UM ESTUDO DO CONCEITO DE HÁBITO NAS IMAGENS DO ... Boveto.pdf · referentes à leitura de imagens...

14
UM ESTUDO DO CONCEITO DE HÁBITO NAS IMAGENS DO MEDIEVAL HOUSEBOOK 1 Lais Boveto UEM/PPE/GTSEAM Sem financiamento [email protected] O estudo da Idade Média nos permite verificar que há inúmeras fontes para a pesquisa no campo da História da Educação. Por se tratar de um período longo, em torno de dez séculos de história, há muito ainda para compreendermos. São vários os acontecimentos que, a partir do século XI, influenciaram a sociedade moderna: o poder da Igreja que passa a ser questionado; a crise do sistema feudal – que cria as condições iniciais para o desenvolvimento do sistema capitalista; a organização urbana que surge a partir do renascimento comercial; as atividades das corporações de ofício; dentre outros. Neste contexto de crise e transformações sociais, o homem, gradativamente, também se modifica e transforma seus hábitos. Não é por acaso que, nos séculos XII e XIII, principia-se a criação e o fortalecimento de instituições educativas como as escolas urbanas e as universidades. No decurso do século XII as escolas urbanas ganham decisivamente a dianteira em relação às escolas monásticas. Saídos das escolas episcopais, os novos centros escolares tornam-se independentes pelo recrutamento de seus mestres e de seus alunos, e pelos métodos e programas que adotam. A escolástica é filha das cidades, e reina nas instituições novas, as universidades, corporações intelectuais. O estudo e o ensino tornam-se um ofício, uma das numerosas atividades em que se pode especializar no canteiro urbano (LE GOFF, 2005, p. 75). Observa-se que o estudo e o ensino também se modificam para atender as novas necessidades sociais no período em questão. Conforme Oliveira (2005), o governo da Igreja passa a ser questionado por não atender aos anseios dessa nova sociedade. Por este motivo, novas forças sociais – comércio, universidades, senhores feudais – se sobressaem e o poder da Igreja principia a se modificar de autoridade para o autoritarismo. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1738

Transcript of UM ESTUDO DO CONCEITO DE HÁBITO NAS IMAGENS DO ... Boveto.pdf · referentes à leitura de imagens...

 

 

UM ESTUDO DO CONCEITO DE HÁBITO NAS IMAGENS DO MEDIEVAL

HOUSEBOOK1

Lais Boveto

UEM/PPE/GTSEAM

Sem financiamento

[email protected]

O estudo da Idade Média nos permite verificar que há inúmeras fontes para a pesquisa

no campo da História da Educação. Por se tratar de um período longo, em torno de dez

séculos de história, há muito ainda para compreendermos. São vários os acontecimentos que,

a partir do século XI, influenciaram a sociedade moderna: o poder da Igreja que passa a ser

questionado; a crise do sistema feudal – que cria as condições iniciais para o desenvolvimento

do sistema capitalista; a organização urbana que surge a partir do renascimento comercial; as

atividades das corporações de ofício; dentre outros. Neste contexto de crise e transformações

sociais, o homem, gradativamente, também se modifica e transforma seus hábitos. Não é por

acaso que, nos séculos XII e XIII, principia-se a criação e o fortalecimento de instituições

educativas como as escolas urbanas e as universidades.

No decurso do século XII as escolas urbanas ganham decisivamente a dianteira em relação às escolas monásticas. Saídos das escolas episcopais, os novos centros escolares tornam-se independentes pelo recrutamento de seus mestres e de seus alunos, e pelos métodos e programas que adotam. A escolástica é filha das cidades, e reina nas instituições novas, as universidades, corporações intelectuais. O estudo e o ensino tornam-se um ofício, uma das numerosas atividades em que se pode especializar no canteiro urbano (LE GOFF, 2005, p. 75).

Observa-se que o estudo e o ensino também se modificam para atender as novas

necessidades sociais no período em questão. Conforme Oliveira (2005), o governo da Igreja

passa a ser questionado por não atender aos anseios dessa nova sociedade. Por este motivo,

novas forças sociais – comércio, universidades, senhores feudais – se sobressaem e o poder da

Igreja principia a se modificar de autoridade para o autoritarismo.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1738

 

 

Neste mesmo contexto, a arte também passa por uma transformação. Até o século XII,

a arte românica expressava o pensamento e a sociedade medieva (LE GOFF, 2005), mas, no

renascimento urbano é a arte gótica que expressa a maneira do homem observar o mundo.

