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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL LUÍS ROGÉRIO COSME SILVA SANTOS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA PARA ATRAÇAO DE EMPRESAS E QUALIDADE DE VIDA DA POPULAÇÃO TRABALHADORA DO PÓLO CALÇADISTA DA REGIÃO SUDOESTE: O CASO DA AZALÉIA NORDESTE NO MUNICÍPIO DE ITAMBÉ Santo Antônio de Jesus-BA 2007

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA MEMÓRIA E

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

LUÍS ROGÉRIO COSME SILVA SANTOS

POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA PARA ATRAÇAO

DE EMPRESAS E QUALIDADE DE VIDA DA POPULAÇÃO TRABALHADORA DO

PÓLO CALÇADISTA DA REGIÃO SUDOESTE: O CASO DA AZALÉIA NORDESTE

NO MUNICÍPIO DE ITAMBÉ

Santo Antônio de Jesus-BA 2007

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LUÍS ROGÉRIO COSME SILVA SANTOS

POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA PARA ATRAÇAO

DE EMPRESAS E QUALIDADE DE VIDA DA POPULAÇÃO TRABALHADORA DO

PÓLO CALÇADISTA DA REGIÃO SUDOESTE: O CASO DA AZALÉIA NORDESTE

NO MUNICÍPIO DE ITAMBÉ

Dissertação de mestrado apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós- -Graduação em Cultura, Memória e Desenvol-vimento Regional, área de concentração, Desenvolvimento Regional, do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia, Campus V, em cumprimento aos requisitos necessários à obtenção do grau acadêmico de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.

Professor Dr. Cristóvão Brito Orientador

Santo Antônio de Jesus-BA

2007

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaboração: Biblioteca Central / UNEB

Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396 (Biblioteca Campus V / UNEB)

S596 Santos, Luis Rogério Cosme Silva

Políticas Públicas do Governo do Estado da Bahia para Atração de Empresas e Qualidade de Vida da População Trabalhadora do Pólo Calçadista da Região Sudoeste: o caso da Azaléia Nordeste no município de Itambé/ Luis Rogério Cosme Silva Santos – Santo Antônio de Jesus – Ba.: [s.n], 2007.

133 f.

Orientador: Cristovão de Cássio da Trindade de Brito

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Campus

V. Departamento de Ciências Humanas

1.Políticas Públicas. 2. Emprego e Renda. 3. Saúde do Trabalhador 4 Qualidade de Vida no Trabalho I. Brito, Cristovão de Cássio da Trindade de II.Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Huma-nas. Campus V. Programa de Pós-graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional. III. Título

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LUÍS ROGÉRIO COSME SILVA SANTOS

POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA PARA ATRAÇAO

DE EMPRESAS E QUALIDADE DE VIDA DA POPULAÇÃO TRABALHADORA DO

PÓLO CALÇADISTA DA REGIÃO SUDOESTE: O CASO DA AZALÉIA NORDESTE

NO MUNICÍPIO DE ITAMBÉ

Dissertação de mestrado apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós- -Graduação em Cultura, Memória e Desenvol-vimento Regional, área de concentração, Desenvolvimento Regional, do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia, Campus V, em cumprimento aos requisitos necessários à obtenção do grau acadêmico de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.

_____________________________________

Professora Dra. Maria Lúcia Souza Castro Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e

Desenvolvimento Regional

Aprovado pela Comissão examinadora em :

________________________________________________

Dr. Cristóvão de Cássio da Trindade de Brito (Presidente e orientador - IGEO/UFBA)

________________________________________________

Dra. Janes Terezinha Lavoratti (Membro – DCH-V/UNEB)

________________________________________________

Dra. Petilda Serva Vazquez (Membro - UNIME)

Santo Antônio de Jesus-BA 2007

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pela possibilidade de aprender. A minha esposa e filha, que tiveram a paciência para suportar os meus momentos de isolamento na elaboração desse estudo. Ao meu orientador, Cristóvão Brito, pela motivação. Aos colegas do mestrado pelo incentivo. Aos meus colegas do Cerest pela colaboração. Às mulheres extraordinárias do NEIM/UFBA, Petilda e Wanessa, pela parceria.

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RESUMO

A política governamental de atração de empresas para a Bahia e de desconcentração espacial da indústria promovida pelo Governo baiano na década de 1990, direcionou para a Região Sudoeste do estado os primeiros e maiores investimentos econômicos do setor calçadista e coreiro visando a geração de emprego e renda e a melhoria da qualidade de vida da população. A instalação da empresa de calçados Azaléia Nordeste, com fábricas em onze municípios, entre os quais Itambé, representou, por um lado, um aumento significativo de postos de trabalho direto (11.987), de salários baixos (em média R$ 400,00), implicando baixa capacidade de consumo individual, e o lançamento mensal de uma massa de milhares de reais a título de salários na economia urbana, por outro lado, também criou uma multidão de homens e mulheres submetida a problemas de saúde graves como as LERs e DORTs e patologias psicológicas que afetam os trabalhadores expostos aos riscos inerentes ao próprio processo de produção de calçados, implicando, com isso, o rebaixamento da qualidade de vida da população operária. Ao analisar as implicações do trabalho na qualidade de vida dos trabalhadores da fábrica da Azaléia Nordeste em Itambé, por meio de entrevistas e questionários aplicados com trabalhadores da empresa foram reveladas as principais contradições diretamente vinculadas ao crescimento econômico local/regional estimulado pela “guerra fiscal” – a reprodução da pobreza e da precarização extrema da saúde física e psicológica dos trabalhadores, que se reflete na constituição de uma população disciplinada para o trabalho industrial de ciclo contínuo, mas de baixos salários e adoecida. Palavras-chave: Política pública; Emprego e renda; Saúde do trabalhador; Qualidade

de vida.

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ABSTRACT The governmental policy of attraction of businesses to Bahia and spatial desconcentration of the industry promoted by the Government of Bahia in the decade of 1990, directed to the Southwest Region of the state the first and major economic investments from the footwear and leather industries aimed at the generation of employment and income and the improvement of the quality of life of the population. The installation of the footwear company Azaléia Nordeste, with factories in eleven municipalities, among them Itambé, represented, on the one hand, a significant increase of direct jobs (11.987), on low wages (R$400,00 on average), implying low capacity for individual consumption, and the monthly launch of a mass of thousands of "reais" under wages in urban economy. On the other hand, it also created a crowd of men and women subjected to serious health problems, such as repetitive strain injury (RSI), work-related osteomuscular disturbances (in portuguese DORTs) and psychological disorders that affect workers exposed to the risks inherent in the very process of production of footwear, implying, with this, the lowering of the quality of life of the laboring population. When analyzing the implications of the work on the quality of life of the factory workers for Azaléia Nordeste in Itambé, through interviews and questionnaires applied with the company's workers, were disclosed the main contradictions directly tied to local/regional economic growth stimulated by the "fiscal war" - the reproduction of poverty and the extreme precarious ness of the physical and psychological health of workers, which is reflected in the constitution of a population disciplined for the industrial work of continuous cycle, but of low wages and sick. Key-words: Public policy; Employment and income; Health of the worker; Quality of

life.

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LISTA DE QUADROS Quadro 1- Bahia: distribuição das fábricas da indústria Azaléia, por municípios de acordo

com o partido político do prefeito nos anos de 1997 e 2006 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43

Quadro 2- Principais etapas da produção de calçados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .70

Quadro 3 - Fatores que favoreceram a instalação da fábrica da Azaléia Nordeste no

município de Itambé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .71

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Distribuição das fábricas da Azaléia na região Sudoeste e número de

trabalhadores empregados por município - 2007. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69

Tabela 2 - Azaléia Nordeste em Itambé: funções dos funcionários - 2007. . . . . . . . . . . . . 82

Tabala 3 - Azaléia Nordeste em Itambé: escolaridade dor funcionários - 2007. . . . . . . . . .83

Tabela 4 - Azaléia Nordeste em Itambé: participação dos funcionários em estágio ou

treinamento - 2007. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

Tabela 5 - Azaléia Nordeste em Itambé: tempo de treinamento dos funcionários - 2007. . 84

Tabela 6 - Azaléia Nordeste em Itambé: número de funcionários e casos de demissões

homologadas com a participação do Sindicato em 2005, 2006, 2007 . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

Tabala 7 - Casos de Ler/Dort notificados no SINAN pelo CEREST, por município de

pequeno porte de 2003-2006. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93

Tabela 8 - Azaléia Nordeste em Itambé: queixas de problemas de saúde apontadas pelos

trabalhadores – 2006. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .104

Tabela 9 - Azaléia Nordeste em Itambé: funcionários com queixa de dor em alguma

parte do corpo – 2006. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

Tabela 10 - Azaléia Nordeste em Itambé: funcionários que declararam ter sofrido acidente

de trabalho na empresa – 2006. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .108

Tabela 11 - Azaléia Nordeste em Itambé: termos usados pelos trabalhadores para

expressar o que o trabalho na empresa representa (sondagem de 2006) . . . . . . . . . . . . .109

Tabela 12 - Azaléia Nordeste em Itambé: relação entre tempo de serviço (exposição a

riscos) e problemas de saúde (queixas) causados pelo trabalho na fábrica - 2006. . . . . . 110

Tabela 13 - Trabalhadores com problemas de saúde por ramo de atividade mais freqüente

– 2001/2006. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .113

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Tabela 14 - Azaléia Nordeste em Itambé: percepção de risco para a segurança e saúde no

trabalho pelos funcionários – 2007. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

Tabela 15 - Azaléia Nordeste em Itambé: declaração de benefícios auferidos pelos

funcionários ao longo de sua vida de trabalho na empresa - 2007. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

Tabela 16 - Azaléia Nordeste em Itambé: observação/queixa dos(as) trabalhadores (as)

com relação ao trabalho - 2007. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Taxa de crescimento do PIB. Bahia/Brasil 2003/2005 . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APL - Arronjo Produtivo Local

ACM - Antonio Carlos Magalhães

BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CEREST - Centro Regional de Atenção a Saúde do Trabalhador

CESAT -Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador

CDL - Câmara dos Diretores Lojistas

CF – Constituição Federal

CLT - Consolidação das Leis Trabalhistas

CN - Congresso Nacional

Confaz - Conselho Nacional de Política Fazendária

DORT - Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho

EUA - Estados Unidos da América

EVA – Etileno Acetato de Vinila

Fetrav - Federação dos Trabalhadores da Indústria do Vestuário, Couro e Calçados

da Bahia

FGV - Fundação Getúlio Vargas

FHC - Fernando Henrique Cardoso

ICMS - Imposto Sobre Circulação de Mercadorias

IDH - índice de Desenvolvimento Humano

INSS - Instituto Nacional de Seguridade Social

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

LER - Lesões por esforços Repetitivos

MTE - Ministério do Trabalho e Emprego

NEIM - Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher

NR7 - Norma regulamentadora n. 7

NR9 - Norma regulamentadora n. 9

DRT - Delegacia Regional do Trabalho

PAC - Programa de Aceleração do Crescimento

PCMSO - Program de Controle Médico e de Saúde Ocupacional

PIB - Produto Interno Bruto

PFL - Partido da Frente Liberal

PNAD - Pesquisa Nacional por amostra de Domicílio

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PP - Partido Progressista

PPB - Partido Progressista do Brasil

PPRA - Programa de Prevenção de Riscos Ambientais

PT - Partido dos Trabalhadores

PL - Partido Liberal

PC do B - Partido Comunista do Brasil

RENAST- Rede Nacional de Atenção Integral a Saúde do Trabalhador

S1 - Sindicalista 1

S2 - Sindicalista 2

S3 - Sindicalista 3

S4 - Sindicalista 4

S5 - Sindicalista 5

S6 - Sindicalista 6

Seplan - Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia

SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

Seplantec - Secretaria do Planejamento e da Ciência e Tecnologia do Estado da

Bahia

SESMT - Serviço Nacional de Segurança e Medicina do Trabalho

SICM - Secretaria da Indústria Comércio de Mineração

Setras - Secretaria do Trabalho e Assistência Social do Estado da Bahia

Sudene - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

SUS - Sistema Único de Saúde

T1 – Trabalhador(a) 1

T2 – Trabalhador(a) 2

T3 – Trabalhador(a) 3

T4 – Trabalhador(a) 4

T5 – Trabalhador(a) 5

T6 – Trabalhador(a) 6

UFBA - Universidade Federal da Bahia

UDR - União Democrática Ruralista

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11 2 VERTENTES PARA A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS .......................... 16 3 O PAPEL DO GOVERNO DO ESTADO NA ATRAÇÃO DE INVESTIMENTOS: O

JOGO DA GUERRA FISCAL ............................................................................... 26 4 A IMPORTÂNCIA DO LOCAL E A NATUREZA DA POLÍTICA PÚBLICA PARA O

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA BAHIA ................................................ 38 5 ANALISANDO AS INTERFACES ENTRE CRESCIMENTO E DESENVOLVI-

MENTO ECONÔMICO E QUALIDADE DE VIDA ................................................ 48 6 QUALIDADE DE VIDA E SUA RELAÇÃO COM A AUTONOMIA E A JUSTIÇA

SOCIAL NA AVALIAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO LOCAL/REGIONAL .............................................................................................. 59 

7 ASPECTOS SOCIAIS, POLÍTICOS, ECONÔMICOS E CULTURAIS RELACIO-NADOS À IMPLANTAÇÃO DA FÁBRICA DA AZALÉIA NO MUNICÍPIO DE ITAMBÉ ................................................................................................................ 68 

7.1 CARACTERÍSTICAS DA POLÍTICA PÚBLICA E O PAPEL DO GOVERNO DO

MUNICÍPIO NO DESENVOLVIMENTO LOCAL ................................................... 86 

7.2 SALÁRIO E SAÚDE NO CENTRO DO DEBATE PELA QUALIDADE DE VIDA 93 

8 A SAÚDE DO TRABALHADOR E OS ASPECTOS INSTITUCIONAIS ............. 115 9 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 125 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 129 ANEXO ................................................................................................................. 136 

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1 INTRODUÇÃO

A implantação do pólo calçadista na região Sudoeste da Bahia em 1996,

especialmente em municípios de pequeno porte como Itambé, pautado nas regrasda

guerra fiscal”, integra um conjunto de estratégias de desenvolvimento regional

adotado pelo Governo do estado para a expansão e interiorização do parque

industrial baiano, tomando a geração de emprego e de renda como fator principal

para a melhoria da qualidade de vida da população trabalhadora local/regional.

Porém, paradoxalmente, a organização, os processos de trabalho e as relações

sociais de produção implementadas por essas indústrias apresentam aspectos que

afetam a saúde física e psicológica, impactando negativamente a qualidade de vida

dos trabalhadores vinculados diretamente com a produção.

A pesquisa teve como base explicar os seguintes questionamentos: a) em

que nível a geração de emprego e renda têm de fato proporcionado a melhoria da

qualidade de vida da população trabalhadora da indústria de calçados Azaléia

Nordeste, na medida em que o adoecimento dessa população tem sido fato comum

na região Sudoeste da Bahia? b) Se o objetivo dessa política de Governo é o

desenvolvimento econômico e a inclusão socioeconômica dos indivíduos que se

encontram à margem do mercado de trabalho formal, por que razão, em função dos

problemas de saúde gerados no ambiente de trabalho, os trabalhadores são

descartados?

O estudo tem como objetivo discutir os elementos que permeiam o debate

atual sobre as ações de Governo em suas distintas escalas subjacentes às políticas

públicas de desenvolvimento local/regional, como base para a análise do processo

de interiorização da indústria e geração de emprego e de renda no estado da Bahia,

com enfoque na região Sudoeste, a partir do setor calçadista e suas implicações na

qualidade de vida da população trabalhadora. Para tanto, busca levantar e analisar

as relações e o perfil das condições de trabalho e saúde predominantes na indústria

de calçados Azaléia Nordeste, instalada no município de Itambé-Bahia.

Nos procedimentos de pesquisa, além de pesquisa bibliográfica e

documentotal utilizou-se dados empíricos coletados por meio de entrevistas e

questionários aplicados com a população trabalhadora, com sindicalistas e

profissionais que atuam no campo da saúde. Foram aplicados dois questionários

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semi-estruturados com trabalhadores(as) das fábricas da Azaléia Nordeste em

Itambé. Os questionários continham variáveis que possibilitaram construir o perfil de

saúde e socioeconômico da amostra de população selecionada aleatoriamente,

buscando extrair a percepção do grupo sobre as relações e condições de trabalho,

estado de saúde, satisfação com o trabalho, remuneração e a qualidade de vida, de

modo a possibilitar a comparação entre os discursos oficiais e as condições de vida

antes e depois da admissão dos operários(as) na empresa, a partir de sua

implantação em 1996. Um questionário auto-aplicavel foi respondido por 44

trabalhadores(as) da Azaléia de Itambé, numa sondagem realizada em 2006 pelo

autor, e em 2007, outro questionário, elaborado pelo NEIM/UFBA, foi aplicado a um

público de 22 trabalhadores(as).

Foi realizado um levamentamento de informações por meio da técnica do

grupo focal. O grupo focal é uma técnica de avaliação que oferece informações

qualitativas. Trabalhou-se com 10 pessoas, homens e mulheres, com apoio de uma

psicóloga do NEIM/UFBA, Wanessa Serva Vazques, e o autor como mediadores. A

técnica possibilitou revelar experiências, sentimentos, e percepções. O grupo foi

formado considerando “características homogêneas” (MINAYO, 2005: 172) com

trabalhadores(as) com problemas comuns de saúde ou queixas decorrentes das

relações e condições de trabalho na fábrica. Além de se buscar dar uma abordagem

qualitativa ao estudo, um fato determinante para a utilização desse recurso foi a

ameaça de demissão de trabalhadores(as) pela fábrica a quem fosse visto

respondendo à pesquisas de qualquer natureza. Com isso, o trabalho foi realizado

longe dos olhos e ouvidos dos patrões e prepostos.

Levantamento de informações sobre o processo de produção e ambiente de

trabalho nos dois galpões industriais da empresa Azaléia Nordeste, instalados no

município de Itambé, foi feito a partir de consulta à bibliografia específica e aos

bancos de dados do Centro Regional de Atenção a Saúde do Trabalhador de Vitória

da Conquista (Cerest) e Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (CESAT),

órgãos do Sistema Único de Saúde (SUS), de centros de pesquisa (NEIM/UFBA) e

da Delegacia Regional do Trabalho (DRT).

O estudo está dividido em sete capítulos. O primeiro capítulo analisa

preliminarmente as vertentes que discutem o método para análise das políticas

públicas com destaques para os autores Frey (2000), Arretche (2001), Muller (1998),

Putnam (2005), D’Araújo (2003) e Fonseca (2006). Necessariamente não intruduz a

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discussão sobre o nível local (Itambé), mas aponta as bases teóricas desse estudo

que serão úteis para a análise dos rebatimentos da política pública de Governo

sobre o município, cuja discussão dar-se-á mais amplamente nos capítulos 6, 7 e 8.

O segundo discute a política pública adotada pelo Governo baiano para

atração de investimentos, notadamente sobre a “guerra fiscal” que afetou

significativamente as relações entre unidades da federação brasileira na década de

1990, tendo por lastro estudos publicados por Dulci (2002) e Varsano (1997), além

de publicações da Secretaria de Indústria, Comércio e Mineração da Bahia (SICM)

(2006), que aponta a melhoria da qualidade de vida da população regional a partir

da produção de calçados que, na visão do Governo do estado, tem propiciado o

crescimento econômico, e este, a melhoria da qualidade de vida da população da

região Sudoeste, nela inclusa a população trabalhadora.

No terceiro capítulo discute-se a importância do nível local e a natureza da

política pública para o desenvolvimento do estado da Bahia, com ênfase num

modelo de desconcentração industrial, semelhante a uma “ocupação do território”,

processo no qual o viés político-partidário foi decisivo para a implantação da

indústria de calçados Azaléia Nordeste no município de Itambé.

O quarto capítulo aborda as interfaces existentes entre crescimento e

desenvolvimento econômico e suas correlações com a qualidade de vida da

população em geral, e, especificamente, da população trabalhadora contratada pela

empresa Azaléia Nordeste na Bahia, destacando-se as discussões feitas por

Buarque (2004), Arretche (1996), Frey (2000), Breilh (1999) e Souza (2003) sobre

conflitos setoriais e equidade na execução dessas políticas públicas. Com isso

tornou-se possivel um melhor entendimento sobre tais temas comumente

trabalhados à luz da vertente economicista, que tem no crescimento do Produto

Interno Bruto (PIB) e na renda per capta, os pilares para se alcançar a melhoria das

condições de vida da população, sem considerar, contudo, a importância de outras

variáveis inerentes à avaliação da qualidade de vida.

O quinto capítulo discute a categoria qualidade de vida como parâmetro

subordinado não apenas à capacidade de consumo de produtos e serviços,

relacionados diretamente ao emprego e renda proporcionado pela industrialização,

como quer a linha economicista, mas também à autonomia e à justiça social,

parâmetros importantes na construção da cidadania, e, portanto, necessários para a

avaliação do desempenho da política pública, enquanto ação do Governo. São

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consideradas neste capítulo as opiniões do Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES) e dos autores Souza (2003), Fonseca (2006) e

Putnam (2005).

Nesse sentido apresentamos ainda os conceitos relativos às diversas

categorias como o crescimento e desenvolvimento econômico, autonomia, justiça e

equidade social, entre outras, e as necessárias interfaces para se compreender e

conceituar a categoria qualidade de vida, posta como principal objetivo a ser

alcançado pelo Governo do estado da Bahia por meio do processo de modernização

econômica iniciado na década de 1990.

No sexto capítulo o nível local ganha maior visibilidade. Nele é avaliado o

impacto social, político, econômico e cultural da implantação da fábrica da Azaléia

Nordeste no município de Itambé, tomando por base as pesquisas de campo

realizadas ao longo dos anos de 2006 e 2007. Aqui as vozes dos trabalhadores dão

o tom das discussões a cerca do que entendem por qualidade de vida e sua relação

com o trabalho cotidiano na empresa que adota o modelo de produção fordista

periférico associado ao taylorismo primitivo do qual nos fala Lipietz (1988),

contrastando o discurso dos trabalhadores com o discurso empresarial e do Governo

baiano sobre os “resultados sociais positivos” da indústrialização a partir da geração

de emprego e renda no município de Itambé. Neste capítulo é tratada também a

omissão de médicos do trabalho que prezam mais pela saúde financeira da empresa

em detrimento da saúde da população trabalhadora, posta aos seus (des)cuidados.

A definição do município de Itambé como território-processo e como território-

espaço permite nesse capítulo o debate sobre a influência mútua da relação entre as

escalas espaciais que vai do local ao global, e o grau de eficiência da política

pública. Mediam essa discussão os autores Braverman (1977), Brito (2005),

Berlinguer (1977), Dejours (2006), D’Araújo (2003), Lipietz (1988), Sennett (2001),

Vazques, P. (2007), entre outros que se preocupam com os conflitos e consensos

que emergem das relações sociais e do mundo do trabalho. Esse capítulo reafirma

fortemente a dimensão cultural, categoria muito discutida do ponto de vista

sociológico e antropológico, e que eclode nesse estudo como pano de fundo

indispensável para explicar a relação verticalizada entre empregador/ empregado na

Azaléia Nordeste, à luz da teoria de Ribeiro (2003) e Dejours (2006), evidenciando a

forte correlação entre a cultura do “colonizador/colonizado”, explicada pelo primeiro,

e os reflexos disso nos campos psicológico e físico dos trabalhadores, como

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demonstra o segundo. Um debate marcado pela interrelação com outros aspectos

(político, econômico e social) que acabam por definir a territorialidade de uma

empresa, sob regras institucionais historicamente construídas. Nesse capítulo,

menciona-se também a centralidade da saúde e do salário como pressupostos da

qualidade de vida, presentes na pauta de reivindicação do movimento sindical na

região Sudoeste e no município de Itambé em particular.

O sétimo capítulo trata da natureza institucional inerente o arcabouço jurídico

no campo da saúde e segurança no trabalho, e sua importância para a garantia de

direitos dos trabalhadores(as) que estão diariamente expostos a riscos ocupacionais

num processo de produção e organização do trabalho que abalam, sobremaneira, o

equílibrio psicológico e físico desses(as) operários(as) que na pesquisa expuseram

suas satisfações e insatisfações, suas esperanças e desesperanças, as cicatrizes do

trabalho deixadas nas almas e nos corpos da população trabalhadora na última

década. Evidencia-se neste capítulo, as concepções de Dejours (2006), Santana

(2004) e Assunção (2004) frente ao grande paradoxo que brota da contradição entre

setores que vão afetar diretamente a qualidade de vida de trabalhadores(as) da

Azaléia Nordeste no município de Itambé e região. De um lado, agentes sociais

ligados aos setores que buscam preservar a saúde dos(as) trabalhadores(as), e, de

outro, aqueles que coadunam com os interesses da empresa, que agindo sob o

discurso do “desenvolvimento sócio-econômico” desconsidera o limite humano da

força de trabalho.

Este estudo, frente a essas contradições, é um esforço na busca de uma

metodologia que permita a análise da política pública adotada pelo Governo da

Bahia, para a geração de emprego e renda por meio da desconcentração industrial

do Sudoeste baiano, tendo como categoria de análise principal a qualidade de vida

de operários(as) da empresa Azaléia Nordeste em Itambé, antes e depois de

iniciado o processo de industrialização. Considera-se na avalição e na definição da

qualidade de vida não somente a renda, mas, o grau de autonomia, a saúde do

trabalhador e o nível de satisfação individual e coletiva dos(as) trabalhadores(as).

Diante dos problemas que motivaram a pesquisa, poder-se-ía dizer que este estudo

permitiu achados significativos, que levantam dúvidas sobre “os resultados sociais

positivos” alcançados com a implantação da fábrica da Azaléia Nordeste no

Sudoeste baiano.

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2 VERTENTES PARA A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Notadamente, a avaliação de políticas públicas não se constitui uma tarefa

das mais simples, vez que a análise dos resultados alcançados depende dos

instrumentos e métodos adotados que refletem a parcialidade ou imparcialidade do

investigador, pois, qualquer forma de avaliação envolve necessariamente um

julgamento com base numa concepção de justiça (explícita ou implícita). Desse

modo, o esforço aqui é o de apontar vertentes e opiniões que formam o arcabouço

teórico para a análise da ação governamental (que raramente é neutra) em relação a

um programa ou política específica. Para alguns autores, como Marta Arretche, tal

imparcialidade na avaliação das políticas públicas chega a ser impossível:

Não existe possibilidade de qualquer modalidade de avaliação ou análise de políticas públicas possa ser apenas instrumental, técnica ou neutra. Nesta perspectiva, qualquer linha de abordagem das políticas públicas supõe, de parte do analista um conjunto de princípios cuja demonstração é, no limite, impossível, dado que corresponde a opções valorativas pessoais. Neste sentido, o uso adequado dos instrumentos de analise e avaliação são fundamentais para que não se confunda opções pessoais com resultados de pesquisas (ARRETCHE, 2001: 29).

Como Arrteche, diversos autores têm se debruçado sobre métodos de

análises das políticas públicas a exemplo de Muller (1998) e Frey (2000),

associando-as à análise de “estilos políticos” adotados pelos entes federativos, na

busca do equilíbrio entre os diversos interesses setoriais, na distribuição e

redistribuição de recursos e benefícios, numa sociedade cada vez mais

heterogênea, num momento histórico no qual a dimensão espacial se acha

menosprezada pela dimensão econômica (setorial), nem por isso menos importante,

onde os conflitos corporativos são mais evidentes.

A política pública no Brasil passou por transformações com o processo de

redemocratização do país, na década de 1980, após a queda do regime militar,

quando o Estado brasileiro passou a assumir um novo papel frente aos interesses

setoriais e da sociedade como um todo. O novo regime político, com a promulgação

da nova Constituição Federal (CF) de 1988, propiciou a reestruturação da autonomia

governamental nas diversas esferas de governo, com o processo de

descentralização das ações administrativas, antes concentradas na escala federal.

Assim, estados e municípios passaram a exercer novas funções, com autonomia

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política, respaldadas pela nova CF.

Souza, C.(2003:12) chama a atenção para o fato de que “[...] a literatura sobre

políticas públicas tem sido pouco traduzida no Brasil, assim como a sua aplicação

empírica ainda é relativamente escassa, inclusive nos trabalhos acadêmicos”. De

acordo com Frey (2000) estudos sobre políticas públicas no Brasil só foram

realizados mais recentemente. Em função disso, Frey (2000: 214) explica que,

nesses estudos, ainda esporádicos, “deu-se ênfase à análise das estruturas e

instituições ou à caracterização dos processos de negociação das políticas setoriais

específicas”, como, por exemplo, à política ambiental:

Deve-se atentar para o fato de que programas e políticas setoriais foram examinados com respeito a seus efeitos e que estes estudos foram, antes de mais nada, de natureza descritiva, com graus de complexidade analítica e metodológica bastante distintos” (FREY, 2000: 214-215).

Frey (2000) destaca ainda que a policy analysis (ou análise das políticas

públicas, segundo os teóricos tradicionais) carece de teorização, entretanto, como

salienta o autor, a falta de teoria é explicável se for considerado que o interesse de

conhecimento próprio da policy analysis, “é, a saber, a empiria e a prática política”.

Frey (2000: 215).

Para Frey (2000), por exemplo, a policy analysis, que abarca conceitos em inglês,

adotados pela ciência política tradicional, surge como um importante instrumento para se

conhecer o desempenho da política pública considerando aspectos como: a) polity: a

dimensão institucional da política pública; b) politics: a dimensão processual ou

processos políticos; c) policy: a dimensão material da política pública ou o reflexo

das dimensões anteriores.

A primeira é caracterizada pela natureza institucional que envolve a política

pública (as regras do jogo) delineada pelo sistema jurídico ou conjunto de normas

estabelecidas institucionalmente pelos poderes, formando a estrutura institucional do

sistema político-administrativo. A segunda se refere ao próprio jogo político,

geralmente conflituoso, no que concerne à imposição de objetivos, aos conteúdos e

às decisões de distribuição. A terceira trata da dimensão concreta da política pública,

a configuração dos programas sociais, dos problemas técnicos, ou seja, é o

programa de ação sendo aplicado após o consenso.

A teoria clássica americana tende a separar estes três níveis da policy

analysis. Entretanto, Frey (2000) adverte que essa separação só ocorre no campo

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teórico, pois na prática estão dinamicamente inter-relacionadas, caracterizando o formato

da ação governamental, moldada, ainda, pelo comportamento ou estilo político. Ou seja,

analisar a política pública em diversas escalas (nacional, local ou regional)

pressupõe conhecer profundamente a dimensão institucional - as regras do jogo que

regulam os diversos interesses em cada nível - a dimensão política que reflete a

característica da disputa - os níveis de conflito e o consenso - e a dimensão material

que envolve as ações de Governo e as respectivas implicações sobre a efetivação

da política pública - o seu conteúdo.

Posto isso, o que convém saber quando se analisa o desempenho das

políticas públicas, como defende Souza, C. (2003: 13) é “quem ganha o quê, por quê

e que diferença faz”. Para além disso, considerando o objeto desse estudo, a

avaliação do desempenho das políticas públicas do Governo da Bahia, com

implantação do poló calçadista na região Sudoeste, requer a identificação não

somente dos ganhos, mas também das perdas, suas respectivas causas, e que

mudanças concretas trouxeram para o conjunto da sociedade.

Buscando aprofundar a questão do estudo das políticas públicas, Frey levanta

as contribuições dadas pelas abordagens do “neo-institucionalismo” e da análise dos

estilos políticos. Na visão de Frey (2000), a influência herdada da policy analysis

deve ser reavaliada pois:

No que diz respeito à ‘policy analysis’, nos países em desenvolvimento [como o Brasil] é preciso levar em consideração o fato de que o instrumento analítico conceitual (deficitário) foi elaborado nos países industrializados e, portanto, é ajustado às particularidades das democracias mais consolidadas do Ocidente (FREY, 2000: 215. Acréscimo nosso).

Sendo assim, entende-se que a policy analysis clássica decorre de estudos

que foram desenvolvidos em países com sistemas políticos mais estáveis, em

democracias e regimes mais consolidados. Países como os da América Latina, que

passaram por mudanças sucessivas de regimes políticos, como Chile, Argentina e

Brasil, principalmente nas últimas três décadas, necessitam de uma abordagem

mais ampliada sobre a natureza institucional e o seu papel para o desempenho das

políticas públicas.

Se por um lado, alguns autores defendem que as condições institucionais

favorecem a estabilidade dos sistemas políticos, necessário se faz observar que

nem sempre garantem o sucesso das políticas desenvolvidas pelo Governo. O

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próprio Frey (2000: 230), ao comentar sobre a policy analysis, apontou nela o que

considerou ser “[...] desleixo e menosprezo com elementos estruturais da política

[...]”, imprescindíveis na avaliação das políticas públicas, advertindo que um fator

contributivo para esse “desleixo” se deve à natureza tradicionalmente quantitativa

dos estudos desenvolvidos, somando-se a esse aspecto, o fato desses estudos

terem sido feitos em países com “sistemas políticos institucionalmente estáveis”, o

que apontaria sua imprecisão quando aplicada em países cujas instituições

democráticas ainda estão se consolidando.

A supervalorização das instituições como geradoras de estabilidade de

sistemas políticos tem sido um dos pontos principais da análise feita por Frey (2000).

Então as denominações como “instituições estáveis ou frágeis” teriam um papel

fundamental para o sucesso ou fracasso das políticas adotadas? Tudo leva a crer

que sim. Se apenas uma boa instituição bastasse, seria possível, mediante um

“desenho institucional”, ou políticas estruturadoras de sistema, por “ordem no caos”

sóciopolítico, como se considera a situação dos países em desenvolvimento e que

ainda convivem com os reflexos da redemocratização. Ocorre que, as instituições

podem, por seu duplo caráter, garantir ou não a estabilidade ou bom desempenho

governamental. Sobre esse ponto Frei (2000) comenta:

Boa parte das abordagens teóricos institucionais salienta a função estabilizadora de instituições para sistemas políticos-administrativos. As teorias institucionais como as de Parson atribuem às instituições um significado estratégico e uma função relacional, regulatória e cultural, uma vez que as instituições ordenam as redes de posições sociais, regulam a distribuição de gratificações e posições sociais pela definição de metas e da determinação e destinação de recursos, e finalmente, sendo elas intermediadas por valores, representam a índole espiritual da sociedade como um todo. Essa posição que considera instituições principalmente positivas por garantirem a estabilidade de sistemas [...], no meu entender, deve ser revista e relativizada (FREY, 2000: 230-231).

Ora, o que Frey (2000) traz à luz é que as instituições não deixam de ter sua

importância para o desempenho das políticas, mas, para além de servir às

necessidades humanas e para a estruturação das relações sociais, as instituições

também determinam as posições de poder na sociedade, e, por conseqüência, as

desigualdades. Seriam, portanto, ao mesmo tempo, regras estabelecidas e motivo

de conflitos intersetoriais.

Frey (2000), ao citar O’Donnell (1991), enfatiza que as instituições, a

depender da sua natureza, também podem eliminar as possibilidades de ação, ao

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tempo que podem abrir possibilidades sociais de liberdade1. Com esse duplo

caráter, “a institucionalização pode implicar, portanto, custos graves, pois ela não

representa somente a exclusão de muitas vozes, mas também o pesadelo da

burocratização e das contrariedades que essa acarreta consigo” (FREY, 2000: 239).

O autor salienta:

Instituições não são somente um reflexo de necessidades individuais e sociais. Instituições políticas são padrões regularizados de interação, conhecidos, praticados e em geral reconhecidos e aceitos pelos atores sociais, se bem que não necessariamente por eles aprovados. Logo, são produtos de processos políticos de negociação antecedentes, refletem relações de poder existentes e podem ter efeitos decisivos para o processo político e seus resultados materiais (PRITTWITZ, 1994, apud FREY, 2000: 239).

Em suma, poder-se-ia dizer que as instituições são importantes para

determinar o processo político e a ação governamental, mas trazem em seu bojo

forte contradição na medida que a sua natureza regulatória pode influenciar os

sistemas, garantindo ou não a estabilidade. Ao mesmo tempo em que as instituições

regulam as relações entre os agentes sociais e os setores que estes representam,

elas não estão totalmente imunes a ação social, aos processos históricos e arranjos

políticos. Os golpes militares na América Latina, com implantação de regimes

ditatoriais nas décadas de 1950, 1960 e 1970, é uma amostra de como as

instituições podem ser afetadas pelos agentes sociais ligados a setores específicos.

D’Araújo (2003:14-15) amplia o caráter polêmico e controverso das

instituições ao concluir que “[...] instituições por mais bem concebidas e planejadas

que sejam, não bastam para produzir a boa sociedade. Ou seja, boas sociedades

ajudam a produzir boas instituições”, contrariando a corrente institucionalista que

acredita que “a boa sociedade e a boa democracia seriam resultados de instituições

e regras talhadas com minúncia e acuidade” (D’ARAÚJO, 2003:15).

