apropriadas por outros saberes e linguagens, como os literários. Nessa perspectiva, os ambientes e vocabulários cien-tíficos devem ser pensados a partir de outras dimensões e constituídos em cotidianos de distintos segmentos sociais.

O artigo propôs problematizar que, no âmbito da produção his-tórica e historiográfica, a literatura apresenta-se como relevante docu-mento produtor de inteligibilidades e sentidos que, independente de não ter pretensão de se apresentar como cientifica, foi extremamente eloquente para a compreensão de cenários possíveis que envolvem te-máticas relativas ao campo das ciências, saúde, medicina.

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A PROFISSIONALIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE NO CEARÁ: A

CRIAÇÃO DA FACULDADE DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA (1916)

Georgina da Silva Gadelha151∗

Nas primeiras décadas do século XX no Ceará, o número de di-plomados em farmácia e odontologia ainda era restrito, e o número de práticos de farmácia expressivo. Nesse ambiente, em que havia a predo-minância de curadores que não passaram por um ensino formal, o mé-dico Eduardo Salgado, em 1914, no edifício do colégio Liceu do Ceará, sugeriu a criação de uma Faculdade de Medicina Tropical, Farmácia e Odontologia.

A proposta do médico de criar uma faculdade que integrasse as três profissões de saúde não obteve êxito. O curso de medicina só pôde ser criado em 1948, com o funcionamento da Faculdade de Medicina do Ceará. Apesar terem conseguido aprovação para a proposta inicial, o projeto de fundar uma faculdade foi mantido, porém, restrito à forma-ção dos farmacêuticos e dos dentistas.

As atas das reuniões do Centro Médico Cearense, criado em 1913, não esclarecem o porquê da não abertura do curso de medici-na. Pode-se especular que, pelo fato de ser um curso que necessitava

151 ∗ Pós-doutoranda – Mestrado Acadêmico em História (MAHIS)/Universidade Estadual do Ceará, Fortale-za. Bolsista CAPES. Estudos sobre a profissionalização da saúde no Ceará iniciados no doutorado na Casa de Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/RJ). Email: [email protected]

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de muitos recursos para ser implementado, o projeto tenha encontrado restrição e/ou orientação por parte do poder público que inviabilizou o seu funcionamento, permitindo apenas a criação dos de farmácia e odontologia.

Em 2 de outubro de 1916, o decreto estadual n°. 1.3912, reconhe-ceu, como de utilidade pública, a Faculdade de Farmácia e Odontologia do Ceará (FFOCE), em Fortaleza.

A FFOCE foi criada em dezembro de 1915 e começou suas ati-vidades a partir de abril 19163, seguindo as orientações das congêneres federais, sob a tutela dos seguintes profissionais: 4

Médico: José Odorico de Moraes;

Naturalista: Francisco Dias da Rocha;

Farmacêuticos: Raymundo Leopoldo Coelho de Arruda, Affonso de Pontes Medeiros, Joaquim Frederico Rodrigues de Andrade e José de Moraes Studart;

Cirurgiões-dentistas: Francisco de Sá Roriz, Raymundo Gomes, Pedro Veríssimo de Araújo, Américo M. Picanço, Mozart Catunda Gondim e Mamede Cirilo de Lima.

O médico José Odorico de Moraes; os cirurgiões-dentistas Raymundo Gomes, Mamede Cirilo de Lima; e o farmacêutico Affonso de Pontes Medeiros foram fundadores do CMC, em 1913.

A diretoria da FFOCE5 foi distribuída da seguinte forma:

Diretor: Cir-dent. Francisco de Sá RorizVice-Diretor: Farm. J. F. Rodrigues de AndradeSecretário: Cir-dent. Mozart Catunda GondimTesoureiro: Farm. Affonso de Pontes MedeirosBibliotecário: Cir-dent. Américo Moraes Picanço

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No ano de 1917, o quadro de professores da FFOCE foi compos-to por 15 profissionais, sendo sete farmacêuticos, sete cirurgiões-dentis-tas e um médico. Destes, 5 pertenceram ao CMC: 3 foram fundadores da instituição (os farmacêuticos Joaquim F. Rodrigues de Andrade e Af-fonso de Pontes Medeiros; e o cirurgião-dentista Raymundo Gomes) e 2 pertenceram à diretoria (o médico Odorico de Morais - orador [1913-1914; 1916-1917] e o cirurgião-dentista Américo de Moraes Picanço - Comissão de Farmácia e Odontologia [1929]).

Na tabela abaixo apresentamos a relação dos professores e as dis-ciplinas a que se vincularam institucionalmente os 15 profissionais na FFOCE:

TABELA 1 _ PROFESSORES E DISICPLINAS DA FACULDADE DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA DO CEARÁ (1917)

CURSO DE FARMÁCIAFARMACÊUTICOS

Clóvis Araújo Física internaF. Borges de Moura Química inorgânicaRaymundo L. C. de Arruda História naturalMario Mamede FarmacologiaJ. Moraes Studart Química orgânica e biologiaJ. F. Rodrigues de Andrade Química analíticaAffonso de Pontes Medeiros Matéria médica e arte de formular

CURSO DE ODONTOLOGIAMÉDICO

Odorico de Moraes Anatomia microscópicaCIRURGIÕES-DENTISTAS

Francisco de Sá Roriz Anatomia DescritivaMozart Catunda Gondim FisiologiaMamede Cyrino Anatomia medico-cirúrgicaPedro Veríssimo PatologiaAmérico de Moraes Picanço Terapêutica e HigieneRodolpho Bezerra de Menezes Clínica odontológicaRaymundo Gomes Prótese dentária

(FONTE: POLYMATHICA, ano 1, n°1, março de 1917,p. 19)

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O curso inicialmente tinha a duração de dois anos. Para o curso de farmácia eram ofertadas as seguintes disciplinas por séries: 1a sé-rie: história natural, química inorgânica, física e farmacologia; 2a série: química orgânica, química analítica e arte de formular. Para o curso de odontologia as disciplinas foram: 1a série: anatomia descritiva da cabeça, histologia (anatomia microscópica), fisiologia e patologia dentária; 2a série: anatomia médico-cirúrgica, higiene da boca, clínica odontológica e prótese dentária.6

A primeira turma de alunos da FFOCE formou-se em 19177 (9 farmacêuticos e 5 cirurgiões-dentistas) e no mesmo ano foi promulgada a Lei Estadual 1.459 conferindo à instituição a outorga de utilidade públi-ca, regulando a fiscalização e os direitos dos estudantes da Faculdade de Farmácia e Odontologia (BARBOSA, J., 1994, p. 88-89). Após a Lei, o programa do curso foi ampliado para três anos, incluindo novas disciplinas.

No primeiro semestre de 1918, o quadro da diretoria da FFOCE sofreu modificações. O farmacêutico J. F. Rodrigues de Andrade deixou a vice-presidência, que foi assumida pelo dentista Francisco de Sá Roriz (diretor em 1917) e a presidência ficou sob responsabilidade do médico Raymundo Leopoldo Coelho de Arruda.

A composição da diretoria foi a seguinte, em 1918:Diretor: Dr. Raymundo Leopoldo Coelho de ArrudaVice-Diretor: Cir.-dent. Francisco de Sá RorizSecretário: Cir.- dent. Mozart Catunda GondimTesoureiro: Farm. Affonso de Pontes MedeirosBibliotecário: Cir.- dent. Américo Moraes Picanço

Para o ano de 19188, a faculdade ofereceu vinte e uma disciplinas, sendo dez para o curso de farmácia e onze para o de odontologia. Atua-ram como professores, seis farmacêuticos, oito médicos, seis dentistas e um naturalista, Francisco Dias da Rocha9, que ficou encarregado das dis-ciplinas relacionadas à história natural, como a botânica e a mineralogia.

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Observa-se, no quadro de professores de 1918, aumento signifi-cativo no número de médicos. Em 1917, havia apenas um médico lecio-nando no curso de odontologia. Em 1918, oito médicos integraram o corpo docente da FFOCE, sendo três no curso de farmácia e cinco no de odontologia.

A tabela abaixo apresenta a distribuição das disciplinas por curso e o nome do professor responsável por cada uma delas durante o ano de 1918.

TABELA 2_PROFESSORES E DISCIPLINAS DA FACULDADE DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA DO CEARÁ (1918)

CURSO DE FARMÁCIAFARMACÊUTICOS

Raymundo L. C. de Arruda Física médicaJosé Moraes Studart Química Inorgânica e OrgânicaJoaquim Frederico Rodrigues de Andrade Química analíticaAffonso de Pontes Medeiros BromatologiaHeribaldo Dias da Costa FarmacologiaFrancisco Borges de Moura Química industrial

MÉDICOSThomaz Pompeu de S. Brazil Filho MicrobiologiaAdalberto Moraes Studart ToxicologiaJ. Nelson de Araújo Catunda Higiene

NATURALISTAFrancisco Dias da Rocha História Natural

CURSO DE ODONTOLOGIAMÉDICO

J. N. Araújo Catunda HigieneThomaz Pompeu de S. B. Filho MicrobiologiaAntônio de Góes Ferreira Anatomia descritivaJosé Odorico de Moraes HistologiaJosé Nelson Catunda Fisiologia

CIRURGIÕES-DENTISTASPedro Veríssimo de Araújo Patologia cirúrgica e anatomia patológicaRaymundo Gomes Prótese e metalúrgicaFrancisco de Sá Roriz Clínica odontológica estometologiaAmérico Moraes Picanço Técnica odontológicaMamede Cyrino de Lima Terapêutica dentáriaMozart Catunda Gondim Medicina legal aplicada

(FONTE: POLYMATHICA, Fortaleza, ano 2, n°8, março a junho de 1918, p. 29)

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Até 1881, não havia cursos específicos para dentistas no Brasil. Os que queriam exercer a profissão deveriam prestar um exame de habi-litação (em cadáveres) junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ou da Bahia e serem aprovados. Não havia a exigência de nenhum curso preparatório secundário. Os cursos de Odontologia só surgiram no Bra-sil, após a Reforma Sabóia, de 1884, que autorizou a criação de cursos específicos. Com a criação dos cursos10, passou-se a exigir a diplomação para o exercício da odontologia. Segundo Mott (2008), o acesso aos cursos superiores de Odontologia exigia formação preparatória para in-gressar e específica durante o curso:

Para a admissão nos cursos era necessária a aprova-ção nos exames de português, francês, inglês, arit-mética, álgebra e geometria. O curso inicialmente ministrado em três anos foi reduzido para dois anos a partir de 1890. A princípio as disciplinas minis-tradas eram química, física, anatomia, histologia, fisiologia e higiene, clínica e prótese dentária. Fo-ram paulatinamente incluídas: patologia, terapêuti-ca dentária, jurisprudência e deontologia dentária (MOTT, 2008, p. 99-100).

De acordo com as Tabelas 1 e 2 referentes aos professores e dis-ciplina da FFOCE nos anos de 1917 e 1918 é possível perceber que o curso de odontologia ofertou disciplinas sugeridas em 1884 e 1890.

Ao programa específico do curso que contava com oito disci-plinas, se contarmos terapêutica e higiene como apenas uma, em 1917 foram acrescidas três (microbiologia, histologia e técnicas odontológi-cas), passando para 11 em 1918. Algumas disciplinas foram suprimidas ou receberam outra denominação em 1918, por exemplo, a anatomia microscópica foi oferecida em 1917 e não foi ofertada no ano seguinte. O mesmo aconteceu com a disciplina medicina legal aplicada que fazia parte do currículo de 1918, e não existia em 1917.

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Em 1879, quando o curso de farmacêutico passou a condição de Escola anexa à Faculdade de Medicina, ficaram constituídas como dis-ciplinas: física, química mineral, mineralogia, química orgânica, botâ-nica, zoologia, matéria médica terapêutica, toxicologia, farmacologia e farmácia prática (VELLOSO, 2007). O curso de farmácia da FFOCE também ofertou disciplinas obrigatórias11, próprias dos cursos oficiais, para a obtenção do diploma de farmacêutico. O título conferido ao di-plomado no curso de farmácia e a situação do curso foram alvos de importantes debates durante o século XIX.

Desde a década de 1850, iniciou-se um movimento em prol de reformas no ensino da Faculdade de Medicina. Na ocasião, os farma-cêuticos inseriram-se nos debates e passaram a solicitar a autonomia do curso de farmácia e a sua titulação em bacharel.

Em fins de 1852, quando o governo imperial resolveu reformar o ensino médico, os farmacêuticos da Sociedade Farmacêutica Brasileira (1851) reivindicaram ao governo Imperial a criação de um bacharela-do e de uma cadeira prática para o curso de farmácia. A proposta foi aprovada pelo Decreto n° 1.169, de 07/05/1853, mas não foi executada (VELLOSO, 2007).

Em 1854, os Estatutos da Faculdade de Medicina foram refor-mulados através do Decreto n°1.387 de 28 de abril. Os Estatutos esta-beleceram a criação de uma escola prática como e quando o governo Imperial julgasse conveniente, previram a criação de um horto botânico, quatro gabinetes (física, história natural, anatomia e matéria médica), um laboratório de química, oficina farmacêutica, dentre outras disposi-ções, que como as anteriores, não saíram do papel. Nesse período, a for-mação dos médicos no Brasil passava por um princípio centralizador e hierárquico por parte do governo Imperial, que abafava todas as deman-das corporativas (EDLER, 1992). Apesar das promessas não cumpridas pelos Estatutos, houve um aumento no currículo do curso de medicina.

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Segundo Velloso (2007), foi nesse período que a farmácia e a medicina legal passaram a fazer parte da seção das ciências acessórias na estrutura acadêmica das faculdades de medicina12.

Em 1861, quando as aulas práticas do curso de farmacêutico da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro se iniciaram a questão da titu-lação dos farmacêuticos foi retomada. O Instituto Farmacêutico (1858) encaminhou uma representação à Assembleia Geral Legislativa solici-tando o título de bacharel em ciências naturais para os farmacêuticos formados e os que viessem a se formar. A comissão da Faculdade de Medicina que analisou a solicitação não aprovou o título de bacharel em ciências naturais, mas sugeriu o de bacharel em farmácia, desde que o curso ampliasse seus estudos preparatórios de latim e de filosofia e a matéria de toxicologia. Apesar do parecer, o bacharelado em farmácia não se concretizou. (VELLOSO, 2007, p. 269).

A reforma Leôncio de Carvalho, que tinha como principal pro-pósito a liberdade de ensino e a melhoria de suas condições, através do decreto n° 7.247, de 19/04/1979, decretou que o curso de farmácia passaria à condição de Escola anexa à Faculdade de Medicina, sem in-terferir na titulação vigente ao diplomado.

A reforma Sabóia (decreto n° 9.331 de 25/10/1884), remodelou os Estatutos da Faculdade de Medicina e manteve o curso de Farmácia anexo ao de Medicina.

Nem a reforma Leôncio de Carvalho nem a Sabóia incluíram o título de bacharel ao diploma do curso, tendo mantido apenas o título de farmacêutico. A proposta de criação de um curso superior para a Farmá-cia só foi retomada em 1916. Nesse mesmo ano, foi criada a Associação Brasileira de Farmácia, no dia 20 de janeiro. Entretanto, foi somente em 1925 (decreto n°16.782-A de 13 de janeiro) que as escolas de Far-mácia conseguiram a condição de Faculdades anexas às de Medicina e somente em 1937 (Lei n° 452 de 5 de julho) tornaram-se independentes (VELLOSO, 2007).

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A FFOCE foi criada em 1916, período em que o debate em tor-no da necessidade da criação de um curso superior de Farmácia por par-te do governo republicano é retomado e seis anos após a promulgação da Lei Orgânica do Ensino Superior e do Ensino Fundamental. Essa lei instituía ao ensino superior e secundário, público e particular, a autono-mia financeira, disciplinar e pedagógica dos cursos. Provavelmente, sem a promulgação da Lei Orgânica, não teria sido possível criar a FFOCE por particulares, pois, de acordo com Velloso (2007), foi somente em 1937 que as Faculdades financiadas pelo governo se tornaram indepen-dentes e autônomas da Faculdade de Medicina. No Ceará, a Faculdade de Medicina só foi criada em 1948, ou seja, 32 anos depois da criação da FFOCE.

A criação da FFOCE, nesse quadro de debates pelo reconhe-cimento do curso de farmácia como independente e por sua titulação, demonstra o empenho dos profissionais da saúde do Ceará em prover o estado de cursos que os profissionalizassem. Mesmo sendo uma ins-tituição particular, seguiu o currículo do ensino público, como vimos anteriormente.

Em 1920, a infraestrutura da FFOCE era composta por “(...) um excellente gabinete de História Natural, de um pequeno gabinete de Anatomia, de um bem montado Laboratório de Analyses, de um gabinete de Clínica e de Próthese, de uma pequena Pharmacia e está(va) installando um gabinete de Bromatologia.”13.

Em 1917, foi criada a primeira revista da FFOCE denominada de Polymathica cujo principal objetivo era dar a conhecer, por meio do campo intelectual, as ações da Faculdade:

O corpo docente da Faculdade resolveu, pois, crear uma revista, certo de que dará mais vida e desenvol-vimento ao novo instituto, levando-lhe o nível in-tellectual e ampliando-lhe a esphera da acção. Será

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o órgão representativo da Escola, o expoente dos vários estádios de sua existencia. Nasceu della. Vi-verá de sua vida, respirando o mesmo ar, nutrindo--se do seu plasma, havendo-lhe a seiva. A mestres e discípulos deparar-se-á campo aberto e propicio aos surtos da actividade mental.14

Infelizmente, não localizamos referências sobre o período de du-ração da revista. Localizamos apenas exemplares da Polymáthica15 de 1917 e 1918, o que nos faz deduzir que sua vida foi efêmera, uma vez que a Faculdade existe até hoje, tendo sido federalizada em 1950. Em 1965, foi dividida em duas: uma de Farmácia e a outra de Odontologia.

Apesar da ausência de uma vasta documentação referente à FFO-CE, a sistematização de fontes diversas (relatórios de higiene apresen-tados aos residentes da província, artigos das revistas do CMC e da Polymáthica etc.) e suas leituras a contrapelo16, permitem refletir sobre a importância da FFOCE para o processo de profissionalização das profissões da saúde no estado para além da formação profissional, mas também sobre a atuação dos membros da FFOCE em atividades filan-trópicas como a higiene bucal da população.

A faculdade cumpriu seu papel de formar farmacêuticos e den-tistas e restringir o mercado de trabalho aos diplomados, relegando aos práticos, que não passaram por uma formação em ensino superior, a posição de exercício ilegal dessas profissões.

COMBATE AO EXERCÍCIO ILEGAL DA PROFISSÃO

Ao analisar os Relatórios de Higiene e as atas das reuniões do CMC publicadas nos seus periódicos, identificou-se que as queixas dos membros da instituição foram constantes em relação à ausência de fis-calização dos práticos de farmácia.

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O médico Aurélio de Lavor, no Relatório apresentado ao Inter-ventor Federal, general Fernando Setembrino, que estava no exercício da presidente do estado, em 1914, demonstrou que, entre 1893 e 1914, os práticos de farmácia solicitaram, junto ao governo, 100 licenças de aberturas de farmácias no interior e na capital. A quantidade desses es-tabelecimentos evidenciava segundo o médico que “o número de práti-cos é [era] avultado (...)”18.

Após a exposição dos dados, o médico enfatizou a necessidade de medidas que limitassem o aumento do número dos práticos, que com-petiam com os farmacêuticos o mercado de trabalho, prestando serviço sem qualidade, por não terem passado por um ensino formal que lhes autorizasse o exercício da manipulação correta das receitas:

Já é tempo de, senão supprimir a classe dos práticos, pelo menos estabelecer condições sevéras e restric-tas, afim de limitar o mais possível taes licenças, que muito concorrem para desprestigiar e amesquinhar a classe dos diplomados, alem do grande perigo a que fica exposta a população entregue a taes phar-maceuticos improvisados, que por via de regra, são de indivíduos ignorantes, desconhecedores da arte de manipular.19

Em 1913 foram registrados 45 práticos de farmácia no estado do Ceará.20 Em 1914, houve o registro de dois farmacêuticos e nove práti-cos de farmácia; desses, dois, sob a responsabilidade de um farmacêutico diplomado, fixaram residência na capital.21 Como se observa, no ano de 1914, o registro de práticos foi superior ao de farmacêuticos formados. Fazia-se necessário, do ponto de vista dos membros do CMC, mudar essa realidade.

Para as profissões de saúde se profissionalizarem não era suficien-te apenas sua expansão institucional (clínicas, hospitais, maternidades etc.); era necessário também que o mercado de trabalho fosse restrito

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aos indivíduos devidamente habilitados em cursos superiores. O cres-cimento do número de farmacêuticos formados ocasionaria uma nova configuração profissional. A proporção em que os conhecimentos e prá-ticas científicas concernentes à saúde fossem inseridos e credenciados cultural e institucionalmente na sociedade, não haveria mais necessida-de da concessão de licenças para práticos.

Após a fundação da FFOCE (1916), através da análise dos regis-tros de profissionais da saúde do Estado, observa-se que os farmacêuti-cos foram os que mais se diplomaram no estado. Os cirurgiões-dentistas tiveram uma dinâmica mais lenta.

Em 1922, o registro de diplomas e certificados junto a Inspecto-ria de Hygiene foi o seguinte: 12 farmacêuticos e seis práticos de farmá-cia e nenhum cirurgião-dentista. Para o mesmo ano, 15 farmacêuticos pediram a licença para abrir farmácias no estado, enquanto apenas oito práticos de farmácia fizeram a mesma solicitação.22

Em 1923, a Inspectoria de Hygiene apresentou o quadro de far-macêuticos e cirurgiões-dentistas no estado: 85 farmacêuticos e 21 ci-rurgiões-dentistas. Os práticos não foram mencionados. Nesse mesmo ano, registraram-se cinco farmacêuticos e dois cirurgiões-dentistas.23

Após a criação da FFOCE, houve um deslocamento dos espaços geográficos de formação dos farmacêuticos, que antes eram na Bahia e no Rio de Janeiro para o Ceará, o que proporcionou aumento signifi-cativo de profissionais diplomados em curso superior, pois passou a ser possível a formação dentro do próprio estado, o que reduzia as despesas com os estudos.

Os dados referentes ao número de diplomados em relação aos práticos de farmácia podem ser observados graficamente:

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GRÁFICO 1 _ FARMACÊUTICOS, PRÁTICOS DE FARMÁCIA E CIRURGIÕES DENTISTAS REGISTRADOS EM 1922 E 1923

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

1922 1923

FARMACÊUTICOS

PRÁTICOS DE FARMÁCIA

CIRURGIÃO DENTISTA

(FONTE: RELATÓRIO APRESENTADO AO EXM. SNR. DR. MANOEL LEIRIA DE ANDRADE, SECRETÁRIODOS NEGÓCIOS DO INTERIOR E DA JUSTIÇA, PELO DR. JOSÉ PARACAMPOS, DIRETOR DE HYGIENE, EM1922. p. 20-23 E RELATÓRIO APRESENTADO AO EXM. SNR. DR. OTTONABUCO DE CALDAS, SECRETÁRIO DOS NEGÓCIOS DO INTERIOR E DA JUSTIÇA, PELO DR. RAYMUNDO DE OLIVEIRA, SECRETÁRIO DA DIRETORIA DE HYGIENE, EM 1923, p. 8-14).

GRÁFICO 2 _ FARMACÊUTICOS E CIRURGIÕES-DENTISTAS EXISTENTES NO ESTADO DO CEARÁ EM 1923

80%

20%FARMACÊUTICO

CIRURGIÃO-DENTISTA

(FONTE: RELATÓRIO APRESENTADO AO EXM. SNR. DR. OTTONABUCO DE CALDAS, SE-CRETÁRIO DOS NEGÓCIOS DO INTERIOR E DA JUSTIÇA, PELO DR. RAYMUNDO DE OLI-VEIRA, SECRETÁRIO DA DIRETORIA DE HYGIENE, EM 1923, p. 08-14).

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Os cirurgiões-dentistas fundaram, antes mesmo da FFOCE, em 5 de outubro de 1914, uma instituição específica aos seus interesses cor-porativos, enquanto profissão, semelhante ao CMC: o Centro Odon-tológico Cearense (COC). Talvez a isso se atribua a participação mais restrita desses profissionais no CMC. O presidente do COC foi o cirur-gião-dentista Raimundo Gomes; os secretários foram Mozart Catunda Gondim e Pedro Veríssimo; e Mamede Cyrino de Lima foi o tesoureiro.

A criação de espaços próprios para cada especialidade da saúde não tornaram os profissionais, antes reunidos em uma mesma institui-ção, distantes. O diálogo entre os médicos, farmacêuticos e cirurgiões--dentistas teve continuidade, mesmo após a criação da Faculdade de Farmácia e Odontologia do Ceará. Os ideais comuns ao campo da pro-fissionalização da saúde os aproximavam.

Em 1917, o médico Manuelito Moreira propôs ao CMC que apelasse aos farmacêuticos para que não alugassem aos práticos seus no-mes como responsáveis de farmácias, pois isso era “contrário a lei e pre-judicial à saúde pública”.24 O que se subentende é que a questão central era restringir os espaços de atuação dos práticos de farmácia e demarcar o espaço pertencente aos profissionais diplomados. Assim se referiu o inspetor de Higiene, Carlos Ribeiro da Costa sobre as dificuldades do controle do exercício das profissões de saúde no Ceará:

A classe médico-pharmacêutica e dentistas do Estado é, salvo honrosas excepções, péssima cumpridora de seus deveres para com a repartição de Saúde Pública. (...). O charlatanismo e o exercício da profissão pelos leigos está arvorado em verdadeira instituição. Todo mundo é meio médico, diz o brocardo, mas no Ceará, meio mundo é todo médico. (...). Difícil é impedir que leigos mais ou menos incapazes dirijam pharmacias no estado, uma vez que os profissionais diplomados não se pejam de assumir responsabilidades de actos de leigos, ou attestam com a maior desfaçatez, falsa-

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mente, que, indivíduos mais ou menos analphabetos tem a pratica e competencia precisa... para estabele-cidos, serem seus freguezes, no interior do estado. Os dentistas improvisados por traz do reposteiro de um profissional, pululam nas ruas da cidade de retorno das “Areias”, a preço reduzido, a que lhes assegura a preferência de mais de metade da população, maioria que se julgará lesada se uma campanha séria for in-tentada contra seus caridosos benfeitores. (...). Médicos há se associado a pharmaceuticos e a leigos; muitos não registram os seus diplomas e usam formulas se-cretas só conhecidas do seu pharmaceutico; raros são os que notificam à Inspectoria de Hygiene, após repeti-dos rogos desta, os casos de moléstias transmissíveis; quasi todos dão attestados falsos ou puramente gra-ciosos, como “uma formalidade sem valor”25.

O discurso do inspetor de Higiene tinha como principal alvo o exercício das profissões da saúde por pessoas não diplomadas. Como se viu, apresenta também sua crítica aos médicos, farmacêuticos e dentistas formados que se associavam a eles. Tal associação passava por atesta-dos de reconhecimento de suas práticas, promovendo, dessa forma, a continuidade do exercício das profissões vinculadas à saúde por pessoas sem formação em cursos superiores. Naturalmente, a preocupação era a de que, dessa forma, a saúde da população ficava entregue a mãos des-preparadas, e, além disso, competiam pelo mercado de trabalho com os diplomados, pois os leigos ofereciam seus serviços a preços irrelevantes aumentando sua clientela em detrimento dos profissionais diplomados, que não poderiam (ou não desejavam) fazer o mesmo.

Para o inspetor, apenas os cursos superiores eram capazes de ga-rantir uma formação de qualidade e os profissionais diplomados não poderiam se aliar aos que não tinham passado pelo ensino formal para obter fregueses. O profissional formado possuía uma condição diferen-ciada e, ao invés de dividir seu espaço de trabalho, deveria lutar para

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sua restrição aos que fossem de direito: os profissionais diplomados nos cursos vinculados à medicina.

Segundo Figueiredo (2002), o tratamento exigido pelos diploma-dos em relação aos práticos estava relacionado ao processo de formação, que demandava tempo, estudos e exames:

Para aqueles que cumpriram as exigências acadê-micas, formando-se nos cursos disponíveis – sendo que muitos, para isso, tiveram que se transferir de cidade para cursar a faculdade -, além do esforço para serem aprovados nas diversas disciplinas, os es-tudos, os estágios, os conhecimentos obtidos, tudo isso justificava um tratamento especial (FIGUEI-REDO, 2002, p. 208).