Na arte gótica as flores são flores reais, as feições humanas são feições individuais, as proporções são as das medidas materiais e não significações simbólicas. Sem dúvida esta dessacralização do universo é em certo sentido um empobrecimento, mas também uma liberação. [...]. O empobrecimento do simbolismo, ou pelo menos seu enfraquecimento diante da realidade sensível, manifesta uma mutação profunda da sensibilidade (LE GOFF, 2005, p. 353-354).

Vemos, portanto, que a sensibilidade também se modifica gradativamente em um novo

contexto social. Na observação das imagens de cada período é possível encontrarmos

diferentes traços sociais que caracterizam valores, costumes, hábitos e demonstram como o

homem percebe o mundo a sua volta. Conforme Le Goff, na arte românica a preocupação

estética e simbólica é mais relevante; na arte gótica, por sua vez, o homem passa a observar o

mundo como ele se apresenta.

É necessário salientar que os elementos apontados, até este momento, indicam que

vários aspectos sociais se movimentam para que haja uma efetiva mudança na sociedade.

Assim, a sociedade moderna não surge em virtude de um único desejo, de uma única

necessidade ou de um único interesse. No decorrer do período medieval, as condições sociais

que permitem a identificação da transição da Idade Média para a Moderna, constituíram-se

muitos séculos antes.

Em decorrência desse contexto, pretendemos abordar neste trabalho alguns aspectos

referentes à leitura de imagens e, especificamente, apresentar imagens da obra alemã,

Mittelalterliches Hausbuch, produzida por um artista anônimo do final do século XV. O

estudo sobre esta obra está em fase inicial e tem como pressuposto metodológico a História

Social. É necessário assinalar que escolhemos esta abordagem porque nos possibilita uma

pesquisa de aspectos históricos essenciais para a compreensão de conceitos na História da

Educação.

Aprendemos que também o homem mudou muito: no seu espírito e, provavelmente, até nos mais delicados mecanismos do corpo. Como poderia ser de outro modo? Transformou-se profundamente a sua atmosfera mental; e também a sua higiene, a sua alimentação. Convimos, todavia, em que

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1739

 

 

existe na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo permanente. Se assim não fosse, os próprios vocábulos de ‘homem’ e de ’sociedade’ não significariam coisa nenhuma (BLOCH, 2001, p. 65).

Desse modo, Bloch salienta que apesar de inúmeras transformações, a humanidade

mantém algumas características, as quais ele denomina ‘fundo permanente’. Ao

considerarmos a História da Educação, é possível verificar que ocorre a manutenção de

conceitos, valores e costumes fundamentais para a formação do homem, visto que o homem é

constituído por um passado e é somente em relação a este passado que ele se modifica. Com

efeito, as transformações só podem ocorrer em relação a algo já existente. Portanto, para

compreendermos a educação hoje, é necessário analisá-la no passado e verificar o fundo

permanente específico da História da Educação. Desse modo, compreenderemos de forma

mais clara o que constitui o pensamento educacional atual em relação ao conceito ‘hábito’.

Assim, propomo-nos a investigar de que maneira a formação de hábitos foi ou não

relevante para as transformações educacionais ocorridas no final do século XV. Para realizar

este estudo, seguindo a análise de imagens, pautamo-nos na perspectiva de Francastel a

respeito da Sociologia da Arte, segundo a qual as imagens, assim como todas as técnicas

humanas, devem ser avaliadas considerando ao menos um dos três aspectos: técnico,

psicológico ou sociológico.

Com efeito, não existe produto da atividade humana que não dependa desse triplo ponto de vista, assim como não há na vida técnica e arte puras. Mesmo as fantasias mais arbitrárias da arte pela arte são produto de uma imaginação que, embora individual, procura explorar uma habilidade manual para exprimir um sentimento ou um capricho que manifesta uma realidade social. Quando não é um dos modos de ação, a arte é um dos modos de conhecimento. Por conseguinte, deve ser utilizada simultaneamente com as outras disciplinas para uma interpretação da vida passada e presente das sociedades mais aprimorada e completa (FRANCASTEL, 1982, p. 32).