Muller (1998) contribui com o debate sobre a policy analysis indo além da

abordagem clássica ao trazer para o debate as discussões na França do século XX,

sobre as relações que envolvem interesses da sociedade em geral e de setores

específicos, apresentando uma definição de políticas públicas como sendo “[...] um

1 Basta uma rápida observação sobre a história política da América Latina, nas quatro últimas décadas, para se constatar a fragilidade das instituições moldadas por interesses de grupos políticos e econômicos, favorecendo as mudanças nos regimes políticos. Assim se deu a alternância dos estados democráticos para as ditaduras, nas quais as instituições passaram por alterações abruptas, comprometendo a liberdade social e política.

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processo de mediação social, na medida que o objeto de cada política pública é se

encarregar dos desajustes que podem intervir entre um setor e outros setores, ou

ainda entre um setor e a sociedade global” (MULLER,1998:15). Ou seja, para o autor

o conceito de política pública “é indissociável do conceito de setorialização na

medida em que se parte de uma representação da sociedade como conjunto de

setores em que se desenvolveu a gestão pública”, sob uma determinada estrutura

institucional - polity.

Desse modo, o autor coloca no centro desse debate novos objetos de análise

como o território e o setor, não descartando, contudo, a discussão clássica entre a

policy (uma política pública como programa de ação) e a politics (a política como

atividade geral). Justificando essa opção, Muller (1998) afirma que a análise das

políticas públicas ainda

[...] se situa no cruzamento de saberes já estabelecidos. Aqueles a que ela toma emprestado os seus principais conceitos. É assim que o direito, a sociologia, a psicologia ou a economia são solicitados. Mas, enquanto ciência do Estado em ação, ela é também o braço mais recente da ciência política (MULLER, 1998: 1).

Para Muller (1998:4) “as sociedades industriais contemporâneas são

fundamentalmente sociedades reguladas”. Partindo desse pressuposto de Muller

(1998) é possível afirmar que, dentre tantas conceituações de políticas públicas, é

razoável entendê-la como o resultado de uma estrutura institucional que norteia a

ação governamental. Para ele a análise das políticas públicas tende a compreender

a ação do Governo, e questiona quais transformações na sociedade puderam

produzir o que ele chama de “explosão de regulamentações estatais”, as quais a

análise das políticas públicas procura colocar em evidência.

Nesse aspecto as abordagens de Muller (1998) se combinam com a de Frey

(2000), uma vez que ambos entendem que as políticas públicas representam um

conjunto de ações que são desenvolvidas em forma de projetos e programas

específicos, implantados e executados por agentes sociais, decorrendo, portanto, de

disputas políticas e das relações de poder na elaboração de prioridades eleitas pelos

diversos setores. É assim que, para Muller (1998), as políticas públicas são

elaboradas para equilibrar ou mediar os conflitos corporativos.

Para Muller (1998) as sociedades tradicionais, organizadas sob a lógica do

território, entendido como um sistema que encontra em si mesmo os meios para a

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sua reprodução e formação da identidade fundamental dos indivíduos, encontra-se

em declínio, e recua, não necessariamente desaparece, na medida que a

setorialidade avança.

É neste novo cenário que as políticas públicas ganham relevância. Muller

(1998) recorre aos estudos sociológicos de Durkheim para explicar o modo como se

deu a evolução da sociedade, esquematizando-a em três processos que ele entende

como fundamentais. Primeiro, a explosão das estruturas tradicionais baseadas na

lógica da territorialidade. Com base nisso, o autor defende que, do ponto de vista da

regulação social do conjunto, o “prevalecer da lógica da territorialidade tem uma

conseqüência fundamental: as sociedades tradicionais estão sempre ameaçadas de

explodir” (MULLER,1998:11), devido ao seu caráter auto-suficiente. No

reconhecimento desse processo a “explosão” das estruturas tradicionais que

afetaram principalmente o universo familiar, entendido aqui como espaço de

atividade econômica, é descrita pelo autor nessa primeira etapa:

Doravante a célula familiar vai se limitar mais e mais à esfera da reprodução e não do trabalho, logo mais identificada àquela do lazer e do consumo. As atividades de reprodução, em contrapartida, vão de desenvolver dentro do universo profissional” (MULLER, 1998: 11).

Do universo profissional tem-se o segundo processo, pois é justamente na

elaboração desses novos profissionais, para atender a divisão social e técnica do

trabalho, que se pode enxergar o embrião da setorialidade. Neste aspecto Muller

(2000:11) enfatiza que “um movimento de separação das atividades econômicas sob

a forma de papéis profissionais mais e mais numerosos, mais e mais especializados

e cujo acesso vai depender mais e mais de uma formação específica” desencadeia

as mudanças importantes em direção à lógica setorial, que se estrutura em função

do terceiro processo que se caracteriza pela

[...] emergência de novos modelos de reagrupamento desses papéis profissionais, sob a forma de novas lógicas de reunião da divisão do trabalho, não mais fundadas sobre o território, que perde sua pertinência, mas por vias exclusivamente profissionais (MULLER, 1998: 12).

É nessa linha que o autor passa a discutir o conceito de neocorporativismo,

próprio da setorialização, no qual a politics se sobressai como objeto de estudo, em

função das estratégias adotadas pelos diversos grupos (e profissionais, doravante

denominados de agentes sociais, mediadores) visando o acesso aos recursos

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públicos. A principal utilidade dessa concepção, é, para Muller (1998)

[...] de colocar assento sobre o crescente papel do Estado – e então dos processos de elaboração das políticas públicas – na gênese e na definição dos atores sociais. Com efeito, o conceito de corporativismo coloca em evidência dois aspectos fundamentais que manifestam o crescente papel das políticas públicas na mediação sócial: a) o acesso aos lugares de elaboração das políticas públicas é o mais e mais estratégico para os diferentes grupos de interesse a fim de obter do Estado os recursos regulamentares, financeiros e simbólicos. [...] b) o melhor meio de alcançar esses objetivos é de obter do Estado, de fato ou de direito, um monopólio de representação junto às instâncias administrativas competentes ao benefício de uma das organizações envolvidas (MULLER, 1998:19).

Serve como exemplo do neocorporativismo, na sociedade brasileira, as

disputas temáticas e por recursos públicos travadas ao nível do Congresso Nacional,

entre os políticos representantes da bancada ruralista (UDR), na defesa da produção

em larga escala (de grãos ou carnes) para atender à exportação, e aqueles que

defendem maiores investimentos na agricultura familiar, como estratégia de

redistribuição de renda e diminuição da pobreza. Poder-se-ia pensar tratar-se de um

mesmo setor (agrícola), mas as motivações e características de cada grupo apontam

para ações setoriais distintas. Desse modo, é possível ver aqui a força do

neocorporativismo na medida que ocorre uma espécie de setorialização de um

mesmo setor agrícola, cujas vilosidades são caracterizadas por uma trajetória e luta

política de agentes sociais e totalmente diferentes.

Outro exemplo seria a disputa entre recursos a serem aplicados em

segurança pública, na educação e na saúde. Não raro os representantes do setor de

segurança defendem a necessidade de investimentos em equipamentos (construção

de cadeias, aquisição de armas modernas, veículos), ao passo que outros agentes

sociais ligados ao setor de educação, defendem maior volume de recursos, para

construção de escolas e aprimoramento de cursos profissionalizantes, ampliação do

acesso e da qualidade do ensino público, sob a lógica de que investir em educação

é uma estratégia eficaz na redução da taxa de criminalidade no país. Os agentes

sociais que representam o setor saúde, por sua vez, já esboçam claramente o

impacto financeiro sobre a sua pasta, decorrente das internações hospitalares por

causas externas, principalmente a violência urbana.

Observa-se claramente que no neocorporativismo, descrito por Muller (1998)

cada setor mantém um bom nível de argumentação na busca por recursos públicos

para investimentos em suas pastas específicas, porém, para quem age como

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mediador na elaboração e execução das políticas públicas, não é coerente

desconsiderar as interdependências setoriais, e a necessidade de manutenção da

equidade no investimento a ser feito, sob pena de favorecimento e fortalecimento de

uns em detrimento de outros. Em face disso, a disputa por “cadeiras” nos espaços

decisórios apresenta-se como ação definidora da aquisição de recursos, mas, faz-se

necessária a noção da equidade social como um todo. Nesse aspecto não poderá

ganhar um setor e perder a sociedade, de modo que as instituições que moldam as

políticas públicas desempenham papel importante, pois devem garantir acima de

tudo o bem comum, a partir de um “referencial global”, que dimensione os limites do

corporativismo setorial, como defende Muller (1998).

Embora as políticas públicas possam rebater diretamente sobre a base

espacial, do ponto de vista socioeconômico e cultural, percebe-se claramente que o

eixo do debate para os neocorporativistas está fixado no papel dos setores que

disputam os benefícios disponibilizados pelo Governo.

Embora o estudo trate sobre a política pública de desenvolvimento regional

adotada pelo Governo da Bahia, com ênfase na implantação do pólo de calçados, a

abordagem de Muller (1998) sobre a setorialização, no contexto francês, nos

permite, por conta das características da globalização, identificar a importância que

as políticas públicas passaram a ter para os mediadores dos conflitos setoriais na

Bahia.

Desse modo, caberá ao Governo baiano, visando conter os desajustes, ou a

defasagem entre setores específicos, definir um “referencial global”, que sirva de

aporte à manutenção dos interesses sociais mais amplos, na medida em que cada

setor irá negociar seus próprios interesses, como explica Muller, ao se referir ao

modelo francês de corporativismo:

Isso significa que a partir do momento que cada grupo procura obter a exclusividade do diálogo com os responsáveis administrativos envolvidos pelo setor, a manutenção de um mínimo de coerência da ação do Estado repousará essencialmente sobre a capacidade da elite administrativa de elaborar o referencial global. Ora, é precisamente esse modelo de articulação dos interesses sociais que hoje mostra os seus limites (MULLER, 1998: 20).

Muller (1998) evidencia então o modo como o Governo tenta “estabilizar” o

ambiente social de uma política pública, conferindo um eminente papel aos agentes

sociais escolhidos para fazer a intermediação. Por outro lado, ao discutir o

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corporativismo característico da lógica setorial, não a elege como solução acabada,

ao contrário, sinaliza fragilidades desse processo, que, como ele mesmo afirma,

“hoje mostra seus limites”. Isso se deve ao fato de que as corporações, em

separado, muitas vezes perdem de vista o objetivo social comum, não atendem aos

anseios da sociedade como um todo.

É nesse ponto que a política pública deverá voltar-se para as reivindicações

setoriais, sem perder de vista, em nome da “barganha” (politics) que a caracteriza,

os interesses maiores da sociedade. Pierre Muller afirma ainda que, em função

disso,

[...] constata-se uma crise na legitimidade dos corporativismos setoriais para “apontar o sentido” e para representar os cidadãos. É então a existência do indispensável continuum entre os cidadãos e o Estado que está à espera do enfraquecimento dos agrupamentos profissionais setoriais que desempenham cada vez menos o seu papel de mediação (MULLER, 1998: 20).

Se tais agrupamentos perderam a capacidade de mediar em favorde um

interesse mais amplo, o que se pode obter é uma exacerbação da concorrência e da

competitividade como fins, e não como meios para garantir o atendimento das

necessidades básicas de uma população num dado lugar. Aqui, a análise do

potencial endógeno das localidades ganha força. O município passa a desempenhar

um papel estratégico para a eficiência da política pública.

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3 O PAPEL DO GOVERNO DO ESTADO NA ATRAÇÃO DE INVESTIMENTOS: O JOGO DA GUERRA FISCAL

As políticas públicas empreendidas pelo Governo da Bahia, na última década,

têm propiciado o crescimento econômico da Região Econômica Sudoeste, segundo

o relatório da Secretaria de Indústria, Comércio e Mineração (SICM) de 20062.

Dentre as 62 empresas do ramo de calçados instaladas no estado, a partir de 1996,

a Azaléia Nordeste, localizada no município de Itapetinga, com 11 filiais espalhadas

em municípios de seu entorno, se destaca.

Em 1996, quando a Azaléia Nordeste foi implantada na região, foram gerados

2.700 empregos (BAHIA, 2000) e já se aproxima dos 12.000, em 2007, segundo

informações do “Sindicato de Verdade”. Considerando-se atualmente o salário médio

de R$ 400,00 por trabalhador da Azaléia Nordeste, pode-se dizer que a empresa

proporcionou um incremento econômico na região em torno de R$ 4.800.000

milhões/mês. Somente no município de Itapetinga, “a proxy do PIB municipal [...] em

1996 [...] foi de cerca de R$ 100.393 mil, e somente a Azaléia acrescenta à

economia local cerca de 11.930 mil, o que representa 12% da renda total deste

município”(BAHIA, 2000:79). De acordo com a mesma fonte o pólo calçadista da

região Sudoeste foi um setor que contribuiu significativamente para o aumento do

PIB estadual, que cresceu o dobro do PIB nacional em 2003, 2004 e 2005 (BAHIA,

2006). De acordo com informações da SICM, atualmente

A Bahia possui uma sólida política de incentivos, o que consolida sua produção e fomenta a atração de novos investimentos. A manutenção desta política é viabilizada por dois fatores: situação econômica confortável e controle sobre sua dívida pública.

Esta capacidade de atração de empresas ou investimentos por meio de

incentivos fiscais e creditícios, vinculados principalmente ao Imposto Sobre

Circulação de Mercadorias (ICMS), por meio do crédito presumido3, caracteriza a

adesão efetiva do Governo baiano à política da guerra fiscal, que Dulci (2002: 95)

descreve como sendo uma das questões mais atuais em pauta no atual cenário

2 <http//www.bahiainvest.com.br> Em 20.05.2006. 3 O crédito presumido é uma espécie de incentivo fiscal oferecido pelo Governo a setores escolhidos (que o Governo reconhece como importante para os objetivos de seus programas de desenvolvi-mento econômico) que reduz substancialmente o ICMS a ser pago, ou seja, o Governo concede um crédito “presumido” de até 99% e a empresa paga apenas 1% do imposto devido (<http//www.bahia invest.com.br>).

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político brasileiro entendendo-a como parte de “[...] um jogo de ações e reações

travado entre Governos estaduais (e adicionalmente entre governos municipais) com

o intuito de atrair investimentos privados ou de retê-los em seus territórios”.

Varsano (1997), ao analisar a guerra fiscal, a descreve mais enfaticamente:

A guerra fiscal é, como o próprio nome indica, uma situação de conflito na Federação. O ente federado que ganha — quando de fato, existe algum ganho — impõe, na maioria dos casos, uma perda a algum ou alguns dos demais, posto que a guerra raramente é um jogo de soma positiva. (VARSANO, 1997: 6)

Para o Governo baiano, o crescimento econômico fomentado pela atração do

capital industrial oriundo principalmente das regiões Sul e Sudeste do Brasil, com

base nos mecanismos de “guerra fiscal”, tem lhe permitido realizar investimentos nas

áreas de saneamento, transporte e infra-estrutura em grande parte do estado da

Bahia, visando contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população

local/regional, sobretudo com a geração de postos de trabalho que absorvem grande

parte da força de trabalho disponível nos municípios.

Convém, aqui, rever a origem da guerra fiscal no Brasil e o papel do Governo

neste contexto.

Dulci (2002: 96), ao explicar o processo histórico da prática da “guerra fiscal”

a interpreta como um indício da instabilidade “mais ou menos comum aos estados

federados”, sendo uma conseqüência da dificuldade de o Governo federal equilibrar

interesses regionais, em face de uma concentração industrial no eixo Rio/São Paulo,

que “abafou aos poucos o parque industrial preexistente em diversas partes do

país”, notadamente em função do complexo cafeeiro.

Cronologicamente a “guerra fiscal” tem suas raízes na década 1950, quando

o Governo federal, visando promover a industrialização e o desenvolvimento

regional, priorizou insenções, reduções e tarifas tributárias diferenciadas. O Governo

mantinha, entretanto, um maior controle do papel dos Governos estaduais quanto à

concessão de benefícios fiscais, “induzindo o estabelecimento de convênios entre os

estados pertencentes a uma mesma região geoeconômica (BAHIA, 2000: 27).

Reforçando a afirmação de Dulci (2002), o relatório da Secretaria do

Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia (Seplan), publicado em

2000, que trata da implantação da indústria calçadista na Bahia, evidencia o que

ocorre nas décadas de 1960 e 1970:

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No período compreendido entre os meados dos anos 60 e 70, refletindo o crescimento desequilibrado do País, deu-se início ao processo de disputa estadual pelo desenvolvimento. Prevendo ações isoladas e desordenadas entre os Estados, o governo Federal estabeleceu um padrão de regulação sobre a competência estadual do ICM(S), através da celebração de convênios regionais, de modo que os Estados pertencentes a uma mesma região definissem tanto a alíquota do imposto, quando as regras e os limites para a prática de insenções (BAHIA, 2000: 27).

Em 1975, com a criação do Conselho Nacional de Política Fazendária

(Confaz), por meio da Lei Complementar (LC) nº 24, de 07 de janeiro de 1975, o

Governo federal limitou a competência dos Governos estaduais e municipais em

conceder, com base em seus interesses próprios, benefícios fiscais, principalmente

no âmbito do antigo ICM, objetivando manter o equilíbrio federativo. Mas a CF de

1988, ao ampliar a autonomia política e administrativa dos municípios, possibilitou a

descentralização fiscal na cobrança dos tributos próprios de sua economia e

elaboração de seus orçamentos.

Este fato, na prática, representou maior capacidade de arrecadação dos

Governos dos estados, melhorando as receitas o que lhes permitiu fazer concessões

fiscais sem prejuízos para o equilíbrio financeiro da máquina pública. Entretanto, tais

medidas não foram suficientes para garantir a atração dos investimentos privados,

levando os Governos estaduais a radicalizar nas concessões fiscais na década de

1990. Para atrair novos investimentos econômicos, os Governos dos estados

lançaram mão, inclusive, da “renúncia fiscal”, como se constata no relatório da

SICM:

[...] Com a intenção de atrair as oportunidades geradas pelo movimento mundial do capital produtivo, muitos estados brasileiros alteraram a natureza dos instrumentos de captação de investimento, sobretudo os mecanismos relacionados aos orçamentos estaduais, como a renúncia fiscal. Como resultado, as recentes políticas estaduais de desenvolvimento industrial, cuja dimensão é dada pela “guerra fiscal”, pressupõe a capacidade de induzir novos investimentos, bem como determinar a localização espacial (BAHIA, 2000: 29).

Pode-se afirmar que a “guerra fiscal” ocorre influenciada pela lógica da

reprodução do capital baseada na relação centro-periferia4, pela qual as grandes

4 Em relação à “guerra fiscal”, Dulci (2002: 98) esclarece que, embora esse processo se aproxime do modelo centro-periferia, no quadro brasileiro, especificamente, altamente heterogêneo, não seria aconselhável identificar áreas muito diversas sob o rótulo indistinto de ‘periferia’, pois, para o autor, “existem diferenças relevantes entre grandes regiões, entre estados, e até dentro de cada estado, quanto ao grau de desenvolvimento (ou de atraso relativo), quanto ao potencial produtivo e quanto às condições políticas para se aproveitar esse potencial”. Para o autor, considerar essas diferenças é fundamental para avaliação adequada de como o processo de desenvolvimento desigual levou a

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empresas buscam as regiões periféricas do ponto de vista econômico para

instalação de seus empreendimentos, atraídas por uma série de benefícios de

ordem fiscal, das externalidades, da existência de uma numerosa força de trabalho

de menor custo etc. Portanto, vê-se que a “guerra fiscal” é influenciada fortemente

pelos processos de reprodução do capital tal como acontece no plano internacional,

na medida em que as disputas por capitais externos forçam as crescentes

concessões dos Governos, gerando uma espécie de canibalismo econômico e

político entre estas distintas escalas de Governo.

Cabe observar que, para que a “guerra fiscal” ocorra é preciso um ambiente

propício, do ponto de vista político-institucional. No Brasil, em particular, alguns

aspectos históricos e institucionais precisam ser considerados já que favorecem a

“guerra fiscal”. As ações empreendidas pelas elites política e econômica brasileira na

busca por geração e acumulação de riqueza historicamente têm criado e reforçado

as desigualdades regionais. A “guerra fiscal” não é, portanto, exclusivamente um

resultado da estratégia de empresas que buscam reduzir os custos de produção ao

instalar-se em países ou regiões periféricas, mas sim, o reflexo de múltiplos fatores,

principalmente aqueles inerentes aos sistemas políticos e às instituições que agem

de maneira a perpetuar as diferenças regionais. Dulci (2002) salienta que:

O conflito fiscal entre os estados, em seu formato contemporâneo, tem causas bem definidas. É o efeito de certas condições políticas e econômicas que emergiram, uma após outra, desde meados da década de 80, cuja interação resultou potencialmente crítica. Houve, em primeiro lugar, o processo de desmontagem do regime autoritário de 1964, culminando com a Constituição de 1988. Entre os elementos da referida desmontagem, ocupava lugar de destaque um impulso muito claro de descentralização política institucional, a traduzir-se em deslocamento de poder em favor de estados e municípios (DULCI, 2002: 96).

Embora tal conflito transpareça ausência de legislação que regule as relações

tributárias, envolvendo principalmente o ICMS, Varsano (1997: 6) chama a atenção

para a existência da LC nº 24, de 7 de janeiro de 1975, explicando que a “guerra

fiscal” se trava à revelia desta legislação, que, em princípio, veda as concessões e

isenções e outros incentivos relacionados ao ICMS, “salvo quando previstas em

convênios celebrados em reuniões do Confaz, que congrega todos os estados e o

Distrito Federal”. Somando-se a isso, Dulci (2002) enfatiza novamente a importância

da descentralização política e administrativa no Brasil, principalmente o seu reflexo esforços de recuperação econômica por meio de mecanismos institucionais, notadamente na área fiscal.

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sobre o aspecto tributário:

É inegável o sentido democrático da descentralização estabelecida pela Carta de 1988; porém ela estimulou uma espécie de anomia no que diz respeito ao quadro tributário da federação, ao atribuir a cada estado o poder de fixar autonomamente as alíquotas do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias – ICMS – imposto que constitui a base da receita estadual (DULCI, 2002: 96).

Vê-se que, do ponto de vista institucional, a própria CF abre espaço para a

“guerra fiscal” e possibilita as contradições, principalmente em relação à LC nº 24 de

1975, abrindo caminho para a disputa entre os entes federados no Brasil levando o

autor a concluir que “estava preparado [em 1998] o alicerce jurídico para as

escaramuças da guerra fiscal”.

Sem dúvida, a “guerra fiscal” não é estimulada apenas por fatores externos à

economia nacional reforçada pela globalização da economia. É preciso considerar

que internamente, a própria história política e econômica exerce papel

preponderante na efetivação desse modelo de disputa política e econômica. Dessa

maneira, a “guerra fiscal” parece não ser somente o resultado de uma imposição

externa, mas uma conseqüência também da permissividade institucional baseada no

pacto federativo envolvendo estados e municípios.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)5, lançado pelo Governo

federal em 2007, é um exemplo dessa permissividade nacional e de algum modo

estimulará a competitividades não somente entre os setores da economia, mas

também entre os territórios, dando uma nova dinâmca à “guerra fiscal”. A

implementação do programa de infra-estrutura, principalmente de energia elétrica,

trará para a “arena” não apenas os estados mais também os municípios com maior

potencial nessa área, na perspectiva de atração/relocalização de empresas.

Assim o PAC é conceituado pelo Governo federal:

O PAC é mais que um programa de expansão do crescimento. Ele é um novo conceito de investimento em infra-estrutura que, aliado a medidas econômicas, vai estimular os setores produtivos e, ao mesmo tempo, levar benefícios sociais para todas as regiões do país 6.

Portanto, o estímulo ao conflito setorial, por conta da política pública, está

5 O PAC tem como um dos pilares, a desoneração de tributos para incentivar mais investimentos no Brasil. Pelo PAC está prevista a redução de tributos para os setores de semicondutores, de equipamentos aplicados à TV digital, de microcomputadores, de insumos e serviços usados em obras de infra-estrutura, e de perfis de aço. 6 disponível em: <http://www.brasil.gov.br/pac/>

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posto sob regras institucionais, algumas já aprovadas pelo Congresso Nacional

(CN), inclusive criando novos mediadores no seio do Estado, a exemplo das

agências reguladoras, outras ainda em tramitação, que buscam mediar os interesses

entre os setores na disputa pelos recursos disponibilizados para diversas áreas

principalmente para a infra-estrutura.

Como todo tipo de guerra exige guerreiros, a “guerra fiscal” exige que as

partes (ou agentes) estejam dispostas a lutar, tanto para conquistar, quanto para

não perder o que já conquistou, o que implica o recurso de várias estratégias e

acordos ao nível da política nacional. Porém, é possível afirmar que em toda

competição executada em condições desiguais, haverá sempre quem perca mais do

que ganhe, do ponto de vista sócio-econômico. Entra aí, o desequilíbrio federativo,

nesse jogo de “cobertor curto”, principalmente para as regiões mais pobres cujos

estados tem menor capacidade de barganha, porque, como salienta (DINIZ, 2000:

343, apud DULCI, 2002: 97): “Nessa guerra, ganham os estados mais

desenvolvidos, com melhores condições locacionais e maior cacife financeiro e

político. Isso seguramente agravará as desigualdades regionais”.

Obviamente, trata-se aqui de ganhos econômicos, não necessariamente

sociais.7, vez que a geração de emprego e renda, proporcionada pelas empresas,

nem sempre se configuram como ganho social. O impacto negativo do processo

produtivo e da organização do trabalho na indústria de calçados Azaléia Nordeste

implantada na região Sudoeste da Bahia, na qualidade de vida da população

trabalhadora, como se verá mais adiante, é exemplo disso.

O mundo globalizado, através da informação e comunicação, tem se tornado

um esteio para os conflitos entre setores econômicos. Aqui abre-se um curto

parêntese para uma abordagem um pouco diferenciada da questão. O editor da

Martin Claret (2001), ao prefaciar a obra “A Arte da Guerra”, destaca que os

ensinamentos do general Sun Tzu têm extrapolado, nas últimas décadas, os campos

de batalha. Ele mostra que hoje, “as estratégias militares do guerreiro são utilizadas

como estratégias empresariais no mundo corporativo”. Isso nos revela a dimensão

que tomou a luta pelo lucro e busca de espaços na disputa financeira internacional,

7 “Ganhar” e “perder” com a “guerra fiscal” se restringe a capacidade de um Governo atrair ou não grandes empresas, para a geração de emprego e renda. Nesse contexto, a Bahia “ganhou” do Rio Grande do Sul quando conquistou a Ford. Outro ponto é a questão política, o ganho político. Se a isenção de impostos é perda de recursos para o governo, a geração de postos de trabalho é ganho eleitoral. É a política do mais forte (politicamente falando). Com relação aos salários, empresas do Sul pagam menores salários à força de trabalho no Nordeste, em média, 40% a menos.

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e em que estágio se encontra o Governo brasileiro e o Governo baiano no campo da

competitividade visando o ganho econômico de setores numa relação com o mundo

globalizado. Assim se posiciona o editor da Martin Claret:

O livro a Arte da Guerra há muito tempo vem sendo utilizado como uma metáfora do campo de batalha em que se transformou a concorrência entre empresas — grandes ou pequenas. Economistas e analistas estratégicos constantemente tem observado assemelhar-se, mais e mais, o mercado globalizado contemporâneo, terrivelmente competitivo, com o período dos Estados Guerreiros (CLARET,in: TZU, 2001: 19).

Apenas como rápida ilustração, no livro “A Arte da Guerra”, encontramos no

capítulo dos “Estudos Preliminares”, a seguinte orientação de Tzu (2001) sobre a

guerra, que bem analisada em suas devidas proporções, pode muito bem servir para

a compreensão (alegórica) da guerra fiscal que vivenciamos na Bahia:

A guerra é uma questão vital para o Estado. Por ser o campo onde se decidem a vida e a morte, o caminho para a sobrevivência ou para a ruína, torna-se de suma importância estudá-la com muito cuidado em todos os seus detalhes (TZU, 2001: 23).

Sem dúvida, na atualidade o comportamento dos Governos estaduais no

Brasil tem demonstrado um paradoxo quando os novos gestores públicos priorizam

a modernização econômica pela atração de indústrias (através de velhas táticas de

guerra) como questão de “vida ou morte”. Nesse ínterim, temos a possibilidade das

perdas econômicas e políticas, como algo a ser evitado, vez que o Estado pós-

moderno deve ser sempre eficiente para garantir o desenvolvimento econômico

(mesmo que enfrente riscos a médio e longo prazo de ver desabar suas estratégias,

comprometendo o seu desempenho no atendimento às necessidades sociais mais

prementes), pois precisa atender de forma imediata às expectativas da sociedade no

campo econômico, e, porque não dizer, eleitoral. Não à toa escuta-se criticas de

cidadãos sobre planos de Governo (federal, estadual e municipal), que, por vezes, é

motivado mais pelo calendário político-eleitoral que pela necessidade social.

No caso brasileiro, a “guerra fiscal” promove ainda a migração de unidades de

produção de empresas das regiões mais industrializadas do país (Sudeste e Sul)

para a Amazônia e o Nordeste, a exemplo das indústrias de calçados principalmente

para a Bahia e o Ceará em busca de privilégios fiscais, concessão de infra-estrutura,

força de trabalho barata e o baixo nível de organização política, etc. A Bahia adere à

“guerra fiscal” visando atrair investimentos de grandes empresas, atendendo a um

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modelo de produção de bens finais e de interiorização da indústria.

Deve ser considerado que os conflitos entre os estados brasileiros ganharam

força pela “omissão” da esfera federal. Sobre isso, Dulci argumenta que, na prática,

a “[...] progressiva retirada do governo federal das ações discricionárias não levou à

saudável hegemonia do mercado, como muitos esperavam, mas criou um vazio de

políticas rapidamente preenchido pela ação dos grupos regionais” (PRADO;

CAVALCANTI, 2000: 113 apud DULCI, 2002: 96). Seguindo a orientação neoliberal,

o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) optou pelo abandono de políticas e

de instrumentos de coordenação inter-regional, ao que Dulci (2002) qualificou de

“estratégia mais ampla de mudança do papel do poder diretivo central sobre a

economia”. Segundo ele:

As agências federais de desenvolvimento regional, há muito esvaziadas, foram finalmente extintas em 2001. Tal setor da ação governamental foi, esse sim, descentralizado de bom grado, deixado praticamente a cargo das administrações subnacionais (PRADO; CAVALCANTI apud DULCI, 2002: 96).

Para completar essa explicação é oportuno ressaltar o êxito obtido pelo

Governo baiano em atrair empreendimentos do ramo de calçados, para onde veio

parte da indústria de calçados do Rio Grande do Sul, na década de 1990. Os

benefícios fiscais foram sumamente importantes para atrair as empresas, pois

As vantagens auferidas foram extraordinárias: isenção quase total de ICMS, incentivos fiscais federais (via SUDENE), oferta de infra-estrutura e construção da fábrica, sem contar com o baixo custo dos salários e a frágil organização sindical dos trabalhadores locais. São experiências de industrialização que retratam notavelmente a heterogeneidade do Brasil –afinal a razão mais profunda da guerra fiscal (DULCI, 2002: 104).

Nesse conflito, as estratégias giram em torno das manobras tributária e fiscal.

Varsano (2007) ao avaliar quem ganha e quem perde com a “guerra fiscal”, levantou

importante questão sobre a possibilidade concreta de os estados perderem com as

concessões feitas às empresas, levando em conta o conjunto de gastos e incentivos

propiciados pelos entes federativos. O estudo sobre o papel do ICMS levou-o a

concluir que as perdas tendem a ser, em longo prazo, maiores que os ganhos, na

medida que abrindo concessões dessa natureza os Governos perdem capacidade

de investimento em diversos setores, como educação, saúde e infra-estrutura

urbana dentre outros.

O autor demonstra, desse modo, que falta aos Governos dos estados a

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capacidade de preservar, na “guerra fiscal”, o equilíbrio setorial. Isso ocorre na

medida em que, visando projeção econômica da região menos industrializada, e,

notadamente a sua projeção política eleitoral, como mencionado no caso específico

da Bahia, os Governos deixam escapar possibilidades de fortalecimento do potencial

endógeno das regiões e municípios onde as empresas se instalam. Ao longo do

tempo, a “guerra fiscal”, em função da exacerbação da competição, tende a gerar

um equilíbrio dos incentivos ficais na medida que os Governos em, “cascata”, vão

aderindo à competição, e isso

[...] transforma os incentivos em meras renúncias de arrecadação, que não tem qualquer efeito estimulador. Em face da redução generalizada do peso da tributação, as empresas passam a escolher sua localização em função da qualidade da infra-estrutura oferecida. Evidentemente, a guerra fiscal é inimiga tanto da política de desenvolvimento regional quanto da desconcentração industrial (VARSANO, 1997: 14).

Ora, se para o autor as empresas, no futuro, passam a eleger sua localização

pela infra-estrutura, e não mais pelos incentivos fiscais, fica evidente, uma vez que

se comprove essa tendência, que os locais mais ricos economicamente serão

priorizados pelo potencial de investimentos para construção de fábricas, por

exemplo, sem abalar seu equilíbrio financeiro ou gerar desequilíbrios setoriais pelo

deslocamento de recursos públicos para essa finalidade.

A decisão empresarial de parte do ramo de calçadista em sair do Rio Grande

do Sul e transferir-se para alguns estados do Nordeste do país, fortalecida com a

“guerra fiscal”, poderá então ser revertida, na medida que as empresas não

encontrarem mais, nesses locais o que as fez migrar. Todavia, a força de trabalho

mais barata continuaria desempenhando um papel importante.

Diante disso, embora se criem novos empregos, diversifique-se a produção

local-regional, e as indústrias atraiam outras que são suas fornecedoras, expandindo

o nível de emprego e renda com a “guerra fiscal”, outros aspectos dicotômicos não

poderão ser ignorados, como reafirma Varsano (1997: 6): “[...] a dinâmica da guerra

fiscal é perversa. Com o seu aprofundamento todos perdem. Quanto às empresas,

há as que ganham, mas há também as que perdem com a guerra fiscal”. Destacam-

se nesse cenário, além dos estados mais pobres da federação, pequenas e médias

empresas brasileiras sem estrutura para a competitividade. Ou seja, os arranjos

locais sofrem imensos prejuízos.

Muller (1998) adverte para o fortalecimento do setor, e mostra por outro lado

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que a setorialidade apresenta limites em relação à sua capacidade de atender a um

referencial global, a relação existente entre as empresas e o território, mostra a força

da territorialidade em atrair investimentos externos. Como já mencionamos, o

deslocamento das empresas não ocorre apenas pela “vontade” do capital ou pela

ação isolada de um Governo. O potencial de atração de empresas e de sua fixação

dependerá do papel desempenhado pelos agentes sociais mediadores da política

pública envolvidos nesse processo, dentro de um contexto histórico.

Não se trata somente de incentivos fiscais oferecidos pelos Governos, mas de

um conjunto de fatores inter-relacionados que fortalecerão ou não o

desenvolvimento local. Da coalizão de forças entre os diversos agentes sociais que

necessitam da base sócio-espacial, tem-se uma situação que favorecerá atração das

empresas, o nível de investimento, e seu tempo de permanência, como menciona

Mair (1998):

Os agentes dependem do território por vários motivos, as empresas, por exemplo, realizam muitas vezes investimentos pesados no ambiente construído (capital fixo) e precisam de um certo tempo para que os gastos sejam compensados; as pessoas mantêm laços de parentesco, de amizade, de trabalho e de cooperação, construídos historicamente, e que estão enraizados no território [...] os governos, além de estarem assentados sobre uma base territorial, tem dependência fiscal local e precisam da arrecadação para cobrir gastos de financiamento em obras de infra-estru-tura realizados para atrair empresas, e para honrar compromissos de campanha perante os seus eleitores (MAIR apud FONSECA, 2006: 64).

Diante disso, fica evidente que quanto mais o Governo estadual cria os

mecanismos de atração das empresas (incentivos fiscais diversos, financiamento de

infra-estrutura etc.) menos comprometida a empresa fica com a base sócio-espacial

(região e município), porque a sua margem de investimento é menor, bem como o

risco do investimento feito, na medida que não necessitarão de um longo período

para que “os gastos sejam compensados” como aponta o autor. Quanto menor a

dependência da empresa com o local, menor o risco e os custos para ela.

A multilocalização passa a ser uma estratégia adotada pelos empresários

para a redução das margens de risco dos seus investimentos. A exemplo do ramo

de calçados, as indústrias instaladas na Bahia, necessariamente não foram

desinstaladas de seu local de origem (Rio Grande do Sul). Buscam os atrativos

oferecidos pelos estados e municípios em busca de uma margem de segurança em

relação aos riscos apresentados por um mercado globalizado e competitivo. A

lógica, portanto, é, como diz Fonseca (2006: 64), “esparramar e diversificar os

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riscos”.