Em 1932, o governo federal emitiu o Decreto n. 20.931 de 11 de janeiro, em conformidade com o art. 1° do decreto n. 19. 398, de 11 de novembro de 1930, que determinava a regulamentação e fiscalização do exercício da medicina veterinária e das profissões de farmácia, parteira e enfermaria no Brasil, estabelecendo penas para as infrações cometidas pelos profissionais.

As seções do decreto são as seguintes: “do exercício da medicina”, “dos estabelecimentos dirigidos por médicos”, “do exercício da odonto-logia”, “do exercício da medicina veterinária”, “do exercício da profissão de parteira” e “disposições gerais”.

O artigo 20 estabeleceu que o exercício das profissões enumeradas acima só poderia ser realizado, em qualquer parte do território nacional, a quem fosse habilitado de acordo com as leis federais e tivesse o diploma registrado no Departamento Nacional de Saúde Pública e na repartição sanitária estadual. Os práticos de farmácia, os optometristas, massagistas e duchistas também poderiam exercer suas práticas desde que compro-vassem sua habilidade a juízo da autoridade sanitária. Cada profissional restringir-se-ia a sua área de competência específica de formação.

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No mesmo ano da aprovação do decreto, o médico Aurélio de Lavor, na revista Ceará Médico, apresentou suas discordâncias sobre a aplicação do código nas áreas rurais e locais onde o quadro de profissio-nais da saúde fosse restrito. Observa-se que ao mesmo tempo em que os profissionais da saúde tentaram restringir o exercício da medicina aos diplomados, o que equivalia a profissionalizá-la, houve a preocupa-ção em permitir uma mobilidade entre eles, pois a população de áreas distantes dos centros urbanos terminaria por ficar desassistida já que não teria, em suas imediações, profissionais que pudessem auxiliá-la nos momentos em que a saúde estivesse debilitada.

Os artigos analisados e criticados por Aurélio de Lavor foram os de número 16 e 2326, dois dos quais regulavam o exercício da medicina:

Art. 16. É vedado ao médico:

a) ter consultório comum com individuo que exerça a medicina;

b) receitar sob forma secreta, como a de código ou número;

c) indicar em suas receitas determinado estabeleci-mento farmacêutico, para as aviar;

d) atestar o óbito de pessoa a quem não tenha pres-tado assistência médica;

e) firmar atestado sem praticar os atos profissionais que os justifiquem;

f ) dar-se a práticas que tenham por fim impedir a concepção ou interromper a gestação, só sendo ad-mitida a provocação do aborto e o parto prematuro, uma vez verificada, por junta médica, sua necessida-de terapêutica;

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g) fazer parte, quando exerça a clinica, de empresa que explore a indústria farmacêutica, ou seu comér-cio. Aos médicos autores de fórmulas de especiali-dades farmacêuticas, serão, porém, assegurados os respectivos direitos, embora não as possam explorar comercialmente desde que exerçam a clinica;

h) exercer simultaneamente as profissões de médi-co e farmacêutico quando formado em medicina e farmácia, devendo optar por uma delas, do que deve dar conhecimento, por escrito, ao Departamento Nacional de Saúde Pública;

i) assumir a responsabilidade de tratamento médico dirigido por quem não for legalmente habilitado;

j) anunciar a cura de doenças consideradas incurá-veis segundo os atuais conhecimentos científicos;k) assumir a responsabilidade como assistente, salvo nas localidades onde não houver outro médico, do tratamento de pessoa da própria família, que viva sob o mesmo teto, que esteja acometida de doen-ça grave ou toxicomania, caso em que apenas pode auxiliar o tratamento dirigido por médico estranho à família.

Art. 23. Não é permitido o tratamento de toxicô-manos em domicílio. Esses doentes serão interna-dos obrigatoriamente em estabelecimentos hospi-talares, devendo os médicos assistentes comunicar a internação à Inspectoria de Fiscalização do Exer-cício da Medicina do Departamento Nacional de Saúde Pública ou à autoridade sanitária local e apresentar-lhe o plano clínico para a desintoxica-ção. Nesses casos, as receitas deverão ser individuais e ficarão sujeitas ao visto prévio da Inspectoria de Fiscalização do Exercício da Medicina do Departa-mento Nacional de Saúde Pública ou da autoridade sanitária local.

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O decreto tentou homogeneizar o regulamento das profissões da saúde em todo o território nacional normalizando o campo de atuação e obrigações para cada área da saúde, entretanto não contemplou as es-pecificidades existentes na territorialidade brasileira que inviabilizavam sua realização.

A principal crítica do médico Aurélio de Lavor27 fazia referência à ausência de um contingente de médicos para compor as juntas médi-cas. Não havia número suficiente de profissionais e tal prática ocasio-naria ônus para as instituições de saúde (hospitais, clínicas etc.), pois o médico competente seria capaz de tomar decisões importantes ao que se referisse ao item “f ” do artigo 16. Outro aspecto negativo para esse item era a ofensa a “moralidade profissional”. Nenhum membro da junta seria contrário à decisão do médico assistente por questões de ética.

No que se refere ao artigo 23, esse estaria destinado aos centros urbanos em que houvesse hospitais para internar os toxicomaníacos, res-tringindo assim o tratamento de doentes em locais que não dispusessem de instituições de saúde, pois o cuidado aos enfermos não poderia ser domiciliar; além disso, como a presença de médicos era restrita em de-terminadas localidades, ele clinicava e ao mesmo tempo era a autoridade sanitária local, impossibilitando, desse modo, a ele mesmo comunicar a si próprio o internamento do doente e o plano clínico.

O que se entende, pelas críticas de Aurélio de Lavor, é a preo-cupação com as regiões carentes de assistência profissional e de ins-tituições voltadas para a área da saúde. O Ceará estava incluso nessa realidade. Observa-se, também, que ao mesmo tempo em que se ini-ciavam ações e medidas em prol da regulamentação da medicina, os problemas, sobretudo, de contingentes de profissionais e de instituições públicas (hospitais, clínicas) afloravam, demonstrando que regularizar a medicina significava implementar mais ações de assistência à população. Caso contrário, o hiato existente entre médico e paciente não poderia ser preenchido.

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Talvez a isso se explique por que, no Ceará, os profissionais da saúde, inseridos no CMC, foram os principais responsáveis, durante as primeiras décadas do século XX, pela expansão do mercado de trabalho na área da saúde: edificaram hospitais, casas de saúde e instituições fi-lantrópicas.

A legislação não era suficiente por si só para possibilitar a inser-ção cultural da medicina. Pontos de aproximação deveriam ser instituí-dos. A medicina acadêmica deveria ser formalizada pelo diploma, ter seu campo de atuação regulamentado pela legislação e ser reconhecida socialmente pelo serviço prestado à população.

Em 1932, no dia 11 de janeiro, o decreto 20.932 fiscalizava e regulava o exercício da medicina, da odontologia, da farmácia, da en-fermeira, da parteira e da veterinária, determinado no artigo 2° que so-mente profissionais habilitados de acordo com a legislação federal e que tivessem o diploma registrado no Departamento de Saúde Pública e na repartição sanitária estadual competente poderiam exercer a profissão.

Provavelmente, o decreto não eliminou a atuação dos curadores informais, mas identificou legalmente a quem pertencia o direito de atuar no campo da saúde, relegando àqueles, o lugar da ilegalidade e do proibido.

Em oposição às leis vigentes favoráveis aos diplomados, os práti-cos de farmácia e odontologia do Ceará se organizaram e reivindicaram para si direitos que lhes permitissem atuar nas farmácias de forma le-galizada.

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NOTAS:

2 Lei n° 1.391, de 2 de outubro de 1916, autoriza o Governo do Estado a reconhecer de utilidade pública a Faculdade de Pharmacia, Odontologia e curso de Partos do Ceará: “O povo do Estado do Ceará, por seus representantes, decretou e eu promulgo a seguin-te Lei: Art. 1° - Fica o Governo do Estado autorizado a reconhecer de utilidade pública a <<Faculdade de Pharmacia, Odontologia e curso de Partos do Ceará>>; Art. 2° - Esta Lei entrará em vigor desde a data de sua promulgação; Art 3° - revogam-se as dispo-sições em contrário. Palácio da Presidência do Ceará, em 2 de outubro de 1916. José Thomé de Saboya e Silva e José Saboya de Albuquerque”. CEARÁ. Colleção das Leis do Estado do Ceará do anno de 1916. Volume 25. Fortaleza: A.C. Mendes, 1916, p. 66.3 Faculdade Livre de Pharmacia e Odontologia. Almanach estatístico, administrativo, mercantil, industrial e literário do estado do Ceará para o anno de 1917. Fortaleza: Typographia Moderna, 1917, p.XIX.4 Dicionário histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil (1832-1930). Cap-turado em 20 de ago. de 2011. Online. Disponível na internet http://www. dichistoria-saude.coc.fiocruz.br.5 Polymathica: revista da faculdade de farmácia e odontologia do Ceará. Março de 1917. Fortaleza, ano 1. n°. 1, p. 19.6 Dicionário histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil (1832-1930). Cap-turado em 20 de ago. de 2011. Online. Disponível na internet http://www. dichistoria-saude.coc.fiocruz.br.7 Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Ceará pelo Dr. João Tomé de Saboya e Silva, presidente do Estado, em 1 de julho de 1918. p. 13.8 Para o ano de 1919, as disciplinas do curso de Farmácia foram distribuídas da se-guinte maneira: 1a série - física médica, química geral e mineral, botânica sistemática e criptogâmica, e microbiologia; 2a série - química orgânica e biológica, zoologia geral e parasitologia, farmácia galênica e higiene geral; 3a série - terapêutica, matéria médica e arte de formular, farmácia química, química toxicológica e bromatologia, e química analítica. Disciplinas do curso de Odontologia: 1a série - anatomia humana, médico-ci-rúrgica da boca e suas dependências, histologia da boca e suas dependências, fisiologia geral, fisiologia da boca e órgãos anexos, e microbiologia; 2a série - patologia geral, ana-tomia patológica e patologia cirúrgica aplicada, clínica odontológica (1a parte), prótese dentária, terapêutica, matéria médica e arte de formular; 3a série - clínica odontologia (2a parte), prótese dos maxilares, terapêutica dentária e higiene da boca, higiene geral e técnica odontológica. Dicionário histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil (1832-1930). op. cit.

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9 Francisco Dias da Rocha (1869-1960), apesar de não ter se formado em medicina por opção de seu pai, que o via como continuador de seus comércios, nas horas vagas leu sobre ciências naturais e colecionou espécimes da fauna e flora cearenses. Em 1898, abandonou as atividades ligadas ao comércio e dedicou-se aos estudos naturais, tendo organizado o “Museu da Rocha”, o qual era composto pelas seções de botânica, arqueo-logia, mineralogia e zoologia, além de um jardim com coleções de “fougeras”, cactos e “aráceas”, dentre outras espécies (STUDART, Tomo II, 1980, p. 292-293). O trabalho de Francisco Dias da Rocha de colecionador e estudioso da fauna e flora cearense o colocou em posição de destaque e de reconhecido saber nos assuntos relacionados às ciências naturais, permitindo que ele se inserisse na FFOCE para ministrar aulas.10 Em 1899, através da Lei Estadual do dia 6 de setembro, diante da ausência de cursos específicos para formar dentistas e parteiras o governo estadual de São Paulo regula-mentou o exercício profissional de parteiras e dentistas práticos através de exames de habilitação, que consistiam em partes teóricas e práticas, próximo aos dos diplomados. No século XX, em São Paulo, foram criadas as primeiras Escolas que iriam diplomar os profissionais dentistas no Estado. Entre 1902 e 1924 criadas dez Escolas de Odontolo-gia. Os cursos apresentavam um programa teórico e prático. O primeiro curso funcionou em 1902 na Escola Livre de Farmácia (1898). (MOTT, 2008). 11 Em 1879, quando o curso de farmacêutico passou a condição de Escola anexa à Facul-dade de Medicina, ficaram constituídas como disciplinas: física, química mineral, mi-neralogia, química orgânica, botânica, zoologia, matéria médica terapêutica, toxicologia, farmacologia e farmácia prática (VELLOSO, 2007).12 As faculdades de medicina possuíam três sessões: medicina, cirurgia e ciências aces-sórias.13 Faculdade de farmácia e odontologia. Almanach estatístico, administrativo, mer-cantil, industrial e literário para o anno de 1921. Fortaleza: Typographia Moderna, 1921. p. 51.14 Ponto de Partida. Polymathica: revista da faculdade de farmácia e odontologia do Ceará. Fortaleza, ano 1. n°. 1, março de 1917. p. 2.15 O corpo redatorial do periódico foi composto pelo médico José Odorico de Moraes; pelos farmacêuticos Raymundo de Arruda, Rodrigues de Andrade, Affonso de Pontes Medeiros, Clóvis Araújo; pelos cirurgiões-dentistas Francisco de Sá Roriz, Raymundo Gomes, Pedro Veríssimo, Mozart Catunda; e pelo naturalista Francisco Dias da Rocha.16 “Ler os testemunhos históricos a contrapelo, (...), contra as intenções de quem os pro-duziu – embora, naturalmente, deva-se levar em conta essas intenções – significa supor que todo texto inclui elementos incontrolados” (GINZBURG, 2007, p.11), que fazem emergir testemunhos históricos involuntários.

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17 Para o ano de 1921, a matrícula foi de 48 novos alunos. Sendo 31 para o curso de far-mácia e 17 em odontologia. FONTE: Faculdade de farmácia e odontologia. Almanach estatístico, administrativo, mercantil, industrial e literário para o anno de 1921. op. cit.18 Relatório apresentado ao ex. snr. general Fernando Setembrino de Carvalho, inter-ventor federal, no exercício do cargo de presidente do estado, pelo dr. Aurélio de Lavor, inspector de hygiene. Fortaleza: Typ. Minerva, maio de 1914. p. 6-7.19 Idem. p. 7.20 Relação dos práticos de farmácia no Estado do Ceará. Norte Médico. Fortaleza, ano 1, n°.10 Fortaleza, dez. de 1913. p. 91.21 Relatório apresentado ao ex. snr. general Fernando Setembrino de Carvalho, inter-ventor federal, no exercício do cargo de presidente do estado, pelo dr. Aurélio de Lavor, inspector de hygiene. Fortaleza: Typ. Minerva, maio de 1914. p. 6-7.22 Relatório apresentado ao exm. snr. dr. Manoel Leiria de Andrade, secretário dos ne-gócios do interior e da justiça, pelo jr. José Paracampos, diretor de hygiene, em 1922. p. 20-23.23 Relatório apresentado ao exm. snr. dr. Ottonabuco de Caldas, secretário dos negócios do interior e da justiça, pelo dr. Raymundo de Oliveira, secretário da diretoria de hygie-ne, em 1923. p. 08-14.24 Ata da seção do dia 7 de maio de 1917.Norte Médico. Fortaleza, ano 5, n°.2, abr.-mai. de 1917.25 Relatório apresentado ao exmo. snr. dr.José Saboya de Albuquerque, secretário dos negócios do interior e da justiça, pelo dr. Carlos da Costa Ribeiro, inspector de hygiene. Fortaleza; Typ. Minerva, 1917.26 Decreto n. 2091 de 11-1-932. Regula e fiscaliza o exercício da medicina, da odonto-logia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermaria no Brasil e estabelecia penas. p. 13-18. Ceará Médico. Fortaleza, ano 1. n°11, abr. de 1932 e continuação do Decreto n.2091 de 11-1-932. Ceará Médico. Fortaleza, ano 11, n°.5, mar. de 1932. p. 13-18.27 AGUIAR, Virgílio de. Esculapeanas: Algo sobre o decreto n. 20.931 de 11 de janeiro de 1932, que regula e fiscaliza o exercício da medicina, etc. p. 5-8. Ceará Médico. For-taleza, ano 11, n°.5, mai. de 1932.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ENTRE LIVROS, LENTES E MIASMAS: AS TESES MÉDICAS DA FACULDADE DE MEDICINA DO

RIO DE JANEIRO E A EPIDEMIA DE CÓLERA (1855-1856)

Sebastião Pimentel Franco152*

André Luis Lima Nogueira153**

(...) Na sua marcha enigmática e caprichosa zom-bou de todas as previsões, de todos os cálculos. Ilhas, continentes, lugares elevados e profundos, secos ou úmidos, cidades e campos, estações e climas quentes ou frios, e, toda parte se tem mostrado o cólera--morbus, sem poupar idade, sexo, nem profissão154.

Introdução

Pretendemos nesse artigo discutir como a medicina oficial no Brasil do Império produziu explicações e ações contra uma das epi-demias mais temidas e emblemáticas do século XIX: o cólera. Quais seriam as causas da doença? Seus mecanismos de difusão? Sintomatolo-

152 * Sebastião Pimentel Franco é Professor Titular da Universidade do Estado do Espírito Santo e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS/UFES). Email: [email protected] ** André Luís Lima Nogueira é Professor Visitante da Universidade Federal do Espírito Santo. Email: [email protected] 154 CHERNOVIZ, Pedro L. N.. Dicionário de medicina popular... Paris: A. Roger e F. Chernoviz, 1890. P. 578. Para garantir maior facilidade e fluidez na leitura do trabalho, fizemos a opção por atualizar a grafia das fontes consultadas.

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gia? Soluções para evitar que a epidemia se espraiasse para as províncias imperiais e seus habitantes?

Para tal abordagem, e tendo em conta as limitações físicas de um artigo, propomos analisar o conteúdo de três teses médicas ofertadas à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (doravante, FMRJ) e defen-didas à época em que o cólera adquiriu lugar de relevo nas preocupações dos representantes da medicina douta e das autoridades imperiais, entre os anos de 1855 e 1856155.

Há um total de dezesseis teses médicas e oito proposições, apre-sentadas a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no período em que a doença se fez mais presente, causando um grande número de mortos, que foi entre 1839 e 1862. Dessas teses, oito foram apresentadas entre 1856 e 1857156. Conforme já destacamos a grande epidemia de cólera que atingiu o Brasil, ocorreu entre 1855 e 1856, o que justificaria tanta preocupação dos acadêmicos de Medicina de desejar dissertar sobre tal fenômeno. Das oito teses do período em que a maioria foi publicada, escolhemos aleatoriamente três delas para desenvolver a nossa argu-mentação.

155 As teses em análise foram escritas pelos doutorandos Henrique de Hollanda Cavalcanti de Albuquerque, procedente de Niterói, Rio de Janeiro e filho legítimo do Visconde de Albuquerque; João Antônio de Godoy Botelho, procedente do Rio de Janeiro e filho do Tenente de Artilharia a Pé, Manoel Antônio Botelho e A. J. Soeiro de Faria, da província do Rio Grande do Sul e filho de Alexandre José Soeiro de Faria. Consultando os classificados do Almanack Laemmert num arco de vinte anos após a defesa de suas teses – ou seja, entre os anos de 1756-1776 – conseguimos acompanhar parte da inserção profissional e social dos nossos “novos doutores”. João Antônio de G. Botelho aparece em quatorze classificados, oferecendo seus serviços em endereços variados como a Rua da Quitanda, o Beco do Cotovelo e a Rua da Candelária. No ano de 1876, Botelho acrescenta em seu classificado: “especialidade: moléstias das crianças”. Já o Dr. Soeiro de Faria – com nove classificados entre 1865-1876 –, não deve ter querido voltar em definitivo para o Sul e a partir de 1865 poderia ser encontrado na Rua do Sabão. No ano de 1870, instalou-se à Rua das Flores, oferecendo no novo endereço também serviços de farmácia e a partir de 1871 acrescentando a distinção de “capitão honorário”. Em 1874, Soeiro de Faria passa a atender à R. do Riachuelo, acrescentando à suas insígnias agora uma “Medalha concedida ao exército, à armada e aos empregados civis em operações na Guerra do Paraguai, por decretos n. 4560 e 4573 de 6 e 20 de Agosto de 1870”. ALMANAK LAEMMERT. Almanak administrativo, mercantil e industrial. Rio de Janeiro: Tipogra-fia Laemmert, 1857-186. Disponível em: <http://www.crl.edu/content/almanak2.htm>. Acesso em mar. 2017.156 BELTRÃO, Jane. Cólera, o flagelo da Belém do Grão Pará. 1999. 261 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 1999. p 71-72.

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Debruçando sobre as teses médicas produzidas pelos doutoran-dos que, com a sua redação e defesa, almejavam o término do curso e a inserção profissional – e social – como “médicos formados”, deparamo--nos com questões cruciais para o saber médico da época, a exemplo das controvérsias entre o “contagionismo” e “infeccionismo”; a atribuição multifatorial para a ocorrência das enfermidades, como o acúmulo de “miasmas” pútridos, variações climáticas, condições telúricas, moradas, estilos de vida, “usos e abusos” das pessoas no que versa sobre trabalho, práticas sexuais, consumo de alimentos e álcool; a influência do discurso higienista no saber médico estudado, entre outros vetores.

Aqui se pretende empreender uma primeira incursão no conteú-do das teses médicas que tiveram como principal temática a epidemia de cólera. Pensamos os trabalhos de final de curso oferecidos pelos douto-randos como um dos produtos da medicina douta do Brasil imperial (ou um gênero textual, como nos parece mais adequado). Procuramos inter-pretar as teses médicas como uma modalidade específica de produção científica, em nosso caso, da ciência médica, partindo, inicialmente, dos olhares de Pécora e Moisés157. Moisés, chama atenção, em seu verbete “Gênero”, a despeito das controvérsias históricas, estéticas e de classi-ficação/estratificação que remontam à Antiguidade e da polissemia do conceito, que “o “gênero” designaria os aspectos primários, amplos e rei-terados de uma série de obras”, além de servir “para designar categorias literárias em diversos níveis”158, em vista da variedade e polivalência das produções textuais. De modo análogo, Alcir Pécora, em seu Máquina de Gêneros, chama atenção para a importância de se observar os cânones, estruturas textuais e formais – a produzirem, especialmente, determina-das convenções e condicionalismos no produto dos textos – próprias de determinados gêneros literários, a exemplo da epístola, dos tratados, em

157 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2004; PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: EDUSP, 2001. 158 MOISÉS, op. cit., 2004, p.119.

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diversos momentos tomados como fonte de interpretação história.

Nesta perspectiva, ao analisarmos os textos produzidos pelos doutorandos deparamo-nos com os cânones, enquadramentos e deter-minações dos estatutos produzidos pela FMRJ; as influências de parte dos paradigmas médicos oitocentistas, dos autores em voga e dos lentes que formavam os futuros doutores – alguns deles, aliás, inseridos da burocracia imperial –, entre outros elementos condicionantes e conven-cionais, a moldar um tipo específico de texto médico. O olhar proposto converge, ainda, para algumas questões debatidas e caras à “história do livro e da leitura” que, apenas mais recentemente, têm sido pensadas pe-los historiadores que se debruçam sobre a produção textual engendrada por indivíduos posicionados nas diferentes (e hierarquizadas) categorias profissionais da medicina oficial, a exemplo de cirurgiões e médicos159. Palmira da Costa, por exemplo, chama atenção para a variedade de re-cursos e condicionantes textuais que possibilitavam a redação de dife-rentes produtos da literatura médica. Nas palavras da autora:

A cultura literária da medicina é rica na utiliza-ção de gêneros literários. Já foram mencionados os comentários e epítomes mas também é de desta-car, entre outros, os aforismos, as disputationes, as curationes, as observationes, os regimes do corpo, as matéria medica, ou os próprios tratados anatômicos. Cada um destes modos de apresentação do conhe-cimento médicos exige códigos e regras que não só condicionam o autor como o próprio leitor160.

159 COSTA, Palmira Fontes de; CARDOSO, Adelino (Org.). Percursos na história do livro médico (1450-1800). Lisboa: Forum de Ideias, 2011; GONDRA, José. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação esco-lar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004; GONÇALVES, Monique da S. Livros, teses e periódicos médicos na construção do conhecimento médico sobre as doenças nervosas na Corte Imperial (1850-1880). Ferreira, Tânia Bessone da C (et all.). O Oitocentos entre livros, livreiros, impressos, missivas e bibliotecas. São Paulo: Alameda, 2013. p. 59-87; NOGUEIRA, André. Universos coloniais e ‘enfermidades dos negros’ pelos cirurgiões régios Dazille e Vieira de Carvalho. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 19 supl.1 Rio de Janeiro, dez. 2012. p. 179-196.160 COSTA e CARDOSO. Op. Cit., 2011 p. 20.

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A elaboração dos textos para a obtenção do grau de doutor, com suas regras e influências intelectuais, igualmente nos aproxima como será mais bem discutido adiante, do conceito desenvolvido por L. Fleck de “coletivo de pensamento”161.

O cólera pelo mundo e pelo Brasil: visão panorâmica

Como é possível perceber, através das impressões do médico po-lonês Pedro Luís Napoleão Chernoviz (1812-1881), notabilizado den-tro e fora dos meios doutos pela produção de manuais de “medicina popular”, possuidores de diversas edições e ampla circulação no curso do período estudado162, a epidemia de cólera parecia surpreender e ater-rorizar pela amplitude de seu alcance geográfico e pela quantidade e va-riedade de indivíduos por ela ceifados, fazendo-se presente, “democrati-camente”, nos mais diferentes sítios e assolando todo o tipo de gente163. Assim, “enigmática e caprichosa”, a enfermidade seria uma verdadeira “peste”: predicado atribuído às doenças (mais tipicamente epidemias), em geral carregadas de representações estigmatizantes e de culpas que recaíam sobre determinados membros das sociedades que sofreram com sua incômoda visita164.

A epidemia que objetivamos estudar era nomeada e percebida de diversas maneiras pelos vários atores sociais que, não raro, dispondo

161 FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. p. 81-95.162 FIGUEIREDO, Betânia. Os manuais de medicina e a circulação do saber no século XIX no Brasil: media-ção entre o saber acadêmico e o saber popular. Educar. Curitiba. UFPR, n.25, 2005. p. 59-73.163 A despeito dos recursos retóricos do Dr. Chernoviz para caracterizar a amplitude do alcance geográfico e da diversidade das vítimas da epidemia, conforme veremos a partir do conteúdo das teses médicas e outras fontes produzidas pelo saber médico oficial no curso do século XIX, a cólera teria lá suas preferências de “ambientes” e, sobremaneira, de indivíduos por ela atingidos.164 DINIZ, Ariosvaldo da Silva. As artes de curar nos tempos do cólera. In. Chalhoub, Sidney (Org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Unicamp, 2003. p.355-385; DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia das Letras, 1990; SONTAG, Susan. Doença como metáfora/AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia. das Letras, 2007.

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de multifacetados referenciais e papéis – políticos, sociais e culturais – tentaram “enquadrá-la” e responder à sua ofensiva165. Neste contexto, aludia-se, recorrentemente, à pacífica origem “Oriental” da enfermidade, sendo lembrada como “Mal do Ganges” ou “Febre Asiática”166. Em ou-tros momentos, seria comum a alusão ao aspecto degradante dos doen-tes que, em decorrência da rápida e aguda desidratação, provocada pelos vômitos e diarreias incontidos, iam vendo se esvair sua própria condição e dignidade humanas, ganhando um deplorável aspecto enrugado, com a pele adquirindo certa tonalidade azul, daí o corpo progressivamente esfriava e a morte chegava. Aliás, essa faceta da doença e o impacto no imaginário causado por um tipo de morte tão sofrida e aviltante é recor-rentemente lembrado pela literatura acerca da cólera167.

Como argumenta Porter, uma considerável gama de doenças e epidemias, ocorridas em diferentes contextos históricos, são oriundas do processo da fixação humana, da domesticação de animais e plantas (afe-tando ecossistemas), da organização de conglomerados populacionais cada vez maiores e da circulação e intercâmbios entre pessoas, mercado-rias e entidades nosológicas mundo a fora. Valendo-nos, aqui, da irônica assertiva do autor, “a civilização não trás apenas mal-estar, mas também doenças”168. Esse olhar pode ser aplicado à chegada do cólera e a sua propagação em diversos (e muitas vezes virulentos) surtos epidêmicos do “Oriente” até a Europa ocidental. Assim, sua “globalização” deveu-se

165 ROSEMBERG, Charles. Framing disese: Illness, society and history. ROSEMBERG, Charles (org). Ex-planning epidemics and others studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 305-318. P. 305 e segs.166 EVANS, Richard. Death in Hamburg. Society and Politics in Cholera Years, 1830-1910. Londres: Penguin Books, 1987; PORTER, Roy. Das tripas coração. Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.31.167 ROSEMBERG. Op. Cit., 1992. p. 112; DINIZ. Op. Cit., 2007 p. 355; WITTER, Nikelen Acosta. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). 2007. Tese (Doutorado em História Social)-Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Flu-minense, Niterói, RJ, 2007. p. 30-31.168 PORTER, op. cit., 2004. P.15; STANNARD, David. Disease, Human Migration, and History. In: KIPLE, Kenneth (org). The Cambridge World History of Human Disease. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 35-42.