Compreendendo que a imagem expressa conhecimento e modos de agir, em imagens

do passado é possível constatar o pensamento de um determinado período histórico e,

também, características humanas que diferem daquelas observadas em outras fontes. Portanto,

ao analisar o conceito de hábito em um período de transição, as imagens se constituem em

fontes diferenciadas daquelas com as quais estamos mais familiarizados, como os textos

escritos, por exemplo.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1740

 

 

O conceito ‘Hábito’

Conforme mencionamos anteriormente, o conceito norteador de nossa pesquisa é o

hábito. Recorremos ao pensamento aristotélico, segundo o qual a formação de hábito é o meio

para que o homem adquira as virtudes morais e forme o seu caráter.

Em síntese, nossas disposições morais são formadas como produto das atividades correspondentes. Consequentemente, nos compete controlar o caráter de nossas atividades, já que a qualidade destas determina a qualidade de nossas disposições. Não é, portanto, de pouca monta se somos educados desde a infância dentro de um conjunto de hábitos ou outro; é, ao contrário, de imensa, ou melhor, de suprema importância (ARISTÓTELES, Ética, L. II, § 2).

O conjunto de hábitos no qual um homem é criado determinará, segundo o

pensamento aristotélico, seu caráter e suas disposições. É, basicamente, neste sentido que o

conceito de hábito é de suma importância em estudos na História da Educação. Analisá-lo e

identificá-lo em fontes imagéticas pode auxiliar a compreensão de como os homens de cada

período se defrontavam com as questões educacionais.

Noções gerais sobre o Mittelalterliches Hausbuch – ou Medieval Housebook

A fonte principal que utilizaremos para análise desse conceito serão imagens datadas

do final do século XV. A intenção é verificar como o hábito está representado em imagens, na

transição da Idade Média para a Idade Moderna. Para tanto, será necessário observar aspectos

como costumes, religiosidade, vestuários e a natureza. Entende-se, portanto, que a maneira

pela qual o homem expressa sua realidade revela pensamentos pertencentes a determinados

grupos sociais.

A obra de arte, especialmente a imagem, não é o reflexo de um real recortado antes de qualquer intervenção do espírito humano em objetos conformes à nossas nomenclaturas. O homem não acrescenta intelecto a estruturas independentes de seu pensamento. [...]. A obra de arte não constitui um sinal de uma realidade localizável por outras vias e exprimível por outras técnicas (FRANCASTEL, 1982, p. 17).

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1741

 

 

Desse modo, Francastel ressalta que a arte – e a imagem – é autônoma, não serve para

ilustrar a linguagem oral ou escrita. A própria arte comunica e deve ser assim analisada, como

uma das formas do homem se expressar e divulgar o próprio pensamento. Conforme o autor, a

arte fornece informações que não podem ser captadas de outra forma, a não ser pelo contato

direto com as obras. Assim, no estudo que estamos realizando, a questão central é

compreender um conceito da História da Educação – o hábito – por meio de imagens. Tarefa

que consideramos complexa, especialmente, por termos nos ‘habituado’ ao contato mais

frequente com o texto escrito. Desenvolver a sensibilidade e o conhecimento necessários para

analisar fontes imagéticas – assim como no caso das fontes escritas –, em nosso

entendimento, constitui-se em um desafio intelectual fundamental para a formação no campo

da História da Educação.

As imagens do Medieval Housebook, ou Mittelalterliches Hausbuch – produzido por

um artista anônimo por volta de 1480, são nosso foco principal de estudo. Conforme Norbert

Elias (1994), este é um dos poucos livros de gravuras produzidos no século XV que

demonstra, entre outros fatos, a vida do cavaleiro medieval.

Fig. 1: Tournament: Deutsches Stechen – Torneio. In: FILEDT KOK, J. P. (Ed.). Livelier than life.

1985, p. 226.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1742

 

 

É possível verificar, na imagem acima, um clima festivo. O torneio entre dois

cavaleiros é praticado como um esporte com a presença de mulheres e crianças. O vencedor é

aquele que fizer o outro cair da sela. Ao contrário da imagem seguinte, que representa um

duelo, no qual as pontas das lanças são mais afiadas e o objetivo é matar o adversário. Como

vemos, na figura 2 não há presença de mulheres e o clima indica certa formalidade, com um

corneteiro que dará início ao combate e um menino com o estandarte (FILEDT KOK, 1985, p.