Não se trata de empresas que integram um Arranjo Produtivo Local (APL),

que reforça uma cadeia produtiva a partir do potencial endógeno das localidades. O

que se apresenta é uma grande indústria sem laços históricos com a base sócio-

espacial, mas que se utiliza da história socioeconômica e cultural desse mesmo

lugar para ampliar sua margem de lucro, por exemplo, a cultura da não-participação

cívica ou da não-organização social se apresenta como um fator sociocultural

importante.

Nesse aspecto, a empresa implantada no lugar só usufrui e pouco contribui?

Não se trata disso, pois, a industrialização desempenha papel importante do ponto

de vista econômico, principalmente pela geração de emprego e renda e o impacto

que isso gera na economia local/regional. Nessa linha há os que defendam que os

salários passam a existir e conseqüentemente a circular no comércio, promovendo a

sustentação econômica e as oportunidades de acesso aos mais diversos produtos e

serviços com reflexo positivo na área social.

Não obstante, o crescimento real da renda per capta e o PIB local e/ou

regional, o que deve ser compreendido é: quais os impactos que a implantação das

indústrias de calçados proporcionou aos municípios baianos, para além da dimensão

econômica? Isso exigirá do observador conhecer outras implicações para a

qualidade de vida da população, principalmente a população trabalhadora,

dissecando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), porque é notório que

qualquer atividade econômica que gere empregos irá impactar economicamente,

para melhor, uma determinada localidade.

O desafio está em identificar e analisar outros indicadores que não sejam

somente os econômicos, possibilitando uma análise mais aprofundada do

desempenho governamental na execução da política pública para o

desenvolvimento regional. Torna-se necessário, como salientou Arretche (2001),

conhecer o método adotado para a análise do desempenho governamental. Ou seja,

como está sendo priorizado o objeto de estudo. Logicamente, isso dará a direção

(tendência) e a importância do parâmetro escolhido e a dimensão das respostas

obtidas.

Nesse contexto, vem à tona a necessidade da análise da política pública

adotada pelo Governo do estado para atrair as indústrias e ampliar os postos de

trabalho, sem perder de vista o debate atual que vem ocorrendo no meio acadêmico,

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sobre as correlações entre o trinômio crescimento econômico, desenvolvimento

local/regional e qualidade de vida. Desse modo, essas três categorias precisam ser

consideradas como pano de fundo desta análise, tornando-se necessário um melhor

entendimento dos conceitos e das interfaces existentes entre elas.

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4 A IMPORTÂNCIA DO LOCAL E A NATUREZA DA POLÍTICA PÚBLICA PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA BAHIA

É na conjuntura atual brasileira, ainda marcada pela recente descentralização

política e administrativa, em que se busca discutir o papel dos municípios, que,

segundo Muller (1998: 20-21), o local ressurge como um lugar potencial de

reposição da coerência da setorialidade, permitindo ultrapassar “[...]os cruéis efeitos

do corporativismo, e como um lugar de onde se pode construir relações de

proximidade, nas quais os indivíduos reencontram uma parte do domínio sobre a

complexidade do mundo”. E mais que isso, a possibilidade de reencontrar a

capacidade de atender às suas demandas socioeconômicas de forma mais

equânime, que por sua vez refletirá uma justiça social necessária à melhoria da

qualidade de vida, como veremos adiante.

O autor expressa a “crise da abordagem setorizada dos problemas sociais”,

tomando como referência os estudos de d’Arcy; Dreyfus (1990), que analisam a

setorialização num contexto de crise econômica que afetou a França no século XX,

reafirmando, por isso, a importância da base socio-espacial e do retorno ao local na

busca do desenvolvimento socioeconômico:

[...] a crise econômica [...] recolocou às claras a diversidade, de forma desigual e diferenciada, segundo os territórios. Impôs-se a idéia de que era necessário, doravante, encontrar formas de desenvolvimento adaptadas a cada situação. Estas devem levar em conta a integralidade das ações manobradas pelos poderes públicos. As políticas sociais e as políticas culturais, notadamente, não devem ser dissociadas: as prestações sociais devem ser consideradas, em razão das somas consideráveis que elas representam, levanto em conta o conjunto de seus efeitos sociais (D´ARCY; DREYFUS,1990 apud MULLER, 1998: 21).

A proximidade dos agentes sociais locais, como espaço deliberativo e de forte

interação, faz deste uma possibilidade maior de se obter a coerência almejada entre

as reivindicações dos setores e as necessidades da sociedade como um todo. Assim

o local ganha importância, pois, para além de algo subjetivo que é o Estado,

representa um espaço de relações concretas, no qual é possível avaliar, in loco, as

repercussões positivas ou negativas das políticas públicas, possibilitando reações e

intervenções mais imediatas quando identificadas falhas de condução no processo

político (politics) e na própria ação governamental (policy), que podem comprometer

a equidade social, e, portanto, o referencial global.

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Retomando a discussão de Muller (1998: 10) sobre a territorialidade, fica

patente que essa vertente do território aponta também para a força do local na

efetivação das políticas públicas. “Se é, antes de tudo, de algum lugar”, diz o autor.

O indivíduo extrai do lugar a sua identidade, mantém com ele relações

indissociáveis. Assim, o lugar é compreendido como processo caracterizado por

suas relações sociais, culturais e políticas, sendo (algumas vezes) o ponto de

partida, mas continuamente, o ponto de rebatimento das ações desenvolvidas pelos

agentes sociais.

Para Muller (1998), compreender a política pública é entender o modo de

operação do Estado frente às demandas setoriais e da sociedade como um todo,

seu dinamismo e seu caráter errático (ARRETCHE, 2001), numa relação geral/

setorial sem perder de vista o território, este campo de força onde são travados os

conflitos de interesses, bem como onde irão desaguar os resultados de políticas e

programas adotados pelos entes federativos.

Arretche (2001) ao citar Jobert; Muller (1987) conclui que a ação pública é

caracterizada por incoerências, ambigüidades e incertezas em todos os estágios e em

todos os momentos. Qualquer política pública é em grande parte um esforço de

coordenação de forças centrífugas que operam no interior da própria máquina estatal e

na sociedade. A formulação de políticas é com muita freqüência marcada pelo fato de

que os agentes não sabem exatamente o que eles querem, nem o resultado possível das

políticas formuladas, bem como pelo fato de que as políticas adotadas são o resultado de

um processo de negociação no qual o desenho original de um programa é

substancialmente modificado.

É nesse contexto que a política pública do Governo da Bahia, visando a

modernização produtiva, para o desenvolvimento econômico, por meio do pólo

calçadista, está nitidamente caracterizada como setorial, com forte impacto sobre os

municípios da região escolhida para a implantação das fábricas de calçados, como

destaca a SICM8:

O crescimento econômico permite ainda ao Governo do Estado realizar projetos em todo o território baiano, principalmente nas áreas de saneamento, transportes e infra-estrutura. [...] Desta forma, o Governo pode se preocupar em atender às necessidades específicas de cada setor, preparando os trabalhadores por meio de centros de formação profissional, que qualificam a mão-de-obra de acordo com as necessidades de cada segmento (Grifos nosso).

8 Disponível em: <http//www.bahiainvest.com.br>

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Do ponto de vista histórico a política pública é exercida pelos Governos em

suas diferentes formas. As profundas transformações que afetaram os modos de

regulação das sociedades industriais na segunda metade do século XX, inclusive na

França, se apresentaram sob a forma de um paradoxo,

[...] assistindo-se por um lado um tipo de triunfo do Estado regulador manifestado pela prodigiosa multiplicação das intervenções públicas em todos os campos da vida cotidiana. Mas, no mesmo movimento, esse triunfo se acompanha de uma profunda crise de modelos de ação que pareciam ter feito o sucesso do Estado, como mostra o desenvolvimento, ao curso dos anos 70, das teorias neoliberais (MULLER, 1998: 2).

Podemos afirmar que ao eleger o ramo de calçados, a ação do Governo

baiano se caracteriza como setorial, e, ao definir a porção do espaço para a

execução do projeto, passa a valorizar a territorialidade9, e por conseqüência o

território como processo, a partir de diversos fatores, entre os quais está o potencial

político/eleitoral dos municípios em relação aos partidos ligados à corrente do

Governo do Estado. Não há dúvidas sobre a posição central da indústria de

calçados no cenário político eleitoral da Bahia. O processo de escolha do espaço

geográfico pelo Governo estadual para a implantação das indústrias de calçados

não elegeu a participação social dentro do leque de estratégias de interiorização da

indústria calçadista. A decisão foi tomada com base na presença de um gestor

público local que fosse a favor do carlismo10, considerando a possibilidade de

fortalecimento de um modelo político e administrativo predominante, pela via do

clientelismo e do apadrinhamento político, como denunciou o representante da

Federação dos Trabalhadores da Indústria do Vestuário, Couro e Calçados da Bahia

(Fetrav), “S1”11, em entrevista gravada em 27 de maio de 2007, no município de

9 Diferente de Muller (1998) Souza (1995) não descreve o território como um “sistema fechado e auto-suficiente”, e não limita o território à identidade do indivíduo, ou à noção do lugar (origem). Para Souza, o território é dinâmico, mantendo relação constante com o exterior, influenciando e sendo por ele influenciado. Embora ambos entendam que o território é mais que espaço concreto ou substrato material, Souza (1995) o tem, também, como a expressão das relações sociais, um campo de forças a partir do qual se evidencia as relações de poder entre os diversos agentes sociais. O território seria a dinâmica das relações políticas, o processo político em si. Poder-se-ia dizer ainda, considerando o que há de convergente na opinião dos dois autores, que o território seria o onde se processam as relações sociais baseadas no poder. 10 O carlismo é um fenômeno baiano que pode ser descrito como uma espécie de instituição política informal, com modelo de ação peculiar, forjado na matriz do apadrinhamento, do clientelismo, do assistencialismo, e da perseguição ou retaliação de forças contrárias à hegemonia política e econômica do grupo comandado pelo senador Antonio Carlos Magalhães, cuja influência irradia-se para os diversos setores da vida pública e privada. 11 Visando preservar as fontes, os nomes serão substituídos por “S” seguido do número que

diferencia os sindicalistas entrevistados pelo autor.

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Jequié:

[...] um fato curioso é que em todas as cidades as empresas têm uma relação muito íntima com o poder público local. Aqui em Jequié, pra entrar na fábrica [...] eu peguei uma carta [...] Pra eu trabalhar na empresa peguei a carta [...] tinha que passar pelo vereador. [...] Cada vereador da cidade tinha sua cota pra poder empregar na fábrica (ENTREVISTA).

Na abordagem feita pelo sindicalista tal influência ganha contornos mais

curiosos na medida que as vilosidades da empresa chegam também ao nível do

poder executivo, por meio de funcionários diretamente ligados aos prefeitos

municipais:

Em Amargosa, na gestão do prefeito [...] Entre 1998 e 1999, quando a empresa chegou lá [...] E, quando chegou, a mulher do gerente era a tesoureira da prefeitura. Aqui em Jequié, há bem pouco tempo atrás, a secretária municipal de saúde era médica do trabalho da empresa. Então [...] fica essa relação promíscua (ENTREVISTA).

A campanha eleitoral de 2006, para o Governo do estado, foi marcada por

forte debate em torno da indústria calçadista, divulgado por importantes jornais. O

jornal A Tarde de 10 de setembro de 2006, traz o conflito entre o governador Paulo

Souto, candidato carlista a reeleição pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), e o

ex-ministro Jaques Wagner, do Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo o jornal,

após carreata pelas ruas do município de Cruz das Almas, o Governador candidato

teria afirmado, em comício, que:

Programa social é gerar emprego e dar cidadania à população, por isso que a Bahia cresceu duas vezes mais que o próprio País em três anos consecutivos. Isso é uma ousadia para um Estado do Nordeste. Não sei por que a oposição fica zangada quando digo isso (A TARDE, 2006: 20).

O emprego mencionado pelo candidato Paulo Souto teria a sua razão de ser

na atração da indústria calçadista para a Bahia, como se observa na seqüência na

matéria de A Tarde (2006):

Em discurso Paulo Souto assumiu o compromisso com os cruzalmenses de alavancar o setor industrial, após os municípios da região sofrerem com a crise na indústria fumageira: ‘muitos estados fecharam as suas indústrias calçadistas, o que não aconteceu na Bahia. E diante da crise da indústria fumageira, Cruz das Almas e outros municípios criaram oportunidades de emprego com novas indústrias calçadistas, e com a ajuda do governo do Estado’ (A TARDE, 2006: 20).

De acordo com o Jornal do Sudoeste, o candidato opositor, Jaques Wagner

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do PT, em pronunciamento feito em 21 de julho de 2006, no município de Itapetinga,

onde se encontra instalada a matriz da empresa Azaléia Nordeste, destacou a

importância dessa indústria, demonstrando a necessidade da desconcentração

industrial no estado em direção ao interior. No mesmo evento, o candidato a vice-

-Governador, na chapa de Wagner, Edmundo Pereira Santos (PMDB), foi além ao

atacar a política carlista, fazendo uma comparação entre a industrialização na Bahia

e os indicadores sociais:

[...] a Bahia tem merecido destaque negativo no cenário nacional ao figurar entre os piores indicadores sociais. Isso é resultado da política personalista, baseada na mentira, na perseguição aos prefeitos que não se enquadram em suas normas e que resultam no aprofundamento da crise social. A vitória de Jaques Wagner vai possibilitar a interiorização efetiva e não publicitária do desenvolvimento econômico e social (JORNAL DO SUDOESTE, 2006: 3).

Na mesma oportunidade, o deputado federal pmdebista, Geddel Vieira Lima,

ao sair de um almoço do qual participou com autoridades e lideranças na sede da

Azaléia Nordeste, como relata o Jornal do Sudoeste, afirmou que o modelo político

do carlismo ”se esgotou nas próprias mentiras”. O deputado disse ainda, segundo a

mesma fonte jornalística, que na campanha eleitoral de 2004, para prefeito,

As principais lideranças do carlismo no estado estiveram em Itapetinga, e por falta de propostas tentaram enganar a população afirmando que a Calçados Azaléia seria desativada caso Michel Hagge saísse vencedor das urnas. Michel venceu, a Azaléia ao contrário tem investido em Itapetinga e na região e o município experimenta um governo democrático e que direciona os recursos para beneficiar o conjunto da população, sem discriminações ou perseguições (JORNAL DO SUDOESTE, 2006: 3).

As promessas de abrir e fechar indústrias em municípios cujos prefeitos são

contrários ao modelo político carlista, como é o caso de Michel Hagge, aparece na

fala do deputado como estratégia de um Governo de estado que interfere

diretamente na escolha dos territórios a serem ocupados12.

A ocupação dos territórios serve aos interesses das empresas que se

deslocam para o território baiano de acordo com as possibilidades de ganho

financeiro, bem como os interesses econômicos e também eleitorais do Governo,

12 Doravante será utilizado o termo “ocupação da base socioespacial” que busca caracterizar o modo como se deu a chegada das indústrias de calçados na Bahia, em 1996, particularmente na região Sudoeste do estado e no município de Itambé, que é o nosso objeto particular de estudo. O termo expressa ainda a forma como a população loco/regional foi posta à margem do processo de discussão sobre a implantação da indústria nos territórios em função da guerra fiscal. “Ocupação de territórios”, ao nosso ver, não deixa de ser uma estratégia de guerra (ainda que fiscal).

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que se apresenta como promotor do “desenvolvimento” e da “cidadania”, pela

inserção social da força de trabalho antes excluída.

O Quadro 1 ilustra a predominância dos prefeitos aliados direta e

indiretamente ao bloco carlista, e cujos municípios foram “agraciados” com a política

de geração de emprego e renda na região Sudoeste do estado a partir de 1996 com

a chegada da empresa Azaléia Nordeste.

A política pública de desenvolvimento econômico, portanto, se deslocou em

1996 inicialmente em direção aos municípios da região Sudoeste, governados na

época, em sua maioria por partidos políticos aliados diretamente ao carlismo como

estratégia de conquista e manutenção do poder político, com pouquíssima mudança

no quadro em 2006, onde o grupo político carlista permaneceu hegemônico dez

anos depois, causando situações de constrangimento para gestores locais, em

função dessas estratégias políticas13, pois, mesmo os prefeitos de partidos ditos de

oposição (PMDB e PSDB), pela dependência econômica em relação ao Governo do

estado, sucumbem total ou parcialmente, à pressão política, passando a uma

oposição mais branda em relação ao opositor.

Fonseca (2006), ao referir-se à modernização econômica encabeçada pelo

grupo ligado ao Senador Antonio Carlos Magalhães na década de 1990, a partir de

um programa de concessão de incentivos fiscais para empresas de calçados,

13 A politics mencionada por Frey (2000) e Muller (1998), é bem visualizada nesse contexto pela característica do jogo político.

Quadro 1 – Bahia: distribuição das fábricas da indústria Azaléia, por municípios de acordo com o partido político do prefeito nos anos de 1997 e 2006.

Municípios com fábricas da Azaléia

Partido político do prefeito eleito nos municípios 1997 2006

Caatiba PFL PFL Firmino Alves PL PL

Iguaí PMDB PMDB Ibicuí PSL PSL

Itarantim PSDB PSDB Itororó PFL PFL

Itapetinga PL PMDB Itambé PFL PL

Macarani PMDB PMDB Maiquinique PTB PTB

Potiraguá PTB PTB Fonte: TSE, 2006. Adaptado pelo autor.

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informática, automotiva, celulose e papel, principalmente, demonstrou a natureza

impositiva da ação do Governo do estado sobre os municípios, apesar da

descentralização administrativa, que pressupõe maior autonomia do nível local:

[...] São constrangimentos históricos que se institucionalizaram na Bahia e que se mantêm vivos até os dias atuais em consonância com as estratégias modernizantes engendradas pelo carlismo a partir dos anos de 1990. E no contexto desses constrangimentos e estratégias, a sujeição do poder local à lógica do poder estadual, é uma regra que deve ser respeitada pelas elites locais, sob pena do município “infrator” ficar de fora de investimentos governamentais e de apoio político (FONSECA, 2006: 150-151).

Com isso, é possível considerar factível que a descentralização da ação

administrativa não represente na prática a liberdade política para a tomada de

decisões, caracterizada pela autonomia do Governo local em definir as estratégias

para enfrentamento dos problemas socioeconômicos. Apesar de possuir traços

modernizadores, a política de industrialização na Bahia

[...] é conservadora, porque carrega consigo vestígios históricos de vínculos sociais verticalizados nos quais o clientelismo, a exclusão social, a pouca presença de canais de articulação entre o governo e a sociedade e a manutenção das desigualdades sociais se fazem presentes (FONSECA, 2006: 150).

Neste aspecto o processo descentralização guarda seu paradoxo, avaliado

também por Arretche (1996) ao debater a relação entre descentralização e

democracia, onde aponta que descentralizar nem sempre resulta em democratizar

as relações entre entes federativos. Tampouco, para a autora, a democratização

garante a autonomia administrativa plena, como é o caso da Bahia aqui analisado.

Após comparar diversas vertentes teóricas sobre as instituições e regimes políticos

no Brasil, França e Espanha, Arretche conclui:

Dado que permanecerão existindo questões que devem ser processadas pelos distintos níveis de governo, o caráter democrático do processo decisório depende menos do âmbito no qual se tomam decisões e mais da natureza das instituições delas encarregadas (ARRTECHE, 1996: 62).

Reconhecendo que o objetivo deste capítulo é enfatizar a importância do

contexto local e as características da política de desenvolvimento socioeconômico,

considera-se então as instituições formais e informais14 que se apresentam como

14 Fonseca (2006) descreve as instituições formais como o cabedal de leis que regulam as relações entre a sociedade e o estado, e entre os diversos setores (as regras do jogo sob as quais se dão os conflitos de interesses setoriais). O autor chama de Instituições informais, as regras informais

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elementos contributivos para a análise do desempenho governamental e do nível de

participação da sociedade diante das suas demandas e/ou necessidades.

Como foi visto na abordagem de Frey (2000) as instituições tanto podem ser

positivas quanto negativas para o desempenho das políticas como para a

participação social. Destaca-se que, por sua natureza, as instituições não servem

apenas para a satisfação das necessidades sociais ou para a regular as interações

sociais. Como regras do jogo, definem as escalas de poder.

As instituições tem tido papel importante para o desempenho governamental

na busca por soluções para os problemas de ordem social e econômica, é o que

aponta um abrangente estudo realizado por Putnam na Itália, iniciado na década de

1970 e que se estendeu por vinte anos, através do qual o pesquisador constatou a

importante influência das instituições para o desempenho dos governos regionais

daquele país. Para Putnam, esclarece Fonseca (2006),

[...] predominam três formas de explicar o desempenho de uma instituição. A primeira origina-se de estudos jurídicos e investiga o arranjo institucional; a segunda valoriza fatores sócio-econômicos como determinantes para a democracia e desempenho das instituições; e a terceira, dá ênfase aos fatores sócio-culturais, como fundamental para o bom desempenho governamental (FONSECA, 2006: 38).

Desse modo, não é o arranjo institucional isoladamente ou a modernização

econômica que respondem às questões levantadas sobre o bom desempenho

governamental. Os aspectos socioculturais, por exemplo, têm sido postos como

fatores que interferem no desempenho das políticas de Governo. Tais aspectos

podem ser compreendidos a partir da participação social na vida pública, por meio

de uma ação política efetiva. Para Putnam (2005), nenhum outro aspecto

(estabilidade social, educação, urbanização, estabilidade do quadro de pessoal,

ação dos partidos políticos no poder) poderia melhor explicar o desempenho

institucional das regiões italianas estudadas por ele, que a presença das instituições

informais ou cívicas.

[...] Nenhuma dessas explicações suplementares ajuda a compreender melhor por que certos governos funcionam e outros não. Os dados analisados [...] são inequívocos: o contexto cívico é importante para o funcionamento das instituições (PUTNAM, 2005: 132).

oriundas do processo sócio-cultural da comunidade e que são passadas via processo de socialização.

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Considerando a existência de instituições informais ou cívicas defendidas por

Putnam (2005) e Fonseca (2006) e a sua subordinação à história cultural dos

lugares, uma questão se impõe: por que o estado da Bahia, ao avaliar o impacto da

implantação do pólo de calçados nos municípios da região Sudoeste, não

considerou os aspectos socioculturais nessa avaliação? Tal indagação nos remete à

formulação de um discurso voltado à compreensão mais profunda da

industrialização a partir de parâmetros puramente econômicos, caracterizados pelo

crescimento do PIB regional e renda per capta, quando a economia por si só, como

afirma Putnam (2005), não nos dá a verdadeira dimensão do desempenho

governamental.

Na pesquisa desenvolvida por Putnam, nas regiões da Itália, foram utilizados

12 indicadores, todos submetidos à opinião dos diversos agentes sociais (sondagem

de conselheiros regionais, de líderes comunitários, sondagens de opinião pública, de

políticos, de funcionários de alto escalão dos Governos etc.) demonstrando um nível

de imparcialidade significativo do método adotado.

A questão da qualidade de vida aparece no discurso oficial do governo

baiano, como veremos mais à frente, como objetivo já alcançado. Entretanto, a

análise da qualidade de vida feita pelos órgãos do estado da Bahia desconsidera

outros parâmetros imprescindíveis, que também são integrantes do IDH, como por

exemplo, a saúde, que é um dos principais indicadores adotados para a avaliação

do nível de vida de uma população.

Vê-se claramente a opção do Governo baiano, por meio de seus agentes, de

destacar positivamente aspectos econômicos, em detrimento de problemas de

saúde inerentes ao processo de produção de calçados, e que surge como queixa

principal dos trabalhadores nos municípios “beneficiados” com a indústria calçadista.

Ou seja, é notório que para o Governo a satisfação da população geral com a

industrialização é evidente. Por outro lado, a satisfação para a população

trabalhadora, em particular, em relação ao processo de modernização industrial, não

é uma questão trabalhada para análise da política pública na Bahia.

Fugindo ao extremismo, podemos afirmar que, no mínimo, se a categoria

“satisfação” não chega a ser avaliada, não pode ser considerada importante para

quem avalia. Daí, se se considerar a postura de Putnam (2005) e dos agentes

governamentais, temos que retornar a Arretche (2001) quando trata da parcialidade

e imparcialidade do investigador na análise de desempenhos institucionais.

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Da mesma forma que a abordagem sobre a saúde do trabalhador não é feita,

mesmo ficando evidente que esta foi afetada diretamente pelo processo detrabalho

na fábrica, os impactos socioculturais também não foram devidamente contemplados

nos estudos realizados pela administração estadual, portanto, não levando em conta

a história do lugar ocupado. Considerou-se apenas a taxa de desemprego e a

disponibilidade de força de trabalho a baixo custo, muito por conta da ausência de

organização sindical.

Desse modo, as políticas públicas voltadas para a modernização industrial da

Bahia, na década de 1980, e a desconcentração industrial da Região Metropolitana

de Salvador para a Região Sudoeste, por meio da indústria calçadista, a partir da

década de 1990, se assentaram em bases exclusivamente econômicas, apesar do

discurso direcionado à qualidade de vida, que exige uma avaliaçãode outra

natureza. Essa ação do Governo, sem dúvida, fora moldada pela lógica da “guerra

fiscal”, na qual a possibilidade de geração de emprego e renda para o Governo, a

qualquer custo (que não seja o econômico), se sobrepõe aos demais.

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5 ANALISANDO AS INTERFACES ENTRE CRESCIMENTO E DESENVOLVI-MENTO ECONÔMICO E QUALIDADE DE VIDA

O aumento do PIB, do estado ou município, necessariamente não significa

uma política de distribuição equânime dessa riqueza. Para o município que acolhe a

empresa nem sempre existe a garantia de investimentos em serviços básicos e infra-

-estrutura local por parte do Governo, que deve agir como agente de

desenvolvimento socioeconômico.

Como visto, os interesses de múltiplos setores, regiões econômicas e

municípios, propiciam conflitos de ordem política (e político-partidária), que rebatem

nas esferas estadual e municipal, e que moldam a política pública, seguindo um jogo

de interesses, mediado pelas instituições e agentes sociais.

Estes jogos de interesses, que acirram os conflitos setoriais e corporativos

nas regiões e municípios, descritos por vários autores contemporâneos

(ARRETCHE, 1996; MULLER, 1998; BREILH, 1999; FREY, 2000; PUTNAM, 2005;

FONSECA, 2006) muitas vezes dificultam a prática da equidade15 na distribuição16 e,

principalmente, na redistribuição17 de renda, ação fundamental para a promoção da

justiça social, e, por conseqüência, da qualidade de vida.

Putnam (2005: 78) considera duas questões básicas da ciência política: saber

“Quem governa?” e “quão bem governa?”. Para o autor, isso traz à baila questões de

distribuição e redistribuição, distiguindo-se “quem obtém, o que, como e quando”.

Não obstante, isso reflete o lastro do conflito corporativo inerente à setorialidade, e à

responsabilidade dos agentes sociais responsáveis pela elaboração das políticas em

garantir a igualdade e a equidade, respectivamente.

Desse modo, acumular riquezas ou dispor de recursos financeiros, representa

para o Governo, inicialmente, a possibilidade de usá-los, mas não a certeza de sua

aplicabilidade em projetos voltados para atender demandas sociais dos municípios

13 Consideramos equidade nesse estudo, o que Buarque (2002) define como “igualdade de oportunidades de desenvolvimento humano da população, respeitada a diversidade sociocultural, mas asseguradas a qualidade de vida e a qualificação para a cidadania e o trabalho.” 14 Para Frey (2000) as políticas públicas distributivas são “policy arenas” caracterizadas por um baixo grau de conflito dos processos políticos, visto que as políticas de caráter distributivo só parecem distribuir vantagens e não acarretam custos — pelo menos diretamente percebíveis — para outros grupos. 15 Frey (2000) destaca que as políticas redistributivas, ao contrário das distributivas, são orientadas para o conflito, pois visam o desvio o deslocamento de recursos financeiros e de direitos ou qualquer outro valor entre camadas sociais ou grupos da sociedade.

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de forma equânime, levando em conta o IDH, por exemplo. Entretanto, não se deve

desconsiderar que o acúmulo de riqueza por parte do Governo do estado da Bahia,

fruto de sua eficiência administrativa e política em captar investimentos industriais

para o interior, não seja um ponto importante para avanços em direção ao

desenvolvimento, entendido aqui como “mudança social positiva”, como define

Souza (2003), capaz de promover a tão mencionada qualidade de vida. Também

neste sentido, Buarque enfatiza que:

A eficiência e o crescimento econômicos constituem pré-requisitos fundamentais, sem os quais não é possível achar a qualidade de vida com equidade — de forma sustentada e contínua — representando uma condição necessária, embora não suficiente, do desenvolvimento sustentável (BUARQUE, 2002: 67).

Não é incomum na economia globalizada, na qual o consumo motivado pela

mídia é endeusado, que a qualidade de vida de um núcleo familiar, por exemplo,

seja dimensionada, na visão economicista do desenvolvimento, pela simples compra

ou troca de uma geladeira, onde a dimensão humana perde espaço frente a

dimensão material. Neste ponto, análises quantitativas são priorizadas em relação

às abordagens qualitativas para a mensuração da qualidade de vida

A chegada do pólo calçadista na Bahia, em 1996, com a implantação da

Azaléia Nordeste na região Sudoeste, preferencialmente em municípios de pequeno

porte, tem representado para essas localidades, sem dúvida, um aumento da

capacidade de consumo da população trabalhadora, antes excluída do mercado de

trabalho e da perspectiva de melhoria das condições de vida. Mas, é sempre

interessante observar a contradição existente nos sacrifícios que as pessoas fazem

para consumir mais e mais, quando este próprio sacrifício já embute uma fissura na

estrutura da qualidade de vida, que descende da capacidade de compra, segundo a

análise puramente economicista: Eis o homo consumericus, cuja mentalidade é

analisada por Lipovetsky (2004), ao pensar o hiperconsumo, na “sociedade

hipermoderna”. Sobre a satisfação do indivíduo pela aquisição de bens materiais,

este filósofo revela uma forte contradição:

O bem-estar material aumenta, o consumo dispara, mas a alegria de viver não segue o mesmo ritmo, pois o indivíduo hipermoderno perde em descontração, o que ganha em rapidez operacional, em conforto, em extensão do tempo de vida (LIPOVETSKY, 2004: 123).

Sem embargo, o ganho salarial e a capacidade de consumir bens numa

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sociedade de consumo têm se constituído em uma necessidade premente,

entretanto, a qualidade de vida, para Lipovetsky (2004) e Souza (2003), está numa

dimensão mais complexa, vez que envolve a “alegria de viver”, para o primeiro, e o

grau de satisfação18, para o segundo, sentimentos nem sempre alcançados pela

simples aquisição de mercadorias e serviços. Porém, tanto a possibilidade de

acesso a bens e serviços, para o atendimento às necessidades humanas básicas,

quanto a satisfação devem acontecer simultaneamente, pois seria inimaginável a

felicidade sem essa combinação. Essa mesma idéia é defendida pelo economista e

filósofo brasileiro, Giannetti, que em entrevista à revista “Diálogo Médico”, de 2004,

assim se pronunciou quanto à satisfação (felicidade) e à capacidade de consumo:

[...] a felicidade se divide em duas dimensões. A primeira é formada pelas condições concretas de bem-estar — renda, consumo, moradia, saúde, segurança, ambiente. A segunda é subjetiva e está ligada aos sentimentos. As pesquisas mais recentes apontam que a relação entre essas duas dimensões é muito menos linear e bem comportada do que se imagina. Em relação á saúde há uma coisa curiosíssima. As pessoas com melhor saúde são, de um modo geral, mais felizes (GIANNETTI, 2004: 33).

Desse modo, a exclusão social e política, a segregação urbana, a

impossibilidade de participação em processos decisórios locais, e a exposição às

relações e condições precárias de trabalho, são aspectos que afetam o nível de

satisfação social e definem a qualidade de vida do homem/mulher empregado e do

homem/mulher desempregado (do incluído e do excluído socialmente). Diante desse

contexto, serão o emprego e o salário suficientes para a análise da qualidade de

vida dos trabalhadores do ramo de calçados numa determinada localidade? Será,

portanto, o crescimento econômico ovacionado pelo Governo baiano um fator

suficiente para determinar o desenvolvimento socioespacial? Estas são questões

que precisam ser observadas na análise das políticas públicas de Governo, voltadas

para o desenvolvimento local-regional.

Breilh, médico e epidemiólogo equatoriano, cuja obra tem sido referência para

o campo da saúde do trabalhador na América Latina, na abertura do Encontro Nacional

de Saúde do Trabalhador no Brasil, em 1999, ao tratar da “eficácia do poder, retrocesso

do direito e degradação do trabalho”, tendo como pano de fundo o debate sobre o

18 Neste aspecto Souza (2003) revela que a qualidade de vida deve ser medida a partir do nível da satisfação individual e coletiva em relação aos aspectos subordinados particulares, como educação, saúde, moradia, etc. Para o autor não se deve considerar apenas o acesso a bens e serviços, mas o nível de satisfação do indivíduo e coletividade em relação a estes aspectos.

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crescimento econômico e o desenvolvimento, expôs que:

[…] la tesis de que el crecimiento económico es por sí mismo una fuente de bienestar y trabajo, encuentra en la realidad latinoamericana su mas importante mentís. [...] A pesar de que en el período 1991 a 1997 la economía capitalista creció en 20%, casi triplicando los índices de la década anterior, dicha expansión de su productividad, contrasta con un rápido deterioro de las condiciones de vida en medio de un acelerado empobrecimiento masivo y ampliación de la inequidad social, al punto que los indicadores más recientes de dicho deterioro son aún peores que aquellos que se calcularon para la crisis de los 80 (BREILH, 1999: 2)19.

Na oportunidade, Breilh (1999) chama a atenção para uma comparação

importante, tendo o Brasil como referência:

En el caso del Brasil, com um PIB/habitante promedio nueve veces mayor que la Índia, presenta indicadores de desigualdad 10 veces peores que dicho país. Justamente em los três países destacados como líderes de las reformas neoliberales — Argentinha, Chile y México — es donde se encuentran los índices más altos de concentración del ingreso de la región. Y en el área metropolitana de São Paulo que han sido la gran irradiadora do desenvolvimento capitalista del Brasil, el porcentaje de familias pobres creció de 39% en 1990 hasta 47% en 1994, según estimaciones conservadoras (BREILH, 1999: 3).

Sem embargo, o crescimento econômico do estado da Bahia, pelo acúmulo

de riqueza evidenciada no valor do PIB e na renda per capita, embora represente

ganho quantitativo, não é suficiente para a garantia do desenvolvimento (ganho

qualitativo) que deve ser o objetivo principal dos entes federativos. Crescer

economicamente é apenas um meio para se atingir a qualidade de vida, que se

configura como reflexo de uma política de desenvolvimento. As disputas políticas e

econômicas, entre estados da federação, que caracterizam a “guerra fiscal”, se

desdobram para as regiões e municípios e apontam o nível e a qualidade da ação

do Governo na efetivação da política pública, e têm um peso fundamental na

definição da distribuição e redistribuição de recursos e benefícios outros, entre os

municípios e entre estes e os diversos setores.20

19 Tradução nossa: a tese de que o crescimento econômico é por si mesmo uma fonte de bem-estar e trabalho, encontra na realidade latino-americana, sua mais importante controvérsia. [...] Apesar de no período de 1991 a 1997 a economia capitalista ter crescido 20%, quase triplicando os índices da década anterior, essa expansão de sua produtividade contrasta com uma rápida deteriorização das condições de vida em meio a um acelerado empobrecimento em massa, e a ampliação da inequidade social, a ponto dos indicadores mais recentes dessa deteriorização serem piores que aqueles calculados na crise dos anos 80. 20 A definição de desenvolvimento econômico posta pelo Governo baiano mantém uma relação análoga com o acúmulo de riquezas enquanto que o desenvolvimento econômico que acreditamos implica equidade na distribuição de renda, tendo como conseqüência uma maior justiça social, o que discutiremos no capítulo 5.

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Medir o desenvolvimento a partir da categoria qualidade de vida não é uma

tarefa fácil, pela própria complexidade dessa categoria, mas nem por isso se deve

eleger, isoladamente, o crescimento do PIB como parâmetro para se afirmar que

houve ou não a melhoria da qualidade de vida de determinada população, ou grupo

social.