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ao afã pela circulação de mercadorias e busca de novas áreas de influên-cia para a expansão do capitalismo europeu.

Em sua marcha, a “epidemia reinante” acabou por atingir o Bra-sil no contexto da terceira pandemia (segunda vaga). É pacificamente aceito que no ano de 1855 a doença “desembarcou” no porto de Belém, com a chegada de uma galera portuguesa de nome Defensor, que já tra-zia tripulantes que manifestavam seus sintomas. Em princípio, houve discordância entre as autoridades médicas e governamentais do Império se se tratava da mesma epidemia que assolava os países da Europa oci-dental e já tinha chegado aos EUA, ou se, no Brasil, teria se manifestado uma versão menos virulenta da doença, denominada colerina. Contudo, a enfermidade alastrou-se por várias áreas do nordeste, chegando ao sudeste e ao sul169.

Embora a epidemia de cólera tenha se feito presente em pratica-mente todas as províncias brasileiras, não há uma vasta literatura que se proponha analisar essa realidade. Dos estudos realizados sobre a presen-ça da epidemia em províncias brasileiras destacamos o de Onildo Reis, para a Bahia; Nikelen Acosta Witter, para o Rio Grande do Sul; Sebas-tião Pimentel Franco, para o Espírito Santo; Jane Felipe Beltrão, para o Pará; Jucieldo Ferreira Alexandre, para o Ceará, Ariosvaldo da Silva Diniz, em Pernambuco e Tânia Pimenta, voltando-se para a Capital170. Em geral, esses autores trabalharam com fontes semelhantes, privile-

169 BELTRÃO, Jane Felipe. Op. Cit. p. 88 e segs.; WITTER. Op. Cit, 2007, p.51; PIMENTA, Tânia S. Doses infinitesimais contra a epidemia de cólera no Rio de Janeiro em 1855. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo do & CARVALHO, Diana Maul de (Org.). Uma história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004. p. 31-51 FRANCO, Sebastião P. Cólera e surtos epidêmicos no oitocentos, na provincial do Espírito Santo. In: NASCIMENTO, Dilene (et all). Uma História Brasileira das Doenças: volume 4. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. P. 69-89; KODAMA, Kaori et al. Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma análise preliminar. História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. XIX. Supl. I, 2012. p. 59-79.170 BELTRÃO. Op Cit, 1999; WITTER. Op. Cit, 2007; DINIZ. op. cit., 2002; DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador/BA: Ufba, 1996; ALEXANDRE, Jucieldo Ferreira. “O monstro cruel devorou centenas”: o cólera e o medo na cidade de Crato, Ceará (1862). Vozes, Pretérito e Devir, Piauí, v.1. n.2, 2013 p. 5-20; FRANCO, Sebastião. Pânico e terror: a presença da cólera na Província do Espírito Santo (1855-1856). Almanack, Guarulhos, n.07. I semestre 2014, p. 117-136; PIMENTA, op. cit.,2004.

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giando, sobretudo, os periódicos, relatórios de presidente de província, petições, requerimentos, ofícios expedidos e recebidos pelas administra-ções provinciais, livros de óbitos, relatórios de saúde pública. Tratados e teses médicas igualmente foram analisadas pelos autores supracitados, embora, em geral, de modo mais acessório e assistematicamente.

Todos esses trabalhos tratam da doença enquanto um fenômeno social, buscando, sobretudo, evidenciar de que forma a epidemia desor-ganizou e reorganizou os grupos sociais por elas atingidos, como essas populações e os governos reagiram a esse fenômeno. Nesta perspectiva, cremos na possibilidade de se lançar novos olhares sobre a experiência do cólera a partir do uso mais sistematizado de certos materiais empíri-cos, que pelos interesses específicos de cada um dos autores menciona-dos, foram trabalhados de modo menos detido, a exemplo das próprias teses médicas, e/ou de certos vetores de pesquisa, como as práticas de cura – oficiais e ilegais – em tempos de epidemia, faceta que poderia ser mais bem explorada em trabalhos futuros.

As teses médicas, como outras impressões da época, a exemplo do que era noticiado nos jornais do Império171, faziam eco a esse olhar da epidemia como uma verdadeira “peste”, carregando nas tintas acer-ca de seu caráter virulento e mortal e narrando, amiúde, o sofrimento dos enfermos nos menores detalhes de seus “estágios” e sintomas. O doutorando Soeiro de Faria seria um desses representantes da medicina douta que se valia de recursos narrativos – sendo notável sua opção por um discurso hiperbólico, aliás, frequente quanto se trataria de descrever “pestes” – que sublinhavam a força devastadora da cólera e seus efeitos:

Debalde porém se quis evitar a presença do gigan-te do extermínio: zombando de todas as medidas que se tinha tomado, como que se regozijava com o

171 FRANCO, op. cit., 2013. p. 70-71; BELTRÃO, op. cit., 1999, p. 128 e segs; DINIZ, op. cit., 2002. p.356 e segs.

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avultado número de cadáveres que ia deixando após si na imensa e fúnebre estrada da morte, por onde se seguia em sua marcha destruidora

Não contente com as vítimas que havia ceifado no berço de seu nascimento, era necessário que novas sepulturas se abrissem, e que sobre elas se rojassem os cadáveres daqueles infelizes que fossem bafeja-dos pelo seu hálito pestilencial e mortífero172.

A partir das impressões aqui brevemente tecidas acerca do perigo de uma epidemia de cólera e de o quanto a doença era temida pelos danos e pela degradação da humanidade daqueles que seriam por ela atingidos, é possível perceber o interesse da FMRJ em colocar a doença no rol de preocupações dos futuros doutores, fazendo-os se debruçarem sobre ela para a produção de suas teses. A partir de agora, passaremos a analisar mais detidamente os textos produzidos pelos doutorandos e suas facetas.

Teses médicas: textos e contextos

“Esta tese está conforme aos Estatutos”. Tal assertiva pode ser lida – com ligeiras variações textuais – na última página das teses oferecidas pelos doutorandos à FMRJ, antes dos nomes de seus três avaliadores. Assim, a observância dos “Estatutos”, serviria como um dos principais vetores de enquadramento e normalização de tais textos médicos173.

Mas, afinal, o que diziam os Estatutos... no que tange à produção dos trabalhos de final de curso?

172 FARIA, A.J. Soeiro de. These apresentada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e publicamente sustentada em 28 de novembro de 1856. Rio de Janeiro: Typographia de M. Barreto, 1856. P.15.173 GONDRA, José. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004. p. 12 e 109 e segs.

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Tomando como base os nove artigos que compõem o Capítulo VI (Da defesa de teses) do Título II (Do Regimen das Faculdades) dos Estatutos... aprovados no ano de 1854, por reger a escrita das teses dos nossos doutorandos, é possível perceber, primeiramente, que a própria composição do trabalho reproduzia a divisão do saber médico proposta pela FMRJ. Nesse sentido, aqueles que terminavam o curso de medici-na precisavam escrever sobre temas que abarcassem as “ciências acessó-rias” (a exemplo da Física, Química e Mineralogia, Botânica e Zoologia, entre outras), “ciências médicas”, “ciências cirúrgicas”. Assim, seriam propostas dez questões, previamente definidas pelos lentes em exercí-cio na Faculdade no início do ano letivo, para serem objeto da escolha dos alunos. Cada doutorando tomaria para si três dessas questões, uma de cada subárea do curso, sendo uma delas objeto de sua dissertação, configurando o conteúdo mais substancial e sistematizado das teses174. Aliás, não raramente, as questões formuladas pelos mestres apareceriam reproduzidas nas teses sob a forma de “título” das seções, como supõe, acertadamente, Gondra175. Por isso, nas três teses médicas aqui tomadas como fontes, encontramos um mesmo título a ser dissertado: “Da Cóle-ra-Morbus, sua sede, natureza, e tratamento. Será contagiosa?”

O conteúdo do trabalho deveria ser finalizado com a apresenta-ção “sempre em sua tese seis aforismos de Hipocrates”, embora não fos-se incomum que um número maior de aforismos do médico “grego” apa-recesse nesses textos médicos. Como será discutido adiante, a influência do hipocratismo – em suas diferentes formas de leitura – não configura-va apenas uma formalidade ou uma mera referência figurativa nas teses médicas. No curso das primeiras décadas do século XIX, as concepções

174 BRASIL. Leis, decretos, etc. Decreto n° 1.387, 28/04/1854. Coleção das Leis do Império. Rio de Janei-ro: Imprensa Nacional, 1872. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em 5 abril . 2017.175 GONDRA, op. cit., 2004 p. 151. Embora houvesse vozes dissonantes, que defendiam a “escolha livre” dos temas, Gondra argumenta, de modo convincente, sobre a “hipótese de que o discurso produzido nas teses de doutorado é controlado previamente, tanto na seleção dos pontos a serem dispostos em situação de sorteio como no desenvolvimento da tese (...)” (IBIDEM, p.140).

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hipocrático-galênicas exerciam significativa ascendência (além de maté-ria de discussões e controvérsias) no saber médico douto176.

Em vista da produção canônica das teses; da influência da Facul-dade e de seus lentes, ao elencarem temas e caminhos de abordagens; da importância de determinados paradigmas médicos na afirmação e institucionalização da medicina do Império, nos parece plausível a per-cepção de tais textos e da dinâmica da sua autoria a partir do conceito de “coletivo de pensamento” cunhado por Fleck. De acordo com o autor

[...] Por isso, o processo de conhecimento não é o processo individual e uma “consciência em si” teó-rica; é o resultado de uma atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber ultrapassa dos li-mites dados a um indivíduo [...] Se definirmos o “coletivo de pensamento” comoa comunidade das pessoas que trocam pensamentos ou se encontram em uma situação de influência recíproca de pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas, um portador do de-senvolvimento histórico de uma área do pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensament177.

Aliás, um olhar mais específico sobre o conteúdo das dissertações nas teses aqui analisadas revela um verdadeiro “desfile” de menções a de-zenas de autores, além de algumas citações mais diretas de suas respectivas obras, para conferir legitimidade aos textos redigidos por nossos douto-randos e inseri-los no circuito da literatura médica produzida (e consu-mida) nas “instituições médicas das Nações mais adiantadas”, conforme podemos ler nos Estatutos... Faceta que pode, igualmente, corroborar a leitura aqui proposta de “coletivo de pensamento” na composição das te-ses médicas, por revelar as referências e argumentações mais aceitas pela

176 NUTTON, Vivian.Humoralism. In: BYNUN, William F.; PORTER, Roy.b (eds.). Companion encyclopedia of the History of Medicine. Londres: Routledge, 1997. p. 281-291; CAIRUS, Henrique. Textos Hipocráticos. O doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005. p. 29; JORDANOVA, Ludmilla; PORTER, Roy. Images of the Earth: essays in the history of the environmental sciences. Oxford: Alden Press, 1997. p. 134-135; CRESPO, Jorge. A História do Corpo. Lisboa: Difel, 1990. p. 53-86.177 FLECK, op. cit., 2010 p. 81-82 grifos do autor.

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FMRJ (e seus decanos), além da conformação de certos “estilos de pensa-mento”178 acerca da “epidemia reinante” coroados pelo saber médico ofi-cial, para continuarmos nos balizando nas reflexões propostas por Fleck179.

Em função das limitações físicas de um artigo, concentramo-nos, deliberadamente, em considerar de modo mais detido apenas os autores citados três ou mais vezes pelos doutorandos em suas teses.

Nesse contexto, entre as referências mais usadas pelos futuros mé-dicos percebemos significativas proximidades e repetições: dos dezoito autores mais encontrados nas teses, apenas quatro deles não aparecem em pelo menos um dos três trabalhos de final de curso aqui analisados. Percepção que nos permite pensar que tais escolhas seriam, presumivel-mente, condicionadas por fatores como a ressonância dos autores cita-dos entre os lentes da FMRJ; o acesso a determinados livros importados e ao idioma original dessas obras; a maior aceitação de determinados paradigmas médicos pela medicina douta do Império.

Aliás, em algumas passagens dessas teses, para além do uso de um mesmo “rol de autores” para corroborar uma dada exposição de con-teúdo, é possível perceber ainda similitudes na própria construção dos textos dos doutorandos. Ao argumentar sobre a “antiguidade” da doença lemos na tese de Henrique de Albuquerque:

Quanto à sua antiguidade, também grandes ques-tões tem havido: tendo mesmo chegado a se faze-rem dois partidos entre os médicos; uns, entre esses o Sr. Littré, querem que esta enfermidade seja mui recente, sendo a literatura que lhe diz respeito sua contemporânea; pelo contrário outros, como os Srs. Gendri, Double e Ozanam, estabelecem que ela data de longos séculos.

178 Não é demais lembrarmos que o conceito de “estilos de pensamento” em Fleck, tendo como pano de fundo as concepções em torno da “sífilis”, abarca diferentes (e, não raro, mais longas) temporalidades.179 Idem, p.84-85 e cap. 4.

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Pensamos como o Sr. Littré, quanto á antiguidade da cólera-morbus na Europa, pelos escritos gregos e romanos, onde não encontramos vestígio algum preciso de cólera epidêmica, mas sim descrições da esporádica [...]180.

Já João A. de Godoy Botelho, sobre o mesmo ponto, escreve em sua tese um texto em tudo próximo ao de seu “colega”, valendo-se, in-clusive, praticamente do mesmo conjunto de autores. Entretanto, é in-teressante notar que a mesma bibliografia seria acionada pelos forman-dos para sustentarem posicionamentos aparentemente opostos quanto à “antiguidade” da epidemia (pelo menos no que versa sobre sua ocor-rência na Europa):

Os patologistas não concordam em ser a moléstia geralmente descrita hoje com o nome de cólera a mesma que foi descrita pelos autores mais antigos. Há outros que pelo contrário acreditam que o cólera conhecido hoje não é mais do que a forma epidêmi-ca da moléstia descrita com este nome por autores de tempos imemoriáveis. Littré partilha a primeira dessas opiniões. Brown, Gendri, Double e Osanan, etc, opinam que ela data de época remotíssima. Esta última opinião é fundada em, provas irrefutáveis181.

Em consonância com as considerações de Monique Gonçalves, que interpretou as teses médicas que trataram da epilepsia e demais “ne-vroses”, percebemos também entre as referências citadas sobre a epide-mia da cólera a importância dos autores franceses, embora esses estives-sem longe de serem exclusivamente lidos pelos formandos da FMRJ182.

180 ALBUQUERQUE, Henrique de Hollanda Cavalcanti de. These apresentada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e sustentada no dia 28 de novembro de 1856. Rio de Janeiro: Typographia Universal Laemmert, 1856. p.16-17.181 BOTELHO, João Antonio de Godoy. These apresentada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e publicamente sustentada em 31 de novembro de 1856. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio de Pereira Braga, 1863. p. 15.182 GONÇALVES, Monique. Livros, teses e periódicos médicos na construção do conhecimento médico sobre

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Há que se notar nessas referências a preponderância do paradig-ma anátomo-clínico – embora este coexistisse com outros paradigmas médicos, como a nosologia, o ecletismo – presentes na formação dos doutorandos e, obviamente, acionados pelos demais representantes da medicina douta do Império em âmbito mais geral, sobretudo em suas primeiras décadas183. Mesmo correndo o risco de sermos esquemáticos, podemos caracterizar essa percepção do corpo enfermo a partir da valo-rização das “observações” e da experiência, marcada fundamentalmente pela aproximação entre a medicina e a cirurgia; da afirmação de uma pa-tologia médica de matizes mecanicistas no que diz respeito às relações entre os fatores ambientais e os seres vivos; de uma percepção pontual das “lesões” existentes no corpo doente, que passaram progressivamente dos órgãos aos tecidos, numa escala de observação cada vez mais “mi-cro”184. Para sancionar esse tipo de olhar sobre as doenças e os corpos doentes era preciso esquadrinhá-los copiosas vezes. Daí, o desenvolvi-mento da observação clínica e das ações pedagógicas se fazerem, por excelência, num espaço hospitalar que passaria, progressivamente, a ser dominado e regrado pelos representantes da medicina oficial. Somava--se a essa realidade a sofisticação e a frequência das “anatomias” (disse-cações). Resumindo, tornava-se premente abrir muitos cadáveres para a melhor compreensão das manifestações das enfermidades185.

Além disso, o enfoque anatomoclínico atribuía, tipicamente, ex-plicações multicausais para a ocorrência das doenças, em que se faziam

as doenças nervosas na Corte Imperial. FERREIRA, Tânia B. da C. O Oitocentos entre livros, livreiros, impres-sos, missivas e bibiotecas. São Paulo: Alameda, 2013 p. 75-76. 183 Para uma abordagem mais consistente sobre os componentes da doxa médica do Império (nas palavras do próprio autor), além das controvérsias e alterações (ancoradas em “pontes” e “redes” com os saberes e as insti-tuições médicas “tradicionais”) nesse campo científico, conferir EDLER, Flávio C. Medicina no Brasil imperial: clima, parasitas e patologia tropical. RJ: FIOCRUZ, 2011. 184 EDLER, op. cit., 2011. p.27-48; FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004; FERREIRA, Luiz O. João Vicente Torres Homem: descrição da carreira médica no século XIX. Phisys – Revista de Saúde Coletiva. V.4, 1994, p. 58-61; ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011. p. 149-172.185 FOUCAULT, op. cit., 2004. p. 138; WEINER, Doara B. e SAUTER, Michael J. The city of Paris and the rise of clinical medicine. Osiris. n. 18, 2003. p.27-28.

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presentes “miasmas” e demais “vapores pútridos”, aspectos climáticos, te-lúricos, balizadas pelas leituras neo-hipocráticas, pela estatística médica, somando-se a questões mais ligadas à higiene e aos “modos de viver” dos indivíduos acometidos pelos mais variados achaques186. Facetas que serão tratadas mais detidamente adiante no que versa sobre epidemia de cólera.

Assim, dentre os autores mais citados pelos doutorandos, encon-tramos nomes como o de François Magendie (1783-1885), Pierre Rayer (1793-1867) e Jean Bouillaud (1796-1881), referidos copiosas vezes nas páginas das três teses aqui analisadas. Tais autores estão dentre aqueles que representavam e construíram a anatomoclínica187. Magendie, por exemplo, seguiu de perto o legado de Bichat (1771-1802) – embora igualmente tenha postulado uma série de críticas ao seu “sistema” –. Valorizava a observação cuidadosa e repetida dos fenômenos mórbi-dos para sua categorização. Entretanto para o autor, a experimentação, sobretudo do funcionamento anatômico, deveria ser empreendida com maior assiduidade para tratar dos principais fenômenos da vida, pensa-dos por ele tanto em nível “micro” (como no crescimento e na nutrição) como “macro” (processo resultante das “ações funcionais”)188.

Outro nome frequentemente visto entre os autores mais usados pelos doutorandos é o do polêmico François-Joseph-Victor Broussais (1772-1838). Broussais, forjou uma doutrina própria que, a um só tempo, insurgia-se contra a nosologia, a anatomoclínica (com críticas especial-mente dirigidas à Pinel e Bichat) e o ecletismo, ao defender que as doen-ças seriam provenientes de “irritações” – sobretudo sediadas no aparelho

186 EDLER. op. cit., 2011. p. 27-38; JORDANOVA E PORTER. op. cit., 1997, p.138 e segs; HANNAWAY, Caroline. Environment and miasmata. In: BYNUN, William F.; PORTER, Roy. Companion encyclopedia of the history of medicine. Londres: Routledge, 1997 p. 292-308; CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; KURY, Lorelai B. O império dos miasmas: a Academia Imperial de Medicina (1830-1850). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 1990. p. 88 e segs.187 Focault em várias das passagens do seu “O nascimento da clínica” utiliza os tratados médicos desses autores como fonte de análise da forja desse tipo de olhar em torno das doenças e dos doentes. Cf. FOUCAULT, op. cit., 2004 p.127; 136; 154; 199; 212; 236.188 BYNUN, W.F e BYNUN, Helen (eds.). Dictionary of medical biography. Westport, CT, e Londres: Green-wood Press, 2007. p. 829-831

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digestivo, ou “gastroenterites”, – provocadas por estímulos internos ou externos (a exemplo do “clima”, dos “usos” dos indivíduos, o que incluiria o comportamento moral) que percorriam diferentes órgãos – e, princi-palmente, tecidos – do corpo enfermo, filiando-se, assim, às teorias mé-dicas de vertentes fisiológicas e localistas189. Além disso, o médico francês é responsável pela criação de uma “teoria das febres”, na qual propôs uma interpretação sistêmica da ocorrência dessa controvertida doença – como era vista à sua época –, especialmente a partir de sua experiência médica “nas tropas”190. No rol de terapias acionadas pelos médicos para debelar as “irritações”, Broussais recomendava uma terapêutica fortemente inter-ventora, pautada no uso de sangrias e sanguessugas e “dietas energéticas”.

Em vista dos principais sintomas que caracterizavam o cólera, podemos presumir a consonância da doutrina das “irritações” propos-ta por Broussais (especialmente de sua noção de “gastroenterite”) nas iniciativas de definir as causas e evolução da enfermidade. Além disso, não seria difícil imaginar que a ressonância do localismo de Broussais no Brasil fosse influenciada pela própria formação dos lentes da FMRJ. Cruz Jobim, diretor da Faculdade à época da produção das teses aqui analisadas, por exemplo, doutorou-se na Faculdade de Paris e fora aluno do próprio Broussais. Embora, como será visto adiante, a despeito da autoridade e ressonância das ideias do médico francês, havia igualmente espaço para controvérsias em torno da “gastroenterite” como explica-ção para a natureza e a sede da epidemia. Além disso, a presença das obras de Broussais também nos serve como evidência das variações nas orientações teóricas de que lançava mão os médicos formados e, decerto, aqueles que os formavam na FMRJ, a despeito, como dito, da preponde-rância do paradigma anatomoclínico191.

189 FERREIRA, op. cit., 1994, p. 61; BYNUN e BYNUN, op. cit. 2007, p. 266-268; KURY, op. cit.,1990, p. 83 e segs.190 FOUCAULT, op. cit. 2004, 203 e segs.191 Os estudos de Monique Gonçalves e Luiz Otávio Ferreira apontam realidades análogas as aqui encontradas acerca das percepções sobre a epidemia de cólera e a utilização de diferentes referenciais teóricos na FMRJ. Cf. GONÇALVES, op. cit. 2013, p. 60 e segs; FERREIRA, op. cit. 1994, p.60-62.

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Entretanto, nenhum dos autores cujos nomes podem ser lidos nas teses médicas aqui analisadas fora mais citado que o “ilustrado profes-sor” Francisco de Paula Cândido. O médico além de lente de “Física em geral, e particularmente em suas aplicações à Medicina”, disciplina do primeiro ano do curso, foi comissionado pelo governo imperial para es-tudar a epidemia de febre amarela. Presidiu a Junta de Higiene Pública, chegando a membro do Conselho do Imperador, sendo ainda Comen-dador da Ordem da Rosa, Cavalheiro da Ordem de Cristo e médico da Câmara Imperial, além de membro titular da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, instituição que presidiu em três ocasiões, dentre outros títulos, comendas e distinções.

Produziu, entre outras obras, “Relatórios...” acerca das epidemias que grassavam na Corte (com destaque para o cólera e a febre amarela), que seriam os textos de sua lavra mais citados nas teses aqui estudadas, e “Conselhos ao povo sobre os preceitos hygienicos que deve guardar no curso da epidemia de cholera-morbus, e os meios de remediar aos pri-meiros sofrimentos”, pela Comissão Central de Higiene Pública (obra assinada por outros membros da Comissão).

Assim, consideramos aqui que os juízos tecidos pelo Dr. Pau-la Cândido sobre alguns aspectos específicos da epidemia de cólera, a exemplo de sua sintomatologia e seu posicionamento acerca da natureza “contagiosa” ou “infecciosa” do achaque, influenciaram decisivamente os doutorandos nos textos de suas teses e, igualmente, exprimiam o olhar “oficial” sobre a epidemia. Aspecto que será tratado abaixo192.

Outra faceta que nos chamou atenção diz respeito à forma com que os doutorandos aqui analisados registraram o contato que travaram com os vários autores que nomeiam no curso das páginas por eles escri-tas. Como observaram Gondra e Gonçalves, nas fontes aqui compulsadas

192 Valendo-se do conceito de “etiqueta científica” de Shapin (1994), Flávio Edler tece interessantes conside-rações sobre o “status” e a preponderância de determinados médicos e/ou grupos no Império e os mecanismos validação, institucionalização e afirmação de certos posicionamentos acerca das doenças e das explicações para suas causas, sinais e sintomas, ações de Estado. Cf. EDLER, op. cit. 2011, p.18 e segs.

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igualmente constatamos que a maioria das menções à literatura médica lida aparecia, estrategicamente, como “argumentos de autoridade”, a cor-roborar e legitimar suas assertivas e aproximar os estudantes da FMRJ dos autores e textos médicos que circulavam nas “nações mais adiantadas”193.

Contudo, é perceptível para além da atualização do que era lido pelos doutorandos e do uso dessa mesma literatura como “argumento de autoridade” (ou, se preferirmos, “citações tributárias” dos tratados médi-cos produzidos na Europa) que havia, igualmente, nos textos das teses que produziram espaços para a exposição de controvérsias e discordân-cias entre os autores de que se valiam. Ou, dito em outras palavras, os formandos em medicina da FMRJ dialogavam e se apropriavam ativa-mente dos textos que citavam, buscando, estrategicamente, em diversos trechos de seus trabalhos de final de curso enfatizar seu protagonismo como estudantes e médicos.

Assim, Soeiro de Faria, por exemplo, problematiza em sua tese o olhar de Broussais acerca da “natureza e sede” da epidemia, desmontan-do a percepção do médico francês da cólera como uma “gastroenterite”:

A cólera-epidêmica (dizem eles) [“os sectários de Broussais”] é uma irritação da mucosa gastroin-testinal, uma gastroenterite de natureza particular. Analisando as lesões funcionais e anatômicas desta enfermidade, temos observado duas séries delas.

193 GONDRA, op. cit. 2004, p. 157; GONÇALVES, op. cit. 2013, p. 77-81. Ainda que provas documentais nesse sentido sejam muito difíceis de serem encontradas, é presumível – em virtude da supracitada repetição de autores e composições de textos que denotam consideráveis proximidades, usos de paráfrases para a repetição de determinados argumentos, etc – que muitos dos futuros médicos podem ter lançado mão de citações acessadas de modo indireto (“citação da citação”); faziam eco aos comentários de tradutores de textos médicos que, não raro, faziam acréscimos, escreviam notas não existentes nos textos originais, cotejavam argumentos de autores. Acerca desse assunto, conferir: KURY, Lorelai. Iluminismo e império no Brasil: O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p 145; GAVROGLU, Kostas et al. Science and technology in the European periphery: some historiographical reflections. History of Science. Cambridge, n. 46, 2008. p.153-175; LUNA, Fernando J; KURY, Lorelai. Enlightenment chemistry translated by a Brazilian man of science in Lisbon. Am-bix. Cambridge, v.59, n.3, 2012. p.218-240. Contudo, para o melhor posicionamento em torno dessas questões outra agenda de pesquisa, que abarcasse a análise de inventários, ofertas de livros médicos na Corte, estudos de trajetórias desses médicos, deveria ser considerada. Aliás, tais perspectivas abrem interessantes possibilidades para trabalhos vindouros.

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[...] Como pois conceber-se que a ação de um ór-gão possa exagerar-se sem que ao mesmo tempo sua atividade vital não seja? As congestões san-guíneas, passivas, nas vísceras abdominais, quando, por exemplo, uma lesão orgânica do coração opõe obstáculo à circulação, nunca são seguidas de seme-lhantes fenômenos194.

Ao tratar dos diagnósticos da cólera, Godoy Botelho dedica al-guns parágrafos de seu trabalho para mapear críticas e controvérsias entre os autores que cita. O doutorando ao mencionar as feições dos cadáveres dos coléricos discorda de Gardner sobre o fato de que deter-minados “líquidos” existentes no tubo intestinal, como “uma matéria cremosa muito aderente à mucosa, cujo epitélio pode estar inteiramente desprendido dela, de modo a representar cilindros que nadam no meio desses líquidos”, poderiam servir como diferencial das pessoas acome-tidas pela “epidemia reinante”. Para Botelho, tal argumento “está bem longe de ser verdade”195.