241).

Fig. 2: Duel: Scharfrennen – Duelo. In: FILEDT KOK, J. P. (Ed.). Livelier than life. 1985, p. 226.

Elias destaca ainda que, ao contrário dos desenhos de períodos posteriores, as imagens

do Hausbuch evidenciam tudo o que é comum e vulgar na sociedade.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1743

 

 

Tudo o que é “comum” e “vulgar”, da mesma forma que desaparece da linguagem de corte, desaparece também dos quadros e desenhos destinados à aristocracia de corte. Nos desenhos do Hausbuch, que nos dão uma idéia da estrutura de sentimentos da classe alta em fins do período medieval, isto não acontece. Neles, todos esses elementos – a forca, os servos esmolambados, os laboriosos camponeses – são vistos como na vida real. Não são enfatizados em espírito de protesto, à maneira de épocas posteriores, mas mostrados como algo muito natural, parte do ambiente da vida diária, tal como o ninho da cegonha ou a torre da igreja (ELIAS, 1994, p. 204).

Fig. 3: Minneburg: an ill-defended castle of love – inspirado no poema alemão Die Minneburg (uma alegoria do amor cortês, popular no final da Idade Média). In: FILEDT KOK, J. P. (Ed.). Livelier than life. 1985, p. 227. Na figura 3, observam-se vários aspectos em torno do castelo. Elias aponta, na

paisagem, a convivência, aparentemente natural, entre o que é considerado ‘vulgar’ e o

cotidiano do castelo. Na figura 4, ocorre o mesmo contraste de acontecimentos. Em uma

mesma imagem há a prática da caça ao veado, com homens e mulheres da nobreza, ao fundo

há um homem morto na forca que serve de alimento aos pássaros, ao centro, camponeses que

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1744

 

 

trabalham, entre outras cenas. Vemos que não havia uma preocupação em retirar a pobreza do

cenário. Um detalhe interessante, na figura 3, é que, aparentemente, trata-se da área de

estábulo, ou seja, não é a entrada do castelo. A gaiola na mão de uma das mulheres era um

símbolo comum para representar a prostituição, no entanto, neste desenho pode ser uma

referência geral ao entrapment (aprisionamento) (FILEDT KOK, 1985, p. 242). Dessa

maneira, vários aspectos dessas e de outras imagens indicam a convivência entre riqueza e

pobreza e entre a vulgaridade e a nobreza.

Fig. 4: Stag Hunt – Caçada ao veado. In: FILEDT KOK, J. P. (Ed.). Livelier than life. 1985, p. 227.

O autor segue com uma análise de vários cenários apresentados pelo artista anônimo

do Hausbuch e, nela, percebe-se que muitos aspectos da sociedade medieval do final século

XV são apresentados de forma realista e evidente. Esse contraste entre nobreza e miséria não

é apresentado da mesma forma pelas imagens em períodos posteriores. Nelas é perceptível,

portanto, a modificação do padrão de beleza e de valores. No final do século XV, a classe alta

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1745

 

 

convive com a pobreza e a miséria e não vê problemas nisso. Pelo contrário, é por meio dessa

convivência que os cavaleiros e senhores se destacavam e asseguravam sua autoestima e seu

poder. Posteriormente, esse contraste torna-se um problema e é expresso pela arte somente em

sinal de protesto.

Esse sentimento surge repetidamente nos desenhos. Dificilmente encontramos um deles em que as ocupações e gestos corteses não sejam contrastados com os, mais vulgares, das classes baixas. Quanto ele monta, caça, ama ou dança, tudo o que faz é nobre e cortês, e tudo o que os servos e camponeses fazem é grosseiro e rústico. Os sentimentos da classe alta ainda não exigem que todo o vulgar seja eliminado da vida e, por conseguinte, dos desenhos (ELIAS, 1994, p. 207).

Nesta passagem, é possível notar dois aspectos fundamentais: como as emoções são

expressas na arte e de que maneira, essas mesmas emoções, denotam características

individuais – por exemplo, o gosto pelo contraste entre o nobre e o rústico – que são

diretamente dependentes de características sociais. Vê-se que este é um material substancial

no que concerne à relação entre o que Norbert Elias denomina estrutura social e estrutura

emocional2.