É importante saber, por exemplo, a) em que condições, do ponto de vista

trabalhista, estes empregos no ramo de calçados estão sendo gerados? b) a quais

riscos ocupacionais estão expostos os(as) trabalhadores(as)? c) qual a percepção

dos(as) trabalhadores(as) sobre estes riscos? d) quanto pesa para o(a)

trabalhador(a) os sentimentos de incerteza e insegurança em relação a permanência

no emprego e ao meio ambiente de trabalho, respectivamente? e) qual o gasto do

Sistema Único de Saúde (SUS) local com a saúde de trabalhadores(as)

adoecidos(as) e vítimas de acidentes de trabalho? f) em função disso, qual o gasto

da previdência social com incapacidade laborativa de trabalhadores(as)

afastados(as) por auxílio-doença acidentário? g) e, por outro lado, quanto se deixa

de arrecadar das empresas e de investir em infra-estrutura urbana, saúde, educação

e lazer nos municípios (que são fatores que afetam o grau de satisfação da

população) por conta da política de incentivo fiscal executada? São aspectos a

serem considerados ao se tomar a qualidade de vida como decorrente do processo

de industrialização de um lugar sem essa cultura histórica, como se a

industrialização de um lugar ou região só trouxesse benefícios, mensurados

quantitativamente, sem impacto nos indicadores de saúde, nas relações

socioculturais e de produção loco-regional.

Lipietz (1988: 102) ajuda a responder parte dessas indagações, ao observar o

desempenho de nações industrializadas em dois intervalos de tempo (1960/1970 e

1970/1980), quando constata que “O PIB aumenta sempre, em todas as

categorias21, inclusive nas mais pobres [...] Por outro lado isso não implica

absolutamente um crescimento do padrão de vida”.

Contudo, o que é discutível aqui não é a importância da industrialização em

si, e o ganho material que ela proporciona às populações, mas a forma como a

industrialização acontece, obedecendo a um modelo de desconcentração industrial

21 O estudo de Lipietz (1998) refere-se aos países classificados de acordo com critérios do Banco Mundial (países industriais, intermediários superiores, intermediários inferiores, baixa renda).

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que faz da população local ou regional uma espécie de “parceiro-fantasma” 22 no

jogo político decisório (WEFFORT, 1986: 15), cuja participação popular não se

efetiva plenamente, seguindo à reboque da política pública estabelecida e executada

pelos Governos.

Evitando-se o risco de reduzir o conceito de qualidade de vida ao crescimento

econômico, é necessária a observação do que ocorre na China, tida como a quarta

maior economia do mundo, chegando a obter em 2006 um superávit comercial de

US$ 177,47 bilhões, com um PIB em torno de 10,7% (BBC Brasil.com, 25 de janeiro

e 2007)23 sendo que esse desempenho necessariamente não representou a

melhoria das condições de vida da maior parte da população trabalhadora,

requisitada a operar na indústria e explorada pela nova ordem global.

O relatório da Seplan (BAHIA, 2000) revela desigualdades significativas na

relação entre o custo da força de trabalho na China e outros países asiáticos e o

desempenho na produção da indústria calçadista:

Enquanto os países da Ásia e do Oriente Médio saem de uma participação na produção mundial de calçados de 48,9% em 1986 para 81,4% em 1998, a Europa Ocidental e a América do Norte perdem participação no mesmo período, caindo de 13,6% para 4,1% e de 7% para 2,4%, respectivamente. A queda mais significativa, porém, é observada nos países da Europa Oriental, que saem de uma participação de 18,6% para 0,1% da produção mundial (BAHIA, 2000: 17).

Tais desempenhos positivos e negativos demonstram a forte influência da

nova ordem global do capitalismo, na qual a reestruturação produtiva e a

flexibilidade no mundo do trabalho exercem funções importantes. No caso do

desempenho chinês na produção de calçados temos como fator principal o baixo

custo com a força de trabalho por hora. Observa-se que, na China, esse coeficiente

está na faixa de US$ 0,50, e em países desenvolvidos como os EUA e Itália (dois

países com forte participação cívica, como vimos no estudo de Putnam (2005) este

coeficiente é de US$ 9,41 e US$ 14,99, respectivamente. Vê-se, assim, que num

país como a China, que é a quarta potência mundial, o trabalho é bastante

desvalorizado, impondo à massa trabalhadora condições precárias de vida, e de

22 Weffort (1986) ao analisar a política de massas no Brasil salienta que as massas populares são como o parceiro-fantasma no jogo político. Para o autor, as massas “foram a grande força que nunca chegou a participar diretamente dos grandes embates, sempre resolvidos entre os quadros políticos dos grupos dominantes, alguns dos quais reivindicando para si a interpretação legítima dos interesses populares”. 23 http://www.bbc.co.uk/portuguese/economia/story/2007/01/070125_chinaeconomiag.shtml

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vida no ambiente de trabalho.

Ao discutir a questão da degradação das condições de trabalho24, Breilh

demonstra a escassez de estudos que comparem o modo de produção com as

condições de saúde do trabalhador, especilamente na América Latina. Essa lacuna

se deve à posição dos Governos em valorizar o crescimento econômico em

detrimento das perdas que sofrem a força de trabalho na atualidade. O trabalho,

bem como o emprego formal (e o subemprego) são compreendidos ainda sob uma

égide bíblica, ou seja, como um fazer que dignifica o homem, servindo de

instrumentos ideológicos estratégicos para a manutenção da exploração sobre uma

força de trabalho cada vez mais empobrecida, na medida que o crescimento

econômico não tem necessariamente representado a equidade na distribuição de

renda, no qual os baixos salários em grandes economias, como no caso da China,

simbolizam essas diferenças essenciais entre os conceitos de crescimento e

desenvolvimento. Sobre estes aspectos Breilh relata:

Las políticas de Estado en la mayor parte de casos alimentan la crisis del trabajo y representan la contraparte política del poder económico. El desempleo estructural es una necesidad de reproducción del sistema y resulta un negocio redondo, ya que contribuye a sostener en niveles bajos el precio de la fuerza de trabajo – que es el arma fundamental de competitividad del capitalismo periférico – y además, favorece la contención y vaciamiento de la fuerza sindical o de las organizaciones laborales, porque el desempleo garantiza la sustituibilidad de la fuerza de trabajo en contextos productivos de baja calificación, como son la mayoría de los latinoamericanos [...] (BREILH, 1999: 12).

O crescimento da economia nem sempre resulta em ganhos sociais, se

pesarmos o impacto ambiental (aquecimento global, degradação dos mananciais

hídricos), a degradação do trabalho e da saúde de quem trabalha. Numa escala

mais próxima, sugerimos ainda a comparação entre o crescimento do PIB baiano e

as pesquisas do IBGE referentes aos níveis de pobreza no estado. A esse respeito

gerou polêmica a publicação de matéria no jornal A Tarde de 25 de maio de 2003

sobre estudo feito por Osório; Medeiros (2002) intitulado Concentração de Renda e

Pobreza na Bahia: 1981-1999. A matéria do Jornal destaca sobre esse estudo

24 Breilh classifica em três as formas de flexibilização da força de trabalho: a) Flexibilización numérica: ajuste del número de empleados a la demanda fluctuante. b) Flexibilización salarial: recálculo del salario en función de productividad y no de antigüedad. c) Flexibilidad funcional: recambio del tipo de uso de la fuerza de trabajo en los procesos productivos, especialmente el trabajo polivalente y la movilidad interna entre puestos, departamentos, turnos y horarios.

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realizado pelos técnicos do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA)25 algumas

constatações importantes:

1 A Bahia está longe de se orgulhar do seu desempenho no combate à pobreza. Nos últimos 20 anos, boa parte dos Estados nordestinos apresentou bons resultados nesse campo. A Bahia, ao contrário, não melhorou a condição dos seus pobres, que representam 54% da população do Estado.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

2 O documento Concentração de Renda e Pobreza da Bahia: 1981-1999” traz um dado ainda mais assustador. Não existe, atualmente, país que tenha uma distribuição de renda tão ruim quanto a baiana. Ainda de acordo com a pesquisa, a Bahia está entre os cinco estados mais pobres do Brasil. São 7,2 milhões de pessoas vivendo na pobreza. Apenas Maranhão, Piauí, Alagoas e Ceará têm número de pobres maior do que o daqui. Com essas constatações o estudo destrói o slogan dos sucessivos governos estaduais de que a Bahia está no caminho certo.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3 De 1981 para cá, o crescimento da renda per capta dos baianos foi um dos piores. Mas nem sempre foi assim. Já houve época em que se pôde, na medida do possível, comemorar, Há duas décadas, segundo a pesquisa, aqui se tinha a segunda maior renda per capta do Nordeste. Tinha-se, ainda, o privilégio de ser a nona pior do Brasil. Hoje a Bahia amarga a quinta colocação.

Aspecto interessante do estudo feito por Osório; Medeiros (2002) é que este

foi publicado pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia

(SEI), órgão do Governo do estado, o que reforça ainda mais a credibilidade da

pesquisa.

O que temos aqui então? Por um lado, um modelo carlista de administração,

com influência política quase que ininterrupta ao longo de quarenta anos na Bahia,

que não conseguiu reduzir as desigualdades sociais, mas que, em três anos

consecutivos (2003, 2004 e 2005)26 como reflexo da política de modernização

econômica, iniciada na década de 1990, conseguiu fazer o PIB crescer,

percentualmente, o dobro do Brasil, como se pode ver no Gráfico 1.

25 Consta da matéria “Pobreza na Bahia é a mesma em 20 anos”, disponível em <http//www.atarde.com.br>. 2007. 26 Em 2006, PIB da Bahia ficou abaixo do PIB Nacional: 2,4% e 2,9%, respectivamente. A diminuição na intensidade do crescimento econômico do setor de transformação foi decisiva para este resultado, já que responde por 35% do PIB baiano e é concentrada num pequeno número de grandes empresas. A queda do PIB em 2006, segundo os técnicos da SEI, é reflexo também do mau desempenho do setor agropecuário (queda de 4,4% aproximadamente). Disponível em < http://www.jornaldamidia.com.br>.2007.

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Vê-se que, nos anos em que a Bahia obteve crescimentos significativos do

PIB, esse estado conviveu com níveis de pobreza consideráveis do ponto vista

social. Se foi bem economicamente, socialmente deixou a desejar. Não obstante, um

fato não deve passar despercebido: este crescimento econômico contribuiu para

uma redução nos níveis de pobreza do estado, em 9,5% no período 2003-2004,

como demonstrou o estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2005,

divulgado pelo Jornal A Tarde (2005: 17), com matéria de capa destacando:

“Pobreza na Bahia cai 9,5%”.

Por outro lado, considerando outra pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística (IBGE), em 2006, na qual foi analisado o grau de

insegurança alimentar da população, com base em Pesquisa Nacional por Amostra

de Domicílio (PNAD), 36% da população baiana passa fome. Algo em torno de 4,9

milhões de pessoas não se alimentam diariamente. Estima-se que, desse total, 4,3

milhões de pessoas famintas integra a população negra ou parda, o que acentua a

desigualdade, e, consequentemente, a exclusão social na Bahia. Segundo matéria

do Jornal A Tarde, do dia 10 de setembro de 2005, que divulga a pesquisa, esse

percentual coloca a Bahia no sexto lugar em número de famintos no Nordeste, atrás

apenas de estados como Maranhão (49,8%) e Paraíba (41%).

Poder-se-ia dizer, então, que a despeito das pesquisas e dos números

divulgados pela mídia baiana, o crescimento econômico por si só não tem sido

capaz de responder aos problemas sociais que o estado da Bahia enfrenta. Se o

2,8

0,5

9,92

4,89 4,8

2,3

0123456789

10

2003 2004 2005

Ano

BAHIABRASIL

Gráfico 1 - Taxa de crescimento do PIB. Bahia/Brasil de 2003/2005

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crescimento econômico contribuiu para dimunir a pobreza em 9,5%, como ocorreu

de 2003 para 2004, o desenvolvimento socioeconômico se mostrou ainda

insuficiente para garantir um direito mínimo que é a garantia de acesso à

alimentação básica, deixando de atender a 5 milhões de pessoas que passam fome,

num total de 13 milhões de habitantes.

Isso, de certo modo, demonstra a natureza de uma política pública que

estimula o desempenho econômico sem mecanismos que garantam,

simultaneamente, e na mesma magnitude, a justiça social. Daí que o crescimento é

importante para o desenvolvimento, não sendo, porém, suficiente. Isso remete a

outra discussão: estados como a Bahia, podem até ser eficientes economicamente,

mas convivem com uma cultura política27 concentradora de renda e do poder

decisório. A democracia representativa serve aos interesses de grupos que não

representam ainda os interesses da maioria representada. Daí que de fato a lógica

da riqueza existe, mas muito mal distribuída. E, distribuí-la com equidade, requererá

a desconstrução de comportamentos políticos viciados, estruturados e mantidos

historicamente.

Nem sempre os trabalhadores ganham para mais do que lhes é de direito

trabalhista, com o crescimento econômico. Em relação à indústria de calçados que

foi deslocada do Sul do país para a Bahia, os salários pagos aos operários baianos

não ultrapassa 1,5 salário-mínimo, a não ser, à custa de muitas horas extras e

elevada produtividade (Bahia, 2000). Ao passo que em localidades do Rio Grande

do Sul e São Paulo, o salário base médio da categoria oscila entre 2,0 e 2,5 salários.

Essa diferença salarial aponta a natureza excludente da “guerra fiscal” para

os trabalhadores nordestinos e baianos, reflexo da exploração capitalista em sua

nova versão, ao tempo que o Governo só percebe na industrialização e na geração

de empregos formais, “os benefícios sociais”. Não se vislumbra, para além dos

direitos trabalhistas (que são direitos, e ponto final) a qualidade desse emprego, as

condições de trabalho e suas consequências para a saúde pública e a previndência

social, por conta dos agravos relacionados ao trabalho e do absenteísmo.

27 Putnam (2005: 188) considera tal comportamento político como uma espécie de “subordinação à trajetória” histórica e cultural. Para ele, “o lugar que se deve chegar, depende do lugar de onde se veio, e simplesmente é impossível chegar a certos lugares a partir de onde se está”. Em outras palavras, mesmo crescendo economicamente, o Estado com características históricas específicas (concentração de renda, por exemplo) dificilmente conseguirá dar respostas à questão da desigualdade social se não abrir mão de determinados comportamentos e tendências, invertendo prioridades.

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Vários têm sido os autores ligados ao Ministério do Trabalho e Emprego

(MTE), que analisam dados sobre o emprego no Brasil e que se limitam a chamar de

“qualidade de emprego” o tipo de vínculo empregatício, quando, para os agentes do

Sistema Único de Saúde (SUS), que atuam na área da Vigilância a Saúde do

Trabalhador, qualidade de emprego envolve muito mais que o direito que embasa a

burocracia que permeia a assinatura de uma carteira profissional. Envolve sim, o ser

humano e o mundo do trabalho, numa análise mais profunda, mais subjetiva, e,

portanto, mais complexa.

Ao analisar a política pública não é aconselhável esquecer que a riqueza de

um país, apesar do avanço tecnológico em alguns ramos de atividade, dá-se,

necessariamente, a partir da sua força de trabalho, constituída de seres humanos,

homens e mulheres, que anseiam por trabalho em condições dignas.

Ignorar essa estreita relação entre o homem e o mundo do trabalho é reforçar

velhos paradigmas que destacam sempre os aspectos protetores da saúde inerentes

à atividade laboral (acesso a bens e serviços, a inserção social, auto-estima elevada,

etc.) e buscam desqualificar ou secundarizar os aspectos destrutivos da saúde

relacionados ao processo e organização do trabalho, como cobrança por

produtividade, doenças agudas e crônicas, assédio sexual e moral, bem como

acidentes graves e com óbito inerentes ao trabalho, na maioria das vezes

decorrentes do descumprimento das normas de saúde e segurança.

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6 QUALIDADE DE VIDA E SUA RELAÇÃO COM A AUTONOMIA E A JUSTIÇA SOCIAL NA AVALIAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO LOCAL/REGIONAL

Cabe aqui o esforço em definir melhor o termo qualidade de vida. De acordo

com Souza (2003), pela complexidade desta categoria de análise, é necessário

agregá-la a outras categorias, como a justiça social e a autonomia, para melhor

compreendê-la. O autor explica que a qualidade de vida (medida pela satisfação) e a

justiça social (avaliada pelo caráter equânime da política pública), são parâmetros

subordinados à autonomia que ele considera um “parâmetro subordinador” dessas

duas categorias, essencial, portanto, para o que ele denomina de “parametrização

do desenvolvimento socioespacial”. Ou seja, medir o nível desenvolvimento

socioeconômico levando-se em conta a espacialidade, requer, para esse autor, a

compreeensão do grau de satisfação individual e coletiva, bem como do exercício da

cidadania como pressuposto da autonomia, ampliando a justiça social.

Qualidade de vida, nessa abordagem, é uma categoria que resulta desse

contexto, muito mais ampla que a satisfação que advém do consumo de bens e

serviços. Segundo o autor:

[...] Sem autonomia individual, dificilmente muitos fatores que garantem uma boa qualidade de vida podem ser concretizados; e, na presença de uma significativa heteronomia no plano coletivo, será frequente a manipulação imbecilizante dos sentimentos de satisfação individual, como ocorre nas sociedades de consumo contemporâneas. Importa, de qualquer maneira, reafirmar que, se tanto a justiça social quanto a qualidade de vida são objetivos imprescindíveis, nenhuma das duas metas é, ao frigir dos ovos, propriamente mais importante que a outra (SOUZA, 2003: 67).

A autonomia individual e coletiva está relacionada, à capacidade decisória do

indivíduo e da coletividade. Nessa linha, a qualidade de vida e a justiça social

prescindem do exercício dessa autonomia subordinadora, ou seja, da capacidade do

cidadão e do gestor local de decidirem politicamente sobre o seu presente e o seu

futuro, como parte ativa na definição e implementação da política pública de

desenvolvimento loco-regional. Souza cita ainda que:

Uma vez que o caminho democraticamente mais legítimo para se alcançarem mais justiça social e uma melhor qualidade de vida é quando os próprios indivíduos e grupos específicos definem os conteúdos concretos e estabelecem as prioridades com relação a isso, podem-se considerar justiça social e qualidade de vida subordinados à autonomia individual e coletiva, enquanto princípio e parâmetro (SOUZA, 2003: 66).

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Considerando as três categorias; qualidade de vida, justiça social e autonomia

como elementos básicos para a configuração do desenvolvimento socioespacial,

Souza (2003) adverte para a possibilidade de relativização dos resultados sociais.

Para ele, escapando ao extremismo, é possível falar de desenvolvimento

socioespacial, pelo menos parcialmente, quando existirem ganhos relativos pela

população aos parâmetros subordinados (qualidade de vida e justiça social), sem

que haja avanço quanto aos parâmetros subordinadores (autonomia individual e

coletiva).

Diante disso, o ganho material (o salário, por exemplo); o aumento da

capacidade de consumo (a geladeira, por exemplo) e o acesso a serviços pontuais

podem ser considerados como situações que apontam certo nível de

desenvolvimento. Mas chama atenção para um aspecto importante relacionado ao

grau de autonomia que não deve ser menosprezado: “[...] considerando uma

situação-limite, escravos podem ser, materialmente, pior ou melhor tratados [...]”

(SOUZA, 2003:71). E, sem reforçar uma visão puramente economicista do

desenvolvimento, o autor reafirma as interfaces entre as categorias e a importância

da autonomia:

Daí não ser razoável postular um desenvolvimento sócio-espacial pleno ou autêntico, se o melhor desempenho de alguns parâmetros subordinados, notadamente os relativos à qualidade de vida, não se fizer acompanhar por melhorias no desempenho de outros parâmetros subordinados, referentes à justiça social, e, no limite, por melhorias no desempenho do parâmetro subordinador [autonomia] (SOUZA, 2003: 71-72).

Tal referência remete a Fonseca (2006), quando estuda o desempenho de

municípios baianos após a descentralização político-administrativa, visando maior

autonomia do nível local para fazer valer o que o autor chama de “potencial

endógeno” das localidades.

Fonseca (2006), à luz da discussão travada anteriormente por Arretche

(1996), cita que na América Latina, e, especialmente no Brasil, o debate em torno da

descentralização que foi fortalecido no contexto da redemocratização do país, após

a ditadura militar, a partir dos anos de 1980, quase como um consenso entre

partidos de direita e os partidos de esquerda. Sobre isso Fonseca (2006: 104)

esclarece que: “Apesar desta polarização político-ideológica em torno da

descentralização no Brasil, era consenso da direita e da esquerda, a importância do

maior papel dos municípios para a manutenção e fortalecimento do federalismo”. A

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CF de 1988 trouxe nova perspectiva político-administrativa para o ente federado

local, ampliando o seu potencial decisório e de auto-organização, como enfatiza o

autor: “[...] com estas inovações institucionais, passaram a concentrar [os

municípios] não só poder de decisão, mas também de ação, em questões

pertinentes ao seu papel” (FONSECA, 2006: 104). E é justamente neste “poder de

decisão” que se vê embutida a autonomia necessária à busca da equidade (ou

justiça social) e da melhoria das condições de vida, pela gestão municipal.

Tanto na abordagem de Souza (2003), ao tratar a autonomia individual e

coletiva como parâmetros subordinadores da qualidade de vida, quanto na visão de

Fonseca (2006), que vê na descentralização a possibilidade de maior autonomia

política e administrativa dos municípios, é possível visualizar a categoria analítica

autonomia como um pressuposto fundamental para o estudo do desempenho da

política pública de desenvolvimento socioeconômico. Esse é conseqüência do

processo democrático em favor da liberdade para decidir e agir em busca do

aumento da justiça social, manifestada na equidade do gasto e do investimento

públicos para a melhoria da qualidade de vida da sociedade como um todo, ou em

favor do que Souza (2003) chama de “mudança social positiva” (ou do

desenvolvimento socioespacial), a partir da valorização dos parâmetros já citados e

do reconhecimento do espaço ou território como algo dinâmico e interativo, como

assim expressa:

Em termos muito singelos e puramente introdutórios, pode-se dizer que se está diante de um autêntico processo de desenvolvimento sócio-espacial quando se constata uma melhoria da qualidade de vida e um aumento da justiça social. A mudança social positiva, no caso, precisa contemplar não apenas as relações sociais, mas igualmente a espacialidade. A importância do espaço (que é palco, fonte de recursos, recurso em si [localizações], arena, referencial simbólico/identitário e condicionador, que é substrato material, lugar e território), na sua multidimensionalidade [...] (SOUZA, 2003: 61).

A descentralização político-administrativa analisada por Fonseca (2006), pode

garantir aumento da autonomia municipal, mas nem sempre significa autonomia dos

munícipes, principalmente em territórios onde, por sua construção histórica e

política, persiste a tradição da não-participação, ou da não participação cívica,

explicada por Putnam (2005), num estudo do desempenho de regiões da Itália após

a descentralização administrativa, no qual mostra a influência do civismo no

desempenho governamental entre as regiões Norte e Sul daquele país.

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Exemplificando esse ponto de vista, se um gestor municipal em parceria com

o estado define e executa a política de desenvolvimento local-regional, isso nem

sempre significa a participação da sociedade organizada no processo decisório, o

que relativiza, significativamente, a autonomia enquanto liberdade e capacidade de

decisão da coletividade e a própria autenticidade do desenvolvimento na visão de

Souza (2003). Simultaneamente, a autonomia apontada por Fonseca (2006),

embora se processe no âmbito político-administrativo, como reflexo da política de

descentralização de ações do nível de gestão federal para o local, embasada na CF

de 1988, ela deve se estender gradativamente às demais esferas da sociedade,

ampliando essa liberdade decisória (individual e coletiva) da população, encontrando

um terreno fértil num ambiente democrático; ou vice-versa, num lugar cuja história

social demonstre a existência da prática cívica, com grande capital social, mesmo

em modelos centralizadores, e no qual é a sociedade organizada que define, em

grande parte, a característica da política pública. Eis o ponto de convergência entre

as abordagens de Souza (2003) e Fonseca (2006), sobre a autonomia, onde ambas

não se excluem, ao contrário, se complementam.

Entretanto, é necessário observar que, considerando-se o conceito de

comunidade cívica adotada por Putnam (2005), essa participação social não é tão

simples de se efetivar somente pela existência de um estado descentralizado e

democrático, pois o civismo tem a sua origem no processo histórico da comunidade.

Sem laços de solidariedade e sem experiências conjuntas de luta, mesmo num

regime democrático ou num modelo descentralizado, onde se pressupõe certa

liberdade decisória, a sociedade pode não se manifestar. Um exemplo claro pode

ser o processo de industrialização da região Sudoeste onde a comunidade local-

regional, para além de suas representações políticas e administrativas, não

participou ativamente das discussões e deliberações.

É neste ponto que as instituições cívicas exercem papel importante no

desenvolvimento socioeconômico do nível local, na avaliação de Fonseca (2006).

Esse autor baseado em Putnam (1996) afirma, ao tecer uma criteriosa análise sobre

o desempenho de municípios baianos pós-descentralização no Brasil, no período de

1997 a 2003, que o potencial endógeno desses municípios para o desenvolvimento,

sofrem influência das instituições cívicas, entendidas como interesse da comunidade

pelos negócios públicos. De acordo com Fonseca, essas instituições formam a base

da comunidade cívica que

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[...] caracteriza-se pela participação da sociedade nas decisões e escolhas públicas, pela predominância das relações horizontais de reciprocidade e cooperação, pela presença de cidadãos solidários, tolerantes e confiantes um no outro. Quer dizer, diz respeito a construções endógenas construídas historicamente e transmitidas via processo de socialização. Essas restrições constituem um marco que serve de referência para a tomada de decisões e para as ações (FONSECA, 2006: 39).

Ou seja, fatores socioculturais podem interferir no desempenho da política

pública de desenvolvimento local-regional, quando contribuem para a participação

cívica, representando ganhos positivos para a sociedade, pelo exercício da

cidadania. Putnam (2005: 132) defende “que o principal fator que explica o bom

desempenho de um Governo é certamente até que ponto a vida social e política de

uma região se aproxima do ideal da comunidade cívica”. Sobre isso, o autor

esclarece que

Na comunidade cívica, a cidadania implica direitos e deveres iguais para todos. Tal comunidade se mantém unida por relações horizontais de reciprocidade e cooperação, e não por relações verticais de autoridade e dependência. Os cidadãos interagem como iguais, e não como patronos e clientes ou como governantes e requerentes (PUTNAM, 2005: 102).

Desse modo, o autor deixa transparecer que nesta comunidade o modelo de

ação política implica um nível de autonomia que se exerce de forma plena, como

resultante do exercício do direito e da prática do dever, onde a relação entre a

sociedade e Governo se dá motivada pela cidadania para além de um direito formal,

(a cidadania em ação) contribuindo os agentes sociais para o desempenho

governamental e para o bem estar geral.

Não se trata aqui, de uma comunidade de “santos”, como adverte o autor,

mas uma comunidade que respira ares democráticos, e na qual a democracia não

significa ausência de conflitos, mas aquela na qual, existindo tais conflitos, esses

sempre serão estimulados pelo interesse pelo bem comum e não pelo interesse

particular ou privado. Como explica o autor:

A participação numa comunidade cívica pressupõe mais espírito público do que essa atitude, mais voltada para vantagens partilhadas. Os cidadãos de uma comunidade cívica não são santos abnegados, mas consideram o domínio público algo mais do que um campo de batalha para a afirmação do interesse pessoal (PUTNAM, 2005: 102).

Todavia, não se deve perder de vista aspectos relacionados à participação

social e ao processo decisório (autonomia), como adverte Souza (2003: 66): “[...] a

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liberdade em que se acha eventualmente embebido um processo decisório não é,

por si só, garantia alguma de que as decisões serão acertadas e se traduzirão em

melhor qualidade de vida.” Neste aspecto é que Souza (2003) enfatiza que a justiça

social mantém relações intrínsecas com a autonomia individual e coletiva, enquanto

que, em relação a autonomia e a qualidade de vida, é prudente relativizar a

interdependência entre as duas categorias, embora fique patente que com mais

autonomia individual e coletiva maior é a possibilidade de melhoria da qualidade de

vida. Nessa linha de pensamento o autor explica o seguinte:

[...] é que, sem autonomia individual, dificilmente muitos dos fatores que garantem uma boa qualidade de vida podem ser concretizados; e, na presença de uma significativa heteronomia no plano coletivo, será frequente a manipulação imbecilizante dos sentimentos de satisfação individual, como ocorre nas sociedades de consumo contemporâneas. Importa, de qulaquer maneira, reafirmar que, se tanto a justiça social quanto a melhoria da qualidade de vida são objetivos imprescindíveis, nenhuma das duas metas é, ao frigir dos ovos, propriamente mais importantes que a outra (SOUZA, 2003: 66-67).

Vê-se, assim, que tão importante quanto a participação social e a liberdade

decisória — individual e coletiva — é a qualidade da participação cívica. Em

municípios sob regimes democráticos onde as relações entre Governo e munícipes

se dão em modelos verticalizados (com hierarquia rígida) por certo que a

participação social estará limitada. Se, ao contrário for, em um modelo mais

horizontalizado de participação, os cidadãos terão ampla presença em espaços

deliberativos da vida pública, debatendo prioridades e propondo alternativas.

Vale lembrar, ainda, que numa democracia representativa como a do Brasil, é

possível considerar que a população se manifeste por meio dos representantes

partidários, porém, nem sempre as representações partidárias escolhem o melhor

caminho na opinião dos seus representados. Isso fica patente no estudo de Fonseca

(2006), quando analisa a opinião de lideranças comunitárias nos três municípios

baianos estudados por ele (Ilhéus, Vitória da Conquista e Feira de Santana) onde

sob Governos ditos “participativos” a participação é mesmo relativa.

Assim sendo, a definição da melhoria da qualidade de vida para a população

de um município ou e região, a partir da política pública do Governo para o

desenvolvimento local-regional, tomando por base a geração de emprego e renda

possibilitada pela produção de calçados, não poderá se basear em indicadores

puramente econômicos, cuja metodologia, em sua construção, tenha

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desconsiderado as vozes de agentes sociais relevantes, como aconteceu com o

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em 2001, ao

escrever o relatório sobre o “bom” desempenho social da indústria de calçados

Azaléia Nordeste. Assim informa o BNDES:

Este trabalho apresenta limitações muito claras por não ter pesquisa de campo com a prefeitura de Itapetinga, além de entrevistas com representantes da população e dos empregados da Azaléia. Foi baseado em pesquisa bibliográfica e informações prestadas pela empresa (BNDES, 2001:16. Grifo nosso).

O agente financiador da expansão industrial na Bahia (BNDES) toma o

crescimento econômico por desenvolvimento ou mudança social positiva e considera

os resultados sociais pautados em indicadores basicamente econômicos, cedidos

pela própria empresa avaliada, desconsiderando outras categorias e parâmetros

importantes para a avaliação da qualidade de vida. O relatório do agente financiador

chega a afirmar que “na definição de resultados sociais adotou-se conceito flexível,

objetivando gerar o maior número de informações” (BNDES, 2001:1), que poderiam

ser posteriormente trabalhadas com o rigor conceitual que está sendo firmado pelas

organizações empresariais.

Assim, cabe perguntar: como falar da qualidade de vida da população

trabalhadora (enquanto nível de satisfação) sem ouvi-la? Como ignorar outras fontes

de informação e indicadores imprescindíveis na definição e conceituação do que o

relatório do BNDES chama de “resultados sociais positivos”? Como não incluir o(a)

trabalhador(a) e as condições de trabalho na definição e execução das políticas

públicas de desenvolvimento regional, levando em conta as repercussões do

trabalho sobre a saúde e a condição de vida dos(as) trabalhadores(as) neste

contexto? (Anexo A)28.

Essa unilateralidade é questionável, e esse discurso do “resultado social

positivo” adotado pelo Governo e os agentes financiadores, precisa ser testado à luz

de análises não reducionistas.

O BNDES inicia o seu relatório afirmando a preocupação social da empresa

para quem chega a ser “uma referência” pois “a empresa já nasceu sob valores

culturais que preconizavam a ação social” (BNDES, 2001: 1). E acrescenta:

28 No anexo A é possível visualizar fotografia de trabalhador jovem, vitima de caidente de trabalho na Azaléia Nordeste, com parte do membro superior amputado.

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A experiência acumulada em mais de 40 anos de atividades no município gaúcho de Parobé-RS, combinando a gestão de resultados, típica da esfera privada, sem descurar da atuação de tipologia pública, serviu de referência para a integração social que está sendo estruturada no Projeto Azaléia Nordeste (BNDES, 2001:1).

Considerando a implantação da indústria de calçados na Bahia, a partir da

década de 1990, como resultado da política pública de desenvolvimento, percebe-se

que o ganho fiscal, embora reduzido, pela política de incentivos do governo do

estado, não está eliminado. Porém, como vimos em Varsano (1997) o que se

arrecada de ICMS, no entanto, representa um valor ínfimo diante da tributação

original, se constituindo num ganho relativo e temporário para o estado ou para os

municípios que acolhem as empresas. Ou seja, o que a industrialização gera retorna

para o município numa proporção mais favorável ao que ele perde do ponto de vista

socioambiental? Eis a questão da redistribuição, e conseqüentemente da justiça ou

injustiça social, a ser verificada.

A política pública ganha forma como sendo “do Governo”, e, neste contexto, o

município é posto como o ente federativo que recebe o “benefício” da

industrialização, como se essa industrialização só trouxesse consigo vantagens para

o nível local, como quer fazer crer o BNDES, quando descreve em seu relatório o

resultado da avaliação das condições de saúde dos(as) trabalhadores(as) da Azaléia

Nordeste, não citando os problemas de saúde de natureza ocupacional provocados

pelo processo de trabalho na empresa, informando superficialmente que

De um modo geral, as condições dos funcionários são consideradas regulares, embora, conforme informações levantadas nas fichas funcionais, sejam encontradas doenças associadas à carência social, como alguns problemas dentários e desnutrição. Existem também enfermidades relacionadas à falta de higiene, como verminoses e alguns casos de tuberculose (BNDES, 2001:14).

Nessa perspectiva, é a empresa Azaléia Nordeste que, ironicamente, passa a

sofrer o impacto do ambiente social no qual se instalou, ao supostamente absorver

os problemas de saúde inerentes às condições de vida da população trabalhadora

local/regional, e não o contrário, quando provoca as patologias relacionadas ao

trabalho, executado em condições precárias.

A autonomia administrativa sofre abalos da verticalização da ação estadual na

medida em que a escolha do local não parte de uma decisão coletiva de agentes

sociais interessados em suas várias escalas. O Governo, pelo potencial econômico

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do qual dispõe, e pelas condições legais próprias do ente federado, tem a

pregorrativa da escolha, pois pode conceder mais incentivos e outros benefícios

para as empresas que os municípios. Nesse aspecto é que a dependência ao

estado sufoca a autonomia do nível local, que sofrerá o rebatimento direto das

políticas de Governo.

É assim que as repercussões sobre o meio ambiente e sobre a saúde da

população trabalhadora, exposta a novos riscos ocupacionais, surgem como

problemas concretos inerentes ao processo de indusrialização, mas, nas etapas de

planejamento e avaliação das políticas públicas, permanecem à margem das

discussões ou são tratados como questões secundárias.

Sobre os diversos interesses e a posição dos Governos estaduais na

definição das políticas públicas, explica Corrêa (1995):

Esta complexa e variada gama de possibilidades de ação do Estado capitalista não se efetiva por acaso. Nem se processa de modo socialmente neutro, como se o Estado fosse uma instituição que governasse de acordo com uma racionalidade fundamentada nos princípios de equilíbrio social, econômico e espacial, pairando acima das classes sociais e de seus conflitos. [...] Tende a privilegiar os interesses daquele segmento ou segmentos da classe dominante que, a cada momento, estão no poder (CORRÊA, 1995: 26).

Sem embargo, é possível constatar que a elite local que, na opinião de

Fonseca (2006) sofre constrangimentos por força da ação vertical de um Governo

conservador, surge na fala de Corrêa (1995) como beneficiada, de alguma forma,

pela ação da esfera estadual. O “constrangimento” da elite política de um município

termina, ao sabor das circunstâncias, por transformar-se em privilégio político-

eleitoral, quando esses agentes políticos locais se beneficiam dessa situação.

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7 ASPECTOS SOCIAIS, POLÍTICOS, ECONÔMICOS E CULTURAIS RELACIO-NADOS À IMPLANTAÇÃO DA FÁBRICA DA AZALÉIA NO MUNICÍPIO DE ITAMBÉ

O município de Itambé está situado na região Sudoeste da Bahia, possui uma

área de 1.626 Km² com dois distritos (Catolezinho e São José do Colônia). Na sede

municipal, concentra-se a maior parte da população (72%) de um total de 33.776 em

2007 (IBGE, 2007). A riqueza econômica gerada no município em 2004 foi de R$

87.720 mil, do qual o setor agropecuário contribuiu com 47,6%, seguido do setor de

serviços com 44,4% e da indústria com 8%29.

O município vem sendo governado pela mesma corrente política a quarenta

anos. O grupo é dividido em dois ligados ao Senador Antonio Carlos Magalhães,

denominados “lambaris” e “tubarões”. Assim, a alternância no poder local, de quatro

em quatro anos, não tem representado mudança no modelo político-administrativo

desencadeando uma forte influência nas características da política pública.