Aliás, como já se torna possível perceber nos fragmentos supra-citados, nossos doutorandos igualmente buscavam, na construção do discurso de suas teses, afirmar seu protagonismo como médicos enfa-tizando – também como estratégia retórica, a nosso ver – suas “obser-vações” e experiência clínica. Nesse aspecto consideramos, por exemplo, proposital a lembrança e valorização da realização de “anatomias”, que, como mencionado acima, configurava-se uma das principais facetas do paradigma anatomoclínico.

Neste contexto, Godoy Botelho narra em diversos trechos de sua tese sua experiência como “interno” na enfermaria de coléricos na Rua de Bragança, descrevendo a realização de “anatomias patológicas” nos pacientes que perdia, a confrontar as características dos cadáveres que

194 FARIA, op. cit. 1856, p. 36-37 – grifos nossos.195 BOTELHO, op. cit. 1863 p. 25.

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abria na capital do império com aquelas presentes nos livros dos diver-sos médicos europeus que também lera para sua formação acadêmica. Ao discorrer sobre os “meios curativos” da epidemia, Botelho corrobora, uma vez mais, sua ação de curador, ao registrar em sua tese, em tom fla-grantemente hiperbólico, a quantidade de coléricos que teria remediado: “Seria um trabalho insano e fastidioso o repetir os diversos tratamentos que tem sido até hoje posto em prática; por isso não faremos mais do que apresentar os meios, que a observação de mais de quinhentos colé-ricos nos mostrou mais proveitosos196.

Resumindo, seria equivocado, em nossa opinião, imaginar que essas teses não passariam de monótonas repetições de conteúdos e au-tores. Aqui percebemos, igualmente, diferentes escolhas, diálogos ativos (e explicitação de controvérsias), travados com a vanguarda da produção médica europeia, incrementados pelas descrições da própria experiência dos futuros doutores – ao protagonizarem a abertura dos cadáveres e o tratamento dos coléricos – matizando, assim, o acima referido cará-ter “coletivo” (este também inegável), na redação dessas teses médicas. Outra hipótese bastante plausível que cremos poder considerar, embora esta seja de confirmação empírica bastante difícil, é que parte das críti-cas, controvérsias e “revisões” encontradas nas teses escritas pelos futuros médicos também pudessem ser reproduzidas a partir do discurso e ensi-namento de seus mestres ao longo do curso.

As percepções da “epidemia reinante” nas teses médicas

O século XIX se caracterizou pelo aparecimento de inúmeras epidemias que se espalharam por todas as regiões do planeta, vitimando um elevado quantitativo de pessoas. Das epidemias que grassaram no

196 Idem, p. 33. Para demais referências nesse sentido, conferir BOTELHO, op. cit. 1863, p. 19, 24, 28, 35 e FARIA, op. cit. 1856, p. 17 e 19.

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Brasil do século XIX, o cólera foi aquela que mais impacto causou não somente pelo seu número de mortos mas pela virulência excepcional com que se alastrou197.

O cólera chega ao Brasil em 1855, a bordo da Galera Deffensor, embarcação de origem portuguesa que aportou em Belém do Pará. Em-bora a doença já fosse conhecida em Portugal, como nos comprovam as correspondências expedidas entre o ministro dos Negócios Estran-geiros, informando sobre medidas preventivas adotadas pelo governo português para impedir a chegada da epidemia naquele território. Os homens do século XIX atribuíam inúmeras causas como possíveis pro-pagadoras da moléstia198.

A força como a epidemia se espalhou foi decisiva para que as autoridades governamentais tivessem que tomar medidas no sentido de evitar o aparecimento e a propagação do cólera. Esforços são envidados buscando no corpo médico soluções para livrar a população de tão ter-rível mal, o que levou, por exemplo, jovens doutorandos da Escola de Medicina a se debruçarem sobre essa doença, quando da apresentação de seus trabalhos de conclusão de curso.

Conforme já mencionado, escolhemos três teses médicas, produ-zidas pelos concluintes do Curso de Medicina do Rio de Janeiro, Hen-rique de Hollanda Cavalcanti de Albuquerque, A. J. Soeiro de Faria e João Antonio de Godoy Botelho, quando a epidemia estava no seu auge aqui, no Brasil, ou seja, entre 1855 e 1856.

Embora houvesse muitas controvérsias e disputas de posiciona-mento em relação a determinadas facetas do conhecimento sobre a epi-demia de cólera, a exemplo de sua sede ou se suas causas seriam de na-

197 SNOW, John. Sobre a maneira de transmissão do cólera [1854]. Rio de Janeiro: Usaid, 1967.198 SANJAD, Nélson. Cólera e medicina ambiental no manuscrito “Cholera-morbus” (1832), de Antonio Cor-reia de Lacerda (1777-1852). Revista História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, set./dez. 2004. P.587-618.

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tureza “contagiosa” ou “infecciosa”, os doutorandos discorriam de forma unânime sobre os sintomas da doença. Sustentados nos ensinamentos de médicos estrangeiros, como Littré e Broussais, Fabre e ainda nos mestres da Academia Imperial, Francisco de Paula Cândido, Ferreira Pinto, afirmam que o doente de cólera apresentava inicialmente um abatimento de suas forças, seguido por uma diarreia biliosa, com muitos vômitos brancos e evacuações também brancas semelhantes à água de arroz199. Depois de quatro dias aparecia no enfermo um resfriamento, com câimbras de não grande intensidade, seguidas da extinção da voz e da urina e ainda do obscurecimento da visão. Por fim, o doente passava para o último estágio da doença, quando o enfermo tinha uma sede in-cessante, resultando na cessação da circulação e da respiração.

Apontam, ainda, que não era incomum o doente, próximo ao fim, ter sinais de recuperação, que denominam de reação, quando o colérico apresenta progressiva melhora dos sintomas mórbidos. A temperatura vol-ta a se normalizar nos pés, nas mãos e nas extremidades, assim como a respiração. Ocorre também a recuperação da voz, diminuem as evacuações, a ansiedade, os vômitos e as câimbras. Tomando como referência o apre-goado pelo médico Grisole, o doutorando Faria diz que o doente nessa fase voltava a apresentar a face rosada, os olhos ficavam claros e úmidos, a voz adquiria o seu volume natural, os batimentos do pulso e a urina se nor-malizavam, enfim, o sangue passava a adquirir suas qualidades normais200.

Embora possamos dizer que os três graduandos citados, em sín-tese, apontassem os mesmos sintomas característicos da doença, encon-tramos em algumas complementaridades ao se referir aos sintomas da doença201. Afirma esse autor que, às vezes, o doente apresentava diarreia mais ou menos abundante, mas sem cólicas. O enfermo não se queixa de grandes incômodos, o que faz com que se negligencie a enfermidade,

199 ALBUQUERQUE, op. cit. 1856, p. 12.200 FARIA, op. cit, 1856, p. 6 e 12.201 BOTELHO, op. cit. , 1863, p. 21.

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a moléstia percorra as quatro fases e o indivíduo afetado só se apercebe do mal quando esse já chegou ao seu apogeu.

Muitas vezes encontramos, na documentação produzida pelos médicos que atuaram na Província do Espírito Santo, alusão à diferen-ciação entre cólera e colerina202. Nas teses médicas dos formandos com as quais estamos trabalhando, essa temática também é discutida. Para Albuquerque203, a colerina seria o primeiro estágio da doença, quando o enfermo fica prostrado e com diarreia biliosa. Seu período, entretan-to, é curto, podendo demorar apenas algumas horas e esse mal-estar é dissipado. Ou, como é comum lermos nos escritos de diversas naturezas produzidos pelos médicos, se o tratamento fosse procurado no “tempo certo” e engendrado pelo “curador certo” (ou seja, o representante da medicina oficial) a cura seria rápida e garantida.

Aliás, tal olhar lançado sobre o “Mal de Ganges”, separando sua sintomatologia e “evolução” em estágios, como aparece também nas teses médicas aqui analisadas, seria corrente no que concerne a outras doenças. Havia à época um entendimento bastante estabelecido no meio médi-co de que uma doença poderia atravessar diferentes fases, ou, mesmo, se transformar (ou, para usarmos um termo coevo, “degenerar”) em outras204.

Parece-nos bastante plausível que em diversos momentos o saber médico oficial afirmasse a presença da colerina e não do cólera no Bra-sil, do mesmo modo que não seria simples para autoridades estatais e diversos outros atores sociais o “reconhecimento” da presença efetiva de uma epidemia, como estratégia para atenuar o medo e adiar determi-nadas ações nada bem-vindas, a exemplo da imposição de quarentenas, cordões sanitários e, no limite, sequestros de doentes205.

202 FRANCO, Sebastião P. O Terribilíssimo mal do Oriente. A cólera na provincial do Espírito Santo. Vitória: EDUFES, 2015.203 ALBUQUERQUE, op. cit. 1856, p. 22.204 CUNNINGHAM, Andrew; WILLIAMS, Perry (Ed.). The laboratory revolution in medicine. Cambridge: Cambridge University Press. 1992. P.223 e segs.205 Esse tipo de percepção coaduana com a de autores como Tânia Pimenta: “Admitir a entrada do cólera no

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Outra importante discussão que aparece nos trabalhos apresenta-dos pelos doutorandos é sobre a origem da doença: seria essa de nature-za infecciosa ou contagiosa?

A Medicina no século XIX, conforme assevera Nelson Sanjad, atribuía inúmeros motivos como possíveis causas do cólera, entre eles, os desregramentos, a má alimentação, o excesso de trabalho, a exposi-ção exagerada à umidade ou mudança climática, as paixões deprimentes. Entretanto, a atmosfera tinha papel fundamental, sem a qual, segundo se pensava, os surtos epidêmicos não ocorriam. Acreditava-se que o có-lera advinha dos miasmas, ou seja, gases pútridos que se espalhavam pela atmosfera “[...] cuja presença podia ser aferida por diversos tipos de fedor”206. Esses gases originavam-se da decomposição de matéria or-gânica encontrada nos montes de lixo existentes nas ruas, valas, esgotos, matadouros, chiqueiros de porcos, peixarias, curtumes e igrejas, onde se enterravam os mortos. Por isso, a constatação da possibilidade da che-gada de uma epidemia estaria tão ligada ao aerismo e ao olfato – o mais elementar, o “mais baixo”, juntamente com o tato, na hierarquia dos sen-tidos humanos – que prenunciava nos odores insuportáveis e miasmas pútridos o “cheiro da peste”.

Embora a teoria infeccionista tivesse prevalecido no Brasil como um todo e no Espírito Santo em particular, pensamento divergente esteve presente, como nos aponta Sidney Challoub, como a corrente médica que credita o aparecimento dos males epidêmicos ao contagio-nismo. Os contagionistas acreditavam que as doenças eram transmitidas de um indivíduo doente para outro são de modo mais direto (ou pelos objetos usados pelo doente)207. Assim, em seu Relatório... o Dr. Paula

Brasil, e sobretudo na capital, era uma derrota política que preferiam adiar o quanto pudessem (...) Enfim, a colerina ajudava a mostrar que a elite médica, em particular a Junta [de Higiene Pública], tinha tudo sob controle ” PIMENTA, op cit. 2004, p. 35.206 DAVID, Op. Cit, 1996. P.53.207 CHALLOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Pauo: Companhia das Letras, 1996. P. 64.

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Cândido, de forma bastante didática, discorre sobre as diferenças entre as concepções de contágio e infecção. Em suas palavras:

Por contagiosa entendo uma moléstia que se trans-mite do homem doente a outro homem sem a in-tervenção de qualquer outro agente ou meio ambiente estranho ao corpo do doente; e sem que o agente do contágio sofra alteração alguma depois que saiu do corpo enfermo [...]

Assim a varíola, os sarampos, a vacina, a escarlatina, a coqueluche, a sífilis, a pústula-maligna, a hridrofobia, a sarna, etc, são moléstias contagiosas [...]

[...] O cólera-morbos também não é contagioso: ele viaja do Ganges ao Volga, ao Danúbio, ao Neiva, ao Seine [sic], ao Tamisa, ao Mississipi, etc não chega à alta Suiça, demora-se ou se extingue na altura de grandes serras [...]

Por infecciosa entendo uma moléstia que não se transmite senão mediante a intervenção de agentes ou 1° tornados estranhos ao organismo, de onde aliás sairão e sofrerão alterações químicas; ou 2° origi-nários de outros focos completamente alheios ao organismo humano208.

Aqui cabe uma ressalva: ainda que considerassem mais direta-mente a aquisição de uma epidemia pela via do contato “pessoa a pes-soa”, as vertentes contagionistas não desconsideravam as influências da “atmosfera” e dos “ares corruptos”, além de outros fatores externos ao corpo, nessa equação. O que, cremos poder pensar, abriria margem para alimentar os debates, trânsitos e a não existência de argumentos sufi-cientemente “conclusivos” entre uma e outra teoria, que pudesse encer-

208 CÂNDIDO, Francisco de Paula. Relatório à cerca do cholera morbus, precedido de considerações sa-nitárias relativas aos portos do Imperio, para subir a Augusta presença de S.M. o Imperador. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1855. P.2, p. 1-2. grifos do autor.

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rar um olhar consensual entre os médicos aqui estudados, a despeito, como dito acima, de uma notável preponderância da teoria infeccionista para a explicação do cólera209. Como argumenta convincentemente Tâ-nia Pimenta, no Brasil imperial houve certa “postura conciliatória” entre essas duas teorias, na qual, o saber médico oficial não apresentaria uma atitude binária, do tipo “infeccinismo versus contagionismo”. Ainda de acordo com a autora, essa postura que denotaria “prudência diante das incertezas teóricas”, igualmente teria contribuído para manter certa uni-dade interna de órgãos oficiais como a Junta de Higiene Pública e dos representantes da medicina douta210.

Resumindo, embora a teoria infeccionista a mais usada para dar con-ta da gênese de uma epidemia de cólera, fica evidente que as teses apresen-tadas pelos graduandos não tomam essa referência como a única possível.

Conforme dito, os graduandos reproduziam os ensinamentos de seus mestres na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O profes-sor Paula Cândido e seu relatório são referenciados por todos os três graduandos. Na opinião desse professor, conforme podemos observar no trecho do relatório citado acima, os miasmas seriam os maiores res-ponsáveis pelo surgimento e proliferação do cólera. Assim, fazendo eco aos argumentos do “ilustrado professor”, os jovens doutorandos seguem nessa mesma cantilena. Para tanto, vão de fato perseguir a ideia mias-mática como a fonte maior da explosão das epidemias. Em geral, distin-guem – praticamente reproduzindo entre paráfrases e cópias literais a escrita do Dr. Paula Candido – as doenças contagionistas, como varíola, sarampo, escarlatina, sífilis, coqueluche, que ocorreriam pela transmis-são de “[...] um homem doente a outro sem a intervenção de qualquer outro agente ou meio ambiente estranho ao corpo doente, e sem que

209 Para uma discussão mais pormenorizada acerca da gênese e dinâmica dessas duas teorias acerca da origem das doenças epidêmicas, conferir CZERESNIA, Dira. Do contágio à transmissão. Ciência e cultura na gênese do conhecimento epidemiológico. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997. p. 49 e segs.210 PIMENTA, op. cit. 2004, p.34.

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o agente contagioso sofra alteração alguma depois que saiu do corpo enfermo[...]”211. Nesse sentido, retomamos Soeiro de Faria, que tenta a partir da percepção infeccionista, mostrar que o contagionismo não dá conta de explicar o aparecimento e a explosão do surto de cólera, uma vez que esse se desenvolve com absoluta preponderância entre as

[...] as classes mais desfavorecidas da fortuna, e por aqueles indivíduos de maus costumes, que, se en-tregam a abusos de qualquer natureza, prova, em comparação com o número de indivíduos afetados, e que observam todas as regras de higiene, que se com efeito a moléstia fosse contagiosa, tanto ata-caria, e com a mesma intensidade, o rico e o pobre, como o nobre e o plebeu212.

Também Botelho afirma que o cólera se transmitia por meio da infecção ou do contágio, embora apresente em seu trabalho o mesmo que a maioria dos seus mestres professores acreditava, isto é, que o infec-cionismo era o maior responsável pela transmissão da doença. Chega a afirmar que essa doença podia apresentar o duplo modo de transmissão, “[...] sendo uma moléstia de natureza infecciosa, todavia não deixa de propagar-se, e ordinariamente o faz, por meio do contágio”213.

O outro doutorando em cuja tese nos debruçamos diz que “Ne-nhuma moléstia epidêmica, em relação às causas que a produzem está mais cercada de obscuridade do que o cólera”214. Entretanto, fica claro que igualmente acreditava mais na influencia miasmática como a causa principal do aparecimento dessa doença, ao afirmar: “Já de passagem tocamos no princípio miasmático do cólera, opinião que enquanto en-contre objeções, parece-nos a mais razoável [...]”215.

211 FARIA, op. cit. 1856, p. 13.212 Idem, p. 50.213 BOTELHO, op. cit. 1863, p. 37.214 ALBUQUERQUE, op. cit. 1856, p. 23.215 Idem, p. 24.

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Cabe, então, perguntar: se não havia unanimidade entre os médi-cos da época, por que a teoria infeccionista se tornou hegemônica? Pare-ce-nos que a explicação econômica e política pode nos esclarecer melhor esse fenômeno. Os contagionistas tomando como referência que o cóle-ra sempre chegava de fora para dentro, quase sempre por via marítima, apregoavam o uso da quarentena. Dessa forma deveria se estabelecer vigilância sobre as embarcações que chegavam de “portos suspeitos”. Tal teoria redundaria na diminuição do fluxo do comércio, o que impactaria a economia local. Dessa forma, havia, por parte do Estado e das elites locais, uma clara manifestação contrária ao contagionismo.

Resumindo, a Medicina da época creditava à ação conjunta das forças atmosféricas, como clima, temperatura, composição do ar, ação dos ventos, formação dos terrenos, eletricidade, salubridade e a umidade, como vetores do aparecimento do cólera. Associado a esses fatores, indi-cava a questão da ingestão de alimentos considerados de má qualidade, os excessos venéreos, as influências morais e a falta de higiene pessoal e de moradia como fatores contribuitivos para o surgimento da doença216.

No escopo dessas explicações acerca das causas que promove-riam doenças e epidemias se fazem nítidas a longevidade e influência da tradição hipocrático-galênica217. A partir da segunda metade do século XVIII houve uma revalorização do legado hipocrático, conhecida como neo-hipocratismo, que, em linhas gerais, pode ser caracterizada pela atualização da “teoria dos miasmas” como mais um elemento a moldar a relação hipocrática ambiente/corpo. Esta fora consagrada no trata-do Dos ares, das águas e dos lugares, no qual o médico “grego” estabelece uma indissociável relação entre os fatores “internos” (noção hipocrática de dieta e hábitos) e “externos” (clima, entendido também pelos neo-

216 BOTELHO, op. cit. 1863, p. 19-20.217 Aqui concordamos com a advertência de Palmira F da Costa: “É ainda frequente falar-se da persistência das ideias hipocráticas ou galênicas como se elas tivessem uma autonomia própria”. COSTA e CARDOSO, op. cit. 2011, p.19. Para uma discussão sobre as variações e leituras da ‘teoria humoral”, além de questões sobre autoria no corpus hippocraticum, conferir NUTTON, op. cit. 1997, p. 94-95.

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-hipocráticos em sentido amplo: umidade, pressão atmosférica, topo-grafia, influência dos astros, proximidade de pântanos e lagos...) para a explicação das doenças físicas e morais nos corpos humanos. Além disso, o neo-hipocratismo fora marcado pela influência do sensualismo de Condillac (1714-1780), que apregoava a primazia da observação e da experiência como mecanismo único para a aquisição do conhecimen-to – contrapondo-se às vertentes do conhecimento inato, herdadas do racionalismo cartesiano, o que decerto corroborava as pretensões mais “experimentais” do paradigma anátomo-clínico acima descrito218.

Ou, dito em outras palavras, a “tríade hipocrática” (dieta, hábitos e clima), atualizada e repaginada pelo neo-hipocratismo, exerceu signifi-cativo papel também na explicação para as causas da epidemia de cólera no Brasil do oitocentos. Nesse sentido, conforme mencionado acima, a influência do médico “grego” se fez presente para muito além de seus aforismos protocolarmente impressos ao final das teses escritas pelos doutorandos aqui estudados.

Quando se examinam outros documentos produzidos por auto-ridades médicas do Império, vê-se que os futuros médicos estão ante-nados com o que diziam essas autoridades219. A Comissão Central de Saúde Pública220, designada pelo Imperador D. Pedro II, tão logo apa-receu a epidemia de cólera no Pará e na Bahia, já indicava uma série de recomendações sobre as quais nos debruçamos, citadas nas teses que ora analisamos. Essas recomendações estão presentes, como cuidado com

218 KURY, op. cit. 1990, p. 74-78 e segs; BASHFORD, Alison e TRACY, Sarah W. Introduction: Modern Airs, Waters and Places. Bulletin History Medicine n. 86., 2012. p. 495-514; HANNAWAY, op. cit. 1997, p. 302-306.219 Segundo Santos Filho, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro contava em seus quadros com figuras ilustres e importantes da política, que se utilizavam daquele espaço para reproduzir os conhecimentos médicos em que acreditavam. Seriam os componentes dessa instituição os mais prestigiosos homens não só da política como do saber médico. No que se refere à política, o mesmo autor lembra ainda que, em 1833, por exemplo, en-tre os quatorze catedráticos, dois eram barões, um senador e seis deputados. SANTOS FILHO, Lycurgo. História geral da medicina brasileira. São Paulo: Hucite/Edusp, 1991. v. II.220 Compunham essa comissão médicos professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a saber: Francisco de Paula Cândido (presidente), Antonio Félix Martins, José de Góis Siqueira, José Pereira Rego, Manoel Valladão Pimentel, Antonio José Gonçalves Fontes, Jacintho Rodrigues Pereira Reis, Manoel Pacheco da Silva, Roberto Jorge Haddock Lobo e Herculano Augusto Lassance Cunha (secretário).

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a salubridade das habitações, principalmente aquelas situadas em ruas estreitas e úmidas, próximas da praia ou do mangue e as mal arejadas, pouco espaçosas onde morava um grande número de pessoas. Indicava ainda que:

[...] por isso convém todos os dias varrer e limpar os corredores, escadas todos os pavimentos em fim, raspar os assoalhos e paredes nos lugares impregna-dos de matérias orgânicas em decomposição, lavá--los com água simples ou cloretada e o mesmo pra-ticar nos lugares infectados das habitações, como os dormitórios dos escravos, os quartos em que se de-positam as tinas e barris de despejo, os quais, além disso, deverão ser desinfectados pelas fumigações de enxofre e salitre, duas vezes na semana pelo menos, e caiados convenientemente221.

Recomendações produzidas em outro documento pelo professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Francisco de Paula Cândi-do, também são utilizadas pelos jovens candidatos ao apresentarem suas teses como um dos requisitos para adquirir o grau de doutor em Medi-cina. A indicação do tratamento dos coléricos, por exemplo, aparece nas três teses conforme indicava Francisco de Paula Cândido no documento citado. Quando apareciam as tonteiras, os dessarranjos, as evacuações, as câimbras, a diminuição da urina entre os doentes de cólera, indicavam a recomposição de sais, o que resultaria na ativação e oxidação do san-gue. Recomendava-se a aplicação de remédios, como duas gotas cânfora ou creosoto ou ainda terebentina ozonizada. Também recomendavam água de labarraque saturada de cloro, que deveria ser tomada sem mais mistura, em um cálice de água pura, fria ou gelada, de meia em meia hora Nos intervalos dessas bebidas, indicava-se infusão de violetas, de

221 BRASIL. Conselhos ao povo sobre os preceitos hygienicos que deve aguardar no curso da epidemia de cholera-morbus, e os meios de remediar as primeiros soffrimentos, pela Comissão Central de Saude Publica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1855. Fl. 3.

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flor de borragem ou, ainda, galhos de laranjeira, “[...] ou se estas bebidas não forem aceitas, dissolução de goma arábica, ou água de Seltz [...]; ou limonada [...]”222.

Indicava-se, ainda223,

Alternar, ou intercalar nestas bebidas uma disso-lução salina diluída a saber: sal comum 18 grãos- carbonato de soda 24 grãos- clorato de potassa 6 grãos- tudo dissolvido numa xícara de água: doses que se poderão duplicar u subdividir: ou nitro, cre-mor, carbonato de soda e sal comum: ou acetato de potassa, cremor e carbonato de soda: qualquer das precedentes misturas de sais devem ser diluídas e não concentradas: ou o citrato de magnésia: ou a magnésia fluída de Murray (que contém potassa e soda0: ou sal amargo: um enfim análogas dissolu-ções salinas, especialmente as não purgativas, em doses ordinárias, ou antes diluídas, devendo qual-quer dessas substâncias salinas, que forem aceitas pelo estômago do doente, ser repetida de meia em meia hora ou de quinze em quinze minutos e com continuada convicção. Sendo algumas vezes neces-sário, quando o estômago as rejeita, administrar o Seidlitz, ou sal amargo para remover do estômago os líquidos que promovem os vômitos. A xxperiên-cia tem mostrado, que misturadas com gelo são mais toleradas e profícuas [...].

Além da porção destes sais administrados pela boca convém recorrer e desde logo à clisteres amiudados e concentrados, preparados com sais neutros de po-tassa, de soda e de magnésia [...]224.

222 CÂNDIDO, op. cit. 1855, p. 34.223 Trata-se do relatório acerca do cólera morbus indicando as recomendações sanitárias a serem aplicadas nos portos de todas as províncias litorâneas do Brasil, encaminhado ao Imperador D. Pedro II, a fim de que o conteúdo do documento fosse aplicado.224 Idem, p.34.

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Essas indicações de Paula Cândido se apresentam na tese de Soeiro de Faria, quando ele se reporta aos itens tratamento preservativo e tratamento curativo.

Cabe-nos, novamente, sublinhar que ao dizer que os candidatos a médicos referenciavam seus professores e médicos consagrados eu-ropeus, não estamos afirmando que seus trabalhos não primavam pela originalidade, como esclarece Antunes225. Concordamos com Gondra, ao dizer que “[...] o discurso presente nessas teses não [eram] expressões de sujeitos individuais por absorver os conhecimentos apreendidos na formação escolar, por meio dos autores lidos”226.

Quem era mais atingido pelo cólera, segundo os higienistas

Como o cólera atacava e matava mais pessoas das camadas mais pobres economicamente, a miséria dos pobres passou a ser combatida e os seus comportamentos controlados, uma vez que os higienistas asso-ciavam a ação desse segmento social como os maiores responsáveis pela proliferação dos surtos epidêmicos227.

Assim, tendo em vista o peso das concepções infeccionistas na ex-plicação para as causas da epidemia de cólera, alegava-se que as medidas sanitárias, como os isolamentos e as quarentenas, não evitavam que as epidemias se alastrassem, portanto a solução para impedir a sua prolife-ração seria garantir ares mais puros e uma cidade higienizada. Outra ar-gumentação dos infeccionistas, combatendo as ideias contagionistas era que, se o cólera fosse pego por contágio, como explicar que só algumas pessoas a contraem e não todas? Nesta perspectiva, notamos nos textos

225 ANTUNES, José L F. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Editora da Unesp,1999.226 GONDRA, op. cit. 2005, p. 115.227 ALMEIDA, Maria Antônia Pires de. A epidemia de cólera de 1853-1856 na imprensa portuguesa. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, out./dez. 2011. p. 1057-1071.

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produzidos pelos doutorandos, como é possível também observar em vários outros textos médicos à época estudada, a íntima relação entre os discursos e ações de caráter higienista e o peso das exalações miasmáticas e das concepções neo-hipocráticas em âmbito mais geral nas considera-ções acerca da epidemia de cólera e a melhor forma de debelar a doença.

Para além do peso da teoria dos miasmas, ou melhor, fortemente atrelada a esta, estaria a ideia de que as doenças se davam, igualmente, a partir dos comportamentos desviantes e da falta de cuidados possibi-litou que a ação (ou, pelo menos, o discurso) dos higienistas que reco-mendavam o asseio das ruas, das casas e das pessoas fosse se consolidan-do gradativamente. Assim, o alvo principal das ações desses higienistas e do Estado passa a ser os pobres, que não “se adaptam” ao preceito de limpeza e higiene.