A análise das imagens do Hausbuch, na história da educação, pode nos auxiliar a

compreender de que modo os homens se adequaram às modificações sociais daquele período

e como suas características foram formuladas no interior dessas transformações.

Exemplificamos com uma passagem em que Elias (1994) trata da agressividade.

Deixando de lado uma pequena elite, o saque, a rapinagem, e o assassinato eram práticas comuns na sociedade guerreira dessa época [...]. Explosões de crueldade não excluíam ninguém da vida social. Seus autores não eram banidos. O prazer de matar e torturar era grande e socialmente permitido. Até certo ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa maneira (ELIAS, 1994, p. 192-193).

É perceptível que aspectos que hoje consideramos desprezíveis já foram hábitos

comuns no cotidiano dos homens. A forma como caracterizamos um ser humano como

agressivo, atualmente, difere-se essencialmente da forma como o homem medieval convivia

com a agressividade. Comportamentos que hoje condenamos eram, na Idade Média, comuns e

aceitáveis. Isso demonstra o que pode ser considerado o cerne da questão abordada: o vínculo,

apresentado pelo sociólogo Norbert Elias, entre estrutura social e estrutura da personalidade

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1746

10 

 

 

(1994, p. 199). Segundo este autor, as formas de comportamento, ou, o modo de vida do ser

humano é determinado pela estrutura social.

Em todos os casos em que abrimos documentos dessa época encontramos a mesma coisa: uma vida na qual a estrutura emocional era diferente da nossa, uma existência sem segurança e com o mínimo de pensamento sobre o futuro. Quem quer que não amasse ou odiasse ao máximo nessa sociedade, quem quer que não soubesse defender sua posição no jogo das paixões, podia entrar para um mosteiro, para todos os efeitos. Na vida mundana ele estava tão perdido como, inversamente, estaria numa sociedade posterior, e particularmente na corte, o homem que não pudesse controla-las, não pudesse esconder e “civilizar” suas emoções (ELIAS, 1994, p. 198).

Segundo Elias, características sociais, como um poder central forte e autoridade

estabelecida, desencadeavam comportamentos sociais mais contidos e, portanto, menos

agressividade. Observa-se que a emoção está relacionada com o meio social e o homem

começa a ‘civilizar’ suas emoções no momento em que, socialmente, isso é necessário. Por

este motivo, se entendermos a educação como ‘processo civilizador’, verifica-se que, na

transição da Idade Média para a Idade Moderna, muitas transformações ocorreram na maneira

de educar. Compreender essas transformações por meio das imagens será relevante para que

seja possível entender a função da formação de hábitos na educação.

Segundo Aristóteles, a educação representa a forma de prover o homem de hábitos que

permitam que ele realize boas ações, sem deixar se guiar pelo prazer ou pelas paixões (Ética,

L. II, § 2). Ainda segundo o Filósofo, oferecer esta educação é papel da ciência política

(Política, L. II, c. V, § 20). Esta deve incutir nos cidadãos hábitos direcionados à formação do

caráter que os tornará capazes de agir com excelência moral e de forma consciente, racional e

intencional.

O espírito de pertencimento e a política caminham juntos na cidade, que Tomás de Aquino, da mesma forma que Aristóteles, denominou de comunidade perfeita. <<Por isso, quem rege a comunidade perfeita, isto é, a cidade ou o país, chama-se antonomasticamente rei [...]>> (TOMÁS DE AQUINO, 1997: p. 130). Essa comunidade perfeita, habitada por uma multidão heterogênea, com interesses variados e, às vezes, até mesmo conflitantes, estabelecia, no seu interior, uma ideia nova em relação ao universo do sistema feudal e das antigas relações nômades [...] (OLIVEIRA, 2009, p. 719).

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1747

11 

 

 

Observa-se que a autora destaca que o sentimento de pertencimento está vinculado ao

papel social diferente de cada membro da sociedade. A aceitação da função desempenhada

por cada um, destacada também por Norbert Elias, em sua análise das imagens do Hausbuch,

é apontada de uma perspectiva geral, em que é possível indicar o hábito como formador de

determinados comportamentos sociais. Com efeito, os homens se habituam a agir de

determinadas formas para se adequarem à sociedade em que vivem. Desse modo, percebe-se

uma relação entre as mudanças sociais e a formação de hábitos que, gradativamente, modifica

comportamentos que consideramos aceitáveis ou não.