As grandes extensões de terra limitadas à criação de gado para corte e

produção de leite foram ao longo do tempo transformando-se em fator de exclusão

do homem do campo, forçado a rumar em direção à cidade. Embora cortada por

vários rios, sendo os principais o Catolezinho, Verruga e Pardo, o município sofre

com a ausência de uma política pública que leve em conta o seu potencial endógeno

(agropecuário), exemplo disso é a dimensão irrisória da produção agrícola, com forte

dependência de produtos oriundos de outros municípios (hortaliças, legumes,

verduras).

A produção do leite, que coloca o município como principal bacia leiteira da

região, e a décima segunda do estado (há dez anos atrás era a primeira) não é

valorizada tecnologicamente, com a predominância do produto in natura

comercializado em latas nas ruas, de qualidade duvidosa do ponto de vista sanitário

e sem valor agregado.

Vê-se que o estilo político centralizador e personalista (carlismo) em Itambé

afetou diretamente o desempenho governamental, e estimulou a dependência dos

cidadãos ao poder público local, que se torna “o grande benfeitor”, por meio de

29 IBGE, 2006; Seplan, 2006.

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recursos de compensação da miséria com forte componente eleitoral30. A

participação social na definição das políticas direcionadas ao desenvolvimento local

é insignificante ou inexistente. Nos pleitos eleitorais percebe-se nas falas do povo,

ao retornar das urnas: “já votei, perdi o valor”. Isso denota que o ato de votar tipifica

uma obrigação do votante itambeense, e, simultaneamente, a sua aceitação à

condição de “agente inferior” no processo decisório, que é a escolha do prefeito e do

corpo legislativo municipal.

É neste ambiente, onde o engajamento social é ínfimo e as políticas públicas

sofrem a influência da agenda eleitoral, que se instalou duas unidades de produção

da Azaléia Nordeste. A empresa instalou sua matriz industrial no município de

Itapetinga, em 1996, e atualmente emprega 7.319 funcionários. No ano seguinte, em

Itambé, foram construídas as fábricas nos bairros Sidney Pereira de Almeida e

Humberto Lopes, onde trabalham hoje cerca 627 funcionários.

Com a matriz industrial em Itapetinga, a Calçados Azaléia possui 17 galpões

de produção espalhados nos municípios de Caatiba, Itambé, Itororó, Potiraguá,

Itarantim, Macarani, Maiquinique, Firmino Alves, Ibicuí e Iguaí, produzindo

aproximadamente 80 mil pares de calçados/dia (Tabela 1).

De um modo geral, o processo de produção de calaçados da empresa Azaléia

30 Paga-se contas de luz, água; entrega-se cestas básicas a famílias específicas, como se fosse uma

ação legítima e cotidiana.

Tabela 1 - Distribuição das fábricas da Azaléia na região Sudoeste e número de trabalhadores

empregados por município – 2007

Localidade Número de Trabalhadores

Itapetinga 7.319 Caatiba 262 Itambé 627 Itororó 1.252 Potiraguá 311 Itarantim 311 Macarani 620 Maiquinique 314 Firmino Alves 476 Ibicuí 251 Iguaí 244 TOTAL 11.987 Fonte: Sindicato de Verdade, 2007.

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Nordeste consiste em corte de cabedal, costura, montagem, pré-fabricado,

pesagem, prensagem de sola de borracha, moldagem, preparação/prensagem de

EVA e preparação da palmilha (Quadro 2).

A fabricação de calçados constitui um processo produtivo bastante

fragmentado e repetitivo em que os trabalhadores devem realizar as distintas tarefas

ao longo de toda a jornada diária de trabalho com destreza e rapidez para ao

mesmo tempo manter os índices de produtividade sempre elevados e o controle de

qualidade para evitar perdas de material segundo uma lógica do “taylorismo

primitivo” como nos lembra Lipietz (1988).

Nesse processo de trabalho repetitivo, meticuloso, e em ritmo acelerado, o

risco de acidente leve ou grave, no manuseio das máquinas, é iminente e espreita

o(a) trabalhador(a). A própria natureza do trabalho em condições ergonômicas que

não são as recomendáveis, associadas a exposição aos níveis elevados de ruído e

substâncias tóxicas presentes no ambiente fabril, favorecem o adoecimento precoce

da força de trabalho.

Com base no Quadro 3 pode-se reconhecer as condições que, juntas,

favoreceram a instalação da indústria Azaléia Nordeste no município de Itambé,

segundo uma lógica de ocupação provisória dessa parte do espaço geográfico.

Quadro 2 - Principais etapas de produção de calçados Etapas de produção Descrição

Corte de cabedal São cortadas no balancin as peças de couro natural ou sintético para formação do cabedal ou parte superior do calçado.

Costura As peças que formam o cabedal são costuradas.

Montagem Costura da sola com o cabedal (pré-conformação, colagem do solado ao cabedal).

Pré-fabricado Tarefas de preparação de solados: lixar as bordas e bico do solado (refilagem), colagem do bico do solado, secagem.

Presagem de sola (borracha) Sob temperatura elevada (em torno de 100Cº) é feita a colagem do cabedal no solado de borracha

Prensagem de EVA Preparação da palmilha de conforto e colagem do cabedal de EVA no solado

Revisão Exame visual das peças para controle de qualidadeFonte: CESAT, 2000. Organizado pelo autor.

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O caráter provisório da permanência da empresa na região aparece no

relatório da Seplan (BAHIA, 2000: 73) ao descrever as condições desfavoráveis para

a fixação da empresa na região ao destacar que “[...] maior qualificação dos

trabalhadores contratados implicam o surgimento dos sindicatos dos trabalhadores,

que começarão a pressionar as empresas por melhores condições de trabalho e de

salários [...]”, podendo estimular a sua relocalização. Antes, porém, o relatório

informa:

Esse novo cenário concorrencial e produtivo [...] vem causando internacionalmente o fenômeno da relocalização de muitos empreendimentos. Pode-se observar que os países que possuem maior custo com mão-de-obra, vem perdendo participação na produção mundial de calçados. Na década de 70, entretanto, parte da produção mundial desloca-se em direção a outros países em desenvolvimento, com mão-de-obra a custos mais baixos, havendo, por conseguinte uma inversão na configuração mundial (BAHIA, 2000: 16).

Nessa parte o relatório se refere ao deslocamento das indústrias de calçados

de países exportadores como Itália e Reino Unido, que passaram a importadores

dos países em desenvolvimento como o Brasil, os Tigres Asiáticos e a China.

Cabe então a retomada do papel do(a) trabalhador(a) no processo de

produção, entendendo-os como sujeitos que reagem às situações inóspitas,

Quadro 3 - Fatores que favoreceram a instalação da fábrica da Azaléia Nordeste no município de Itambé

Nível 1 (Fator socioinstitucional)

Nível 2 (Fator econômico)

Nível 3 (Fator eleitoral)

Força de trabalho desqua-lificada, abundante e barata.

Disponibilidade de lotes de terrenos amplos e gratuitos, energia elétrica e transporte.

Estilo político das lideranças locais elegendo a geração de emprego e renda como bandeira eleitoral.

Ausência de organização política e sindical da categoria profissional.

Oferta de infra-estrutura física.

Fragilidade da ação fiscalizadora da DRT.

Incentivos fiscais (isenção de ICMS).

Relação direta da empresa com os Governos estadual e local na definição política do espaço geográfico ocupado.

Elevada taxa de desempre-go na população local.

Flexibilização das relações de trabalho.

Omissão da administração municipal no planejamento das políticas públicas a partir da cultura e potencial local, privilegiando a cultura industrial e o clientelismo.

Ausência de atuação da vigilância a saúde do trabalhador nos municípios onde as fábricas foram instaladas. Fonte: CEREST, 2007. Adaptado pelo autor

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produzindo direta e indiretamente mudanças significativas no plano operacional de

empresas do ramo de calçados. Tal reação coletiva se expressa geralmente pela

organização sindical frente ao conjunto de problemas de ordem trabalhista e de

saúde ocupacional que passaram a identificar.

Não é à toa que na Itália e em outros países, com forte história de luta e

engajamento social e política da população, a postura frente ao trabalho precário

inerente à produção de calçados sem dúvida sofreria alguma resistência da força de

trabalho e de setores da sociedade democrática31, o que não ocorre em regiões sem

essa tradição, como bem retratou a pesquisa divulgada por Putnam (2005),

tampouco no município de Itambé, onde a fábrica, diante da ausência de política

pública integradora e articulada, é tida simplesmente como a salvação para muitos

daqueles que vivem condicionados aos baixos salários retirados do ato de plantar e

colher, cuidar da criação, quando encontram essa opção. Outros, mais afortunados,

conseguem vagas nos balcões do insipiente comércio local, ou prestam serviços, via

contrato temporário na prefeitura (com forte teor partidário e eleitoral).

A ocupação de uma parte do espaço geográfico tem lá suas sutilezas, nem

sempre se dá de forma chocante, num primeiro momento. No nível 1 do Quadro 3,

(fator socioinstitucional), vê-se os fatores preponderantes para a segurança

financeira das empresas que precisam explorar meticulosamente suas

possibilidades de ganhos e de competitividade no mercado, e que optam por locais

como Itambé, onde a força de trabalho desqualificada, abundante e barata, ou seja,

facilmente entregue, remonta um quadro histórico expresso na carta de Pero Vaz de

Caminha, datada de 1.500. Assim, não é difícil comparar alegoricamnete a chegada

da Azaléia Nordeste em Itambé com as impressões de Caminha ao ter contato com

a “nova terra” quando descreve:

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas [...] Nicolau Coelho lhes fez sinal que posassem os arcos. E eles pousaram. Ali, não pode deles haver fala, nem entendimento de proveito [...] Deu-lhes somente um barrete vermelho e uma carapuça de linho [...] (CAMINHA, 1500: 93)

31 Para Chauí (2006: 60), o termo “sociedade democrática” foi cunhado pelo pensamento de esquerda e exprime “as lutas dos trabalhadores que ampliaram a concepção dos direitos que o liberalismo definia como civis e políticos, introduzindo a idéia de direitos econômicos e sociais. Na concepção de esquerda, a ênfase recai sobre a idéia e a prática da participação, ora entendida como intervenção direta nas ações políticas, ora como interlocução social que determina, orienta e controla a ação dos representantes”.

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Comparativamente, a população trabalhadora de Itambé e de municípios da

região, desprovida de defesas ou de certos preconceitos, viu na chegada da

empresa Azaléia Nordeste a possibilidade de dias diferentes e “baixaram seus

arcos”, ou sequer foram levantados. Não recebeu “barrete”, nem “carapuça”, mas um

avental azul, um salário do primeiro mês, depois oito a nove horas de trabalho em

pé, metas inatingíveis sob a ausência de pausa para oxigenação dos músculos,

vergando-se sobre as máquinas, num esforço contínuo de adaptação à mudança de

ritmo, experimentando, conseqüentemente, os primeiros sinais de fadiga muscular, a

tensão emocional menosprezada pela cobrança de produtividade, o adoecimento, o

afastamento previdenciário (quando consegue), a seqüela, e, depois, a demissão.

É o retrato do(a) trabalhador(a) submetido(a) a um regime flexível, que

motivou Sennet (2001: 61) a indagar: “haverá limites para até onde as pessoas são

obrigadas a dobrar-se?” ou mesmo questionando se pode “o Governo dar as

pessoas alguma coisa semelhante à força tensil de uma árvore, para que os

indivíduos não se partam sob a força da mudança”.

Este é um resultado pouco divulgado, mas, que resulta antes da estratégia da

empresa que conta com a ação permissiva de um Governo amplamente

contraditório, e, como diria Vazquez, P.

[...] trata da vantagem sinalizada pelo governo estadual, da existência de terras virgens, ou seja sem tradição de organização sindical operária indústrial [...] trata-se do colonizador que vem gozar a terra sem interditos, sem limites, até esgotá-la (VAZQUEZ, P. 2007: 10).

A chegada da indústria a Itambé sem qualquer discussão prévia e mesmo

posterior até agora com os segmentos sociais, remete a uma situação semelhante a

ocorrida nos primórdios da história do Brasil. Isso porque na relação Portugal-Brasil

constata-se o processo de colonização internacional, baseado na conquista e

exploração de espaços geográficos para manutenção do poder, onde o diálogo

tornou-se vertical e impositivo, ao passo que na relação atual Sul-Nordeste

brasileiro, têm-se um processo interno na busca das “terras virgens” e férteis ao

interesse capitalista, que privilegiou os municípios de pequeno porte da região

Sudoeste a exemplo de Itambé, reforçado por um forte componente cultural que

caracteriza a relação capital/trabalho, entre dominadores e dominados, onde o

diálogo é sempre unilateral.

Observa-se assim, os reflexos da globalização no âmbito local-regional, ou,

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como diz Santos, M. (2003: 67-68) “[...] de um modo geral, estamos assistindo à

não-política, isto é, à política feita pelas empresas, sobretudo as maiores”, de modo

que “[...] quando uma grande empresa se instala, chega com suas normas rígidas

[...]”, cobrando da força de trabalho a flexibilidade que lhe falta no trato com as

limitações e necessidades humanas e sociais.

As normas estabelecidas por essas empresas, principalmente em municípios

de pequeno porte, transcendem as paredes das fábricas. As chefias das empresas

exercem, muitas vezes, mecanismos de controle comparável a uma espécie de

policiamento da vida social do indivíduo. Sobre a situação do ramo calçadista da

Bahia, a psicóloga NEIM/UFBA, Vazquez, W. salienta:

[...] essas indústrias chegam em lugares, cidades muito pequenas e elas passam a ter status de lei, já que empregam muitas pessoas. [...] Percebi como as trabalhadoras e trabalhadores vivem acuados. Eu vejo claramente a infeliz herança do trabalho escravo. Essas chefias atuam como capatazes (ENTREVISTA)

Ora, a natureza predatória da relação empresa/operário(a) pode ser

evidenciada na recusa dos(as) trabalhadores(as) da Azaléia de Itambé e região, em

aceitarem o modelo hierárquico adotado pelas gerências da fábrica que praticam o

abuso em forma de assédio moral (humilhações, constrangimentos de toda

ordem)32, como esclarece “S2” do “Sindicato de Verdade”33, ao justificar a resistência

dos trabalhadores a esse padrão administrativo:

A gente espera que a Azaléia venha pra ficar, mas se for embora não deixar um monte de pessoas lesionadas, um monte de pessoas mutiladas. Realmente esse capital selvagem, só lucrar, tirar lucro, querer fazer do couro do trabalhador, do couro da juventude, sapatos, se eles vieram com esse pensamento está fora de cogitação (ENTREVISTA).

O que os(as) trabalhadores(as) deixam claro é que a questão cultural é um

forte componente que favorece tais práticas inerentes ao processo de deslocamento

da Azaléia da região Sul do país para o Nordeste, e a baixa qualidade das relações

32 Na Câmara dos Deputados, estão em análise oito Projetos de Lei (PLs) sobre o assunto. Um deles é o PL 2369/03, do deputado Mauro Passos (PT-SC), que proíbe o assédio moral nas relações de trabalho. A proposta não transforma o assédio moral em crime, mas em ilícito trabalhista, que pode gerar o direito à indenização. "É necessário combater o assédio moral, que tem conseqüências devastadoras para a saúde física e psíquica do trabalhador, afeta a sua vida familiar, social e profissional, resultando em ausências ao trabalho", afirma o deputado (Disponível em www.câma ra.gov.br) 33 O “Sindicato de Verdade”, com sede em Itapetinga, passou a funcionar em 19 de novembro de

1999, três anos após a instalação da Azaléia Nordeste na região Sudoeste.

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humanas no trabalho, embora esse aspecto não seja considerado pelos

fomentadores do crescimento econômico como o principal motivador dos conflitos

entre trabalhadores e empresa. Por exemplo, os gerentes da Azaléia em toda a

região Sudoeste, são predominantemente oriundos do Rio Grande Sul e agem de

forma preconceituosa em relação aos trabalhadores baianos, que sofrem o peso do

estigma de serem “preguiçosos/as” e “dementes”.

Não à toa, em estados do Sudeste e Sul, é comum que qualquer pessoa que

cometa uma pequena falha no serviço e em qualquer atividade seja apelidada de

“baiano/a”. Talvez por isso o neo-colonizador sulista ao chegar aqui, em 1996,

percebeu, assim como o colonizador português, em 1.500, que os trabalhadores

eram como os índios, corteses, porém, não adaptáveis a modos de escravidão: ou

resistiam até a morte ou adoeciam facilmente por causa da carga excessiva de

trabalho.

Prova disso foi a primeira manifestação de resistência dos operários baianos

na região, que aconteceu em 2000, quatro anos após a implantação da indústria em

Itapetinga, com a paralisação das máquinas, inclusive em Itambé,34 diante da recusa

em aceitarem passivos o assédio moral, os acidentes e o adoecimento, decorrente

do trabalho sem pausa, feito em ritmo acelerado, para atender metas incompatíveis

com a capacidade humana.

Para “S2” do “Sindicato de Verdade” esse movimento teve como estímulo

uma perspectiva catastrófica, do ponto de vista epidemiológico:

Nós achamos que daqui a dez anos, pela proporcionalidade de acidente, se continuar, entre dez jovens, vai ter dois ou três acidentados, perdendo falange de dedos, mutilados, com depressões, sendo que pessoas já se mataram, acho que em 2001, quando um coordenador colocou uma arma na cabeça devido a pressão psicológica (ENTREVISTA).

Os que não conseguiram se adaptar ao processo de trabalho, sucumbiram ao

adoecimento e foram demitidos. Em 2004, por conta do alto índice de adoecimento,

principalmente as Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e as Doenças

Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT), ocorreu o maior movimento,

no qual 94% dos quatro mil trabalhadores de Itapetinga pararam as máquinas por

treze dias, sendo que no oitavo dia a reação da empresa, apoiada pela imprensa

34 Cabe ressaltar que a paralisação das filiais, a exemplo de Itambé, se deu muito em função da ausência de matéria-prima que, em função da grave na matriz em Itapetinga, não chegava até os galpões de produção, inviabilizando o processo de produção de calçados na região.

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local e regional, se deu, entre outras estratégias de conter o movimento, “pela

presença da polícia militar, que teve seu aparato reforçado pelos batalhões de

Vitória da Conquista, Itabuna e Ilhéus”. Itambé e demais municípios pararam por

força da estratégia, “pois sem a matéria-prima que sai da matriz, automaticamente

foram obrigados a parar”, como explicou o sindicalista “S3” do ”Sindicato de

Verdade”.

Outro sindicalista da mesma base sindical, “S4”, complementa a informação

explicando que

Naquele momento de greve, a partir do oitavo dia que a empresa começou a pressionar, a Câmara de Vereadores, o prefeito da cidade, autoridades do governo, que na época era governado pelo pessoal do PFL, foram totalmente contra o sindicato, contra o movimento dos trabalhadores. Ninguém apoiou o nosso movimento na cidade, só tivemos apoio do sindicato dos Químicos e Petroleiros, [...], do Partido dos Trabalhadores, porque o pessoal da cidade [...] não apoiou o movimento (ENTREVISTA).

O movimento grevista ecoou na Assembléia Legislativa do Estado, quando no

dia 13 de abril de 2004, o deputado Daniel Almeida (PC do B) declarou, em

requerimento n.º 94/0435 enviado à presidência do legislativo, a necessidade de uma

Comissão externa da Casa para uma visita oficial à Indústria de Calçados Azaléia no

município de Itapetinga, “com vistas acompanhar os desdobramentos da greve dos

trabalhadores ocorrida entre os meses de março e abril deste ano, em especial a

ameaça de demissões”. Adiante, em seu requerimento, o deputado enfatiza:

Com a greve, que é um direito justo dos trabalhadores [...] a empresa está ameançando demitir os trabalhadores em represália à atividade paradista. As informações são de que até o momento cerca de 380 trabalhadores já foram demitidos e há anúncios de que este número poderá chegar a 2 mil demissões.

Infere-se pelos depoimentos de todos os sindicalistas ouvidos, tanto da Fetrav

quanto do “Sindicato de Verdade”, que a questão central do movimento foi a saúde

dos trabalhadores, inclusive servindo como tema motivador para a reorganização da

ação sindical na região, antes direcionada para a questão salarial. A melhoria

salarial, apesar de integrar o leque de reivindicações em 2004, teve papel de menor

importância naquele momento específico, em função do próprio cenário, no qual se

comentava na cidade de Itapetinga, por ser um município de maior porte, onde

funciona a matriz da fábrica Azaléia Nordeste, o crescente número de pessoas com

35 Disponível em < http://www.camara.gov.br/sileg/integras/210843.pdf >. 2007

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os antebraços engessados, circulando pelas ruas, todos trabalhadores da Azaléia36.

Sobre a questão da saúde dos trabalhadores o sindicalista o lider sindical,

“S4”, esclarece:

As autoridades competentes daquela cidade na época foram contra o movimento dos trabalhadores [...] mas hoje eles estão vendo que o grande problema ainda existe dentro da Azaléia que é o problema de saúde, onde o sindicato vem brigando dia a dia buscando apoio das autoridades competentes para tentar resolver esses problemas de saúde, porque a gente não deve pensar só em salário e renda, mas principalmente na saúde. Como é que uma pessoa doente vai poder trabalhar dentro de uma fábrica? (ENTREVISTA).

Para o sindicalista, atualmente, a relação do “Sindicato de Verdade” com a

comunidade é de maior compreensão do papel do movimento sindical.

Em 2004, durante a greve, foi divulgado na cidade pela empresa e

autoridades locais, por meio da mídia e outros instrumentos37, que os sindicalistas,

“de forma irresponsável” iriam expulsar a Azaléia de Itapetinga e região. Segundo

“S4”, trezentos trabalhadores, ao final da greve, foram demitidos. Ao final do

movimento, os policiais militares que participaram da ação contra os grevistas,

“receberam cada um, dois pares de sapatos da Azaléia”. Passados praticamente

mais de 10 anos da chegada da Azaléia Nordeste, o sindicalista, pondo novamente

a saúde mental e física dos trabalhadores como problema básico da categoria,

afirma:

Mas hoje o trabalhador e a comunidade vêem a necessidade, porque se você for ao hospital, você irá encontrar vários trabalhadores da Azaléia com problemas de saúde, pessoas estressadas, pessoas mutiladas, pessoas que perderam membro dentro da empresa. Com isso [...] eles tão reconhecendo o trabalho do sindicato. Uma mãe de família, um pai de família tem filhos dentro da Azaléia, e na medida que passamos a mostrar a realidade do chão de fábrica, o pessoal da comunidade viu que o sindicato não estava ali para brincar (ENTREVISTA).

É possível constatar que tudo isso é o reflexo de um modus operandi de um

capitalismo que, como afirma Chauí (2006:.73), “opera por exclusão, tanto no 36 Tratava-se dos primeiros casos de LER, que Mendes (2001: 175) descreve como sendo “distúrbios de origem ocupacional que atingem dedos, punhos, antebraços, cotovelos, braços, ombros, pescoço e regiões escapulares, resultantes do desgaste muscular, tendinoso, articular e neurológico, provocado pela inadequação do trabalho ao ser humano que trabalha”. O gesso é usado por alguns ortopedistas visando impedir o movimento articular, e agravamento da lesão dos músculos, tendões e nervos já afetados pelo excesso de movimentos repetitivos. 37 De acordo com os membros do “Sindicato de Verdade” entrevistados pelo autor, o comércio local fechou as portas em forma de protesto contra a ação sindical, também foram distribuídas cartas redigidas pela Azaléia Nordeste para as famílias dos trabalhadores, como forma de pressão contra o movimento grevista.

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mercado da força de trabalho, no qual o trabalhador é tão descartável quanto o

produto, como no de consumo propriamente dito, ao qual é vedado o acesso à

maioria das populações do planeta”. Nessa linha de raciocínio, poucos são os

trabalhadores da Azaléia de Itambé que ousam comprar os sapatos que fabricam.

Um dos sindicalistas, “S3”, esclarece que isso não ocorre somente pelo baixo

salário, como se poderia imaginar a princípio, mas, principalmente,

[...] para esquecer o estresse do dia a dia, a pressão psicológica, o trabalhador prefere comprar o sapato de outra empresa. Eu já ouvi umas colegas minhas de trabalho: ‘Eu vou comprar Azaléia?! Eu já tô nisso aqui dentro a vida toda, quero mais saber de usar sapato da Azaléia?!’ Saturou... Mas não é o meu caso, eu gosto de usar o sapato da Azaléia, gosto que a empresa cresca, que multiplique, mas que venha pagar um salário digno e decente a cada trabalhador (ENTREVISTA).

Os trabalhadores com essa conduta demonstram o inverso do que se espera

de alguém que transforma a matéria-prima em bem de consumo, em produto final de

um processo de trabalho que envolve o humano em suas amplas dimensões; ou

seja, o processo de trabalho, e a própria organização do serviço na Azaléia Nordeste

são tão estressantes que não há relação de afeto ou afinidade entre o produtor e o

produto acabado, que de fato não é seu. Nisso consiste a diferença básica entre o

comportamento do operário da fábrica e o sapateiro em relação a produção de

calçados. É que o primeiro produz fragmentos ou pedaços de um objeto de

consumo, e o segundo, um misto de mercadoria e arte. Para o sapateiro, mesmo

que o produto não lhe pertença mais, quando comercializado, ele se reconhece nele,

como um artista plástico que vende a sua tela. Enquanto o operário é condicionado

e controlado (em seu tempo e movimento), o sapateiro dispõe de maior autonomia,

para melhor interagir com o que produz (sapatos) e com o meio social38. Ao

contrário, as mulheres trabalhadoras, citadas pelo sindicalista, demonstram querer

distância de uma das marcas de sapatos mais cobiçadas pela classe média

brasileira.

Acende-se aqui a lâmpada amarela. Isso porque, segundo Dejours (2000: 34)

38 Essa relação entre a postura política do operário taylorizado e do sapateiro autônomo é importante quando conectada ao estudo de Hobsbawm (1984), “Os sapateiros politizados”. O autor afirma que os sapateiros na Europa no início do século XIX eram militantes tanto nos assuntos relacionados ao ofício, quanto naqueles mais amplos de “protesto social”. Barata (2000: 50) narrando sobre a greve de 1917, em São Paulo, escreve: “as manifestações dos grevistas produzem choques com a polícia. Em 9 de julho, em um desses choques é baleado o sapateiro José Ineguez Martinez [...] que morre no dia seguinte em decorrencia do fragmento. Esta morte serve de elemento aglutinador e a greve torna-se geral”.

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“o reconhecimento do trabalho ou mesmo da obra, pode depois ser reconduzido pelo

sujeito ao plano de sua identidade”. Para o autor isso confere em relação ao

trabalho, “sua dimensão propriamente dramática”, na medida que “não há crise

psicopatológica que não esteja centrada numa crise de identidade”. Para Dejours

(2000) essa incapacidade do ser em estabelecer a sua identidade através do que faz

e na relação com o que produz (calçados), resulta no sofrimento psíquico

relacionado ao trabalho:

Não podendo gozar os benefícios do reconhecimento de seu trabalho nem alcançar assim o sentido de sua relação para com o trabalho, o sujeito se vê reduzido ao seu sofrimento e somente a ele. Sofrimento absurdo, que não gera senão sofrimento, num círculo vicioso e dentro em breve desestruturante, capaz de desestabilizar a identidade e a personalidade e de levar à doença mental (DEJOURS, 2006: 34-35).

Mas, como informa o autor, nem sempre o sofrimento se faz acompanhar de

descompensação psicopatológica. “É porque contra ele o sujeito emprega defesas

que lhe permitem controlá-lo”. E explica ainda:

No domínio da psicologia do trabalho, o estudo clínico mostrou que, a par dos mecanismos de defesa classicamente descritos pela psicanálise, existem defesas construídas e empregadas pelos trabalhadores coletivamente. Trata-se de “estratégias coletivas de defesas” que são especificamente marcadas pelas pressões reais do trabalho (DEJOURS, 2006: 35. Grifos do autor).

Têm-se assim um aspecto subjetivo importante a ser considerado para a

avaliação do nível de satisfação do(as) trabalhadores e trabalhadoras(as) em

relação ao trabalho na empresa Azaléia Nordeste, e as repercussões desse aspecto

na saúde e qualidade de vida. Não sem motivo, o Ministério da Saúde ao ampliar a

lista de notificação compulsória de agravos a saúde do trabalhador no SUS, lançou a

Portaria n.º 777, em 28 de abril de 2004, acrescentando num leque de 11 agravos,

os “Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho”, que já desponta como

preocupação dos serviços oferecidos pelos Cerests em todo o país.

Se as doenças osteosmusculares são omitidas e negadas pelo serviço

médico da Azaléia de Itambé e região, é possível imaginar a que nível as patologias

de natureza subjetiva não estão sendo desconsideradas. Dejours (2006) cita

estudos de outros pesquisadores, com categorias distintas de trabalhadores, nos

quais a “normalidade” preponderou em relação aos problemas de saúde

ocupacionais, ao que Dejours (2006: 35-36). indaga: “Como conseguem esses

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trabalhadores não enlouquecer, apesar das pressões que enfrentam no trabalho?”

Assim é que, para Dejours (2006), a própria “normalidade” observada no

conjunto de trabalhadores estudado é que se torna enigmática. Para Dejours (2006:

36), “[...] a normalidade é interpretada como resultado de uma composição entre o

sofrimento e a luta (individual e coletiva) contra o sofrimento no trabalho”. E conclui:

“[...] a normalidade não implica ausência de sofrimento, muito pelo contrário”. Disso

resulta o que o autor chama de “banalização do mal” pela negação do sofrimento,

pelos diversos agentes envolvidos nessa trama. O trabalhador nega para manter-se

no emprego, o empregado nega para não arcar com os custos sociais e financeiros

do agravo provocado, e os sindicatos negam, porque, segundo Dejours (2006: 38-

39) temem valorizar as subjetividades individuais, incorrendo no que consideram o

“pecado capital” de privilegiar as práticas individualizantes tolhendo a ação

coletiva.39

Sem embargo, o movimento sindical brasileiro afeito às questões mais

objetivas não reagiu obstinadamente à adversidade social e psicológica que

afetavam os trabalhadores, “sob o pretexto de que esse sofrimento resultava da

sensibilidade exarcerbada, de que se mobilizar pelo sofrimento psíquico era tomar o

reflexo pela causa e levar ao impasse o movimento sindical” (DEJOURS, 2006:40).

Essa postura representou um erro histórico de análise das organizações políticas-

sindicais com relação ao sofrimento no trabalho, deixondo “o campo livre para as

inovações gerenciais e econômicas” (DEJOURS, 2006: 41).

Os trabalhadores(as) reduzidos à condição de corpo, de certo facilitou a

adoção e propagação das estratégias gerenciais e econômicas, notadamente

aquelas relacionadas aos novos modelos gerenciais embasados na fusão de

práticas administrativas que deram origem ao trinômio taylorismo/

fordismo/toyotismo, tão presente na reestruturação produtiva, no mundo e no Brasil:

A reestruturação produtiva no Brasil, com a precarização das relações de trabalho, a intensificação de ritmos, a perda de postos de trabalho e a exigência de polivalência (requisições diferenciadas na atividade laborativa) têm ampliado e agravado o quadro de doenças e riscos de acidentes nos espaços sócio-ocupacionais. As inovações tecnológicas [...] presentes na atual fase de reprodução do capital no plano internacional e nacional,

39 Na década de 70, principalmente, as pesquisas em psicopatologia do trabalho esbarraram em sindicatos e na condenação da esquerda, que segundo Dejours (2006:39), viam “a psicanálise como ideologia reacionária”. Soma-se a isso o fato de que, naquela época, tudo o que fosse relacionado a patologia mental e sofrimento subjetivo, resultava em desconfiança e reprovação pública, a exemplo do uso de medicamentos psicoterápicos.

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ampliam as doenças relativas ao trabalho, como a LER/DORT (ABRAMIDES, 2003: 11-12).

Retornando à análise do nível 1 do Quadro 3, e da realidade local, é possível

identificar o grau do despreparo da força de trabalho para enfrentar os desafios

tecnológicos e tudo o que permeia o mundo do trabalho, para ela totalmente novo e

estranho. Para isso o Governo tem posto à disposição da empresa o programa de

qualificação profissional desenvolvido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem

Industrial na Bahia (SENAI), através da Secretaria do Trabalho e Assistência Social

(Setras). Porém, a qualificação não tem garantido a estabilidade no emprego, na

medida em que o desgaste físico e emocional tem elevado a rotatividade nesse

setor40, pelo alto índice de adoecimento, inerentes as LERs e as DORTs, sendo que

se descartando um operário a vaga é imediatamente ocupada, pois a região tem

uma ampla reserva de força de trabalho para a reposição.

Esse modelo de capacitação do(a) trabalhador(a), adotado pelo Governo, à

semelhança do requisitado pelo atual período da acumulação flexível41 e pela

reestruturação produtiva, serve para preparar a força de trabalho para a tarefa,

geralmente fragmentada, monótona e repetitiva.

Não se trata, portanto, de uma capacitação para uma atividade que promova

a experiência, que exija uso de todo potencial humano. Exige-se apenas a

assimilação para servir à automação e ao controle do(a) trabalhador(a) pela

empresa. Sequer a força de trabalho descartada conseguirá produzir calçados,

porque não saem de lá sapateiros. São, “costureiras de cabedal”, “revisores”,

“prenseiros”, “moldadores”, “refiladores”, “aparadores”, “coladores”, “embaladores” e

todos ao mesmo tempo, “multioperadores”, tal qual idealizou Taylor (1990) em seu

“princípios da administração científica”, no fim do século XIX, quando condenou os

trabalhadores à alienação do seu trabalho. O novo trabalhadorda Azaléia Nordeste

que chega à empresa para aprender um ofício e ganhar um salário, ao final estará

mais “para polivalente do que para politécnico” (WATANABE, 1993 apud SANTANA,

2004: 33). “A própria noção de qualificação parece ser entendida e efetivada como

40 De acordo com os membros do Sindicato de Verdade entrevistados, a Azaléia na região Sudoeste faz em média de “1.400 a 1.600 homologações” e somente em Itambé este número chega, em média, a 80 homologações por ano. Daí que a força de trabalho reserva garante a substituição das trabalhadoras e trabalhadores descartados após o adoecimento, ou em função da perda total ou parcial do potencial laborativo. 41 Padrão produtivo do capitalismo caracterizado pela flexibilidade nos processos de trabalho, mercados, produtos e padrões de consumo (ABRAMIDES, 2003).

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um conjunto de ações para evitar incidentes que interrompam a produção”

(SANTANA, 2004: 33).

Na Tabela 2 evidenciam-se as funções exercidas em uma amostra de 22

trabalhadores(as) da Azaléia Nordeste de Itambé. Os “multioperadores” dessa

fábrica expressam, a princípio, a polivalência de um indivíduo requisitado a ser o

“pau para toda obra”, com um pequeno detalhe: a formação técnica não lhe permitirá

subir um degrau sequer na escala hierárquica dentro da empresa, já que não se

pode pensar em carreira profissional dentro dela. A capacitação é feita para formar

indivíduos doadores de energia, que uma vez esgotados ou rendidos, num curto

espaço de tempo, dão espaço para outros mais revigorados. Estes(as)

trabalhadores(as) jamais irão planejar ações, porque a eles(as) são adjudicados

somente os papéis de tarefeiros(as), obedecendo, de forma determinada, ao que

estabelece a divisão do trabalho na fábrica.

No trabalho existe forte possibilidade dos(as) trabalhadores(as) serem

descartados(as) e de saírem do emprego na mesma condição curricular com a qual

chegaram, mas com um agravante: mais velhos e limitados por patologias adquiridas

com o trabalho. A apropriação do indivíduo pela empresa é tão draconiana que lhe

tira a disponibilidade de tempo e capacidade física e mental para o estudo fora do

trabalho.

O questionário aplicado em 2007, com os(as) 22 operários(as) da Azaléia

Nordeste de Itambé, possibilitou conhecer quais as principais limitações que o

Tabela 2 - Azaléia Nordeste em Itambé: funções dos funcionários - 2007

Função Freqüência

% válido % acumulado Absoluta %

Aplicador de adesivo/cola 2 9,1 9,1 9,1 Cronometrista, supervisor 1 4,5 4,5 13,6 Costureira/costura 9 40,9 40,9 54,5 Multioperador 2 9,1 9,1 63,6 Revisora 1 4,5 4,5 68,2 Prenseiro/serigrafia 3 13,6 13,6 81,8 Outros (refil, sola, enfiado, praimer, cabedal, pintura) 1 4,5 4,5 86,4 Operador de máquinas 2 9,1 9,1 95,5 SD1 1 4,5 4,5 100,0 Total 22 100,0 100,0

Fonte: Pesquisa de campo. Nota: 1 – Sem Declaração.

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trabalho no setor de calçados trouxe para suas vidas, e foram encontradas respostas

como: “não tenho tempo para estudar, chego uma hora da madrugada”; “eu queria

estudar, mas não posso”. Ou seja, estão fadados a doarem o melhor de si para

empresa, e, ao serem dispensados pela empresa, os que tiverem melhor sorte se

depararão com um mercado de trabalho cada vez mais exigente e competitivo.