Ganha força, a partir de então, medidas higiênicas, como limpeza de ruas, casas, terrenos baldios, praias; caiar, abrir e arejar as casas por ser foco de proliferação de doenças. As áreas habitadas, em sua maioria pela população mais pobre das cidades, como escravos, negros forros e livres pobres, que seriam, segundo a concepção dos médicos, incapazes de entender ou praticar as regras básicas de higiene e de moral, uma vez que eram considerados promíscuos sexualmente, passaram a ser o foco da atenção dos higienistas que vão buscar intervir diretamente na vida dessa população, que era considerada a real culpada pelo aparecimento e proliferação das epidemias.

Nesse sentido, é notável igualmente nas teses médicas o argu-mento de que os “modos de viver” dos indivíduos oriundos das camadas populares acabassem gerando em seus corpos condições predisponentes para a aquisição de doenças como o cólera (realidade que acabava por ratificar a supracitada atitude de “culpabilização” de determinados gru-pos sociais pelo seu estado de saúde e/ou pela ocorrência e difusão de doenças e epidemias). Nesse aspecto, Albuquerque seria enfático:

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Foram os escravos e pessoas indigentes que paga-ram o principal tributo à cólera: estas pelos seus há-bitos de desmazelos, falta de recursos domésticos, e nenhum conhecimento do perigo que corriam, de não solicitar os socorros públicos aos primeiros sin-tomas da enfermidade228.

Outro doutorando, João A. de Godoy Botelho, a despeito de re-fazer em sua escrita tópicas textuais – vistas também na pena do dr. Chernoviz – no que versa sobre o alcance das epidemias (verdadeiras “pestes”), como a ideia de que o cólera não pouparia “nem o rico nem o pobre”; “o homem gasto pelo vício e o sóbrio nas paixões”, etc. acabaria esclarecendo com maior precisão o que Albuquerque afirmara, laconi-camente, como “hábitos de desmazelo” das pessoas alocadas nos estratos mais baixos da sociedade imperial:

[...] Devemos notar que o número de afetados de cólera, que há pouco reinou entre nós, entrava uma grande parte de ébrios, e ainda que neles os sinto-mas eram sempre mui graves.

Os excessos venéreos debilitam de uma maneira admirável o organismo, e ativam as funções de ab-sorção. Ora sendo a causa determinante do cólera um miasma, é intuitivo que mui facilmente será ab-sorvido, e aí seguir-se-ão funestas consequências se tal atividade se der229.

Aqui, é notável na pena dos “doutorandos” uma vez mais o peso das concepções hipocrático-galênicas, desta vez percebida a partir da noção hipocrática de “dieta”: incluindo não apenas os hábitos alimenta-res em sentido estrito, mas abarcando também o regime de trabalho (e demais “exercícios” do corpo), as práticas sexuais, as “paixões da alma”,

228 ALBUQUERQUE, op. cit. 1856, p. 23.229 BOTELHO, op. cit. 1863, p. 19.

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entre outros vetores (CAIRUS, 2005, p. 93). Informados por tal inter-pretação dos corpos e das doenças, não seria incomum em vários textos médicos à época da epidemia de cólera críticas que teriam como alvo os rituais de enterramento, o dobrar dos sinos das igrejas, dentre outras práticas, que acabariam motivando “paixões deprimentes” e, consequen-temente, deixando as pessaos mais suscetíveis e enfraquecidas para o assalto da “epidemia reinante”.

Evitar os desvios da população era, segundo Gondra (2004, p. 94-101), seguir o caminho “[...] da razão médica e o caminho da razão higiênica, capazes de reordenar a saúde, a estética, a cultura e a moral [...]. Buscava-se construir e legitimar o ‘império dos médicos’ no espa-ço de uma cidade [...]” doente. Em síntese, recorrendo mais uma vez a Gondra, podemos afirmar que:

[...] os médicos procuraram ocupar lugar de des-taque na formulação de projetos de ordenamen-to, regulação e civilização dos homens e da cidade. Transformaram o quadro de uma cidade sitiada pela morte, insegurança, insalubridade, ignorância, feiúra e vícios em uma demanda por mudança, a ser de-terminada pelos imperativos do discurso médico230.

As teses médicas e os discursos promovidos pela Academia Im-perial de Medicina davam bem conta dessa situação vivenciada em di-versas províncias do Brasil e, em particular, na do Espírito Santo, onde as epidemias de cólera, varíola e febre amarela se tornaram uma triste realidade presente no decorrer da segunda metade do século XIX.

Considerações Finais

230 GONDRA. Op. cit. p. 101.

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Como vimos, os jovens doutorandos conheciam diferentes cor-rentes de pensamento acerca do saber médico no que se relacionava ao enfrentamento de epidemias, em particular o cólera. Esses conhecimen-tos certamente faziam parte do aprendizado com seus professores, al-guns deles inclusive por terem estudado na Europa. Embora os médicos franceses fossem os mais conhecidos e citados, médicos de outras nacio-nalidades como ingleses, alemães, portugueses e italianos também eram citados. O fato de conhecer e citar médicos estrangeiros e seus próprios professores que eram médicos brasileiros, não significa que as teses mé-dicas apresentadas no século XIX junto A FMRJ fosse simplesmente uma compilação dessas ideias. Havia espaços para conhecimentos novos serem apresentados e discutidos. Esses conhecimentos eram apresenta-dos quando esses jovens médicos, em suas teses, relatavam o saber sobre as doenças a partir das constatações que faziam quando ao exercerem a medicina em tempos epidêmicos.

Pelo relato dos três acadêmicos fica evidenciado que a corrente infeccionista foi majoritária em tempos de cólera aqui no Brasil, no en-tanto, o fato de seguirem preferencialmente essa corrente não significa que muitas das vezes desconsideravam o que pensavam os contagionis-tas, deixando transparecer que não havia mesmo argumentos totalmente conclusivos entre os seguidores de uma ou outra corrente.

Além da ideia de que os miasmas, a sujeira eram os maiores res-ponsáveis pelo aparecimento das epidemias, de forma geral, a medicina da época, também acreditava que os pobres com sua sujeira e promis-cuidade seriam os responsáveis pela proliferação dos surtos epidêmicos. Assim, o peso das concepções infeccionistas, possibilitou que medidas sanitárias de cunho higienistas fossem gradativamente ganhando espa-ço, tornando a população pobre foco de atenção dos higienistas, que a partir de então buscaram a partir de sua inserção no aparelho do Estado, formular projetos de ordenamento e regular os homens e a cidade.

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ENTRE LIMÕES, GLÓBULOS E DROGAS: RECEITAS CONTRA O CÓLERA NO

SEMANÁRIO CRATENSE O ARARIPE (1855-1862)

Jucieldo Ferreira Alexandre231

I – Introdução

Em maio de 1855, o cólera-morbo atingiu o território brasileiro. O foco inicial de contaminação foi o Pará, a partir da chegada de em-barcação transportando colonos portugueses vindos da cidade do Porto. Logo a doença espraiou-se para outros pontos do Império, matando cerca de duzentos mil brasileiros entre 1855 e 1856, dos quais aproxi-madamente cento e trinta mil habitavam as províncias do Norte232.

No mesmo ano da chegada do cólera, saíram a público os primei-ros números do semanário O Araripe. Impresso na cidade de Crato, sul do Ceará, o jornal estava intrinsecamente ligado ao contexto histórico vivenciado à época pelo lugar e aos interesses de segmentos das elites lo-cais: profissionais liberais, proprietários de terra e comerciantes ligados ao Partido Liberal em busca de legitimação política e social.

Em dez anos de circulação, entre 1855 e 1865, excetuando os textos dedicados às contendas políticas – nos quais conservadores e li-berais caririenses se atacavam, na disputa por cargos políticos e maior

231 Professor do curso de Bacharelado em História da Universidade Federal do Cariri (UFCA); Pós-graduando em História Social pelo doutorado interinstitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) com a Uni-versidade Regional do Cariri (Dinter UFF/URCA); Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: <[email protected]>.232 DINIZ, Ariosvaldo da Silva. Cólera: representações de uma angústia coletiva (A doença e o imaginário social no século XIX no Brasil). 1997. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 95.

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legitimidade social –, nenhum tema obteve tanto espaço n’O Araripe como o cólera. Nele divulgou-se a marcha da peste, as localidades ata-cadas, o número de vítimas, os problemas de abastecimento, indicou-se remédios em voga e orações tidas como profiláticas, entre outros textos relacionados ao assunto.

O espaço ocupado pelo cólera nas folhas do semanário craten-se apontam para a historicidade das doenças. Para Claudine Herzlich, por ser evento ameaçador e modificar a vida das pessoas e o equilíbrio social coletivo, a doença sempre propicia “uma necessidade de discurso, a necessidade de uma interpretação complexa e contínua da sociedade inteira”233. Ante a força mortal da doença, especialmente de uma epide-mia, diferentes grupos sociais podem tecer diversas formas de explicar e combater o fenômeno, produzindo leituras particulares sobre a socieda-de na qual estão inseridos.

Em época tão complexa e tensa - como a da aproximação do cólera em relação ao Crato -, as representações impressas n’O Araripe sobre o fenômeno foram múltiplas, resultando em oscilação ou junção entre vários saberes. Ao tratar da enfermidade, o órgão de imprensa combinou de for-ma criativa discursos políticos, religiosos, científicos e populares, demons-trando, assim, o caleidoscópio de olhares com que a doença foi apreendida então, ou seja, como o cólera foi representado pelos sujeitos históricos, responsáveis pelo jornal, a partir do lugar social ocupado por eles.

Neste artigo, demonstro o quanto a manifestação da epidemia acabou expondo as divisões e debilidades da medicina acadêmica e a incapacidade concreta dos profissionais da saúde em inibir o cólera em meados do oitocentos, como indicia o conteúdo dos textos publicados n’O Araripe. Neste sentido, as orientações e receituários lá impressos apontam para como os facultativos – terminologia pela qual os médicos eram também conhecidos em meados do XIX – fizeram experiências

233 HERZLICH, Claudine. A problemática da representação social e sua utilidade no campo da doença. Physis. vol. 15, supl. 10. Rio de Janeiro, 2005, p. 57-70.

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assimiladoras de produtos curativos populares, indiciando uma circulari-dade de saberes terapêuticos. Ao publicizar relatos e orientações escritas pelos discípulos de Hipócrates, O Araripe buscava instruir e socorrer a população do Cariri ante o prenúncio colérico e a falta efetiva dos refe-ridos profissionais.

II – O venturoso sumo de limão

O cholera que tanto tem afligido a raça humana, esse maldito judéo errante, vai-se aproximando de nossa comarca, pelo lado do Pajaù de Flores[...]; esta noti-cia porém não deve aterrar nossa população, porque a Providencia nos a mostrado o remedio eficas con-tra esse mal; pelo que devemos tomar todas caute-las para no caso de aparicer entre nós a epedemia, estarmos preparados para a receber com o vertuo-so “SUMO DO LIMÃO” esse agente medecinal, que tantos fructos tem produsido no Pará, também obrará milagrosamente entre nós. DEOS protege a quem crer em sua infinita MIZERICORDIA, e secundados nella não devemos aterrar com a pre-sença do mal, porque como já dissemos a MIZERI-CORDIA DE DEOS, E O SUMO DO LIMÃO, providencialmente descuberto, nos fará encarar com o sangue frio essa epedemia e della zombarmos.234

O documento acima foi divulgado pelo O Araripe, em 05 de ja-neiro de 1856. A publicação sobre as vantagens do limão no tratamento do cólera veio a lume no período de manifestação do flagelo do cólera em Pernambuco, província fronteiriça ao Cariri cearense, região de circula-ção principal do semanário. Anunciando a proximidade do mal, a nota

234 O Araripe, nº. 27, 05 jan. 1856, p. 4, grifos da fonte. O jornal em questão se encontra disponível na He-meroteca Digital da Biblioteca Nacional, no link: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Optei, neste artigo, por manter a transcrição da grafia original das fontes.

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afiança: a população não deveria ficar aterrada, pois a Providência já tinha mostrado o remédio eficaz para combater a doença, classificada de forma pejorativa como judeu errante235, a saber: o venturoso sumo do limão.

Tal medicamento teria produzido bons resultados no Pará, onde o cólera primeiro aportara no Brasil, em 1855. Destarte, argumenta o texto, também obraria milagrosamente se estourasse no Cariri. Utili-zando-se do discurso religioso, afirmava a proteção de Deus sobre os crédulos de Sua infinita misericórdia. O ato misericordioso de Deus e o uso do limão permitiriam “encarar com o sangue frio essa epedemia e della zombarmos”.

A referência ao manejo do milagroso limão no Pará é revelador vestígio de como a medicina de meados do século XIX assimilou remé-dios advindos dos saberes populares para tratar pessoas acometidas pelo cólera. Versando sobre tal questão, Jane Felipe Beltrão argumenta que as ações políticas referentes aos socorros públicos durante a calamitosa epidemia do Pará, “eram, embora a contragosto das autoridades sanitá-rias, sistematicamente alteradas pela ação dos envolvidos no flagelo”236.

Tendo em vista as adversidades daquela quadra, a pressão social exercida sobre as autoridades sanitárias pelas pessoas ameaçadas pelo cólera – os protagonistas do evento, nas palavras da autora –, fez artes de curandeiros, raizeiros e outros terapeutas populares no Pará serem abonadas por alguns médicos da província. Ao assimilar tais práticas, os

235 Peter Burke, tratando da cultura popular da Europa da Idade Moderna, conta uma velha história que ajuda a melhor compreender a metáfora do judeu errante. Durante a via-crúcis, quando Jesus encaminhava-se para o calvário, levando nos ombros a cruz, um sapateiro judeu teria o impedido de descansar. Devido a essa atitude, tal sapateiro foi condenado por Deus a vaguear pelo mundo desde então (BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 191-192). Versões desta história foram sendo recontadas em vários contextos. Não por acaso, quando dos surtos de peste no medievo, houve perseguição generalizada a judeus e viajantes, acusados de envenenar fontes e espalhar a doença em vilas e cidades por onde passavam (DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989).Viva na memória de várias gerações, a lenda do judeu errante, disseminando práticas de intolerân-cia, chegou ao Crato de meados do oitocentos, inspirando o autor da citação que abre este tópico a identificá-la na ação do cólera. 236 BELTRAO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Vol. 6. [set/2000]; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000, p. 847.

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acadêmicos “escudavam-se em procedimentos considerados científicos para evitar maiores alterações nas posições já conquistadas” pela medi-cina oficial, que buscava centralizar em suas mãos as artes de curar237.

Entre os doutores a enveredar por este caminho, a autora destaca Francisco da Silva Castro, presidente da Comissão de Higiene Pública do Pará, promotor de experimentos com limão, após saber que grupo de indígenas do Amazonas obtivera sucesso no combate ao cólera por meio da administração do cítrico.

Tais experiências foram veiculadas pelo O Araripe. Nele, lê-se cópia de relatório de autoria do médico, originalmente enviada pelo go-verno do Pará à presidência do Ceará. Esta remeteu o documento aos membros das comissões sanitárias instituídas no interior da província. Ao receber o relato, o presidente da comissão sanitária do Crato, Do-mingos José Nogueira Jaguaribe, pediu a reprodução à redação do sema-nário O Araripe, “para que no caso de ser esta comarca acomettida da epidemia, seos habitantes estejam prevenidos”238.

Assim, na edição de 01 de janeiro de 1856, com continuação em 05 do mesmo mês, O Araripe publicou na íntegra o experimento do Dr. Silva Castro, incluindo listagem nominal de trinta pessoas tratadas, das quais apenas uma teria falecido, avalizando a suposta eficiência do an-tídoto. Francisco da Silva Castro iniciou o relato ressaltando a “extensa profusão de medicamentos que tem lançado mão os homens da scien-cia desde remotos tempos por diversas partes do orbe para combater a medonha moléstia” do cólera e para a “fallibilidade de cada um delles”. Para o facultativo, não estava longe o tempo da ciência rasgar o véu dessa moléstia, superando, assim, a falibilidade aludida. Inclusive, novo facho de luz era lançado sobre tal questão, o qual poderia “guiar a medicina para esses descobrimentos”, pois o limão vinha se mostrando eficaz no

237 BELTRAO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Vol. 6. [set/2000]; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000, p. 852.238 O Araripe, nº. 26, 01 jan. 1856, p. 3.

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tratamento do cólera. Por isso, pedia ao presidente o uso de sua influên-cia no intuito de promover experiências nos hospitais dos coléricos em funcionamento no Pará.

Segundo o documento, os testes com limão tinham começado após audiência de Castro e Silva com o Bispo do Pará, Dom José Afon-so de Moraes Torres. O prelado retornava de viagem pastoral à Pro-víncia do Amazonas, ocasião na qual ouviu de morador da localidade Vila Franca o relato sobre como índios pescadores utilizavam o sumo de limão na terapêutica dos coléricos. Os pobres índios, diz o relatório, dirigiam-se numa canoa ao local da pescaria quando um deles caiu na água, atacado fulminantemente pelo cólera. O enfermo foi logo resga-tado pelos companheiros. Em lugar inóspito, os indígenas procuraram socorrer o doente com o que estava à volta. Um deles se lembrou de buscar limões presentes na canoa. As frutas foram espremidas e o sumo foi ingerido pelo colérico ao longo do dia. A medida teria implicado na célere reanimação do doente, logo tido como sarado.

A descoberta - alegava Castro e Silva -, das propriedades clínicas do limão deu-se pela graça celeste inspirando os índios - classificados como semisselvagens - a usarem a fruta: “Oh! Providencia Divina, quanto sois Misericordiosa! Como velaes pela sorte das vossas fracas creaturas!” 239. As benesses da medicação foram se espalhando na medida em que outros doentes ficavam sãos: “Espalhou-se a nova da preciosa descober-ta, correo de bocca em bocca a noticia; e todos quantos adoecerão por aquellas bandas usarão do mesmo remedio e todos sararão!!”240.

Em consequência de tais notícias, o clínico começou a usar li-mão no tratamento de pacientes, obtendo resultados positivos. Nas suas palavras, a Providência havia mostrado o remédio e o “cadinho da ob-servação [científica] folgava em reconhecer [o limão] como favorável a mísera humanidade.” Desta forma, a ciência legitimava os relatos chega-

239 O Araripe, nº. 26, 01 jan.1856, p. 3.240 O Araripe, nº. 26, 01 jan. 1856, p. 3.

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dos aos ouvidos de Castro e Silva pela boca de um ungido do Senhor – em referência ao bispo do Pará –, conforme o relatório, escolhido por Deus “para ensinar as suas ovelhas o remédio mais capaz de exterminar o mal, que as tem devorado, e que muito poderá ainda continuar a affligir e devastar o resto do nascente Imperio de S. Cruz”.

Por outro lado, o relatório frisava: o uso da fruta como remédio não era novidade. Citava, inclusive, estudos parisienses do químico cha-mado Cavaillon, datados de 1832, ano do cólera na França, nos quais o limão foi apontado como medicamento capaz de debelar os vômitos dos coléricos. O autor afiançava não saber explicar a razão dos colegas haverem estancado as prescrições do suco cítrico contra o mal de Ganges, chegando mesmo a cair no esquecimento. No entanto, era preciso dar sequência às investigações, pois o médico tinha fidúcia: a fruta era tera-pêutico valioso no combate ao cólera.

É apropriado perceber como a suposta descoberta dos indígenas de Vila Franca a propósito da ação medicinal do fruto contra tal molés-tia foi representada pelo Dr. Castro e Silva. O emprego do limão por tais indivíduos foi interpretado pelo médico enquanto obra da Providência Divina. Dessa forma, os pescadores que teriam usado inicialmente o medicamento, passam de atores principais para meros coadjuvantes, pois a inspiração não advinha originalmente deles, mas sim da graça celeste.

Por outro lado, ao invocar as experiências científicas exercidas de-cênios antes na França, bem como as realizadas em sua clínica particular, o médico paraense também retirava o brilho da obra daqueles semissel-vagens, como os adjetivou pejorativamente. Todavia, malgrado negados pela força da Providência Divina e da Ciência, é significante apreender o modo pelo qual as práticas daqueles indígenas permaneceram sendo utilizadas pelos facultativos no combate àquela epidemia, sendo, ainda, propaladas pela imprensa brasileira do momento, como no caso parti-cular d’O Araripe.

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A narrativa a respeito do limão como substância anticolérica ins-pirou interessante escrito publicado no Crato com censuras contunden-tes à medicina. O artigo não contém assinatura do autor e foi veiculado na seção Comunicados. Segundo o texto, Deus teria dois fins quando resolveu mandar o cólera:

Parece que quando Deos mandou a epidemia actual-mente, foi para dois fins: um para castigar ao seo povo contra os dilictos commetidos contra sua divina lei; e o outro para um total desengano do que é a rançosa Magica, que a muitos annos apareceo sobre a face da terra com o titulo de – Medicina –, que toda com-posta de sofismas, dispoem da especie humana, como bem lhe parece, sem attender, que a custa do suor des-ta miserável especie tem della adquerido tanta fama; e para tanto tem chegado sua boa fé, e credulidade!241

Apreende-se na citação forma nada amistosa de se aludir à medi-cina, exposta como rançosa mágica, tomada de enganos e exploradora da boa-fé da humanidade. A ideia de Deus usando o cólera para desenganar a ciência médica, possivelmente, estava vinculada à percepção social de que os doutores não ofereciam até então, meios efetivos de estancar os surtos da doença pelo mundo e, notadamente, no Brasil, sempre deixan-do cifras mortuárias altas por onde zanzava242. Nesta acepção, o aponta-mento de pessoas tidas como rústicas, sem títulos acadêmicos, e avessas à ciência clínica, a encontrar antídotos simples com efeitos práticos na terapêutica da moléstia era algo assombroso:

241 O Araripe, nº. 37, 15 mar. 1856, p. 3. Grifos meus.242 Doença infectocontagiosa, o cólera é causado pela ingestão de água ou alimentos contaminados pela bactéria Vibrio cholerae - descoberta em 1883, pelo médico alemão Robert Koch (1843-1910). Nos casos mais graves, ao se instalar no intestino humano, o vibrião causa, após um período de incubação de um a quatro dias, uma profusa diarreia aquosa e vômitos, com considerável perda de sais minerais e água, que pode chegar a uma média de 1,5 litros por hora. A reposição imediata dos sais e líquidos perdidos pela diarreia é a forma mais eficiente de tratamento dos doentes, e, quando bem administrada, pode reduzir a letalidade para menos de 1%. Contudo, em meados do século XIX, período pesquisado neste artigo, apenas se especulava as formas de contágio e tratamento adequado para combater sua mani-festação, a despeito da terrível marcha que fazia pelo mundo, percorrendo o Oriente e o Ocidente, sendo “responsável por trinta ou quarenta milhões de mortes durante o século XIX, em todas as latitudes” (SOURNIA, Jean-Charles & RUFFIE, Jacques. As epidemias na história do homem. Tradução: Joel Góes. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 124).

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É coisa espantosa ver-se, que, alli uns rusticos, e simples pastores de gados por meios de suas observações che-gasse a descubrir a vertude da erva Menthrasto; acolá um pobre balseiro a do summo do limão, como antído-tos contra a epidemia que tantas victimas tem feito; e as fiserão propagar em tão boas horas, que estão tendo o merecido acolhimento até mesmo dos adminis-tradores das provincias! Não menos (é presumivel) terão feito os indiginas das Tribus selvagens com ou-tras ervas silvestres! Estes virtuosos cidadãos, dotados de almas generosas, e de corações mais philantropicos ensinarão ou annunciarão ao mundo (gratuitamente) os trabalhos de suas observações; e sem esperança de recompença alguma. É até aonde se pode diser: al-mas cândidas: corações generosos; cidadãos prestantes; e verdadeiros amigos do seo proximo. Outro tanto se poderá diser de nossos médicos? Risum.......243

A fonte faz menção de louvor ao uso do sumo do limão pelos sil-vícolas pescadores do Pará, contada há pouco. Há, igualmente, referência a simples pastores que teriam descoberto as virtudes do mentrasto, tam-bém conhecido pelas denominações hortelã-do-mato, hortelã-silvestre e hortelã-aquática. O hipotético descobrimento por pastores espanhóis do emprego da erva nos cuidados dos coléricos tinha sido divulgado na edição anterior d’O Araripe244. Portanto, rústicos e simples pastores e índios - apontados como autores da descoberta das propriedades salutares do limão e da hortelã - tinham se comportado de forma mais filantrópica que os discípulos de Hipócrates. Por isso, foram adjetivados: virtuosos cidadãos, almas generosas e verdadeiros amigos.

Em país escravocrata e de disparidades sociais gritantes como o Brasil do século XIX, no qual a cidadania era benefício de poucos pri-vilegiados, nomear indígenas, marginalizados até hoje, como cidadãos

243 O Araripe, nº. 37, 15 mar. 1856, p. 3. Grifos meus.244 O Araripe, nº. 36, 08 mar. 1856, p. 4.

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era apenas exercício retórico. Mesmo assim, não deixa de atrair atenção o fato do texto enaltecer tais personagens em detrimento dos médicos, pois estes, nas expressões do jornal, não exibiriam a mesma abnegação e corações generosos daqueles. Para corroborar a asseveração, O Araripe exi-biu as supostas reações de certos doutores do Ceará, quando convidados para oficiarem nas comissões sanitárias nomeadas em 1856:

Alli hum [médico] por ir faser uma ligeira visita aos acommetidos da epidemia fora da capital exigio do governo a bagatela de 400 garrafas de vinho do Por-to: 10 vitelas 50 carneiros; e 500 galinhas. Não sei como não pedio um galo! acolá, outros se negão a se encarregar do curativo do misero povo; mais para alli um não quer contractar [...] Triste é por certo a condição da infelis humanidade, quando em suas mais aflictas agonias é despresada por seos proprios similhantes!245

Os facultativos cearenses aludidos no impresso eram represen-tados como interesseiros, exigindo fortunas para socorrer moradores das localidades interioranas, temerosas com a probabilidade do advento do cólera. Em ocasião de aflição e agonia, os médicos eram acusados de co-locar interesses particulares acima do bem da infeliz humanidade. Tendo em conta o teor das denúncias expostas na citação, os leitores do jornal devem ter abarcado em que se baseavam os louvores feitos à filantropia dos silvícolas paraenses.

Nessas condições, com a manifesta recusa de determinados dou-tores em oficiar no interior da província, o artigo indagava: de que vale-ria as diligências do governo – visíveis na instituição de comissões sanitá-rias e no envio de medicamentos – se não haveria médicos para cuidar dos doentes? Ficaria na mão de quem a aplicação dos remédios vindos nas ambulâncias remetidas para a comarca do Crato? Nas dos bacharéis

245 O Araripe, nº. 37, 15 mar. 1856, p. 3.

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e padres que lá habitavam? Portanto, finalizava o artigo, a solução era população esperar a ajuda do Céu: “O povo desta cidade que ponha os olhos em Deos, e rogue a sua Padroeira [Nossa Senhora da Penha], que não permita sejamos atacados da epidemia, que morreremos a mingoa”246.

Se O Araripe, ao longo das laudas consagradas ao cólera, deu azo para que médicos divulgassem orientações no trato dos adoentados, os trechos citados nos últimos parágrafos evidenciam como o periódico não deixou de tecer admoestações mordazes à real eficácia dos acadêmi-cos em medicina no auxílio aos pacientes, repreendendo aqueles, inclu-sive, moralmente, ao aludir a ambição por salários altos, impelindo ao não socorro das localidades sertanejas.

Por outro lado, o conjunto de textos apregoados n’O Araripe as-sinala também as multifacetadas teorias médicas da quadra em tela – que se altercavam no fito de conquistar a aceitação pública, enquan-to milhares de pessoas eram fustigadas pelo cólera –, bem como para uma circularidade de saberes, fazendo medicamentos tradicionais (ervas, aguardente, frutas etc) entre a população mesclarem-se com produtos químicos e práticas terapêuticas oficiais. É sobre tais elementos que dis-correrei a seguir.

III – Entre clisteres e chás de folha de laranjeira

Em meados do século XIX, as medidas sanitárias seguidas no tra-to do cólera, ordinariamente, se relacionavam com duas teorias seculares que procuravam explicar a propagação das doenças: o infeccionismo e contagianismo. Para melhor juízo delas naquele contexto, é interessante recorrer ao Dicionário de medicina popular, de autoria do médico polonês, Pedro Luiz Napoleão Chernoviz. Para o dicionarista, a infecção seria

246 O Araripe, nº. 37, 15 mar. 1856, p. 3. Grifos meus.

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“exercida na economia [do organismo] por miasmas morbificos”, devido à ação que “substancias animaes e vegetaes em putrefação exercem no ar ambiente”. Já o contágio era entendido como “a propriedade que tem certas molestias de se communicar de um a outro individuo pelo con-tacto, ou por intermédio do ar”247.