Huizinga (1978), em sua obra O Declínio da Idade Média, salienta que no início do

século XX – quando ele escreveu a obra – poucas eram as obras de arte conhecidas da Idade

Média. A disponibilidade de documentos escritos era muito maior e o autor destaca que

grande parte das obras de arte que se conservaram era eclesiástica.

Pouco resta da arte que não seja eclesiástica. Da arte profana e da arte aplicada conservaram-se apenas raros espécimes. Falta muito grave porque estas são precisamente as formas de arte em que mais claramente se nos revelariam as relações entre produção artística com a vida social (HUIZINGA, 1978, p. 222).

A pesquisa inicial a respeito do Hausbuch indica que o manuscrito é um desses

‘espécimes raros’. Há poucas informações sobre o artista que permanece como anônimo. As

imagens e os textos tratam de assuntos diversificados, como receitas caseiras

medicamentosas, utensílios, técnicas diversas, cavalaria, cosmologia, entre outros. As

informações disponíveis a respeito do Hausbuch indicam que tem havido crescente interesse

em analisá-lo especialmente no âmbito da História da Arte. Entre os materiais que temos

disponíveis para a pesquisa: o livro Livelier than life: the Master of the Amsterdam cabinet or

the Housebook Master3 e Venus and Mars: the world of the Medieval Housebook4, vê-se que

ambos são livros vinculados às exposições realizadas no Museu Nacional de Amsterdã,

Holanda, e na Galeria Nacional de Arte de Washington, Estados Unidos, respectivamente.

A Galeria Nacional de Arte disponibiliza valiosas informações sobre o Housebook.

Sabe-se que o manuscrito original pertence ao castelo de Waldburg-Wolfegg e, conforme Earl

Powell, diretor da Galeria, o livro representa uma enorme gama de emoções humanas,

inclusive situações cômicas. A forma como os temas são abordados no manuscrito indicam

que o proprietário, que solicitou a confecção da obra, ocupava posição de prestígio na

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1748

12 

 

 

sociedade e interessava-se pela proteção militar do castelo. Outro fato apontado pelo texto

informativo da Galeria é a inovadora técnica drypoint5 utilizada pelo artista que,

aparentemente, foi o primeiro a utilizá-la.

Peculiaridades do estudo de fontes imagéticas

Analisar imagens pressupõe alguns desafios conceituais. Um deles é o de não utiliza-

las como ilustrações para o texto escrito, ou seja, analisar a imagem de um determinado

período em relação ao que foi escrito neste mesmo período. A imagem possui a sua

especificidade enquanto objeto de pesquisa e não há como examiná-la fora das condições nas

quais foi criada.

As respectivas especificidades da imagem e da língua impedem que a primeira seja jamais designada como ilustração de um texto, mesmo no caso de uma miniatura pintada tendo em vista um texto e em relação direta com o seu conteúdo. O texto evoca seus significados na sucessão temporal das palavras; a imagem organiza espacialmente a irrupção de um pensamento figurativo radicalmente diferente (SCHMITT, 2007, p. 34).

Nesta passagem, observamos que é necessário muito cuidado e estudo para analisar

imagens de acordo com suas especificidades – sem confundi-las com ilustrações de textos. As

imagens têm finalidades que, segundo Schmitt, não são tão-somente representativas, pois a

imagem constrói o real de forma peculiar. A questão que se estabelece, portanto, é

compreender a totalidade da imagem, sem pretender interpretar somente o que ela representa,

mas compreendendo sua forma, estrutura, funcionamento e funções (SCHMITT, 2007, p. 27).

Para que seja possível compreender imagens é muito importante ter noção do papel que elas

desempenham entre os homens (HUIZINGA, 1978).

Naqueles tempos [final da Idade Média], a arte revestia-se de vida. A sua função era a de encher de beleza as formas que a vida tomava. Essas formas eram acentuados [sic] e fortes e a vida andava envolta e era ritmada pela rica eflorescência da liturgia, os sacramentos, as horas canônicas do dia e as festividades do ano eclesiástico. [...] A arte não era ainda um meio, como agora, para se sair da rotina da vida quotidiana e passar alguns momentos de contemplação; tinha de ser gozada como um elemento da própria vida, como a expressão do significado da vida (HUIZINGA, 1978, p. 222).