O ganho social de uma empresa dessa natureza é ínfimo, principalmente

quando encontramos um grau de escolaridade relativamente baixo da força de

trabalho (40,9% não tem o segundo grau completo, sendo que destes 22,7% sequer

tem o primeiro grau), como se vê na Tabela 3.

Do grupo de 22 trabalhadores(as) que participaram da pesquisa em 2007,

63,6% informaram não ter participado de estágio ou treinamento proporcionado pelo

SENAI ou pela empresa, contra 22,7% que afirmaram haver participado. Isso

demonstra que, apesar de existir um período de treinamento, a maioria dos

Tabela 3 - Azaléia Nordeste em Itambé:grau de escolaridade dos funcionários - 2007

Escolaridade Freqüência %

válido %

acumulado Absoluta % 1º Grau completo 4 18,2 18,2 18,2 1º Grau incompleto 5 22,7 22,7 40,9 2º Grau completo 7 31,8 31,8 72,7 2º Grau incompleto 6 27,3 27,3 100,0 Total 22 100,0 100,0 Fonte: Pesquisa de campo,2007.

Tabela 4 - Azaléia Nordeste em Itambé: participação dos funcionários em estágio ou treinamento - 2007

Realizou estágio ou treinamento

Freqüência % válido

% acumulado Absoluta %

Sim 5 22,7 26,3 26,3 Não 14 63,6 73,7 100,0 Total 19 86,4 100,0 NA1 2 9,1 SD2 1 4,5 Total 3 13,6

TOTAL 22 100,0 Fonte: Pesquisa de campo. Nota: 1- Não se aplica. Nota: 2 - Sem declaração.

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trabalhadores não o entende como tal, porque na verdade são lançados na linha de

produção com aproximadamente duas semanas após se “especializarem” em

eterminadas tarefas, numa espécie de estágio relâmpago, no qual, a partir daí, têm

que produzir como qualquer outro operário (Tabela 4).

O tempo de treinamento da força de trabalho na empresa varia entre 7 e 120

dias, de acordo com a opinião dos(as) trabalhadores(as) pesquisados(as) (Tabela 5).

Tal variação se deve ao tipo de função; entretanto, de acordo com o sindicato local,

120 dias não é tempo de treinamento, mas de “experiência”. Na verdade, o(a)

operário(a) recém-admitido(a), só dispõe de duas semanas para “pegar o ritmo”,

antes de entrarem na produção de calçados propriamente dita.

Na Tabela 6 é possível conferir o número de homologações de demissões

feitas na fábrica com da representação sindical, excetuando-se, nesses casos, as

demissões de trabalhadores com menos de um ano na empresa, cujos casos não

chegam ao conhecimento do sindicato, em função do que estabelece o parágrafo 1º

do artigo 477 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT):

O pedido de demissão ou recibo de quitação de rescisão do contrato de trabalho, firmado por empregado com mais de 01 (um) ano de serviço, só será validado quando feito com a assistência do respectivo sindicato ou perante a autoridade do Ministério do Trabalho (CLT, 2002: 66).

Tabela 5 - Azaléia Nordeste em Itambé: tempo de treinamento dos funcionários - 2007

Tempo de treinamento

(dias)

Freqüência

Absoluta %

7 1 4,5 8 2 9,1 9 1 4,5

60 2 9,1 90 10 45,5

120 1 4,5 Total 17 77,3 NA1 2 9,1 SD2 3 13,6 Total 5 22,7

TOTAL 22 100,0 Fonte: Pesquisa de campo. Notas: 1 - Não se aplica 2 – Sem declaração

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De acordo com o sindicalista “S6”, do “Sindicato de Verdade”, cerca de 15%

do total das demissões são por justa causa, “[...] mas quando chega ao nosso

conhecimento, nossa assessoria jurídica consegue reverter praticamente os cem por

cento”, afirma, explicando que “só quando é por furto ou agressão é que não

conseguimos reverter”. Desse modo, a presença do sindicato tem sido determinante

para a transparência do processo de rescisão dos contratos.

Sobre tais aspectos o representante da Fetrav, sindicalista “S1”, afirma:

Existe um exército de reserva muito grande, e existe a mão-de-obra subqualificada, quer dizer, as empresas elas têm uma rotatividade altíssima, pra formar uma pessoa para trabalhar numa indústria leva no máximo trinta dias e isso quer dizer que a facilidade de encontrar um profissional para trabalhar na indústria é muito alta e eles têm essa facilidade, e, com isso, prejudica o desenvolvimento da luta sindical. Por que? Porque eles vêm para uma cidade, normalmente onde o desemprego é muito alto e as pessoas vão precisar trabalhar para receber um piso desqualificado, um salário desqualificado, um salário desagregado de valor (ENTREVISTA).

Por essa razão, todas as questões relacionadas aos fatores apresentados no

Quadro 3, principalmente aqueles ligados à força de trabalho, como se evidencia na

Tabela 642, são determinantes para a implantação e a finalização das operações da

Azaléia em Itambé e nas demais localidades da região Sudoeste. Isso pode ser

entendido da seguinte forma:

Apesar das características que agregam valor ao calçado constituírem critérios de competitividade das empresas, a pressão pelo aumento dos salários, em grande parte exercida por entidades sindicais, foi o principal elemento responsável por mudanças locacionais [...]. Para esse tipo de indústria os custos de mão-de-obra, além de definirem a localização da

42 De acordo com a base sindical em Itambé, o número de rescisões contratuais é na realidade muito maior por ano, pois nem todos passam pelo conhecimento do Sindicato, pelo que estabelece a legislação trabalhista.

Tabela 6 - Azaléia Nordeste em Itambé: número de funcionários e casos de demissões homologadas com a

participação do Sindicato em 2005, 2006, 2007

Ano da homologação

Número de funcionários

Funcionários demitidos %

2005 450 65 14,0 2006 500 74 14,8 20071 612 54 8,8 Total 612 193 31,53

Fonte: Sindicato de Verdade - Base de Itapetinga, 2007. Organizado pelo autor. Nota: 1- Os dados cedidos até setembro de 2007.

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empresa, determinarão, também, se haverá diminuição ou, até, encerramento de suas operações (BAHIA, 2000: 14).

Eis aí onde reside a natureza provisória da manutenção de uma empresa

dessas em uma dada localidade, um fato do conhecimento inclusive do

Governo, o que é dramático. Ou seja, para o Governo estadual e municipal não

é interessante que a população se organize politicamente para não “expulsar” as

empresas, mas, agindo assim, pelo menos garantem a reprodução da pobreza,

ao invés de sua tendência à superação, com a conquista de jornadas de

trabalho menores, salários melhores, expansão do consumo de bens e serviços,

e crescimento pessoal de uma parte considerável da população.

7.1 CARACTERÍSTICAS DA POLÍTICA PÚBLICA E O PAPEL DO GOVERNO DO MUNICÍPIO NO DESENVOLVIMENTO LOCAL

A verticalização das políticas públicas do Governo da Bahia, no processo de

atração industrial para a região Sudoeste, muito atrelada à política eleitoral (nível 3

do Quadro 3), visando a perpetuação no poder de um grupo hegemônico, inclusive

no município, resultou na desconsideração do potencial endógeno de Itambé, que

não foi estimulado na última década, a inverter suas prioridades e investir na

organização de outras possibilidades de negócios, visando reforçar a sua economia,

a partir, por exemplo, da agricultura e da pecuária, com ênfase na produção de leite

e seus derivados, por se tratar de importante bacia leiteira na região.

Atualmente a prefeitura de Itambé compra leite pasteurizado de outras

localidades da mesma região, que investiram no associativismo e na aquisição de

tecnologias para esse fim, tendo como exemplo o município de Barra do Choça, cujo

ex-prefeito, Oberdan Rocha, ligado ao grupo político de ACM, rejeitou a proposta de

implantar a indústria de calçados, alegando que a prioridade local seria investir no

café e na agricultura familiar, com resultados significativos relacionados à

distribuição de renda no município, que chegou a ser premiado nacionalmente por

isso.43

43 Com 90% dos seus 40.818 habitantes [IBGE, 2000) ligados de alguma forma a associações ou cooperativas, o município de Barra do Choça foi reconhecido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) como o de melhor distribuição de renda do país, ao lado apenas de Santa

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Para o ex-prefeito, apesar de Barra do Choça ser o maior produtor de café do

estado, os investimentos em culturas paralelas foi determinante para o sucesso do

projeto. A floricultura, a pecuária leiteira, o apoio à apicultura e também à criação da

Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) e de cooperativa de crédito, colaboraram para

o incremento da economia do município.44

Eis o que diz o ex-prefeito Oberdan Rocha, em entrevista concedida ao autor

em 06 de setembro de 2007, sobre a proposta que ele recusou de instalação da

indústria de calçados em Barra do Choça, andando na contra-mão de todos os

demais prefeitos que aceitaram a indústria calçadista, na década de 1990:

Fiz isso por entender que através do desenvolvimento local e através de ações desenvolvidas com os diversos segmentos existentes no município você tem a oportunidade de alcançar um êxito maior. Porque todas essas indústrias que chegam de pára-quedas nos municípios normalmente não encontram os município preparados, com a mão-de-obra qualificada para poder atender a essas necessidades, principalmente nas demandas dos melhores salários.[...] O que mais me deixou com o reconhecimento de ter contribuído com o município foi ver pessoas que eram simples lavradores se tornarem verdadeiros cidadãos na defesa dos seus direitos e seus valores (ENTREVISTA).45

Ao contrário do investimento em potencialidades locais, o município de Itambé

manteve-se atrelado à pecuária de corte com limitações em relação ao tratamento

dado à produção do leite e seus derivados.

A ausência de uma política de estímulo ao associativismo e cooperativismo

que incorporasse os pequenos e médios produtores como ocorreu em Barra do

Choça, é um fator limitante para a economia local de Itambé. Além disso, a lógica da

reestruturação produtiva muitas vezes não é compatível com as aspirações de uma

dada comunidade.

Considere-se como base para essa reflexão o fato de que a empresa Azaléia

já foi vendida em 2007 para a Vulcabrás, num processo pouco transparente e pouco

divulgado regionalmente46. Os interesses dos novos donos podem acarretar novos

Maria do Herval, no Rio Grande do Sul. 44 Disponível em <http://www.sebrae.com.br/pspe/mn_sub_e_bahia.asp.> 45 Pode-se concluir aqui que o carlismo não está relacionado apenas a um grupo de partidos políticos de direita atrelado a linha ideológica de Antonio Carlos Magalhães, mas a conduta política e administrativa de um gestor público. Mesmo pertencendo ao grupo de ACM, a conduta do prefeito Oberdan Rocha foi diferenciada ao estabelecer a horizontalidade das redes sociais em Barra do Choça. O nível do associativismo, e seus resultados, foi um exemplo disso, premiado nacionalmente. 46 A Vulcabrás adquiriu 99,74% das ações ordinárias da Calçados Azaléia. A empresa já havia comprado 22,67% das ações preferenciais em julho de 2007. Com a operação, a Vulcabrás passa a deter 51,28% do capital total da Azaléia. As empresas não anunciaram o valor total do negócio. (disponível em: <http://opiniaoenoticia.com.br/interna.php?id=10265>)

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planos. A saída dessa empresa retiraria de circulação algo em torno de R$ 300 mil

reais por mês da economia de Itambé47, e deixaria mais de 600 pessoas

desempregadas no município. Isso resultaria um prejuízo social e econômico sem

precedentes para um local sem outras opções de emprego e de renda tão

expressivas.

Considerando que um multi-operador com mais de três anos na empresa só

está apto a trabalhar com fragmentos de um sapato, haverá dificuldades para

adentrar no mercado de trabalho em outro setor, mesmo fora do município. Um

impacto socioeconômico dessa envergadura para um município que não estruturou

sua economia com base em fatores econômicos, culturais e ambientais, que lhes

são favoráveis, seria, no mínimo, desastroso.

Neste cenário pouco otimista o que se percebe é que a população de Itambé

tende a ficar refém da empresa, na medida em que as promessas de palanque, de

geração de emprego e de renda, tornam menos importantes a definição de políticas

públicas direcionadas para o desenvolvimento socioespacial, num momento no qual,

segundo Santos (2004: 14), “[...] o trabalho se espraia como instrumento paradoxal

de salvação e morte, num país onde o medo do desemprego, em toda a sua história,

faz das condições miseráveis de trabalho algo absurdamente tolerável [...]”,

motivando grande parte da população e dos(as) trabalhadores(as) à aceitação

passiva das regras do jogo impostas pelo capital e pelo poder político local, este

último nutrido direta ou indiretamente pelo primeiro. Tal situação irá impactar o

movimento sindical. Pois, como afirma Santana (2004: 44) “[...] o medo do

desemprego tornou-se um poderoso fator de desmobilização sindical”.

Essa análise traz ao debate o cerne de toda a dominação que se inicia no

interior da fábrica, afeta o sindicalismo e se estende para o conjunto da sociedade

de Itambé, que é, de um lado, a necessidade que as pessoas têm de trabalhar

nessa empresa por falta de opção, e, de outro, a necessidade política dos gestores

municipais de se manterem no poder48, como um parceiro incondicional da Azaléia,

embora ignorando as demandas dos(as) trabalhadores(as), principalmente no 47 O calculo aqui considerou apenas o piso salarial da categoria. Outros valores são acrescidos aos salários, como a participação no lucro da empresa, ticket alimentação, vale transporte, etc., que não foram considerados. 48 Desde a implantação da Azaléia Nordeste em Itambé, três prefeitos já passaram pela prefeitura local. Carlos Robério Nunes de Andrade Santos-PFL (1997-2000); Ivan Couto Fernandes-PFL (2001-2005); Moacir Santos Andrade – PL (2005-2009), todos de partidos de direita na época das suas eleições, ligados a corrente política de ACM e Paulo Souto. Apesar de adversários políticos, tiveram conduta administrativa semelhantes no que tange ao potencial local.

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campo do direito ao trabalho digno, sendo este um ponto evidente nessa relação

política-econômica-eleitoral que deixa sempre em situação de stand by a economia

local, e evidencia a predominância dos interesses particulares e privados em relação

ao interesse público e coletivo.

A saída das empresas de calçados, de forma abrupta, como acontece em

outras cidades da Bahia, a exemplo de Juazeiro, representa um sério transtorno,

porque estudos têm apontado que tanto o emprego em condições precárias,

inseguras e insalubres, quanto o desemprego afetam significativamente a qualidade

de vida das pessoas. Esse deslocamento das empresas atendendo à lógica da

reestruturação produtiva, visando ampliar a competitividade e por conseqüência sua

margem de lucro, tem afetado o movimento sindical baiano. Sobre isso o

representante da Fetrav, “S1”, narra:

[...] Itaberaba, Rui Barbosa e Jacobina as empresas saíram, fecharam, porque a gente começou a despertar na cidade o sentimento de que a empresa tinha que melhorar a vida dos trabalhadores também. Então, pra não cumprir a convenção coletiva eles saíram da cidade. Em Juazeiro, a Picadilly saiu de lá porque não queria cumprir a convenção coletiva que o sindicato tinha com o sindicato patronal (ENTREVISTA).

Atualmente os integrantes do “Sindicato de Verdade”, da base de Itapetinga e

Itambé, não temem realizar os movimentos inerentes à luta sindical, como o ocorrido

em 2004, e se mostram confiantes na permanência da empresa nos municípios da

região, por conta do alto investimento realizado desde 1996 (capital fixo).

Particularmente, o sindicalista “S2” expõe sua opinião:

Nunca é uma certeza, mas, a gente tinha uma convicção, a gente tinha uma certeza, que a Azaléia veio pra ficar porque, na época, em 2004, já tinha 17 filiais em 15 municípios49, fora Itapetinga. Então num campo de 10 mil trabalhadores onde a produção diária é 80 mil pares, então de uma hora pra outra ela tirar toda a sua estrutura física pra ir para outro estado nós sabíamos que estava fora de cogitação, devido a uma mão-de-obra escravizada, barata e de boa qualidade que é o que eles querem [...]50 (ENTREVISTA).

Mas para além da questão salarial, como atrativo, os incentivos fiscais

desempenham função importante como estímulo a permanência da empresa na

49 Na verdade são 17 galpões de produção implantados em 11 municípios da região Sudoeste, alguns na sede e outros na zona rural das cidades. O sindicalista chama distritos de municípios, por isso a citação de 15 municípios ao invés de 11 como cita o autor. 50 Como já mencionamos anteriormente, nem sempre a lógica do capital responde às expectativas das comunidades. No caso da Azaléia é importante recordar a venda de grande de seu patrimônio para a Valcabrás, em julho de 2007.

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região. A questão tributária mais uma vez não passa despercebida pelo sindicalista,

“S2”, que a coloca num papel fundamental relacionando ao bem estar coletivo e a

qualidade de vida da população local e regional:

[...] vieram pro nosso estado com toda a infra-estrutura de graça, com independência pagando imposto de [...] 1,5%, no nosso município, o maior imposto da região. Imagine se ela desse 3% do seu imposto real para o nosso município, pra nossa comunidade, seria bastante avançado pro município onde a saúde poderia melhorar, conseqüentemente a educação [...] saneamento básico, habitações (ENTREVISTA).

Não há consideração com o social no nível municipal. O trabalho social das

empresas calçadistas varia de empresa para empresa, mas tem aqueles que

trabalham na lógica da cultura política local, utilizando de meios compensatórios

para esconder a problemática inerente aos baixos salários pagos aos trabalhadores

no município, como exemplifica o representante da Fetrav:

Aqui em Jequié a empresa Ramarim ela distribui cesta básica pro trabalhador que não falta, que não chega atrasado. Se ele trabalhar o mês todo correto e chegar um minuto atrasado, ele não recebe a cesta básica. Se ele entregar atestado ele não recebe cesta básica. Se ele chegar um dia atrasado ele não recebe a cesta básica. Se todo mundo for trabalhar no feriado a empresa paga o feriado normalmente, o cem por cento mais ele não recebe a cesta básica. Então, quer dizer, os trabalhadores acabam enfrentando a jornada excessiva de trabalho para receber ao final do mês uma cesta básica que equivale aí ao valor de 20 reais, 25 reais, pra complementar o salário baixo que recebe (ENTREVISTA).

Em Itambé a entrega de cestas básicas segue padrão semelhante. O nível da

desumanização nas relações entre a empresa e os(as) trabalhadores(as) chegam a

tal nível na opinião do sindicalista da Fetrav que analogias são feitas do ser humano

(operário) com animais de carga, bestializados diante de um destino que se

apresenta imutável, inerte e robusto, e diante do qual não convém apostar todas as

“fichas” na permanência de uma empresa, que já foi vendida para uma outra. Mas,

ele deduz:

Então é aquela política de montar no cavalo com uma vara e na vara vai tá lá um cesto de cenouras ... O cavalo vai andando conforme ele tá vendo a cenoura, quando ela [a empresa] dá uma cenoura... A relação é essa. Fora a relação de exploração, eu diria até que se equipara aos antigos coronéis da Bahia. Os coronéis morreram, saíram da cena pública e vieram os coronéis do calçado! (ENTREVISTA).

Com base nisso retomamos a fala de Souza (2003), quando explica que, em

relação à autonomia, escravos podem ser melhor ou pior tratados, mas não deixam

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de estar numa condição indigna. Aristóteles (2007: 62) diria, em conformidade com o

seu tempo, que “[...] certos indivíduos apenas na aparência do corpo são livres”.

A questão do justo e do injusto é algo que permeia o cenário estudado,

quando se pensa a justiça social decorrente de políticas públicas equânimes. A

posição da empresa Azaléia Nordeste, quando um gerente se sente livre para dizer

às funcionárias que é preciso “dar graças a Deus pela Azaléia”, pois ao contrário

estariam desempregadas “catando lixo ou seriam meras empregadas domésticas”

como informam os sindicalistas, traz à tona todo o “senso de justiça” da empresa, a

quem as mulheres trabalhadoras e os homens trabalhadores devem ser gratos(as),

“abaixando os arcos”, reduzindo a resistência à ocupação do espaço, sob a ameaça

de tornarem-se socialmente excluídos(as).

É por isso que num município sem muitas opções de emprego como Itambé,

o sindicato ainda em fase de estruturação enfrenta o dilema digno de uma esfinge

grega: resistir na luta por melhor qualidade de vida no trabalho, sob o risco da

empresa demitir em massa ou partir para outro campo, ou não resistir às pressões

intra e extra-fábrica, tendo que conviver com os problemas aqui mencionados,

mantendo o emprego, mesmo que precário.

Não está fora desse debate o papel da mídia conservadora da região, que

tende a reforçar o velho paradigma bíblico-econômico de que a industrialização e o

trabalho só geram benefícios, só dignificam homens e mulheres que trabalham.

Como diz o sindicalista “S1”, os meios de comunicação “vão até em enterro de

cachorro”, mas não divulgam as ações promovidas pelo movimento sindical.

A imprevisibilidade do projeto local de produção de calçados pela Azaléia

Nordeste, aponta para uma necessidade urgente de valorização de novas

intervenções, de novas estratégias de desenvolvimento socioeconômico para

Itambé. Para uma comunidade sem grandes perspectivas de emprego, o que

caracteriza os trabalhadores que lutam por salários, saúde e qualidade de vida é a

pecha de irresponsáveis e ingratos que não souberam valorizar o que a empresa

lhes ofereceu de “bom”, mesmo deixando para trás um exército de jovens adoecidos

e mutilados, quando se desloca em busca de outros espaços geográficos. Vazquez,

P. (2007) concorda com esse pensamento ao declarar que esta realidade é visível,

considerando-se em sua descrição o município de Juazeiro,

[...] onde uma empresa de calçados deixou uma população de homens e mulheres doentes, acidentadas/os, deprimidas/os e a deriva nos seus

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sofrimentos depois de quatro anos de operação. Sem alternativas, pois muitas doenças e sofrimentos são invisíveis aos olhos de médicos, peritos, delegacias do trabalho e gestores públicos (VAZQUEZ, P., 2007: 10)

Nesse aspecto, os(as) trabalhadores(as) embora não aceitem passivamente

as condições de trabalho estão sempre em desvantagem porque o conjunto da

sociedade itambeense não tem conhecimento pleno do que é a luta sindical. O

representante da Fetrav esclarece que a saída dessas empresas “se dá por fatores

relacionados ao lucro adquirido basicamente sobre os salários e as facilidades

fiscais”, coincidindo, então, com o que foi exposto até aqui. “S1” explica:

Pra você ter uma idéia, uma costureira no Rio Grande do Sul recebe R$ 526,00 reais, uma costureira aqui na Bahia em janeiro [2007] recebia R$ 360,00 reais. Então a diferença é muito grande. Então essa diferença de salário fez com que essas empresas viessem pra aqui e quando tem essa luta por salário elas não querem perder essa margem de lucro51 (ENTREVISTA).

É necessário salientar que em Itambé, especialmente, os trabalhadores não

entendem ainda o papel do sindicato que se encontra em processo de estruturação.

No grupo focal52, a maioria dos participantes demonstrou desconhecer

completamente os seus direitos trabalhistas e os riscos para a saúde decorrentes do

processo de trabalho tendo pouca ou nenhuma percepção sobre as motivações

históricas e econômicas dos conflitos comuns na relação de trabalho, donde origina-

se um sentimento de culpa pelo conflito, quando este é conseqüência inevitável na

relação capital/trabalho. Também não souberam definir claramente o papel do

sindicato.

Sem saberem qual é a sua posição na sociedade, e qual o seu papel no

mundo do trabalho e como sindicalizados, esses(as) trabalhadores(as) cooperaram

pouco com o movimento sindical no município, enquanto ação política.

51 Na região de Itapetinga, a ação do Sindicato de Verdade, possibilitou ganhos salariais superiores às demais empresas de calçados no Nordeste, chagando o piso de um operador de máquina, em agosto de 2007, a R$ 390,00, acrescido de ticket refeição e vale transporte. 52 Técnicos do NEIM/UFBA, CEREST de Vitória da Conquista, e o autor, realizaram o grupo focal no município de Itambé, no dia 17 de março de 2007. Na oportunidade os trabalhadores e trabalhadoras da Azaléia apresentaram suas dúvidas sobre o processo saúde-trabalho-doença, sobre os direitos previdenciários, denunciando situações de constrangimento (assédio moral). Uma trabalhadora chegou a afirmar que o grupo foi ameaçado de demissão se participasse da reunião promovida pelo autor para coleta de dados dessa pesquisa.

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7.2 SALÁRIO E SAÚDE NO CENTRO DO DEBATE PELA QUALIDADE DE VIDA

Na luta sindical a questão salarial tem sua importância destacada. A diferença

salarial entre os trabalhadores das indústrias de calçados do Sul do país e o

Nordeste é tão gritante que o sindicato, pensando aqui no âmbito local/regional, se

afastaria de questões que merecem atenção especial, a exemplo da saúde dos

trabalhadores, não fosse o quadro epidemiológico que se apresenta com aumento

significativo das notificações de acidentes e adoecimentos relacionados ao trabalho

na Bahia.

Apesar disso, entre o debate sobre o salário e a saúde, os trabalhadores em

algumas regiões do estado, aproximam-se da luta sindical mais pelo salário, como

salienta o representante da Fetrav em seu depoimento: “quando a gente fala de

salário, de luta, você há de convir comigo que os trabalhadores se mobilizam mais

pelo salário do que pela saúde, não é?”.

Entretanto, na região Sudoeste, notadamente na área de abrangência do

“Sindicato de Verdade”, a questão da saúde em vários momentos suplantou a

relevância da questão salarial, como se pode constatar nas declarações

anteriormente explicitadas por seus dirigentes.

Dentre as patologias do trabalho, destacam-se as LER/DORT. Na Tabela 7

observa-se a predominância desses casos no município de Itambé, sendo que dos

11 casos registrados no Cerest, no período de 2003 a 2006, 10 (91%) foram de

53 O Sinan é de amplitude nacional e seu banco de dados tem conexão nas três esferas de Governo.

Tabela 7 - Casos de Ler/Dort notificados no SINAN53 pelo CEREST, por município de

pequeno porte de 2003-2006

Município Número de agravos %

Anagé 01 5,6 Belo campo 01 5,6 Caatiba 01 5,6 Cândido Sales 02 11,0 Itambé 11 61,0 Poções 01 5,6 Potiraguá 01 5,6 Total 18 100,0

Fonte: SINAN/SMS/CEREST, 2007. Organizadopelo autor.

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trabalhadores(as) da Azaléia Nordeste, 01(0,9%) de funcionário público municipal.

Dentre os municípios de pequeno porte, nota-se que 61% dos casos de

lesões osteomusculares afetaram trabalhadores(as) do município de Itambé.

A análise dos prontuários dos 10 pacientes provenientes de Itambé54 revelou

a predominância do sexo feminino (80%) e um ponto comum entre os portadores de

lesões osteomusculares: todos se queixam de dor intensa em membros superiores e

inferiores e da péssima atenção dispensada pelo serviço médico da empresa.55 Por

exemplo, uma trabalhadora da Azaléia de Itambé, de 23 anos, costureira, atendida

em fevereiro de 2005, com cinco anos no emprego, diz que o médico “dá a receita

da porta [...] passa diclofenaco”. E outro trabalhador de 30 anos, multi-operador, com

três anos na empresa, atendido em dezembro de 2006, conta que o médico “[...]

passa anti-inflamantório e diz que é normal”. Outra de 24 anos, que trabalha no setor

de corte, atendida em janeiro de 2006, diz que começou a sentir “fortes dores de

coluna”, vindo a solicitar mudança de função como preconiza a legislação do

trabalho (NR 7/PCMSO), mas “nada foi registrado como ocupacional”. Em outubro

de 2005, foi afastada pelo INSS com o diagnóstico de “doença comum”, e, sem

direito a estabilidade de um ano no emprego, após a licença previdenciária56,

conclui: “fui demitida por não estar apta a voltar pro trabalho”, depois de três anos e

dois meses no emprego. Outro trabalhador, de 36 anos, multioperador, com dois

anos e seis meses na azaléia Nordeste de Itambé, relata “[...] dor nas costas.

Quando estou parado, fica dormente, quando trabalho, parece que o músculo

rasga”.

A falta de expectativa no futuro é algo presente nos(as) trabalhadores(as)

com problemas de saúde relacionados ao trabalho. De acordo com os profissionais

de saúde do Cerest de Vitória da Conquista, a preocupação da classe trabalhadora

com a saúde, embora ocorra, é quase sempre tardia, quando o quadro de lesões

osteomusculares, e outros problemas, já são crônicos ou irreversíveis.

54 Importante salientar que o acesso aos prontuários dos pacientes só foi possível por ser o autor enfermeiro especializado em saúde do trabalhador, e coordenador do Cerest, preservando-se assim o direito dos pacientes ao sigilo profissional. 55 Essas informações são compatíveis com os dados da pesquisa de campo feita pelo autor em 2006, e podem ser vistos, em parte, na tabela 8. 56 A estabilidade de um ano só é dada ao trabalhador que retorna da licença previdenciária, se a causa do benefício for ocupacional, código B-91. Geralmente o serviço médico da empresa nega o diagnóstico e lança como doença comum (código B-31), responsabilizando, indiretamente, o trabalhador pelo seu próprio adoecimento (“doença comum”). Quando retornam, geralmente são demitidos pois não apresentam, por conta das lesões crônicas, o mesmo potencial laborativo.

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Com os casos de doenças osteomusculares relacionados ao trabalho na

região Sudoeste, fica patente que a luta sindical não poderá se ater exclusivamente

ao emprego e ao salário, pois essa visão somente reafirma o status quo de uma

empresa que trouxe o que a população itambeense “desejaria ter”, desviando o foco

de outros ganhos e perdas (subjetivas) essenciais para a manutenção da qualidade

de vida. A saúde é um exemplo disso, principalmente quando o Cerest recebe os

trabalhadores com problemas de saúde graves, sem qualquer conhecimento sobre

os agravos e as suas causas, como explica o médico do trabalho do Cerest de

Vitória da Conquista, Alberto Ferreira Lima, que tem atendido trabalhadores oriundos

da Azaléia de Itambé:

De maneira geral, quando o trabalhador procura o atendimento, ele já chega normalmente com meses de evolução. Então aquela fadiga, aquele cansaço, são relegados e interpretados como um cansaço do trabalho e isso vai passando, então ocorre as lesões de partes moles, especificamente em éreas nas quais o feixe vásculo-nervoso é agredido. Quando acontece isso, ele já entra numa fase crônica... Porque a capacidade regenerativado nervo é muito pouca. Quando você tem uma lesão axonial, sensitiva, você já tem um caso crônico. Os prognósticos de casos crônicos eles são ruins (ENTREVISTA).

A natureza descartável do trabalhador na Azaléia de Itambé tem sido tão

evidente, que todos os agentes sociais entrevistados tinham uma história de

desumanização, de desconsideração com a sua saúde, para contar. A relação de

poder se estratifica na empresa de tal forma que se reproduz, de modo sistemático e

contínuo, fazendo com que iguais em classe social, faça uso de um cargo superior

no interior dos galpões de produção para coagir os colegas, principalmente em

função das metas estabelecidas de produção para cada célula ou posto de trabalho

e o monitoramento feito pelos coordenadores.

A dominação não se dá somente de uma classe social em relação a outra. O

capitão-do-mato, ou o feitor, geralmente eram da mesma matriz étnica dos que

eram por eles açoitados e mortos, não tendo qualquer vínculo sanguíneo ou social

com o dono da Casa-Grande. Se foram os próprios trabalhadores que apelidaram a

empresa onde trabalham de “Senzaléia”, então essa analogia feita aqui ao binômio

Casa-grande/Senzala não está de todo descontextualizada.

A questão da produtividade e as metas de produção como são impostas na

Azaléia Nordeste, são tão danosas para a saúde física e mental dos(as)

trabalhadores(as) que estão nas falas dos profissionais de saúde que atendem

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trabalhadores(as) da Azaléia de Itambé e região. A psicóloga do Cerest de Vitória da

Conquista, comentou negativamente a esse respeito:

[...] o mais comum que a gente tem recebido aqui é algum tipo de transtorno de ansiedade que eles referem ou ao estresse ou a fadiga porque o ritmo de trabalho é acelerado e eles sempre tem essa cobrança de estar batendo a meta, ou pelo menos alcançando a meta, e o que eles trazem aqui pro serviço é que a meta nunca é possível de ser alcançada e se alguém conseguir chegar até aquela meta, eles, conseqüentemente, aumentam. Aquela próxima meta sempre será maior. Já chegamos a casos de depressão no trabalho por conta dessa cobrança, dessa cobrança intensa (ENTREVISTA).

As doenças psicossomáticas são freqüentes na produção de calçados. Os

quadros depressivos estão geralmente associados à dor relacionadas às lesões

osteomusculares e a limitação para a realização da atividade cotidiana.57 Tais

situações, quando associadas à permanência do(a) trabalhador(a) no chão de

fábrica, mesmo com atestado médico indicando necessidade de afastamento, pode

levar a situações extremas, como o suicídio58, como denuncia o representante da

Fetrav “S1”:

[...] o estresse emocional dessas pessoas é tão grande pela cobrança que é feita , e as mulheres são as maiores vítimas disso, pelo próprio medo, pela própria imposição da maioria dos chefes que já aconteceram dois suicídios que a gente tem notícia. Um em Amargosa e outro em Santo Estevão, e inclusive com documentos escritos pelos suicidas denunciando o assédio moral, a perseguição dentro do local de trabalho. Infelizmente, [...] a própria família para não se expor, pra não ser perseguida ela fica com medo de denunciar isso. Em Santo Estevão a família entregou a documentação pra gente num dia e na semana depois ela foi lá buscar. Isso demonstra que, além do trabalhador, a família sofre com essa perseguição (ENTREVISTA).

Em Itambé, a base do discurso economicista da melhoria da qualidade de

vida que chegaria para a população como um todo, a partir da implantação da

indústria de calçados, já apresenta fissuras.

Como foi já discutido em capítulo anterior, não é aconselhável desvincular a

qualidade de vida de parâmetros como a justiça social e autonomia. Pelo menos não

seria prudente fazê-lo, sob pena de reforçar um único e antigo paradigma que

estabelece que o PIB é o começo e o fim das coisas. A questão da satisfação dos

trabalhadores, um importante indicador para a parametrização do desenvolvimento 57 Na fase crônica das lesões osteomusculares, práticas comuns como escovar os dentes, pentear os cabelos, lavar a louça, varrer a casa, arrumar a cama, tornam-se atividades excepcionais que exigem grande esforço dos(as) trabalhadores (as) lesionados (as). 58 Um caso de suicídio também foi mencionado, anteriormente, pelo membro do Sindicato de Verdade, com base em Itapetinga.

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socioespacial para Souza (2003) vem à tona com muita força, trazida pela fala do

Sindicato de Verdade e das declarações dos profissionais de saúde do Cerest, que

atendem aos acidentados ou adoecidos do trabalho, oriundos da Azaléia de Itambé.

A relação entre poder comprar uma TV nova e perder o movimento dos

braços, ou mesmo perder o braço, como ocorre em amputações, muda o foco desse

debate. Não estar feliz, não estar satisfeito, são estados comuns nos(as)

trabalhadores(as) que sofreram algum desgaste na saúde física ou mental, com forte

rebatimento sobre a qualidade de vida, analisada para além do ganho material. Os

trabalhadores se mostram encurralados entre o medo de perder o emprego e a

dificuldade em lidar com aspectos danosos presentes nas relações e ambientes de

trabalho. Isso fica evidente no desabafo do Sindicalista de Itambé, “S5”:

A qualidade de vida hoje [...] Muitas vezes a gente não repara o que o companheiro do lado tá sentindo [...]. Muitas vezes você recebe um salário mínimo, você adquire seu carro, sua moto, terreno, porque você precisa pensar no seu futuro, mas o que acontece? Devido ao trabalho que causa doenças, tem que fazer o que? Pedir demissão da sua fábrica. Porque ela não ti encosta, muitas vezes o INSS não segura o benefício, e ela pega as suas coisas que você adquiriu [...] e tem que vender pra fazer o tratamento, como foi o caso de “M”, que foi demitida por justa causa (ENTREVISTA).

Nessa linha de análise, a satisfação do(a) trabalhador(a) da Azaléia de Itambé

cabe perfeitamente no limite daqueles que ainda não foram afetados pelo assédio

moral, pela amputação ou pela perda da saúde física e mental. A percepção do

sindicalista itambeense, “S5”, sobre o “não reparar o que o companheiro do lado

está sentido”, reforça uma conclusão de Tocqueville, citada por Sennett (2001),

quando faz menção àqueles(as) que olham para o seu próximo, mas não o

enxergam socialmente:

Cada pessoa, mergulhada em si mesma, comporta-se como se fora estranha ao destino de todas as demais. Seus filhos e seus amigos constituem para ela a totalidade da espécie humana. Em suas transações com seus concidadãos, pode misturar-se a eles, sem no entanto vê-los; toca-os, mas não os sente; existe apenas em si mesma e para si mesma. E se, nestas condições, um certo sentido de família ainda permanecer em sua mente, já não lhe resta sentido de sociedade (TOCQUEVILLE, 1987 apud SENNETT, 2001: 7).