Na opinião de Dina Czeresnia, até o século XVI, não havia con-flito entre as noções de contágio e miasma. Pelo contrário, ambas esta-vam embasadas na longa tradição hipocrática dos humores, no entendi-mento das enfermidades como decorrência de possessões e magias, bem como de fenômenos astrológicos e divinos. Maior controvérsia entre as duas formas de explicação só teria emergido entre os séculos XVII e XIX – com o aumento da urbanização na Europa –, sendo causada por divergências a respeito das medidas sanitárias e profiláticas no trato das epidemias. Nesse sentindo, via de regra, os contagionistas se posicio-navam em prol da institucionalização da quarentena, significando um severo cerceamento e vigilância sobre os doentes. Já os adeptos da teoria dos miasmas, ao relacionarem a origem das epidemias à constituição atmosférica, acentuavam ações direcionadas ao controle e limpeza am-biental248.

Debate profícuo na historiografia sobre tais paradigmas levanta hipóteses interessantes a respeito dos sentidos políticos adquiridos no século XIX: a teoria do contágio estaria mais próxima ao padrão abso-lutista, senhorial ou patriarcal, daí o porquê das autoritárias medidas de sequestro e quarentena defendidas pelos adeptos da mesma. Por outro lado, os infeccionistas, tenderiam para o modelo liberal, combatendo qualquer medida limitadora da circulação de pessoas e mercadorias.

247 CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de medicina popular e das sciencias accessorias para uso das famílias. 6ª ed. Paris, Editores A. Roger & F. Chernoviz, 1890, p. 676. Disponível no site do Instituto de Estudos Brasileiro, no link: <http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDicionarios.asp>. Acesso em 15 de abril de 2017.248 CZERESNIA, Dina. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva de apreensão da epidemia. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. IV (I): 75-94, mar.-jun. 1997, p. 84.

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Para este grupo, era imprescindível higienizar o ambiente, em vez de instituir quarentenas. Deste modo, as teses infeccionistas convinham “às nações e comunidades comerciais, para as quais qualquer atraso no livre trânsito de mercadorias causava muitos prejuízos”249.

Entretanto, Sidney Chalhoub expõe como o paradigma da infec-ção, ao colocar os miasmas em primeiro plano, abonava maior combate às práticas populares, mediante o discurso higienista. Ou seja, os infec-cionistas também obravam de forma autoritária na execução de projetos sanitários. Malgrado tal contenda sobre os sentidos políticos da infecção e contágio, Chalhoub mostra as duas teorias se combinando com fre-quência, de formas imprevista e original250.

Nas folhas d’O Araripe é possível perceber a presença de orienta-ções infeccionistas e contagionistas, com preponderância das primeiras sobre as segundas. No ano de 1856, quando as localidades pernambuca-nas de Serra Talhada e Baixa Verde, afastadas cerca de quarentas léguas em relação ao Crato, foram acometidas pela epidemia, escrito de capa foi veiculado no jornal cratense, requerendo das autoridades policiais a disposição de cordões sanitários nas fronteiras, típico artifício profilático de inspiração contagionista. Todavia, o mesmo texto apresenta o cli-ma do Cariri como o mecanismo de defesa final contra a enfermidade, apontando para o risco da transmissão via atmosfera, pondo em tela a crença nas exalações infecciosas:

Ei-lo pois que se aproxima [o cólera], malogradas nossas bellas esperanças. Enquanto nos restão al-guns dias, aproveite a policia em conjurar o mal com os recursos a sua desposição. Bom será empregar já toda a força dos dous destacamentos da comarca em um

249 ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec; Editora da Unesp; Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva, 1994, p. 205.250 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 169.

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cordão sanitario, que com toda a severidades prive as relações entre os dous pontos, medida muitas veses em-pregada na Europa com felis sucesso, e unica que nos pode presevar da invasão [...]. Algumas pessoas que se tiverem inoculados do mal não transporão a linha, e nosso único perigo ficará na athmosphera, o que, gra-ças a diversidade do clima, não é muito para assustar 251.

Tendo em vista a inquietação com a pureza do ar, em abril de 1856, na reprodução de texto publicado em outro jornal (A Semana), O Araripe recomendava método preventivo fundamentalmente embasado na teoria da infecção pelos miasmas, propondo fumigação de enxofre nas residências:

REMEDIO CONTRA O CHOLERA

Um engenheiro de minas na Europa escreveu a um seu amigo dizendo lhe que para escapar do cholera queimasse de quando em quando pequenas porções de flor de enxofre e de modo que o cheiro desta fomigação se conservasse durante o dia em casa. Se-gundo diz o mesmo engenheiro foi deste modo que se evitou o desenvolvimento da epidemia na povoa-ção em que elle se achava. Por ultimo affiança que o cheiro do enxofre em combustão, posto que pareça, não é prejudicial, e accrescenta que em nenhuma fabrica, onde se faça uso do enxofre tem apparecido casos do cholera (Da Semana)252.

A reivindicação de aperfeiçoamentos higienizadores na urbe, re-presentados pelos profissionais liberais, comerciantes e fazendeiros fi-nanciadores d’O Araripe como símbolos de civilidade, indicia a força da

251 O Araripe, nº. 42, 26 abr. 1856, p. 1. Grifos meus.252 O Araripe, nº. 41, 19 abr. 1856, p. 3. Grifos da fonte.

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crença do caráter maléfico das exalações malcheirosas. Na conjuntura de aproximação do cólera em relação ao Cariri, da cadeia pública à matriz de Nossa Senhora da Penha pareciam emanar os miasmas ameaçado-res. Em novembro de 1855, em escrito de capa, O Araripe defendeu ser menos respeitável criar cordões de isolamento – vedando a circulação de pessoas e produtos – do que as autoridades públicas agirem sobre locais considerados de infecção:

As medidas sanitarias, que na quadra actual mais precisamos, é sem duvida que os funcionarios pu-blicos lancem suas vistas sobre a cadeia publica, esse foco pestifero, que tem comsumido as vidas de muitos infelises, e causa primaria de algumas molestias apa-recidas nesta cidade; as sepulturas de nossa Matris que se tornão insupportaveis, quando se abrem para os enterramentos no ceio das ruas; becos, quintaes, que ainda existem com pudridões; as poças e enxurradas de aguas, de que fasemos uso nos misteres da vida; [...] Attendão as autoridades a essas principaes ne-cessidades, que muito haverão feito aprol do bem publico253.

Se a teoria infeccionista preponderou sobre a contagionista n’O Araripe, a contenda entre alopatia e homeopatia, marca dos debates médicos do Império da segunda metade do século XIX, foi também perceptível. O semanário promulgou terapêuticas embasadas nos dois sistemas. Por outro lado, também achincalhou a disputa entre os mes-mos, assinalando a ineficiência de ambos, sem tecer distinção valorativa muito clara, malgrado as fortes diferenças que caracterizavam as práti-cas e receitas delas advindas.

De maneira geral, os alopatas eram distinguidos pela predileção ao uso de drogas, cáusticos, sangrias, eméticos, vesicatórios, purgantes

253 O Araripe, nº. 20, 17 nov. 1855, p. 1. Grifos meus.

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e clisteres - injeções no reto, por meio de uma seringa, que aspiravam combater desarranjos intestinais - no tratamento das moléstias. Já os homeopatas empregavam recursos menos drásticos, sendo partidários do princípio dos infinitesimais, para qual quanto menor fosse a dose do medicamento – geralmente na forma de glóbulos levemente adocicados e dissolvidos em água – maior seria a eficácia254.

Ao versar a respeito da querela entre os dois sistemas, O Araripe zombava da ineficiência de ambos, pois as drogas e glóbulos, em vez de curar, chacinavam na mesma proporção, como explana curto e sarcástico texto impresso em 1856, intitulado Conto popular:

Tom.....tom tom.....Quem bate ahi?Sou eu.Ah! é o sr. Cholera? como está o sr. Cholera? donde vem o sr. Cholera? para onde vae o sr. Cholera?Vou até alli assim ao A.....Quantas pessoas pretende lá matar?Somente tresentas.Passão se alguns dias, e de novo ouve o pobre ho-mem bater-se-lhe à porta.Quem bate ahi?....Criado do sr. Braz....Ah! é o sr. Cholera!....... como passa o sr. Cholera? quantas pessoas matou o sr. Cholera?Matei as mesmas 300, mas as drogas e globos mata-rão outras 300, e o medo matou ainda mais255.

Extremamente irônico e cheio de pequenas brechas e reticências, a pequena estória é reveladora. A eleição do título Conto popular, de partida, já tinha objetivo claro: passar a ideia de anedota admitida por

254 Ver: PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Tradução: Vera Ribeiro. São Pau-lo: Record, 2004; PIMENTA, Tânia Salgado. O exercício das artes de curar no Rio de Janeiro (1828 a 1855). Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, 2003.255 O Araripe, nº. 44, 10 mai. 1856, p. 2.

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todos, alvo do deboche público. No texto, o cólera surge personificado em alguém inesperadamente batendo à porta. Outro incógnito persona-gem, sr. Braz... (as reticências podem indicar, talvez, uma referência ao nome do país, Brasil) atende o visitante, passando a lhe fazer indagações. O cólera informa ir a um lugar de nome iniciado pela letra A (talvez ao Araripe, entendido como a região onde se encontra a chapada de mes-mo nome, ou seja, ao Cariri) onde trucidaria trezentas pessoas. Depois de visitar a localidade em questão, a doença retorna à mesma porta do senhor Braz. Quando inquirido sobre o número de mortos, o cólera afir-ma ter matado os três centos prometidos. Contudo, outros tantos fale-ceram pela ação de drogas e dos globos e mais trezentas pessoas finaram de medo. Destarte, das novecentas pessoas mortas durante a inspeção do cólera, tão-somente um terço seria decorrência direta da moléstia.

A declaração de que três centenas de pessoas expiraram por medo diz respeito à antiga crença na qual o abatimento moral e o temor em épo-ca de epidemia predispõem os indivíduos a auferir o contágio256, opinião validada pelos discursos de médicos brasileiros do século XIX, que, entre outras coisas, queriam disciplinar o dobre de sinos das igrejas pelos finados, tendo em vista a percepção de tais sons como responsáveis por atingir os nervos da população, debilitando-a ao ponto de favorecer o adoecimento257.

Não obstante, interessa aqui destacar: ao se referir a drogas e gló-bulos, o conto popular satirizava alopatas e homeopatas. Ao tratar da querela entre os dois sistemas, ironizava a ineficiência de ambos, pois em vez de curar, assassinaram em igual proporção. Por conseguinte, a pequena estória do cólera batendo à porta e as outras admoestações à medicina, acabam revelando questões e dúvidas inerentes aquele con-texto, no qual não se conheciam mecanismos totalmente apropriados

256 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 125.257 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 264-265.

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para debelar a manifestação da doença a se avizinhar. Logo, em suas representações do cólera, o semanário O Araripe não deixou de refletir as celeumas médicas subjacentes àquela conjuntura, bem como as limi-tações no trato aos coléricos.

Mesmo não isentando a medicina de censuras, O Araripe esteve bastante atento às recomendações advindas dos facultativos. As ideias higienistas, defendidas pela medicina social258, foram apropriadas pelas elites locais no escopo de legitimar as reformas urbanas tidas como con-dizentes a urbes ditas civilizadas, as quais pretendiam se identificar, na busca de maior legitimidade social. Por outro lado, na quadra assinalada pela aproximação e pela manifestação do cólera no Cariri, o periódi-co procurou imprimir sistematicamente os conselhos médicos que lhe chegavam às mãos, seja por meio do contato direto estabelecido entre a redação e alguns doutores ou da reprodução de textos impressos origi-nalmente em outros órgãos de imprensa.

Neste sentido, tanto princípios homeopáticos como alopáticos ocuparam espaços nas páginas do semanário. Em 1856, por exemplo, ele reproduziu texto assinado por Ignácio Manoel de Lemos, morador da Cidade da Paraíba, louvando o uso homeopático da tintura sulfúrica e do espírito de cânfora. Para justificar tais loas, o autor citava os resultados maravilhosos obtidos por essas substâncias no trato do cólera na Penín-sula Ibérica, como em Madri e Porto. O uso fora tão satisfatório, que os médicos alopatas da última cidade teriam se rendido às mesmas, deixan-do de lado rivalidades ao carregar em suas “algibeiras os vidrinhos deste dous medicamentos, e em qualquer parte levantavam-se bons os fulmi-nados de cholera”. Ao exaltar a atitude destes últimos, o texto de Ignácio Manoel de Lemos terminava provocando os alopatas pernambucanos, indagando se estes repetiriam a ação daqueles amigos da humanidade259.

258 Ver FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 21ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005.259 O Araripe, nº. 43, 03 mai. 1856, p. 3-4.

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Na conjuntura tensa - ante as notícias a respeito dos milhares de brasileiros fulminados pela cólera e a falta de médicos residindo no Cariri260 -, os textos transcritos e publicizados pelo O Araripe buscavam: sintetizar como o fenômeno epidêmico estava sendo ventilado pela ciên-cia do período, para os caririenses, por si só, pudessem “curá-la, quando se desenvolver o mal entre nós”261. Pretendiam assim, captar e divulgar orientações práticas de como proceder no caso do aparecimento da epi-demia no Ceará, daí, pois, as razões dos longos artigos publicados com múltiplas orientações profiláticas.

No geral, tais artigos eram assinados por médicos, brasileiros ou estrangeiros, e tinham sido publicados originalmente em outros perió-dicos. Ao reproduzi-los, O Araripe nem sempre anunciou o nome dos autores. As orientações contidas nos textos iam da simples indicação de remédios até sugestões aos senhores de escravos, no intuito de evitar a contaminação dos cativos pela epidemia, como no artigo firmado por Dr. Joaquim d’Aquino Fonseca, médico sanitarista pernambucano.262 Na apreciação dele, o trabalho excessivo, quer intelectual ou corpóreo, con-corria para o desenvolvimento do cólera. Por isso, era forçoso evitar a labuta em horas de muito calor ou umidade. Por isso, os proprietários de engenhos e estabelecimentos rurais deviam impedir a escravaria de labutar pela madrugada ou noite, quando a umidade favorecia o resfriamento dos corpos. Durante o dia, era recomendável evitar que os cativos ficas-sem expostos ao sol nas horas de maior calor, dando, ainda, aos mesmos uma hora de descanso após cada refeição. Pela manhã, não era conve-

260 Segundo Irineu Pinheiro, até o início do século XX, inexistiam médicos residindo permanentemente no Cariri. Em expressão simbólica, o autor afirmou que no século XIX os médicos que passaram pela região se comportavam como “aves de arribação que chegavam às cidades e vilas”, delas se retirando “depois de dias ou de meses” (PINHEIRO, Irineu. O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes. Fortaleza: edição do autor, 1950, p. 140). Os textos d’O Araripe que noticiavam a passagem de médicos pela cidade do Crato, especialmente nos anúncios que faziam de seus serviços, ou as matérias reivindicando ao governo provincial o envio de médi-cos quando da aproximação do cólera em relação ao Ceará corroboram a afirmação de Pinheiro.261 O Araripe, nº. 10, 08 set. 1855, p. 2.262 Para maior aprofundamento sobre a ação deste higienista no Recife, ver SIAL, Vanessa Viviane de Castro. Das igrejas ao cemitério: políticas públicas sobre a morte no Recife do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, 2005.

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niente deixar os escravos irem para o trabalho em jejum. Seus donos deveriam oferecer aos mesmos xícaras de café puro ou pequenos cálices de genebra ou aguardente de cana ao alvorecer263.

A higiene corporal era outra preocupação de Aquino da Fonseca, sugerindo aos senhores “obrigar seus escravos a banharem se uma vez por dia, fazendo-o de modo que não haja suppressão da transpiração ou resfriamento”. Ante o risco da aglomeração dos cativos favorecer a disseminação do cólera, o médico alvitrava uma subdivisão dos mes-mos, pois não era bom muitos sujeitos dormindo em lugares acanhados, como em determinadas senzalas. De preferência, os escravos deviam ser alocados em casas situadas em pontos altos e arejados, onde pequenas fogueiras podiam ser acesas à noite264, provavelmente para combater os perigosos miasmas.

Certamente, a inquietação do artigo em guiar os senhores sobre os procedimentos com a escravaria não repousava nos princípios huma-nitários. A própria orientação sobre coisas aparentemente básicas - a oferta de refeições diárias, regras de higiene corporal, entre outras re-comendações elencadas -, assinala a precariedade das condições de vida a que os cativos poderiam estar subordinados. Contudo, o cólera repre-sentava prenúncio grave aos interesses dos senhores, pois muitos cativos feneceram por conta dos surtos deste mal no Brasil de meados do século XIX. Pelo visto, O Araripe, ao apregoar as considerações do Dr. Aquino da Fonseca, ambicionou acordar as elites caririenses para os riscos do cólera sobre seus escravos. Afinal eram mercadorias caras e raras na re-gião, daí a preocupação em conservá-las vivas para melhor explorá-las.

De modo geral, os artigos médicos publicados n’O Araripe procu-ravam orientar, passo a passo, ao público leitor como proceder por oca-sião da chegada da peste. Alguns deles eram ricos em minúcias, trazendo

263 O Araripe, nº. 33, 16 fev. 1856, p. 3.264 O Araripe, nº. 33, 16 fev. 1856, p. 3.

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conselhos para diferentes fases da doença. Consequentemente, os leitores eram instados a adotar postura de observação sistemática de toda anam-nese do cólera. Diante de enfermidade cujo presságio basilar era a diar-reia, por exemplo, era aconselhado contar o número de evacuações diárias e verificar se havia alteração na consistência das fezes ao longo do tempo. Para cada sintoma ou estágio, havia remédios ou técnicas específicas: o esfriamento do corpo era combatido com fricções de álcool, pimenta, etc.; para a ânsia de vômitos, a sugestão era a ipecacuanha265 ou o azeite morno com uma rama de pena; chá de hortelã com láudano combatia a diarreia, apesar de, a partir de determinado estágio, a última substância passar a ser considerada veneno; e assim deveriam seguir os procedimen-tos, até convalescença ou morte da pessoa acometida pelo cólera266.

No grosso dos textos escritos por facultativos e reproduzidos n’O Araripe a respeito da prevenção e terapêutica do cólera, deparei com a indicação de substâncias químicas em voga na medicina da época, habi-tualmente comercializadas nas boticas – entre ao quais se sobressaíam: enxofre, amoníaco, clorofórmio, ópio, éter, láudano, óleo de rícino etc. –, pari passu com a enumeração de ervas e outros produtos comuns nas residências e quintais das pessoas, tais como o alho, pimenta, hortelã, limão, folhas de laranjeira, macela, entre outros. Diante da crença no caráter revigorante do álcool, o vinho e a cachaça – esta última, bebida das mais populares do Brasil desde os tempos coloniais, e produzida

265 De acordo com Márcia Moisés Ribeiro, a raiz da ipecacuanha, (Cephaelis ipecacuanha), também conhecida como poaia, obteve grande destaque entre as espécies da flora medicinal do Brasil Colônia, se tornando uma das maiores contribuições da farmacopeia do Novo Mundo à Europa. Desde sua introdução no Velho Mundo, no final do século XVII, a fama obtida por tal fármaco foi tanta que mercadores ávidos por lucros chegaram a comerciar falsificações da poaia. Advinda das matas baianas e pernambucanas, as raízes enviadas à Portugal eram vendidas pelo dobro ou triplo do preço pago no Brasil. As qualidades da ipecacuanha, considerada eficiente no tratamento da diarreia, como vomitório e como contra-veneno, teriam sido repassadas pelos indígenas aos colonizadores (RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 52-53). A popularidade da raiz atravessou séculos. Jane Beltrão, por exemplo, tratando do surto do cólera de 1855 no Pará, encontrou a ipecacuanha entre os produtos utilizados tanto por médico como por profissionais de saúde popular no trato dos acometidos por tal epidemia (BELTRAO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Vol. 6. [set/2000]; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000, p. 857).266 Jornal O Araripe, nº. 17, 27 out. 1855, p. 3-4.

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em abundância nos engenhos de cana ao sopé da chapada do Araripe – também receberam menções constantes nos artigos.

Essa junção de produtos populares e fármacos comercializados nas boticas corrobora as considerações de Jane Felipe Beltrão sobre como a medicina brasileira do período, apesar do processo de institu-cionalização, não deixou de fazer concessões às artes de curar e saberes populares no tempo do cólera267. O estouro da epidemia acabou expon-do as debilidades da medicina e a incapacidade de inibir o cólera efetiva-mente. Neste sentido, na busca por remédios capazes de oferecer alguma resistência ao mal, os facultativos fizeram experiências que acabaram abonando práticas consagradas pelos saberes populares, algumas her-dadas do passado colonial. O uso de chás, frutas, temperos e de outros produtos cotidianamente utilizados pela população na lida dos achaques e na confecção de medicamentos que buscavam minorar os sintomas do cólera, apontam para uma circuladidade de saberes publicizada nas páginas do jornal cratense.

A ideia de circularidade cultural ganhou proeminência entre os historiadores por superar a tese da existência de suposta dicotomia entre diferentes níveis de cultura (cultura letrada x cultura popular). Em vez de enxergar a produção cultural dividida em polos estanques, o conceito propõe um olhar que valoriza o caráter dinâmico e dialógico da mesma: as trocas de mão dupla.

A historiografia deve o desenvolvimento de tal concepção aos estudos produzidos por Mikhail Bakhtin e Carlo Ginzburg. Ao tratar da cultura popular da Idade Média e do Renascimento, especialmente no que diz respeito à historicidade do riso e das festas populares, Ba-khtin se voltou para a obra de Rabelais, proeminente literato da Europa medieval. Nessa fonte de pesquisa, o autor enxergou a possibilidade de

267 BELTRAO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Vol. 6. [set/2000]; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.

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“iluminar a cultura cômica popular de vários milênios”, já que percebia o letrado Rabelais como eminente porta voz desta cultura na literatura. A produção erudita rabelaisiana estaria mergulhada no linguajar, imagens e bufonices populares, característicos do recorte historiográfico analisa-do por Bakhtin: “[...] É na obra de Rabelais que o riso da Idade Média encontrou sua expressão suprema”268.

Inspirado na linha traçada por Bakhtin, Carlo Ginzburg forjou a terminologia circularidade cultural, ao tratar do moleiro italiano Me-nocchio, morto pela inquisição no século XVI, por suas ideias sobre a criação do mundo e sociedade de sua época, incluído aí crítica feroz aos dogmas, sacramentos e atitudes da Igreja Católica. Advindo do meio popular – sendo herdeiro da tradição oral camponesa de difícil datação –, Menocchio sabia ler e escrever, fato raro para os moleiros do período. Contudo, na incursão pelo mundo da cultura letrada e elaboração de sua cosmogonia, o moleiro não reproduzia simplesmente as teses dos auto-res que lera: produziu reelaboração original das leituras feitas, na qual a cultura oral funcionava como um filtro: “Menocchio triturava e reelabo-rava suas leituras, indo muito além de qualquer modelo preestabelecido [...]. Não o livro em si, mas o encontro da página escrita com a cultural oral é que formava, na cabeça de Menocchio, uma mistura explosiva”269.

Aplicado ao objeto de estudo deste artigo, o uso do conceito de circularidade cultural permite maior compreensão de como orientações científicas se mesclaram com conhecimentos populares no trato do có-lera, vistas por meio das matérias publicadas n’O Araripe. Exemplo dis-to pode ser visualizado no artigo do Dr. Antonio Manoel de Medeiros, médico comissionado pelo governo do Ceará para socorro dos cratenses nas epidemias de 1862 e 1864.

268 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabe-lais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1993, p. 84.269 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 103.

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O texto mistura fármacos de botica com ervas e temperos pre-sentes nos quintais, bem como outros produtos disponíveis nas cozinhas da maioria das pessoas. Nele, há a preocupação em descrever a evolução da doença passo-a-passo: nos primeiros sinais do cólera, o doente de-via abster-se de comer, agasalhar-se bem, fazer escalda-pés com sal ou mostarda, aplicar sinapismos, beber, de hora em hora, uma infusão de macela, hortelã pimenta e folhas de laranjeira, com algumas gotas do elixir paregórico americano. Se o doente estivesse a lançar tudo o que bebesse, recomendava-se a aplicação de clisteres a base de láudano e o uso de sudoríferos270.

Caso não houvesse melhora no quadro, Dr. Medeiro receitava a ingestão de pílulas compostas de extrato gomoso de ópio, pós de dower e goma arábica. Tais pílulas deviam ser tomadas de “meia em meia hora, de hora em hora, ou de duas em duas horas, conforme a intensidade na resistencia do mal”. O médico afiançava que a diarreia e os vômitos desapareceriam com o uso correto das pílulas.

Não obstante, se em vez de aliviar tais sintomas, o doente mos-trasse sinais do cólera álgido [resfriamento do corpo], era necessário ga-rantir a retomada imediata do calor corporal. A ação em prol da eleva-ção da temperatura se daria em duas frentes: internamente, por meio da ingestão de uma infusão à base de “café preto bem forte, do vinho do Porto ou de Madeira, aguardente ou álcool, ajuntando-se lhe de 8 a 20 pingos do licor stragnoff ”; e externamente, pela fricção de uma baeta, fla-nela ou escova, embebida em pimenta malagueta, mostarda ou cantáridas. Complementando tal tratamento, “o sumo do limão em doses pequenas repetidas e progressivamente maiores, começando por uma colhersi-nha”, seria apropriado para o doente que não estivesse totalmente álgido e demonstrasse muita sede271.

270 O Araripe, nº. 307, 13 mai. 1864, p. 3.271 O Araripe, nº. 307, 13 mai. 1864, p. 3.

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IV - Considerações finais

Ao longo deste artigo busquei demonstrar as orientações e recei-tas que O Araripe publicou sobre a cólera no início da segunda metade do século XIX. Tendo em vista que praticamente inexistiam médicos no Cariri cearense do período, o semanário cratense tomou para si o papel de informar a população a respeito das discussões clinicas sobre a doença, no intuito de prepará-la para agir quando da manifestação epidêmica.

Tais considerações realçam a tese basilar da historiografia das doenças, para qual o fenômeno do adoecer não deve ser visto apenas como algo natural, desprovido de outros significados além do biológico. O que os historiadores dedicados ao assunto propõem é o olhar proble-matizado sobre as representações socioculturais que cercam as enfermi-dades: a dimensão biológica delas não deixa de ser cercada por questões sociais, culturais, econômicas, políticas, procurando dar significados e respostas a mesma272.

O caso da cólera n’O Araripe é exemplo desta historicidade da doença. Em época marcada pelo medo entorno da moléstia, uma das mais letais do século XIX, as representações impressas no periódico fo-ram de diversidade espantosa. Como a medicina-científica estava enre-dada em disputas internas e não oferecia respostas conclusivas sobre a doença, a abundância de artigos do jornal aponta para a circularidade de saberes e representações múltiplas, que embaralhavam de forma criativa orientações miasmáticas e contagionistas, tratamentos alopatas com ho-meopatas, fármacos químicos com remédios feitos a base de ervas, frutas e outros produtos populares.

272 Ver NASCIMENTO, Dilene Raimundo do & SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. A doença revelando a história: uma historiografia das doenças. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo do & CARVALHO, Diana Maul de (Orgs.). Uma história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004, p. 13-30.

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Parte III

Cultura Escrita e Arte na Antiguidade e no Medievo

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CORPO, PERFORMANCE E TRANSGRESSÃO EM ANTIOQUIA: JOÃO CRISÓSTOMO E A

CENSURA AOS LUDI THEATRALIS

Gilvan Ventura da Silva273

Desde o florescimento do teatro sob as formas elementares da tragédia e da comédia, fato que remonta à Idade Arcaica grega (séc. VI a.C.), o gosto dos antigos pelas encenações, algumas mais densas e sofisticadas, outras menos, tendeu a se enraizar no cotidiano das popula-ções, especialmente as urbanas, tornando-se um autêntico emblema do modus vivendi cívico, uma das modalidades de expressão cultural mais importantes para o homem da polis, que podia assistir, sobre o palco, à atualização de seus mitos ancestrais, às intrincadas tramas envolvendo deuses, semideuses e heróis que amiúde desembocavam no ato fundador da própria cidade na qual residia, de maneira que o teatro cedo se tornou, por assim dizer, um componente da própria paideia, da formação cultu-ral do cidadão. A importância que os gregos atribuíam ao teatro pode ser avaliada pela emergência, no perímetro urbano, de uma arquitetura monumental em pedra (e, portanto, onerosa) projetada para receber os festivais de tragédia e comédia que se multiplicam nos períodos clássico e helenístico: o theatron, um “lugar para ver”, vocábulo que passou a designar, ao mesmo tempo, a manifestação artística e o edifício próprio para abrigá-la, ocorrendo uma sobreposição de sentidos por vezes igno-

273 Professor Titular de História Antiga da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), doutor em História pela Universidade de São Paulo (Usp), bolsista produtividade 1-C do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir). No momento, executa o projeto Protesto, trabalho e festa na cidade pós-clássica: a ocupação da rua pela população de Antioquia (séc. IV-V d.C.).