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1749

13 

 

 

Huizinga, do mesmo modo que Schmitt o fará décadas depois, busca evidenciar a

função das imagens entre os homens tratando, especificamente, da arte no período medieval.

Afirma que na Idade Média a finalidade prática da arte era muito evidente. O significado das

imagens e o destino a que eram produzidas não estava vinculado a fins estéticos, mas, como

afirma o autor, ao modo de viver religioso ou cavalheiresco. A estética só era necessária para

demonstrar um objetivo elevado, como era o caso da arte sacra. Conforme Le Goff, a

mentalidade e a sensibilidade do homem medievo, entre os séculos X e XIII, era dominada

pelo sentimento de insegurança e pela desesperança, ao qual a Igreja tentava combater

apontando a solidariedade e a vida eterna como panaceia (2005, p. 325).

O símbolo representava um contrato. Era a referência a uma unidade perdida, lembrando e nomeando uma realidade superior e oculta. No pensamento medieval, “cada objeto material era considerado como a figuração de alguma coisa que lhe corresponderia num plano mais elevado, e tornava-se, deste modo, seu símbolo”. O simbolismo era universal, e pensar era uma perpétua descoberta de significações ocultas, uma constante “hierofania” (LE GOFF, 2005, p. 331-332).

A noção da existência de um mundo sagrado e mágico, de um plano elevado e místico,

dava aos homens a sensação de confiança. Assim, a função dos símbolos e das imagens está

relacionada em um primeiro plano à espiritualidade, mas é possível observar que essa

espiritualidade está diretamente relacionada à materialidade da vida humana e, exatamente

por isso, torna-se fonte para a construção de saberes na história da educação.

                                                            1 Apresentamos, neste texto, alguns aspectos de nossa pesquisa em nível de Mestrado, sob a orientação da Profa. Dra. Terezinha Oliveira – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.

2 Estrutura social é, segundo o entendimento de Norbert Elias, a forma como a sociedade está organizada e inclui aspectos que determinam a estrutura emocional dos indivíduos. Assim, segundo o autor, em estruturas sociais diferentes os padrões de comportamento humano também são diferentes (ELIAS, 1994, p. 48).

3 Mais vivo do que a vida: o Mestre do gabinete de Amsterdã ou o Mestre Housebook – sem versão em português. O nome ‘Mestre de Amsterdã’ é devido ao fato de grande parte das gravuras do manuscrito pertencer ao Museu Nacional de Amsterdã (Rijksmuseum) (ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA, online).

4 Venus e Marte: o mundo do Medieval Housebook.

5 Técnica de gravura que consiste em arranhar o desenho em uma placa de cobre com uma ferramenta pontiaguda. A tinta é retida nos sulcos formados na placa e a placa é pressionada sobre o papel para imprimir o desenho (Disponível em http://www.encyclopedia.com. Consulta em: 01/10/2010).

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1750

14 

 

 

                                                                                                                                                                                          

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Bauru, SP: Edipro, 3ª ed., 2009.

______. Política. In: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BLOCH, M. Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2v.

FILEDT KOK, J. P. (Ed.). Livelier than life: the Master of the Amsterdam Cabinet or the Housebook Master, ca. 1470-1500. Amsterdam: Rijksmuseum, 1985. Exhibition catalog.

FRANCASTEL, P. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo: Perspectiva, 1982.

HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo EDUSP, 1978.

LE GOFF, J. A civilização do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2005.

OLIVEIRA, Terezinha. Escolástica. São Paulo: Mandruvá, 2005.

______. Universidade, liberdade e política na comuna medieval: um estudo de cartas oficiais. História, Franca, v. 28, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/his/v28n2/25.pdf. Consulta em: 01/10/2010.

SCHMITT, J. C. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 23 – 59.

WALDBURG-WOLFEGG, C. G. zu. Venus and Mars: the world of the Medieval Housebook. Disponível em: http://www.nga.gov/press/exh/124/index.shtm. Consulta em: 01/10/2010.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1751