A psicóloga do Cerest, Néria Ribeiro, reforça o discurso do sindicalista de

Itambé sobre o salário, a saúde comprometida e a satisfação com o trabalho e a vida

fora do ambiente laboral:

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O que eles trazem pra gente é a insatisfação. Na realidade, uma grande frustração. O que seria para eles uma garantia de uma melhoria de vida em termos financeiros, pelo que eles estão trazendo hoje pra gente é como se não houvesse uma compensação, porque as pessoas estão adoecendo e nesse momento em que elas precisam estar se afastando, estarem sendo cuidadas, elas não têm acesso a esse serviço de saúde. A empresa também não possibilita isso, quando ela deixa de informar num relatório ou com a emissão da CAT, o que o trabalhador tem (ENTREVISTA).

Berlinguer, em 1977, já havia apontado situação semelhante, no livro “a Saúde nas

fábricas”. Essa posição omissa ou mesmo antiética de alguns médicos do trabalho

que negam e escamoteiam os diagnósticos, visando ficar bem com a empresa,

numa relação inescrupulosa que indica o interesse em preservar a saúde financeira

da fábrica (e dele próprio) do que a saúde dos trabalhadores, é algo chocante nos

dias de hoje. O recado de Berlinguer é claro para os colegas de profissão, que uma

vez preferindo manter-se nessa postura reprovável, se declarem de uma vez por

todas

[...] de maneira explícita que não querem estudar o homem, que não pretendem denunciar o tirano, que a profissão consiste somente em atenuar alguns sofrimentos e recolocar o mais rápido possível o paciente no trabalho e na sociedade morbígena (BERLINGUER, 1977: 58).

E mais adiante o autor conclui:

Este tipo de médico foi comparado ao segundo do ringue: assiste um boxeador, passa uma esponja entre um round e outro, e o manda para ser de novo golpeado. Para o segundo esse é o seu ofício. Mas para o médico, esta é uma situação altamente conflitante: o seu papel histórico, a sua ética declarada, a sua função reconhecida é a de proteger e reintegrar a saúde [...] (BERLINGUER, 1977: 58).

Navarro (2003), ao estudar o impacto do trabalho de uma fábrica de calçados

na saúde dos trabalhadores de Franca-SP, faz referência a problema similar

relacionado à conduta de médicos do trabalho e peritos da previdência:

Um outro aspecto importante, revelado pela trabalhadora, é o da dificuldade de diagnóstico e o não-estabelecimento, pelo médico do ambulatório da empresa, do nexo causal existente entre a queixa relatada pelo trabalhador e o trabalho realizado por ele. À ineficiência do atendimento médico oferecido pelo empresariado superpõem-se às deficiências dos serviços prestados pela previdência social que, por não apresentarem um viés investigativo, com certeza deixarão sem causa e, por conseguinte, sem punição a dor e o sofrimento dos trabalhadores que, de uma forma ou de outra, pagam por esses serviços. (NAVARRO, 2003: 39).

O médico do trabalho do Cerest de Vitória da Conquista, também citou

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constrangimentos em relação às práticas omissas e irresponsáveis de profissionais

médicos, que inclusive chegaram a questionar (junto aos trabalhadores adoecidos) a

sua competência técnica para fazer o nexo-causal (relação entre trabalho e doença),

quando este sempre bate o carimbo de especialista em medicina do trabalho em

seus relatórios. Comentou, inclusive, sobre a própria postura não ética desses

profissionais geralmente cooptados por empresas do ramo de calçados, para

subjugar o interesse coletivo. Assim, o médico do trabalho do Cerest conta sua

experiência conflituosa com outros colegas de profissão que atuam, ou na empresa

de calçados, ou na perícia do INSS:

Eu tenho duas situações. O colega médico tem dúvida do diagnóstico ou questiona o diagnóstico. Isso é algo comum e pode acontecer em qualquer área médica. Mas a forma como isso é feito é que é ruim. Às vezes o paciente já chega e diz ‘Olha o médico não leu o seu relatório’. Diz [ao paciente] que eu estou completamente errado e que eu não entendo disso, que eu não estou capacitado para dar esse tipo de diagnóstico. Essa forma de exposição é que é completamente errada, então, eticamente, o grande constrangimento está nesse ponto [...]. Coloco que o outro colega tem a sua visão, a sua postura, que eu respeito, mas, que eu discordo [...]. Então, isso é ruim (ENTREVISTA).

De outro modo, o representante sindical em Itambé, “S5”, revela existir uma

relação expúria entre os serviços de saúde local, oprefeitura, e o médico do trabalho

da empresa Azaléia, que atende também em unidade de saúde do município, no

sentido de negar ao trabalhador(a) a assistência à saúde, seja com o repouso ou o

trtamento adequado ao não dar o atestado médico e o nexo-causal. Assim explica o

sindicalista “S5”,sobre o que acontece em Itambé: É tipo assim: o prefeito, o gerente e o médico da Azaléia... O que é que acontece? As enfermeiras tem que seguir o direito do médico, por quê? Porque o prefeito escolheu, o prefeito decidiu. Então quando chega o funcionário da Azaléia com um guarda pó, a própria enfermeira dispensa você, fala que não tem médico, o horário não é aquele ali, e quando você é atendido, ‘ah, eu sou da Azaléia’, eles não dão o atestado [...] quando você chega no hospital de guarda-pó, a própria auxiliar de enfermagem já vê você com o guarda pó, aí já fala: “aqui não tem médico”. E quando você está sem o guarda–pó e vai diretamente ao médico e o médico te atende, e você pede o atestado com aquela causa, ele pega e não dá o atestado porque o próprio prefeito e a Azaléia proibiram (ENTREVISTA).

Não pode haver qualidade de vida para o trabalhador de uma indústria

calçadista que vaga à deriva em busca de direitos desprezados. Porque não existe

nesse cenário exposto pelos entrevistados da pesquisa, paz, liberdade, respeito à

condição humana necessária, elementos indispensáveis para a qualidade de vida e

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para o trabalho digno.

Conceitos como prevenção, promoção e proteção à saúde passam longe do

ambiente fabril. Ora, se os constrangimentos ultrapassam os limites da fábrica e

chegam a afetar os profissionais dos órgãos públicos de saúde que têm poder de

vigilância dos ambientes de trabalho e para emitir laudos, como o Cerest, é possível

imaginar o que não passam os(as) trabalhadores(as) que vivem sob a disciplinada

fábrica, que se estende em rede na sociedade local/regional, cooptando

profissionais médicos e comprometendo as instituições que deveriam, no âmbito do

Conselho de Medicina, da saúde e da previdência social, atentar para essas

distorções éticas em sua prática profissional.

De modo geral, alguns profissionais médicos vêem-se em conflito entre o

dever ético e as exigências das empresas que os contratam. Outros, por sua vez,

seguem à risca as regras da empresa, até as defendem publicamente. A situação é

tão gritante que o procurador do trabalho do estado de Santa Catarina, Koerner

Junior, em trabalho publicado em dezembro de 200259, também denuncia essa

situação:

Nessas investigações relativas ao problema, temos encontrado casos de médicos que não têm se comportado eticamente, ao nosso ver, ao atenderem trabalhadores com sintomas compatíveis com quadro de LER/DORT e que exercem atividades em que estão presentes quase todos os fatores relacionados pela ciência como possíveis desencadeadores das lesões. Alguns médicos receitam antiinflamatórios e analgésicos, recomendam fisioterapia, afastam os trabalhadores de suas atividades, deixando, entretanto, de solicitar a emissão de CATs.

Ao agirem assim os médicos do trabalho ferem o artigo 3º da Resolução nº 1.488/98 do Conselho Federal de Medicina60. O referido artigo assim determina:

Aos médicos que trabalham em empresas, independentemente de sua especialidade, é atribuição [...]: IV – promover a emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho, ou outro documento que comprove o evento infortunístico, sempre que houver acidente ou moléstia causada pelo trabalho. Essa emissão deve ser feita até mesmo na suspeita de nexo causal da doença com o trabalho. [...] V – notificar, formalmente, o órgão competente quando houver suspeita ou comprovação de transtornos da saúde atribuíveis ao trabalho, bem como recomendar ao empregador a adoção dos procedimentos cabíveis [...] (Grifo nosso).

Ferem ainda a Norma Regulamentadora (NR) n.º 761, que nos itens 7.3.2, que

59 Médicos empregados e casos de LER/DORT. Disponível em http://www.prt12.mpt.gov.br/enfoque 02/art_egon.htm, acessado em 22.08.2007. 60 Disponível em http://www.advt.hpg.com.br/res_cfm_1488.htm , acessado em 23.10.2007. 61 A NR 7 estabelece a obrigatoriedade de elaboração e implementação, por parte de todos os

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estabelece que é competência do médico coordenador:

[...] realizar os exames médicos previstos no item 7.4.1 ou encarregar os mesmos a profissional médico familiarizado com os princípios da patologia ocupacional e suas causas, bem como com o ambiente, as condições de trabalho e os riscos a que está ou será exposto cada trabalhador da empresa a ser examinado [...] (ATLAS, 2002: 89).

Se profissionais autônomos especializados em saúde do trabalhador e

medicina do trabalho sofrem de perto a retaliação de profissionais de saúde ligados

à empresa de calçados e peritos do INSS, que se recusam a agir eticamente, é

urgente identificar e mensurar a dimensão do assédio moral sobre os(as)

trabalhadores(as), desprotegidos(as) do suporte médico, desconhecedores(as) de

seus direitos, expostos(as) ao adoecimento e acidentes graves, algumas vezes

recorrendo ao suicídio como mecanismo de defesa. É um estado de sufocamento

individual e coletivo que se expressa em algias e transtornos emocionais de vários

níveis, resultando no descarte da pessoa, quando esta já perdeu sua identidade e

“utilidade”.

A cumplicidade desses profissionais com a empresa Azaléia Nordeste, tem

sido tão perversa, pelo que se vê no quadro exposto pelos(as) trabalhadores(as) e

pelos profissionais de saúde, que motiva a reflexão sobre um texto de Dejours

(2006) a respeito da “racionalização do mal”. Com base na visão psicológica desse

autor, é possível que em algum momento profissionais que assim agem o fazem

[...] para não se arriscarem a ser excluídos e desprezados [...] ou tidos como frouxos, medrosos e covardes [...] muitos são os homens que aceitam participar do “trabalho sujo”, tornando-se assim, “colaboradores” do sofrimento e da injustiça infligidos a outrem (DEJOURS, 2006: 87).

E diz mais:

Para continuarem a viver psiquicamente participando do “trabalho sujo” na moderna empresa e conservando seu senso moral, muitos homens e mulheres que adotam esses comportamentos viris elaboram coletivamente “ideologias defensivas”, graças às quais se constrói a racionalização do mal (DEJOURS, 2006: 88).

Para Dejours (2006: 88), “ante a injunção de fazer o ‘trabalho sujo’, os

trabalhadores que exercem cargos de responsabilidade tem que enfrentar o grande

empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), com o objetivo de promoção e preservação da saúde do conjunto dos seus trabalhadores.

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risco psíquico de perder sua identidade ética [...]”. É o que parece acontecer com os

profissionais médicos que prestam serviços nas indústrias de calçados. A estratégia

coletiva de defesa, segundo o autor, “consiste em opor ao sofrimento de ter que

praticar ‘baixezas’, uma negação coletiva”. E ele acrescenta, retornando à discussão

ética da ação profissional: “Não só os homens não temem o opróbrio, como também

o ridicularizam. Para tanto, chegam até a provocação. Absolutamente nenhum

problema ético! ‘É o trabalho, isso é tudo!’ ‘É um trabalho como qualquer outro’.”

(DEJOURS, 2006: 88).

Assim colaboram para submeter a população trabalhadora à dominação dos

patrões, tornando-a flexível perante as decisões da empresa, forçando-a à condição

de apêndice das máquinas, como peças complementares do processo produtivo,

sem ter para quem apelar. É um modelo tirânico de explorar a força de trabalho até

as últimas consequências, escamoteado pelo saber técnico (da empresa Azaléia e

do médico do trabalho) que nega o saber operário e as suas experiências, na

identificção dos fatores de risco e na definição dos diagnósticos. Essa conduta

inviabiliza o planejamento de ações de prevenção, controle e tratamento de riscos e

agravos à saúde dos(as) trabalhadores(as).

Ao analisar a ação disciplinar nas sociedades industriais, tomando por base o

pensamento de Foucault (1974), Filho (1997) descreve um modelo de ação do

capital que estimula, a partir do contraditório entre o instituinte (o desejo dos

trabalhadores) e o instituído (a realidade concreta trazida pela empresa) a reflexão

sobre esse ponto aqui debatido:

Ao contrário do poder soberano ou de gládio que agia no sentido de retirar a vida, mutilar o corpo inutilizando-o, como era característico das sociedades pré-capitalistas, o exercício do poder nas sociedades contemporâneas é mais sutil, não procura mutilar o corpo, castigá-lo, forçá-lo a trabalhar, ao contrário, procura moldá-lo, adestrá-lo, gerir a vida do homem, controlá-lo em suas ações para que dele seja extraído o máximo de produção, diminuir a sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens, enfim, tornar os homens dóceis politicamente e úteis economicamente (FILHO, 1997: 103-104).

Ora, o autor fala do que não deveria mais ser, mas que continua sendo, para

além do controle interno e externo do(a) trabalhador(a) pela gerência da fábrica,

contrariando as normas institucionais vigentes referentes a proteção da saúde e da

vida. Pois é possível ainda vislumbrar, no processo de trabalho e na situação

evidenciada pelos interlocutores da pesquisa, na devida proporção, tudo aquilo que

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o autor diz não mais fazer parte do momento contemporâneo, que são a mutilação

do corpo62, o castigo63, quando estes estão sendo forçados a trabalhar em ritmo

intenso, repetitivo, em posturas inadequadas, mesmo com atestados médicos, como

esclarece o médico do trabalho do Cerest de Vitória da Conquista, que demonstra a

sua dificuldade em fazer o que é correto para a saúde do(a) trabalhador(a) doente,

que se vê ameaçado(a) pela empresa como se fosse o(a) culpado(a) pelo próprio

adoecimento:

Quando vou sugerir ao trabalhador (essa semana aconteceu isso) que chega a mim num quadro inicial [...] e que eu comento, olha: vamos fazer o seguinte: Eu vou fazer umas observações aqui [no relatório] sugerindo que [a empresa] coloque um banco em frente a sua máquina de costura, que a cada hora de trabalho você minimamente faça uma pausa de cinco a dez minutos. A paciente deu risada, uma risada irônica, disse: “doutor isso aí não existe!” [...] Então a paciente quando eu coloquei isso, já colocou uma barreira enorme, mesmo assim eu consegui convencê-la. Eu disse: Eu não quero fazer isso para lhe prejudicar, se isso vai piorar a sua relação com o seu supervisor eu não vou fazer. Aí depois de muita conversa eu consegui convencê-la a aceitar a recomendação médica no relatório (ENTREVISTA).

Na narrativa do médico do trabalho do Cerest de Vitória da Conquista,

percebe-se o medo da trabalhadora de solicitar a seu chefe um banco para sentar,

no intervalo de trabalho que a lei lhe concede e que o relatório emitido por um órgão

do SUS recomenda. O que se conclui da análise da história desses homens e

mulheres trabalhadores é que existe um silêncio forçado pelo receio em ficarem

“marcados” pelo supervisor ou gerente, e muitos continuam calados expostos aos

riscos agravando as suas patologias, até o limite de suas possibilidades, até quando

os analgésicos e antiinflamatórios mais comuns não surtam mais efeitos e seja

impossível camuflar o desgaste físico e mental que sempre vem associado aos

quadros dolorosos decorrentes das lesões osteomusculares agudas e crônicas.

Um modelo de produção que no século XXI não permite a uma pessoa sentar,

descansar dez minutos a cada cinqüenta trabalhados, por causa de um

comprometimento na coluna lombar, quando isso é lei para indivíduos tidos como

saudáveis64, é a expressão de uma dicotomia no mundo do trabalho onde coexiste a

atividade laboral como algo que deve dignificar e incluir socialmente, e, ao mesmo 62 O autor disponibilizou no anexo A, uma foto de um jovem de 19 anos mutilado na empresa Azaléia de Itapetinga em 2006. Outros casos de amputação já ocorreram. 63 Vazquez (2007: 110) relata que na cidade de Ipirá, “[...] os dirigentes sindicais que se recusaram a assinar a proposta de implantação do banco de horas, tiveram que trabalhar aos sábados, capinando as áreas externas da fábrica”. 64 Mais informações podem ser adquiridas pela leitura da Norma Regulamentadora N.º 17, do MTE, que trata da ergonomia, acessível em <http://www.guiatrabalhista.com. br/legislacao/nr/nr17.htm>

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tempo, algo que adoece, mata e exclui o indivíduo feito descartável.

O grande desafio para as representações dos trabalhadores e para os

profissionais de saúde mais comprometidos com a saúde pública e a ética é quebrar

essa dualidade fazendo prevalecer o direito ao trabalho digno, à saúde e a vida bem

vivida, e que apesar das dificuldades inerentes ao ato individual e coletivo de viver,

propicie mais satisfação que infelicidade. Pois, não é outro o conceito de qualidade

de vida que defendemos aqui, em contraste com aquele pautado na visão

puramente quantitativista ou economicista.

Em relação a isso, do ponto de vista da legislação trabalhista (que neutraliza

um pouco a natureza utópica do discurso) a NR 17, que trata da ergonomia no

ambiente de trabalho, estabelece no seu item 17.6.1 que “a organização do trabalho

deve ser adequada às características psicofisiológicas dos trabalhadores e à

natureza do trabalho a ser executado”, bem como, no item 17.6.3, lê-se que nas

atividades que exijam sobrecarga muscular estática ou dinâmica do pescoço,

ombros, dorso e membros superiores e inferiores, devem ser incluídas pausas para

descanso.

Em 2006 foi realizado um estudo com 44 trabalhadores(as) da Azaléia de

Itambé65. Os dados obtidos por meio de questionário auto-aplicado revelaram, entre

outros pontos, as principais queixas dos(as) trabalhadores(as), sendo que os

65 Trata-se de estudo tipo sondagem realizado pelo autor, com dados coletados em junho de 2006. Um estudo de caso foi realizado posteriormente (em 2007), em parceria com o Cerest de Vitória da Conquista e o NEIM/UFBA, porém, com nova metodologia, envolvendo uma amostra menor (22 trabalhadores).

Tabela 8 - Azaléia Nordeste em Itambé: queixas de problemas de saúde apontadas pelos trabalhadores - 2006

Problemas osteomusculares relacionados ao trabalho

Freqüência Problemas emocionais relacionados ao trabalho

Freqüência

Absoluta % Absoluta %

Dor no pescoço 10 22,7 Nervosismo 16 36,4 Dor no ombro 17 38,6 Angústia 05 11,4 Dor na coluna 21 47,7 Tristeza 04 9,0 Dor nos braços 16 36,4 Raiva 11 25,0 Dor nas mãos e punhos 15 34,1 Medo 06 13,6 Dor nas pernas 20 70,4 Alterações do sono 10 22,7 Dor nos joelhos 11 25,0 Depressão 01 2,3

Fonte: Pesquisa de campo, 2006.

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problemas osteomuculares são os mais freqüentes juntamente como os transtornos

de ordem emocional, como podem ser verificados na Tabela 8.

Dados coletados para o estudo de caso com 22 trabalahadores(as) da azaléia

de Itambé, em 2007, também apresentaram a dor como uma das principais queixas

dos entrevistados, quando 86,4% disseram que sentem dor em alguma parte do

corpo, contra 9,1% que disseram não sentir (Tabela 9).

Em período de tempo diferente, e público pesquisado distinto, percebe-se o

quanto a dor física e problemas psíquicos fazem parte do cotidiano desses(as)

trabalhadores(as), decorrentes de lesões osteomusculares relacionadas com o

processo e a organização do trabalho, que exigem “eficiência” da força de trabalho

mesmo em condições adversas à natureza humana. Ou seja, o “ser eficiente” não

está condicionado a experiência ou a história profissional do indivíduo na fábrica, e

sim, a habilidade para superar-se até a exaustão.

Esses dados coincidem também com a análise dos prontuários do Cerest de

Vitória da Conquista e com o relatório do CESAT, feito após inspeção na Azaléia

Nordeste de Itapetinga e filiais, inclusive na fábrica de Itambé, em julho de 2000, no

qual os técnicos do estado apontam para a presença principalmente de riscos

ergonômicos e químicos nas diversas fases de produção de calçados.

Se por um lado a ergonômia parte do “estudo da adaptação do trabalho ao

homem” (LIDA, 2002: 1), temos realidade diferente quando assistismos a

predominância do taylorismo, a impor, em pleno século XXI, os mesmos métodos da

administração científica do século XIX, forçando o homem a adptar-se às condições

e à organização do trabalho definidas pelas empresas, ampliando os riscos

ergonômicos.

Tabela 9 - Azaléia Nordeste em Itambé: funcionários com queixa de dor em alguma

parte do corpo - 2006

Sente dor Frequencia

Absoluta %

Sim 19 86,4 Não 2 9,1 SD1 1 4,5 Total 22 100,0 Fonte: Pesquisa de campo. Nota: 1 – Sem declaração.

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Os riscos químicos, dizem respeito principalmente à manipulação de

solventes (xileno, tolueno) e outras substâncias tóxicas presentes na composição

das colas utilizadas na fabricação de calçados e que afertam o sistema

hematopoético, podendo provocar leucemia e outras patologias do sangue,

contribuindo inclusive para quadros depressivos por sua natureza neurotóxica.

Sobre isso, o técnico responsável pelo setor de Vigilância de Ambientes e

Processos de Trabalho do CESAT, Alexandre Jacobina, que coordenou o

diagnóstico do ramo de calçados na Bahia, em 2000, esclarece:

Fizemos 52 inspeções em empresas e unidade, sendo 30 unidades de grande porte. Nesse trabalho nós pudemos identificar o processo produtivo da empresa, os principais fatores de risco que contribuem para o adoecimento dos trabalhadores e chegamos a conclusão de que a exposição aos agentes químicos, os fatores de riscos ergonômicos, principalmente os movimentos repetitivos , o trabalho em pé mantido são os principais fatores que contribuem no adoecimento [...]66 (ENTREVISTA).

Tais situações implicam manter trabalhadores expostos aos riscos de

acidente e ao adoecimento sem que a empresa priorize as ações de prevenção de

agravos, e de promoção e proteção à saúde, na medida em que o Serviço de

Segurança e Medicina do Trabalho da empresa (SESMT) está mais para atender um

requisito legal da legislação trabalhista (NR 7 e NR 9)67, sem, no entanto, preservar

efetivamente o direito à saúde dos(as) trabalhadores(as) do ramo calçadista. Nesse

aspecto o técnico do CESAT, explica:

Algumas questões ainda permanecem sem solução. No caso específico da Azaléia nós tivemos um trabalho junto com o Ministério Público do Trabalho na tentativa de assinar um termo de ajustamento de conduta, esse termo nós tentamos por quase quatro anos negociando com a empresa, discutindo os principais problemas, em alguns momentos ela avançava no sentido de melhorar alguns desses pontos, no entanto ela decidiu que não assinaria esse termo de ajustamento no que resultou numa ação civil pública que foi para a justiça e acabou o ministério público ganhando essa ação (ENTREVISTA).

Outro relatório do CESAT, feito após inspeção para averiguar cumprimento de

condicionantes, refere-se à gravidade dos riscos para a saúde aos quais os

trabalhadores(as) estão expostos(as), e à tentativa do serviço médico da fábrica em

66 Entrevista gravada pelo autor em 27 de maio de 2007, durante o I Encontro das Trabalhadoras do Ramo de Calçados do Estado da Bahia, em Jequié. 67 Ver a Norma Regulamentadora N. 7 do Ministério do Trabalho e Emprego que define o PCMSO em ATLAS, 2002. Já a NR 9, trata do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA). Ambos são programas obrigatórios que constam da burocracia da empresa, mas raramente funcionam como a normas determinam.

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camuflar os diagnósticos das patologias relacionadas ao trabalho. A situação de

desrespeito às normas de saúde e segurança no trabalho nas fábricas da Azaléia

Nordeste é constatada no relatório assinado pelo médico do trabalho do CESAT:

Apesar da existência de casos da doença ser inicialmente negada pela gerência da fábrica, a inspeção no serviço médico revelou outra situação. No contato com o responsável, Dr.[...], nos foi referido que existiam trabalhadores com queixas no aparelho músculo-esquelético. [...] A observação da ficha do mês de outubro/2000, ainda inacabado, fez levantar a hipótese de que a situação realmente envolvia certa gravidade, pois havia o registro de atendimento de nove trabalhadores, dos quais, três casos de recidiva das queixas. [...] Ele ponderou as dificuldades para estabelecimento do diagnóstico e para realização do tratamento dos trabalhadores doentes, o que não é de todo correto, pois o diagnóstico é eminentemente clínico, com base nas queixas do paciente e na análise do posto de trabalho e das tarefas executadas (ENTREVISTA).

É notório comportamento da empresa em não se adaptar à legislação vigente

relacionada a segurança e saúde dos trabalhadores, com rebatimento sobre a saúde

no âmbito local e regional. Essa conduta do empresa foi motivo de conflito ocorrido

em 2003, entre a Azaléia de Itambé e os auditores fiscais do TEM. Isso implica numa

outra questão levantada pelo médico do Cerest de Vitória da Conquista, quando

desabafa: “[...] eu não consigo entender até hoje essa inflexibilidade desse tipo de

processo produtivo [...] se tem a parte gerencial, de custo de produção, então não

abra a fábrica! Ou abra com uma margem menor de lucro...” (ENTREVISTA). A

questão da postura não-ética de médicos do trabalho que prestam serviços à

empresa Azaléia aparece também na fala do técnico CESAT, como expressão das

queixas dos trabalhadores do ramo de calçados na Bahia:

[...] a gente observa ainda nas empresas muitas queixas dos trabalhadores que estão expostos a riscos ergonômicos que se queixam que vão ao setor médico, queixas inclusive repetidas, e que não há investigação adequada dessas situações, o que acaba em resultando em agravo a saúde desses trabalhadores e que vão à procura dos órgãos de referência, os CERESTs, [...] para terem a sua saúde avaliada e o diagnóstico feito (ENTREVISTA).

Em decorrência desse tipo de postura da empresa, 88,4% dos 44

trabalhadores consultados em 2006, se queixaram de problemas de saúde

adquiridos após admissão na fábrica68. Na segunda pesquisa, realizada em 2007,

68 Quanto a esse ponto somente o acesso aos exames admissionais feitos pelo serviço médico da empresa (em conformidade com a NR N. 7 do TEM estabelece que as normas para o PCMSO poderia confirmar a informação prestada por cada trabalhador que respondeu ao questionário. Esses exames devem detectar se o trabalhador apresenta algum problema de saúde antes da admissão na empresa ou se adquiriu alguma patologia depois, seja de origem ocupacional ou não. A experiência

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com critérios metodológicos diferentes69, 50% dos(as) 22 operários(as)

consultados(as),afirmaram ter sofrido algum tipo de acidente de trabalho (típico ou

de trajeto) como é possível ver na Tabela 10.

Retornando a sondagem de 2006, com relação ao grau de satisfação com o

trabalho e a renda, pode-se constatar algo que vai contra o discurso da qualidade de

vida em função exclusivamente do salário, pois 45,5% dos trabalhadores(as)

pesquisados(as) apresentam algum nível de insatisfação com o trabalho, o que

aparece em expressões como “causa tristeza”, “não dá prazer” ou “não gosto do

trabalho”, e 77,3% dos trabalhadores(as) afirmaram que se tivesse outra opção

mudaria de emprego. Quanto à renda, a sondagem apontou que 61,4% dos

trabalhadores(as) acham o salário insatisfatório, não atendendo às expectativas.

Isso é notado também na observação feita pelo técnico do CESAT, ao se referir aos

trabalhadores da Azaléia:

E eles, lógico, não têm satisfação com isso porque eles passam a ser trabalhadores de salário mínimo e que não conseguem desenvolver, formar famílias. E há uma insatisfação grande nisso. Percebemos quando entrevistamos os trabalhadores, quando conversamos com eles em particular, que há um trabalho com muito esforço, com muita carga horária, entretanto, a recompensa que seria o salário, essa recompensa é insuficiente para a manutenção dessas pessoas, para a família dessas pessoas (ENTREVISTA).

Idéia semelhante sobre a insatisfação dos trabalhadores da Azaléia Nordeste

é compartilhada pela psicóloga e pesquisadora do NEIM/UFBA, Wasquez, W. e que tem demonstrado que a maior parte dos problemas ocorrem depois da admissão na empresa. 69 É importante destacar que na sondagem de 2006, utilizou-se um questionário auto-aplicável que foi repassado ao sindicato que os distribuiu para 44 trabalhadores(as). Em 2007, outro instrumento foi aplicado para uma amostra menor (22), porém pelo o autor com o apoio de equipe multiprofissional do NEIM/UFBA e Cerest.

Tabela 10 - Azaléia Nordeste em Itambé: funcionários que declararam ter sofrido acidente de trabalho na

empresa - 2006

Sente dor Freqüência

Absoluta % % válido

% acumulado

Sim 11 50,0 52,4 52,4 Não 10 45,5 47,6 100,0 SD1 1 4,5 ? Total 22 100,0 100,0 Fonte: Pesquisa de campo, 2006. Nota: 1 – Sem declaração

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implica diretamente a qualidade de vida. Para ela, a questão do ganho salarial que

permite o acesso a bens e serviços, não é suficiente para gerar a satisfação do(a)

trabalhador(a), pois a felicidade imaginada está para além dos limites da

materialidade e do consumo:

Existem lesões que são irreversíveis e que não tem consumo que vá suplantar esse sofrimento. Não tem vídeo cassete, não tem televisão de tela plana, nem computador, nem celular que consiga substituir a perda de um órgão, de um braço, de um dedo; a dependência de uma mulher que é marcada pela LER, que não consegue mais pentear os seus cabelos, precisa da ajuda do marido, dos filhos e não consegue fazer mais nada (ENTREVISTA).

Os dados da Tabela 11 mostram, segundo o imaginário imediato dos(as)

trabalhadores(as) que o trabalho na fábrica da Azaléia de Itambé apresentam

aspectos positivos para a vida pessoal que são neutralizados pelos aspectos

negativos, depreciativos para o que se pode pensar em qualidade de vida. 2,2% dos

pesquisados diz que o trabalho na Azaléia “representa tudo” porque precisa do

emprego, 4,5% diz que não representa “nada” ou “quase nada”, o que remete aos

trabalhadores que disseram que trabalham ali por necessidade, pois “ruim com ele,

pior sem ele” (6,8%)70.

70 Ver tabela 15, com resultados da pesquisa de 2007, há semelhança nos resultados mesmo com amostras e períodos distintos. A questão aqui foi:”diga com uma só palavra o que o trabalho nessa empresa representa para você”. No instrumento aplicado em 2007 a questão foi: “Quais os benefícios que o trabalho no setor calçadista trouxe para a sua vida?”.

Tabela 11 - Azaléia Nordeste em Itambé: termos usados pelos trabalhadores para expressar o que o trabalho na empresa representa (sondagem de 2006)

Expressão positiva Freqüência Expressão negativa Freqüência Absoluta % Absoluta %

Satisfação/prazer 15,8 Escravidão/exploração 9,0 Dignidade 2,2 Estresse 4,5 Independência 6,8 Quase nada/nada 4,5 Vitória/realização 6,7 Cansaço 6,8 Importante 2,2 Insatisfatório 2,2 Carteira assinada/segurança financeira

6,8 Insegurança 2,2

Sobrevivência 9,1 Decepção/frustração 4,5 Representa tudo porque preciso do emprego

2,2 Ruim com ele pior sem ele/necessidade 6,8

Total 22 100,0 22 100,0Fonte: Pesquisa de campo, 2006.

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Considerando o tempo de serviço, notadamente aqueles que têm menor

tempo na empresa, apresentaram menos queixas nessa sondagem e aqueles que

têm maior tempo no emprego mencionaram mais problemas de saúde, como consta

na Tabela 12. Isso decorre do fato de que quanto maior o tempo numa atividade,

maior o grau de exposição, e, conseqüentemente, maior a possibilidade do

surgimento de problemas e respectivas queixas.

O choque cultural entre os que acreditam que o baiano é “preguiçoso” e os

que entendem que o “sertanejo é antes de tudo um forte” tem se encarregado de

trazer à superfície esse conflito que se expressa nas vozes dos(as)

trabalhadores(as) que não foram escutadas pelo Governo do estado, pela empresa,

nem pelos agentes financiadores, para a avaliação das políticas públicas nas

esferas regional e municipal. Essas vozes demonstram que a reação sindical e de

trabalhadores(as), isoladamente, chega a ser instintiva e imediata71 quando

esses(as) escutam gerentes ou supervisores chamar mulheres de “galinha” e

homens de “cachorro”, dentro das fábricas, ou quando os “pacíficos” conterrâneos

dos revolucionários do “Dois de Julho” percebem o interesse dos capitalistas do Sul

do país em “fazer sapatos a partir do couro do trabalhador e da juventude” baiana,

como disse um membro do “Sindicato de Verdade”.

Exemplo clássico de coação da empresa sobre o(a) trabalhador(a) pode ser

constatado, na situação a seguir, descrita pelo sindicalista “S5”, quando narra dois

fatos constrangedores ocorridos nos galpões da Azaléia de Itambé:

Episódio 1:

71 As agressões físicas contra gerentes têm propiciado demissões por justa causa na Azaléia, segundo o sindicato, por conta do assédio moral.

Tabela 12 - Azaléia Nordeste em Itambé: relação entre tempo de serviço (exposição a riscos) e problemas de saúde (queixas) causados pelo

trabalho na fábrica - 2006

Tempo de serviço Problemas de saúde (queixas) Sim Não Total Absoluto % Absoluto %

Entre 6 meses e 2 anos 06 13,9 04 9,3 10 Mais de 2 anos 31 72,1 02 4,7 33 Total 37 86,0 06 14,0 43 Fonte: Pesquisa de campo, 2006. Nota: 1. apenas 43 trabalhadores responderam essa questão.

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Se você depender daquele emprego então eles ameaçam você, eles falam que se você sair da azaléia vai rodar a bolsinha, vai pilotar fogão, principalmente as meninas, porque as mulheres não têm como remediar e dos homens eles tem mais um pouquinho de medo, por isso que eles pisam mais nas mulheres... Por exemplo, a menina furou o dedo e eles não aceitaram como acidente de trabalho. Ela chegou no hospital e voltou a trabalhar no outro dia com o problema no dedo, e o chefe falou para ela que se ela conversasse qualquer coisinha ela ia pular fora da Azaléia, ia pra rua, ia rodar a bolsinha, ia pegar os caminhoneiros, porque a cidade de Itambé muitos caminhoneiros passam por ali, então, as mulheres iam fazer o que? Vida? Porque para a chefia quem sair da Azaléia vai ficar dependendo de vender seu corpo para se sustentar.

Episódio 2:

O que aconteceu às seis e meia da tarde na puras, puras é o lugar de almoçar, de servir a comida, de jantar. Aí o povo jantou a comida e todo mundo sentiu mal, começou a vomitar [...] e eles chamaram o corpo de bombeiro de Itapetinga para resolver aquilo ali! Todo mundo na fábrica parou, ficou um dia parado, todo mundo não ficou em casa, ninguém recebeu atestado. Todo mundo na fábrica diretamente trabalhando, você suando, você doente, desmaiando, indo no banheiro, vomitando, com aquela diarréia, aquelas coisas ruins, e o que aconteceu com a Azaléia? Ela não liberou ninguém para o hospital. [...] quando o povo começou a melhorar lá para as 10 horas da noite queriam que a gente fizesse mais uma hora a mais de cerão. (ENTREVISTA).

Na narrativa desse segundo episódio fica evidente o interesse da empresa em

reter os(as) trabalhadores(as) no ambiente de trabalho, mesmo apresentando um

quadro clínico compatível com infecção intestinal (que se configura como surto

epidêmico para a saúde pública), no intuito de analisar, não a evolução da patologia,

mas o quanto eles(as) poderiam ainda render nas máquinas antes de acabar o turno

de trabalho e depois de minimizados os sintomas. No Primeiro episódio a

subjugação da mulher, sujeita à humilhação, dá-se num cenário fictício no que se

refere à benevolência para com as trabalhadoras, pois lhes oferecem empregos

melhores do que a “única opção” que elas teriam sem a Azaléia: “serem prostitutas”.

Benevolência a esse preço, não parece ser, como insinua o verbete popular, o pão

preparado pelo o diabo?