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rada.274 No mundo grego, assim como mais tarde, no romano, observa-se uma conexão estreita entre arquitetura, topografia e identidade cívica, pois o teatro, erigido o mais das vezes em proporções majestosas por meio de recursos arquitetônicos complexos destinados a potencializar a voz e os gestos dos atores, logo se converterá num ponto de referência na paisagem urbana, auxiliando na orientação dos transeuntes, demarcando as zonas de ocupação da cidade pela proximidade ou distanciamento que mantinha com outras construções e, acima de tudo, sacralizando o território ao redor, na medida em que os festivais dramáticos compor-tavam não apenas uma dimensão lúdica, mas também religiosa, encon-trando-se sob a proteção das divindades, dentre as quais Zeus, Dioniso e as Musas figuravam como as preferidas. Nesse sentido, o teatro, tanto do ponto de vista arquitetônico quanto do ponto de vista artístico, era uma manifestação cultural inerente à polis, cujos habitantes, reunidos ao longo do dia, podiam ao mesmo tempo reverenciar seus deuses, reme-morar suas tradições, instruir-se sobre ética e política e integrar-se às redes de sociabilidade urbanas, retroalimentando os vínculos que lhes conferiam solidariedade.

Em Roma, o teatro clássico, ou seja, de inspiração helênica, fez o seu ingresso no decorrer do III século a.C. pelas mãos de Lívio An-drônico, provavelmente um grego de Tarento reduzido à escravidão e em seguida manumitido que, em 240 a.C., encena pela primeira vez, nos ludi em comemoração ao encerramento da Primeira Guerra Púnica, um espetáculo de tragédia e comédia calcadas em modelos gregos.275 Considerado pelos moralistas republicanos uma “moda” estrangeira e, portanto, estranha ao mos maiorum e à virtus romana, o teatro foi muitas vezes censurado por estimular a mollitia, a frouxidão de comportamen-to e de caráter, uma das prováveis razões pelas quais a construção de

274 SENNET, R. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 51.275 HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 309.

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teatros permanentes na Península Itálica teve seu início retardado até o final da República, quando Pompeu determinou a ereção, em Roma, do primeiro teatro em pedra, e mesmo assim no Campo de Marte, ou seja, no território extra muros, e não no pomerium.276 Ao contrário dos gregos da polis, a relação dos romanos com o teatro foi marcada desde o início por uma ambiguidade insolúvel, pois, se por um lado os ludi theatralis em pouco tempo se converteram num dos principais entretenimentos públicos (e mesmo privados), dando ensejo à afluência de multidões ao teatro para acompanhar a performance de seus atores prediletos, tudo o que se relacionava ao ofício do palco era visto com desconfiança e preconceito. De fato, atores e atrizes eram declarados, pela lex romana, infames e humiles et abiectae personae e, como tais, privados de diversos direitos, como o de contrair casamento com pessoas das ordens senato-rial e equestre, intentar ação pública, integrar o exército e outros.277

À parte as restrições legais impostas aos atores e atrizes e a con-denação do teatro como uma atividade estrangeira e, portanto, suspeita, o cristianismo, por sua vez, desenvolverá uma extensa retórica contra o teatro da qual um dos textos fundadores é o tratado De Spectaculis, de Tertuliano, um autor norte africano ativo na passagem do II para o III século, quando os cristãos ainda se encontravam numa posição um tanto ou quanto frágil. No século IV, contudo, o cristianismo, sob a égide do poder imperial, inicia uma audaciosa ofensiva missionária que inclui, dentre outras estratégias, um ataque inclemente ao teatro, tido como a matriz de todos os vícios e desregramentos. Nesse domínio, como em tantos outros, destaca-se João Crisóstomo, o crítico mais severo a todas as formas de lazer vigentes no Império Romano, em especial o teatro.278

276 EDWARDS, C. The politics of immorality in Ancient Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 122.277 CAMACHO DE LOS RÍOS, F. La infamia en el Derecho Romano. Alicante: Instituto de Cultura “Juan Gil-Albert”, 1997.278 ZISIS, Th. Diversão mundana e cristã segundo João Crisóstomo. Scripta Clássica, Belo Horizonte, n. 2, p. 145-171, 2006.

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À luz dessas reflexões, pretendemos investigar a maneira pela qual João Crisóstomo concebia o teatro ou, melhor dizendo, a representação cristã, da qual o pregador foi um dos mais notáveis expoentes, acerca de uma atividade enraizada na cidade antiga, como eram as performances tea-trais. Nossa análise enfocará a associação que faz João Crisóstomo entre o teatro e a stásis cósmica e social, ou seja, os argumentos por ele enun-ciados a fim de desqualificar o teatro como um vetor de transgressão às leis divinas e humanas, e isso a partir do liame existente entre corpo e arquitetura, uma vez que, segundo João, o teatro é perigoso justamente por produzir um transtorno físico e emocional agudo no corpo dos que o frequentam. Considerando que a pregação de João Crisóstomo é assaz volumosa, nos limitaremos às informações contidas nas Homilias sobre o Evangelho de Mateus, série proferida em Antioquia durante os anos em que João atuou como presbítero da congregação (386-397), num momento decisivo da cristianização da cidade.

O teatro, fonte de ‘stásis’

O teatro em Roma, assim como em outras sociedades ao longo da história, foi por vezes rotulado como uma atividade insidiosa, subversi-va, contrária à ordem e moralidades públicas, e isso por diversos moti-vos. Em primeiro lugar, pela sua capacidade de mobilizar a população urbana, que, ao se reunir para assistir os espetáculos, poderia extravasar sua insatisfação com os rumos da política romana, algo difícil de ser alcançado de outro modo. Em segundo lugar, pela posição singular do ator. Tornando-se sobre o palco o centro das atenções, o ponto de con-vergência do olhar e da audição, e de certa forma protegido pela licentia, pela liberdade de expressão da qual desfrutavam igualmente os oradores públicos, sofistas e filósofos, os atores não raro assumiam o papel de porta-vozes, ridicularizando e criticando situações e personagens sem

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poupar nem mesmo os imperadores, que em mais de uma ocasião os acusaram de promover a desordem e os baniram da Urbs, como vemos sob os governos de Nero e Trajano. Em terceiro lugar, pela mobilidade da qual desfrutavam os atores, profissionais itinerantes que, ao se des-locarem de uma localidade a outra, resistiam a ser punidos pelas auto-ridades municipais. Por fim, mas não menos importante, o teatro era para alguns um repositório de desvios, extravagâncias e depravações, um ambiente frequentado por afeminados, meretrizes, feiticeiros e demais pessoas de índole duvidosa.279 Todas essas características potencialmen-te “perturbadoras” do teatro romano, ou, melhor dizendo, greco-roma-no, não foram, todavia, capazes de impedir que os ludi theatralis se tor-nassem, no decorrer do período imperial, um entretenimento bastante apreciado, como comprova o boom de construções de teatros a partir do governo de Augusto, quando praticamente todas as cidades, mesmo as menores, investiram recursos públicos e privados na ereção e restauro de teatros e na manutenção dos espetáculos cênicos, tendência que acom-panha pari e passu a profissionalização dos atores, agrupados em synodoi ou collegia por todo o Império.280 Para além da evidência arqueológica, a predileção dos romanos pelos ludi theatralis pode ser avaliada por meio do calendário oficial que, por volta de 354, em plena fase de avanço cristão, contabiliza nada mais nada menos do que cem dias dedicados aos ludi cênicos.281

A posição central ocupada pelo teatro na sociedade romana, a atenção e o tempo a ele dispensados pelos citadinos – e mesmo pe-los residentes das zonas rurais, que em dias de festa acorriam à cidade em busca de lazer e diversão – constituem uma explicação mais do que plausível para o severo ataque desferido contra ele pelas lideranças cris-

279 EDWARDS, C. Op. cit., p. 127.280 LIEBESCHUETZ, J. H. W.G. The decline and fall of the Roman city: Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 204.281 EDWARDS, C. Op. cit., p. 110.

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tãs na Antiguidade Tardia, quando da intensificação de um movimento de longa duração como foi a cristianização do Império, cristianização essa que, hoje, não é mais interpretada como outrora, ou seja, como um movimento contínuo e irreversível de conversão de pagãos e judeus, mas como um processo eivado de idas e vindas, contradições, rupturas, avanços e retrocessos.282 No século IV, vemos não apenas se tornaram recorrentes os ataques ao teatro, como também a adoção, pelas autori-dades eclesiásticas, de um tom muito mais áspero, coincidindo com a consolidação das homilias como o principal instrumento missionário à disposição da hierarquia sacerdotal, cuja ação pastoral se fundamenta na pregação ostensiva contra tudo aquilo que caracteriza o estilo de vida dos pagãos, incluindo naturalmente a frequência ao teatro para assistir os espetáculos de mimos, pantomimas e tragoidoi, gêneros dramáticos que, na fase final do Império, suplantam a comédia e a tragédia “clássi-cas”. Conforme mencionamos, dentre os Padres da Igreja que se notabi-lizaram pelo empenho em condenar os ludi e spectacula greco-romanos, talvez o mais aguerrido tenha sido João Crisóstomo, que, na condição de presbítero e principal pregador da congregação de Antioquia, não mediu esforços no sentido de condenar os ludi theatralis.

Sabemos que Antioquia, nas últimas décadas do século IV, era uma cidade vibrante e em franca expansão, conservando ativa, pela ge-nerosidade dos seus evergetas, o circuito de festivais e competições tea-trais, sendo célebre pelo desempenho de seus atores e pelo entusiasmo da audiência.283 Antioquia abrigava dois teatros. Acerca do mais antigo, localizado nas encostas dos Montes Sílpios, nas imediações do templo de Dioniso, temos somente informações indiretas, pois as escavações de 1932-1939 lideradas pela Universidade de Princeton não foram capazes de determinar com exatidão o sítio onde se erguia o monumento. Pe-los testemunhos literários, sabemos apenas que o teatro, construído ou

282 INGLEBERT, H. et al. (Éd.) Le probléme de la christianisation du monde antique. Paris: Piccard, 2010, p.13.283 LEYERLE, B. Theatrical shows and ascetic life: John Chrysostom’s attack on spiritual marriage. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2001, p. 15.

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reconstruído por César, passou por reformas sucessivas à medida que a população urbana crescia.284 Quanto ao segundo, o teatro de Zeus Olím-pico, em Dafne, cerca de oito quilômetros no sentido sul, felizmente as informações são mais detalhadas, pois os arqueólogos conseguiram recuperar vestígios do edifício. O teatro, assim como o de Antioquia, assentava-se numa colina, seguindo o padrão arquitetônico dos teatros gregos. O formato da orchestra, porém, era semicircular e o proscaenium bem extenso, ao passo que a scaenae frons era decorada com colunas de mármore e granito, assinalando uma inequívoca influência romana.285 Sua construção remonta ao governo de Vespasiano, que teria utilizado os espólios obtidos na Guerra da Judeia para subvencionar a obra.286 Era nesses teatros que a população antioquena tinha por hábito se reunir por horas a fio, para profundo desagrado de João Crisóstomo, que não poupa críticas aos ludi, ao edifício e àqueles que os frequentam, valendo-se para tanto de um repertório de imagens literárias que têm como eixo a asso-ciação entre espaço construído, transgressão corporal e desordem social.

Segundo Pearson & Richards,287 ao contrário do que há algumas décadas supunham historiadores da arquitetura e mesmo arqueólogos, o espaço organizado pelo homem, incluindo as construções, desde as mais prosaicas às monumentais, não constitui tão somente uma arena, um suporte para as inúmeras atividades inerentes à vida em sociedade, mas uma variável que interfere diretamente na maneira como as relações sociais são produzidas e reproduzidas, o que ocorre por meio de uma práxis, pois, de acordo com as circunstâncias, lugares e monumentos po-dem ser ocupados/utilizados ou, em sentido inverso, abandonados/rejeita-dos, mas também por meio de um discurso carregado de simbolismo e de afetividade. Disso resulta que o espaço, mesmo os de ocupação humana

284 DOWNEY, G. A history of Antioch in Syria. Princeton: Princeton University Press, 1961, p. 180.285 SEAR, F. Roman theatres; an architectural study. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 319.286 KONDOLEON, C. Antioch, the lost city. Princeton: Princeton University Press, 2001, p. 155.287 PEARSON, M. P.; RICHARDS, C. (Ed.) Architecture & order: approaches to social space. London: Rout-ledge, 1994, p. 1-72.

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sazonal, como os desertos e as geleiras, nunca é uma realidade asséptica ou amorfa, mas, pelo contrário, saturada de memórias, de impressões e de sinais que o qualificam ora em termos positivos ora em termos negativos de acordo com os desejos, propósitos e interesses daqueles que com ele de algum modo interagem. Isso equivale a afirmar que a “leitura” de um determinado espaço nunca é unívoca, homogênea, mas depende, em larga medida, do stock cultural dos que nele trafegam ou que o evitam, podendo apresentar sensíveis variações de acordo com pa-râmetros socioeconômicos, religiosos, de gênero e outros. Em todo caso, importa assinalar que o espaço, repartido em lugares e monumentos, não possui uma função uniforme nem porta um significado inerente, sendo antes continuamente reinvestido de sentido e, em termos metafó-ricos, construído, reconstruído e destruído por intermédio de um discurso de enaltecimento ou depreciação, o que nos obriga a prestar uma aten-ção particular à maneira como as pessoas se referem aos ambientes, os adjetivos e figuras de linguagem que empregam, as analogias, antíteses e associações que formulam, pois tudo isso traduz certa concepção da ordem espacial e, por extensão, da ordem social ou mesmo cósmica, pois não raro a configuração dos ambientes representa um indício do teor das relações sociais que neles ocorrem e do nível de moralidade dos que os frequentam, com um inevitável rebatimento corporal.

Na mediação com o ambiente, o corpo humano desempenha, sem dúvida, um papel primordial, pois por meio do corpo não apenas nos apoderamos do espaço, movendo-nos de um ponto a outro, mas também representamos este espaço a partir de estímulos olfativos, táteis, degus-tativos, visuais, auditivos que decodificamos segundo o nosso backgrou-nd cognitivo. Considerando que o corpo humano é uma concretização emblemática da ideia de ordem, uma vez que, supõe-se, tudo nele possui uma função específica, uma razão de ser inteiramente compatível com a harmonia do todo, não é por mero acaso que as suas divisões e re-partições são evocadas como parâmetro para a classificação dos seres e

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das coisas. Tomando como referência o corpo humano, categorias como alto/baixo, direita/esquerda, frente/costas, vertical/horizontal, macho/fê-mea são empregadas à exaustão para descrever os ambientes e, mais que isso, para classificá-los em binômios valorativos – sagrado/profano, puro/impuro, normal/anormal, bom/mal – consoante uma lógica que supõe a existência de uma conexão indissolúvel entre os ambientes e os seus usuários, uma correspondência direta entre arranjos espaciais e arranjos corporais que o estudo das representações sociais têm iluminado com propriedade.288 É uma situação como essa, de correspondência simbólica entre os usos do corpo e a disposição do espaço construído, que é possível discernir no contexto da cristianização de Antioquia por intermédio das referências ao teatro contidas nas homilias de João Crisóstomo.

Da ‘stásis’ espacial à ‘stásis’ corporal

Nas Homilias sobre o Evangelho de Mateus, é possível captar as nuances de uma representação que estabelece entre um monumento, o teatro, e o corpo dos atores e espectadores uma identidade evidente, pois João se vale a todo o momento de argumentos que enfatizam a ideia segundo a qual a desordem primordial contida no ambiente se prolonga numa desordem corporal, como se o recinto do teatro fosse capaz de contaminar aqueles que o visitassem, perturbando-os tanto em termos físicos quanto em termos psicológicos. Para João, no palco são executa-das as piores transgressões, especialmente devido ao uso impróprio do corpo pelos atores e atrizes, pois nele:

[...] um indivíduo, sendo um rapaz, usa seu cabelo caindo pelas costas, e mudando sua natureza para a da mulher, se esforça na aparência, nos gestos e nas roupas, e em todos os modos, para assumir a imagem de uma jovem donzela. Então outro que é

288 PEARSON, M. P.; RICHARDS, C. (Ed.) Op. cit., p. 10.

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velho, de modo contrário a isso, tendo raspado o seu cabelo, com seu dorso preparado, sua vergonha reti-rada antes do cabelo, aguarda, pronto para ser fus-tigado com uma verga sem nada fazer ou dizer. As mulheres, uma vez mais com as cabeças descobertas, aguardam sem sequer enrubescer, discursando para a multidão, tão perfeita é a sua experiência na falta de vergonha; e assim despejam impudência e impu-reza na alma dos ouvintes. E seu único propósito é remover toda a castidade desde as bases, corromper nossa natureza para saciar o desejo dos demônios imundos. E há também ditos repugnantes e gestos piores. E o estilo do penteado segue esse caminho, e o modo de andar e os trajes, e a voz e o movimento dos membros. E há movimentos dos olhos, flautas, dramas, ardis. Em resumo, todas as coisas da mais extrema impureza (Hom. in Mat. 37,8).289

João faz aqui referência muito provavelmente às encenações do tragoidos, um gênero dramático no qual atores, portando máscaras e uma túnica de mangas longas, representavam os papéis masculino e femini-no, e às do mimo, uma espécie de comédia de costumes composta por sketches na qual as mulheres eram admitidas como atrizes, cantoras e dançarinas.290 A censura de João Crisóstomo se deve ao fato de que, sobre o palco, o corpo seria passível de sofrer uma mutação, produzin-do assim um efeito ilusório e nocivo à dignidade humana. No teatro, homens assumiriam a aparência de mulheres, jovens de velhos e vice--versa, ocorrendo uma “degradação” do aparato corporal. O teatro da-ria ensejo então a uma confusão, a uma interpolação dos papéis sociais destinados por Deus a homens e mulheres que afrontaria a ordem da Criação. Os atores, expostos em situações de vergonhosa submissão e passividade, renunciariam à sua condição ativa, viril, um atributo mascu-

289 ST. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (Ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.290 BARNES, T. D. Christians and the theater. In: SLATER, W. J. (Ed.). Roman theater and society. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 161-180.

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lino por excelência, ao passo que as atrizes, contrariando abertamente as orientações de Paulo (1Cor 14,34-5) para que as mulheres, em público, não fizessem uso da palavra, ousavam discursar perante uma audiência composta, em sua maioria, por homens. Além disso, o comportamento da atriz, seus gestos, sua aparência refinada e elegante, seus maneiris-mos e tom de voz inflamariam a plateia com o aguilhão da luxúria e do adultério. Adotando uma opinião corrente na sociedade romana, João Crisóstomo equipara as atrizes às prostitutas, atribuindo-lhes a habili-dade não apenas de dissimular e de iludir aqueles que as admiram, como se fossem inclusive detentoras de poderes mágicos, mas de interferir na relação do espectador com sua esposa, transportando a stásis do espaço coletivo do teatro para o espaço doméstico, com um impacto devastador sobre a célula familiar. A origem do problema reside, para João, na ple-na liberdade corporal experimentada no teatro, um lugar onde o corpo tem a sua aparência alterada mediante os mais diversos artifícios cênicos (gestos, entonação da voz, maquiagem, indumentária, coreografia), mas também onde é liberado de todas as convenções sociais, de todos os pu-dores e restrições, sendo oferecido sem reservas ao olhar do público, pois sabemos que, nos mimos, a nudez parcial ou total das mimae, das atrizes, era um momento aguardado com ansiedade e expectativa.291 Segundo João, um crítico feroz da nudatio mimarum, a visão perturbadora da atriz nua ficaria retida na mente dos espectadores, que, ao retornarem aos seus lares, passariam a desprezar o corpo das próprias mulheres, agindo de modo agressivo e desrespeitoso, como lemos na seguinte passagem:

Vocês em um mercado não optariam por ver uma mulher despida, ou mesmo em casa, mas conside-rariam tal coisa um ultraje. E vocês vão ao teatro para insultar a natureza comum de homens e mu-lheres e desgraçar os seus próprios olhos? Pois não

291 TRAINA, G. Lycoris the Mime. In: FRASCHETTI, A. (Ed.) Roman women. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. p. 82-99.

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digam que a mulher nua é uma prostituta; mas que a natureza é a mesma, e ambos são corpos do mes-mo modo, tanto o da prostituta quanto o da mulher livre. Pois se [a nudez] não tem nada de errado, por que quando vocês veem isso ocorrer na praça do mercado, vocês logo daí se retiram e levam consigo a mulher que estiver se comportando desse modo? Será que quando vocês estão sozinhos tal coisa é ultrajante, mas quando estão reunidos e sentados lado a lado isso não é igualmente vergonhoso? [...] Ouçam o que foi a causa da nudez no início [dos tempos] e compreendam a ocasião de tal desgraça. O que então causou a nudez? Nossa desobediência e o conselho do demônio. Assim, desde o início esse foi seu artifício. Eles [Adão e Eva] ficaram ao menos envergonhados quando se viram nus, mas vocês se orgulham disso, tendo, como diz o profeta, “sua glória na vergonha”. Como sua mulher veria vocês, quando retornassem dessa vilania? Como re-cebê-los? Como falar com vocês, após vocês terem tão publicamente envergonhado a natureza comum da mulher e terem se tornado, por tal visão, cativos e escravos da prostituta? (Hom. in Mat. 6,10).292

Discordando do senso comum da época, segundo o qual as pros-titutas e as atrizes, em sua maioria escravas e libertas, poderiam ter o corpo livremente exposto à curiosidade pública, mas não as mulheres li-vres, aquelas autorizadas a contrair matrimônio legítimo,293 o que gerou, na literatura clássica, o topos da meretrix como antítese da matrona, João condena a nudez sob todas as suas formas, pois para ele a constituição corporal das mulheres seria a mesma, independente da condição social. Nesse caso, o propósito de João Crisóstomo não é tanto equiparar a espo-sa à atriz/prostituta, estatutos radicalmente distintos na sociedade roma-

292 ST. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (Ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.293 PEREA YEBÉNES, S. Extranjeras en Roma y en cualquier lugar: mujeres, mimas y pantomimes, el teatro en la calle y la fiesta de Flora. Gerión, VIII, p. 11-43, 2004.

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na, mas o de sublinhar que a nudez, encontrando-se na origem da ruína do gênero humano, não poderia ser tolerada em quaisquer circunstâncias, pois admitir a nudatio mimarum seria atribuir ao corpo nu uma positi-vidade que este, em absoluto, não possui, reatualizando assim o pecado original e fortalecendo a posição do demônio. Essa é uma das principais razões pelas quais João Crisóstomo acusa o teatro de ser um ambiente assolado por forças demoníacas, pois nele a nudez, uma artimanha de Satanás para precipitar a humanidade no sofrimento, seria uma prática habitual, corriqueira, compartilhada igualmente pelos cristãos, que prefe-riam o teatro à igreja, como se queixa o pregador em outra homilia:

Vocês, deixando a fonte de sangue, o assombroso cálice, tomam o caminho da fonte do diabo, para ver uma prostituta nadar e para sofrer o naufrágio da alma. Pois esta água é um mar de lascívia, não afogando corpos, mas produzindo o naufrágio das almas. E ao passo em que ela nada com seu corpo nu, vocês, a contemplando, afundam em profunda lascívia. [...] Não pensem que porque vocês não se uniram à prostituta, estão limpos do pecado. Pois no que diz respeito ao coração, vocês já o fizeram por completo (Hom. in Mat. 7,7).294

João alude aqui às encenações que costumavam ocorrer no teatro de Zeus Olímpico, em Dafne, o único equipado para receber exibições aquáticas. Ao que tudo leva a crer, esses espetáculos eram particular-mente apreciados pela população, pois diversos mosaicos encontrados em Antioquia têm como tema cenas aquáticas que sugerem as encena-ções dos mimos.295 Ao condenar as nadadoras, o pregador recupera dois topoi usuais na homilética cristã e na literatura patrística em geral. O primeiro deles é o da oposição irredutível entre igreja e teatro, ambien-

294 ST. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (Ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.295 HUSKINSON, J. Theatre, performance and theatricality in some mosaics pavements from Antioch. Bulletin of the Institute of Classical Studies, n. 46, p. 131-165, 2002/2003.

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tes antitéticos, excludentes, que prefiguram, em termos arquitetônicos, a conflagração arquetípica entre o bem e o mal,296 representados, na ho-milia, pela imagem das duas fontes: aquela de onde jorra o sangue do Redentor e a outra, onde a atriz se exibe nua, um mar de perdição para o corpo e para a alma. O segundo topos advém da tradição em torno dos ensinamentos de Jesus, para quem o simples ato de olhar já bastaria para caracterizar adultério, como lemos em Mateus (5,27-9). Nesse aspecto em particular, o teatro seria potencialmente maléfico, pois o edifício era projetado com a finalidade de permitir aos espectadores ver e ouvir com a maior nitidez possível os atores. O teatro – assim como o anfiteatro, seu correlato – era, no Império, um local privilegiado para a exibição do corpo em todos os seus detalhes e nuances, um corpo que se oferecia ao consumo e deleite da plateia, aumentando sobremaneira o risco de adultério. Por esse motivo, João imputa ao teatro, aos atores e atrizes a responsabilidade pelo dissenso nas relações domésticas, pois o adultério não apenas rompe o preceito evangélico da fidelidade pétrea aos votos matrimoniais, como também gera atrito entre os membros da casa, per-turbando a rotina do oikos:

Todas as coisas estão postas de cabeça para baixo. Pois de onde vem esse complô contra nossos casa-mentos? Não é do teatro? De onde vem aquilo que se introduz nos quartos? Não é do palco? Como não vem daí, quando maridos são insuportáveis para suas esposas? Quando as mulheres são despre-zíveis para os maridos? Quando a maior parte são adúlteros? [...] Mas quem não se tornou adúltero? E se alguém pudesse mencioná-los todos agora pelo nome, eu poderia assinalar quantos maridos estas prostitutas têm separado de suas mulheres, quantos elas têm feito cativos (Hom. in Mat. 37,8).297

296 LUGARESI, L. Il teatro di Dio. Brescia: Morcelliana, 2008, p. 25.297 ST. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (Ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.