Lipietz (1988) ao discutir sobre a mundialização do fordismo, trouxe à baila

um modelo sociocultural que em parte explica esse tratamento dado às mulheres. O

autor menciona a situação das mulheres trabalhadoras da Coréia que trabalhavam,

na década de 70, até 15 horas por dia. O autor explica que tal condição resultou no

aumento da invalidez para o trabalho “num ritmo de 17% ao ano”. Neste cenário

envolto na miserabilidade das relações humanas no trabalho com desgaste da

saúde, a única opção das coreanas ainda jovens, após serem descartadas como

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inválidas do emprego nas fábricas, era ser comerciante de seus próprios corpos,

prostituindo-se, o que demonstra que a percepção do papel da mulher que permeia

o universo da fábrica em Itambé, está contida em muitos lugares do mundo, não é

ineditismo. Lipietz (1988: 95) explica: “Entende-se então, porque as operárias são

demitidas pelas empresas depois de completarem trinta anos de idade: seus olhos,

suas mãos deixam de corresponder as normas. Elas caem então no setor

“tradicional” ou na prostituição.

O jogo de escalas do global até o local, ou vice-versa, é necessário para

contextualizar e explicar porque um gerente de empresa como Azaléia Nordeste, no

interior da Bahia, se sente no pleno direito de dizer às funcionárias que sua opção

de trabalho sem a empresa é a prostituição. Isso se dá por influência de uma cultura

econômica de exploração que vê na periferia (do lugar ou do mundo) uma força de

trabalho complementar à máquina, desqualificada, desvalorizada, susceptível à

tirania de um modelo de produção mutilador de carnes e sonhos.

Para Lipietz (1988), trata-se da existência de um proletariado pouco

organizado, porém disponível para o trabalho taylorizado. Trabalho este,

fragmentado, repetitivo, monótono e estressante, forjado no fogo da mais rígida

disciplina de produção, que desgasta a saúde dos(as) trabalhadores(as), afetada

principalmente pela LER que já tem status de epidemia no mundo do trabalho72.

Motta (1995: 31) ao citar Prado Jr. (1965), conclui que “no Brasil, o operário é o

sucessor do escravo”.

Na devida proporção, se a Azaléia na região Sudoeste tem uma rotatividade

entre “1.400 e 1.600 funcionários demitidos por ano”, segundo informa o “Sindicato

de Verdade”, podemos prever a multiplicidade de causas para as homologações (ou

descartes), entre as quais estão as patologias decorrentes (ou agravadas) pela

fadiga e pelo estresse muscular e emocional, e suas repercussões psicossomáticas

que levam à incapacidade ou inadaptação ao trabalho, como conseqüência,

portanto, de uma forma produtiva que elege a subjugação como método de

convencimento e estímulo para a produção.

72 Lima; Fernandes (2002) organizaram importante artigo sobre essa patologia, no Manual de Normas e Procedimentos Técnicos para Vigilância da Saúde do Trabalhador, publicado pelo Governo do estado da Bahia, onde se lê: “As LER/DORT [...] vê assumindo liderança das estatísticas relativas às Doenças Ocupacionais no país. Esse fato não se limita à realidade nacional, vez que as informações divulgadas internacionalmente acerca desses distúrbios apontam para a extensão do problema. [...] Na sociedade pós-moderna, essas doenças, descritas desde o século XVIII, adquirem padrão de epidemia, e se constituem em um problema social de grandes proporções” (BAHIA, 2002: 171).

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Ao analisar as culturas e organizações no Brasil, Motta (1995) levanta

questões importantes sobre as relações no trabalho, que ajudam a responder, em

parte, a complexidade do que ocorre na relação entre os trabalhadores brasileiros de

Itambé e os gerentes brasileiros da Azaléia, recém-chegados do Rio Grande do Sul:

Uma classe dominante com traços de burguesia e tecnocracia cosmopolitas apresenta valores e comportamentos de pretensa aristocracia de senhores de engenho. De modo geral, os valores democráticos não são muito fortes no âmbito das organizações. Entretanto, não é democracia, mas também não é autocracia. Trata-se de algo intermediário, ambíguo, como muitos traços de cultura brasileira (MOTTA, 1995: 33).

Sem embargo, o ramo de calçados tem sido um dos principais causadores de

problemas ocupacionais na região Sudoeste da Bahia, em função da organização e

do processo de trabalho.

Um estudo de demanda feito pelo Setor de Vigilância dos Ambientes de

Trabalho (SEVAT) do Cerest de Vitória da Conquista, analisando 711 prontuários

dos trabalhadores, apontou um salto significativo no número dos(as)

trabalhadores(as) adoecidos no ramo de calçados nos últimos anos. Na soma dos

dados do período 2001-200573 o ramo de calçados estava em 8º lugar no número de

trabalhadores(as) atendidos(as), saltando para o 2º lugar no recorte de 2006.

Agregando os dados de 2001 a 2006, os problemas de saúde relacionados ao 73 O CEREST foi implantado em 2003, quando passou a atender outros municípios, entre os quais Itambé. De 2001 e 2002 os casos de Ler/Dort notificados foram de Vitória da Conquista, através do Núcleo de Saúde do Trabalhador (NUSAT), também ligado, na época, à Secretaria Municipal de Saúde.

Tabela 13 - Trabalhadores com problemas de saúde por ramo de atividade mais freqüente – 2001/2006 Ramo de Atividade Casos Classificação

Ensino/educação 77 1º Serviço público 76 2º Transporte coletivo 70 3º Saúde 58 4º Calçadista 46 5º Comércio geral 44 6º Autônomos 40 7º Bancário 38 8º Alimentação 24 9º Escritório/digitação 23 10º Fonte: Estudo de demanda do CEREST, 2006. Oraganizado pelo autor.

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trabalho colocaram o ramo de calçados em 5º lugar, dentre 32 ramos de atividade

econômica analisados, representando 6,5% de todos os agravos registrados em

prontuário, enquanto que o primeiro lugar ficou com o setor de ensino/educação com

10,8% dos problemas de saúde detectados pelo Cerest. Cabe ressaltar que a

produção de calçados é relativamente nova na região e já desponta como uma das

principais atividades que provocam acidentes e doenças do trabalho. No geral, trata-

se de uma atividade na qual os fatores de risco são preocupantes. Esses dados

podem ser vistos na Tabela 13, onde estão expostas as dez principais categorias

afetadas, de acordo o banco de dados do Cerest de Vitória da Conquista.

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8 A SAÚDE DO TRABALHADOR E OS ASPECTOS INSTITUCIONAIS

A saúde do trabalhador no Brasil é um tema contemplado pela CF de 1998,

principalmente em seu artigo 200, quando estabelece que compete ao “Sistema

Único de Saúde (SUS), além de outras atribuições, nos termos da lei [...] colaborar

com a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”. A Lei

Orgânica da Saúde (8.080/90), estabelece, como objetivo do SUS, em seu artigo 5º,

inciso III, “[...] a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção,

proteção e recuperação da saúde, com realização integrada das ações assistenciais

e das atividades preventivas”. Segundo o artigo 6º, estão incluídas ainda no campo

de atuação do SUS, “I - a execução de ações de vigilância sanitária, de vigilância

epidemiológica e de saúde do trabalhador [...]”.

A Lei Orgânica da Saúde assim conceitua o campo da saúde do trabalhador

no SUS:

Entende-se por saúde do trabalhador, para fins desta lei, um conjunto de atividades que se destina, através de ações de vigilância epidemiológica e sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa a recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho” (BAHIA, 2001: 37)

Desse modo o SUS passa a ter o direito a adentrar os ambientes de trabalho

para identificação dos fatores de risco para a saúde dos trabalhadores, o que é feito

na Bahia, pelo CESAT e pelo Cerest em suas áreas geográficas de abrangência.74

Anteriormente a essa lei, a inspeção do ambiente de trabalho estava restrita ao MTE

e aos órgãos da previdência social.

Apesar de possuir escopo legal específico, os órgãos do SUS pautam-se

muitas vezes na legislação sobre saúde e segurança do MTE em especial as NRs

aprovadas pela Portaria n.º 3.214 de 08 de junho de 1978, relativas ao Capítulo V do

Título II, da CLT, referentes à segurança e medicina do trabalho. Não compete ao

SUS intervir sobre questões trabalhistas, mas sobre a saúde da população

trabalhadora, em seus aspectos condicionantes e determinantes do processo

saúde/doença.

O fato de existir o SUS em todos os municípios do Brasil, amplia a

74 O Cerest de Vitória da Conquista, por exemplo, cobre 76 municípios da macro-região Sudoeste.

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possibilidade de melhor atenção à saúde do trabalhador em todos as esferas de

Governo, a depender da estrutura de cada serviço implantado, podendo agir em

diversos níveis da atenção à saúde: primário, secundário e terciário. A atenção

primária é caracterizada por ações de promoção à saúde como educação em saúde,

educação sanitária e ambiental. A atenção secundária envolve o diagnóstico

precoce dos problemas de saúde. A terciária diz respeito ao diagnóstico, tratamento

e reabilitação, exigindo níveis de complexidade mais elevados do sistema de saúde,

inclusive do ponto de vista tecnológico e da qualificação profissional (especialidades)

e do serviço de saúde.

Essa capilaridade do sistema de saúde descentralizado, garantindo

autonomia de ação dos entes federativos, é um ponto positivo na prevenção e

controle de agravos, sendo proporcional à capacidade de organização e ação de

cada nível de gestão ou localidade. Ao passo que as DRTs são órgãos

centralizados, sem comando único em cada esfera de governo, não se faz presente

em todos os municípios todo o tempo, o que compromete a eficiência de sua

atuação no combate ao trabalho precário, inseguro e insalubre. Parcerias entre as

DRTs, Ministério Público do Trabalho, Cerest têm gerado resultados importantes ao

agregarem o potencial de cada órgão público no enfrentamento dos problemas

crescentes relacionados ao mundo do trabalho.

A Portaria RENAST, nº 1.679 de 19 de setembro de 200275, em seu Anexo II,

define as atribuições e ações a serem realizadas pelos Cerests, entre as quais

destacamos:

a) Ações de promoção da saúde do trabalhador, incluindo ações integradas com

outros setores e instituições, tais como MTE, Previdência Social, Ministério

Público, entre outros.

b) Suporte técnico especializado para a rede de serviços do SUS efetuar o

atendimento, de forma integral e hierarquizada, aos casos suspeitos de doenças

relacionadas ao trabalho, para estabelecer a relação causal entre o quadro

clínico e o trabalho.

c) Suporte técnico às ações de vigilância, de média e alta complexidade, a

ambientes de trabalho, de forma integrada às equipes e serviços de vigilância

municipal e/ou estadual.

75 A Portaria RENAST cria a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador no âmbito do SUS e dá outras providências.

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Analisando o que diz o Artigo 6 da CF 1988, no Capítulo II dos Direitos

Sociais, tem-se que são direitos sociais, entre outros, a saúde e o trabalho. No artigo

7º lê-se: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem

a melhoria da condição social: [...] redução de riscos inerentes ao trabalho, por meio

de normas de saúde, higiene e segurança”.

Diante da legislação vigente pode-se afirmar que a organização e o processo

e trabalho na indústria de calçados Azaléia, têm afetado, ao longo do tempo, o perfil

epidemiológico dos trabalhadores do município de Itambé. A situação levou ao MTE

realizar inspeção dos ambientes de trabalho, por solicitação da direção do PT

daquele município, em 2003, que pela ausência de base sindical no município

naquele ano, passou a encaminhar as queixas dos operários e operárias para os

órgãos competentes. Nesse período o Sintracal, com base em Jequié, também

requisitou a ação da DRT em Itambé.

Em função disso, auditores fiscais do MTE, uma médica e um engenheiro

estiveram visitando os dois galpões de produção da Azaléia em Itambé, nos dias 21

e 22 de novembro de 2003. A inspeção gerou os seguintes resultados: seis autos

de infração por descumprimento de artigos da CLT (630, 185, 163,168 e 199) e

Notificação no Livro de Inspeção do Trabalho inclusive reiterando notificações

anteriores do MTE.

Vale salientar que o órgão federal foi barrado na portaria da empresa pela

gerência local no primeiro dia, sendo que esse desrespeito aos auditores fiscais

resultou num dos seis autos de infração e respectiva penalidade que o relatório

repassado ao Cerest, no dia 23 de fevereiro de 2007, não informou. Nesse relatório

a auditoria aponta as dificuldades para o acesso a empresa e as seguintes

irregularidades observadas nas fábricas da empresa no município:

a) “Dificultar o livre acesso do auditor fiscal às dependências do estabelecimento

sujeito ao regime da legislação trabalhista”.

b) “Fazer preparos e/ou limpeza e/ou ajustes, e/ou inspeções com máquinas em

movimento”.

c) “Deixar de encaminhar o trabalhador à Previdência Social quando constatada a

ocorrência ou agravamento de doenças profissionais”.

d) “Deixar de acompanhar o cumprimento das medidas de segurança e saúde no

trabalho pela(s) empresa(s) contratada(s)”.

e) “Deixar de planejar ou adaptar o posto de trabalho para a posição sentada

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sempre que o trabalho possa ser realizado nessa posição”.76

A análise feita pelos auditores do MTE na Azaléia de Itambé, vem legitimar

todas as observações feitas nessa pequisa pelos diferentes agentes sociais ouvidos

e até aqui citados.

Em primeiro lugar, o aspecto hermético dessa empresa, que não permite a

saída de trabalhadores(as) doentes (o caso do surto de infecção intestinal, sendo

atendidos pelo corpo de bombeiros de Itapetinga, é exemplar), nem a entrada de

fiscais do MTE, literalmente barrados na porta da fábrica no exercício legal de suas

funções.

Em segundo, o descumprimento da legislação da saúde e segurança do

trabalhador, com impacto na qualidade de vida, em função dos acidentes de trabalho

e amputações comuns em situações denunciadas no ítem “b”.

Em terceiro, a tendência da empresa em esconder os agravos ocupacionais,

negando ao (a) trabalhador (a) o direito de afastar-se para tratamento, por meio da

Previdência Social, contando com a omissão dos médicos do trabalho, o que resulta

em cronificação das doenças do trabalho, principalmente as LER/DORT, como está

claro nos ítens “c” e “d”. Nesse ponto a relação dominador/dominado exposta por

Ribeiro (2003) remete à sua explicação sobre fenômeno semelhante em escala mais

ampla, de onde brota a noção de que o trabalho é sempre um favor concedido, uma

dádiva divina cujas condições não devem ser jamais questionadas:

Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social que perpetua a alternidade. O povo massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido (RIBEIRO, 2003: 24).

Em quarto, a desobediência ou omissão da empresa em adaptar-se às

recomendações dos fiscais do trabalho, feitas anteriormente.

Quinto, a natureza desumana, não apenas do processo e da organização do

trabalho, mas da empresa em relação à capacidade psicofísica dos (as)

trabalhadores (as) de suportar a carga de trabalho excessiva.

76 Recorde-se aqui a fala do médico do Cerest de Vitória da Conquista, Dr. Alberto Ferreira Lima, que cita anteriormente a sua tentativa de recomendar um banco para a funcionária sentar: “Eu vou fazer umas observações aqui [no relatório] sugerindo que [a empresa] coloque um banco frente a sua máquina de costura”. Mais adianta explica à paciente: “se isso não lhe causar problemas com o supervisor”.

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Assunção (2004), no livro “o trabalho humano na sociedade das máquinas”,

ao abordar a história dos trabalhadores na luta pela saúde, faz o alerta em relação o

trabalho flexível que causa problemas de saúde, dentro os quais ela destaca o

sofrimento, apontado também por Dejours (2006):

A década de 90 caracterizou-se pelas inovações contundentes nos processos produtivos. Com elas, um outro drama do trabalho: o sofrimento de cada um diante da hierarquia, do cliente – rei, da exigência da polivalência, da corrida pela qualificação, dos efeitos da rígida divisão do trabalho [...] cujas conseqüências são intensificadas pelo mal maior: o medo do desemprego (ASSUNÇÃO, 2004: 19).

Ao contrário do que defende a autora, os problemas de saúde e acidentes de

trabalho são comumente atribuídos pela Azaléia Nordeste à “falha do trabalhador”,

ou a “uma fatalidade”, no processo de trabalho, como constataram os técnicos do

Cerest ao investigar um acidente de trabalho com amputação em 2006. O modelo de

organização do trabalho e a exigência hierárquica por produção em escala e com

qualidade geram pressões de toda ordem. Isso não é observado como fator de risco

para a saúde individual e coletiva dos(as) trabalhadores(as).

Com base na tabela 14, constata-se que a percepção de risco dos

trabalhadores é significativa apesar do baixo nível de escolaridade e de informação

do grupo. Para 77,3% dos trabalhadores pesquisados o trabalho na Azaléia

Nordeste oferece risco à segurança e saúde.

A visão economicista que enxerga o PIB, mas não analisa o impacto das

condições de trabalho sobre o humano, é a mesma que atribui “[...] o infortúnio a

causalidade do destino, não vendo responsabilidade nem injustiça na origem desse

infortúnio [...]”, como esclarece Dejuors (2006: 20). O autor entende que o trabalho é

dicotômico, traz em si aspectos protetores e destrutivos da saúde, e reafirma que,

Tabela 14 - Azaléia Nordeste em Itambé: percepção de risco para a segurança e saúde no trabalho

pelos funcionários - 2007

Risco Freqüência %

válido %

acumulado Absoluta % Sim 17 77,3 77,3 77,3 Não 1 4,5 4,5 81,8 Não sabe 4 18,2 18,2 100,0 Total 22 100,0 100,0 Fonte: Pesquisa de campo, 2007.

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para além do corpo físico,

O trabalho tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psíquico. Ou bem contribui para agravá-lo, levando progressivamente o indivíduo à loucura, ou bem contribui para transformá-lo, ou mesmo subvertê-lo, em prazer, a tal ponto que, em certas situações o indivíduo que trabalha preserva melhor a sua saúde do que aquele que não trabalha (DEJOURS, 2006: 21).

“Por que o trabalho ora é patogênico, ora estruturante?” Questiona Dejours

(2006). A partir das experiências vivenciadas pelos(as) trabalhadores(as) da Azaléia

Nordeste entrevistados(as) nesse estudo, o trabalho é estruturante na medida em

que ele não altera a qualidade de vida para pior; e é ao mesmo tempo patogênico,

quando se processa em condições desfavoráveis à vida. Tanto num aspecto quanto

no outro, a saúde física e mental é categoria fundamental de análise.

Que a dor física e o sofrimento psíquico acompanham os lesionados do ramo

de calçados, não há dúvida, principalmente se retornarmos às falas anteriores das

psicólogas Néria Ribeiro do Cerest e Vazquez, W. do NEIM/UFBA que revelam o

esforço desprendido dos(as) trabalhadores(as) para darem conta da carga de

trabalho. Clot, (2006: 14) chama a atenção para o fato de que esse esforço não é

apenas para realizar as tarefas cientificamente determinadas, mas também o esforço

sobre-humano com que o(a) trabalhador(a) deve “consentir para reprimir a sua

própria atividade”, limitando-a a repetição de uma cadência pré-estabelecida pela

organização do trabalho.

Como Dejours (2006), Clot (2006), admite que o taylorismo ainda está muito

presente nas empresas, exigindo de quem trabalha, paradoxalmente, muito menos

do que ele pode dar, na medida que “a calibração do gesto é uma amputação do

movimento” (CLOT, 2006:14), e assim, “condena-se o homem a uma imobilidade

que é uma tensão contínua”. Portanto, na visão de Clot (2006), exigir gestos

milimetricamente controlados não é uma atitude que estimula o ser humano a

extravasar suas potencialidades quando transforma matéria-prima em mercadorias.

Por outro lado, a urgência dos gestos repetitivos desferidos em razão da produção

em escala em curtíssimo prazo, extrai da força de trabalho um aparato imenso de

energia física e psíquica que, em situações semelhantes, exaure o ser humano.

Já a natureza protetora da saúde, que o trabalho exerce, surge na pesquisa

feita em 2007, nas expressões dos(as) trabalhadores(as) da Azaléia de Itambé, ao

se referirem aos benefícios adquiridos com a ocupação, com se observa na Tabela

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15, elaborada mediante a categorização das respostas de 22 trabalhadores(as) da

Azaléia de Itambé entrevistados(as), sendo que 20 descreveram os benefícios que o

trabalho no setor calçadista trouxe para suas vidas.

É bastante interessante o fato de que, embora se trate de um questionamento

feito aos entrevistados sobre os benefícios do trabalho na Azaléia de Itambé, o

“desgaste da saúde” (10%), o ter que “agüentar tudo por falta de outra opção de

trabalho” no município (25%), e “nenhum benefício, só doença” (15%) aparecem em

suas expressões, demonstrando que os aspectos negativos relacionados à

organização e processo de trabalho se impõem sempre que essas pessoas são

convidadas à expor suas opiniões, mesmo estando determinado, pelo questionário,

tratar-se de benefícios e não de malefícios. Por esse motivo, para melhor

categorização das expressões, foram considerados os aspectos positivos e

negativos dos “benefícios”, dispostos na Tabela 15. Tal situação aponta para o peso

negativo do trabalho sobre a condição humana dos(as) trabalhadores(as)da Azaléia

Nordeste no município e que merece registro.

Aspecto contrário pode ser visto na Tabela 16. Quando se abre a

Tabela 15 - Azaléia Nordeste em Itambé: declaração de benefícios auferidos pelos funcionários ao longo de sua vida de trabalho na empresa - 2007

Positivos Freqüência

Negativos Freqüência

Absoluto % Absoluto % Ganho material 10 50 Desgaste da saúde 02 10,0 Experiência profissional 02 10,0 Trabalha por falta opção 05 25,0 Estabilidade no emprego 04 20,0

Nenhum benefício

03

15,0 Ganho social 04 20,0 Satisfação 02 10,0 Fonte: Pesquisa de campo, 2007.

Tabela 16 - Azaléia Nordeste em Itambé: observação/queixa dos(as) trabalhadores (as) com relação ao trabalho - 2007 Observação/queixas Absoluto % Salário insatisfatório 07 43,75

Assédio moral 11 68,75 Desgaste da saúde/trabalho

estressante 06 37,50

Carga horária excessiva 03 18,75 SQ1 02 12,5

Fonte: Pesquisa de campo, 2007 Nota: 1. Sem queixa.

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possibilidade dos entrevistados(as) fazerem observações e queixas relacionadas ao

trabalho na Azaléia de Itambé, o óbvio acontece: Não se percebe um benefício

sequer citado pela mesma amostra. A totalidade das observações e queixas são

direcionadas ao que eles(as) entendem por riscos para a saúde ou insatisfações

com o trabalho. Situações de assédio moral aparecem na fala de 68,75% da

amostra, envolvendo coação, pressão chefia por meta, ameaça de demissão,

discriminação. 37,5% das falas relatam o desgaste da saúde, principalmente por

vivenciarem situações estressantes todo o tempo. Expressões como as que seguem

são comuns77:

“Eu me sinto muito pressionada, meu supervisor é grosso, não sabe falar comigo com educação, e o salário é baixo”. (T7)

“Diminui as horas de trabalho, o mau trato da chefia, o trabalho é cansativo pois tem que ficar muitas horas em pé”. (T1)

“Com relação ao salário, trabalha muito e recebe pouco. Com relação á saúde, tipo assim, você adoeceu, não é um bom funcionário, não é um funcionário padrão”. (T2)

“Os trabalhadores do setor calçadista sofrem assédio moral em toda a sua carga horária. [...] são controlados por pessoas que ameaçam [...] cobrando produção, e que enquanto cinco funcionários querem sair, tem cinco mil querendo trabalhar”. (T8)

“Meu salário é baixo, e o trabalho é muito estressante”. (T13)

“Todos os dias me esforço para dar mais de 100%, às vezes 120%. Gostaria que eles reconhecessem”. (T16)

“Já fui discriminado”. (T17)

Isso mostra que, para os entrevistados, entre o trabalho prescrito e o trabalho

real, existem importantes detalhes que enfraquecem o discurso oficial da qualidade

de vida dos empregados da azaléia Nordeste em Itambé.

Não é porque 50% desses(as) trabalhadores(as) enxergam no ganho salarial

uma conquista, e 20% se sentem estabilizados no emprego pela força simbólica da

carteira assinada (tabela 15), que a satisfação coletiva ou individual é plena. Em

77 Essas observações e queixas foram classificadas em cinco categorias: salário insatisfatório, assédio moral, desgaste da saúde/trabalho estressante, carga horária excessiva. Dos 22 entrevistados, 06 não quiseram responder alegando que as queixas já haviam sido mencionadas em questões anteriores. Apenas dois informaram não ter queixa ou observação a fazer.Vale salientar que algumas vezes uma fala continha expressões compatíveis com mais de uma categoria.

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outras palavras, pode-se dizer que entre o instituinte (desejo de proporcionar um

trabalho sem dano) e o instituído (realidade epidemiológica concreta) vai longa

distância. É por isso que, ao contrário da empresa, os aspectos negativos para a

saúde e qualidade de vida sempre são colocados em foco pela população

entrevistada, mesmo quando os(as) trabalhadores(as) não são questionados(as) a

esse respeito.

Apesar do ganho material ser o principal benefício destacado pela classe

trabalhadora, para 43,75% dos(as) entrevistados(as) os salários são muito baixos

em relação a carga de trabalho excessiva (Tabela 16). Então, se por um lado o

salário é um “benefício”, o seu poder de compra, por outro, é insatisfatório, e sequer

justifica o esforço ante o volume de problemas vivenciados pela força de trabalho no

ambiente da fábrica. 16 dos 22 trabalhadores que responderam ao questionário,

apresentaram observações e queixas em relação ao trabalho (classificadas em cinco

categorias) como se vê na tabela 16:

Se nem o salário, que é o responsável pelo aumento da renda per capta não

gera satisfação suficiente para neutralizar o impacto dos malefícios do processo

produtivo sobre o homem e a mulher da Azaléia. Se nem o poder de compra, dentro

das expectativas dos trabalhadores, esse salário garante, então em que se sustenta

na atualidade o discurso oficial do Governo, da empresa e dos agentes

financiadores sobre a qualidade de vida supostamente proporcionada?

É notório que a base desse discurso tem sido a escassez e a parcialidade das

pesquisas elaboradas, associadas ao ato de ignorar a importância de opiniões de

outros agentes sociais envolvidos com a implantação da empresa nos níveis local e

regional. Todavia, não se trata apenas do volume ou de um esquema metodológico

de pesquisa, que nunca é neutro, como sinaliza Arretche (2001). Trata-se de uma

ação política como já foi apontada, sob a qual a metodologia não é usada para

esclarecer problemas derivados de fenômenos sociais ainda incompreendidos,

entretanto, para justificar discursos políticos e econômicos tradicionais, que teimam

em estabelecer bases para um desenvolvimento socioespacial fictício, pois

reproduzem sistematicamente um modelo de intervenção visivelmente voltado para

a lógica do crescimento econômico.

O elevado número de trabalhadores que dizem sofrer assédio moral (50%)

justifica a insatisfação dos(as) trabalhadores(as) com o trabalho na fábrica. A

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cobrança humilhante por meta78, a ameaça de desemprego constante molda um

cenário de perseguição e discriminação dentro da empresa. A demissão de um

trabalhador é sempre feita para inibir a expressão de queixas, reclamações ou

reivindicações dos(as) trabalhadores(as) garantindo-se, assim, o silêncio dos

“descartáveis”. Com isso, pautando-se na abordagem de Santana (2004), sobre a

sociologia do trabalho no mundo contemporâneo, poder-se-ia afirmar que na Azaléia

de Itambé tem-se

[...] o desenvolvimento de um processo que adiciona a adoção de novas técnicas e novos métodos às relações de trabalho retrógradas, que tem por base os baixos salários e a falta de procedimentos que visem a estabilização da mão-de-obra” (SANTANA, 2004: 38).

Desse modo, reafirma-se a dualidade do trabalho, pondo por terra a égide

bíblica da dignidade humana adquirida do trabalho pelo trabalho, e tão facilmente

absorvida pela sociedade itambeense, ainda desprovida de oportunidades ou de

estratégias outras de enfrentamento do desemprego estrutural.

78 Em cada célula de produção na fábrica existe uma tabela demonstrando a meta a ser alcançada e a produção do trabalhador por hora ou turno. Dificilmente o trabalhador consegue atingir o resultado almejado pela empresa. Mesmo assim, as metas não são reduzidas, expressando que compete ao trabalhador o esforço para cumprí-las, restando-lhe a sensação da “incompetência” e “ineficiência”.

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9 CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto pelos sindicalistas de Itambé e região Sudoeste,

poder-se-ia até pensar tratar-se de algo engendrado para macular a imagem da

empresa, motivados pelo conflito ideológico, se esses(as) trabalhadores(as) não

agissem em localidades e fábricas totalmente diferentes, e se as vozes de outros

agentes entrevistados (pesquisadores e profissionais de saúde do CESAT, Cerest

de Vitória da Conquista, NEIUM/UFBA, Fetrav) e os documentos técnicos e oficiais

produzidos não sinalizassem a mesma situação.

Não foi difícil encontrar as respostas para os problemas levantados para essa

pesquisa social, tal a força dos fatos encontrados por meio da metodologia utilizada,

apesar das limitações já descritas, principalmente as relacionadas ao acesso a uma

grande quantidade de trabalhadores(as) para aplicação de questionários e

entrevistas.

No que tange a qualidade de vida, fica evidente que o trabalho nas fábricas

da Azaélia Nordeste não prporciona prazer nem satisfação, e tem acarretado

problemas de ordem emocional e física em mulheres e homens com maior tempo de

na ocupação. E não se trata apenas disso. Toda uma lógica de ocupação do

espaço, de subjugação da mulher e do homem no interior da Bahia é evidente,

denotando uma fragilidade instituicional na proteção à saúde e segurança do(a)

trabalhador(a), que requer ação enérgica dos órgãos de vigilância e fiscalização

oficiais ligados ao SUS, MTE e Previdência Social.

Que a geração de emprego e renda propiciou maior circulação de dinheiro em

Itambé e região, acesso a bens e serviços pelo crédito e pelo salário, isso é

inegável. Contudo, o discurso da qualidade de vida pelo viés exclusivamente

econômico é neutralizado na medida em que só se sustenta nas vozes daqueles que

ainda não sofreram o desgaste físico e mental, mas que uma vez expostos às

mesmas situações de trabalho, não estão livres de compartilhar dos mesmos

sofrimentos e insatisfações dos trabalhadores já afetados que engrossam a

elevada taxa de rotatividade na empresa. Quanto a isso, a fala do sindicalista de

Itambé, “S5”, é emblemática e merece ser reescrita: “Muitas vezes a gente não

repara o que o companheiro do lado tá sentindo”, até passar a sentir e a

compreender a razão das queixas. Desse modo, entendemos que está respondido a

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primeira questão que motivou a realização desse estudo: a qualidade de vida é

mesmo relativa com a implantação da Azaléia em Itambé, e depende do olhar de

quem observa.

Os conflitos entre trabalhadores(as) e supervisores, e entre trabalhadores(as)

e gerentes, expressam uma relação hierárquica pautada no modelo do colonizador,

que chega para impor suas regras e normas, para além dos muros da empresa. A

conveniência do poder político local, associada com a ignorância sobre os

problemas decorrentes do assédio moral e do abuso da força de trabalho, colabora

para a manutenção dessa situação, na qual as regras informais relacionadas à

cultura política local (clientelista), aliada à cultura empresarial predatória, se

sobrepõem às instituições formais que estabelecem que o trabalho deve ocorrer em

condições salubres e seguras.

O elevado turnover desse tipo de empresa cria e reforça a natureza

descartável da força de trabalho em Itambé, reproduzindo sua lógica de submeter

homens e mulheres, que desejam experimentar a condição autônoma de cidadãos.

Desse modo, o segundo problema que motivou essa pesquisa está respondido: o

ser humano trabalhador é descartável porque sua seiva é sugada pelo ritmo da

produção até o limite de suas forças, e existe a abundância de força de trabalho

desqualificada, e, portanto, barata, para substituí-lo, pronta para ser usada (e

abusada) sem resistência, pela falta de organização política, que ainda está no nível

de formação, principalmente nos municípios de pequeno porte como Itambé, sem

tradição no que tange à participação social em questões de interesse coletivo.

Fazendo a analogia com aspectos históricos e culturais do nível local, é nítido

que o medo do desemprego, que também adoece, transforma-se na mordaça que

outrora era a máscara de ferro posta para calar a boca dos escravos no pelourinho.

Mas, uma vez lesionados e prestes a serem descartados, esses(as0

trabalhadores(as) buscam se organizar, correndo contra o tempo, como forma de

auto-preservação, e preservação do trabalho que eles valorizam o tempo inteiro

como meio de sobrevivência e inserção social.

A pesquisa em suas diversas etapas, evidenciou que em nenhum momento

as vozes escutadas condenaram a industrialização do Sudoeste baiano e do

município de Itambé, ou o trabalho. Condenaram os métodos da classe política local

e da empresa, dos supervisores e gerentes, que, como foi dito, agem como “feitores

e capatazes”, para os quais são chicotes o assédio moral, a perseguição, a

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humilhação do outro, o desemprego que bate à porta e fragiliza quem precisa de

respeito, pão e esperança de dias melhores.

Nenhuma voz se levantou contra o trabalho, mas, contra as suas péssimas

condições, pondo por terra o estigma da “preguiça baiana”, e, ao contrário, trazendo

à tona a capacidade de organização de homens e mulheres que ali trabalham e

sempre batem as metas de produção da Azaléia Nordeste, caso contrário, a

empresa ali não permaneceria tanto tempo.

O que esse estudo permite concluir, é que a qualidade de vida é ainda um

objetivo dos trabalhadores da Azaléia Nordeste, pois, esse parâmetro é resultante

de um conjunto de fatores sujeitos à interpretação do indivíduo e coletividade, que

expressará satisfação ou insatisfação, e que ainda não foram por eles alcançados.

Sendo assim, se não se vê a insatisfação plena, também não se observa a

satisfação total, como se o processo de industrialização só tivesse contribuído para o

desenvolvimento sócio-espacial, como quer fazer crer a empresa Azaléia, o Governo

do estado, os agentes financiadores e os políticos locais que festejam nos

palanques a geração de emprego e de renda. Isso nos leva a refletir novamente a

respeito da análise feita por Darcy Ribeiro sobre “a formação e o sentido do Brasil”, e

sobre a firmeza do discurso oficial em relação a qualidade de vida gerada pela

Azaléia em Itambé e região: “O que a documentação copiosíssima nos conta é a

versão do dominador” (RIBEIRO, 2003: 30).

Como se a implantação do ramo de calçados na Bahia e em Itambé,

particularmente, como se deu, só trouxesse resultados sociais positivos, sem saldos

como o adoecimento, as depressões, os suicídios, as mutilações, que seguem para

as filas do SUS e da Previdência Social, para serem custeados por toda a sociedade

baiana e nacional que acaba por sustentar o ônus de uma indústria que lucra e não

cumpre a legislação em favor da saúde, e, por conseqüência, da qualidade de vida

de sua força de trabalho sistematicamente explorada de maneira vil. Santana (2004:

37) fortalece essa opinião quando escreve que “[...] desse quadro resultariam a

permanência de processos convencionais com pouco espaço e aceitação da

inovação e o uso predatório de uma força de trabalho pouco qualificada, que por

isso justificaria seu baixo salário”.

Sugere-se que diante de um capital flexível e de uma empresa que segue à

risca a lógica da reestruturação produtiva, que a sociedade local atente para as

potencialidades do município, antes de se vê esgotado o modelo de industrialização,

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com base no ramo de calçados, o que já sinaliza a alta rotatividade do setor e o

baixo nível de investimento da empresa do ponto de vista tributário, inviabilizando

investimentos em setores como saúde, educação, cultura e infra-estrutura urbana.

Por esse caminho, o nível local poderá adequar e associar uma

industrialização menos agressiva em relação à saúde dos(as) trabalhadores(as) com

as alternativas socioeconômicas compatíveis com o seu pontencial, que lhe permita

a inclusão de jovens e adultos em programas de desenvolvimento menos instáveis e

temporários, construindo opções de emprego em ambientes e processos de trabalho

sustentáveis, que permitam a participação efetiva e a humanização das relações

sociais, reduzindo o impacto da industrialização no atual modelo, sobre a saúde e

qualidade de vida de cidadãos e cidadãs itambeenses desejosos(as) de

trabalharem em condições mais dignas à pessoa humana.

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REFERÊNCIAS

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ANEXO

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ANEXO A - Trabalhador de 19 anos amputado em acidente de trabalho na

empresa Azaléia, na máquina injetora de EVA em 08 de julho de 2006.

Foto: Acervo CEREST, 2006. Foto tirada pelo autor.

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ANEXO B - Distribuição geográfica da indústria Azaléia na Região Sudoeste do Estad

Fonte: IBGE, 2005. (Adaptado pelo autor).

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