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O efeito do teatro sobre o estado de espírito da plateia é tão da-noso que, segundo João Crisóstomo, a exibição corporal da atriz afetaria a harmonia entre os cônjuges, a ponto de colocar em risco a integridade física da esposa:

Pois quando a prostituta apresenta aos espectadores trajes e olhar, e voz e passo, tudo lúbrico, eles [os es-pectadores] partem inflamados e entram em casa ca-tivos. Daí os insultos e as afrontas, daí as inimizades, as rixas, as mortes diárias. Para eles [os homens], que são feitos cativos, a vida é insuportável e a par-ceira do lar desagradável, e seus filhos não são mais objeto de afeição, e todas as coisas em sua casa são postas de cabeça para baixo (Hom. in Mat. 48,4).298

O teatro, na ótica de João Crisóstomo, é um lugar onde o agon não significa apenas uma disputa retórica, verbal, mas também física, pois incentiva aqueles que o frequentam a cometer todos os tipos de excesso, dentre os quais um dos mais perigosos é o exercício da violência, e não apenas da violência ancestral do homem contra a mulher, aquela perpetrada de modo quase anônimo no interior dos lares, mas da violên-cia pública expressa em revoltas e sedições contra as autoridades cons-tituídas, de maneira que o teatro convulsiona não apenas o oikos, mas também a polis, comprometendo a estabilidade do corpo cívico, como é possível concluir do seguinte excerto:

Pois vem daí [do teatro] aqueles que disseminam o caos na cidade; daí provêm, por exemplo, sedi-ções e tumultos. Pois eles que são mantidos pelos dançarinos, e que vendem sua própria voz para o estômago, cujo trabalho é gritar e praticar tudo que é monstruoso, estes especialmente são os homens que agitam o populacho, que fazem o tumulto em nossas cidades. Pois a juventude, quando junta suas

298 ST. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (Ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.

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mãos com a indolência e é criada em tamanhos ma-les, se torna mais feroz do que uma besta selvagem (Hom. in Mat. 37,8).299

João se refere aqui à atuação, em Antioquia, das claques teatrais, ou seja, de indivíduos comissionados pelos atores, em particular pelos bailari-nos (pantomimi), para atuarem como motivadores da plateia nos festivais. A despeito dessa tarefa a princípio lúdica e “inocente”, as claques logo ad-quiriram um relevante papel político, uma vez que, no Império Romano, o teatro, em função da sua excelente acústica e visibilidade, costumava ser utilizado para a realização de cerimônias oficiais, como a comemoração dos natalis imperii ou o adventus do governador de província.300 Nessas ocasiões, a claque desempenhava um autêntico papel político, liderando o público em aclamações ritmadas (euphemiai) que seguiam um protocolo, iniciando-se com as habituais saudações ao imperador, à família imperial e aos seus representantes, de acordo com o patamar hierárquico, e encer-rando-se com o rechaço a alguma medida tida como desfavorável ou com reivindicações de toda ordem, razão pela qual as autoridades, desejosas de fortalecer sua posição em Antioquia, eram amiúde compelidas a negociar o apoio dos líderes da claque.301 Em algumas circunstâncias, no entanto, a atuação das claques extrapolava o recinto do teatro e ganhava as ruas em protestos violentos, como vemos no episódio da Revolta das Estátuas, em 387, que teria sido incitada por integrantes das claques. Em virtude da aptidão em mobilizar a massa dos citadinos com propósitos políticos, algo não muito comum no Império, as claques são, em geral, condenadas pelos autores antigos, a exemplo de Libânio, para quem os seus líderes seriam estrangeiros contratados para disseminar o caos na cidade, opinião decerto infundada.302 Tendo em vista a militância política das claques em Antio-

299 ST. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (Ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.300 GEBHARD, E. R. The theater and the city. In: SLATER, W. J. (Org.). Roman theater and society. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 113-127.301 LIEBESCHUETZ, J. H. W. G. Antioch: city and imperial administration in the Later Roman Empire. Ox-ford: Clarendon Press, 1972, p. 212.302 BROWNING, R. The riot of A.D. 387 in Antioch: the role of the theatrical claques in the Later Empire. The

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quia, João Crisóstomo não se furta a explorar o assunto em suas homilias, atribuindo aos partidários dos pantomimos a responsabilidade pelos le-vantes e motins urbanos, acontecimentos habituais em Antioquia, é bom que se diga. No entanto, chama a atenção, no excerto acima reproduzido, a imagem corporal dos sediciosos, que são acusados pelo pregador de colocar à venda o próprio corpo, emprestando a voz para excitar o público durante a performance dos bailarinos. A essa altura, é impossível não identificar aqui uma analogia com os atores e atrizes, cujo corpo também seria exibido em troca de dinheiro. Desse modo, é lícito concluir que, na avaliação de João Crisóstomo, uma das principais ameaças do teatro seria a sua capacidade de converter em mercadoria, em objeto de troca, tanto o corpo daqueles que se apresentavam sobre o palco quanto o dos espectadores. Outra ameaça seria a possibilidade de corrupção do corpo dos cristãos, que se tornariam assim inaptos a dar testemunho da sua fé. Quanto a isso, declara João:

Não nos compete estarmos continuamente rindo e sermos dissolutos e lúbricos, mas isso pertence às pessoas do palco, às prostitutas, aos homens que são movidos por tal intento, parasitas e bajuladores. Não aqueles que são chamados ao céu, não aqueles que são inscritos na cidade de cima, não aqueles que sustentam armas espirituais, mas aqueles que são inscritos do lado do demônio. Pois é ele quem, ten-do feito da coisa [o teatro] uma arte, buscou enfra-quecer os soldados de Cristo e amaciar o seu zelo. Por esse motivo ele [o demônio] também construiu os teatros nas cidades e, tendo treinado os bufões, pela perniciosa influência deles permitiu que esse tipo de pestilência queimasse sobre toda a cidade, persuadindo os homens a seguir aquilo que Paulo nos ordenou evitar: “conversas e brincadeiras tolas”. E o que é mais sério do que isso, o tema da risada. Pois quando aqueles que executam essas coisas ab-surdas dizem alguma blasfêmia ou sujeira, muitos dentre os mais irresponsáveis riem e se regozijam,

Journal of Roman Studies, v. 42, 13-20, 1952.

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aplaudindo [os atores] por aquilo que eles deveriam ser apedrejados. E atraindo sobre suas próprias ca-beças, por meio desses gracejos, a fornalha de fogo (Hom. in Mat. 6, 10).303

Contrariando a sequência temporal dos eventos ao construir uma interpretação, no mínimo, inusitada para o surgimento da arte dramá-tica, João Crisóstomo sustenta que o teatro teria sido inventado pelo demônio com a intenção de comprometer a causa cristã, reafirmando assim o caráter mágico, sobrenatural que os Padres da Igreja atribuíam ao edifício, cenário da pompa diaboli, do cortejo de Satanás, como su-gerido por Tertuliano.304 Nesse caso, o perigo do teatro se revela por meio do riso, do gracejo, da zombaria proporcionados pelos mimos, uma modalidade de espetáculo cômico que, como vimos, gozou de grande popularidade nos últimos séculos do Império. Uma das razões dessa popularidade era, sem dúvida, o emprego de anedotas e canções de teor sexual, amiúde por meio de um linguajar obsceno, para deleite do pú-blico.305 Na concepção de João Crisóstomo, o riso, a descontração e a espontaneidade são sintomas evidentes de hybris, de comportamento in-decente, licencioso, algo próprio dos infames, dos desprovidos de honra e pudor, como eram os efeminados, as prostitutas, os atores e atrizes.306 À mollitia dos atores se contrapunha a virtus dos homens sérios, íntegros, em particular dos soldados, que teriam como parâmetro de conduta a sophrosyne, o autocontrole e a moderação, uma oposição não apenas lite-rária, mas igualmente jurídica, pois, em Roma, um soldado que ousasse se exibir em público seria réu de pena capital, como previsto em lei,307 motivo pelo qual João Crisóstomo recorre à imagem dos “soldados de Cristo” como um contraponto à imoralidade dos atores. Na condição de

303 ST. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (Ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.304 ARREDONDO LÓPEZ, P. Los deportes y espectáculos del Imperio Romano vistos por la literatura cristia-na. Foro de Educación, n. 10, 2008, p. 265-280.305 PEREA YEBÉNES, S. Op. cit., p. 14.306 ZISIS, Th. Op. cit., p. 159.307 EDWARDS, C. Op. cit., p. 102.

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“soldados de Cristo” e de “cidadãos do céu”, os cristãos deveriam adotar uma severa disciplina, evitando o gracejo e a pilhéria. Mediante uma postura corporal marcada pela gravitas, pela economia dos gestos e pela discrição no uso da palavra, o cristão prontamente criaria um diferencial com os não cristãos, assumindo uma posição superior e altiva, como convinha a “soldados” cuja missão principal seria “combater” em prol da conversão das gentes, a começar pelos seus concidadãos, uma vez que a cidade foi, na Antiguidade, o locus primário da cristianização.

Considerações finais

João Crisóstomo desponta como o principal pregador de Antio-quia numa etapa crucial do processo de cristianização da cidade, quan-do a morte de Valente, em 378, e a subsequente ascensão de Teodósio selaram o destino dos arianos e permitiram a reunião de todos cristãos sob o comando de Melécio e Flaviano, que iniciam não apenas a recu-peração do controle sobre as igrejas, mas deflagram uma ampla ofensiva no sentido de coibir as práticas greco-romanas e judaicas, esforçando-se para obter aquilo que Soler 308 qualifica como a “cristianização de mas-sa” da população assentada na zona urbana e nos arredores imediatos (Dafne, Yakto, Seleucia Pieria). Quanto a isso, ressaltam as medidas levadas a cabo com o propósito de garantir o domínio do território, como verificamos na construção ou reforma dos martyria e na conver-são das necrópoles em pontos focais para a assembleia, que começa a se deslocar em peregrinação por todo o perímetro urbano e além a fim de prestar culto aos seus santos e mártires. Nesse movimento, Melécio, Flaviano e seguidores iniciam também uma feroz investida contra os lu-gares e monumentos conectados com a tradição greco-romana e judaica, numa tentativa de controlar o acesso dos cristãos a locais que julgavam

308 SOLER, E. Le sacré et le salut à Antioche au IVe. Siècle Apr. J.-C. Beyrouth: Institut Français du Proche-Orient, 2006.

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desprezíveis, profanos, poluidores. Do ponto de vista retórico, um dos principais artifícios empregados pelos oradores cristãos para delimitar as fronteiras entre ambientes saturados de dynamis divina, como eram os martyria e as igrejas, e ambientes dominados por Satanás e suas fa-langes (teatros, anfiteatros, hipódromos, termas, sinagogas) foi produzir uma analogia entre tais ambientes e o corpo dos frequentadores. Nesse sentido, é impossível enfocarmos as estratégias de cristianização do Im-pério Romano na Antiguidade Tardia sem levar em conta os aspectos espaço-corporais do problema, ou seja, sem atentar para os argumentos desenvolvidos pelos pregadores no que se refere ao correto uso do corpo, seja em recintos públicos ou privados. Da análise das homilias de João Crisóstomo, concluímos pela existência de um nexo indissolúvel entre corpos, lugares e monumentos, tanto para o bem quanto para o mal. A esse respeito, valeria a pena nos interrogarmos sobre os reais obstá-culos que o teatro poderia trazer à empresa cristã, além naturalmente do tempo despendido pelos espectadores com os ludi em detrimento dos ofícios religiosos. Talvez a resposta resida, por um lado, na capa-cidade do teatro em subverter todos os cânones da ordem, inclusive da ordem corporal, ousando interferir num “artefato” criado por Deus à sua imagem e semelhança e que comportava, à partida, uma distinção irredutível entre homem e mulher (Gn, 1,26-7). Por outro lado, é pos-sível supor também que o teatro, ao conferir voz e visibilidade ao ator, colocando-o no centro das atenções, se apresentasse como um franco concorrente ao trabalho dos oradores cristãos. De fato, tanto os atores sobre o palco quanto os pregadores sobre o altar dependiam de uma per-formance corporal convincente, ou seja, dependiam da correta utilização da voz, dos gestos e dos adereços (paramentos, indumentária) a fim de cativar a audiência. Talvez uma explicação plausível para o profundo estranhamento entre João Crisóstomo e os ludi theatralis derive muito mais das similitudes entre o ofício de sacerdote e o de ator do que das suas aparentes divergências.

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A HISTÓRIA DAS RELIGIÕES SEGUNDO A METODOLOGIA DE UGO BIANCHI:

“FRAGMENTOS DE UMA LIÇÃO” AD USUM DISCIPULORUM309.

Ennio Sanzi310

Este artigo, simplesmente, faz uma releitura dos apontamentos e anotações das aulas de metodologia da disciplina História das Religiões aplicadas pelo Prof. Ugo Bianchi (cátedra de Storia delle Religioni, Di-partimento di Studi storico-religiosi, Università degli Studi di Roma “La Sapienza”) no decorrer dos anos acadêmicos 1989 e 1990-1991.

Do ponto de vista da história, para fundamentar legitimamente uma fenomenologia das religiões é indispensável a referência à um cri-tério analítico capaz de dar conta tanto das continuidades quanto das descontinuidades nos fenômenos religiosos diversificados e variegados. Tudo isto seja no plano diacrônico dos acontecimentos, das fases e das

309 Artigo editado em Chaos e Kosmos XVI, 2015; tradução por Silvia M. A. Siqueira.310 Aluno de Giancarlo Montesi e Ugo Bianchi. Dottore di ricerca em História religiosa (Università di Roma “La Sapienza” 1997), obteve a habilitação de professor universitário de II fascia. È docente di ruolo no Liceo classico. Estuda os fenômenos religiosos do Segundo Helenismo com particular atenção aos fenômenos dos assim ditos “cultos orientais”, a magia, a religiosidade popular no cristianismo dos primeiros séculos – especial-mente o Egito copta –, a metodologia histórica-religiosa. Publicou os volumes Iuppiter Optimus Maximus Doli-chenus (Roma 2003), Maghi Sacerdoti Santi.Un itinerario storico-religioso attraverso le «crisi» dei primi secoli della nostra era (Roma 2015) e Roma, la città degli dèi. La capitale dell’Impero come laboratorio religioso (Roma 2018, con C. Bonnet), entre as coletâneas organizadas (Roma 1996; Fortaleza 2006; Cosenza 2009, junto a C. Sfameni) e numerosos contributos em diversas línguas científicas sobre as temáticas acima mencionadas; organizou a antologia de fontes latinas e gregas sobre cultos orientais (Cosenza 2003) e as traduções comentadas do De errore profanarum religionum de Firmico Materno (Roma 2006) e do De idololatria de Tertulliano (Roma 2011). È membro da Società Italiana di Storia delle Religioni (SISR), da European Association for the Study of Religions (EASR), dell’International Association for the History of Religions (IAHR). Tem orgulho de ter cantado e tocado no Folkstudio assim como de ser uma pessoa livre.

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inovações, seja no plano sincrônico das diversas tradições, dos pluralis-mos e dos avanços paralelos. Tal critério encontra a sua própria razão de ser numa pesquisa positiva que procede indutivamente e se propõe a estabelecer os contextos e os processos históricos nos quais precisos fe-nômenos concretos se inseriram modificando-os. Trataremos, portanto, de uma pesquisa histórica de tipo idiográfico que deve ser contextuali-zada e vista como um processo in fieri.

De fato, a pesquisa histórica-comparativa poderá proceder uma comparação real entre os contextos e evitar qualquer risco de colocar-se como uma “ciência heurística” somente após haver estudado idiográfi-camente os diversos elementos presentes em seus contextos. Particular-mente sobre esse tecido de tramas históricas devidamente historiáveis o método histórico-comparativo deve estabelecer conexões ainda mais vastas. Tais conexões são de dois tipos: as primeiras implicam as relações históricas entre fatos, contextos e processos; as segundas se resolvem na individuação dos desdobramentos paralelos que envolvem as diversas produções independentes de efeitos análogos ligados a causas e às oca-siões igualmente semelhantes. Na presença de tais fenômenos de desdo-bramentos falaremos de fenômenos da tipologia histórica-comparativa. Um conceito de tipologia histórica para fins de comparação envolve o real como tal e não se limita a um reconhecimento, precisamente, heu-rístico e meramente classificatório de fenômenos religiosos de qualquer modo similares nas diferenças e dissimilar nas semelhanças.

Ao lado do conceito de tipologia histórica, uma segunda formu-lação programática, igualmente relevante do ponto de vista da meto-dologia da história das religiões, é aquela de analogia. Ela refere-se ao conceito de analogia entendida aristotelicamente e escolasticamente, mas a sua utilização deve ser aplicada à matéria da disciplina histórica que utiliza o método indutivo. De fato, também se do ponto de vista da história das religiões pode-se ter em conta a distinção de uma analogia entre conceitos para uma analogia entre fatos, não é de qualquer manei-

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ra possível não sublinhar o quanto a diferença entre elementos e fatos analógicos apresenta profundidade e problemas maiores daquela que é uma diferença específica num estabelecido gênero commune. Portanto, o conceito de analogia se coloca como aquele majoritariamente indicado quando precisa classificar a nível hipotético os fatos históricos precisos no momento inicial de uma pesquisa que se baseia no método indutivo.

A pesquisa histórica-religiosa, de fato, pretende individuar o dado histórico particular para conduzi-lo para aquilo que é geral; isto é, pre-tende, de um lado, comparar em chave analógica contextos no interior dos quais são identificáveis dos fatos e, de outro lado, fatos que quali-ficam os seus próprios contextos. E isto, fazendo sempre referência a um método rigoroso de investigação que seja tanto filológica quanto histórica. A priori não se pode asseverar que todo fato que, ab extra, pare-ce pertencer a uma categoria aprioristicamente determinada se conclua com o pertencimento a ela de facto.

As tentativas dos estudiosos evolucionistas do século XIX de identificar um quid minimum commune a todas as formas religiosas no animismo, no animatismo ou no fetichismo (de onde, por desenvolvi-mento, se chegava ao politeísmo e ao monoteísmo) são reveladas insu-ficientes uma vez submetidas a uma investigação crítica contemporânea e sucessiva. Definições mínimas seriam aceitáveis somente se fosse ver-dadeira a hipótese evolucionista que coloca uma equação férrea entre aquilo que é a essência e que se encontra no início do desenvolvimento histórico e a essa afiança a convicção de que tudo aquilo que é primitivo ou ainda está no estágio primitivo se resolve também ficando simples e homogêneo. Qualquer pesquisa historiográfica ao redor da história das religiões estará em posição de demonstrar que cada tentativa de formu-lar uma definição unívoca da religião terminará em reduzir a riqueza e a complexidade dos mundos religiosos que são objeto de investigação da mesma disciplina.

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No mesmo impasse caíram também aqueles que preferiram refa-zer a uma descoberta de um sentimento de religiosidade presente em todos os homens. Por força disso a religiosidade haveria de assumir um significado unívoco, enquanto as diversas religiões estariam relaciona-das com a mesma religiosidade no sentido da analogia. A essência da religiosidade seria então individuada no sentimento do sagrado capaz de suscitar no indivíduo um duplo poder de atração e repulsão: isso é fascinans e tremendum; é o sentimento do ganz anderes, ou seja, do “to-talmente outro”. Mas fundar as religiões, também se entendidas analo-gicamente, sobre o conceito de sacro não significa outro que mudar de lugar os termos de uma pesquisa que continua a colocar-se como uma pesquisa analítica de natureza dedutiva e incapaz de resolver o proble-ma de uma definição operativa do termo religião. Que o sacro possa ser entendido como um conceito unívoco potencialmente presente em todo homem está sub iudice: a analogia presente nas diversas religiões termina também por refletir-se no conceito de religiosidade e de sagrado. E isto, sobretudo se a investigação prosseguirá, assim como precisa fazer para qualificar-se em um forte sentido como pesquisa histórica-religiosa, de maneira analítica, comparativa e, portanto, indutiva.

Outros pesquisadores ainda procuraram individuar no conceito de homo religiosus aquele minimum unívoco de colocar na base de toda investigação histórica-religiosa: no homem haveria uma faculdade inata capaz de determiná-lo sub specie religionis. Tal determinação seguiria os mesmos mecanismos que conduzem o homem a ser racional, político e econômico. Mas também este modo de estabelecer a pesquisa históri-ca das religiões não escapa de objeções já levantadas: por ser histórica uma investigação não pode estar fundamentada sobre um procedimento analítico de natureza dedutiva. Ademais, qualquer tipo de aproximação com a categoria de homo religiosus que passe através de uma investigação de tipo indutivo voltada a considerar o pluralismo analógico inerente ao mundo das religiões não poderá evitar de refletir o mesmo pluralismo

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também nas diversas tentativas de chegar a uma definição unívoca par-ticular da categoria de homo religiosus.

Diversos estudiosos enfrentaram o estudo das religiões em chave puramente fenomenológica; todavia, uma vez instituída uma tipologia das manifestações do sagrado, eles próprios terminaram em reinterpre-tá-la em uma visão atemporal com o fim de individuação da essência dessas mesmas manifestações. Em suas pesquisas o dado histórico, do qual se tem em conta, é relido e inevitavelmente transcendido particu-larmente por força desse procedimento. Generalizações e, consequente-mente, equívocos não faltam no estudo fenomenológico da religião, as-sim como não estão ausentes arbitrariedades e subjetivismos. A ciência dos fenomenólogos não pode privar-se da história, e mais deve submeter ao valor dessa as etapas e os resultados da própria análise. De tal ponto de vista se poderia asserir que a fenomenologia das religiões termina em formar uma única ciência com a história das religiões: a ciência das religiões ou, melhor, a fenomenologia histórica das religiões. Não obs-tante isso seria impossível iniciar uma pesquisa histórica-comparativa dos fatos que chamamos religiosos se não tivéssemos de qualquer modo uma definição de religião.

Para não cair no impasse de uma definição apriorística, que inevi-tavelmente terminaria reduzindo o campo de pesquisa dos fenômenos religiosos, será necessário recorrer à formulação temporária de uma defi-nição ostensiva capaz de adequar-se aos fatos gradualmente analisados e que não seja por sua vez seletiva desde o início da pesquisa. Nesse senti-do a inadequação de tal categoria ocorreria não somente no caso de uma escolha preliminar dos dados a analisar, mas também na eventualidade de uma posição, por assim dizer, minimalista colocada como ponto de partida para a definição num sentido evolucionista da religião.

É necessário, portanto, impor diversamente a questão da defini-ção da categoria de religião para chegar a uma formulação descritiva

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e problemática da mesma; em suma, uma formulação por assim dizer aberta, capaz de torná-la funcional para uma pesquisa histórica-religio-sa radicalmente indutiva. Tal definição deve ser qualificada em relação a um método. O melhor método apto a estabelecer uma definição no senso acima apresentado é o método dialético. Isso, todavia, não deve resolver-se em uma conexão, precisamente, dialética a realizar-se entre a opção ideológica e a pesquisa, ao contrário deve interessar a dialética interna da própria investigação.

Em resumo, precisará estabelecer esse tipo de conexão entre o quanto já é conhecido e qualificado por uma fenomenologia histórica das religiões e o quanto é suscetível ainda de ser identificado e analisado. O historiador das religiões iniciará a própria pesquisa histórica-com-parativa utilizando o termo religião com referência aos fatos que na sua cultura de base e nas relativas estratificações culturais são definidos como fatos religiosos. As verificações dessa abordagem orientada nesse sentido já forneceram resultados reconfortantes. E assim o estudioso de história das religiões, ao abordar conceitualmente o quanto nas culturas examinadas revela-se passíveis, segundo os cânones da analogia, de uma assimilação conceitual com o patrimônio constituído pelos fatos e pelos contextos que no seu ambiente cultural são definidos como religiosos, deverá empenhar-se em uma reflexão científica embasada na filologia e no método histórico-comparativo; assim ele se ocupará daqueles pro-blemas de continuidade e descontinuidade cultural, de contiguidade e de tipologia histórica, de relações históricas...

Nesse ponto da pesquisa, qualquer que seja a tentativa de defini-ção concluída em si mesma e apriorística do termo religião se revelaria insuficiente. De fato, sobretudo no início da análise histórica-compa-rativa as diferenças e semelhanças entre fatos religiosos individuados em contextos culturais análogos não poderiam ser redirecionados para o conceito de differentia specifica a colocar-se no interior de uma definição

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tanto unívoca quanto hipotética do termo religião. Então o conceito majoritariamente adequado para o estado e a natureza da pesquisa histó-rica-comparativa seria aquele da analogia, capaz de colher os diferentes fatos objeto da investigação; uma analogia determinada dialeticamente por força de afinidades recíprocas e diferenças não menos radicais ainda, ex necessitate, a ordenar e coordenar.

A analogia, de fato, permite classificar o gênero dos fatos que chamamos religiosos reunindo as semelhanças e diferenças, sem recon-duzi-los forçosamente para uma única categoria de religião entendida como uma substância aprioristicamente e monoliticamente definida. Assim, por força da analogia, os fatos religiosos não serão mais consi-derados como espécie de um gênero complexo chamado religião mas como os fenômenos que se manifestam por aspectos de qualquer modo comuns aos diversos contextos nos quais existem. Naturalmente esta analogia será individuar, coordenar e classificar segundo os ditames da pesquisa histórica-comparativa precedentemente ilustrados. Uma ulte-rior reflexão interessa a universalidade das religiões enquanto conceito e realidade histórica. Naturalmente esta universalidade deve ser entendi-da como um problema histórico-fenomenológico que coloca tal questão como questão de fato e a investiga servindo-se das noções de tipologia histórica e de analogia acima ilustradas.

Para assinalar a difusão universal em relação aos tempos e aos lu-gares considerados como uma série de instituições diversas mas analogi-camente confrontáveis e qualificantes do ponto de vista da categoria de religião também esta analogicamente determinada, a pesquisa histórica--comparativa fará uso do conceito de universal concreto: universal quan-to ao que guarda a difusão desses aspectos comuns, mas todavia diversi-ficados e diversificáveis no interior de contextos históricos e em conexão dialética com eles; concreto, porque se trata exclusivamente de realidades históricas documentadas e disponíveis para uma verificação positiva.

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Os fenômenos que podem ser voltados para a religião entendida como universal concreto constituem um conjunto de fatos e de con-textos caracterizados por traços e funções individuáveis tanto por força das semelhanças quanto por força das diferenças dialeticamente carac-terizadas. Com este termo de universal concreto indicar-se-á então o resultado da pesquisa histórico-comparativa atenta para as semelhanças e as diferenças dos fenômenos religiosos positivos encontrados no in-terior dos contextos culturais historiáveis. Deste modo o conceito de religião torna-se um “conceito em expansão” metodologicamente con-trolado que se funda sob uma tentativa de síntese a posteriori, sobre uma dialética de fatos e contextos históricos entre uma experiência en-tendida também como conhecimento cientificamente refletido e novas experiências entendidas como conhecimentos adquiridos com o alar-gamento da investigação histórica-comparativa fundada, naturalmente, sobre uma rigorosa atividade filológica e histórica.

Há também outras ciências que se ocupam da religião: a psico-logia religiosa, a sociologia da religião, a filosofia da religião e a mesma fenomenologia da religião. Ora, também se eles tratam os argumentos próprios da história das religiões não reconhecem nesses, pelo menos as duas primeiras, o objeto peculiar de sua investigação científica. De fato, a psicologia religiosa tem como campo de pesquisa a psique e não as religiões; a sociologia das religiões tratará desses argumentos do ponto de vista sociológico dado que o objeto da sua pesquisa é a sociedade, também se analisada sob o perfil das suas manifestações religiosas, e não as religiões. A filosofia da religião se preocupa de esclarecer e delimi-tar a via filosófica dos problemas, dos conceitos e dos valores religiosos à luz de um sistema completo e rigoroso; consequentemente ela não poderá prescindir dos resultados atingidos por meio da pesquisa histó-rica-comparativa das religiões com a finalidade de reler a partir de um procedimento completamente autônomo que se utiliza de métodos de investigação específicos. Do mesmo modo, como se dizia, também a

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fenomenologia da religião não poderá não considerar toda a produção da história das religiões entendida como ciência severamente histórica--comparativa.

Notas

A bibliografia do Professor Ugo Bianchi relativa à metodologia histórica-re-ligiosa é tão vasta e exaustiva que qualquer aceno nesse propósito resultaria incompleto. Para uma primeira discussão precisaria recorrer pelo menos ao que ele próprio assinalou na margem do seu trabalho que fechava os trabalhos da sessão conclusiva do XVI Congresso dell’International Association for the History of Religions no dia 08 de setembro de 1990: The Definition of Religion. On the Methodology of Historical- Comparative Research, in U. Bianchi, C.J. Bleeker, A. Bausani (ed.), Problems and Methods of the History of Religions: Proceedings of the Study Conference Organized by the Italian Society for the History of Religions on the Occasion of the Tenth Anniversary of the Death of Raffaele Pettazzoni, Rome, 6th to 8th December 1969: Papers and Discussions, “Studies in the History of Religions. Supplements to numen” 19, Leiden 1972, pp. 15-34; Saggi di metodologia della Storia delle religioni, Roma 1979; The History of Religions and the “Religio-anthropological” Approach, in L. Honko (ed.), Science of Religions: Studies on Methodology: Proceedings of the Study Conference of the Internatio-nal Association for the History of Religions, Held in Turku, Finland, August 27-31, 1973, “Religion and Reason” 13, The Hague 1979, pp. 299-32; Current Methodological Issues in the History of Religions, in J.M. Kitagawa (ed.), The History of Religions: Retrospect and Prospect, New York 1985, pp. 53-72; History of Religions, in M. Eliade (ed.), The Encyclo-pedia of Religion, New York 1986, vol. VI, pp. 399-408; Method, Theory and the Subject Matter, in L.H. Martin (ed.), Religious Transformations and Socio-Political Change: Eas-tern Europe and latin American, “Religion and Reason” 33, Berlin – New York 1993, pp. 349-355; bem como o que foi apresentado nesta ocasião (= Concluding Remarks: The History of Religions, Today, in Idem [ed.], The Notion of «Religion» in Comparative Resear-ch: Selected Proceedings of the XVIth Congress of the International Association for the History of Religions Rome, 3rd-8th September, 1990, “Storia delle Religioni” 8, Roma 1984, pp. 919-922) e a intervenção apresentada por ocasião da Special IAHR Conference “Religions in Contact” (Brno, 26 agosto 1994) intitulado Cultural and Epistemological Methodological Policies of the I.A.H.R., e hoje inédito.

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